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MARIA LUÍSA DIAS DA SILVA
BRASÍLIA: UMA CIDADE EM MOVIMENTO
Brasília
2007
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Letras da Universidade Católica de Brasília, como requisito para a obtenção do título de licenciado em Letras, Habilitação Português e Respectivas Literaturas. Orientadora: Profa. Dra. Mariza Vieira da Silva
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Dra. Mariza Vieira da Silva - Orientadora
______________________________________________
MSc. Dalva Del Vigna
______________________________________________
MSc. Lívila Pereira Maciel
Dedico este trabalho à minha mãe, para mim,
símbolo inestimável de amor, sabedoria e
persistência.
5
Agradeço a toda minha família pelo apoio durante
este percurso da minha vida; ao meu esposo, que me
acolheu nos momentos de cansaço, e a todos os
professores com os quais estudei, especialmente,
minha orientadora, Mariza Vieira da Silva, pela
dedicação e paciência durante a produção deste
TCC.
6
Não sei como é possível escrever numa daquelas cidades
em que as imagens do presente são tão arrogantes, tão
prepotentes, a ponto de não deixar uma margem de
silêncio e de espaço. Aqui em Turim se consegue
escrever porque o passado e o futuro têm mais evidência
do que o presente, as linhas de força do passado e a
tensão relativa do futuro dão concretude e sentido às
discretas e ordenadas imagens do hoje. Turim é uma
cidade que convida ao rigor, a linearidade, ao estilo.
Convida à lógica, e por meio da lógica abre caminho à
loucura.
(Ítalo Calvino, 2006)
7
Resumo
Este Trabalho de Conclusão de Curso teve como objetivo principal compreender o
processo de individualização do sujeito brasiliense em sua relação com uma forma
arquitetônica (simbólica) determinada, tomando como ponto de referência teórica a
formulação e circulação de sentidos em flagrantes urbanos enquanto lugares da cidade se
narrar, de acordo com a Análise de Discurso. Nesse sentido, estruturamos o trabalho de forma
que pudéssemos ir tendo uma compreensão de como a cidade, em geral, é significada e se
significa, assim como o sujeito urbano ao longo da histórica (Capítulo 1), e Brasília, em
particular (Capítulo 2), como parte das condições de produção das formas de subjetivação. A
explicitação do referencial teórico e metodológico da Análise do Discurso, ou mais
precisamente do discurso do urbano e do discurso urbano, fizemos no terceiro Capítulo,
quando delimitamos o nosso corpus: o espaço enunciativo e discursivo de um ônibus, em que
buscamos flagrar essa narratividade urbana. Os resultados obtidos permitiram perceber
posições de sujeito marcadas pela ambigüidade, pela divisão, determinadas pelo espaço
simbólico das formas da cidade. Um sujeito ambíguo como a própria cidade, resultado da
fusão de inúmeras culturas dentro de um espaço idealizado que nasceu para ser símbolo do
diferente. Vimos um imaginário forte, com sentidos estabilizados, circulando nessas posições,
mas também, as brechas que se abrem neste mesmo imaginário, para o que chamamos de
“equivocidade do comum”. E o ônibus se revelou uma janela para o sujeito olhar o mundo,
um lugar para pensar o sentido da narrativa, do poético, do drama, da tragédia, da comédia,
mas também do público, do político.
Palavras-chave: 1. Análise do Discurso; 2. Brasília; 3. Narratividade urbana. 4. Sujeito.
8
Abstract
This final project had as its main goal comprehend the individualization process
present on the brasiliense citizen in your relation to the determined architectonic form
(symbolic), having as theoretical reference the formulation and circulation of senses in urban
flagrant while city places to be narrated, according to the Discourse Analysis theory. In this
context, this project is structured in a way that we could understand how the city, in general,
is signified and signifies itself, as the urban citizen through history (in chapter 1), and
Brasília, in special (in chapter 2), as part of the production conditions of the subjective
forms.The theoretical and methodological explicit of Discourse Analysis, especially about
urban discourse, was presented in the third chapter, when we delimitated our corpus: the
utterance and discursive space of a bus, in which we seek this urban narrative.The founded
results leaded to perceive citizens positions remarked by ambiguity and division, determined
by the symbolic spaces of the city. An ambiguous citizen as its own city, resulting in the
fusion of innumerous cultures inside of a space which was idealized to be the symbol of
unique.We perceive a strong imaginary, with stabilized senses circulating in these positions,
but also the gaps that are revealed in the same imaginary, for what we call “mistake of
common”. And the bus showed the citizen looking the world through a window, a place to
reflect the narrative meaning, of poetical, of drama, of tragedy, of comedy, but also of public
and political.
Key-words: 1. Discourse Analysis; 2. Brasília; 3. Urban narrative. 4. Citizen.
Sumário
Resumo______________________________________________________________ 7
Abstract______________________________________________________________ 8
Introdução___________________________________________________________ 10
Capítulo 1- A cidade: um percurso histórico_________________________________ 12
Capítulo 2 - Brasília: entre riscos e sonhos, entre história e memória _____________ 22
Capítulo 3 - O discurso do urbano e discurso urbano__________________________ 32
Capítulo 4 - A cidade se narrando_________________________________________ 40
Conclusão ___________________________________________________________ 51
Referências Bibliográficas ______________________________________________ 53
10
Introdução
Este Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) nasceu de um percurso que foi se
desenvolvendo ao longo dos semestres em que predominou a vontade de trabalhar com a
Análise do Discurso e com a questão do sujeito da forma como ela ali ganha uma articulação
própria. Meu objetivo primeiro foi, então, o de trabalhar os processos de individualização do
sujeito em sua relação com o Estado.
E Brasília? Como entrou nessa proposta?
Ao ler um artigo de Eni P. Orlandi, “Tralhas e troços: o flagrante urbano” (2001),
em que trata da formulação, aparição e circulação de sentidos da cidade em montagens
textuais em que estaria presente o que ela chamou de “narratividade urbana, e um de Mariza
Vieira da Silva (2003), intitulado “Destino: Brasília”, em que analisa os processos de
individualização do sujeito brasiliense em sua relação com o espaço, comecei a pensar em
como poderia articular as questões que os textos traziam. Como pensar nesses flagrantes
urbanos enquanto lugares da “cidade se narrar”, de “desorganização de falas organizadas”,
enquanto modos de repetição de sentidos, mas também de rupturas, de deslocamento, em uma
cidade como Brasília em que sua arquitetura, seu traçado, nos dizem que tudo deve ter seu
lugar devido e de direito? Como isso, de certa forma, funciona no imaginário das pessoas que
vivem aqui? No início, quero dizer, que era tudo muito difuso ainda, mas ao mesmo tempo,
provocava uma avalanche de idéias e questões.
Com isso tudo (e muito mais) em mente, chamou minha atenção ao andar de ônibus
do Plano Piloto para as Cidades Satélites, pessoas, muitas vezes adolescentes, que vendem
balas, doces, canetas amendoins e vários outros objetos, ou fazem espetáculos, de caras
pintadas, e fazem mil palhaçadas entre uma parada e outra do coletivo. A cidade se narrando?
Os “flagrantes” são modos próprios de aparição das cidades. Em Brasília, eles pareciam se
tornar mais visíveis, devido a seu projeto imaculado de organização, como veremos no
Capítulo 2. Quem eram esses sujeitos outros que não aqueles cidadãos administrativos que
trabalham no centro do poder? Seriam aqueles que atestam essa organização ou que
desorganizam o espaço burocrático urbano?
Começamos, então, nossas leituras sobre cidades, sobre Brasília, pois esse é o modo
de a Análise de Discurso, nosso referencial teórico e metodológico, construir seu dispositivo
analítico do qual faz parte a delimitação do corpus, em um diálogo contínuo com seu
11
dispositivo teórico. Desta forma, fomos delineando a estrutura do trabalho (os capítulos),
delineando nossa questão norteadora e precisando o nosso corpus.
Assim, este TCC se constituirá de quatro capítulos. No primeiro, fizemos um breve
percurso histórico pelas cidades da Era Antiga, Medieval e Contemporânea, procurando
mostrar o modo de individualização do sujeito nesses períodos, tomando como base um livro
de Le Goff “Por amor às cidades” (1988) e um artigo de José Horta Nunes ( 2001)
denominado “O Espaço Urbano: A “Rua” e os Sentidos Públicos”.
No segundo Capítulo, tratamos do projeto “idealizado” da cidade de Brasília, do
sujeito que aqui chegou inicialmente, vindo das diferentes regiões do Brasil (e de seu conflito
e confronto entre imaginários), e do surgimento das Cidades Satélites, evidenciando um
sistema de divisão, mas também de circulação de sentidos. Se no artigo de Silva (2003), o
outro do habitante do Plano Piloto era/estava na cidade de onde os moradores da nova cidade
vieram, agora, parecia, que essa relação se punha entre o morador do Plano e o das Cidades
Satélites.
No terceiro Capítulo, explicitamos o nosso referencial teórico, principalmente
aquelas noções que trabalharíamos neste TCC. Neste ponto, formulamos nossa questão
norteadora. Como o sujeito brasiliense se individualiza em uma cidade em movimento
(movimento contraditório), que se narra de diferentes formas? Decidimos, então, que o
próprio ônibus é que seria o nosso corpus para mostrar a narratividade urbana se constituindo
por meio dos seus vendedores, mas também dos seus passageiros. O ônibus em movimento,
um instrumento literal para se ver a cidade em constante movimento não só em termos de
espaço e tempo, mas também de sentidos. Um flagrante do cotidiano.
No quarto e último Capítulo, procedemos à descrição e análise do corpus por
entrevistas (conversas) não formais com vendedores de objetos e com alguns passageiros de
ônibus que tomamos em dias distintos. Os resultados mostraram a presença de posições de
sujeito marcadas pela ambigüidade, pela divisão, que o espaço simbólico das formas da
cidade determina. Um sujeito ambíguo como a própria cidade, resultado da fusão de inúmeras
culturas dentro de um espaço idealizado que nasceu para ser símbolo do diferente.
E o ônibus se revelou um espaço denso e opaco para se entender esse processo de
individualização do sujeito: uma janela para o sujeito olhar o mundo; um ponto de encontro-
desencontro dos sujeitos urbanos. Um espaço enunciativo e discursivo para o sujeito urbano,
o cidadão brasiliense, no seu cotidiano, (re)significar o comum da sua vida comum.
12
CAPÍTULO 1
A cidade: um percurso histórico
Ao longo dos anos, dos séculos, a cidade passou por grandes transformações, algumas
coisas foram abolidas, muitas, ressignificadas e, ainda, outras novas foram surgindo. Com
isso o modo de atuação, participação, convivência dos cidadãos com a cidade, ou seja, o
sujeito urbano e, consequentemente, suas relações com o Estado mudaram também de alguma
maneira ao longo da história.
No livro “Por Amor às Cidades” de Jacques Le Goff (1988), já na introdução é
possível observar essas mudanças, quando ele faz uma comparação entre a cidade Antiga e a
Medieval e vai pontuando as diferenças entre essas duas épocas, possibilitando pensar sobre
os diferentes processos de subjetivação aí presentes. O anfiteatro, por exemplo, que era lugar
de grande diversão na Antiguidade, é abolido com o cristianismo. O estádio que era lugar de
exposição do corpo, da forma e dos jogos olímpicos na antiga Grécia, passa a não existir na
Idade Média, devido a uma nova forma de significar os esportes praticados, nesse período,
pelos nobres como exercício militar. Somem as termas e aparecem as saunas, lugares de
cuidar da higiene, mas também de má reputação, já que estas funcionavam como bordéis. As
relações nas praças públicas também mudam, não há mais os fóruns em que os cidadãos se
encontravam para discutir sobre negócios. As discussões passam a se dar nas igrejas, mais
especificamente no átrio. Hoje na contemporaneidade, poderíamos dizer que algumas dessas
relações sociais se dão nos barzinhos, “shoppings”, onde a praça toma novo significado, o de
praça da alimentação.
Podemos observar que, em termos de processos de individualização do sujeito em sua
relação com a cidade, as modificações nos espaços de lazer, de discussão e de relação com o
corpo, produzem novos sentidos para esses espaços, mas também para o sujeito e para as
relações entre sujeitos. Outras discursividades vão, assim ganhando espaço. Essas questões
estão, pois, intimamente ligadas a sociedades e culturas distintas. Na Grécia, os espaços
públicos eram lugares de lazer e diversão, sem a presença dos sentidos do discurso da moral;
já na Idade Média, sob a influência do cristianismo, esta discursividade parece ir ganhando
espaços nos processos de subjetivação.
Ao pensar na contemporeneidade, sabemos do enorme salto histórico dado. No
entanto, achamos que conhecer e compreender o passado é um modo de refletir sobre o
presente. Assim, poderíamos dizer que a “praça da alimentação” pode ser analisada e
13
compreendida em uma outra estrutura econômico-social: a do capitalismo globalizado, em
que o processo de subjetivação está marcado pelo consumismo, ou seja, teríamos uma outra
posição de sujeito: a de sujeito urbano consumidor. É interessante observar ainda, o
deslocamento espacial da praça para os locais que funcionam como centros de
comercialização e consumismo que são os “shoppings”. E é comum ouvir atualmente uma
expressão tipicamente urbana “estava estressado e fui dar uma volta no shopping para fazer
umas compras”. Essa ilusão atinge não somente os ricos, mas também aqueles que tenham
pelo menos um emprego (mesmo que não pague tão bem), e podem se comprometer com
infinitas prestações. Nesse caso, o lazer e o prazer também são deslocados, e o comprar torna-
se fonte de satisfação, o que em outras épocas se dava com outros valores e de outras
maneiras. Observe um trecho do livro “Cidade dos Sentidos” de Orlandi (2004):
Em uma sociedade como a nossa, o sujeito urbano é o corpo em que o “capital” está investido. Num espaço urbano (habitado) de memória e subjetividade, a história se formula na noção do “eu urbano”. (p. 28)
Essa questão do consumismo que atinge o sujeito moderno e urbano pode ser visto e
compreendido, tomando outra discursividade para reflexão: a literária, com o poema de
Drummond, “Eu, Etiqueta”.
Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório, um nome... estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produto que nunca experimentei Mas são comunicados aos meus pés. Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidência, costume, hábito, premência, indispensabilidade,
14
e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado. Com que inocência demito-me de ser eu que antes era e me sabia tão diverso de outros, tão mim-mesmo, ser pensante, sentinte e solidário com outros seres diversos e conscientes de sua humana , invencível condição. Agora sou anúncio, ora vulgar ora bizarro, em língua nacional ou em qualquer língua ( qualquer, principalmente). E nisto me comprazo, tiro glória de minha anulação. Não sou – vê lá – anúncio contratado. Eu é que mimosamente pago para anunciar, vender em bares festas praias pérgulas piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espalhavam, e cada gesto, cada olhar cada vinco da roupa resumia uma estética? Hoje sou costurado, sou tecido, sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como signos de outros objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é coisa. Eu sou coisa, coisamente. (p.54)
Mas, voltemos ao texto de Le Goff (1988). Outro ponto interessante entre a cidade
Antiga e a Medieval é a relação que se dá com os mortos. Os gregos e romanos os impeliam
para fora da cidade; na Idade Média, “o cristianismo urbaniza os mortos, e a cidade torna-se
15
também a cidade dos mortos” (p.11). Isso nos leva a perceber a força do discurso do urbano
que atinge não somente os vivos, mas também os mortos1. A idéia de ligação do cemitério
com o religioso que temos hoje é retomada somente mais tarde a partir do século XIII.
As cidades medievais se caracterizavam pelas suas muralhas e fortificações, surgindo,
então, os arqueiros que também são encarregados de protegê-las de invasões externas. Na
Idade Antiga, para os gregos, os que não habitavam as cidades eram considerados bárbaros,
na Era Medieval essas pessoas são consideradas pagãs, e a cidade denota educação, bons
costumes, elegância. Durante esse período as cidades eram dominadas pela nobreza, a igreja e
pelo exército e estes tentavam controlar ou dominar as ações, desejos e pensamentos dos
cidadãos. A cultura, o conhecimento ficava sob o poder da igreja2. Vemos, aí, o processo de
subjetivação desse sujeito urbano em relação ao outro, ao estrangeiro, produzindo a exclusão
dos contrários3.
As mudanças se dão também na arquitetura e na urbanização, as ruelas fétidas e sem
infra-estrutura começam a ser pavimentadas. “Perto de 1200, Felipe Augusto saindo de seu
palácio da Cité, num dia chuvoso, atola na rua. Ele manda pavimentar uma parte das ruas de
Paris” (LE GOFF, 1988, p.113). Na arquitetura das igrejas, as torres apontavam para o céu em
direção a Deus. Porém, ainda no século XII, na França, a arte gótica se faz presente nas
igrejas, essa arte e “a escolástica das novas escolas urbanas estabelecem, como norma de
urbanismo, ordem e luz, matemática e razão cor e verticalidade” (LE GOFF, 1988, p. 114).
Um mundo que antes era bastante rural, no caso a Idade Média, a cidade se localizava
basicamente entre as muralhas e ao redor de longos campos cultiváveis. Com a queda da
monarquia e ascensão da burguesia o mundo já começa a deixar de ser agrário; surgem outras
atividades como o artesanato e o comércio e com as grandes navegações, as relações de trocas
que antes eram feitas somente pela terra se expandem também pelo mar e “as cidades
geralmente eram portos” (LE GOFF, 1988, p.44), e o homem começa a penetrar em lugares
antes não permitidos (devido aos limites impostos pelo mar) e as distâncias diminuem até se
tornarem muito pequenas, se comparada às de antigamente e, praticamente, irrisórias, por
meio do avião, coisa inimaginável para quase todas as pessoas da época medieval.
1 Atualmente, nas grandes cidades, já se enfrenta não somente o problema da super população dos
vivos, mas também, dos mortos nos cemitérios. 2 O filme “O nome da rosa” mostra bem esse fato. 3 Isso nos leva a pensar na relação, em Brasília, entre os moradores do Plano Piloto e os das Cidades
Satélites, do que trataremos no próximo Capítulo.
16
A cidade que antes era fechada por grandes portões (o poder que estava centrado no
rei, na igreja e no exército) se expandiu, ocupou mais espaços com o surgimento da burguesia,
que tinha como atividade o comércio e, conseqüentemente, o lucro. Com o triunfo do
capitalismo e dessa classe mais tarde, no século XIX, “o mundo conhece uma nova revolução
urbana, a da cidade, nascida da revolução industrial” (LE GOFF, 1992, p.5). As cidades que
antes eram adaptadas ao sistema senhoril começam a ter outra cara, a moeda começa a
circular com maior velocidade devido a lei da oferta e da procura, a relação de senhor e
vassalo dá lugar a outra ordem de trabalho, e o sujeito que se mostrava de certa forma
obediente e servil, com a moral religiosa passa a conhecer outros modos de vida. Em Análise
de Discurso, dizemos que aí se dá a passagem da forma-sujeito religioso para a do sujeito
capitalista: um sujeito jurídico.
Até o século XIX, persiste na cidade certa atividade rural. Somente a partir desse
século é que há a desruralização da cidade (LE GOFF, 1988, p.32). Isso é possível observar
no Brasil onde antes predominavam as atividades rurais, o cultivo da cana-de-açúcar e do o
café, a presença dos senhores de engenho, dos barões, dos escravos, posteriormente dos
camponeses (imigrantes). Assim a cultura brasileira se assenta em uma base
predominantemente rural. Para o geógrafo Milton Santos (1996), “Toda a nossa história é a
história de um povo agrícola, é a história de uma sociedade de lavradores e pastores. É no
campo que se forma a nossa raça e se elaboram as forças íntimas de nossa civilização” (p.17).
No início, as “cidades” brasileiras eram formadas por pequenas vilas; mais tarde, a
partir do século XVIII, com a cana-de-açúcar, os senhores de engenho começam a ter como
residência fixa a casa da cidade “indo à sua propriedade rural somente na época do corte e da
moenda da cana” (SANTOS, 1996, p.19). Depois no período de mineração, surgem cidades
no atual Estado de Minas Gerais por mais que essas cidades se constituíssem de forma bem
estruturada com sua arquitetura barroca. Se pensarmos bem, isso estava ligado ao pensamento
do homem europeu, e não necessariamente à cultura do país. O período massivo de
urbanização no Brasil começa bem mais tarde.
Na Literatura, também podemos observar essa relação entre o mundo urbano e
mundo rural do cultivo e da terra (mesmo que inicialmente não se tivesse intenção de cultivo,
mas sim basicamente de exploração.) Na carta de Pero Vaz de Caminha, considerada
literatura de informação, há a descrição desse novo continente de terra abundante e beleza
exótica. Mais tarde, esse rural de maneira idílica e bucólica irá aparecer nas obras de vários
poetas, como, por exemplo, Cláudio Manoel da Costa, poeta inconfidente que habitava em
Minas Gerais, o centro econômico da época com a extração do ouro. É importante observar
17
nas poesias desse período uma fuga da cidade, que já se mostrava consolidada, para o campo,
evidenciando uma adesão ao pensamento do filósofo francês Jean Jacques Rousseau: a de que
o homem nasce bom, porém a civilização o corrompe talvez isso também manifestasse um
sujeito desiludido que buscava alternativa de vida no campo ou em um lugar idealizado, e na
ruptura das relações de poder com o governo monárquico. Observe os versos abaixo do poeta
Cláudio Manoel da Costa, retirado do livro “Poemas Escolhidos”:
Torno a ver-vos ó montes; o destino Aqui me torna a pôr nestes oiteiros; Onde um tempo os gabões deixei grosseiros Pelo traje da corte rico, e fino. Aqui estou em Almendro, entre Coino, Os meus fiéis, meus doces companheiros, Vendo correr os míseros vaqueiros Atrás de seu cansado desatino. Se o bem desta choupana pode tanto, Que chega a ter mais preço, e mais valia, Que da cidade o lisonjeiro encanto; Aqui descanse a louca fantasia; E o que te agora se tornava em pranto, Se converta em afetos de alegria. (p.54)
Essa característica de um país rural aparece também, de uma outra forma, em obras de
Graciliano Ramos como “São Bernardo” em que o título do livro refere-se a uma unidade
agrária, a fazenda. Em “Vidas Secas” aparece a paisagem de um Nordeste maltratado pela
secura da terra, do homem, da língua. Não estamos dizendo que seja objetivo do autor retratar
aí a situação do País, mas ele se apropria desta para refletir sobre questões mais complexas
como a relação do homem com o mundo. Queremos somente evidenciar esse traço marcante
da sociedade brasileira e, conseqüentemente, o modo de individualização do sujeito, desse
sujeito urbano marcado constitutivamente pelo rural.
Em Brasília, nosso objeto de estudo, achamos que essa relação, às vezes conflituosa,
se faz muito presente, seja pelas diferenças entre Plano e Cidades Satélites, seja pela origem
de sua população. O fato é que pensamos que isso afeta a constituição da posição sujeito
urbano no Brasil. Com o crescimento urbano acelerado que aconteceu nos últimos anos as
cidades passaram a concentrar mais de 70% da população brasileira.
Atualmente já não se observa funcionado a representação do campo como lugar de
refúgio das mazelas causadas pela cidade, mas, sim, um trabalho de adaptação ou de inserção
desta no campo, por meio de elementos tecnológicos inerentes às cidades atuais como o
18
telefone, a internet: uma urbanização do campo. A preocupação maior agora é como aprender
a sobreviver em um espaço onde tudo parece estar em constante movimento, em um mundo
que antes se mostrava calmo; e a impressão que nos dá é que as coisas aconteciam mais
devagar. A cidade parece ter vida própria e é esse lugar desafiante e suas relações com seus
habitantes ou como seus habitantes significam nesse espaço que será matéria de estudo deste
trabalho. Não em qualquer cidade mas, em uma especial, como veremos nos capítulos
seguintes.
Esse percurso histórico que Le Goff nos mostra, evidenciando transformações
nos sentidos atribuídos à cidade, ao urbano e ao sujeito que ali se individualiza, se subjetiva,
podemos percorrê-lo também no artigo de Nunes, denominado “O Espaço Urbano: A “Rua” e
o Sentido Público” (2001). Interessa-nos observar, neste artigo, o processo de
individualização do sujeito nesse percurso, nessa história, nessa transformação do espaço
urbano e social, que se pode compreender a partir da análise de dicionários, entendidos como
objetos discursivos.
Nunes constitui seu corpus com os seguintes dicionários de Língua Portuguesa dos
séculos XVIII ao XX: Vocabulário Portuguez e Latino de Rafael Bluteau (1712), Dicionário
de Língua Portuguesa de Antônio de Moraes e Silva (1789), Dicionário Contemporâneo da
Língua Portuguesa de F. J. Caldas Aulete (1881), Grande e Novíssimo Dicionário da Língua
Portuguesa de Laudelino Freire (1954) e Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio
B. de H. Ferreira (1975). A análise foi desenvolvida por Nunes da seguinte maneira: primeiro
foi feito a delimitação do conjunto dos termos “rua” e seus derivados em cada obra, depois
uma análise das definições utilizando noções e procedimentos da Análise do Discurso. Para
que se possa acompanhar a análise proposta por Nunes e a nossa argumentação, faremos a
transcrição dos termos, selecionados por ele, considerando o sistema de remissão que
caracteriza o funcionamento do dicionário. Os asteriscos, segundo Nunes, indicam o termo
novo em relação aos dicionários anteriores.
19
Bluteau Moraes Aulete Freire Aurélio (1712) (1789) (1881) (1954) (1975)
arruado arruado arruassa* arruaça arruaça arruar arruador* arruador arruação* arruação rua arruamento* arruamento arruaçar* arruaçar ruão arruar arruar arruaceiro* arruaceiro rua rua arruadeira* arruado ruão arruado arruador arruador arruamento arruar arruar rua rua ruaça* ruaceiro ruaceiro* ruador ruador* rueiro* ruão ruela* ruão
Segundo Nunes, o acréscimo significativo no número de termos, a partir do século
XX, vai de par com a consolidação da República e a intensificação do processo de
urbanização nesse período. Mas, vamos acompanhar a análise do início. Em Bluteau (1712),
“rua” e seus derivados se distribui da seguinte maneira: o espaço (“rua”), o sujeito da cidade
(“ruão”) e a ação sobre a cidade (“arruar, arruado”); já em Moraes (1789), aparece um outro
sujeito ao lado de “ruão”: trata-se do “arruador”, um sujeito que começa a perturbar a ordem
urbana, e o termo arruamento que indica uma ação sobre a cidade. É interessante observar aí
essa relação sujeito-espaço, no caso, urbano, e essas denominações determinadas, de certa
forma, pelo discurso político e social, na tentativa de permanência da ordem e do espaço
idealizado.
O novo termo “arruaça “que aparece em Aulete (1881), traz outra série de
denominações: dos acontecimentos urbanos. Em Freire (1954), isso se expande e surgem
outros termos como “arruação, arruaçar, arruaceiro, ruaça” e outras denominações de sujeitos
urbanos (“ruaceiro, ruador, arruadeira”). No Aurélio (1975), surge o termo “rueiro “(sujeito
citadino) e o diminutivo de rua (“ruela”). Para Nunes, esse recorte feito da nomenclatura
permite a formação de um léxico do espaço urbano, com significações envolvendo sujeitos,
ações sobre a cidade, e acontecimentos, sendo a última série dos verbetes, marcada pela
repetição de “arruaça”, que se iniciara no século XIX, marcando o fato da “rua” começar a ser
definida como espaço público.
A cidade de Bluteau (1712) é definida como uma cidade ordenada, a “rua” é definida
como “espaço que há entre as casas de uma cidade, para passagem de gente”. Há
20
predominância da definição espacial do termo que funciona como passagem e instrumento
organizador do social. Ligados morfologicamente ao termo “rua”, aparecem “ruão, arruar” e
“arruado”. Esses verbetes levam, segundo Nunes, a três trajetos temáticos do espaço (rua), do
sujeito (“ruão”) tido como cidadão, e o da organização da cidade (“arruar, arruado”). Nesses
dois últimos termos, percebe-se uma ação organizadora, uma voz que organiza a cidade,
mapeia seu espaço, dividindo-o em ruas. Essa divisão tem como critério as profissões. É
possível observar através dessa divisão a formação da cidade burguesa onde aqueles que têm
o mesmo ofício são localizados na mesma rua.
