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Mutação constitucional e democracia Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 355 FRANCA – SÃO PAULO MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E DEMOCRACIA: UMA (DES)CONSTRUÇÃO HERMENÊUTICA DO PROBLEMA DA INTERVENÇÃO DO SENADO EM SEDE DE CONTROLE DIFUSO DA CONSTITUCIONALIDADE CONSTITUTIONAL CHANGES AND DEMOCRACY: A HERMENEUTICS (DES)CONSTRUCTION OF THE PROBLEM OF INTERVENTION OF THE SENATE LONGING DIFFUSE CONTROL OF CONSTITUTIONALITY Tayara Talita Lemos 1 Rafael Tomaz de Oliveira 2 Rafael Shinhiti Kato Marina Monteiro Joaquim Eduardo Pereira Gabriela Vidotti Ferreira Sumário: Notas introdutórias. 1. Exploração histórica do sentido da intervenção do Senado no controle difuso de constitucionalidade. 1.1. O Constitucionalismo Limitação do Poder e Pré-Compromisso e a Jurisdição Constitucional. 1.2. A Judicial Review e suas Implicações na Experiência Constitucional Brasileira. 1.3. Considerações Globais Sobre o Problema “Genético” do Sistema Jurídico Romano-Germânico: a Falta De um Mecanismo de Vinculação dos Precedentes. 2. É a mutação constitucional fundamento suficiente e adequado para modificar o sistema de controle de constitucionalidade?. 2.1. Breves Considerações a Respeito da Mutação Constitucional. 2.2. Discussão Contextualizada. 2.2.1. O cabimento da reclamação. 2.3. O Entendimento Adotado Pelos Ministros que Votaram na Reclamação e o Texto da Constituição, art. 52, X. 3. Mutação constitucional e democracia: como essas questões repercutem no paradigma do Estado Democrático de Direito. 3.1. O Estado Democrático de Direito, como Contexto Propício ao Desenvolvimento do Neoconstitucionalismo e da Jurisdição Constitucional. 3.2. É a jurisdição constitucional um poder constituinte permanente? O art. 52, X da CF: mutação constitucional e seus reflexos na crise de democracia. Considerações finais. Referências bibliográficas. 1 Mestranda em Direito pela UFMG. 2 Doutorando e Mestre em Direito pela Unisinos.

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FRANCA – SÃO PAULO

MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E DEMOCRACIA: UMA

(DES)CONSTRUÇÃO HERMENÊUTICA DO PROBLEMA DA

INTERVENÇÃO DO SENADO EM SEDE DE CONTROLE

DIFUSO DA CONSTITUCIONALIDADE

CONSTITUTIONAL CHANGES AND DEMOCRACY: A HERMENEUTICS (DES)CONSTRUCTION OF THE PROBLEM OF INTERVENTION OF THE SENATE LONGING DIFFUSE CONTROL OF

CONSTITUTIONALITY

Tayara Talita Lemos1

Rafael Tomaz de Oliveira2

Rafael Shinhiti Kato

Marina Monteiro

Joaquim Eduardo Pereira

Gabriela Vidotti Ferreira

Sumário: Notas introdutórias. 1. Exploração histórica do sentido da intervenção do Senado no

controle difuso de constitucionalidade. 1.1. O Constitucionalismo – Limitação do

Poder e Pré-Compromisso – e a Jurisdição Constitucional. 1.2. A Judicial Review e

suas Implicações na Experiência Constitucional Brasileira. 1.3. Considerações

Globais Sobre o Problema “Genético” do Sistema Jurídico Romano-Germânico: a

Falta De um Mecanismo de Vinculação dos Precedentes. 2. É a mutação

constitucional fundamento suficiente e adequado para modificar o sistema de

controle de constitucionalidade?. 2.1. Breves Considerações a Respeito da Mutação

Constitucional. 2.2. Discussão Contextualizada. 2.2.1. O cabimento da reclamação.

2.3. O Entendimento Adotado Pelos Ministros que Votaram na Reclamação e o Texto

da Constituição, art. 52, X. 3. Mutação constitucional e democracia: como essas

questões repercutem no paradigma do Estado Democrático de Direito. 3.1. O Estado

Democrático de Direito, como Contexto Propício ao Desenvolvimento do

Neoconstitucionalismo e da Jurisdição Constitucional. 3.2. É a jurisdição

constitucional um poder constituinte permanente? O art. 52, X da CF: mutação

constitucional e seus reflexos na crise de democracia. Considerações finais.

Referências bibliográficas.

1 Mestranda em Direito pela UFMG.

2 Doutorando e Mestre em Direito pela Unisinos.

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NOTAS INTRODUTÓRIAS

As presentes reflexões tiveram por objetivo investigar uma questão que se

apresenta na ordem do dia no âmbito dos temas de interesse em torno do controle

de Constitucionalidade brasileiro. Trata-se do problema da supressão do mecanismo

da remessa/intervenção do senado em sede de controle difuso de

constitucionalidade (CF, art. 52, X).

Com efeito, o mecanismo da intervenção do senado em sede de controle

difuso da constitucionalidade é uma criação brasileira – incorporada à nossa tradição

jurídica desde a Constituição de 1934 – que procura sanar uma deformidade

estrutural deste mecanismo de controle em razão da falta de um mecanismo de

vinculação dos precedentes (stare decisis) em nosso sistema jurídico (Civil Law –

sistema romano-germânico).

A intervenção do senado tem a pretensão de fortalecer o sistema de freios e

contrapesos (check and balances) na relação interinstitucional entre as três funções

do poder do Estado. Nessa medida, qualquer alteração no desenho constitucional

em que figura tal medida implica no problema da democracia.

