MOURO : Revista Marxista

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'Mouro' é a nova revista teórica do Núcleo de Estudos d'O Capital. Ela foi concebida para ser uma contribuição para o estudo e análise da realidade contemporânea sob as várias óticas pertinentes ao Marxismo e também da trajetória do Socialismo.

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JuventudeA construo histrica da juventude e a ascenso da juvenilidadeAgnaldo dos Santos

Os velhos em 68Revista Marxista - Ncleo de Estudos dO Capital Ano 1 n1 Julhol de 2009 Lincoln Secco

EntrevistaGerao 69Mau Garotos Podres

Livrosrecomendados

EnsaioDois olhares sobre a AmazniaFrancisco Del Moral Irineu Barreto

ResenhaCaio e CaioLidiane Soares Rodrigues Eduardo Belandi

MemriaFlvio Abramo

PoesiaMaioAna Lcia Rebolledo

SUMRIO Editorial Pg 5

A construo histrica da juventude e a ascenso da juvenilidade Agnaldo dos Santos pg 7 OS VELHOS em 68 Lincoln Secco pg 33

Entrevista: Gerao 69 pg 43 pg 67

Mau da Banda de Punk Rock Garotos Podres Livros

Ensaios: dois olhares sobre a Amaznia 1. Transtorno Obsessivo do Capital na exuberante Volta Grande do Xingu: Amaznia, beira de rios e proximidades. Francisco Del Moral pg 73 2. Amaznia. Irineu Barroso pg 97

Resenhas: Caio Prado 1. A dinmica de um pensamento crtico: Caio Prado Jr. Lidiane Soares Rodrigues 2. pg 123

Caio Prado Jnior: o sentido da revoluo; EduardoBelandi pg 131

Memria:

100 anos de Flvio Abramo Flvio fala sobre o pai em entrevista 1992. pg 139 Poesia Ana Lcia Rebolledo pg 147

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Conselho editorial Lincoln Secco, Agnaldo dos Santos, Jos Rodrigues Mao Junior, Luis Eduardo Simes e Souza Redao Ciro Seiji, Lgia Yamasato e Marisa Yamashiro Ilustraes Ciro Seiji Fotos Francisco Del Moral

Revista MouroCorrespondncia: [email protected] Revista digital disponvel em: WWW.mouro.com.br

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'Mouro' a nova revista terica do Ncleo de Estudos d'O Capital. Ela foi concebida para ser uma contribuio para o estudo e anlise da realidade contempornea sob as vrias ticas pertinentes ao Marxismo e tambm da trajetria do Socialismo. O Ncleo de Estudos d'O Capital foi fundado em 10 agosto de 1992 com o objetivo de reunir estudiosos do Marxismo no mbito da esquerda operria. Fiel ao esprito do Manifesto Comunista, o grupo considera que os marxistas nunca constituem um partido separado da classe trabalhadora, ao contrrio, devem produzir reflexes que sirvam de apoio prtica poltica socialista. Este primeiro nmero tem como dossi o ano de 1968, que foi caracterizado por uma importante ruptura na histria contempornea. Todavia lanamos uma abordagem pouco explorada nos artigos e documentos sobre aquele evento, a saber: as opinies contraditrias que foram externadas na poca no s por conservadores, mas tambm por militantes comunistas e operrios que defendiam uma idia de revoluo baseada na classe trabalhadora e no apenas numa juventude temporariamente deslocada de seu efetivo lugar da sociedade burguesa.

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Debate

A construo histrica da juventude e a ascenso 1 da juvenilidadeAgnaldo dos Santos2Introduzindo o Tema

Nesse aniversrio de quatro dcadas do chamado Maio de 1968, quando jovens estudantes franceses promoveram movimentos de contestao sociedade de consumo ocidental (com seus equivalentes na ento denominada Cortina de Ferro), torna-se bastante pertinente refletir sobre essa categoria social to festejada por amplos segmentos da sociedade, do Estado at corporaes empresariais, que classificamos genericamente de Juventude. Podemos, numa reflexo desse tipo, verificar at que ponto ela possui1 Esse texto baseado em reflexes realizadas na dissertao de mestrado do autor defendida na FFLCH-USP em 2001 2 Doutor em sociologia pela USP e membro do Ncleo de Estudos d'O Capital (NEC PT/SP).

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efetivamente componentes libertrios ou, ao contrrio, traz consigo grilhes implcitos e extremamente sutis para cidados de todas as faixas etrias, mas principalmente para os prprios jovens. Quando falamos em juventude, muitas vezes nos esquecemos que esse conceito foi construdo ao longo de alguns sculos, portanto nem sempre existiu aquilo que conhecemos hoje por jovem. Devemos notar que a idia de gerao, ou de identidade etria especfica, uma criao da modernidade, tal qual nos sugeriu Aris (1978). O autor demonstrou como a descoberta da infncia e a valorizao da adolescncia ocorreram em pocas relativamente recentes, nos ltimos dois ou trs sculos aproximadamente. Quando vemos toda a indstria de consumo voltada para a criana (roupas, brinquedos, programas televisivos etc) jamais pensaramos que pudesse ter existido um mundo que comparava uma criana a um animalzinho. Tal comparao ocorria pois os bitos infantis eram muito altos, e as crianas eram consideras engraadinhas, pitorescas, tal qual os gatos e cachorros, que divertiam os adultos. No se pensava, como normalmente acreditamos hoje, que a criana j contivesse a personalidade de um homem (...). O sentimento de que se faziam crianas para conservar apenas algumas era e durante muito tempo permaneceu muito forte (pp. 56-57). Do mesmo modo que as sociedades tradicionais europias consideravam crianas apenas aqueles seres que ainda dependiam do colo dos pais, sendo posteriormente inseridos no cotidiano comunitrio e social, o adolescente e o jovem no estavam apartados do mundo adulto, pelo contrrio. Conviviam com os mais velhos, aprendiam o que deveria ser aprendido no dia-a-dia, no existia portanto a possibilidade de uma cultura jovem, uma classe por idade, desenvolver-se no Ancien Rgime. Por outro lado, esse mundo no era rigorosamente mensurvel e computvel, no sentido de que no existia uma preocupao muito grande com a preciso das 8

datas de nascimento, pelo menos entre a plebe. A expectativa de vida era muito curta para nossos padres, a passagem da infncia maturidade era bem rpida, e chegava-se muito cedo velhice. No h dvida de que a Antigidade e a Idade Mdia no Ocidente valorizavam a juventude, antes de tudo porque valorizavam o guerreiro belo e viril. Porm, ser o sculo XX que far uma distino positiva da adolescncia, o que de fato expandir o senso de juventude:A conscincia da juventude tornou-se um fenmeno geral e banal aps a guerra de 1914, em que os combatentes da frente de batalha se opuseram em massa s velhas geraes da retaguarda. A conscincia da juventude comeou como um sentimento comum dos ex-combatentes, e esse sentimento podia ser encontrado em todos os pases beligerantes (...). Da em diante, a adolescncia se expandir, empurrando a infncia para trs e a maturidade para a frente (Aris, 1978, p.47).

Ele distinguiu portanto o processo de aprendizado no Antigo Regime (momento na qual a convivncia de adultos e crianas criava as condies para a transmisso cultural) do processo de socializao moderna, que constri a educao via instituio escolar, apartando a criana do mundo "adulto", particularmente do mundo do trabalho. Isso parece correto quando falamos da criana e do jovem das classes mdias urbanas e da aristocracia (strictu sensu, mas tambm burguesa) que foram criados na nascente sociedade industrial; o mesmo no se pode dizer das crianas e adolescentes que engrossavam o contingente do proletariado fabril na Europa (e sabemos, tambm no Brasil). Aris faz notar que o processo escolar medieval no era determinado pela diviso etria, a escola (...) acolhia da mesma forma e indiferentemente as crianas, os 9

jovens e os adultos, precoces ou atrasados, ao p das ctedras magisteriais (idem, p. 187). Contudo, com o surgimento da sociedade capitalista, aquela convivncia entre jovens e adultos, entre plebeus e nobres nos antigos colgios foi substituda pela introduo de uma frrea disciplina3 e de uma diviso mais precisa por idade. A partir de agora, passava a existir dois tipos de escola, uma primria para o povo e outra mais prolongada para a nova classe social em expanso: a burguesia. Ao contrrio da nobreza, que em alguns casos at tolerava o analfabetismo entre seus pares, o tpico burgus prezava pela distino formal e real das classes via processo educacional, o que acarretou um aumento nos anos de educao, que fez com que ela passasse a coincidir com os anos da infncia e adolescncia. Fica mais claro o trao histrico e artificial do senso de classe etria quando lembramos o trabalho infantil no perodo da Revoluo Industrial, que certamente acelerava a introduo da criana e do jovem no mundo adulto, tal qual na Idade Mdia. Existe portanto um notvel sincronismo entre a classe de idade moderna e a classe social: ambas nasceram ao mesmo tempo, no fim do sculo XVIII, e no mesmo meio a burguesia (idem, p. 194). Quando falamos ento de criana e de jovem, no podemos perder de vista esse recorte de classe social. A historiadora francesa Michelle Perrot, ao tratar da juventude operria europia do sculo XIX, tambm mostra como a industrializao desencadeara uma crise de aprendizagem entre os jovens, includos desde muito cedo no mercado de trabalho, e como esta pessoa jovem tinha poucas alternativas naquela sociedade.

3 Confira tambm Michel Foucault, 1997, pp. 154-161.

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[A sociedade industrial] est s interessada em indivduos, ou pelo menos em famlias. A famlia , mais que nunca, a instncia de gesto e de deciso no que concerne aos jovens. Ora, ela tem sua lgica prpria que no necessariamente a dos membros que a compem; uma lgica mais holista que individualista, que privilegia o todo sobre as partes e se aplica especialmente s mulheres e aos jovens, lgica que a classe operria, em via de constituio, ir retomar. Sua identidade no se funda nem sobre o gnero, nem sobre a categoria de idade; ao contrrio, ela pretende subsumi-los [grifo meu]. A famlia e a classe operria tem necessidade de seus jovens, mas lhes pede trabalho, obedincia e, em ltima instncia, silncio. Eles se exprimem pouco, e, quando o fazem, sua voz reprimida (Perrot, 1996: 84).

Por outro lado, (...) o sculo XIX tem medo de sua juventude, e particularmente de sua juventude operria, da qual se teme a vagabundagem, a libertinagem e o esprito contestador (idem, p. 85). Devemos a esta autora tambm a definio de uma "juventude da greve", que ocorrera na Frana em meados do sculo XIX at o seu findar, com a constituio da moderna classe operria francesa. Seus estudos sobre os movimentos grevistas fizeram notar que no s existia uma participao considervel de jovens trabalhadores nesses eventos, como a prpria forma adotada pelas greves (irreverncia, disposio inesgotvel para o confronto etc) fazia referncia a um novo modus vivendi entre o emergente proletariado:

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Philip Aris

Michele Perrot

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Michel Foucalt

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A greve tem, na maioria das vezes, uma dupla funo : ela meio de presso e modo de expresso. No sculo XX, sua caracterstica instrumental tem por vezes feito refluir sua densidade expressiva. No sculo XIX, ao contrrio, isso que era o principal. A greve jovem. Os desejos e os planos, a representaes e os fantasmas dos grupos em luta se confrontam sem mediao. (Perrot, 1984: 09, traduo prpria).