Se em Bluteau (1712), a cidade era organizada, em Moraes (1789) o termo “rua” já
começa sofrer algumas modificações em seus sentidos. A rua passa a ser “um lugar de
passeio” e a cidade começa a representar os comportamentos dos sujeitos no espaço urbano. O
surgimento do verbete “arruador “indica um novo sujeito: “valentão, que corre as ruas
fazendo o mal, desordens com as mulheres” e até mesmo o termo “ruão”, que antes era tido
como cidadão, toma outro significado de “gente que mora arruada em cidade, villa”, habitante
da cidade. A desordem na cidade está associada ao sujeito (“arruador”) e não ao espaço
(“rua”). Aí já se percebe sinais de desordem, conflitos que irão se materializar nos modos de
subjetivação e nos efeitos de sentido.
No dicionário de Aulete, essas modificações aumentam, a rua passa a ser vista não
apenas como espaço público povoado de conflitos e desordens, mas também de diferentes
grupos sociais. A cidade passa a exibir junto com a organização sinais de confrontos
desorganização. O aparecimento do termo “arruaça “significando “motim de arruadores” traz
um outro lugar de significação que não é do espaço, do sujeito nem da organização da cidade,
mas de um acontecimento aqui no caso conflituoso. Aparece também, a locução “pôr na rua”
e a interjeição “rua”, significando expulsar mostrando aí, a tensão entre espaço público e
privado.
O verbete “arruar“ vai além do sentido de “dividir em ruas”, e significa” andar
passeando como vadio ou arruador”. O termo “ruão “perde o sentido de “cidadão” como era
em Bluteau e de “habitante de rua” em Moraes e, assim, o lugar da cidadania se transforma
em lugar de “vadiagem”. Além desses verbetes aparecem ainda, nesse dicionário outros
termos como “moço da rua”, com o sentido de vadio e gaiato e “mulher de rua”, com o
sentido de prostituta. Há uma extensão de sentido de rua para os habitantes que ali se
encontram. “Rua” vai além do seu significado inicial de caminho, espaço de passagem para
significar os sujeitos e as ações desses no espaço público. O que Nunes vai chamar de
21
processo de subjetivação do espaço público que, segundo ele, continua em Laudelino Freire
(1954).
Inicialmente os conceitos de “rua”, em Freire, são bastante parecidos com os de
Aulete, porém em seguida, há um deslocamento, quando aparece a acepção “ a classe inferior
da sociedade; a plebe”. O termo “ruão” toma outro sentido o de “plebeu, homem do povo,
peão”. Há uma passagem do sentido antigo “cidadão” para “homem civilizado da rua ou
cidade, em contraposição ao homem rude, do campo”. A rua quanto ao espaço social, é
associada à classe baixa, ao plebeu. Aparecem outros termos em Freire ligados ao sujeito
como “arruaceiro” (“sujeito que faz arruaça”) “arruadeira“ (“mulher que está na rua,
prostituta”), “ruaceiro” (“o mesmo que arruaceiro”), “ruador” (“indivíduo que passa grande
parte do dia fora da casa”).
Nunes declara que os deslizamentos, “efeitos metafóricos” (Pêcheux, 1990) de sentido
em Freire permitem ver a formação de uma representação de classe para o espaço da rua em
que as desordens, os conflitos deixam de partir de atitudes individuais ou de pequenos grupos
para serem atribuídos a uma classe social, que é a classe baixa.
No último dicionário analisado, Aurélio (1975), há a introdução de novo sentido ao
definir “rua”, como “via pública para circulação urbana, total ou parcialmente ladeada de
casas”, evidenciando a presença do discurso do urbano. Historicamente a “rua” é vista como
espaço de: 1) passagem, 2)passeio, 3) circulação. A metáfora da “circulação” utilizada no
planejamento urbano leva a considerar a cidade como um sistema orgânico, dividido em
artérias destinadas à circulação de veículos. Ainda, segundo o autor, o termo circulação pode
significar também, uma movimentação contínua em oposição ao sentido de estar parado, ou
estar passeando despreocupadamente, e a “rua” passa a ser um elemento do urbanismo,
relacionada ao setor de transporte.
O caminho percorrido permitiu-nos historicizar a noção de cidade e de sujeito urbano,
bem como diferentes processos de individualização deste sujeito e da constituição de sentidos
que ali se produzem. Para a AD, as condições de produção da significação de e para a(s)
cidade(s) são elementos estruturantes do dizer.
22
CAPÍTULO 2
Brasília: entre riscos e sonhos, entre história e memória
Criada já com o intuito de ser a capital do País, Brasília nasceu com seu destino
traçado entre riscos e sonhos. Brasília, com os traços modernos de Lúcio Costa, com a
valorização dos espaços vazios no centro dos blocos, como diz o arquiteto Milton Braga, com
sua forma de avião, seguindo o plano geográfico da Região, anunciava um tipo de cidade
diferente das existentes no restante do Brasil.
Com ela, também, estava sendo construído o Centro Político Nacional, espaço
privilegiado do Estado: uma cidade do futuro, idealizada, milimetrada, materialização da
arquitetura moderna, pólo desenvolvimentista do País e que tinha como mecenas o próprio
Estado. Assim, deveria nascer de um plano inédito e grandioso que a diferenciasse das outras
cidades e, quem sabe, ajudasse na transformação do Estado em direção à justiça e eqüidade.
Afirmavam os membros do júri do concurso que iria escolher o melhor desenho da nova
cidade:
Em Brasília não deverão desenvolver os sistemas de vida já definitivamente banidos das nações civilizadas, nem em Brasília deveriam as autoridades consentir na implantação dos mesmos métodos rotineiros em vigor por esse Brasil; Brasília não é uma cidade qualquer, mas a capital do Brasil, planejada e idealizada para tal. (PAVIANE, 1985, p.112)
Essa cidade, pura e higienizada das mazelas existentes em São Paulo, Rio de Janeiro,
Salvador..., símbolo de beleza e de poder, cidade prometida de onde jorraria leite e mel,
trouxe aos seus construtores, na maioria formada por nordestinos que fugiam da seca e da
pobreza, um outro modo de vida conflitante com o já vivido anteriormente. Seu imaginário
marcado pelas esquinas, conversas ao fim da tarde nas portas das casas, superstições,
quermesses, novenas se depara com algo novo, inesperado como afirma Silva em seu artigo
“Destino: Brasília” (2003).
Ao rumar para Brasília o sujeito se depara com o inesperado- com outra ordem significante- desorganiza, se desestabiliza, ao buscar o sentido sempre lá para um referente que se esfumou, ao procurar um memorável de um imaginário que se rompeu, uma vez que “a cidade de Brasília fica fora da cidade”. (p.34)
23
O rompimento com essa memória de cidade tradicional se dá principalmente, com o
conceito de rua, trabalhado no artigo de Silva (2003). Como quase tudo em Brasília essa
mudança parece ter sido pretendida, pelo menos é o que revela a fala de seu urbanista, Lúcio
Costa: “se Brasília tivesse ruazinhas seria uma cidade convencional”. (Folha de São Paulo:
11/02/2007). Mas, o rompimento com o passado, com a memória, não era assim tão radical,
mesmo porque seria impossível. Assim, segundo Milton Braga (Folha de São Paulo- Caderno
+Mais, de 11/02/2007), Lúcio Costa aproveitou tudo o que havia de bem sucedido nas cidades
de que gostava: os grandes gramados ingleses, as perspectivas de Paris, a pureza da distante
Diamantina dos anos 20. Braga declara ainda, que Lúcio Costa usou toda a história do
urbanismo para fazer Brasília, e não só a arquitetura moderna.
Já Oscar Niemeyer, construtor de Brasília, considerado um dos maiores símbolos da
arquitetura nacional, tem outra opinião com relação ao antigo e ao moderno. Na Literatura, na
arte, há o que alguns críticos chamam de boa e ruim; na arquitetura, segundo Niemeyer,
misturando suas palavras com as de um outro arquiteto, em entrevista concedida ao Correio
Braziliense do dia 11 de abril de 2003, declara que o importante é a criação, a novidade, a
surpresa. Nisso ele tem razão, pois quem chega a Brasília pela primeira vez, se vê diante do
novo, do diferente, do surpreendente, independentemente da cidade ter agradado ou não.
Imponente, arquitetônica, Brasília nasceu de um gesto primário, dois eixos se cruzando, o próprio sinal da cruz. como quem pede benção ou perdão. (BEHR, 2004, p.108)
Com suas quadras, superquadras, blocos (no lugar de edifícios), vias W3, L2, W2, L4,
W5, essa cidade de endereçamento peculiar, com mistura de letras e números, indicando sinal
de racionalidade, ou talvez uma tentativa de rompimento com uma memória histórica, traz
estranhamento para quem está acostumado a outro modo de vida e se propõe a viver em
Brasília.
Silva (2003) reproduz o depoimento de um jornalista americano, quando dividia um
quarto com um brasileiro (brasiliense) em Berlim.
Quando eu fui embora, ele me deu um endereço que mais parecia um CEP gigantesco.
“Qual é a rua onde você mora?”, perguntei. “Não moro em uma rua.” Na verdade, moro
em Brasília. É uma cidade muito estranha, o tipo de cidade que você encontraria mais no
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espaço do que em qualquer outro lugar, como uma colônia espacial. Ninguém tem
endereço porque nós não moramos em ruas, vivemos em “superquadras”. (p. 38)
Ninguém melhor que os poetas para expressar com leveza, encanto, mas não sem
profundidade e até comicidade, esse impacto. Observe os trechos a seguir do poeta Nicolas
Behr, primeiro em uma fala de uma entrevista e, em seguida, em um poema do livro “Eu
engoli Brasília” (2004).
A superquadra, para mim, era uma coisa realmente nova, impessoal e aterradora. Saí do mato para morar na maquete... ( p. 55).
NAQUELA NOITE SUZANA ESTAVA MAIS W3 DO QUE NUNCA TODA EIXOSA CHEIA DE L2 SUZANA, VAI SER SUPERQUADRA ASSIM LÁ NA MINHA CAMA. (p.87)
Quando Behr fala “MAIS W3”, “TODA EIXOSA”, “CHEIA DE L2”, “VAI SER
SUPERQUADRA” podemos ver aí um trocadilho figurando sentidos entre o corpo físico da
cidade e o corpo da mulher em questão, ou seja, cidade e sujeito se interrelacionando. Orlandi
(2004, p. 36-37) diz que:
O trocadilho é definido como jogo de palavras dando margem a equívoco, trocas, tenções dobradas. Mais especificamente, em termos jurídicos, é definido como o voto que os juízes divergentes dão em separado, Vamos, de um lado, reter a questão do equívoco, das tenções dobradas, na perspectiva discursiva, ou seja, como falha estruturante, e, de outro, guardar da definição jurídica o aspecto da “divergência”.
Redefinindo então o trocadilho discursivamente diremos que ele se apresenta como fato de linguagem marcado pelo redobramento de sentidos que tem na base um caráter divergente trabalhando o equívoco nas relações de sentidos.
A palavra “eixosa”, usada pelo poeta brasiliense, refere-se a dois eixos - norte e sul –
que cruzam todo o Plano Piloto. O que nos faz pensar em outras relações e efeitos de sentido.
Assim como a poesia futurista refere-se a elementos que lembram máquinas, Brasília trouxe
no seu corpo físico nomes e formas ligados também a máquinas: eixos, avião. Esses eixos –
avenidas - são largos e amplos, parecem ter sido feitos especialmente para os carros. É uma
25
cidade que, desde o seu projeto original, deu grande importância aos longos espaços vazios
com árvores e gramas e, assim, os seus locais não são próximos e os percursos difíceis para o
pedestre. Caminhar em Brasília, por mais que seja uma cidade plana (o que possibilita avistar
um monumento a uma longa distância), é uma verdadeira penitência, evidenciando uma total
dissonância com uma cidade que parece ter sido feita para se locomover de carro. O caminhar
aqui em questão, não está relacionado às caminhadas feitas entre as quadras pelo sujeito do
Plano Piloto e, sim, os sujeitos outros que caminham por motivos vários: seja para
economizar com passagem ao tentar chegar a pé em outro lugar considerado próximo ou por
outra razão que circula no imaginário dos sujeitos de outras cidades do país como o que
veremos a seguir.
Em reportagem denominada “Na diagonal sempre na diagonal”, escrita por Ignácio
de Loyola Brandão para o Correio Braziliense de 21 de abril de 2006, o escritor revela bem
esse dilema do andar em Brasília diferente do andar em outras cidades do País.
Deixei o hotel e como sou de caminhar a pé, perguntei ao porteiro. “Onde as pessoas andam aqui?” Ele me mandou entrar à esquerda e me dirigir ao parque da cidade.“Não, não é isso! Nada de boa forma, boa saúde, quero ver o povo, a multidão na calçada. Como se fosse cidade normal”. Ele não hesitou: “Brasília é normal, diferente são as cidades de vocês”. Segui, indaguei do primeiro que apareceu: ”Onde é o centro?” E ele: “Ah! Quer ir ao Conic? Desça na diagonal, vai dar lá”.(p. 3)
Outro ponto que chama atenção nesse episódio citado acima é que já há uma posição
de sujeito brasilense capaz de ver no outro a diferença, isso acontece quando o porteiro
responde: “Brasília é normal, diferente são as cidades de vocês”.