Em decisão recente3, dois ministros do Supremo Tribunal Federal – Gilmar

Ferreira Mendes e Eros Grau – firmaram posição no sentido de que, em virtude das

muitas reformas constitucionais operadas pelo Poder Constituinte Derivado e pela

própria formatação do controle de constitucionalidade no ordenamento jurídico

brasileiro, apontam in casu para uma transformação global do sistema; operando

assim uma verdadeira mutação constitucional que assinalaria para a supressão da

intervenção do senado para produzir eficácia erga omnes e efeito vinculante para as

decisões do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade. Em outras

palavras, a decisão do STF em sede de controle difuso teria os mesmo efeitos

daquela proferida em sede de controle concentrado.

Diante disso, foram diagnosticados os seguintes problemas:

A) Qual o significado atual da intervenção do senado no contexto

apresentado, diante do fato de que tal medida serviria para solucionar um

3 Reclamação 4335 – AC.

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problema genético (a falta de um mecanismo de vinculação dos

precedentes) do sistema jurídico romano-germânico?

B) Em que sentido é válida a afirmação de que exista mutação constitucional

(supressão da intervenção do Senado) no caso em tela, considerando o

problema hermenêutico inexoravelmente presente na questão?

C) Tal afirmação encontraria respaldo no paradigma do Estado Democrático

de Direito? É a intervenção do senado um mecanismo ainda importante

para a convivência democrática dos três poderes?

A exploração de tais problemas teve lugar, não de um modo aleatório,

desprendido de um quadro metodológico, mas sim a partir do revolvimento do chão

linguístico possibilitado pela hermenêutica contemporânea4.

O Método escolhido para a pesquisa ser realizada é o Fenomenológico-

Hermenêutico. Trata-se de um projeto transdiciplinar que pretende discutir a delicada

relação entre Direito e Política – no que tange ao momento concretizador da norma:

a decisão judicial – tendo como horizonte a experiência filosófica, notadamente

naquela corrente que se instituiu no século XX intitulada hermenêutica. O método da

pesquisa, portanto, tem sua fonte na própria discussão filosófica sobre o método.

Nessa medida, é importante destacar que a ideia de método se transformou

no interior da modernidade, de modo que é possível falar em pelo menos duas

acepções para o termo, que mencionaremos nesta pesquisa como “método” e

método. Quando utilizarmos o termo entre aspas, procuraremos apontar para a

fenomenologia, enquanto um como um modo de filosofar. Quando se mencionar o

termo sem aspas, estaremos falando do método em seu sentido produzido no

interior da modernidade, ou seja: ideia de certeza e segurança próprias da

matematicidade do pensamento moderno. Assim, e de modo decisivo, podemos

estabelecer a diferença específica entre os dois modos em que empregamos o

termo afirmando que o método da modernidade é sempre acabado e definitivo. São

4 Há várias pesquisas realizadas no direito brasileiro que levam em conta o referencial da

hermenêutica no modo como ela foi desenvolvida pelos trabalhos de Martin Heidegger e Hans-

Georg Gadamer. Isso se deu, principalmente, a partir dos caminhos abertos por Ernildo Stein no

campo da filosofia e por Lenio Streck no âmbito do Direito. Nesse sentido, Cf. Stein (2006); Streck

(2009); Streck (2008); Marrafon (2008); Oliveira, (2008). Oliveira; Abboud (2008, p. 27-70).

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fórmulas previamente determinadas que, se seguidas corretamente, irão garantir

com certeza e segurança o resultado pretendido. Já o “método” (enquanto

fenomenologia) é sempre precário e provisório e não permite sua total apreensão e

domínio. Tanto é assim que Martin Heidegger – a quem devemos o desenvolvimento

do método fenomenológico para além das conquistas husserlianas – nunca chegou

a expor com precisão quais seriam os contornos de seu “método”. “Método” este que

receberá ainda o adjetivo de hermenêutico (OLIVEIRA, 2008, p. 36 e ss).

Quanto ao “método” propriamente dito, interessam-nos particularmente três

pontos que o próprio Heidegger oferece como descrição, e que parecem exprimir, de

um modo englobante, aquilo que o “método” fenomenológico comporta5. São elas: a)

a redução; b) a destruição; c) a construção.

Pela redução é preciso deslocar o olhar do ente em direção ao ser, de modo

que aquilo que permanece oculto no que se mostra, possa se manifestar. A

destruição apresenta-se como um procedimento regressivo através da história da

filosofia (autores como Günter Figal falam em repetição fenomenológica),

procurando destruir as sedimentações que se formam na linguagem e endurecem a

tradição. Ou seja, trata-se de ler a tradição de modo que seja possível perceber nela

possibilidades que ficaram inexploradas por uma série de encobrimentos. Neste

sentido, com Gadamer, ressaltamos que a palavra fenomenologia não implica

apenas em descrição daquilo que é “dado” à consciência, mas também inclui a

supressão do encobrimento que não precisa consistir apenas em falsas construções

teóricas (GADAMER, 2007, p. 16).