Urge, ento, refletir por que esse perfil do movimento operrio descrito acima, decerto com explcito entusiasmo (mas essencialmente percebido por seus atores como uma "qualidade") vai perder cada vez mais espao para uma concepo formalizada, burocrtica, de organizao sindical4. O movimento operrio europeu do sculo XIX continha, em seu seio, vrios lderes e militantes j a partir dos quinze anos de idade. As antigas oficinas propiciavam aos jovens aprendizes apenas revoltas individuais, tumultos e fugas da tutela rgida do mestre5; no caso da fbrica, o maior nmero4 preciso, contudo, fazer justia histria do sindicalismo metalrgico do ABC paulista, que soube, nos momentos de enfrentamento com o aparato repressor da ditadura militar, lanar mo de expedientes muito parecidos com aqueles usados pelos franceses 100 anos antes. Ktia Paranhos demonstra em sua pesquisa como o sindicalismo metalrgico de So Bernardo estabelecia ema nova relao com os trabalhadores j desde meados da dcada de 1970, criando a recriando novas linguagens e condutas mais politizadas no cotidiano operrio. Ao folhearmos as pginas do jornal Tribuna Metalrgica, observamos no apenas novas falas e imagens polticas, econmicas e sociais dos lugares da luta. H tambm um peso significativo para as imagens culturais, aos planos de formao sindical e poltica, aos projetos de renovao da imprensa e s atividades de lazer. Assim, outros enunciados imagticos vm juntar-se animao operria (Paranhos, 1999, p. 260). 5 Sobre a caracterstica dessas revoltas individualizadas, ver DARNTON, Robert. O Grande Massacre dos Gatos e outros episdios da histria cultural francesa. Rio de Janeiro, Graal, 2001.

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de pessoas nas mesmas condies sociais (e na mesma faixa etria) facilitava aes mais coletivas. Se no constituam um movimento social de tipo moderno, utilizavam este canal, e principalmente a greve, para expressarem o descontentamento com suas condies laborais e mesmo com sua condio subordinada na famlia operria.Os jovens esto presentes nesses movimentos [de massa], manifestando-se com ardor. Entre 1871 e 1890, 16% dos manifestantes detidos tm entre 15 e 19 anos e 6% dos lderes identificados pertencem a essa faixa de idade. Delineam-se figuras de jovens lderes, com a voz potente, o tom da recusa e s vezes o carisma que arrebata (Perrot, 1996: 112).

Contudo, em vrias ocasies esse contingente juvenil era pouco respeitado, sequer ouvido.Nas minas, a situao dos condutores ou carregadores de vagonetes mais desconfortvel, e seu papel incitador depende da estrutura familiar. (...) Reduzidos ao silncio na famlia, tambm o so nos sindicatos, que sempre estabeleceram clusulas restritivas a seu voto; em Seraing, preciso ter 21 anos para votar numa assemblia. Suas greves prprias, relativamente numerosas, so pouco levadas em conta pelos mais velhos, que julgam que eles no tm voz no assunto, que h um tempo para tudo (idem, p. 112).

Percebe-se que os jovens mais se manifestam do que se associam, que nos combates de rua tpicos da Europa oitocentista eram ardentes nas barricas mas no esqueciam dos prazeres da vida; estamos portanto longe do tpico militante 15

asceta bolchevique do sculo XX. Somente os grandes acontecimentos os mobilizavam (as jornadas de julho de 1848, a Comuna de Paris de 1871), e salvo casos raros, seu cotidiano era preenchido, alm do trabalho, por bailes e esportes hegemonicamente o boxe e a luta de rua, ao contrrio da esgrima aristocrata. Como muitos desses jovens rebelavam-se no s contra os patres, mas tambm contra a tutela paterna, consideravam os embates como uma possibilidade de mudar de estilo de vida, de serem mais livres, o que pode explicar sua averso ao institucional.A sociabilidade informal, predominante na primeira metade do sculo, lhes convm mais que as organizaes formais e hierarquizadas. Por considerarem os jovens como menores e subordinados, na maioria das vezes, sindicatos e partidos no favoreceram muito sua integrao [grifo meu]. Da sua atrao, no incio do sculo, pelos libertrios que os acolhem melhor (Perrot, idem, p. 117).

Vemos nesse painel que a relao entre o movimento sindical e os jovens operrios era, desde a gnese das lutas operrias mais organizadas, no mnimo problemtica6. No que eles no estivessem presentes, pelo contrrio, muitas vezes eram a vanguarda das greves e combates de rua. Mas parece que j naquele momento fins do sculo XIX, incio do sculo XX ocorria uma crescente conscincia de pertencimento a uma classe especfica, com comportamentos caractersticos e desejos comuns; j naquele momento o lazer e o consumo (e a sexualidade) disputavam com a poltica seu espao no meio de6 A valorizao do trabalho adulto trazia embutida a defesa que muitos sindicatos fizeram de uma remunerao menor para os mais jovens. Foi uma herana da hierarquia das corporaes e guildas, em que os jovens eram aprendizes.

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uma nascente juventude. No obstante, ser no sculo XX que testemunharemos as tentativas de construo no s de uma conscincia da juventude, mas particularmente da figura do jovem radical ou do jovem revolucionrio.

Juventude e Bolchevismo

Ainda que sejam interessantes as analogias que se fizeram ao longo das ltimas dcadas entre o bolchevismo e algumas religies, como o cristianismo, no tocante s idias de vanguarda e de misso (Portelli, 1984), no vamos nesse espao explorar tais caractersticas, sugeridas pela tima gramsciana. Importa aqui saber que a mstica do iderio comunista influenciou muitos jovens do fim do sculo XIX e incio do sculo XX; desta feita seria natural ento que os principais tericos dessa tendncia se manifestassem a respeito desses jovens. Lnin deixou vrios escritos em que discute a temtica da juventude e sua relao com o movimento comunista internacional no incio do sculo XX. Sua viso do jovem trabalhador era a mesma da percepo corrente no movimento operrio, inclusive em sua reivindicao histrica, a de que as crianas deveriam dedicar-se integralmente escola, e o jovem deveria ter uma jornada de trabalho limitada. Nos Materiais para a reviso do programa do Partido, escrito entre abril e maio de 1917, vemos que uma das bandeiras do Partido Operrio Social Democrata da Rssia era o ensino geral e politcnico (conhecimento da teoria e a prtica de todos os ramos principais da produo), gratuito e obrigatrio para todos as crianas de ambos os sexos at os 16 anos; estreita ligao do estudo com o trabalho social produtivo das crianas (Lnin, 1976, p. 53). Quanto aos jovens militantes do movimento estudantil, o lder bolchevique era 17

incisivo: s era realmente radical o revolucionrio que estivesse afinado com a vanguarda do movimento social, que para ele era o movimento operrio:

preciso que a Unio das Juventudes Comunistas una sua formao, sua instruo e sua educao aos trabalhos dos operrios e camponeses, que no se feche em suas escolas nem se limite a ler livros e folhetos comunistas. Somente trabalhando com os operrios e os camponeses se pode chegar a ser um verdadeiro comunista (idem, p. 4, traduzido do espanhol).

Interessante notar que na concepo bolchevique, era necessrio subsumir todos os interesses particulares em prol da causa operria, inclusive em um ponto que tornou-se questo de honra para todos os movimentos de identidade juvenil no sculo XX, que era o servio militar obrigatrio. Mesmo reconhecendo a injustia no recrutamento militar, que os filhos de trabalhadores so sistematicamente humilhados nas casernas, que os jovens estudantes radicais eram recrutados como uma forma de substituir Voltaire por um sargento, e que os jovens aristocratas eram sempre agraciados, mesmo assim Lnin afirmava que a instruo militar era importante:A militarizao impregna hoje toda a vida social (...) Que faro contra isso as mulheres proletrias? Limitar- se a maldizer toda a guerra e todo militar, limitar-se a exigir o desarmamento? A mulheres de uma classe oprimida verdadeiramente revolucionria jamais se resignaro com to desonroso papel. Diro a seus filhos logo sers adulto. Te

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daro um fuzil. Tome-o e aprenda bem a arte militar. Esta cincia indispensvel para os proletrios; no para disparar contra teus irmos (...) mas sim para lutar contra a burguesia de teu prprio pas (...) [idem, p. 50, traduo do espanhol].

Tais palavras ganham ainda mais significado quando voltamos nossos olhos para o papel da carreira militar na ascenso social de jovens de classes sociais menos favorecidas ao longo do sculo passado. S para ficar em dois casos notrios, tanto Lus Carlos Prestes no Brasil (principal expoente do Movimento Tenentista) quanto o capito Maia da Revoluo dos Cravos em Portugal representavam jovens oficiais com tais origens, portanto seria factvel buscar relaes entre ascenso social via caserna e participao poltica, ao menos em conjuntura polticas favorveis a tais manifestaes. Sociedades onde a ascenso social no ocorre de forma estrutural (ou seja, onde o crescimento econmico j no abre oportunidades de mobilidade), mas cclica (ocorrendo mobilidade por meio de intensa e perversa competitividade) que oferecem esse tipo de carreira mais segura, somando-se ao fato que o status dessa opo j no fica restrito exclusivamente aos filhos de oficiais, abrindo espao aos demais estratos sociais. Destarte, fica fcil hoje falarmos nos excessos do tipo de viso descrita na citao de Lnin acima, que paradoxalmente exaltava as qualidades da juventude mas que subordinava suas reivindicaes causa do socialismo. Devemos ter em mente, no entanto, que este arqutipo do jovem revolucionrio, que seria o modelo de um novo homem, contribuiu muito para a auto-identidade da juventude no sculo XX. Eric Hobsbawm percebeu isso quando comenta a ao dos comunistas nos vrios cantos do planeta durante a Era dos 19

Extremos. Refletindo sobre os anos logo aps a Revoluo de Outubro de 1917, o autor destaca:

Para essa gerao, sobretudo os que, embora jovens, viveram os anos de levante, a revoluo foi o acontecimento de suas vidas. (...) Tomemos o caso de dois jovens alemes temporariamente ligados como amantes, que foram mobilizados pela revoluo sovitica da Baviera de 1919; Olga Benrio, filha de um prspero advogado de Munique, e Otto Braun, um professor primrio. Ela iria ver-se organizando a revoluo no hemisfrio ocidental, ligada e afinal casada com Lus Carlos Prestes; (...) o levante fracassou e Olga foi entregue pelo governo brasileiro Alemanha de Hitler (...). Enquanto isso, Otto, bem mais sucedido, partiu para a revoluo no Oriente, (...) o nico no chins a participar da famosa Longa Marcha dos comunistas chineses (...). Quando, a no ser na primeira metade do sculo XX, poderiam duas vidas interligadas ter tomado esses rumos? (Hobsbawm,1996, pp. 79-80).

Indubitavelmente, a jovem repblica sovitica da Rssia, os jovens soldados da revoluo, e a esperana no surgimento de um novo homem, em um momento que o capitalismo parecia cair de maduro (dcada de 1930), tonificavam o paradigma da juventude revolucionria.

Teenagers by America

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Mas aqui estamos falando ainda de minorias, muito visveis, mas minorias. possvel falar realmente de uma emergncia da juventude (como fenmeno de massa) a partir dos anos 50, incio da poca de ouro do capitalismo europeu e norte-americano, alm de ser um perodo de ascenso de governos com recortes desenvolvimentistas em pases da periferia, como o Brasil. Ser o momento de expanso, para o Ocidente, do american way of life, incluindo o seu comportamento social. Assim, de um mundo que no conhecera a adolescncia da infncia saltou-se para a maturidade com as duas guerras mundiais formava-se a partir de ento o universo dos teenagers, com linguagem prpria, um padro de consumo e grupos de convivncia contnua, disputando cada vez mais com os espaos tradicionais da famlia e da igreja. O consumo era o elemento de coeso etria, pois vestia-se as mesmas roupas, utilizava-se os carros e motocicletas radicais e ouvia-se a mesma msica: o rocknroll.Tratava-se da primeira gerao de adolescentes americanos privilegiados, mas sobretudo da primeira gerao que apresentava uma coeso to acentuada, um autoreconhecimento enquanto comunidade especial com interesses comuns. A figura do adolescente que de tal modo emergia era associada sobretudo vida urbana e encontrava seu habitat na high school que parecia transformada num cosmo em si - , com os clubes, as atividades esportivas extracurriculares e lugares acessrios, como a drugstore, o automvel, o bar para jovens (Passerini, 1996: 354).