Para os romanos o centro da cidade era delimitado pela intersecção das ruas principais
(LIMA, 2000). No caso de Brasília, que nem rua tem, as pessoas se perdem na busca desse
centro, que não é bem um centro, mas uma intersecção entre os eixos e as asas da cidade,
construída com o formato de um avião, que se localiza na rodoviária urbana, ponto de
encontro e desencontros “de chegada e partida” (SILVA, 2003). E aí, nesse ponto de
encontros e desencontros, se revela um outro lado da cidade de monumentos e de beleza
ímpar: o contraste entre o poder e a miséria, a revelação de que a tentativa de apagamento da
memória relacionada às cidades tradicionais quanto ao espaço físico, não foi o suficiente para
transformar o Estado, que “esqueceu-se” de inovar em termos de políticas sociais, que
continuaram reproduzindo o modelo tradicional, por mais que escutemos no sensacionalismo
da mídia dizer que Brasília tem a melhor qualidade de vida do País.
Influenciado pelo pensamento do arquiteto franco-suíço Le Corbusier, na
valorização da racionalidade, que se revela nas e pelas retas, linhas e formas, o projeto
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urbanístico de Lúcio Costa é considerado por muitos arquitetos como utópico, uma vez que
advindo dos pensamentos dos modernistas. Estes acreditavam que a arquitetura e o urbanismo
determinariam o comportamento das pessoas e teriam o poder de contribuir para criar um
mundo mais justo. Não podemos nos esquecer que mudar uma estrutura econômica e social
demanda muito mais.
Em uma outra discursividade, a da Literatura, João Cabral de Melo Neto vai nos
dizer da razão, da precisão, da claridade do fazer do engenheiro. No poema “O Engenheiro”
(1997, p. 34), o autor mostra, através do labor das palavras, essa relação do construtor com a
natureza e o espaço, fala dos elementos naturais domados, esquadrinhados, medidos,
calculados.
O Engenheiro
A luz, o sol, o ar livre envolvem o sonho do engenheiro. O engenheiro sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água. O lápis, o esquadro, o papel; o desenho, o projeto, o número: o engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre. Em certas tardes nós subíamos ao edifício. A cidade diária, como um jornal que todos liam, ganhava um pulmão de cimento e vidro. A água, o vento, a claridade, de um lado o rio, no alto as nuvens, situavam na natureza o edifício crescendo de suas forças simples.
Talvez esse mundo justo de que fala o poema seja a mesma utopia sonhada pelos
arquitetos de Brasília. Lauro Cavalcanti, diretor do Paço Imperial (RJ), em entrevista à Folha
de São Paulo de 11 de fevereiro de 2007, diz que: “a cidade da esperança pode ser vista como
uma capital utópica de um país socialista, que seria mais rico e mais justo” (p. 5). O sonho de
ricos e pobres viverem e conviverem no mesmo espaço. Para Lúcio Costa, essa socialização
se daria nas quadras e superquadras. O geógrafo Aldo Paviane, pesquisador associado do
Departamento de Geografia e do Núcleo de Estudos Urbanos Regionais da UnB, aponta
alguns fatores que contribuíram para que isso não acontecesse: 1º. o plano inicial de que
muitos dos construtores voltariam para a cidade de origem após a construção não aconteceu;
27
2º. a falsa demagogia eleitoral de facilidade empregatícia e habitacional que se espalhou
trazendo uma grande leva de emigrantes (Correio Braziliense, de 12/04/2003).
Já Gilberto Freire (2003) afirma que o planejamento bitolado, puramente estético e
quase ditatorial de Brasília, e a não consideração da importância de outros especialistas como
ecologistas, economistas, sociólogos e psicólogos na sua construção, contribuíram para que
esse sonho de uma cidade mais justa e fraterna não fosse concretizado.
No livro A Cidade das Letras de Angel Rama (1984), logo no primeiro capítulo
intitulado “A Cidade Ordenada”, há uma descrição sobre a formação das cidades inicialmente
no tempo dos reinados, seguida da seguinte consideração: “A ordem deve ficar estabelecida
antes que a cidade exista, para impedir futura desordem” (p.29). Parece que em Brasília foi
isso que aconteceu, pois foram estabelecidos os lugares devidos de cada coisa: a organização,
sistematização e distribuição do espaço sinalizavam um novo modo de vida orientado e
vigiado pelo Estado, um modo de disciplinar a subjetividade. Embora isso também possa ser
pensado/significado de outra forma: “Turim é uma cidade que convida ao rigor, à linearidade,
ao estilo. Convida à lógica, e por meio da lógica abre caminho à loucura”. (CALVINO, 2006,
p. 20).
É contraditório observar que um projeto tão utópico e de cunho socialista, como
declara Lauro Cavalcanti (Folha de São Paulo, Caderno +Mais! de 11/02/2007), tenha já no
seu início um processo de divisão social tão marcante e marcado, ou melhor, tenha a divisão
Plano Piloto-Cidade Satélite como elemento estruturante de um modo de ser e estar para o
sujeito que aqui vive.
A cidade é o lugar do homem moderno, do sujeito de direito – fonte de seu dizer e responsável pelo que diz – e do sujeito do conhecimento – capaz de conhecer e legitimar sua verdade, de ser autor e leitor -, que habita um espaço privado e, ao mesmo tempo, circula em um espaço público juntamente com outros homens, também livres e racionais, mas econômica e socialmente desiguais. Aí se constitui o que podemos chamar de sujeito urbano, um sujeito que produz uma realidade estruturada pelo modo como o espaço o afeta. As relações na cidade são, pois, relações políticas, em que se estabelecem determinadas articulações entre o simbólico e o político, entre o visível, o dizível e o inteligível, Ou ainda, os modos de significar os espaços da cidade mostram que eles são espaços políticos. (SILVA, 2003, p. 35)
A Cidade Satélite de Taguatinga, por exemplo, foi criada em 1958, antes da
inauguração de Brasília, com o intuito de abrigar os construtores da capital – os chamados
candangos - e os funcionários públicos de menor hierarquia (PAVIANE, 1988, p.65). Após a
inauguração de Brasília, com o aumento populacional surgiram outras Cidades Satélites e,
hoje, já é possível se falar em periferia da periferia. Como é isso? Por exemplo, a cidade de
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Samambaia que já é bem desenvolvida atualmente surgiu, em parte, devido a grande
valorização imobiliária que foi se dando em Taguatinga, o que tornou lotes e aluguéis muito
caros, expulsando daí a parcela mais pobre para assentamentos novos, como Samambaia. Isso
se seguiu e se segue como uma bola de neve, indo mesmo além dos limites do Distrito Federal
e adentrando o Estado de Goiás com as chamadas Cidades do Entorno.
Aqui, adotou-se o modelo denominado polinucleado, ou seja, aquele tem em si um
núcleo principal onde está o Plano Piloto (Brasília propriamente dita) e os seus núcleos
periféricos, diversas cidades denominadas administrativamente “cidades satélites”. Estas se
localizam em média de 30,40 ou 60 km do Plano, o que contribui para a adoção de um estilo
diferente de urbanização, com seus efeitos sociais e políticos, logo, ideológicos. É interessante
observar como essa arquitetura produz efeitos no imaginário. Um rapaz confessou certa vez,
que em outras cidades o fato de ter uma favela próxima ao centro da cidade não causa tanto
espanto quanto as Cidades Satélites em Brasília. Talvez, diz ele, porque aqui parece haver
uma organização que sobrepõe essa desorganização. Será? Outro ponto que contribui para a
consolidação desse modelo é o fato de Brasília ter se tornado Patrimônio Histórico e Cultural
da Humanidade, o que não permite quase nenhuma modificação no seu projeto original.
Há, pois, nessa divisão-separação, proposta por esse modelo, uma divisão-separação
entre sujeitos, entre os que vivem no Plano e nas Cidades Satélites, produzindo diferentes
processos de individualização do sujeito, marcados pela ambigüidade, conflito e contradição,
o que constitui o foco de nosso objeto de estudo. Se Silva (2003), em seu trabalho com espaço
e tempo delimitados – Plano Piloto e até década de 1980 -, vê a alteridade pra esse sujeito que
chega em Brasília, na outra cidade que deixou para traz, agora, parece que a alteridade para o
sujeito que habita no Plano Piloto é o sujeito da Cidade Satélite.
No Dicionário Aurélio (1975) e no Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa-
Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.(1982), encontramos, respectivamente:
Satélite 1. Corpo celeste que gravita em torno de outro, o principal. 2.País ou nação sem autonomia política e/ou econômica. (p.432)
Satélite, s. m. (1. satellite). 1. Astr. Astro iluminado que gira em torno de um planeta; lua. 2. Astr. Planeta secundário. 3. Entidade política, independente, dentro da esfera de influência de uma potência maior. 4. O mineral que acompanha o diamante. 5. Companheiro inseparável. 6. Sequaz ou subordinado de uma pessoa importante. 7. Sequaz subserviente e obsequioso. 8. Anat. Veia, nervo ou músculo que acompanha uma artéria. 9. Méd. Lesão menor que outra que lhe fica perto. 10. Guarda Costas. 11. Mec. Engrenagem secundária, de pequeno diâmetro, que funciona em conjugação com a principal. 12. Autom. Cada uma de duas das engrenagens do diferencial que giram livremente, justapostas às planetárias. Adj, 1.Diz-se de entidade política dentro da esfera de influência de uma potência mais poderosa: Países satélites. 2. Diz-se de uma área ou
29
comunidade suburbana que depende economicamente de uma metrópole: Cidade satélite. 3. Anat. Diz-se de certos nervos ou veias que acompanham uma artéria. – s. artificial: objeto ou veículo posto em órbita ao redor da Terra, da Lua ou de outro corpo celeste por meio de foguete, para observações científicas efetuadas automaticamente por instrumentos ou por tripulante. (p. 1565)
E é assim que essas cidades funcionam/funcionavam: como meros “núcleos
dormitórios” e que têm/tinham grande dependência do Plano Piloto no que diz respeito à
educação, emprego, saúde... O motivo de usar os verbos “funcionar” e “ter” no presente e no
passado é devido ao fato de que hoje a população dessas cidades já não têm uma dependência
completa do Plano Piloto, pois ali já temos grandes escolas, faculdades e universidade,
hospitais, um comércio expansivo e, segundo alguns estudiosos, algumas como Taguatinga,
Ceilândia já produzem renda suficiente para se manterem.
Para Paviane (1988), no entanto, a questão não se restringe à dependência
econômica, administrativa, pois:
...fragmentando a cidade, criando núcleos múltiplos, desencorajam-se pressões populares, estimula-se a ideologia da casa própria, exalta-se a beleza do bairro administrativo, tomba-se o patrimônio arquitetônico, congela-se a imagem das belas formas paisagísticas, erguem-se panteões”, ou seja, “o esparramento urbano, em síntese, contém o controle geopolítico, atenuam-se ímpetos de massas oprimidas e reivindicantes. (p.48)
Observamos, nessa análise de Paviane, os efeitos ideológicos e os efeitos sujeito
dessa nuclearização e, tanto quanto em outras metrópoles, o mesmo autor complementa:
“quem aproveita esse tipo de política são os segmentos das classes político-administrativas e
os empreendedores imobiliários, independente da propalada posse ou propriedade pública da
terra urbana”.
Essa política se materializa com o surgimento cada vez maior de condomínios
irregulares, invasões e um verdadeiro jogo de põe e tira entre governo e “invasores”. Devido a
especulação imobiliária, a terra “perde o valor de uso e assume todas as características de
mercadoria relativamente escassa, portanto, cara” (PAVIANE, 1988), e a população carente
continua na peregrinação por um pedaço de onde morar, fazendo ecoar em nossos ouvidos os
versos do “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto (1994, p. 30). Observem um
fragmento a seguir desse poema:
Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar
30
algum roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra.
Em Brasília, portanto, “a realidade distancia-se do projeto” e convive-se com
problemas existentes no restante do País, o que parece até irônico, já que no início buscou-se
tanto um distanciamento dos modelos reproduzidos nas cidades tradicionais. Não que seu
projeto não seja importante, mas é preciso levar em consideração outros aspectos além dos
arquitetônicos, ou melhor, a relação necessária do arquitetônico com as condições materiais
de existência, o que evidencia que não se pode zerar a história. No início do artigo intitulado
“Brasília: mitos e realidades”, do arquiteto e doutor em urbanismo Paulo Bica, citado por
Paviane (1985), encontramos o seguinte fragmento que nos faz refletir um pouco sobre a
história de Brasília:
O arquiteto tende, por sua própria natureza e por deformação profissional, ao controle total da cidade, como se fosse um único edifício. Porém, a mítica Torre de Babel, como se sabe, nunca chegou a ser construída. (p. 101)
Por ter sido pensada em um período de grande efervescência no País do sentimento de
nacionalidade e da tentativa de encontro da própria identidade, poderíamos pensar que Lúcio
Costa também buscou realizar uma antropofagia arquitetônica? A Arquitetura parece ter
tomado para si problemas que abrangiam outras áreas como sinal de renovação e autonomia
político-cultural. Observe o trecho a seguir de Lúcio Costa (1981):
...pela singularidade de sua concepção urbanística e de sua concepção arquitetural, (Brasília) testemunha a maturidade intelectual do povo que a concebeu, voltado para a construção de um novo Brasil, e resolutamente dirigido para o futuro, querendo desde então, tal como agora, tornar-se o dono de seu destino”. (p.35)
Essa determinação revela a tentativa de conter a vida por apenas um plano, quando
esta é feita por vários ângulos e nuanças. É interessante notar que, se buscava o controle do
País por meio de um projeto de uma cidade do futuro, que se buscava o controle da cidade por
um traçado próprio, que se buscavam também o sonho de libertação do modelo antigo de
governo e cultura. Riscos e sonhos. Sentidos que vão e vêm, que vêm e ficam, que ficam e se
transformam no fragmentário de uma cidade que se narra como forma de viver.
31
Orlandi (2004) chama atenção sobre o que chamam de fragmentário da cidade que
para ela não passa de flagrantes da cidade com seu modo próprio de aparição. “Em gestos que
são e dão corpo à cidade” (p. 30).
A cidade tem assim seu corpo significativo. E tem nele suas formas. O rap, a poesia
urbana, a música, os grafitos, pichações, inscrições, outdoors, painéis, rodas de conversa,
vendedores de coisa alguma, são formas do discurso urbano. É a cidade produzindo
sentidos. Como funcionam? Como flagrantes. São formas de significar com sua poética,
por assim dizer, incluídas na própria forma material da cidade. Não se destacam dela
senão como lembretes para o exterior. E isso é que faz com que aí se inaugurem outras
formas de narratividade que não tem um seu narrador com seu “conteúdo”, nem são
textos fechados, destacados das condições de que fazem parte.