Esta afirmação de Gadamer é importante na medida em que, com

Heidegger, tem-se uma verdadeira renovação da intenção da filosofia e do próprio

método fenomenológico: quanto à filosofia, Heidegger a libera do corte

opressivamente teórico que a marcava desde Descartes e a matematização do

pensamento na modernidade, e abre caminho para sua invasão pela história, para a

colocação da história como modelo de pensamento; ao passo que, na

fenomenologia, enquanto como da investigação ou “método”, o filósofo rompe com a

orientação para a descrição daquilo que é dado à consciência pela intencionalidade,

5 Nesse sentido, Cf. Heidegger (2000), em especial a introdução.

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para estabelecer a superação dos atrelamentos existentes na linguagem que

implicam em encobrimento das possibilidades existentes na tradição. Como já

ressaltamos em nota, Heidegger substitui o termo dado – tão caro à fenomenologia

transcendental de Husserl – por acontecer, que procura apontar para a

compreensão do ser na abertura do ser-aí. Isso é de extrema importância porque,

em Husserl, a fenomenologia continuava refém do dualismo metafísico entre

sensível e suprassensível e do esquema sujeito-objeto, o que tornava artificial

qualquer possibilidade de um pensamento da história – e consequentemente das

ciências humanas. Isto porque o conceito de intencionalidade e do “dado” a ser

descrito, continuam pressupondo um sujeito que recebe – monadologicamente – um

objeto intencionado em sua consciência. Para Heidegger, tanto o elemento sensível

como o suprassensível só podem ser pensados na radicalidade da própria

existência, estando excluída qualquer possibilidade de justificação de um “mundo

paralelo” no qual os dados sensíveis fossem pensados de um modo suprassensível.

(STEIN, 2006).

Tendo isso presente, podemos dizer que a destruição se mostra como o

elemento fenomenológico que nos permite olhar para a tradição orientados pelo

desentranhamento das possibilidades que nela permanecem enrijecidas. Como

lembra Figal, para Heidegger a grandeza da fenomenologia reside, basicamente, na

descoberta da possibilidade do investigar na filosofia (FIGAL, 2005). Mas uma

possibilidade compreendida em seu sentido mais próprio no qual ela permanece

retida como possibilidade. Esse permanecer retida como possibilidade não implica

num estado causal em relação à problemática “efetivamente real”, mas antes em

mantê-la aberta e liberá-la dos soterramentos atuantes.

O último elemento lembrado por Heidegger (a construção) pertence em

verdade à destruição. Isto porque a repetição da tradição com a consequente

supressão de seus encobrimentos linguísticos não representa uma pura negação

dela. Tampouco representa a destruição um prejuízo no qual a tradição tenha que

ser totalmente removida, a partir da instituição de uma espécie de “grau zero”, senão

que a destruição implica numa apropriação positiva do passado que sempre

possibilita a construção de novos projetos.

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Redução, destruição e construção são elementos do método

fenomenológico hermenêutico que apontam para uma necessária recolocação da

história no âmbito da investigação dos temas das ciências humanas e sociais. Ou

seja, essas ciências que têm a peculiaridade de explorarem o mundo da cultura,

precisam ter a história como modelo para poder colocar suas conquistas num

terreno mais robusto do ponto de vista existencial. É nesse sentido que os trabalhos

foram desenvolvidos e os problemas destacados nesta introdução, enfrentados.

1 EXPLORAÇÃO HISTÓRICA DO SENTIDO DA INTERVENÇÃO DO SENADO NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

1.1 O Constitucionalismo – Limitação do Poder e Pré-Compromisso – e a Jurisdição Constitucional

No contexto dos projetos democráticos, desenvolvidos no segundo pós-

guerra, diversos autores têm apontado para o papel estratégico desempenhado

pelos meios de concretização das previsões constitucionais. Essa constatação

relevante se elucida com a percepção de que todos os países que atravessaram um

período de exceção acabaram por optar por um modelo constitucional garantidor

(nos moldes daquilo que tem sido chamado neoconstitucionalismo) e, ao mesmo

tempo, deslocaram para o judiciário um inevitável foco de atenções, representado

pelo caráter incisivo assumido pela jurisdição constitucional.

Desse modo, o Poder Judiciário é chamado cada vez mais a participar do

deslinde das questões públicas e, concomitantemente, o problema de como será

proferida esta decisão também surge como uma questão salutar. Nessa medida,

pode-se dizer, com Lenio Streck, que o grande problema contemporâneo é o

desenvolvimento de anteparos para a atividade jurisdicional (STRECK,

(Apresentação ao livro de TRIBE e DORF, 2007).

De fato, o histórico do constitucionalismo, especialmente a partir das

grandes revoluções, aponta para o ideal de constituição como meio eficaz de

limitação do poder e consequente garantia das liberdades (MATTEUCCI, 1998, em

especial a introdução).

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Revestem-se, assim, as constituições modernas com a roupagem de pré-

compromisso, no sentido de que operam como restrições que os próprios atores

políticos estabelecem para si e para as gerações futuras, na intenção de garantir um

governo que esteja sob o Direito, e não sobre ele. Ou seja, com Stockton, é possível

dizer que “constituições são correntes com as quais os homens se amarram em

seus momentos de sanidade para que não morram por uma mão suicida em seu dia

de frenesi”. Bem como se poderia asseverar, como o faz Cass Sunstein, que “as

estratégias de pré-compromisso constitucionais poderiam servir para superar a

miopia ou a fraqueza da vontade da coletividade”6.

Jon Elster propõe um modo bastante elucidativo para compreender as

estratégias limitadoras desenvolvidas pelo constitucionalismo. O autor estabelece

uma sequência de três estágios, que podem ser visualizados de modo distinto nos

três modelos constitucionais (ING, FRA, EUA):

No primeiro, há uma forte monarquia que é percebida como arbitrária e tirânica. No segundo, esta é substituída por um regime parlamentar sem restrições. No terceiro, quando se descobre que o parlamento pode ser tão tirânico e arbitrário quanto o rei, são introduzidos freios e contrapesos (ELSTER, 2009, p. 167).

