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Moreira Lucia Construcao Sentido Narrativa Audiovisual

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Page 1: Moreira Lucia Construcao Sentido Narrativa Audiovisual

A construção do sentido na narrativa audiovisual: umcaso de ficção na mídia∗

Lúcia Correia Marques de Miranda Moreira

Índice

1 O texto: a representação simbólica eas possibilidades combinatórias 3

2 A instituição familiar: eu, tu, eles 53 Considerações finais 84 Referências 9

Resumo

O texto analisa a arquitetura simbólica quese pode identificar no percurso dos perso-nagens do longa metragem nacionalEu, tu,eles.A leitura do texto fílmico atentará paraa construção de sentido que se estabelecepelo produtor e pelo receptor, caracterizadosaqui como “operadores de linguagens”, en-fatizando particularidades da linguagem au-diovisual no universo da narrativa ficcional.

Introdução

Depois de assistir ao longa metragem nacio-nal,Eu, tu, eles,dirigido por Andrucha Wad-dington e protagonizado por Regina Casé,Lima Duarte, Stênio Garcia e Luís CarlosVasconcelos fica uma pergunta: quem sãoo “eu”, o “tu” e o “eles”? A seqüência tão

∗Professora do Programa de Pós-graduação emComunicação, UNIMAR – Universidade de Marília;[email protected]

familiar em que esses pronomes aparecemformando o título do filme, pode parecer,em primeira instância, ingênuo. No entanto,um olhar um pouco mais atento pode apon-tar para várias reflexões. O que pretende-mos neste texto é refletir acerca de uma daspossibilidades interpretativas da carga sim-bólica apontada nos pronomes pessoais usa-dos para o título do filme (Eu, tu,eles). A hi-erarquia subjacente ao papel representativodestes pronomes e a construção do sentidoda narrativa audiovisual, cruzando e entre-cruzando as possibilidades significativas quesustentam seus signos constitutivos é o pontode partida da nossa reflexão.

Embora o roteiro do filme explicite umadeterminada proposta para engendrar a nar-rativa, nossa análise volta-se para o entendi-mento das relações que se estabelecem entreos personagens e que levam à interpretaçãodo título do filme. Eu, tu, elespode, numprimeiro momento, suscitar uma classifica-ção dos personagens de acordo com critériosque os destacam em principais (protagonis-tas/antagonistas) ou secundários (coadjuvan-tes). No entanto, essa classificação não seencaixa muito bem no relato da trajetória deDarlene e seus maridos, considerando a po-sição habitual desses pronomes pessoais nodiscurso.

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2 Lúcia Moreira

Ao longo da leitura/análise da narrativaaudiovisual, pode-se percorrer os trajetos daspersonagens, já que pela sua atuação, funçãoe desempenho é possível depreender a arqui-tetura simbólica que sustenta uma hierarquiareconhecível entre os papéis que cada um re-presenta ao longo da história.

Trata-se de uma instituição social – a fa-mília – que luta pela sobrevivência físicae pela solidificação e manutenção de valo-res morais e éticos muito peculiares àquelegrupo. Ao acompanhar o percurso individualde cada um dos personagens, podemos aven-tar de que matéria são feitos. E ao obser-var como essas trajetórias se cruzam e entre-cruzam num dado momento da vida de cadaum, podemos pressupor que valores simbó-licos os unem num caminho único. Algunsparadigmas delineiam-se e vão sustentandoa história peculiar dessa famíliasui generis,composta por uma mulher com três maridos!

Numa sociedade ocidental em que maisfacilmente se aceitaria o contrário - emboraa moral e os bons costumes apontem paraoutros valores - esta história vai propondooutros sentidos. O que a torna possível,e até verossímil, é a mudança de perspec-tiva quanto às motivações que levam à cons-tituição daquela família. A própria narra-tiva, de caráter ficcional (ainda que inspi-rada em fatos reais), cria elementos situaci-onais e ações dramáticas, que viabilizam averossimilhança no universo daquele grupo.Os acontecimentos, as relações humanas vi-vidas na narrativa são apresentadas de talforma, com uma naturalidade e singelezatão grandes – o filme tem um ritmo lento,sem grandes acontecimentos - que o cotidi-ano transpira e nos faz ler aqueles eventoscomo seqüências naturais, até óbvias em cer-

tos momentos! Afinal, é uma família ten-tando sobreviver!