Essa nova construo histrica de juventude, que com as devidas alteraes sobreviver at os nossos dias, destaca os problemas que a mocidade desenvolve para o conjunto do 21

corpo social, pois so em geral apresentados como rebeldes sem causa, transgressores, excessivamente ldicos. A imprensa e as autoridades acabaram por eleger os lderes estereotipados dessa gerao (James Dean, Elvis Presley, logo aps os Beatles, os Rolling Stones), e os acontecimentos dos anos 1960 (Guerra do Vietn, luta pelos direitos civis norte-americanos, Maio de 68) apenas reforaram os contornos dessa grande comunidade juvenil. No caso brasileiro, foi paradigmtico o conflito entre os estudantes da Faculdade de Filosofia da USP e os estudantes da Universidade Mackenzie (onde existia um grupo denominado Comando de Caa aos Comunistas) em outubro de 1968, que mesmo representando uma pequena parcela da juventude brasileira (universitria), ganhou destaque como o smbolo do ativismo juvenil do perodo. J o movimento musical conhecido como Jovem Guarda buscou tupiniquinizar a outra vertente do perfil juvenil estereotipado a dos jovens despolitizados, mas extremamente preocupados com sua afetividade e com os prazeres da vida, por aqui chamada de i, i, i. De fato, no se tratava apenas de uma juventude, mas de vrias juventudes; o que no contrariava o fato de que todos esses grupos agora constituam um estrato consciente de sua condio sui generis. Os membros das classes mdias encontravam naquele momento condies de enviar seus filhos s universidades; os filhos dos operrios, embora raramente chegassem aos bancos acadmicos, comeavam tambm a desfrutar da prosperidade econmica:

Os operrios, sobretudo nos ltimos anos de juventude, antes que o casamento e as despesas domsticas dominassem o oramento, agora podiam gastar em luxo, e a industrializao da alta-costura e do comrcio da beleza a partir da dcada de 1960

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respondeu imediatamente (Hobsbawm, 1996, p. 301).

Devemos notar que esse perodo, que representou de fato uma revoluo cultural no sculo XX, apontou para dois fenmenos que nos interessam em particular a volatilizao da conscincia de classe operria e a percepo individualista da poltica. A ampliao do consumo entre as classes trabalhadoras nos pases europeus e na Amrica do Norte disponibilizava outras formas de lazer, que durante um bom tempo foi hegemonizado por instituies como, por exemplo, o Estado, o partido e o sindicato (os comcios, as partidas de futebol, os bailes). O espao pblico, local dos comcios, das festas, das refeies ao ar livre, comeava a perder a preferncia para o espao privado, com a popularizao do rdio, da televiso e do toca-discos. Nesse contexto, as novas geraes de militantes, surgidas nos anos 1960, divergiam muito daquela gerao de Olga Benrio:

O slogan de maio de 1968, Quando penso em revoluo quero fazer amor, teria intrigado no s Lnin, mas tambm Ruth Fischer, a jovem comunista vienense cuja defesa da promiscuidade sexual Lnin atacou. Mesmo para o neomarxista-leninista radical, consciente poltico, tpico das dcadas de 1960 e 1970, o agente do Comintern de [uma pea de] Bretch que, como caixeiro-viajante, fazia sexo com outras coisas em mente teria sido incompreensvel. (...) No se podia claramente separar fazer amor e fazer revoluo (Hobsbawm, 1996, p. 326).

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Um aspecto muito interessante dessa juventude de 1968, que gerou tanto jovens politicamente radicais quanto pacifistas (os hippies ), a semelhana com a juventude romntica do sculo XIX. Groppo (2000) fez notar que a fuga do consumismo, da agitao da cidade moderna e a preocupao com a integridade moral no eram novidades deste sculo: O Movimento Juvenil Alemo teria, j no ltimo quartel daquele sculo, apresentado duas caractersticas que o senso comum atribuiria aos jovens contemporneos, (...) o totalitarismo o projeto de uma sociedade exclusivamente juvenil e o romantismo a fuga para os campos, para o primitivo e para o comunitrio (p.102). Mesmo quando tratamos dos jovens que aventuraram-se nas guerrilhas de inspirao guevarista, chama a ateno algumas semelhanas com o idealismo romntico passado. Pois, se o Wandervogel (Pssaro Migrante, grupo smbolo da Juventude Alem) promovia marchas para os campos e aldeias da Alemanha, os revolucionrios latino-americanos tinham como smbolo a Sierra Maestra da Revoluo Cubana. Alm disso, um dos tericos do chamado foquismo e companheiro de Che Guevara, Rgis Debray, atribua maior importncia jovialidade do militante do que ao seu contedo classista.

O tom juvenil da propaganda foquista capaz de (...) derrubar a determinao classista que aflige o indivduo abnegado algo possvel atravs da vida na guerrilha, que faz com que os jovens burgueses e pequenosburgueses adquiram uma nova conscincia social, oposta sua classe de origem, a partir do momento em que (...) acontece a reunio de elementos jovens numa comunidade guerrilheira (Groppo, 2000, p. 268).

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No possvel comparar esses dois momentos distantes no tempo sem observar suas peculiaridades e suas diferenas. H uma distncia muito grande entre Werther, personagem de Goethe e um dos smbolos dessa juventude romntica, e James Dean, o jovem rebelde sem-causa . Mas parece claro que temos a uma espcie de tipo ideal do que ficou cristalizado como juventude moderna. Cabe agora problematiz-lo.

Juvenilidade e a Ditadura da Juventude

Como vimos, parte da produo sociolgica mais recente tm procurado apontar a insuficincia no s da padronizao da juventude como uma classe, como tambm da atribuio de uma carter marginal ou revolucionrio aos jovens contemporneos. De um modo geral, essa produo tem buscado afastar o estereotipo de passividade juvenil, ou seja, de uma juventude que apenas sofre a interveno de instituies sociais, e que teria, desta feita, uma postura mais propositiva um protagonismo juvenil, um setor (ou conjunto de setores) que desejaria dialogar e expr suas necessidades. Talvez o maior paradigma desse protagonismo juvenil seria, atualmente, o movimento Hip Hop, dos jovens pobres e negros das periferias das metrpoles. Estes jovens procurariam, atravs da msica rap e dos grafites desenhados pela cidade, denunciar a violncia e as injustias sociais sofridas nos bairros populares, e utilizariam portanto a esttica, a arte, como canal de comunicao social. Sem questionar a originalidade e as possveis contribuies dessas manifestaes juvenis, caberia perguntar se a autoconscincia jovem e sua condio social teriam a mesma pertinncia que aquela surgida j em fins do sculo XIX e desenvolvida ao longo do posterior. Sem igualmente cair 25

em anacronismos de qualquer espcie, necessrio recordar o que foi dito no incio a categoria juventude uma construo social e histrica , mas como tal est sujeita a sofrer alteraes e a interferncia da lgica mercantil, que sabemos desde Weber a que mais tende a colonizar as demais esferas da vida na modernidade capitalista. O antigo apresentado no mercado como algo in, original, logo jovial. Voltando os olhos para o socilogo alemo Karl Mannheim, vemos que o autor j percebera nos anos 1940 que transformaes sociais tendem a privilegiar o comportamento das novas geraes:

Condies estticas levam a atitudes de fidelidade a gerao mais nova tende a adaptar-se mais antiga, mesmo a ponto de fazerse parecer mais velha. Com o fortalecimento da dinmica social, entretanto, a gerao mais antiga se torna cada vez mais receptiva s influncias da mais nova (Mannheim, 1982, p.84)

Portanto, sugere que os fatores biolgicos naturais caractersticos da velhice poderiam ser invalidados por foras sociais, e que os dados biolgicos quase que podem ser transformados em seus opostos por essas foras sociais. Fazendo uma analogia entre classe e gerao, dir que do mesmo modo que as ideologias produzidas por uma vanguarda influenciam pessoas de classes sociais distintas, tambm certos impulsos particulares a uma gerao podem atrair membros de grupos etrios anteriores ou posteriores, se a tendncia da poca for favorvel. A juventude pode, portanto, se transformar num trao cultural de uma poca. Nesse sentido, possvel recorrer a Groppo (2000), que faz uma sugesto interessante para a compreenso da juventude 26

contempornea. O desenvolvimento de uma conscincia etria homognea teria, de fato, atingido seu pice nos anos 1960/70, com todos os tipos de rebeldia juvenil e de aparies espetaculares (como j havia indicado tambm Helena Abramo). Ocorre que essa rebeldia no teria emergido sem uma contribuio significativa da imprensa e, posteriormente, de toda mdia. A emergncia da juventude teria sido acompanhada por uma tentativa de controle institucional pelos adultos (como j citado, escolas, exrcito, juventudes nazifascistas, juventude comunista etc), uma vez que havia certo temor pela rebeldia e vadiagem juvenil. Por outro lado, houve paralelamente o florescimento de inmeros grupos autnomos, que reivindicavam sua independncia com relao sociedade e aos velhos. Desse choque de perspectivas que surgiria ento algo que o autor classifica de juvenilidade, um estilo de vida identificado com o consumo e o bem-estar.

(...) As instituies modernas de consumo absorveram e transformaram em seus os valores projetados mas esvaziados de rebeldia e de real autonomia pela Juventude autnoma e pela Cultura Juvenil Universal. Realiza-se na atual sociedade (...) aquilo que Aris apenas sugeria anos atrs, que todos querem prolongar a sua adolescncia7 (Groppo, op. cit., p. 286, grifos do autor).

7 Conferir a entrevista com o escritor ingls Nick Hornby, na Revista da Folha, 9/07/2000, pginas 22-23. Nossa cultura no quer mais adultos porque mais fcil fazer dinheiro com jovens. Alm disso, hoje no existe nenhuma razo para crescer se voc no quiser. No passado, crescer estava associado ao trabalho, a ter filhos etc. (...) O que ser adulto hoje, quando empregos, roupas, msica e todas essas coisas so para todos, jovens ou velhos?