O último estágio, caracterizado pelo mecanismo de freios e contrapesos,

evoca a experiência constitucionalista estado-unidense. Neste país (ainda em

formação), algumas características vieram a fertilizar o terreno donde nasceria o que

6 Ambos citados por Elster (2009, p. 120). Aliás, é importante anotar, que foi Elster quem melhor

trabalhou a aproximação entre a ideia de pré-compromisso que aparece na Odisséia de Homero e

as modernas Constituições, principalmente aquela que representa a consagração do

constitucionalismo norte-americano. Com efeito, no épico de Homero, Ulisses, durante seu

regresso a Ítaca, sabia que enfrentaria provações de toda sorte. A mais conhecida destas

provações é o “canto das sereias” que, por seu efeito encantador, desviava os homens de seus

objetivos e os conduzia a caminhos tortuosos, dos quais dificilmente seria possível voltar. Ocorre

que, sabedor do efeito encantador do canto das sereias, Ulisses ordena aos seus subordinados

que o acorrentem ao mastro do navio e que, em hipótese alguma, obedeçam qualquer ordem de

soltura que ele venha a emitir posteriormente. Ou seja, Ulisses sabia que não resistiria e, por isso,

cria uma auto-restrição para não sucumbir depois. Do mesmo modo, as Constituições poderiam

ser vistas como as correntes de Ulisses, através das quais o corpo político estabelece algumas

restrições para não sucumbir ao despotismo das futuras maiorias (parlamentares ou

monocráticas). Todavia, Elster revisitou essa sua construção e a entende, atualmente, apenas

parcialmente correta. Isso por uma série de questões que não cabem serem aqui analisadas. Para

efeitos do que aqui pretendo encaminhar, entendo continuar correta a ideia de pré-compromissos

constitucionais tal qual Elster havia descrito em Ulisses and the Sirens.

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atualmente conhecemos como controle difuso da constitucionalidade. Isso porque os

norte-americanos conheciam as construções teóricas do iluminismo inglês e francês

e sabiam das medidas que a Inglaterra e a França vinham tomando para moderar o

poder do Rei. Ao se aproveitar dessas construções, a revolução americana edifica

uma série de aportes teóricos que transformam profundamente o constitucionalismo:

a) em primeiro lugar, a afirmação de um sistema federalista de governo que

garantiu autonomia administrativa e legislativa aos Estados (treze colônias

independentes);

b) a criação de uma nova modalidade de limitação do poder com a

construção de instrumentos que procuram travar a “vontade” das maiorias eventuais

– prevenindo um possível governo arbitrário por parte destas maiorias, uma vez que

os representantes eleitos pelo voto majoritário poderiam se tornar um tipo de

“aristocracia de fato”7 – a partir da garantia dos direitos da minoria. Estratégia

justificada na desconfiança de Madison formulada no seguinte enunciado: “em todos

os casos em que a maioria está unida por um interesse ou paixão comum, os

direitos da minoria estão em perigo”.

c) A criação de um ambiente cultural no interior do qual a lei ocupa o lugar

do rei, em contraposição aos modelos absolutistas em que o rei é a lei. Desse modo,

a afirmação de Thomas Paine de que “uma Constituição não é um ato de um

governo, mas sim o ato de um povo que cria um governo”, ou, em outras palavras,

“um governo sem Constituição é um poder sem direito”, encontra terreno fértil para

brotar e dar frutos (MATTEUCCI, 1998, p. 164)

O resultado disso é uma construção histórica – herdada dos arestos de Sir

Edward Coke – que institucionalizou a revisão dos atos do congresso e do executivo

pelo poder judiciário. Assim, a jurisdição constitucional8 – no caso em análise, o

7 A expressão é de Mirabeu e utilizada por Elster ( 2009, p.169).

8 Importante salientar que o termo jurisdição constitucional tem um sentido decisivo naqueles países

que, adotando a fórmula de Tribunais Constitucionais ad hoc, possuem um órgão especializado

para se pronunciar sobre questões envolvendo a constitucionalidade das leis e demais matérias

determinadas pela própria constituição. Dessa maneira, se diferencia a jurisdição ordinária

(comum) da jurisdição constitucional, que aparece como uma espécie de jurisdição especializada.

No Brasil, essa significação perde sentido, na medida em que nos ordenamos por um sistema

misto de controle da constitucionalidade no qual convivem o modelo difuso, baseado no judicial

review americano e o modelo concentrado, de inspiração continental. Ademais, a despeito de o

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exercício da judicial review of legislation – veio a tornar-se a garantia de que o pré-

compromisso constitucional seria devidamente cumprido. E isso é consequência da

verdadeira soberania da lei; não de qualquer lei, mas daquela que passa a ser

entendida como a lei das leis, a paramont law, dotada de supremacia e rigidez: a

Constituição. Nas palavras de Matteucci: “em lugar da velha lei consuetudinária, uma

Constituição escrita, que contém os direitos garantidos aos cidadãos por um juiz,

que fixa e declara a lei” (MATTEUCCI, 1998, p. 169).

Desse modo – e para se ter a dimensão da importância estratégica da

judicial review no contexto da democracia nos Estados unidos –, são esclarecedoras

as palavras de Tocqueville, que posiciona a Suprema corte como um verdadeiro

Tribunal da Federação:

Nas mãos dos sete juízes federais repousam incessantemente a paz, a prosperidade, a própria existência da União. Sem eles, a Constituição é obra morta; é a eles que recorre o Poder Executivo para resistir às intromissões do corpo legislativo; a legislatura, para se defender das empreitadas do poder executivo; a União para se fazer obedecer pelos Estados; os Estados, para repelir as pretensões exageradas da União; o interesse público contra o interesse privado; o espírito de conservação contra a instabilidade democrática (TOCQUEVILLE, 1998, p. 169-170).

1.2 A Judicial Review e suas Implicações na Experiência Constitucional Brasileira

No Brasil, a judicial review passa a se chamar controle difuso, uma

referência ao caráter abrangente do controle, que se pulveriza por todas as esferas

do poder judiciário. No contexto atual, há também outros modos de se referir a essa

modalidade de controle da constitucionalidade: via de exceção; via de defesa;

controle concreto; incidenter tantum. De qualquer modo, as raízes de todas essas

nomenclaturas estão arraigadas na tradição que conforma o modelo norte-

americano de judicial review.