O filmeEu, tu, elesapresenta uma institui-ção familiar baseada no modelo feudal de so-brevivência da espécie inscrita em combina-ções semióticas e novas representações síg-nicas de velhos valores como: poder, hierar-quia e proteção.

Segundo Elena Soaréz, roteirista do filme,temos como base de sustentação interpreta-tiva desse casamento aparentemente insólito,o pressuposto de que a mulher é ali o pontofundamental da história – como todo perso-nagem principal típico, a narrativa gira emtorno dela – assim, torna-se evidente que dotítulo do filme, o pronome “eu” se refira aela. De acordo com a roteirista:

Ao longo de 4 anos, desenvolvemos umroteiro de ficção que conta a história damulher que acumulou três maridos sobo mesmo teto. A vida de Darlene comOsias, Zezinho e Ciro é a história de umafêmea que com astúcia e afeto molda ahonra de 3 machos sertanejos de formaa acomodá-los dignamente em seu espa-çoso coração. E se chegou a isso é por-que para Darlene casamento é para a vidatoda. De forma que um novo amor nãoleva a uma troca de maridos, mas a umacúmulo deles. E é assim que até que amorte os separe, Darlene - a mais fiel dasmulheres - segue vivendo com seus 3 ma-ridos em algum lugar perdido no sertão.1

Nossa leitura da narrativa, baseada na pre-missa de que um texto permite mais de umainterpretação, sugere que olhemos para estainstituição familiar a partir de outro viés.

1Elena Soaréz.Os primeiros passos do roteiro.(www2.uol.com.br/eutueles/)

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Claro está que não ignoramos as considera-ções da roteirista e o modo como construiu opersonagem de Darlene – baseado no vigor,na astúcia e no afeto da mulher sertaneja –mas propomos um olhar diferente sobre ossentidos que consolidam as relações entre amulher e seus três maridos. Uma leitura nãoinvalida a outra, pelo contrário, acrescenta.

1 O texto: a representaçãosimbólica e as possibilidadescombinatórias

Diz Fernando Guimarães2, a respeito da ar-quitetura simbólica da poesia simbolista por-tuguesa, algo que nos parece apropriado ob-servar a propósito da linguagem simbólicado filme Eu, tu, elesquanto à abordagemde um tema elaborado em torno de ele-mentos tão característicos da cultura nordes-tina. Lá estão aspectos facilmente identificá-veis daquela expressão cultural, mas o filmevai além dessa representação, abordando umquestionamento bem mais profundo do queapenas constatar a árdua e tão conhecida vidado povo daquela localidade. O texto fílmico,por assim dizer, ao estabelecer suas combi-nações sígnicas – lançando mão das possi-bilidades tão peculiares da linguagem audi-ovisual – engendra uma operação de lingua-gens e signos (verbais e não-verbais) que in-cita o leitor/espectador a ir além do reconhe-cimento da representação de uma realidadetão conhecida.

O texto deixa de fechar o cerco à pala-vra, a ponto de imobilizar num sentido

2Ferando Guimarães.A poesia da Presença e oaparecimento do Neo-realismo.Vila da Maia: Edito-rial Inova, 1969.

que, como significado, seria em relaçãoao significante algo de tautológico, (...) apoesia tenta cada vez mais conduzir-nosa uma leiturain absentia, uma leitura dedescoberta...3

Há nas particularidades das tomadas, nailuminação, na direção de cenas um tom poé-tico - naquilo que a linguagem poética temde (re)velador, velando, escondendo outravez. Na realidade, trata-se de uma revelaçãosutil, delicada de uma história que parece sercontada sem sobressaltos, sem grandes aven-turas. A grande aventura é contar o cotidianode sobrevivência física e moral daquelas pes-soas que, pela constituição familiarsui gene-ris, garante a sobrevivência em todos os seusaspectos.