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Uma conseqncia no prevista no processo de emergncia da conscincia juvenil que, tentando fugir das instituies criadas pela sociedade para control-los, os grupos juvenis acabariam eles prprios construindo outras instituies que terminariam por enclausur-los, nesse particular a esfera do consumo (idem, p. 53). Um exemplo bastante til a relao dos jovens com as drogas legais e ilegais. Sem entrar aqui no mrito da discusso sobre os problemas que envolvem o consumo das drogas ilegais, interessante notar como muito elevado o consumo de cigarros e bebidas entre a juventude. Com a inteno de romper barreiras e delimitar seu espao, os jovens elegeram alguns hbitos de consumo como sendo indicativos de sua liberdade ou de uma pretensa virilidade e jovialidade. Pesquisa promovida pela Unifesp entre a populao paulista acerca do uso de drogas psicotrpicas (Pesquisa Fapesp, nmero 52, pginas 14-21), demonstra como o uso do lcool causa dependncia entre uma porcentagem considerada alta de jovens do sexo masculino entre os 18 e 24 anos (18,2%). Mais alarmante, (e talvez ainda mais significativo) o consumo de moderadores de apetite nessa faixa etria, particularmente entre as mulheres: na faixa de 12 a 17 anos, 18% dos entrevistados, e em especial as meninas (27,3% do pblico feminino) apresentavam um ndice de Massa Corporal semelhante ao dos desnutridos, reflexo de uma ditadura da esttica, tendo como referncia a magreza, em geral associada aos jovens esbeltos. Por outro lado, podemos suspeitar que as diversas manifestaes juvenis, ao empreenderem uma crescente diferenciao da cultura e do modus vivendi da sociedade tida como adulta, estariam sendo envolvidas naquilo que Antnio Flvio Pierucci (1999) chamou de cilada da diferena, ou seja, a retroalimentao da postura conservadora por meio de 28

uma reivindicao considerada progressista, o direito singularidade ou ao exotismo. Salvo os casos dos jovens de postura poltica conservadora ou assumidamente desinteressados por poltica, os grupos com intenes de interferir em seu meio social, ao insistirem numa diferenciao entre eles e os adultos, cairiam no inevitvel isolamento ou desprezo dissimulado por parte destes ltimos.

Algumas Concluses

Compreender as implicaes dessa construo histrica da Juventude Moderna na participao de jovens em instituies tradicionais, como sindicatos e partidos, pode nos levar a uma maior clareza sobre o pessimismo expressado pelo senso comum atual em relao participao poltica da juventude. Ou seja, possvel que o elo de ligao entre as geraes, que fazia por exemplo jovens operrios se formarem no cho da fbrica (e eventualmente na luta sindical), estabelecendo assim um reconhecimento mtuo, tenha se rompido, dificultando assim a ao poltica tradicional junto s novas geraes operrias. Nunca demais lembrar que exatamente uma dcada depois dos acontecimentos de 1968 jovens operrios organizaram grandes jornadas grevistas no ABC Paulista e protagonizaram a vanguarda da redemocratizao do pas; isso sem cartilhas comunistas nem aulas de cincia poltica, mas a partir de sua condio social e traos de identidade de classe, de migrantes e tambm de jovens. Na verdade, podemos inclusive problematizar aquilo que j virou ponto pacfico entre estudiosos do tema, qual seja,

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a inaptido das instituies polticas em atrair os jovens8. O que observaramos a acentuao gritante do individualismo em todos os estratos sociais, que ironicamente utiliza a viso estereotipada da juventude para prometer um mundo mais significativo, mais provido de sentido, por meio do consumo e do prazer. Desse modo, os jovens do presente estariam condenados a seguir o modelo de juventude criado pela sociedade de consumo na segunda metade do sculo passado eternamente jovial, consumidor e hedonista. E os valores incrustados nesse tipo ideal no favorecem lutas coletivas de nenhum tipo, consideradas ultrapassadas e anacrnicas. O reconhecimento da pluralidade de identidades e recortes sociais, tpicas da modernidade capitalista e que foi elevada ensima potncia com a mundializao do capital das ltimas dcadas, no pode nos levar a abdicar de uma anlise que procure leva em conta a totalidade do fenmeno social sob a lgica de reproduo capitalista, pois como dizia Marx nas primeiras linha de O Capital, a sociedade capitalista se constitui em uma grande exposio de mercadorias , e hoje o tipo ideal de jovem tambm uma mercadoria que aprisiona as mais diversas juventudes nos quatro cantos do planeta.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ABRAMO, Helena Wendel. Cenas Juvenis (Punks e Darks no espetculo urbano). So Paulo, Scritta, 1994. ARIS, Philippe. Histria Social da Criana e da Famlia. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrpolis, Editora Vozes, 1997, 16a edio. 8 Ainda que possamos tambm admitir essa questo dos limites organizativos de partidos e sindicatos na atualidade, como tive oportunidade de discutir em Santos, 2001.

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GROPPO, Lus Antonio. Juventude Ensaios sobre Sociologia e Histria das Juventudes Modernas. Rio de Janeiro, Difel, 2000. HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos. O Breve Sculo XX: 1914/1991. So Paulo, Companhia das Letras, 1996. LNIN, V. I. Acerca de la Juventud, Moscou, Editorial Progreso, 1976. MANNHEIM, Karl. O problema sociolgico das geraes, Mannheim Grandes cientistas sociais, Marialice Foracchi (org.), So Paulo, Editora tica, 1982. PARANHOS, Ktia Rodrigues. Era uma vez em So Bernardo. Campinas, So Paulo, Editora da Unicamp: Centro de Memria Unicamp, 1999. PASSERINI, Luisa. A juventude, metfora de mudana social. Dois debates sobre os jovens: a Itlia fascista e os Estados Unidos da dcada de 1950, G. Levi e J. Schmitt (orgs.), Histria dos Jovens 2 - A poca Contempornea. So Paulo, Companhia das Letras, 1996. PERROT, Michelle. Jeunesse de la Grve. France: 1871-1890. Paris, ditions du Seuil, 1984. -------------------------- A juventude operria. Da oficina fbrica , G. Levi e J. Schmitt (orgs.), Histria dos Jovens 2 - A poca Contempornea. So Paulo, Companhia das Letras, 1996. PIERUCCI, Antnio Flvio. Ciladas da Diferena, Curso de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade de So Paulo: Editora 34, 1999. PORTELLI, Hugues. Gramsci e a Questo Religiosa. So Paulo, Edies Paulinas, 1984. SANTOS, Agnaldo dos. Debutantes e Outsiders Juventude Metalrgica e Sindicato no ABC Paulista. (Dissertao). Programa de Ps-Graduao em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2001.

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Esferas

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Debate

Os Velhos em 1968Lincoln Secco(Professor do Departamento de Histria da USP) Recentemente, o sr. Cohn-Bendit disse-me, durante uma discusso numa associao profissional, que eu s teria o direito de procurar a polcia se algum quisesse espancar-me a pauladas; respondi que ento talvez fosse tarde demais (Adorno, Carta a Marcuse, Frankfurt am Main, 5 de maio de 1969). Por outro lado, acredito e repito que, em determinadas situaes, a ocupao de prdios e a interrupo de aulas so atos legtimos de protesto poltico (carta de Marcuse a Adorno, Londres, 4 de junho de 1969)1. Certa vez Fernand Braudel disse ao medievalista Le Goff: Eu, Jacques, quando estou numa reunio, quem a preside sou eu. Ao voltar dos Estados Unidos em plena tormenta de maio de 1968, encontrou o Collge de France em plena assemblia e naquele dia estava fora de questo deix-lo presidir qualquer coisa. Ele se sentou na platia e ficou ao lado de Raymon1 In: http://adorno.planetaclix.pt/tadorno16.htm. Traduo de Isabel Maria Loureiro.

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Aron2, provavelmente ambos com muito mau humor. Naqueles dias radicais, Braudel parou diante de um cartaz que representava um Cristo com um pnis gigante. Uma estudante lhe perguntou: Chocado, professor?. E ele respondeu: No. Isso apenas o sonho de uma garotinha. Decerto, ele no viu com bons olhos os excessos de 1968. O que aquele maio revolucionrio trouxe de mais audaz foi um passo a mais na igualdade de gnero. Braudel gostava de ver as estruturas serem sacudidas, mas duvidava que elas mudassem rapidamente. Mais tarde, numa entrevista televiso, ele disse que no era contra o fato de que as jovens corajosamente quisessem a liberdade, mas sim que apesar disso continuassem infelizes. que para ser feliz (em termos culturais) preciso portar mscaras3. As revolues derrubam as mscaras provisoriamente. Depois, outras se impem ou as mesmas so restabelecidas. Os bolcheviques tomam o poder e Lenin pode proclamar que at a cozinheira cuidar dos negcios do Estado. Mas na primeira reunio do novo governo, algum ter que servir o caf. No filme Les Amants Rguliers de Philippe Garrel h uma seqncia em que um jovem, depois de uma madrugada de barricadas e fugas, chega em casa cansado e sujo. Deita-se no sof e adormece enquanto sua velha me lhe retira as botinas para limp-las. A cmera se detm longamente nas botas... Mas se a insurreio do cotidiano sempre modera as revolues polticas, isso s ocorre no dia seguinte. Na noite das tormentas, tudo parece de cabea para baixo. Antes que o professor retorne posio superior da sala de aula e o padre ao plpito, a polcia retome suas funes e algum poder se

2 Le Goff, J. (1998) Uma Vida para a Histria. So Paulo: Editora Unesp, p. 161. 3 Daix, Pierre (1999). Fernand Braudel: uma biografia. Rio de Janeiro: Editora Record.

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estabelea, os burgueses temem pelo ltimo dos privilgios que sobrou de nossa era moderna: a propriedade4. Acontece que nunca mais o professor retomou integralmente a posio incontestada de outrora e os padres... Bem, os padres perderam o rebanho. S a propriedade persistiu no topo, incontestvel. Esta foi a revoluo de 1968: como muitas outras, abalou algumas estruturas, menos a propriedade dos meios de produo. Afinal, como disse outro adversrio de 1968, chocar o burgus muito mais fcil que derrub-lo5. Eric Hobsbawm argumentou que o real significado daquele movimento estava menos nas ocupaes estudantis e nas suas ideologias do que no uso do blue jeans (especialmente no uso de calas compridas pelas mulheres)6. Mas como ele disse nunca ter usado cala jeans e no gostar de adultos que desejam ser adolescentes para sempre, permaneceu fora dos anos sessenta7. Quando escreveu isso, ele tinha em mente um cotejo com sua prpria gerao. Os jovens dos anos sessenta apanharam os velhos esquerdistas de surpresa. Eles tinham sido resistentes na Guerra, passaram pela penria e pela violncia dos campos de concentrao e viram a Unio Sovitica ao menos como pas fundamental no campo da luta anti-fascista. Nos sessenta, o problema no era de penria, mas de superabundncia de uma sociedade consumista; a Unio Sovitica era vista como parte integrante do jogo de equilbrio da Guerra Fria; e a Segunda Guerra estava a um gerao de distncia.4 Tocqueville, A. (1991). Lembranas de 1848. Traduo: M. Florenzano; Introduo: R. Janine Ribeiro; prefcio: F. Braudel. So Paulo: Companhia das Letras, p. 41. 5 Hobsbawm, E (1994). Revolutionaires, London, Phoenix, p. 219. 6 Alis, o consumo em geral era o elemento de coeso etria. Cf. Santos, Agnaldo (2009). A construo histrica da juventude e a ascenso da juvenilidade. Mouro, N. 1. S. Paulo: NEC. 7 Hobsbawm, E. (2002). Interesting Times. London: Penguin Books, pp. 261-2.

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Por fim, para Hobsbawm (cuja militncia iniciara-se em Berlin em 1933, a sua juventude era diferente em quatro maneiras de um soixante huitard: 1. Em Berlin no era uma minoria de dissidentes que questionava o sistema, mas uma maioria; 2. Diferentemente dos estudantes de 1968, os jovens alemes eram no s contestadores, mas estavam ( direita ou esquerda) engajados numa luta essencialmente revolucionria para a conquista do poder; 3. Poucos jovens da ultra-esquerda alem eram intelectuais. Mais de 90% no tinham sequer escola secundria; 4. Os intelectuais comunistas e os militantes de um modo geral no eram dissidentes culturais. A maior diviso no foi como na era do rock, entre geraes, mas um conflito poltico entre os que acreditavam e os que rejeitavam a Revoluo Russa. Em Berlin, os jovens comunistas partilhavam da mesma cultura de Weimar de seus pais social-democratas ou liberais8. A ruptura geracional foi a que mais confundiu os velhos professores. Muitos deles se consideravam revolucionrios, mas no o suficiente para uma crtica aberta a posies estabelecidas nos meios acadmicos. Tomemos o caso de um historiador conservador: Pierre Chaunu, na Universidade de Caen. Num anfiteatro lotado, alguns alunos de sociologia pedem a palavra. Chaunu lhes d a palavra desde que sejam rpidos. Os alunos informam sobre confrontos de estudantes com a polcia na Sorbonne. Chaunu replica: Sua informao unilateral, vocs esto na presena de historiadores. Permitamme apresentar uma outra fonte. Ele diz que entre os pseudointelectuais e os policiais, ele no quer escolher, mas se for8 Id. Ibid., p. 70.