E é a relação desses sujeitos urbanos com a cidade, no caso a de Brasília, como ela
significa neles e como eles se significam nela, esse vai e vem dos vendedores de objetos e dos
passageiros do ônibus que analisaremos, constitui o que também podemos chamar de
narratividade urbana, a cidade em constante movimento se narrando através de seus flagrantes
urbanos.
32
CAPÍTULO 3
O discurso do urbano e o discurso urbano
O referencial teórico e metodológico deste TCC é a Análise de Discurso (AD) e os
textos desencadeadores do processo foram: um texto de Silva, chamado “Destino: Brasília”
(2003), e um de Orlandi, denominado “Tralhas e troços: o flagrante urbano”, que se encontra
em um livro por ela organizado “Cidade atravessada: os sentidos públicos no espaço urbano”
(2001). Brasília uma cidade não atravessada, mas dividida, polarizada, em sua própria
constituição: Plano Piloto-Cidades Satélites. Brasília, uma cidade organizada, com suas falas
desorganizadas” em seus “flagrantes urbanos”. Como se daria nesse espaço-tempo a
configuração de uma subjetividade?
A Análise de Discurso considera como condição da linguagem a incompletude; assim
nem sujeitos nem sentidos estão completos, no sentido de constituídos definitivamente. Eles
se constituem e funcionam por meio do entremeio, da falta, do movimento e é nessa
incompletude que há a abertura para a falha, para o equívoco. Por outro lado, não é porque o
processo de significação é incompleto que ele não seria regido, administrado, mas é pela sua
abertura que ele está, ao mesmo tempo, sujeito à determinação e à transformação, por meio da
referência da linguagem aos limites moventes entre a paráfrase e a polissemia.
Outro ponto da Análise de Discurso que gostaríamos de considerar aqui é o de que não
há discurso inédito, no sentido de ter nascido no próprio sujeito. O que acontece é que o
sujeito ao dizer coloca em funcionamento uma memória discursiva (o interdiscurso) que
sustenta o dizer “em uma estratificação de formulações já feitas, mas esquecidas e que vão
construindo uma história de sentidos” (ORLANDI, 2005, p.54). É nessa memória, sobre a
qual não se detém o controle, que os sentidos se constroem e os sujeitos se constituem,
produzindo ao mesmo tempo a idéia de que esse sujeito sabe o que está falando e a ilusão de
ser a origem do que foi dito. O apagamento dessas formulações já feitas é necessário para que
o sujeito “estabeleça um lugar possível no movimento da identidade e dos sentidos: eles não
retornam apenas, eles se projetam em outros sentidos, constituindo outras possibilidades dos
sujeitos se subjetivarem” (ORLANDI, 2005, p. 54).
Num dos textos que originaram este TCC, a autora trata de maneira bastante
interessante da formulação de sentidos.
33
Formular é dar corpo às palavras. A presença do corpo na produção dos sentidos faz parte disso que chamamos “materialidade da linguagem”. Nós o incorporamos na própria noção de gesto (E. Orlandi, 1996): o gesto como prática significante que traz em si tanto a corporalidade dos sentidos quanto a dos sujeitos, enquanto posições simbólicas historicamente constituídas, ou seja, posições discursivas (lingüístico-históricas). (ORLANDI, 2001, p. 9)
A autora utiliza, para explicar essa formulação dos sentidos, exemplos extraídos de
entrevistas com jogadores de futebol, em que repetem muitos enunciados que nos parecem à
primeira vista, óbvios como “Aí a gente fez um gol, fez 2, fez 3. Ganhamos de 3 a zero”, para
falar (significar) através dos gestos, do olhar, do rosto, do tom, das pausas, de uma vitória.
Teríamos aí o que ela chama de gestualidade do futebol: o jogador relata, fala o/do jogo de
dentro do jogo. Orlandi traz também um poema de Chacal para falar dessas questões:
corporalidade, gesto, posições discursivas.
pego a palavra no ar no pulo paro vejo aparo burilo no papel reparo e sigo compondo o verso
Um ponto fundamental para a delimitação do tema deste TCC e para a constituição do
corpus foi quando a autora diz que os sentidos se fazem/produzem em seus trajetos, o que cria
a imagem de que os sentidos se fazem ou se constituem através das coisas e pessoas e têm a
ver com a cidade: lugar de trajetos e acontecimentos4.
Porém, para compreendermos como se dá a formulação e circulação dos sentidos de
em uma cidade é preciso saber logo de início que a interpretação para a AD não é “mera
decodificação na transparência da linguagem, mas trabalho que ata língua, sujeito e mundo”
(p.28). Língua, sujeito e mundo situam-nos totalmente dentro da proposta da Análise de
Discurso, que tem como objeto de estudo o discurso: “efeitos de sentido entre locutores”
(PÊCHEUX, 1990) e se apóia em princípios, noções do Materialismo Histórico (história,
memória, ideologia, sentido), da Psicanálise (inconsciente, sujeito) e da Lingüística (língua,
funcionamento, acontecimento). Essa língua, contudo, não é trabalhada como “um sistema
abstrato, mas a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando,
considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos, seja
enquanto membros de uma determinada forma de sociedade” (ORLANDI, 2005, p. 16).
4 Ver discussão sobre texto de Nunes (2001) no Capítulo anterior.
34
Esse referencial teórico não trabalha a língua fechada em si mesma, mas uma língua
que está na e faz a história, logo a materialização de uma linguagem não transparente. Assim
o dito significa em relação ao não dito, mas também a um já dito histórico. Ao analisarmos
um texto – forma material do discurso e unidade de análise -, partimos do dito e o
trabalhamos em relação ao não dito e ao já dito, para chegarmos aos processos discursivos ali
em funcionamento, Não se trata, pois, de uma análise de conteúdos previamente
conhecimentos, sendo a língua mera expressão dos mesmos. Precisamos de uma teoria forte
para atravessarmos a opacidade da linguagem, e a estrutura e o funcionamento da língua (que
não estão subordinados à vontade de um indivíduo empírico) são a porta de entrada, a base
para a compreensão do discurso.
Desde sua primeira proposta de AD, na década de 1960, na França, que Pêcheux (seu
criador), levantou algumas questões básicas e formulou os primeiros conceitos desta teoria. A
partir do esquema de comunicação dominante, ele irá deslocar noções como as de emissor,
recebedor, mensagem e referente. Para ele, na relação entre indivíduos numa sociedade dada
não existe apenas troca de informação, uma vez que esses indivíduos estão se relacionando
não apenas empiricamente, mas ocupando posições de fala (discursivas) constituídas
historicamente, como as de professor, de aluno, de esposa, de mãe, de patrão, de empregado,
de morador de uma cidade. O emissor e recebedor “designam lugares determinados na
estrutura de uma formação social. [...] esses lugares estão representados nos processos
discursivos em que são colocados em jogo”. (PÊCHEUX, 1990, p. 82)
O processo discursivo supõe, pois, de acordo com Pêcheux, a existência de formações
imaginárias, de relações de força governando esse jogo de representações, de relações de
sentido resultantes da relação de intertextualidade, de mecanismos de antecipação em que os
interlocutores buscam imaginar, prever o que o outro vai pensar/dizer/falar. Todas essas
noções (e outras mais) vão, assim, construindo um dispositivo teórico para podermos
apreender e compreender essa opacidade da linguagem, do sujeito e do sentido que se
apresentam para o analista de discurso. Para compreendermos os processos discursivos
presentes em uma cidade, os processos de produção, formulação e circulação de sentidos que
aí se dão, os processos de individualização dos sujeitos que aí habitam. Tudo isso em um
movimento contraditório da história e do inconsciente.
Assim, para Orlandi (2001), e para nós, importa saber como o sujeito urbano produz
sentido na cidade e os sentidos da cidade, levando em consideração a relação sujeito/sentido,
pensando o sentido na sua dimensão material. Quais as condições de produção dos discursos
urbanos, pois é por meio delas que o sujeito formula seu dizer, sua vida, seus sentidos, seus
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sentimentos. Na AD, essas condições de produção dizem respeito aos sujeitos (eu/tu), as
situações (aqui/agora), mas também à história, à memória. Nesse sentido, a leitura e a
sistematização de trabalhos de outros autores sobre cidades e sobre Brasília, realizadas nos
capítulos anteriores, tiveram como objetivo explicitar e compreender essas condições de
produção.
Trabalhando com essa não transparência da linguagem, com essa incompletude,
Orlandi (2004) chama a nossa atenção para as falas homogeneizantes sobre a cidade, como o
discurso sobre a violência, e da necessidade de se conhecer a cidade em seu real, para
compreender o que está silenciado, e vê o que chamam de fragmentário como sentidos em
trânsito, pois para ela a cidade põe o olhar em movimento.
A sensação de fragmentário é efeito da vontade de totalidade dada pela impressão (imaginária) de arredondamento da “paisagem”: totalidade abrangida e abrangente do olhar. De um olhar organizado e organizador (do urbano) que é totalitário. A materialidade da cidade des-organiza esse lugar totalizador e, obrigando ao percurso/movimento, nos disponibiliza para outra apreensão de sentidos. Daí a necessidade de um método como o da Análise de Discurso para ir além desses efeitos de sentido e confrontar-se com o lugar em que esses sentidos se constituem, fazem sentido, lugar em que o simbólico e o político se articulam na produção desses sentidos (p.29).
É importante aqui, fazermos uma diferenciação entre discurso urbano e discurso do
urbano para entendermos melhor as colocações seguintes e a forma como constituímos nosso
corpus. Discurso urbano, segundo Orlandi, constitui as formas de manifestações várias que se
materializa na cidade (o rap, a música, painéis, pichações, a poesia urbana, etc.) a cidade
produzindo sentido, heterogenia, com sua pluralidade, e o discurso do urbano é o
silenciamento desse real da cidade que não é homogêneo e se manifesta de várias maneiras, é:
...movimento de generalização do discurso do urbanista que passa a fazer parte do senso-comum produzindo uma deriva ideológica que homogeneiza o modo de significar a cidade seja pelo seu uso indiferente no discurso ordinário, no discurso administrativo, no do Estado, tomando as formas do jurídico ou do político indiscriminadamente. (ORLANDI, 2004, p. 34).
Ao observar os acontecimentos da cidade de Brasília especialmente nesse recorte que
faremos para análise, é possível perceber que o discurso do urbano- “e muitas vezes nessa
relação entre cidade e urbanidade, nos demos conta que há um apagamento do social em
função do urbano, ou seja, o social quando se trata da cidade, é muitas vezes difícil de ser
visibilizado porque se confunde com aquilo que é urbano” (ORLANDI, 2003, p. 9) - tem um
peso muito grande na cidade. A cidade supõe organização, ordem, urbanidade, civilidade, e
tudo que vai contra essa estrutura tende a ser excluído ou disciplinado. Mas, por outro lado
36
como em quase toda cidade, acreditamos, o discurso do urbano não corresponde ao real da
cidade que é inapreensível.
Em Brasília é possível observar essa tentativa na própria arquitetura e na administração
urbanística do espaço (efeitos ideológicos). Os eixos, os balões, as placas, as sinalizações são
maneiras de organizar, ordenar, e tudo que sai fora desse padrão é considerado desordem. Na
cidade, especialmente nesta, tudo deve ter seu lugar de direito. As lojas de roupas, os
supermercados, os camelôs devem ficar no lugar específico destinado pela lei, guardiã da
ordem. Porém, essa gestão das coisas e das pessoas parece ser uma tendência desse mundo
chamado de pós-moderno, onde não se tem muita opção em relação ao que vestir, comer,
comprar, ou seja, uma aparente diversidade parece nos levar a uma uniformização das coisas
e pessoas, onde tudo deve seguir um modelo pré-estabelecido. E é interessante perceber como
os sujeitos se relacionam com a imposição de certos discursos como o do urbano. Em Brasília
esse olhar organizador de que fala Orlandi tentou enquadrar a cidade e a vida de seus
habitantes em seus moldes desde o início. Observe o fragmento a seguir retirado do artigo
“Brasília: mitos e realidades” do arquiteto Paulo Bicca (1985), ao falar do planejamento de
uma cidade que nasceu para simbolizar a modernidade:
Em nome da Razão uma severa ordem então é estabelecida e em nome da ordem, a razão mais severa, única e incontestável é erigida como norma a partir da qual tudo e todos deverão moldar-se. E daí ao despotismo da Razão não resta nenhuma distância a percorrer, posto que as realidades expressas por ambos os termos se confundem e se fundem numa mesma unidade. De suposto poder da Razão, o que de fato se instala é a razão do Poder, diante do qual as diferenças são representadas como inexistentes ou, ao menos, como nefastas ao seu exercício; as singularidades e as individualidades são negadas, o espaço tende a homogeinização...” (p.114).
E isso continua na maneira como Lúcio Costa indica como deve ser fotografada a
cidade em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, de 11 de fevereiro de 20075, ou
seja, busca disciplinarizar também o olhar, pois como diz Orlandi (2001, p. 10) “a janela em
que você debruça para olhar o mar é parte do sentido. Ela dá a inclinação do corpo”.
5 Informamos que o texto seguinte foi copiado na íntegra da fonte, inclusive a pontuação.
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Brasília + gente Convívio normal das pessoas com a beleza. Fotografar: Nas horas de entrada e saída dos ministérios; na Universidade-bilbioteca, galeria arborizada do “minhocão”; nas pracinhas da
Plataforma rodoviária; o intenso movimento até meia noite no centro-de-compras; na entrada do Teatro; a feira livre nos fins de semana ao pé da Torre; os repuxos das grandes fontes funcionando; o movimento no imenso parque público; o ambiente interno das quadras residenciais com crianças saindo da escola ( de preferência a do B do B [Banco do Brasil]); os clubes do lago (inclusive o do Itamaraty);
O movimento no amplo saguão do Congresso e no interior da Câmara e do Senado; a Praça do Buriti, com as fontes funcionando; a Praça dos Três Poderes com grupos e gente circulando; o Panteão visto apenas de quem caminha para ele da praça e a visão de quem sai dele para a praça; as “ esquinas” de Brasília: os cafés nas entradas das “ áreas de vizinhança” – o Moinho à noite etc.; o hospital Sarah Kubitschek; o Centro Administrativo de Ceilândia e o Mercadinho; o hospital de Taguatinga; as escolas e agência de automóveis do Lelé; seqüência das Quadras vistas de quem vem do aeroporto e quadra-econômica inicial .