O texto fílmico lida com aquilo a que cha-mamos depossibilidades combinatórias docódigo (as relações entre os signos na ela-boração e transmissão da mensagem), bemcomo com as possibilidades combinatóriasdos signos (num nível mais específico deconstrução de sentido dentro do próprio pro-cesso de elaboração do signo, quanto à rela-ção significante/significado – em que se de-fine e estrutura a significação4).

Segundo Umberto Eco, ao introduzirmoso código no sistema comunicacional, estabe-lecemos uma espécie de limitação às nume-rosas possibilidades de informação que te-mos:

O que se obtém introduzindo o código?Limitam-se as possibilidades de combi-nação entre os elementos em jogo e o nú-

3Op. Cit., pp. 35-6.4Tzvetan Todorov.Teorias do Símbolo. Lisboa:

Edições 70 (Signos), 1979.

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mero de elementos que constituem o re-pertório.5

Assim, temos no filme um repertório designos culturais referentes aos hábitos daconstituição familiar no nordeste brasileiro.Estes traços culturais vêm assinalados porelementos que refletem uma herança deixadapela miscigenação européia (lusitana), afri-cana e indígena. É justamente essa mesclade valores culturais que nos permite compre-ender o “casamento” de signos (símbolos)6

que ali se encadeiam na construção do sen-tido daquela narrativa audiovisual.

O código audiovisual (composto de signosverbais e não-verbais) delimita as possibili-dades combinatórias dos dados informacio-nais de que se dispôs para a elaboração da-quela mensagem:

Como não havia nenhuma indicação naestrada, entrei numa cidade chamada“Morada Nova” e me informei onde fi-cava o tal “Quixelô”. Toquei para lá.Quixelô não passava de um povoado com5 ou 6 casas no meio do sertão. Sempraça, sem rua, sem luz, mas com umapequena igreja. Perguntando de porta emporta, encontrei a casa da sertaneja dos3 maridos. Uma casa de pau-a-pique,com vários meninos seminus brincandona porta. Um deles entrou para cha-mar a mãe. Ela apareceu na porta decara fechada, mas me estendeu a mão.

5Umberto Eco.A estrutura ausente:introdução àpesquisa semiológica. 7 ed. São Paulo: Perspectiva,2003, p.15.

6Para fundamentar o uso dos termossigno/símbolo cf. Lúcia Santaella. Semióticaaplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning,2004.

Uma mão rude, de trabalhadora de en-xada. Estava de cabelos molhados e ves-tido branco. Achei-a bonita a seu modo eacima de tudo forte. De uma força intimi-dante. Comecei a balbuciar o motivo daminha visita: “Estava vindo do Rio de Ja-neiro, onde li uma matéria sobre sua his-tória e gostaria de conversar...” A mulherme interrompe cortante: “Não falo maisdesse assunto. Isso já me trouxe proble-mas demais. Meu primeiro marido nãogosta, minhas filhas reclamam comigo...”Agradeci, me desculpei, dei meia volta eentrei no carro alugado. Mas como já es-tava lá... Dispensei o carro.Fiquei 10 dias em Morada Nova tentandocontactar alguém do círculo de amizadesda sertaneja que pudesse servir de ponte.Inútil. Já estava com a volta marcadaquando bati à sua porta de novo. Dessavez ela me recebeu espantada: “Você fi-cou 10 dias só esperando pra falar co-migo? Entra”. E foi assim que conhecium pouco e ri muito com a mulher quenos serviu de inspiração para Darlene deLima Linhares, a protagonista de nossofilme.7

Estes são os dados informacionais, nofilme eles estão reorganizados de acordo coma proposta ficcional da narrativa e de acordocom o formato audiovisual pelo qual será re-alizado o contar da história.