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forado, escolher os policiais, filhos de camponeses como ele9. Nota-se como, embora conservador, ele apelava para uma base de classe a fim de se legitimar perante os novos revolucionrios. que as revolues costumam criar um novo campo semntico mais apreciado pela opinio pblica. Assim, era possvel, em 1848, ouvirmos (segundo Tocqueville) burgueses se jactarem de suas origens humildes temendo os excessos dos que erguiam barricadas em Paris. Uma outra possibilidade era apelar para a necessidade de no se cortar razes com a cultura estabelecida, de no revolucionar a forma de transmisso dos contedos. No era chocante ouvir teses tpicas do comunismo de esquerda do primeiro quartel do sculo XX ou mesmo reviver ideais anarquistas, mas sim v-las travestidas de atos escandalosos que envolviam uma nova concepo de amor livre, de comunicao direta e sem rodeios e de desrespeito a toda autoridade (mesmo de esquerda). Em Estocolmo, Ingmar Bergman, ento diretor do Teatro daquela cidade, percebeu isso e tambm as conseqncias daquela revoluo. Declarou que dificilmente um historiador futuro conseguir ver o suposto mal feito por 1968 cultura e educao at ento existentes porque os revolucionrios frustrados agarraram-se s redaes de jornais e s editoras e passaram a falar amarguradamente da revoluo interrompida.

9 Chaunu, P. e Dosse, F (1994). Linstant clat. Paris, Aubier, p. 93.

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Ingmar Bergman

Adorno

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curioso que Bergman tivesse percebido que a revoluo de 1968 no demonstrava pacincia de apreender as formas do passado. Quando ele disse aos jovens atores que eles deveriam antes aprender seu ofcio se quisessem que suas mensagens revolucionrias fossem ouvidas, eles agitaram-lhe na cara o livrinho vermelho de Mao Tsetung e o expulsaram do teatro. A conseqncia foi, para Bergman, a tomada dos aparatos culturais pela nova gerao. Donos dos mass media, eles deixaram os velhos num cruel isolamento. Todavia, sua revoluo cultural seguiu o padro habitual das revolues polticas, s que incrivelmente mais rpido: O padro no mudou: as idias se tornaram institucionalizadas e corrompidas. s vezes acontece rapidamente, s vezes leva centenas de anos. Em 1968 aconteceu com uma rapidez furiosa e o dano feito num curto perodo foi ao mesmo tempo assombroso e difcil de se reparar10. O legado de Maio de 1968 no pode ser entendido sem o concurso das idias de sua oposio, ou seja, sem percebermos no seu contrrio alguns aspectos imprescindveis para analisarmos seus efeitos. Os velhos, nem sempre conservadores em poltica, tiveram um pouco a nos dizer sobre aquilo tudo. No partilharam da Revoluo Cultural e se mantiveram presos a um modelo de revoluo poltica e econmica que no mais nos contenta nos dias de hoje. Se a Revoluo Russa, ao menos nos primeiros anos, para eles libertou o operrio e o campons (no entremos num outro debate sobre a realidade desta afirmao), uma nova revoluo deveria liberar tambm a mulher e as diferentes etnias, por exemplo. Todavia, tambm certo que se 1917 no passou da poltica e da economia para os costumes (seno em efmeros e10 Bergman, I. (1988). The Magic Lantern. London: Penguin, p. 199.

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localizados experimentos de uma vanguarda artstica logo devorada pelo stalinismo), 1968 tambm no transitou da cultura para a poltica seno na forma habitual denunciada acima por Ingmar Bergman. por isso que 1968, incorporado pela lgica do capital, conseguiu destruir silenciosa e paulatinamente muitas hierarquias e rituais, fazendo os homens e mulheres de todas as idades aparecerem sem diferenas, meras mscaras de consumidores, quando tudo o que se queria era o contrrio disso (mas afinal, por suas antinomias internas possvel que um movimento produza exatamente o seu oposto, como sustentaria Adorno). Os prprios jovens daquela poca, ao conquistarem os mass media, conquistaram hegemonia cultural. Acontece que essa hegemonia perdurou alm de seu momento e, atualmente, todos ns temos a obrigao de sermos jovens (e felizes?). Partilhamos (pais e filhos) a mesma msica, a mesma roupa, as mesmas drogas. provvel que tivesse sido assim antes. S que a direo dos velhos sobre os jovens era identificada como era: coisas velhas que teimavam em persistir. Assim, os jovens sempre tinham motivos para se revoltar. Hoje, os ideais de 1968 disfaram sua preeminncia com uma vestimenta eternamente juvenil. Assim, impedem as novas geraes de uma autntica revolta (que seja sua e somente sua). Elas no podem mais romper tabus, pois os jovens de 1968 aparentemente j romperam todos. Talvez, se olharmos para os velhos de 1968, possamos descobrir algum motivo para superarmos no melhor sentido da palavra, aquele ano. Afinal, deveria causar incmodo que, numa sala de aula, as mscaras daquele que manda e daquele que obedece tenham sido muitas vezes retiradas, mas no na fbrica.

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Fernand Braudel

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Entrevista

Gerao 69Mau Entrevistado: Mau, vocalista da banda de punk rock Garotos Podres Entrevistadores: Agnaldo dos Santos, Lincoln Secco e Ciro Seiji

Trata-se de uma entrevista com o Mau1, vocalista da banda punk dos anos 80 Garotos Podres, que tambm historiador. Ele fala de cultura e msicas jovens, em particular punk e skinhead, diferenciando as diversas tendncias (dos comunistas aos neonazistas). Faz uma crtica ao movimento 68, alm de outras coisas sobre poltica internacional. Ele foi entrevistado por Lincoln Secco (historiador da USP), Ciro Seiji (tecnlogo) e Agnaldo dos Santos (socilogo).

Nossa conversa se iniciou com um questionamento ao Mau sobre como a cultura punk e skinhead compreendia as rebelies juvenis dos anos 1960, em particular o chamado Maio de 68.1

Jos Rodrigues Mo Junior

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Para Mau, os movimentos estudantis de 1968, principalmente o de Paris e o da Califrnia, foram movimentos com recorte eminentemente pequeno-burgus, de jovens de classe mdia que no representavam o conjunto dos jovens trabalhadores da poca, da a indiferena de boa parte desses jovens quele movimento. Entrevistador Voc no est reduzindo maio de 68 s Frana? Porque Maio de 68 um movimento que atinge pases muito diferentes como Tchecoslovquia, Mxico ele foi violentssimo at Estados Unidos e Brasil, em So Paulo, principalmente. E at a Inglaterra, ainda que de uma maneira muito diferente. Itlia, por exemplo. Mau No sei at que ponto fez parte de um movimento geral ou se so apenas movimentos concomitantes. No sei se eles obedecem mesma lgica. Por exemplo, a Tchecoslovquia um movimento totalmente distinto. Na minha opinio, um movimento contra-revolucionrio, felizmente vencido pelas foras democrticas que foram representadas pela Unio Sovitica. Nos Estados Unidos um outro contexto diferente. L voc tem o contexto da Guerra do Vietn e o movimento flower power que est muito ligado no s resistncia contra a Guerra do Vietn, mas, principalmente, porque esse estudante universitrio pequeno-burgus corria o risco de ser recrutado e mandado para o Vietn porque at naquela guerra existia alistamento militar obrigatrio. Essa mesma pequena-burguesia universitria no fala uma palavra hoje em relao aos que esto morrendo no Iraque e no Afeganisto, porque no h mais alistamento militar obrigatrio. Ento, quem est morrendo no Afeganisto e no Iraque so pobres, muitos deles nem americanos so, nem estadunidenses so. Mas na poca, corria o risco de um jovem pequeno-burgus ser enviado para o Vietn. Ento, em grande medida, 68 nos Estados Unidos est muito vinculado a essa questo da resistncia contra o servio militar. No tenho a menor dvida que eles estavam pouco 44

preocupados, a grande maioria estava pouco preocupada com os milhes de vietnamitas que estavam sendo imolados sob os bombardeios dos Estados Unidos. Eles estavam preocupados em no ter que ir para o meio do mato morrer. Tambm houve no Mxico, o massacre do Tlatelolco, a uma outra questo que eu conheo, confesso que conheo muito pouco. Talvez o nico movimento importante que ocorria em 1968, alis, um pouco anterior a 68, era a grande Revoluo Cultural Proletria na China. Esse sim, um movimento democrtico, progressista e que servia de modelo e inspirao aos democratas do mundo inteiro. Agora, os demais eram movimentos pequeno-burgueses ou contra-revolucionrios, com exceo do Mxico, confesso que eu conheo pouco e, tirando a Grande Revoluo Cultural Proletria na China, o resto so movimentos que eu creio ser sem grande importncia. Tanto que aqui no Ocidente, no Brasil, na universidade, se discutiu muito durante esse ano, os 40 anos de maio de 68 em Paris, e pouco se falou de um movimento realmente importante que a Grande Revoluo Cultural Proletria que, embora o incio seja um pouco anterior, 68 o ano auge do movimento. Entrevistador 1 Muito pelo contrrio, a imprensa agora com as Olimpadas de Beijing, fizeram questo de, em toda a oportunidade, falar exatamente que a Revoluo Cultural era uma pgina macabra da histria da China, enfim. Mas a gente sabe muito bem qual que o interesse desse tipo de comentrio. Mas eu queria aproveitar, Mau, e te perguntar outra coisa, j que at agora voc estava focando um pouco a tua fala nesse perfil especfico do jovem que participou de 68, mas ele no era o nico tipo de jovem que existia, claro. Eles eram, inclusive, uma minoria da sociedade. Ento, eu queria que voc comeasse a falar, um pouquinho aqui para ns, sobre as vrias culturas juvenis que existiam na Europa, particularmente na Inglaterra, mas na Europa de um modo geral e que inseridas nessa cultura vinculada ao rock, vinculada 45

s msicas que haviam surgido j l nos anos 50, o rock foi um divisor de guas na cultura do sculo XX, no ? S que aquilo l a gente sabe que um tronco do qual saiu tudo quanto tipo de ramo. Ento, eu queria que voc falasse um pouquinho sobre essa cultura juvenil ligada quilo que ficou convencionado como rock a partir dos anos 50 e, particularmente, na Inglaterra. Quais eram os grupos que existiam nessa poca? Entrevistador 2 S complementando, uma vez a gente estava conversando com um colega nosso, e ele disse que o rock era uma inveno norte-americana e eu lembro que voc corrigiu um pouco essa informao. Mau Bem, em termos musicais eu acho que fica difcil a gente falar de uma origem do rockn roll como algo estadunidense ou no. Na verdade, as informaes musicais circulam de uma maneira muito mais intensa do que a gente pode imaginar. E no caso da Europa, possvel voc estabelecer uma linha de origem que vem tanto dos Estados Unidos quanto razes prprias da Inglaterra e do Caribe. Digamos assim, se o blues teve uma influncia muito grande para o rockn roll nos Estados Unidos, os ritmos caribenhos, principalmente jamaicanos, como dub, rocksteady ska, reggae tiveram uma influncia muito grande no s na Inglaterra, mas na Holanda e outros pases que tm o seu p no Caribe. No caso especfico da Inglaterra, voc tem uma srie de movimentos juvenis anteriores inclusive ao prprio rockn roll, como os mods. E a Inglaterra tem uma caracterstica muito interessante que uma presena musical muito forte da Jamaica. Ento, voc tem movimentos juvenis ligados a essa musicalidade jamaicana como os rude boys. Por exemplo, Bob Marley, quando era jovem, era rude boy, usava terninho, chapu pork pie, no sei o qu. E essa cultura que inicialmente estava no gueto, a partir de 69, vem tona principalmente com um msico de reggae, Desmond Dekker, que conseguiu chegar nas paradas de sucesso com uma msica, Israelites. E bem 46

interessante que d para perceber bem esse contexto de gueto. O grande parceiro de composio do Desmond Dekker era Leslie Kong, que chins, quer dizer, jamaicano de origem chinesa, que tinha uma sorveteria em Londres e o escritrio da gravadora ficava, eu no sei se era nos fundos ou na sobreloja da sorveteria. E os caras lanaram um compacto, esse compacto Israelites ficava entre os 10 mais tocados, eu acho que chegou em primeiro lugar nas paradas na Inglaterra, top 10 na Inglaterra. Ento, isso da deu luz a uma cultura de gueto que estava totalmente fora no s da mdia, mas fora daquilo que havia acontecido no ano anterior. Enquanto no ano anterior a pequena-burguesia sai s ruas para protestar pelo direito de dormir no dormitrio das estudantes, das alunas.