Tudo bem fotografado, de um ponto de vista a favor, otimista, e não “contra”. Nada de “contrastes” demagogicamente escolhidos ou aspectos insólitos intencionais. Caras autênticas, saudáveis, otimistas como as que eu vi. (grifos nossos) LC
(Transcrição de recomendações de Lúcio Costa, por volta de 1985/86, para a realização de fotografias de Brasília.) Porém, essa uniformidade de olhar, essa beleza estática, em Brasília ou em qualquer
outro grande centro urbano, não é possível, pois na cidade, organização e desorganização
andam juntas. E esses “flagrantes urbanos” para se organizarem desorganizam o projeto pré-
estabelecido. É nessa desorganização que os sentidos se desestabilizam e o sujeito produz
outros gestos de interpretação para a cidade, para o cotidiano, para si mesmo, diferentemente
daqueles já literalizados pelo discurso do urbano, o que determina modos de individualização
dos sujeitos.
Buscar uma nova interpretação para o que já está estabelecido, ou buscar o que está
silenciado, lançar um olhar diferente sobre as coisas é mais ou menos o que Ítalo Calvino
(2006) em seu livro “Eremita em Paris – páginas autobiográficas” fala sobre cidades
invisíveis. Observe:
Entre “As cidades invisíveis” há uma sobre palafitas, e os moradores observam do alto a própria ausência. Talvez, para compreender quem sou eu tenha que observar um ponto no qual poderia estar, e não estou. Como um velho fotógrafo que faz pose diante da objetiva e depois corre para acionar o botão do disparador à distância, fotografando o ponto em que poderia estar, mas não está. Talvez esse seja o modo de os mortos olharem os vivos, misturando interesse e incompreensão. Mas isso eu só penso quando estou deprimido. Nos momentos de euforia, penso que aquele vazio que não ocupo pode ser preenchido por
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outro eu mesmo, que faz as coisas que eu deveria ter feito, e não soubesse fazer. Um eu mesmo que só pode brotar desse vazio. (p. 204)
A Análise de Discurso nos dá meios para deslocar esse olhar e com o nosso
instrumento que não a máquina fotográfica, mas a linguagem, a palavra, possamos revelar
esses flagrantes urbanos “com sua poética, por assim dizer, incluídas na própria forma
material da cidade” (ORLANDI, 2004, p.31).
É importante lembrar que para tentarmos compreender como significa esse sujeito
urbano, que se materializa através da/na narratividade urbana devemos considerar essa cidade
em observação como espaço constituído de língua, história, ideologia e memória pontos
indispensáveis na constituição desse sujeito. Para isso devemos esclarecer que para AD:
...o sujeito se constitui por uma interpelação – que se dá ideologicamente pela sua inscrição em uma formação discursiva – que em uma sociedade como a nossa, o produz sob a forma de sujeito de direito (jurídico). Esta forma-sujeito corresponde, historicamente, ao sujeito do capitalismo, ao mesmo tempo determinado por condições externas e autônomo (responsável pelo o que diz), um sujeito com seus direitos e deveres. (ORLANDI, 2005, P.45)
Ainda segundo a AD, essa forma-sujeito histórica da sociedade atual é ao mesmo
tempo livre e submissa, capaz de uma liberdade sem limites e uma submissão sem falhas. A
passagem da forma-histórica sujeito religioso para a do sujeito jurídico (a sociedade
capitalista é uma sociedade de direito) se dá no final da Idade Média com o advento do
mercantilismo, em um momento histórico específico, conforme vimos no Capítulo1. Uma
forma-sujeito fortemente afetada pelas mudanças nas cidades, pela constituição de um
discurso do urbano. Com a transformação das relações sociais, o sujeito se torna Livre para
vender sua força de trabalho, não é mais um servo, deve de se tornar seu próprio proprietário:
a “submissão explícita do homem ao discurso religioso dá lugar à subordinação, menos
explícita, do homem às leis: com seus direitos e deveres” (ORLANDI, 2005, p. 51).
Quando dizemos que o sujeito, para se constituir, deve-se submeter à língua, ao simbólico, é preciso acrescentar que não estamos afirmando que somos pegos pela língua enquanto sistema formal, mas, sim, pelo jogo da língua na história, na produção dos sentidos. É o acontecimento do objeto simbólico que nos afeta como sujeitos. (ORLANDI, 2001a, p. 102)
Achamos importante trazer essas palavras de Orlandi para mostrar como, em AD, os
conceitos estão ligados e que só posso pensar em forma-sujeito, se tomar uma noção de língua
como sendo um sistema afetado pela história, pela ideologia. Uma vez, pois, constituída essa
forma-histórica sujeito, há um segundo momento teórico que irá, então, nos interessar nos
39
processos discursivos: o dos processos de individualização do sujeito (já constituído) pelo
Estado e suas instituições, a subjetivação de um sujeito que está no mundo praticando
linguagem.
Uma vez interpelado em sujeito, pela ideologia, em um processo simbólico, o indivíduo, agora enquanto sujeito, determina-se pelo modo como, na história, terá sua forma individual(izada) concreta. [...] O que fica de fora quando se pensa só o sujeito já individualizado, é justamente o simbólico, o histórico e a ideologia que torna possível a interpelação do indivíduo em sujeito. (ORLANDI, 2001, p. 107)
Nosso trabalho se situa, pois, aí: na compreensão de como se individualiza o sujeito
brasiliense nesse espaço da cidade, com todos os seus conflitos e contradições, se narrando. Como o
discurso se individualiza nessa relação do discurso do urbano e dos discursos urbanos, nessa relação
entre um espaço organizada e as falas desorganizadas, fragmentárias.
Todo esse trabalho de compreensão da cidade, do espaço urbano, de Brasília, do discurso
sobre a cidade, nesse ir e vir entre teoria e prática, construímos nosso corpus, nosso campo de
descrição e análise, em busca da compreensão para questões formuladas. O ônibus foi o espaço-tempo
que escolhemos para observar essa Brasília em movimento, para tentar apreender essa narratividade
urbana de que fala Orlandi (2001). Apesar do desafio de tal empreendimento, resolvemos correr “os
riscos” em busca dos “sonhos” de construir uma autoria, de aprender a ver a cidade de um outro modo,
ou seja, de significá-la e nos significar de formas diferentes.
A delimitação do corpus não segue critérios empíricos (positivistas), mas teóricos. [...] Não se objetiva, nessa forma de análise, a exaustividade que chamamos de horizontal, ou seja, em extensão, nem a completude, ou a exaustividade em relação ao objeto empírico. Ele é inesgotável. Isso porque, por definição, todo discurso se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outro. (ORLANDI, 2005, p. 62)
Começamos, assim, a observar o ônibus, as pessoas que ali entravam e saíam, os rostos, os
gestos, as expressões. E principalmente, os ônibus que faziam o trajeto Plano Piloto-Cidades Satélites.
Começamos, ainda, a aprender a conversar com essas pessoas, a tentar ter uma outra escuta. Assim,
fomos pouco a pouco, definindo certos procedimentos de coleta e análise. Fizemos umas entrevistas
informais (mais conversas) com vendedores e passageiros, lembrando que não estávamos preocupadas
com a pessoa empírica dos entrevistados e, sim, com as posições em que seus dizeres se
constituíam, na maneira como eles se relacionam com a cidade, formando uma “estampa da
narratividade urbana” de Brasília, cidade que se movimenta através de sua própria
narratividade, nas formações imaginárias que seus dizeres estão implicados.
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CAPÍTULO 4
A cidade se narrando
Um TCC se narrando, a narratividade universitária, fragmentos da realidade
acadêmica. Talvez nos situando nesse lugar, possamos dizer que a cada porta que abríamos
neste trabalho, víamos o risco de não explorar suficientemente as questões nele envolvidas.
Mas, mesmo assim, decidimos que valia a pena o desafio, pois nunca nos sentíramos tão
motivadas com as descobertas que íamos fazendo. Não se tratava só de reproduzir o já sabido,
mas de topar com o novo, com o diferente. Assim, fomos buscando alguns textos como
referência para cada tema ou noção envolvida no trabalho, sabendo que muito mais teria de
ser pesquisado.
Comecemos por pensar a questão da narrativa que por si só daria um TCC. Jonhatan
Culler, em seu livro “Teoria da Literatura: Uma Introdução” (1999), dedica um capítulo à
narrativa. Segundo ele, houve um tempo em que a poesia era predominante na literatura e o
romance era um recém chegado ao mundo das letras, próximo da biografia ou da crônica.
Porém, no século XX, o romance ultrapassou a poesia e, desde os anos 60, a narrativa passou
a dominar o campo das teorias literárias e o da sua escolarização. Essas teorias afirmam ainda
que para entendermos as coisas, são necessárias as histórias, “quer ao pensar em nossas vidas
como uma progressão geométrica que conduz a algum lugar quer ao dizer a nós mesmos o
que está acontecendo no mundo” (p.84).
Culler diz, ainda, que a narrativa não segue uma explicação científica, mas a lógica da
história, como um acontecimento leva a outro, e diz que Frank Kermode afirma que as
estruturas narrativas estão por toda parte: o simples tique-taque do relógio é suficiente para
formar uma estrutura ficcional que faz do tique um começo e do taque um final. Esse tique-
taque é ainda para ele um modelo de enredo que humaniza o tempo e lhe dá forma. Kundera
em seu livro "A ignorância” (2002), falando de Ulisses, diz:
Durante vinte anos só pensara no seu retorno. Mas, ao chegar, compreender, surpreso, que sua vida, a própria essência de sua vida, seu centro, seu tesouro, encontrava-se fora de Ítaca, nos vinte anos de suas andanças. E, esse tesouro, ele havia perdido e só voltaria a encontrá-lo contando. Depois de deixar Calipso, em sua viagem de volta, ele naufragara na Feácia, onde o rei o havia acolhido em sua corte. Ali, ele era um estrangeiro, um desconhecido misterioso. A um desconhecido perguntamos: “Quem é você? De onde vem? Conta!” E ele tinha contado. Durante quatro longos cantos da Odisséia, diante dos atônitos feácios, relembrara os pormenores de suas aventuras. Mas e, Ítaca não era um estrangeiro, era um deles, e por isso a ninguém ocorria dizer: “Conta!”. (p. 32)
41
Culler afirma que há um impulso humano para ouvir e narrar histórias, e que a criança
é capaz de perceber se quem está contando uma história a está enganando parando antes do
final. A isso ele designa de competência narrativa. Para ele, a primeira questão da teoria da
narrativa deveria ser a tentativa de explicar essa competência.
As histórias boas do ponto de vista de Aristóteles deveriam ter um começo, um meio e
um fim, dar prazer por causa do ritmo e de sua ordenação e ter o enredo como traço básico da
narrativa, segundo Culler. O autor ressalta também que, por convenção, toda narrativa tem um
narrador, que pode estar dentro ou fora da história, e que as histórias por meio dos
estratagemas da focalização nos permitem ver as coisas de outros pontos de vista e entender
as motivações dos outros que, em geral, são opacas.
No livro “Categorias da Narrativa”, da coleção Práticas de Leituras (1979), com
artigos de Françoise Van Rossum-Gunyon, Philippe Hamon e Daniele Sallenave, em seu
prefácio, Maria Alzira Seixo considera que os elementos narrativos estão na base de qualquer
tentativa de informação, e que esta é parte do conteúdo normal da comunicação, pois a
significação é a estrutura central da via comunicativa na formação da mensagem (constituída
a partir do signo). E por isso a narrativa faz parte da comunicação verbal que utilizamos todos
os dias, oral ou escrita, e impregna o tecido da nossa existência, escreve ela, citando como
exemplo, desde a conversa com os amigos ao filme que se vê, da receita da cozinha ao
cotidiano de mais um dia em que se viveu. Para ela, “tudo que se conta é narrativa; e é a sua
lógica que, por vezes, confundida com uma sucessividade temporal, lhe estabelece os
parâmetros. Maria Alzira cita a definição que Todorov dá da narrativa para dizer que:
A sua unidade transfrásica mais importante é a seqüência, que consiste num seguimento lógico das funções unidas entre si por uma relação de solidariedade (e que comporta sempre um momento de risco na narrativa), sendo a função entendida como uma ação desempenhada por uma personagem e definida do ponto de vista da sua significação no desenrolar da intriga. Característica da narrativa, mesmo no estado embrionário, é o processo de transformação que permite a passagem de um primeiro estádio (referente ou não a uma personagem) a um segundo estádio, normalmente um processo de melhoramento ou de degradação. (p. 15)
Ao falar da narratividade urbana em Brasília, o que tento capturar ou observar não é,
como diz Orlandi (2004), nenhuma das tipologias tradicionais.
É a cidade produzindo sentidos. Como funciona? Como flagrantes. São formas de
significar com sua poética, por assim dizer, incluídas na própria forma material da cidade.
Não se destacam senão como lembretes para o exterior. E isso é que faz com que aí se
42
inaugurem outras formas de narratividade que não têm um narrador com seu “conteúdo”,
nem são textos fechados, destacados das condições de que fazem parte.
São flagrantes do que chamarei de narratividade urbana. A cidade não tem um seu
narrador, um seu contador de histórias (como o cego nordestino, o violeiro, o velho
indígena, etc.). A narratividade urbana tem vários pontos de materialização.” (p. 31)
Entre eles está o ir e vir no metrô, no ônibus, em que uns narram para a pessoa ao lado
(um desconhecido?) fragmentos de suas vidas; outros lêem em livros, fragmentos de
pensamentos, muitos, ainda, em suas mentes ouvem uma voz inconsciente narrando
fragmentos da festa de ontem à noite, a última conversa com alguém, possibilidades,
acontecimentos fantasmas de outras épocas. Outros, apenas, em silêncio falante. Personagens
de uma cidade que se narra, sujeitos em movimento e construção.