Contar uma história utilizando como ins-trumento a linguagem audiovisual, pressu-põe uma atenção especial para com seus ele-mentos constitutivos

(...) o espectador não vai ao cinema ape-nas para ver histórias e sim para ver his-

7Elena Soaréz.Os primeiros passos do roteiro.(www2.uol.com.br/eutueles/)

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tóriasbem contadas. O trabalho do rotei-rista écontar histórias e nãofazerhistó-rias.8

Ora, por isto se pode perceber que a lin-guagem audiovisual, pela qual, como es-pectadores, vemos/lemos a história na tela,exige do seu criador um exercício articuladodas linguagens (verbais e não verbais), con-siderando a complexidade de signos e có-digos que devem ser compartilhados para“bem” contar a história!

Em se tratando de cinema, “bem con-tada” não significa apenas uma históriabem narrada, habilmente estruturada etramada. A história tem de ser mos-trada em cenas esmeradas, com papéisbem concebidos (e bem interpretados)que inspirem o cenógrafo, o fotógrafo,o compositor, o montador e todos os de-mais colaboradores a acrescentarem seustalentos à forma final com que as imagense palavras do roteirista aparecem peranteo espectador.9

Assim, quando falamos de formato audi-ovisual, não podemos deixar de pressuportodo o conjunto de linguagens e respectivosoperadores que se lançam à tarefa de cons-truir um artefato artístico a que chamamosde narrativa audiovisual. E, vinculado a estetrabalho coletivo, está toda uma gama de lei-turas, experiências e olhares criativos que in-crementam e alimentam o caráter do “bemcontar” uma história no formato audiovisual.

Diante disto e reconsiderando que a par-ticipação de múltiplos enunciadores – cada

8David Howard e Edward Mabley.Teoria e prá-tica do roteiro. (trad. Beth Vieira) São Paulo: Globo,1996, p.21.

9Op. Cit. p. 21-2.

um na sua particularidade – obviamente pro-picia e facilita também múltiplas leituras.Deixemos claro então, dentre as várias pos-sibilidades interpretativas, a mensagem quepretendemos identificar no filmeEu, tu, eles:a estrutura familiar assentada nas relaçõesbens-trabalho em que se podem reconheceras representações de características feudaisna apresentação de valores referentes a pro-priedade, proteção e trabalho.

2 A instituição familiar: eu, tu,eles

Comecemos então a leitura pelo título! PorqueEu, tu, eles? E, afinal, quem é o “eu”,quem é o “tu” e quem é o “eles”?

Passemos à desconstrução, ao reconheci-mento das combinações entre signos (ver-bais e não-verbais) e entre códigos (verbaise não-verbais) para tentar entender como onovo código – o audiovisual – delimitou, pe-las possibilidades combinatórias, o sentidode uma das mensagens que podemos depre-ender desta narrativa.

Segundo Eco10, a escolha de um códigopara transmitir uma mensagem que deve darinformações, torna este processo mais fácil,visto que as “combinações são regidas porum sistema de possibilidades prefixadas”.

Observemos por exemplo, quanto à esco-lha dos pronomes pessoais que compõem otítulo do filme. No âmbito da estrutura docódigo verbal, pronome é aquilo que está nolugar no nome; isto já nos conduz a um certotom genérico dos personagens do filme: nãosão indivíduos, não se trata de uma histó-ria individual, ou melhor, é uma história in-dividual mas que se pretende representação

10Op. Cit.,p. 15.

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de tantas outras semelhantes, pelos menoscom relação a alguns aspectos. A Darlene,o Osias, o Zezinho, o Ciro e os filhos deDarlene representam um determinado tipo deorganização grupal, um tipo específico deconstituição familiar que relê e reposicionaos aspectos que levam as pessoas, diante daluta pela sobrevivência física e moral, a sejuntarem em grupo.

E é esse movimento humano natural, quefaz do homem um ser gregário, em que seabrem as possibilidades narrativas, as com-binatórias de sentidos que a vida humanavai traçando ao longo de sua existência, cri-ando valores, alimentando outros e recri-ando muitos. Assim, o homem, aos construirnovos grupos, pela desconstrução inevitávelde outros, num processo natural, vai costu-rando significações para a trajetória narra-tiva que o individualiza e o torna coletivo aum tempo. Ampliam-se histórias individuaisalimentando-se de um percurso que parte deuma linha, mas que se transforma e se en-riquece ao cruzar ou trás linhas individuais,estabelecendo um percurso maior: a narra-tiva que é do homem.