Supremo Tribunal Federal ter competência para julgar, de forma concentrada, a

constitucionalidade das leis, tal qual um Tribunal Constitucional europeu, não se pode dizer que

vivenciamos um modelo de jurisdição constitucional stricto senso. Em todo caso, o uso da locução

deve ser preservado por já estar, de certo modo, sedimentado em nossa tradição jurídica. Cf.

Streck, (2004).

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Aliás, não é apenas a função de revisão judicial dos atos do parlamento que

a Constituição Republicana de 1891 irá incorporar do modelo constitucional norte-

americano, mas na verdade haverá uma pretensão de incorporação global da

engenharia constitucional estado-unidense. Isso fica claro pela posição firmada por

aquele que foi o grande articulista do projeto constitucional de 1891: Rui Barbosa.

Nas palavras do autor, a Constituição brasileira é “filha do direito americano”, sendo

que este estado de influência é notado inclusive na legislação da época que

prescrevia, nos artigos orgânicos da justiça federal, a seguinte disposição: “os

estatutos dos povos cultos, especialmente os que regem as relações jurídicas na

República dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e

equity serão subsidiários da jurisprudência e processo federal” (BARBOSA, 2003, p.

19).

Os autores de nossa Constituição, em cujo nome tenho algum direito de falar, não eram alunos políticos de Rousseau e Mably (...), eram discípulos de Madison e Hamilton. Não queriam essa ilusória soberania do povo, da qual dizia o insigne professor de legislação comparada no Colégio de França que nunca foi, em seu país, “senão um grito de guerra explorado por ambiciosos”. E, sabendo que essa soberania tumultuária, inconsciente e ludibriada “não serve senão para destruir”, querendo utilizar com sinceridade a soberania do povo como peça regular, como força conservadora no mecanismo político, embeberam a sua obra exclusivamente no exemplo americano; porque a doutrina das revoluções francesas, onde a democracia aparece apenas um nome (BARBOSA, 2003, p. 30-31).

Essa questão fica muito clara, no momento em que, enquanto a Constituição

norte-americana trazia, apenas de forma implícita, o fundamento de legitimidade da

judicial review, a Constituição brasileira de 18919 – fortemente influenciada por Rui

Barbosa – introduziu expressamente uma cláusula que previa a possibilidade de

revisão judicial dos atos da legislatura e da administração pública.

De todo modo é certo que o cultivo de um poder limitado que garantisse as

liberdades individuais não logrou grande êxito em terras brasileiras. Há uma série de

acontecimentos que levaram à distorção daquilo que, nas outras tradições

constitucionalistas, eram mecanismos de freios ao exercício monolítico do poder.

Cumpre analisá-los.

9 Previsão esta encontrada no art. 60, a e art. 59, § 1º, a da Constituição de 1891.

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A primeira ordem de fatores estreita-se com as dificuldades pelas quais o

Brasil passou (e ainda passa) para livrar-se de um certo “parasita” patrimonialista e

oligárquico nas suas estruturas sociais. Esse “parasita” representa um inimigo

simbólico que impede a penetração do espectro cultural que permeia todo

constitucionalismo. Toma-se, como exemplo, a própria criação do Supremo Tribunal

Federal.

A Constituição de 1824 não previa um controle de constitucionalidade a ser

exercido pelos órgãos jurisdicionais. Diante disso, os atores políticos, na cena da

instauração da República, tomaram qual iniciativa?

Criaram um Supremo Tribunal Federal e deram a ele o poder de julgar a inconstitucionalidade das leis. Com isso, estaria garantida a eficácia da Constituição, cujas violações poderiam ser objeto de controle. Os críticos da lei superior, lei meramente de papel, combateram um vício político com outra ação apenas política, desatentos à profundidade do mal. Rui Barbosa definiu bem o escopo da reforma, ambiciosamente planejada. “Formulando para nossa pátria o pacto de regionalização nacional, sabíamos que os povos não amam as suas constituições senão pela segurança das liberdades que elas lhes prometam; mas que as constituições, entregues como ficam, ao arbítrio do parlamento e à ambição dos governos, bem frágil anteparo oferecem a essas liberdades, e acabam quase sempre, e quase sempre se desmoralizam pelas invasões graduais ou violentas do poder que representa a legislação e do poder que representa a força. Nós, os fundadores da Constituição, não queríamos que a liberdade individual pudesse ser diminuída pela força, nem mesmo pela lei. E por isto, fizemos deste tribunal (o Supremo Tribunal Federal) o sacrário da Constituição, demo-lhe a guarda da sua hermenêutica, pusemo-lo como um veto permanente aos sofismas opressores das razões de Estado, resumimos-lhe a função específica nesta idéia” (FAORO, 2001, p. 76-77).

No entanto,

O resultado da defesa republicana ao arbítrio foi exatamente o contrário do pretendido. Se é certo que se temperou, em alguns casos, o excesso legislativo e o abuso da força, de nenhuma forma o novo mecanismo fixou a consciência e a prática da supremacia da Carta Magna, para que esta regulasse as relações do poder, sem margem ao residual capricho. [...] Rui viu no malogro apenas a covardia dos juízes. “Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interessem supremo, como quer que chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde (FAORO, 2001, p. 76-77).