Brasília por mais que possa parecer monótona ou parada em relação a outras cidades,
tem seu jeito próprio de se narrar. Está em constante movimento, mesmo pelos e nos veículos
que embalam corpos e pensamentos, pelos transeuntes, na Rodoviária, que narram suas
histórias, ou ainda no pedir do sustento de alguns àqueles que também narram suas vidas no
esperar do ônibus, que os levará a outro destino diferente do Plano Piloto.
Essa narratividade (diferente da narrativa tradicional) se mostra como “alegoria da
cidade”, expressão utilizada por Roberto Pompeu de Toledo ao comentar em seu ensaio na
revista Veja, de 23 de maio de 2007 (que saiu quando concluíamos este TCC), sobre o
documentário “Em Trânsito”, de Henri Arraes, exibido recentemente em São Paulo. Nesse
documentário, ele registra as pessoas que circulam de ônibus, de metrô, de trem, de moto de
carro, a pé, na cidade de São Paulo, dando enfoque para aqueles que gastam (três, quatro,
cinco, seis horas) no percurso de ida e volta de casa para o trabalho, em que muitas vezes,
nesse percurso, as pessoas contam um pouco de sua história. Outra questão abordada no “Em
Trânsito”, é a questão do trânsito propriamente dito. Ao observar a cidade de Brasília, por
meio do ônibus e de outros flagrantes, a impressão que temos é a de que a cidade é um ser
pulsante que se narra através dos seus mais diversos pontos de materialização.
Em Brasília até os monumentos parecem narrar histórias e memórias de um sonho que
em parte se foi, enquanto a outra continua desafiante por meio de sua forma peculiar de
conduzir a vida e os acontecimentos. Viver nesta cidade é carregar a herança ilusória de fazer
parte da Ilha da Fantasia e sofrer os problemas que fazem parte do restante do País como a
pobreza, a exclusão. Brasília está em movimento e participa do movimento do Brasil “um
Brasil bruto, assustador, impiedoso, magnânimo, generoso, que toma pancada e se vira”
43
(TOLEDO, Veja, 23/05/2007). Ou ainda, como diz Ana Miranda, em sua crônica “Noites de
Gabeira”, publicada no Caderno C do Correio Braziliense, de 01/04/2007, “Todas as cidades
são dantescas, têm seus infernos, purgatórios e paraísos”.
É considerando esse peso histórico (embora tão jovem) que a cidade de Brasília tem,
que passaremos à descrição e análise do corpus, enquanto um como recorte da narratividade
urbana dessa cidade. Primeiro, falaremos um pouco dessa narratividade se materializando
dentro do ônibus; depois refletiremos sobre as entrevistas com dois vendedores de doces
dentro dos ônibus e com alguns passageiros, sabendo que sujeitos e sentidos se constituem em
processos em que há transferência, “jogos simbólicos dos quais não temos o controle e nos
quais o equívoco – o trabalho da ideologia e do inconsciente – estão largamente presentes”
(ORLANDI, 2005, p.60).
Na AD, o analista ao mesmo tempo em que descreve, interpreta, ou melhor, trabalha
na “intermitência entre descrição e interpretação o que constitui seu processo de
compreensão”. E é tomando a linguagem com sua memória, espessura semântica e
materialidade-discursiva, e o discurso produzindo efeitos de sentidos, que tentaremos
compreender como esse sujeito brasiliense se relaciona com a cidade.
Entremos em um ônibus, principalmente na direção Plano Piloto/Cidade Satélite e
comecemos a perceber essa narratividade junto ao silêncio de alguns que dormem, de outros
que parecem apenas observarem a cidade se movimentar pelos vidros do transporte como se
fosse um “vídeoclip: montagem efervescente de imagens descontínuas” (LIMA, 2000, p.190)
nos lugares onde o espaço é agressivamente legível ou “devanear”, olhando a paisagem dos
longos espaços entre uma cidade e outra. Quando, de repente, entram os vendedores de
objetos e idéias como se o comércio se transportasse para dentro do ônibus e se ouve: “Ajude
a Casa de Recuperação Nova Esperança”, “Melzinho essência de eucalipto apenas 1,00.
Aceita dinheiro e vale – transporte”. Muitos compram outros simplesmente observam. O
vendedor desce mais na frente em um ponto de ônibus, e entra outro, com sua cestinha repleta
de novidades e grita “ flics sabor tutti-frutti, sabor menta, morango, cereja, hortelã uma cartela
é um real três por dois reais” e se posiciona no corredor do ônibus, levanta um tubo de balas a
frente do seu corpo, a altura do ombro e fala imitando os garotos propaganda dos comerciais
de televisão “não deixem de experimentar este novo lançamento, caramelo mastigável sabor
framboesa você vai adorar”; faz a sua venda e desce depois. Minutos após, há oferta de arnica
que é recomendada, em ritmo das narrativas de futebol, para dezenas de tipos de doenças. E
assim o ônibus parece se transformar em um palco em que sobem e descem
vendedores/artistas dos mais variados objetos: adesivos do Mikey, da Minnie, do Bob
44
Esponja, do Esmiliguido, personagens religiosas, chaveiro, canetas de diversas cores,
amendoim torrado, pamonha de doce e de sal, cocada de leite condensado, livros de poesias,
balas, bombons, chicletes, gominhas; isso, aquilo, um mundo de objetos que podemos
comprar sem clicar o botão do mouse ou nos dirigirmos a uma loja, como em uma feira
ambulante, uma feira em trânsito, que é animada pela fala dos vendedores ofertando e
convencendo e, pela fala do passageiro/cliente, escolhendo, indagando, pedindo desconto.
Porém, a narrativa chega ao seu clímax quando entram pedintes e relatam toda a sua vida de
infortúnios e desditas, encontros e desencontros, mais desencontros. Histórias que muitas
vezes em algum ponto se encontram com as das outras personagens-público que se comovem;
e esses lamentos, ao mesmo tempo que incomodam, servem como purgação de seus próprios
sofrimentos. Um teatro da vida real que se materializa através da/na cidade se narrando.
É interessante observar a capacidade do ser humano de misturar alegria e tristeza,
talvez, porque somos assim uma mistura de tudo, e de maneira tão rápida e repentina como
um arco-íris que aparece e desaparece após uma tarde tranqüila de chuva. Isso acontece
quando entram os palhaços, com suas caras pintadas, macacão, gravata e jaleco, nariz
vermelho e muita brincadeira, mexendo com um cidadão carrancudo, brincando com outro
que dorme; e o ônibus que antes parecia feira, teatro, vira circo, e seus artistas pedem ajuda
para pessoas que estão em tal hospital, e se dizem mensageiros da alegria, do bom humor e
destrincham a infinidade de doenças que esses sentimentos podem evitar e a maravilhosa
qualidade de vida que isso pode trazer, como se fosse num passe de mágica. E a cidade
arquitetada, “idealizada” rigorosa na norma e na organização se narra e se torna mais flexível,
extravasada, poliforme. A vida no e do ônibus, um movimento incessante de uma narrativa
que ali se produz, por meio de olhares, gestos, corpos e do próprio ônibus ali significando,
pois ele, assim como a janela de que Orlandi fala (Capítulo 3) é parte do sentido.
Aproximemos as câmeras e vejamos mais de perto esse ônibus, agora como cenário
enunciativo e discursivo, conversando com seus usuários-personagens-público, através das
entrevistas feitas, rápidas, instantâneas, como o fluxo, o ir e vir do próprio transporte, como
recorte para aprofundar um pouco mais a compreensão sobre o nosso objeto de estudo.
Começaremos com uma entrevista feita, no dia 19 de maio de 2007, com dois
vendedores de doces e balas em ônibus, nos trajetos Samambaia/Plano Piloto e Santa
Maria/Plano Piloto. Utilizaremos, neste caso, nomes fictícios para as pessoas entrevistadas.
Conversamos com eles, enquanto aguardávamos o ônibus: eu e eles. Um, o Sr. João, tem em
torno de 35 anos e é de cor parda e o outro, bem mais alto, aparentando 40 anos, o Sr.
Joaquim. Os dois carregavam aquelas cestinhas azuis de supermercado cheias de balas e
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bombons variados. Na verdade, já eram umas 9 horas da noite e eles estavam voltando para
casa depois de um dia (movimentado?) de vendas. É importante informar que os vendedores
em trânsito não trabalham em horário de pico, quando os ônibus estão muito cheios, pois eles
necessitam de espaço para circularem dentro do transporte. Ao perguntar a eles a respeito
desse trabalho de vender doces no ônibus eles responderam:
Sr. João: - Gostar a gente não gosta não, sofre muita humilhação tem motorista que dá carona, outros não. Fazer o quê? A gente tem de trabalhar. Têm alguns motoristas que pára e abre a porta; quando a gente chega perto ele sai com o ônibus e as pessoa fica tudo rindo.
Sr. Joaquim: - Lá em casa criei sete filhos vendendo doces e todos trabalhamos nesse ramo de vendas, três vende na rua e os outros trabalha com venda nas barracas da feira, em lugar fixo. Eu sou cozinheiro, mas o salário era pouco para sustentar tanta gente. Hoje até os empresário tão fazendo isso daqui uns dias os clientes não vai mais na loja pra comprar, muitos produtos é oferecido assim na rua.
Essa situação poderia representar, para o senso comum, a de muitos brasileiros que se
encontram excluídos, desempregados, fazendo um bico, e poderiam ser significados como
“coitados”. Porém com os dados da entrevista – palavras, gestos, tom de voz -, pudemos
perceber outras coisas, levando em conta a teoria, aqui, no caso, a da Análise do Discurso, que
trabalha a linguagem em trânsito entre o sujeito e o mundo, considerando que esta linguagem
é opaca. Pudemos apreender outros significados, “sair do discurso da circularidade (o da
urbanidade do urbano) para procurar pensar questões reais (da cidade, não sobre o urbano,
mas urbanas)” (ORLANDI: 2004, p. 30). Vejamos.
Primeiro. Para eles, o que eles fazem é um trabalho e não um quebra galho, como
muitos pensam. Isso fica mais claro na fala do segundo entrevistado quando ele diz que é
cozinheiro, mas ganha menos cozinhando que vendendo doces e, mais ainda, que acredita que
esse trabalho de levar o produto até o comprador é uma tendência nas empresas (as
vendedoras de Avon, Natura, por exemplo).
Outra coisa a se observar aí é o atrito entre o público e o privado já que
compreendemos o “espaço público urbano em seu aspecto simbólico político, pensando a
cidade como um espaço de linguagem em que se cruzam relações de poder” (ORLANDI,
2003, p. 8). Alguns motoristas não deixam esses vendedores entrarem no ônibus como o
primeiro entrevistado falou, por entender que o transporte, apesar de ser uma obrigação do
Estado para com a população, é uma propriedade particular e para circular nela é necessário o
pagamento da passagem. E esses vendedores de objetos entram pela porta de trás sem pagar.
Muitas vezes, o que acontece é um acordo silencioso entre estes e os motoristas, em que um
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libera a livre circulação e o outro lhe paga oferecendo um doce. No Metrô, essa vigilância é
ainda maior, pois nas mensagens sonoras que são emitidas nas estações já predomina o
discurso da punição, caso as ordens sejam desrespeitadas, para vendedores de objetos ou
apresentadores de espetáculos como os palhaços do ônibus. Estes últimos são permitidos
somente quando se trata do que chamam “apresentações culturais”, mas somente em áreas
reservadas em determinadas estações, chamadas de “espaço cultural”. É possível perceber aí o
discurso do urbano funcionando.
É interessante observar a tensão entre esse espaço “público” e os vendedores e
palhaços, marginais do comércio e de espetáculos, falas desorganizadas que, segundo Orlandi
desorganiza o discurso do urbano. Utilizamos a palavra marginal aqui no sentido de que fica à
margem, não fazem parte do discurso do urbano. Essa relação entre permitido e proibido e
espaço público funciona mais ou menos como diz Foucault em seu livro “A Ordem do
Discurso” (1996), quando se refere à instituição “torna os começos solenes, cerca-os de um
círculo de atenção e de silêncio, e lhes impõe formas ritualizadas, como para sinalizá-los à
distância” (p 6). As instituições do poder político também tentam controlar como devem ser
as relações nas cidades, as formas de vivências e atos dos cidadãos. Há os discursos
permitidos e os ilícitos, e as atitudes dos sujeitos na rua (no sentido de espaço público)
também são categorizadas e enquadradas.
Brasília é uma cidade que não foge a essa regra, vigiando e punindo aqueles que não
se enquadram no projeto organizador de suas relações. Como a cidade organizada de Bluteau
(Capítulo 1), esta parece um soldado marchando com passos determinados em um só ritmo ou
de pouca variação. Porém, ao considerar esses pontos de materialização, que não são somente
os que tomamos como corpus, mas outros, como “o rap, a poesia urbana, os grafitos,
pichações, inscrições, rodas de conversas, tatuagem” (ORLANDI, 2004), os espetáculos dos
homens que engolem fogo no semáforo, que fazem malabarismos com bolinhas, a cidade
parece ganhar mais movimento, parece se mover como uma musa que dança no carnaval dos
acontecimentos. Bakhtin considerava o romance polifônico. Considero que sejam assim,
também, as cidades com seus flagrantes, sua narratividade se fazendo em seus percursos.
Passemos, agora, para as entrevistas de alguns passageiros do ônibus, que foram feitas
entre os dias 27 e 28 de maio de 2007, quando o ônibus estava mais vazio e dava para
dialogar tranquilamente. O primeiro entrevistado foi um rapaz de mais ou menos 21 anos,
baixo, magro, cabelos preto, muito falante, formado em geografia pela UnB; o segundo, um
senhor de aproximadamente 34 anos, alto, magro, de cor morena, de gestos contidos, que
trabalha como carteiro; a terceira, uma jovem de 22 anos, alta, de cor branca, bastante
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engraçada, estudante. O quarto entrevistado era alto, cor branca, magro e aparentava ter em
torno de 23 anos. A pergunta foi a mesma para todos os entrevistados. “O que vocês
observam quando andam de ônibus? Como percebem a cidade?”. Não foi usado gravador,
mas anotações.