Com relação ao filme, por outro lado, em-bora pronomes pessoais nos remetam a essavisão genérica, aparentemente sem individu-alidade, temos também o fato de serem usa-dos no singular (eu, tu) e no plural (eles),fazendo-nos pensar que na relação plural, narepresentação do coletivo, também temos arepresentação do indivíduo. O que sente epensa o indivíduo e como, a partir daí, seposiciona no grupo de acordo com valorespessoais e valores grupais – tanto uns quantooutros, por meio das relações que se estabe-lecem, sofrem alterações, acréscimos e atécortes.

A comunicação é estabelecida pelo inter-

câmbio simbólico que garante a estruturagrupal, ainda que, a maior parte das vezes,esse intercâmbio se manifeste tão sorrateiroe discreto que mal pareça existir. Neste caso,é inevitável não pensar no papel desempe-nhado por Darlene numa relaçãosui generisque se estabeleceu naquele grupo. Uma mu-lher que vive maritalmente com três homense cujo sentido para o casamento permanece,na essência, o mesmo sob o ponto de vistatradicional: casamento é para a vida toda.

Sabiamente, Darlene agrega a esse valorsimbólico do casamento, a idéia de que, ao seconstatar a falta de algo na relação marido-mulher, não é necessário abandoná-la (afi-nal, casamento é para a vida toda!). Torna-seentão plausível que se traga para a união oelemento que falta! Assim, com malícia ejeito, Darlene vai agregando à proteção ma-terial que Osias lhe dá o carinho e a ternurade Zezinho, bem como a paixão de Ciro.

2.1 Personagens – arquiteturasimbólica de relações

Ao verificar a trajetória da personagem prin-cipal, Darlene, notam-se traços comuns àsvidas de outras mulheres cuja realidade seassemelha à daquela mulher. Mãe solteira,com o sonho, logo desmanchado, de vir acasar-se e a constituir uma família nos pa-drões ocidentais (marido, esposa e filhos le-gítimos). No entanto, como esse percursoinicia já conturbado, pois Darlene vê-se grá-vida e solteira, o desenrolar é previsível: osuposto futuro marido não aparece na igrejapara o casamento. A partir daí, começa o cal-vário para Darlene e dilui-se o que restava dotímido sonho inicial.

A linguagem audiovisual emoldura estereinício da trajetória de Darlene a partir de

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enquadramentos de cena, iluminação e tri-lha sonora que espelham a solidão e desola-mento daquela mulher completamente só nomundo.

Darlene está vestida de noiva, ou melhor,ela usa apenas uma grinalda e um véu – am-bos parecem ter sido tirados de um baú derecordações, têm uma aparência amarelada eamarrotada – elementos simbólicos que re-presentam o matrimônio como uma uniãoconvencional, de acordo com os padrões so-ciais. No entanto, o ar desgastado do véue da grinalda enfraquecem o poder da con-venção. O vestido é quase um trapo, de umbranco amarelado, diríamos até desbotado, aque falta o viço de uma noiva que já ostentauma evidente gravidez!

A postura do próprio personagem é decansaço: físico, com a mão nas costas (naposição típica de uma grávida no final dotempo) e moral, numa expressão de desgaste,de desencanto de quem está no final da linha.As rugas da roupa e da expressão cansada deDarlene misturam-se e apresentam-se na telaemolduradas por uma fotografia sépia quecaracteriza muitas outras tomadas do filme.A fotografia da cena é de um tom amarelado,um tom pastel semelhante ao daqueles ob-jetos guardados e esquecidos há muito numcômodo da casa determinado para despejos.Aspecto que reitera a sensação de abandonoe solidão de Darlene.

Mas o que particulariza esta maneira decontar a história é que o uso desse recurso vi-sual não imprime exatamente a tristeza óbviada situação vivida pelo personagem, o que seperpetua é uma sensação de melancolia quesai do interior do personagem e invade o es-paço e tempo em que se movimenta. A mu-dança deste tom de fotografia do filme vai

marcar também outras mudanças na vida deDarlene.