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366

1.3 Considerações Globais Sobre o Problema “Genético” do Sistema Jurídico Romano-Germânico: a Falta De um Mecanismo de Vinculação dos Precedentes

A esses fatores – políticos e sociológicos – soma-se um problema de ordem

jurídica, com a adoção do modelo de judicial review pela Constituição de 1891. O

modo de dar unidade à declaração de inconstitucionalidade no direito norte-

americano faz parte da própria carga genética do sistema da common law10. Ou

seja, se um ato do congresso é declarado nulo pela Suprema Corte dos Estados

Unidos, a decisão que o declarou entrará na cadeia de precedentes e, deste modo,

deverá ser respeitada em todos os demais tribunais da federação.

Diversamente, no sistema romano-germânico, no qual o Brasil se insere, os

julgamentos precedentes orientam futuras decisões, sem vinculá-las. Repugna ao

jurista dessa família11 reconhecer, nas regras que decidiram certo caso, a

10

O direito inglês nasce com a conquista e consolidação da ocupação dos normandos na Inglaterra.

Esse processo, para se manter, exige uma forte centralização do poder do rei conquistador. Até o

período de 1066, não há o direito inglês, propriamente dito. Os costumes locais ainda prevalecem,

sendo aplicado pelos tribunais também locais. A common law é obra exclusiva dos Tribunais Reais

de Justiça. Os Tribunais de Westminster (localidade dos tribunais reais), até a data de 1875, são

jurisdição de exceção. Somente causas que interessem á Coroa são julgadas. As demais, ou são

decididas segundo os costumes pelos tribunais locais, ou são conhecidas pelos tribunais

eclesiásticos, conforme a matéria. O particular que pleitear a justiça do rei deverá dirigir-se a um

seu funcionário, o Chanceler, e pedir um writ, documento que move a jurisdição real. Ou seja, não

sendo observado o ato formal de buscar da chancelaria a chave de acesso ao tribunal, toda causa

ficará sem ser conhecida pelos juízes. René David explica que “a common law, nas suas origens,

foi constituída por um certo número de processos (forms of action) no termo dos quais podia ser

proferida uma sentença; qual seria, quanto à substância, esta decisão, era algo incerto. O

problema primordial era fazer admitir pelos Tribunais Reais a sua competência e, uma vez

admitida, levar até o fim um processo cheio de formalismo” (Cf. DAVID, 1998, p. 290). Tudo isso

contribui para o caráter eminentemente jurisprudencial do direito inglês, que se concentra em uma

técnica diversa da “técnica de interpretação das regras jurídicas; consiste, partindo das ’legal rules’

já estabelecidas, em descobrir a legal rule, talvez nova, que deverá ser aplicada em espécie; esta

tentativa é conduzida levando-se em conta os fatos de cada espécie e considerando com cuidado

as razões que existem para distinguir a situação que hoje se apresenta das que foram

apresentadas no passado”. (DAVID, 1998, p. 326). Arrematando: “a obrigação de recorrer às

regras que foram estabelecidas pelos juízes (stare decisis), de respeitar os precedentes

judiciários, é o correlato lógico de um sistema de direito jurisprudencial” (DAVID, 1998. p. 341). 11

O direito continental - essa terminologia diferencia o direito formado sob a égide da tradição

romana, no interior do continente europeu, do direito costumeiro e jurisprudencial inglês - é fruto

do labor de juristas que se ocupam do direito nos bancos da Universidade. De fato, desde a

retomada da literatura pagã e com seu auge no séc. XIII, o direito romano é o centro de

preocupação do homem medieval preocupado com a administração da justiça. Ao lado da tradição

romana, erguiam-se as obras dos canonistas, já que muitos assuntos da urbi eram resolvidos

pelos clérigos e autoridades eclesiásticas (casamento, testamento, matérias de disciplina

eclesiástica estavam sob a jurisdição da Igreja romana). “Talvez de forma ainda mais profunda,

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367

obrigatoriedade que delimitará o trabalho de outro órgão julgador em outro caso.

Poder-se-ia afirmar que a herança romana exige uma norma racionalmente

impositiva (papel preponderante do legislador), não casualmente elaborada.

Assim, ao contrário do Direito estado-unidense, que empresta eficácia

vinculante às decisões da Suprema Corte pelo stare decisis, a tradição jurídica

herdada pelo Brasil o torna carente de mecanismo hábil à generalização (erga

omnes) dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal quando declara sobre

a constitucionalidade de uma lei.

Isso até 1934, quando o constituinte inovou e deu competência ao Senado

Federal para “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato,

deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo

Poder Judiciário” (Art. 91, IV, da Constituição de 1934). Essa disposição se manteve

na vigente Constituição da República, de 1988, com seguinte teor: “compete

privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de

lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”

(Art. 52, X).

Portanto, a intervenção do Senado no controle difuso de constitucionalidade

foi e continua sendo, por expressa previsão do texto da Carta Maior, o instrumento

imprescindível ao devido procedimento de generalização dos efeitos das decisões

em que a Corte guardiã da Constituição aprecia – de modo incidental, ao julgar

casos concretos – questões concernentes à constitucionalidade de leis ou atos

normativos.

fez-se sentir a influência da igreja ocidental. Pelo menos desde Constantino, ela tinha assumido

muitas das tarefas públicas, sociais e morais do antigo império. Depois do colapso deste, ela

subsistiu com um abrigo para as populações romanas e, para os germanos, como algo aceite, na

maior parte dos casos, desde cedo e voluntariamente. A igreja aparecia aos jovens povos como

uma poderosa criação real, na qual sobreviviam ao mesmo tempo, como realidades presentes em

carne e osso, Roma e o império romano; isto muito depois de o império ter caído. Os seus

dignitários substituíram, de forma de longe mais eficaz do que tudo o resto, a administração, a

autoridade, a cultura, a jurisdição e as técnicas documentais, processuais e notariais das

autoridades seculares”. (cf. WIACKER, 2004, p. 17). No âmbito do direito influenciado diretamente

pelos cânones da disciplina eclesiástica e modelado pelo estudo dos escritos romanos, a regra

está prevista nos textos legais, bastando ao intérprete aplicar o seu conteúdo. O ápice da

confiança depositada no legislador se dá com a codificação.