1º Entrevistado: Quando pego o ônibus pela manhã, a vida parece mais alegre, talvez porque o dia esta iniciando. Observo as pessoas, o humor, o comportamento delas. Percebo que a cidade é uma engrenagem que para chegar no horário aos lugares não depende apenas de nós, e o que mais me desespera é ver o tanto de tempo que estou perdendo dentro do ônibus tentando chegar no Plano. Observo muito essa transição da Cidade Satélite para o Plano Piloto, a diferença é gritante aqui as coisas parecem improvisadas, e no Centro (Plano) tudo é tão bem desenhado, para mim é realmente uma cidade futurista onde tudo foi feito para facilitar, para dar praticidade aos habitantes.
2º Entrevistado: Vejo falta de consideração com os passageiros, ônibus velhos, sucateados. Com relação as pessoa observo passageiros inconformado e estressado com o sistema de transportes. Acho assim com relação a cidade, acho que algumas deveria ter mais ônibus e não têm . Brasília é uma coisa assim, depende muito do mês, por exemplo, agora nesse mês a paisagem é mais feia. As cidades do Goiás são mais feias. Até mesmo as Satélites são mais organizadas. Quanto a Cidade Satélite e Plano Piloto o ônibus é mais novo e mais bonito, tem até televisão, som, no Plano, e nas Satélites os ônibus são velhos e os empresários olha a pavimentação das vias, por exemplo, eu que já trabalhei em uma empresa de ônibus já observei bastante isso. Porque se eles colocarem um ônibus novo em uma via esburacada eles vão ter mais prejuízo
3º Entrevistada: O comércio é o que me chama mais atenção, porque sou muito consumista. Observo as pessoas na parada procurando um conhecido. As novidades da cidade, se abriu uma loja nova. As faixas quero ler todas para ver se tem liquidação. Gosto de ver as cores das casas, os carros, os outdoors, as propagandas. Observo as pessoas para ver como se vestem. Presto atenção nas conversas, até me meto nelas.
4º Entrevistado: O que vejo, observo quando ando de ônibus? Depende, quando estou indo para o Plano vejo uma Brasília mais organizada com mais verde. Se vou para Taguatinga, Samambaia, Santa Maria, Ceilândia vejo cidades feias desorganizadas, meio que abandonadas. É visível que Brasília foi planejada e essas outras cidades parecem ter sido improvisadas. Sei que moro em Candangolândia, no DF e não no Plano Piloto, mas quando viajo digo que moro em Brasília, porque as pessoas conseguem localizar onde moro. Na verdade todo mundo aqui sabe que mora em Cidades Satélites, mas todos se sentem de Brasília, até as pessoas do entorno como Luziânia, Brazlândia, Valparaíso se dizem de Brasília.
Antes de começarmos analisar as falas dos entrevistados é importante saber que,
segundo Orlandi (2005):
Esta etapa prepara o analista para que ele comece a vislumbrar a configuração das formações discursivas que estão dominando a prática discursiva em questão. O que ele faz é tornar visível o fato de que ao longo do dizer se formam famílias parafrásticas relacionando o que foi dito com o que não foi dito, com o que poderia ser dito etc. (p. 78).
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Seguiremos a nossa análise observando os deslizamentos, a ligação de um dizer a
outros, os efeitos metafóricos (não como desvio, mas como transferência), o que permite a
articulação entre estrutura e acontecimento, pois para AD “o processo de produção de
sentidos está necessariamente sujeita ao deslize, havendo sempre um “outro” possível que o
constitui” (p. 78).
Voltando à questão do discurso do urbano que silencia o real da cidade, podemos
observar a força deste sobre o urbano na fala do primeiro entrevistado quando ele descreve
Brasília (Plano piloto) como uma “cidade futurista”, organizada, e a cidade satélite, mesmo
atualmente sendo bastante desenvolvida, como “improvisação”. Percebe-se aí o imaginário
estabelecido a respeito da cidade idealizada de que tratamos no Capítulo 2. Há aí um
silenciamento de outras significações que poderiam ser vista pelo entrevistado:
“Os olhos não vê coisas, mas imagens de coisas que significam outras coisas. Ele percorre os caminhos como páginas: a cidade diz tudo o que você deve pensar e faz você repetir seus discursos” (CALVINO, 1972, p.22).
Outro ponto interessante que apareceu na primeira entrevista é a ligação do tempo com
o estar fazendo algo, tendência desse período em que vivemos, ou seja, de que devemos estar
sempre lendo, fazendo exercício para saúde, ganhando dinheiro, estudando em contato com a
informação e que o simples fato de estar no ônibus constitui uma perda de tempo.
Já a fala do segundo entrevistado parece mostrar essa divisão entre Plano Piloto e
Cidades Satélites. Se pensarmos bem, os moradores do Plano raramente andam de ônibus se
comparado aos das Satélites então por que essa diferença em que em um lugar os ônibus são
bem equipados, novos se não são tão intensamente utilizados, e no outro, sucateados. Quem
define isso? Parece haver aí a forte predominância das relações de poder. Ainda na fala desse
entrevistado é possível perceber que há uma diferença de conceituação das Cidades Satélites
enquanto espaço físico (como organizado), talvez porque ele toma como referência outro
ponto: as Cidades do Entorno e não o Plano Piloto, como o primeiro e o quarto entrevistado.
Quanto à terceira entrevistada, vemos um sujeito que se vê atraído pelo mundo do
consumismo. O ônibus não serve apenas como meio de transporte, mas como uma revista, um
folheto, um portal da internet, espaços que aparecem os últimos lançamentos da moda e os
lugares em que se pode consumir, e revela “o sujeito urbano como corpo em que o “capital”
está investido” (ORLANDI, 2004, P.28). Na verdade, a cidade se constitui aí como “tráfego
constante e ininterrupto, circulação constante de veículos, pessoas e informações” (LIMA,
2000, p.186).
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No livro “O Imaginário da Cidade”, organizado por Rogério Lima e Ronaldo Costa
Fernandes (2000), temos um artigo do próprio Rogério Lima intitulado “A permanência das
imagens e os fragmentos da esquina: Wim Wenders e Paul Auter e as formas de imaginação
da cidade”, em que o autor fala que Martin-Barbero, autor do livro Cidades Virtuais: novos
cenários da comunicação (1998), chama nossa atenção para o fato de que para os urbanistas,
sua função não é fazer com que os cidadãos se encontrem e, sim, que circulem, já que não se
deseja mais as pessoas reunidas e, sim, conectadas. Se observarmos melhor as respostas,
principalmente a dos dois primeiros entrevistados, perceberemos a maneira como
inconscientemente estamos mergulhado neste mundo incessante de informação, de
velocidade, de acontecimentos simultâneos, fragmentários. Segundo a história oficial, as
intenções dos urbanistas de Brasília eram a de construir uma sociedade mais justa e mais
fraterna. Parece que esse sonho foi atingido pelas transformações que excedem essa intenção,
pois Brasília não é uma ilha isolada no meio do oceano e, sim, uma cidade que como as outras
sofre as transformações de um mundo globalizado, consumista e individualista.
Mas, por outro lado o imaginário de uma Brasília bem planejada, organizada,
circula pelas cidades dos entrevistados, pois três deles mencionaram essa visão da cidade.
Outra coisa interessante para se observar é como esse sujeito brasiliense, não o burocrático, o
administrativo, que mora no Plano Piloto, mas aquele outro, que mora na Cidade Satélite se
posiciona (significa) com relação a morar ou não, fazer parte ou não de Brasília. Esse sujeito
revela uma identidade em trânsito: entre ser e estar ou não ser/não estar de/em Brasília. Isso se
revela quando o quarto entrevistado diz “na verdade todo mundo aqui sabe que mora em
Cidade Satélite, mas todo mundo se sente de Brasília”.
Rodrigues em seu artigo “As representações da cidade no discurso literário: a rua
de Clarice Lispector”(2001), observa a relação de Macabéa com o espaço urbano, com a rua,
e a forma de subjetivação que se constrói aí, e revela, dentre outros, um ponto bastante
interessante: em contato com a vida real, Macabéa se perde em devaneios. Aliás, percebemos
aí uma certa aproximação dessa personagem com a 3ª entrevistada desse TCC. Observe o
fragmento retirado do texto de Rodrigues, transcrito do livro em que ela observa a
personagem em questão.
Vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes de jóias e roupas acetinadas – só para se mortificar um pouco. É que ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro. (p.50)
Quando ia ao trabalho parecia uma doida mansa porque ao correr do ônibus devaneava em altos e deslumbrantes sonhos.
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Outro ponto interessante desse artigo é quando a autora percebe os efeitos de sentido
que a rua produz, através de Macabéa, como lugar de anonimato, de invisibilidade, o que está
ligada a uma questão de que Orlandi trata: a de que pensar a cidade é considerar a questão de
quantidade que não pode ser evitada e para significar diferentemente do sentido já
estabelecido, da homogeinização pelos discursos dominantes como o do urbano, é necessário
metaforizar, buscar outras significações para esse espaço em narratividades que se
materializam no corpo da própria cidade. O real da cidade, onde sujeitos e sentidos se
constituem. Percebemos que “habitar a cidade é participar minimamente da vida pública,
mesmo que isso signifique, tão somente, submeter-se a regras e a regulamentos”
(RODRIGUES, 2001, p. 179). Porém, percebemos que somente submeter-se a regras e
regulamentos talvez não seja possível, pois parece da natureza humana extrapolar limites
sejam eles de que natureza for. Assim, os regulamentos e as normas parecem querer também
abarcar esse real da cidade, mas, como já dissemos anteriormente, ele é inapreensível, assim
como o real da língua o que possibilita o aparecimento de novos sentidos, novas descobertas.
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Conclusão
Estudar a cidade de Brasília, tomando como recorte o ônibus, foi um período de longo
aprendizado e desafio. Percebi que as teorias se tornam mais claras quando relacionadas, ou
testadas pelo analista através do seu dispositivo teórico, pos aí o analista reflete não “apenas
no sentido do reflexo, da imagem, da ideologia, mas reflete no sentido do pensar, contemplar”
(ORLANDI, 2005, p. 61). Os sentidos que emergiram durante o desenvolvimento deste TCC
foram resultados de questionamentos, reflexões, estabelecimento entre a teoria e o corpus,
entre o real da língua, o real da história e o real da cidade. O trabalho de pesquisa, muitas
vezes, nos levava a caminhos que não pensávamos em percorrer, mas que nos revelava a
inestimável experiência do novo. Porém, é importante ressaltar que um objeto de estudo é
inesgotável e que “não há discurso fechado em si mesmo, mas um processo discursivo do qual
se podem recortar e analisar estados diferentes” (p.62).
Apesar das dificuldades enfrentadas durante este trabalho percebi que a leitura, a
reflexão e a escrita devem fazer parte do cotidiano do acadêmico, pois só assim, ele aprenderá
a olhar criticamente os acontecimentos. Percebi também, que o conhecimento, assim como o
discurso, se sustenta na incompletude: está sempre em construção assim como os sujeitos.
Somente através desse caminho árduo, que é o do constante aprendizado, é que conseguimos
aliar conhecimento e realidade para encontrar alternativas diante do imposto, determinado, do
que parece irredutível e inflexível. Ao trabalhar com a Análise de Discurso passei a ver a
cidade de maneira significativa e a compreender que o sentido é história e que é na/pela
história que os sujeitos se significam. Por mais que tenhamos conseguido chegar a algumas
conclusões a respeito dos processos de individualização do sujeito de Brasília, percebo-o,
ainda como a própria cidade: um desafio com suas determinações.
Se observarmos as Cidades Satélites parece haver nelas retratos de memórias de outras
cidades do Brasil, como a idéia de rua como divisão do espaço. Não há grandes espaços
vazios como no Plano Piloto e tem-se a impressão de um espaço entulhado, porém, com tudo
e todos mais próximos. Essa memória que traz lembranças de outras cidades, de outras épocas
para o sujeito, continua funcionando como podemos ver nas tentativas de instalar em Brasília
(Plano Piloto) essa divisão de espaço em ruas, com a conhecida “rua das farmácias”, que fica
na CLS 102/302 e a “rua da Igrejinha”, na entrequadra 307/308 Sul. Por mais que a norma
tenha estabelecido outra referência de endereço para esse espaço, a memória, que é
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incontrolável, remete ao espaço simbólico das ruas. Romper com a história e a memória
parece ser algo impossível.
Como conclusões muito provisórias, talvez mais como possibilidades de trabalhos
futuros, poderíamos dizer que observamos posições de sujeito marcadas pela ambigüidade,
pela divisão, que o espaço simbólico das formas da cidade não se cansa de atravessá-lo. Um
sujeito ambíguo como a própria cidade, resultado da fusão de inúmeras culturas dentro de um
espaço idealizado que nasceu para ser símbolo do diferente.
Vemos um imaginário forte, com sentidos estabilizados, circulando nessas posições,
mas também, as brechas que se abrem neste mesmo imaginário, para o que Orlandi chama da
“equivocidade do comum”. Observamos, sem tempo suficiente para sistematização e
compreensão, que embora no dito encontrássemos o discurso do urbano funcionando, há
hesitações, perguntas, dúvidas, questionamentos, reivindicações constantes nessas falas, que
mostram que o discurso urbano também está ali presente.
Um ônibus: uma janela para o sujeito olhar o mundo, perder-se e achar-se; um ponto
de encontro-desencontro dos sujeitos urbanos; um cenário para o banal e o fantástico da vida
se aliarem e se confrontarem. Um lugar para pensar o sentido da narrativa, do poético, do
drama, da tragédia, da comédia, mas também do público, do político. Um espaço para o
sujeito urbano, o cidadão brasiliense, no seu cotidiano, (re)significar o comum da sua vida
comum.
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