Enfim, depois de muito esperar, ela re-solve ir embora. A câmera focaliza então oespaço externo de dentro da igreja cuja portaemoldura a cena: vêem-se Darlene partindo,como que arrastada por um vento seco e po-eira e, ao fundo, desenham-se duas cruzesno que seria o átrio da igreja. Esta tomadaque aponta para as cruzes, remete-nos a umaleitura bastante sugestiva: se no calvário ha-via três cruzes (a de Cristo e a dos dois la-drões) onde está a terceira? Julgamos queparte simbolicamente com Darlene que cru-zara a cena. Afinal, o calvário dela estava sócomeçando!

A partir deste momento, cada vez que al-guma mudança significativa acontece na tra-jetória de Darlene (tentativa de recomeço aovoltar para casa da mãe; casamento comOsias; entrega do primeiro filho ao pai; o en-volvimento com Zezinho; o emprego no ca-navial; o envolvimento com Ciro) aparecemlongas estradas secas, áridas, reafirmandoque o caminho dela nunca será fácil, mas terásempre algum consolo, pois a estradas apre-sentam o infinito, nunca um fim.

Nesta trajetória de “caminhos” a percor-rer na vida, representados/simbolizados porcaminhos concretos, destacamos por exem-plo, um pequeno trecho: o trajeto que Dar-lene faz, diariamente, do nascimento de seuprimeiro filho, ainda morando na casa de suamãe, até deparar-se com Osias, cuja propri-edade ela atravessa todos os dias. Quandoestá para receber a proposta de casamentoque Osias lhe fará, um dia, ao passar pelasterras deste, seu caminho habitual, Darlene ésurpreendida por um monte de gravetos quea obrigam a desviar-se da trajetória costu-meira.

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Aquele obstáculo representa, no nosso en-tender, um desvio na vida de Darlene quejá vinha sendo observada por Osias. Depoisdesse acontecimento, aparentemente tão ba-nal, é que Osias se aproxima de Darlene paralhe propor casamento. Aqueles gravetos se-rão usados para construir paredes de pau apique, elemento que merece uma interpreta-ção mais cuidadosa neste momento do filme,afinal Darlene está prestes a fazer parte dacasa de Osias como esposa, como força detrabalho e, para tanto, receberá em troca aproteção de um teto, ela e o filho. Daquelemomento em diante, ela passa a fazer parteda propriedade, dos bens de Osias. Ele “ad-quire” uma esposa – esta idéia de posse, debens adquiridos fica muito clara nas pala-vras de Osias ao propor casamento a Dar-lene. O pedido de casamento não tem nadade romântico ou sedutor nos padrões amo-rosos, trata-se mais de um negócio, por quenão dizer de “compra e venda”. Osias argu-menta, observando a idade de Darlene, o fatode ser mãe solteira e de não ter para onde irnem como criar o filho e, por mais repug-nante que possa parecer, finaliza dizendo queoutra oportunidade como aquela dificilmenteela encontrará!

E assim ficam estabelecidos os papéis: ele,o proprietário, ela, a força de trabalho. Te-mos então a retomada dos pronomes do tí-tulo do filme: “eu” – Osias, dono e senhorda terra e agora da mulher; “tu” – Darlene,vassala que garante o sustento pelo trabalhobraçal e “serve” o seu senhor, ganhando emtroca a proteção de um teto. Está estabele-cida a relação feudal.

A esta instituição – o casamento – faltamà esposa o carinho, a ternura e a paixão. Esteespaço será preenchido pelos outros dois ma-ridos, compondo-se assim uma família de

fragmentos que se unem na luta pela sobrevi-vência. Não se trata apenas da sobrevivênciafísica, mas, sobretudo, da construção de umsentido sutil, íntimo e quase nada evidente,que sustente aqueles “fiapos” de gente numaterra árida, numa vida igualmente árida cujotom de fotografia envelhecida pelo desgastedo tempo presentifica na tela uma sensaçãode quase-desânimo em manter-se vivo.