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2 É A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTO SUFICIENTE E ADEQUADO PARA MODIFICAR O SISTEMA DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE?

2.1 Breves Considerações a Respeito da Mutação Constitucional

A Constituição é um evento (Streck/Gadamer), em constante modificação.

Quando há apenas uma mudança natural/não intencional na aplicação da norma,

trata-se de mutação constitucional. Esse entendimento se estriba em doutrinadores

autorizados, para quem “mutações constitucionais nada mais são que as alterações

semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no

prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação”

(COELHO; MENDES; BRANCO, 2008, p. 130).

Não há alteração do texto da norma, como também assevera Nelson Nery

Júnior, ao dizer que “mutação constitucional (Verfassungswandlung) é a modificação

natural e não forçada que ocorre na Constituição, sem alteração do texto, em virtude

de interpretação legislativa, administrativa e jurisdicional, bem como por práticas,

usos e costumes” (NERY JÚNIOR, 2009, p. 94). Só poderá haver mutação

constitucional quando ocorrer fatos novos não previstos pelo legislador. Porém, deve

ser sempre um processo natural, como pode ser observado ainda no mesmo autor

(NERY JÚNIOR, 2009, p. 95):

A modificação forçada não se caracteriza como mutação constitucional, mas sim como ruptura do sistema. (...) quando se anuncia ou prenuncia que determinada circunstância está sendo modificada pelo tribunal constitucional porque se trataria de mutação constitucional, na verdade está ocorrendo ruptura do sistema, com ofensa flagrante ao texto e ao espírito da Constituição, porque o anunciador ou pronunciador está demonstrando à evidência sua intenção de modificar a Constituição sem o due process legislativo.

Ainda cabe aludir que Canotilho denomina de transição constitucional a

mutação constitucional, e diz que é uma “revisão informal do compromisso político

formalmente plasmado na constituição sem alteração do texto constitucional. Em

termos incisivos: muda o sentido sem mudar o texto” (CANOTILHO, 2004, p. 1.228).

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369

2.2 Discussão Contextualizada

Há uma questão concreta – que ainda aguarda julgamento perante o STF12

– que serve de contexto à problemática suscitada. Trata-se do problema da

supressão do mecanismo de intervenção do Senado como condição de

possibilidade para suspender, com caráter erga omnes, a execução da lei declarada

inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso de

constitucionalidade.

No enfrentamento da Reclamação 4335 – AC, a Corte aponta para a tese de

que, em virtude de uma tendência à “concentração” do controle de

constitucionalidade no Brasil, estaria a ocorrer in casu uma verdadeira mutação

constitucional, restando autorizada a conclusão de que as decisões proferidas pelo

Tribunal em sede de controle difuso teriam eficácia erga omnes independentemente

da remessa ao Senado, como prevê o art. 52, X da CF.

Dois ministros, Gilmar Mendes e Eros Grau, firmaram posição no sentido de

que, em virtude das muitas reformas constitucionais operadas pelo Poder

Constituinte derivado e pela própria formatação do controle de constitucionalidade

no ordenamento jurídico brasileiro, apontam para uma transformação global do

sistema.

Ora, é permitida tal interpretação, diante da história institucional (Dworkin) do

direito brasileiro? Como ficou delineado, o controle de constitucionalidade é marcado

historicamente. pelo modo difuso, ou seja, pelo tipo de controle em que se demanda

julgamento preliminar – de matéria constitucional – à decisão do mérito de uma

causa levada a juízo. No Supremo Tribunal Federal, esse juízo se dá por via

recursal. Caso entenda oportuno, a mesma Corte remete ao Senado Federal sua

declaração de inconstitucionalidade de lei, para que o órgão do Poder Legislativo,

conforme seu poder discricionário, suspenda sua execução.

O modelo concentrado de controle de constitucionalidade foi implantado

tardiamente no Brasil, em 26 de novembro de 1965, pela Emenda nº 16 à

12

Até o momento da redação desse artigo, o julgamento está sob pedido de vista do Ministro

Ricardo Lewandowski.

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370

Constituição de 1946. Assim, desde esta data, o que existe é um sincretismo na

engenharia da jurisdição constitucional, havendo a convivência de dois mecanismos

de controle de constitucionalidade e sendo os efeitos da decisão no controle

abstrato/concentrado imposto a todos. Não obstante isso, o Poder Constituinte optou

por manter o mecanismo da remessa à Câmara Alta do Congresso quando a

decisão emanar via controle concreto.

2.2.1 O cabimento da reclamação

A Constituição Federal incumbiu ao Supremo Tribunal Federal o papel de seu

guardião (Art. 102, caput). Para preservar-lhe a competência, no inciso I, alínea l, do

mesmo dispositivo, prevê o instituto processual da Reclamação. Ao processá-la e

julgá-la, a Excelsa Corte garante a autoridade de suas decisões.

A Reclamação 4335-AC, ora analisada, foi ajuizada pela Defensoria Pública

do Estado do Acre em face de decisão de Juiz de Direito daquele Estado, que

indeferiu pedido de progressão de regime a pessoas condenadas por crimes

hediondos, a despeito da declaração de inconstitucionalidade do regime de pena

integralmente fechado. Por esta razão, o STF negou eficácia ao Art. 2°, §1° da Lei

8072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) ao julgar o Habeas Corpus n. 82.959.