Desmond Deckker

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Entrevistador Foi a origem do movimento de 68. Mau , foi a origem do movimento de 68, essas camadas mais proletarizadas dos bairros estava margem disso. E comeam a tomar voz a partir de 69 principalmente com Desmond Dekker. Ento, voc tem uma srie de tribos urbanas. Por exemplo, os rude boys, que eram ligados diretamente aos jamaicanos, os mods, que vem de moderns, o pessoal que andava de lambreta. Tem uma faco mais radical dos mods que era os hard mods, o pessoal j mais da periferia, que a lambreta no era to bonitinha assim. E os rockers, os grisers, que tm uma multiplicao de estilos e tribos urbanas que no estavam inseridos na universidade porque eram filhos de trabalhadores to pobres que no tinham acesso universidade e que viam com um certo desprezo esses movimentos dos filhinhos de papai que pegavam de vez em quando a moto, punham o p na estrada para depois de dois ou trs anos retornar ao curso de administrao de empresas e administrar os negcios do papai e continuar oprimindo a classe operria. Entrevistador 1 Da que vem o seu preconceito contra o pessoal da City? Mau No, no. Entrevistador 2 Me explica sobre essa histria da City a. Mau No, no, isso da era... Isso da era bobeira, n? Antigamente o pessoal... Entrevistador 1 Mas vem da Inglaterra essa... Mau No, no, no. Isso da era... Entrevistador 2 Bom, deixe-me fazer uma pergunta. S para dar uma certa nfase a essa afirmao. Voc est dizendo que Desmond Dekker e todo esse movimento cultural, que era miscelnea nesse perodo, tm uma origem de msica jamaicana, portanto, negra, e isso tudo vem, at os dias de hoje, 48

nessa afirmao e nessa relao que se faz, principalmente pela mdia, de que o som skinhead ou world music esto relacionados ao nazifascismo, quando, na verdade, a sua prpria origem vem de uma produo de msica negra. Mau Bem, a imprensa burguesa extremamente preconceituosa, no vou falar nem sensacionalista porque isso bvio, quando diz respeito a movimentos cujos integrantes no so elementos da fina flor da pequena burguesia. No caso interessante que os primeiros skinheads eram compostos principalmente pela molecadinha branca que era vizinha dos jamaicanos e que comea a gostar do som dos caras. No s gostar do som dos caras, como at a copiar o visual mais ou menos. Alguns at copiavam literalmente o visual dos rude boys. Os primeiros skins, em 69, curtiam basicamente reggae, ska, rocksteady e, mais tarde, soul. Quer dizer, em outras palavras, a msica negra. Esse esteretipo do skin de neonazista surgiu em 1980 ou 81, agora me falha a memria, na poca do lanamento de uma coletnea, Stand Oi, organizada pela Revista Sound e foi organizado um show de lanamento num teatro que, coincidentemente, ficava no bairro paquistans. Naquela poca, estava tendo uns conflitos raciais serssimos na Inglaterra, principalmente entre a comunidade paquistanesa. Bem, naquela noite, quando estava tendo o lanamento, um pessoalzinho skin vai l no teatro para assistir ao show das bandas que compunham a coletnea. De repente, a molecada paquistanesa comea a ver um monte de moleque branco, vestido de maneira esquisita, ficaram com medo, pensaram: no, vo bater na gente!. Da essa molecada paquistanesa cercou o teatro, teve um quebra-pau e o teatro acabou sendo incendiado. Ns at poderamos dizer que a molecada skin foi vtima porque quem apanhou foram eles, n? Como que saiu na imprensa no dia seguinte (risos)? E tenham em mente que a imprensa britnica pior do que a brasileira em termos de sensacionalismo. 49

er

Entrevistador A idia de tablide vem de l, n? Mau Saiu como os skins, grupos neonazistas, que foram no bairro paquistans bater nos caras... Quando na verdade, aconteceu o contrrio, a molecada paquistanesa viu um monte de moleque branco esquisito, ficou com medo, foi para cima e os skins apanharam. E a partir da a mdia britnica fabricou o mito do skin neonazista etc e tal. O que um total contrasenso, afinal de contas a origem dos skins est justamente na identificao com a msica jamaicana. E o grande perigo que a mdia capaz de criar movimentos. Como diria Goebbels, uma mentira contada milhares de vezes se torna verdade. Eu poderia dar um outro exemplo, aqui no Brasil existia o movimento dark. Entrevistador S aqui? Mau S aqui. Quem inventou isso da foi o Pepe Escobar, que era um crtico de msica, que no sabendo como encaixar nos diferentes rtulos toda aquela musicalidade do ps-punk, ele inventou o rtulo dark. E a partir da comeou a surgir pessoas se rotulando como dark. Quando uma dessas bandas rotuladas como dark veio ao Brasil, um outro jornalista perguntou: o que que o senhor acha do movimento dark?. E o cara: Dark? Movimento dark, o que que isso? Quer dizer, aqui no Brasil um crtico musical na imprensa rotulou o movimento que passou a ter seguidores. Isso que o mais engraado. O grande problema que na Inglaterra isso ocorreu tambm. Primeiro a mdia criou o esteretipo do skin neonazista, isso atraiu a ateno de quem? Dos partidos de direita na Inglaterra. Entrevistador Ah, era isso que eu ia perguntar. Mau Que comearam a tentar cooptar. Ento, na Inglaterra, nos anos 80, realmente surgiu e existiu um movimento skin de direita e... no era... 50

Entrevistador Era o National Front? Mau No, no, National Front, no, no. Front International na Frana e um pessoal do National Front, em matria de coisas mais direita ainda, tipo BNP, British National Party, tem um pessoal mais direita ainda. Mas, por incrvel que parea, apesar de todo o estardalhao da mdia, esses grupos de direita de skins sempre foram minoritrios. E o que mais interessante, para se contrapor ao surgimento desses grupos de direita, voc tem o surgimento de, por exemplo, dos redskins. Quer dizer, skins comunistas, do Sharp, que no tem necessariamente uma conotao poltica, mas so militantemente contra o racismo e etc. Entrevistador SHARP significa? Mau Skinheads Against Racial Prejudice, skins contra o preconceito racial. Ento, muito interessante que a maioria dos skins eram anti-racistas, anti-nazistas e a imprensa, durante muito tempo, vinculou o contrrio. E muita gente muitas vezes no entendia, tinha, sei l, show dos RedSkins, uma banda. Porque chegou a existir uma banda chamada RedSkins. De repente tinha skin de direita querendo bater nos caras, skin de direita querendo defender os caras. E como a mdia explica isso? muito mais fcil criar o rtulo e encaixar tudo, assim como o Pepe Escobar criou rtulo nico para explicar tudo que era o dark. Ento, isso a. Entrevistador Voc diria que a maioria dos skins era de pessoas que gostavam s de futebol, terno curto, o defunto era menor (risos) e curtiam a msica, mas no tinham nenhuma conotao poltica? Mau Existia vrias correntes e essas correntes variavam muito conforme a poca. Entrevistador Futebol era importante? 51

Mau porque voc tem um outro movimento que tem influncia entre os skins que os Boot Boys. Entrevistador Boot Boys? Mau Podemos traduzir como os botinudos. Que era essencialmente um movimento ligado ao futebol, algo prhooligan, digamos assim, da molecada que ia para assistir jogo e muitas vezes fazia besteira, arrumar briga etc e tal. E at o uso de bota com um tipo de biqueira de ao que depois foi proibido no estdio. Entrevistador Coturnos? Mau Porque a bota era usada como arma na briga. Isso tem influncia nos skins, mas quando a gente fala em briga, na Inglaterra, muito diferente da idia que temos aqui no Brasil. Hoje em dia aqui no Brasil, qualquer criana de oito anos de idade anda armada com uma AK47, como voc v no Rio de Janeiro. Ao invs de um beb ganhar um ursinho de pelcia, ganha uma AK47 para dormir no bero. Logicamente, na Inglaterra quando tinha briga era soco, saa algum de olho roxo, mas no era massacre como ocorre, infelizmente, no Brasil. Mas voc tem influncia em vrios movimentos onde a origem skin e mesmo dentro de vrias correntes. Voc tem o The Soul e The Heads, o pessoal curtia, basicamente, soul. Phil Tony, o pessoal que curtia Ska, dois tons, negros e brancos tocando e se divertindo junto. Ento, tem vrias correntes. Entrevistador 1 E a relao com os hippies? Os skins no batiam nos hippies? Entrevistador 2 Deixe-me fazer s mais um comentrio. A questo das drogas. Por que quando a gente fala em 68 tem muito essa relao com a questo da liberao por meio das drogas. Eu me lembro, por exemplo, que isso sempre foi um problema. Por exemplo, na dcada de 80, quando havia comcios aqui na Praa da S, a gente via os operrios de um 52

lado e tambm o movimento estudantil que tinha exatamente esse perfil que, na verdade, foi importado do cabeludo que defendia a liberao das drogas. Entrevistador 3 E muitas vezes eu via os operrios expulsando esse pessoal que fazia a apologia da liberao das drogas. Afinal de contas, esses operrios na Praa da S eram nazistas? Eram fascistas porque eram contra esses ideais de liberdade? Mau Bem, muito interessante que esse movimento ps-68 est muito ligado questo das drogas. E voc tem aquelas coisas tipo Timothy Leary, o cara que fazia experincias com o LSD e achava que o LSD podia expandir a conscincia. E depois, mais tarde, ele percebeu que no era bem assim. Ento, muitas drogas eram novidade na poca. Mas de uma coisa ns podemos ter certeza, de uma maneira geral, as drogas sempre estiveram relacionadas contra-revoluo e no revoluo. Posso dar exemplo. A tentativa de invaso de Cuba pela Brigada 2506, que era uma unidade formada por contrarevolucionrios cubanos organizada pelos Estados Unidos, foi financiada pelo trfico de drogas porque o dinheiro para a operao no podia sair do cofre das verbas pblicas dos Estados Unidos. Da a CIA montou um esquema de trfico de drogas com o Tringulo de Ouro, o Laos, Camboja etc. para traficar herona. Boa parte dessa herona foi introduzida nos bairros negros nos Estados Unidos, principalmente onde havia base social dos Panteras Negras e com o dinheiro da herona foi financiada essa operao militar. Curiosamente, um dos recrutadores para essa operao militar, um jovem agente da CIA que participou para recrutar esse agentes, se chamava George Bush, futuro presidente dos Estados Unidos e pai do atual presidente. Ou seja, o vnculo entre a famlia Bush, o crime organizado e o trfico de drogas e a mfia anti-cubana em Miami bem antigo. Tanto que foi em Miami, onde o irmo do Bush era governador, que se decidiu as eleies do Baby Bush, do George Walker Bush. Ento, as eleies 53