O surgimento de filhos fora do casamentoe a chegada dos outros dois maridos são fa-tos assimilados por Osias que aceita tudo emnome da manutenção do poder. Mas estaaceitação deve-se, sobretudo ao papel pre-ponderante e sábio da esposa Darlene – o“tu” que é “com quem se estabelece o diá-logo”. Entre Darlene e Osias o diálogo quese estabelece é mudo, alicerçado em pactosdissimulados e, ao mesmo tempo, marcadospor uma espécie de conivência. Ele tomatudo como propriedade sua, pois todos tra-balham para ele. Osias passa a história todaouvindo um rádio que transmite ondas entre-cortadas, mantendo uma ligação imagináriacom o resto do mundo, mas, na realidade, oque lhe interessa é o seu mundo. Tanto assimé que, volta e meia, usa seu bordão para rea-firmar quem manda ali: “a casa é minha!” Oque reitera a estrutura feudal daquele grupo,daquela família.

O final do filme surpreende: quando todospensam que Osias, humilhado pelo fato dosfilhos de Darlene não serem seus, desaparececom as crianças. Volta em seguida com todosregistrados em cartório no seu nome, confir-mando quea casa é dele!

3 Considerações finais

Muito poderia ainda ser analisado com rela-ção à nossa proposta de leitura do filmeEu,

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tu, eles.Mas, fica aqui a sugestão e, sobre-tudo, o chamar atenção para futuras reflexõesacerca das possibilidades combinatórias designos e códigos na construção do sentidodas narrativas audiovisuais. Essas possibi-lidades exigem um leitor que se conscien-tize do seu papel de operador de linguagens,afinal, estamos diante de códigos peculiares,que demandam leituras igualmente peculia-res.

O código televisual, que se vale, na sua es-trutura, da combinação de e entre outros có-digos, torna-se mais complexo, em determi-nados aspectos, como objeto de análise. Nocaso da leitura de uma produção cinemato-gráfica, estamos diante de uma realização ar-tística, logo, a urdidura de sentidos ali elabo-rada pressupõe um leitor/receptor mais cui-dadoso:

(...) o artista deixou de ser um gênio ins-pirador para se transformar em um ope-rador de linguagem; isto é, um técnicocapaz de operar os materiais e procedi-mentos de um código-base que será tãodiligentemente trabalhado quanto maiorfor o domínio das características de ou-tros sistemas de linguagem, porque istopermite possibilidades de transformaçãoe expressão para aquele código-base.11

Neste sentido, não podemos deixar de en-fatizar o fato de que os operadores de lin-guagens de uma narrativa audiovisual – osemissores – perfazem o seu caminho produ-zindo e, inevitavelmente, lendo para chegarà concepção discursiva final cujos sentidosse completarão posteriormente pelos espec-tadores – os receptores.

11Lucrecia D’Aléssio Ferrara.A estratégia dos sig-nos. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 55.

Assim, o diretor, do filmeEu, tu, eles,Andrucha Waddington, pode ser consideradoum operador de linguagens consciente de seupapel pelo cuidado, sutileza e poeticidade noarranjo discursivo concebido para contar ahistória da heroína Darlene.

4 Referências

ECO, Umberto. A estrutura au-sente:introdução à pesquisa semio-lógica. 7 ed. São Paulo: Perspectiva,2003.

FERRARA, Lucrecia D’Aléssio.A estraté-gia dos signos. 2 ed. São Paulo: Pers-pectiva, 1986, p. 55.

GUIMARÃES, Fernando. A poesia daPresença e o aparecimento do Neo-realismo.Vila da Maia: Editorial Inova,1969.

HOWARD, D. e MABLEY, E.Teoria e prá-tica do roteiro. (trad. Beth Vieira) SãoPaulo: Globo, 1996.

SANTAELLA, Lúcia. Semiótica aplicada.São Paulo: Pioneira Thomson Lear-ning, 2004.

TODOROV,Tzvetan. Teorias do Símbolo.Lisboa: Edições 70 (Signos), 1979.

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