foram decididas pela mfia. Alis, a relao entre o poder e o crime organizado nos Estados Unidos patente. Qual a origem da fortuna da famlia Kennedy? O pai do presidente Kennedy fez fortuna contrabandeando bebida alcolica durante a Lei Seca para a mfia irlandesa. E no prprio assassinato do Kennedy h, em grande medida, um acerto de contas dessa relao entre rgos de segurana dos Estados Unidos, particularmente, CIA e FBI e a mfia. Uma outra curiosidade, lembram do escndalo IrContras? O que se ventilou foi contrabando de armas para o Ir. Mas no foi armas, foi tambm a introduo do crack no bairro, novamente no bairro negro, nos bairros negros dos Estados Unidos, feita pela CIA para arrecadar fundos para a contra-revoluo que atuava contra o regime sandinista. Um dos capos ligados a esse trfico de drogas que financiava a contra-revoluo foi, inclusive, olha que interessante, responsvel pela poltica dos Estados Unidos na Amrica Latina do George W.Bush, que o Otto Reich, que um cara ligado mfia anti-cubana. Ento, curiosamente, as drogas sempre estiveram relacionadas contra-revoluo. E at desconfio que, talvez, essa introduo de uma certa apologia s drogas que existia, como essa gerao pequeno-burguesa de 68, talvez em grande parte, era uma estratgia dos prprios rgos de segurana e de controle social, tipo CIA e FBI, que estava minando e destruindo esses movimentos. No caso aqui do Brasil, acontece o seguinte, voc tem um setor da esquerda que parte dele rompeu com o marxismo-leninismo nos anos 30 e parte desse movimento, no todo, lgico, foi recrutado pela Gestapo. Quando terminou a 2 Guerra Mundial esse setor perdeu o emprego e foi trabalhar para a CIA (risos). lgico, eu estou brincando, mas eu no sei at que ponto brincadeira e at que ponto eu estou falando srio, mas essa tradio do setor contra-revolucionrio que gosta de se pintar de vermelho contra-revolucionrio, o setor que, por exemplo, defende as drogas como algo revolucionrio etc e tal at hoje. Libertador? Sim. A CIA 54

aplaude. Est conseguindo consumidores e disseminando o vcio entre a classe operria, entre o movimento de esquerda, quer dizer, um agente da CIA voluntrio ou involuntrio. Entrevistador Quando que o punk surge no Brasil? E isso tem alguma relao com o renascimento, vamos dizer, da classe operria, o novo sindicalismo, as greves do ABC ou no tem nenhuma relao? Mau Eu acho que tem uma relao, so contextos diferentes. Mesmo 68, na Frana, tem um contexto diferente no Brasil. O Brasil vivia uma ditadura. E 68 no marcado pela ascenso do movimento estudantil. Isso uma face da moeda. O ano de 68 marcado pelo AI-5. Ento, no h motivo algum para algum ter saudades de 68 no Brasil. Da mesma forma, vamos supor, a Europa, a Inglaterra, no final dos anos 70, vivia um momento diferente do brasileiro, isso bvio. A Inglaterra, especificamente, vivia a tragdia que era a onda neoliberal da Margareth Thatcher, significou, antes de mais nada, a formao de uma verdadeira sub-classe, quer dizer, realmente, o surgimento do conceito que ns podemos chamar de excludos, quer dizer, aquele cara, no que o cara est desempregado, o cara perdeu o emprego e no vai arrumar outro. Entrevistador No o lumpem? Mau No lumpem, o desempregado, s que dentro de um contexto de desindustrializao imposto pelo neoliberalismo da Margareth Thatcher que lanou boa parte da classe operria s feras. Ento, eu acho que o movimento punk est muito relacionado a isso, quer dizer, uma gerao jovem que no tem perspectiva de cultura. Nem mesmo a perspectiva de se transformar num operrio explorado o cara tem. Tanto que o Ciro lembrou que um dos lemas era No h futuro. Ento, isso marca, inclusive, uma distncia brutal entre os pequenos burgueses degenerados do movimento estudantil universitrio 55

de 68, que nessa poca j estavam se integrando ao sistema, j estavam dirigindo as empresas de papai, j estava entrando no Partido Verde como o Daniel, o Vermelho, que agora o cara virou... parece o Gabeira. O cara j foi de esquerda. Ele se dizia. Eu acho que nunca foi. E uma classe operria em franca decomposio. No Brasil, o contexto era diferente. No Brasil estvamos nos momentos finais da ditadura militar em que voc tem uma certa recepo dessas idias, de algo mais radical, mais contestatrio do que havia sido at ento o rockn roll. E, o mais interessante, um movimento que no era um movimento da pequena-burguesia degenerada. Era o movimento das massas populares, era o movimento, antes de mais nada, o movimento de filhos de operrios. Entrevistador Ento, o Lincoln lembrou bem essa questo do punk rock e do movimento operrio que nas ltimas dcadas talvez tenha sido o mais importante em termos de reflexo poltico, no ? Lembro que a temtica do punk rock era uma coisa que refletia exatamente a realidade. Tinha muitas letras e msicas ligadas realidade do operrio, realidade da opresso da ditadura militar. De uma forma ou de outra, uma coisa deve ter provocado a outra, no me arrisco a dizer se o punk rock inveno daquela circunstncia ou a circunstncia, de alguma forma, gerou o punk rock. Mas, enfim, de qualquer forma, ela deu grande flego, pelo menos a sua fora e a reflexo da juventude nesse perodo. Eu queria perguntar a voc, particularmente na trajetria dos Garotos Podres, da banda que voc formou, e at da anterior, a Submundo, qual foi a sua experincia pessoal com a esquerda e os caminhos que o levaram, por exemplo, a musicar a Internacional no disco dos Garotos Podres e essa relao da tua banda e a tua trajetria pessoal com a esquerda, sabendo que voc mora no ABC e morou em Mau. Mau Bem, voc coloca a questo de opo, at que ponto o punk rock expresso do movimento. Eu acho que do 56

movimento social mais geral. Eu acho que isso. E, de uma maneira geral, eu acho que perfeitamente lgico, sempre morei no ABC, estudei boa parte, at o Ensino Mdio eu sempre estudei no ABC e o Ciro deve se lembrar, afinal de contas estudava na mesma escola que eu no Ensino Mdio, a gente pegou aquela poca do final da ditadura militar, do ressurgimento do movimento sindical, contestando a ditadura, uma greve em 79, 80. Eu era um daqueles moleques, vrios, no era o nico, vrios moleques que matavam a aula para ver greve. lgico que a conscincia poltica que a gente tinha era uma coisa muito infantil, seria exagero, mas uma conscincia muito incipiente. Mas eu acho que comeou a se forjar ali. A partir do momento em que voc v o combate sindical traduzido num enfrentamento de rua com a polcia, contra a ditadura, eu acho que isso da extremamente pedaggico, digamos assim. E eu acho que voc comea a perceber a existncia da manipulao dos meios de comunicao quando voc mata aula para ir ver greve e depois chega em casa, liga na Rede Globo que noticia uma coisa completamente diferente do que voc viu durante o dia. Ento, eu creio que boa parte do meu despertar e do interesse pela poltica surgiu a. Surgiu eu, moleque, matando aula, na poca do Ensino Mdio, para ir ver greve. Entrevistador 1 E s vezes a imprensa at escondia, como no caso das Diretas-J que a Rede Globo no divulgava, n? Mau , no caso da greve dos metalrgicos era pior. Chegava em casa, a Rede Globo: ah, a greve est acabando, tal empresa j voltou, tal empresa j voltou. Da, no dia seguinte, eu ia para So Bernardo, porque eu morava em Mau e estudava em So Bernardo, tinha manifestao gigantesca. Da eu falava: tem alguma coisa errada, no ? Ou eu estou tendo alucinao ou a Rede Globo est mentindo. Entrevistador Exrcito nas ruas, revista no estdio vira blitz. 57

Mau , ou o helicptero do exrcito que sobrevoava o Estdio do Vila Euclides dava a volta bem em cima da minha escola. O pessoal apontando metralhadora, umas 50 em cada porta, no ? Ento, o meu despertar poltico foi bem por a. E coincide esse perodo com o perodo de ressurgimento do movimento estudantil secundarista. Ento, nessa poca eu tinha contato com o pessoal que era, eu mesmo no era do movimento estudantil, mas tinha contato com quem era, Bene Alpert, o pessoal e tal. E eu era o cara que sentava no fundo da sala e lia o material, por exemplo, da Alicerce da Juventude Socialista. Ento... Entrevistador Que livro voc leu nessa poca, de esquerda, voc lembra de algum? Mau Puta, eu lia muito pouco, cara. Entrevistador Alm da Biblioteca do Exrcito (risos)? Voc leu Os Miserveis? Mau Ah, Os Miserveis eu li quando eu tinha 12 anos. Inclusive, Os Miserveis, o Noventa e Trs tambm, ambos do Victor Hugo. O 93 eu li, eu j era bem mais velho, tinha uns 13. Mas eu lembro que quando eu vi a greve dos metalrgicos, na minha cabea de moleque, ela j me remeteu a Os Miserveis, barricada, no sei o qu, enfrentamento com polcia e tal. Era muito legal, cara. Eu sabia que eu estava vivendo alguma coisa que era histrico. Eu sabia que aquilo era importante. E eu acho que o incio da minha percepo poltica, ela est a, ou seja, o movimento metalrgico do final dos anos 70 e incio dos anos 80, como espectador, e o movimento estudantil do mesmo perodo e a leitura dos pequenos panfletos e jornaizinhos etc., que eram publicados pelo movimento secundarista da poca. Entrevistador E a banda de vocs, tocou alguma vez em algum evento ligado a greve, show de greve? 58

Mau . Quer dizer, o cara pergunta j sabendo a resposta (risos). Na verdade, o primeiro show da gente, da Garotos Podres, em 83, foi num festival organizado pelo fundo de greve do Sindicato dos Metalrgicos de Santo Andr. E bem interessante, a prpria histria do fundo de greve interessante porque todo o sindicato, pela legislao que na poca estava em vigor, podia sofrer interveno do Ministrio do Trabalho. Ento, j prevendo isso, criou-se uma estrutura paralela, os fundos de greve. Criaram-se centros de cultura operria. E alguns sindicatos criaram os fundos de greve, quer dizer, uma instituio separada do sindicato para que, se o sindicato fosse tomado pelo governo, voc tenha uma estrutura que possibilite a sobrevivncia do movimento. E o nosso primeiro show foi durante um festival organizado pelo fundo de greve do Sindicato dos Metalrgicos de Santo Andr. Entrevistador So Bernardo e Santo Andr? Mau No, na poca era s Santo Andr porque era separado. Entrevistador 1 , era s Santo Andr porque era separado, verdade. Entrevistador 2 - Ento, fazendo uma anlise sobre o rockn roll hoje. Era muito comum, na poca, voc encontrar as tribos pela rua, no ? Principalmente na regio do ABC, voc tinha os skins, os punks, tinha os metaleiros, tinha os rockabillies. E todos esses grupos tinham um alinhamento, digamos assim, uma farda que pertencia a uma tribo e normalmente at uma classe social, no ? Que voc via , que voc podia enxergar at pelo tipo de instrumentos que eles tocavam que se relacionavam at, digamos, ao custo desses instrumentos que favorecia. Por exemplo, uma banda de garagem de punk tocava s com aqueles instrumentos que tinha na poca. Mas hoje, a gente v que essas fardas, elas esto venda, no mesmo? Ento voc pode trocar a sua farda hoje, independente da sua 59

classe social e pertencer a uma tribo por algumas horas do dia e voltar a fazer o que voc faz dentro do seu grupo, no ? Entrevistador 1 Voc acha que esse movimento punk e o movimento skin e todos esses outros, essas tribos, elas tendem a deixar de existir, uma vez que voc tem hoje um movimento ligado msica mais relacionado ao modismo e s vestimentas? Mau Bem, primeiro eu vou comear falando de uma coisa pior do que voc disse. Entrevistador Diga. Mau Digamos assim, a sociedade capaz de incorporar valores que, em tese, seriam contrrias a ela. Se ns formos pegar, por exemplo, voltando a 68. Ento, o movimento hippie, flower power e tal, um dos smbolos, que se tornou smbolo, cala jeans, coisa e tal, no sei o qu. Da eu estava lembrando, os mais jovens no devem se lembrar, mas os mais velhos devem. Com certeza se lembram, pelo menos o mais velho, o Ciro, eu lembro de uma marca de cala jeans que criou o seguinte jingle para vender cala, lgico, um jingle que era uma propaganda vinculada televiso. O slogan era: liberdade uma cala velha azul e desbotada. Entrevistador verdade. Mau Ento, a coisa mais perversa que pode existir. Em primeiro lugar, voc associa um ideal de liberdade a um objeto de consumo. Ento, o mais interessante ainda, essa empresa que era a US Top, que alm de vincular a liberdade e um objeto de consumo, ela se prope a vender calas velhas, azuis e desbotadas. Entrevistador No o grau mximo do fetiche da mercadoria? Mau muito interessante como qualquer idia, smbolo ou valor, pode ser incorporado no s comercialmente, porque 60

para que seja incorporado comercialmente, ele tem que ser incorporado ideologicamente. E eu acho que todos esses movimentos urbanos dos anos 80, vide o punk-rock etc., foram, em menor ou maior medida, incorporados, inclusive, pela sociedade de consumo de massa. Um exemplo claro disso, voc tem uma srie de bandinhas bem sem-vergonhas que incorporam a esttica musical do punk-rock e at um pouquinho do visual do punk para fazer msica de corno. o caso do que o pessoal chama, genericamente, de emo, sei l. E essa uma modinha que vem dos Estados Unidos, imitando as bandas como Green Days etc e tal. Ou seja, o cara pega a esttica musical punk que algo que tinha um contedo interessante, o cara pega aquela esttica musical, mas s o nome, CPM 22 ou qualquer coisa parecida, pega uma letrinha que bem poderia ter sido feita por qualquer dupla sertaneja. Entrevistador Roberto Carlos. Mau E fica l: porque o meu amor me deixou e eu estou com dor no corno e no sei o qu, e fica por isso mesmo. Entrevistador Mas tem coisa pior porque na campanha prefeitura do Gilberto Kassab agora, eles pegam uma msica dessas de corno e o toque de guitarra um toque ska. Eu no sei se voc teve a oportunidade de escutar, mas um toque de guitarra ska, numa campanha de um cara que de direita, no ? O que mais louco ainda. Mau , ou seja, na verdade, por isso que eu acho que as pessoas tm que se preocupar muito menos com a forma e muito mais com o contedo porque qualquer movimento poltico, social ou movimento de juventude, isso no interessa. A mdia, ou melhor, a sociedade burguesa capaz de incorporar a forma. Mas sempre deixando o contedo de lado. Uma forma de voc combater uma idia de um movimento incorporar a forma desvinculando, esvaziando o seu contedo. Por exemplo, para muita molecada bem jovem, puta, porque o 61

cara at, pessoalmente, gente boa. Mas para muita molecada bem novinha, punk-rock o Supla. Voc entende? Assim, pessoalmente ele super legal e tal, mas no tem nada a ver com o punk-rock, voc entende? Mas essa coisa, voc incorpora a esttica, mas no o contedo. Entrevistador Mas a forma no revolucionria? Mau No. Entrevistador No? Mau Eu no acho a forma revolucionria. A essncia revolucionria. Ou seja, o contedo, n? Entrevistador E o contedo tem que estar pautado numa circunstncia? Mau Sim. O contedo, ele surge, no que tem que estar pautado, ele est pautado porque as coisas no existem no mundo ideal. As coisas existem no mundo concreto, onde a idia a expresso da estrutura econmica e social. Assim diria o velho e bom amigo, Karl Marx. Entrevistador 1 Agora, Mau, deixe-me fazer uma pergunta, tive a oportunidade de olhar alguns sites na Internet que tratam dessa temtica que a gente est conversando. Sobre o movimento skin etc. E uma das coisas que eu descobri que alguns grupos que so considerados cones do rock, do rock tradicional, tiveram um pezinho l nos mods, e mesmo naquilo que depois, nos anos 70, vai virar skin mesmo, no ? Por exemplo, alguns membros do Pink Floyd, alguns membros do The Who eram, principalmente... Entrevistador 2 O prprio Rolling Stones quando saem nos Estados Unidos, eles fazem reverncia ao soul que naquela poca j estava completamente desgastado e marginalizado, no ? Mau Exatamente. 62

Entrevistador Eles resgatam. Vrios andavam com o Bob Marley, no ? Mau Exato. Os Beatles fazem uma obra fazendo reverncia, no nem referncia, reverncia ao Skak, Obladi, Oblad. Entrevistador 1 at uma coisa meio engraadinha... Entrevistador 2 um ska, no ? Entrevistador 1 O Eric Clapton faz um concerto, se eu no me engano, em homenagem ao Bob Marley, que estava na cadeia nesse perodo tambm, no ? Entrevistador 2 Ento, falando nisso, seria interessante, meio que tentando resgatar um pouquinho para a esquerda o que skin, o que ska, voc tem condies de colocar o que essencial numa discografia para poder entender esse perodo? O que que voc recomenda? Mau Putz, tem muita coisa, cara, muita coisa. Eu teria at dificuldade em indicar... Entrevistador Mas voc citou a Desmond Dekker. Mau Eu acho que em primeiro lugar, Desmond Dekker, porque foi o primeiro jamaicano a fazer sucesso na parada da Inglaterra. Entrevistador Em que ano? Mau 69. Entrevistador 1969? Mau Eu colocaria tambm Judge Dread, que foi o primeiro branco a tocar reggae e ska. Ele teve muito problema com censura porque as msicas dele, para a poca, eram consideradas bem indecentes, cheio de trocadilho e tal. Um cara completamente desconhecido no Brasil, mas que vendeu mais de 20 milhes de cpias de disco, quer dizer, para voc 63

ver como que a cultura musical aqui no Brasil, muito dependente daquilo que as grandes multinacionais impem. Ento, eu acho assim, por exemplo, desse pessoal ligado ao reggae, ska, no final dos anos 60, eu acho que esses... poderia comear por a. Mas, Symarip bem interessante. Entrevistador Esses so os que gravaram Skinhead Girl? Mau , Symarip. Entrevistador Tem o Derek Morgan, tambm? Mau Tem, tem o Derek Morgan, quer dizer, um monte de... Entrevistador Que eram jamaicanos, n? Mau A maioria jamaicanos. Entrevistador Um garoto hoje, que resolve ser skinhead, ele vai ter que ouvir todos esses negros? Mau Sim. Seno o cara no um skinhead. Entrevistador Est certo. Mau Eu acho, por exemplo, dos anos 70, eu acho bem interessante, alm do pessoal do punk- rock, Sex Pistols, Nine Inch Nails, The Clash, Ramones, o pessoal do Two-Tone, eu acho bem interessante, ento, Bad Manners, Specials, Bad News. Todo esse pessoal. Dos anos 80, eu acho que eu pegaria, principalmente, esse pessoal do Oi!. Four Skins, Infra Riot, Rock Speakers, que tinha um guitarrista brasileiro. Rock Speakers, Rock in reverse e assim por diante. E dos anos 90 para c tem muitas bandas novas. Mas assim, os primrdios esto a. Meados dos anos 60 at meados dos anos 80 que est o perodo de formao dessa cultura musical. Entrevistador No Brasil, tem algum? Mau No Brasil, no sei. Tem a gente! 64

Entrevistador Por falar em a gente, voc est trabalhando num CD agora, voc pode falar alguma coisa sobre isso agora? Mau Est muito no comeo ainda. Entrevistador ? Mau que est todo o mundo sem tempo, numa correria. Mas algum dia sai. Mesmo porque no tem pressa porque no existe mais gravadora, no ? CD alguma coisa que eu acho que vai desaparecer. Ento, no tem muita pressa de ficar lanando CD o tempo todo. Entrevistador Pode usar esse negcio de Creative Commons, tambm, no ? Mau O que isso? Entrevistador Creative Commons. licena aberta de direitos autorais, coloca na rede e deixa para quem quiser baixar. Tem uns caras que tudo bem, voc no quer ganhar mais dinheiro, ento, pega e coloca na rede, garante do ponto de vista dos direitos autorais, para ningum vender no lugar de vocs, ningum ganhar dinheiro em cima de vocs e deixa liberado. Entrevistador 2 , tambm uma possibilidade. Mau , porque hoje em dia, CD uma coisa que vende cada vez menos porque tudo j est na rede. Hoje no tem muita pressa no. Entrevistador T. Eu acho que isso a. Entrevistador 2 Voc que um artista, Mau, eu queria fazer uma pergunta para voc: E que time teu? Mau Foi o vento. O resto da resposta voc j sabe (risos). Entrevistador 1 Tambm tem o time de futebol deles. Entrevistador 2 , da Galcia, l. 65

Entrevistador 1 , para terminar a nossa conversa, ento, fale um pouco sobre esse time da Galcia, Galida. Mau Ento, vamos falar s um pouco: Outra vez/ os tempos so chegados/ nessa velha e mtica nao/ Galcia sempre hay en nuestra alma/ o cerca en nuestro corazn/ oi! Entrevistador Em Ritmo da Katyusha! (Risos!)

Manifestao Zcalo protestos de Tlatelolco

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Livros

Engenharia e poderOs construtores da nova ordem em So Paulo Nos fins do sculo XIX, So Paulo possua apenas duas escolas de engenharia: o Mackenzie College e a Politcnica. Numa sociedade que se desenvolvia rapidamente, o conhecimento tcnico e cientfico dos engenheiros tornava-se cada vez mais importante. Ainda assim, os construtores da nova ordem tiveram de disputar idias e espaos para garantir a sua aceitao social. Em Engenharia e poder, Cludio Hiro Arasawa procura detectar o papel inovador e proselitista dos engenheiros na batalha por oportunidades de trabalho e tambm por novos ramos de interveno nos problemas urbanos da cidade, cada vez mais complexos. Neste momento da histria da cidade, os profissionais da engenharia tiveram de interpretar e adaptar as principais correntes de pensamento e experincias internacionais aos recortes urbanos de So Paulo. O livro