Ou seja, o reclamante pretende ver imposto aos demais órgãos julgadores o

entendimento que a Corte adotou para julgar um caso específico, apreciado via

recurso de habeas corpus. Já houve quem esclarecesse o problema do cabimento

desta via processual para estender erga omnes os efeitos de uma tese sustentada

de modo incidental ao julgamento de uma situação específica. O STF, em sede de

controle difuso de constitucionalidade

julga a aplicação dada à Constituição em situações jurídicas concretas, e não meras teses sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de leis e de atos normativos. (...) Assim, o resultado da atuação do Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade nunca é o julgamento de uma tese, e dessa atuação não resulta uma teoria, mas uma decisão; e essa decisão trata da inconstitucionalidade com preliminar de mérito para tratar do caso concreto, devolvido a ele por meio de recurso, sob pena de se estar negando jurisdição (Art. 5°, XXXV e LV, da Constituição da República). (STRECK, CATTONI; LIMA, [s.d.], p. 3.)

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371

Ao pesquisar o site do Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público

Federal não encontrou decisão proferida nesta instância máxima que tenha sido

descumprida pelo juízo de quem se reclama. Pois assim consta do parecer:

6. Esse fato [de não constar decisão descumprida] foi confirmado pela ilustre autoridade impetrada, em suas informações, quando afirmou que “não é do conhecimento deste Juízo, até o momento, que o STF tenha expedido ordem em favor de um dos interessados na reclamação [pessoas a quem se negou progressão de regime com base no art. 2°, §1° da Lei.8072/90] e, portanto, não é hipótese de garantir a autoridade de decisão da Corte” (fl. 20) 7. Assim, não existindo decisão proferida por essa Corte cuja autoridade deva ser preservada, a reclamação é descabida. (fl. 30-31)

A questão deveria se resolver pela remessa ao Senado da decisão quanto à

constitucionalidade do dispositivo legal mencionado. Embora tenha sido resolvida de

outro modo, mediante a edição de lei ordinária que alterou o texto da Lei dos Crimes

Hediondos, ainda persiste o problema de se reconhecer ao Supremo Tribunal

Federal a competência de conhecer e julgar reclamação contra tese sua, suscitada

no bojo de uma fundamentação a sustentar certa decisão concreta, ou melhor,

contextualizada a certa situação sub judice.

O Ministro Relator, Gilmar Mendes, aponta para uma evolução

jurisprudencial no sentido de caber reclamação a todos aqueles que “comprovarem

prejuízo resultante de decisões contrárias às teses do STF”. No entanto, essa

afirmação busca se ancorar no modelo concentrado, ao qual se reconhece eficácia

vinculante erga omnes.

Torna-se oportuna, aqui, a crítica de que, ao se reconhecer cabível

reclamação contra teses do STF, incorre-se “na imprecisão inerente ao papel das

cortes controladoras da constitucionalidade que é o de agirem somente diante de

uma situação contextualizada”. E essa mesma crítica arremata:

Agir no limite de um contexto significa obedecer aos ditames do poder constituído, condição existencial do Supremo Tribunal Federal como poder jurisdicional vinculado à Constituição. Esta compreensão, claro, origina-se do simples fato de que os poderes de um Estado estão submetidos a uma mesma vontade política, objetivamente identificada num determinado percurso histórico das sociedades, ou seja, o instante constituinte. E a importância disso é incontestável, bastando, para tanto, examinar o papel das constituições para consolidação das democracias no século XX (STRECK, CATTONI; LIMA, [s.d.], p. 4)

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2.3 O Entendimento Adotado Pelos Ministros que Votaram na Reclamação e o Texto da Constituição, art. 52, X

Em um primeiro momento, cabe construir breve esclarecimento entre as

diferenças entre texto e norma e também sobre a tensão que entre ambos existe. Há

que se admitir que existe uma diferença entre o texto – dispositivo – da norma e a

norma – sentido que o texto possui. Para definir melhor a diferença entre ambos,

valer-se-á da palavra autorizada de Lenio Streck:

Texto é evento; textos não produzem “realidades virtuais”; textos não são meros enunciados linguísticos; textos não são palavras ao vento; conceitos metafísicos que não digam respeito a algo (algo como algo). Eis a especificidade do direito: textos são importantes; textos nos importam; não há norma sem texto; mas nem eles são “plenipotenciários”, carregando seu próprio sentido(...) e nem são desimportantes, a ponto de permitir que sejam ignorados pelas posturas pragmatistas-subjetivistas, em que o sujeito assujeita o objeto (ou simplesmente o inventa). (...) o texto é inseparável de seu sentido; textos dizem sempre respeito a algo da faticidade (...) norma é, pois, a enunciação do texto, aquilo que dele se diz, isto é, o seu sentido (aquilo dentro do qual o significado pode se dar). (...) (STRECK, 2009. p.164-165).

Embora não se confundam em sua definição, texto e norma não podem ser

cindidos a ponto de se ignorar o texto na “produção” da norma. Ademais, nesse

mesmo contexto, é de se salientar a impossibilidade de se repartir em fases a

hermenêutica. Cabe sempre dizer e redizer com Gadamer que a hermenêutica é

momento único, ocorrendo a partir da fusão de horizontes do intérprete. Cabe então

expor as palavras de Marco Marrafon:

Sendo assim, a hermenêutica filosófica recusa a antiga divisão do problema hermenêutico em três, subtilitas intelligendi (compreensão), subtilitas explicandi (interpretação) e subtilitas aplicandi (aplicação), buscando amparo, inicialmente no reconhecimento, já presente no romantismo, da ligação interna entre o intelligere e o explicare. Ao vislumbrar que a indissociabilidade entre compreender e interpretar deixava o aplicar desconexo, Gadamer se vê forçado a ir além da hermenêutica romântica e conceber a compreensão, interpretação e aplicação como um processo unitário, em que todos os elementos são essenciais e complementares. Daí que “na compreensão sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido, à situação atual do intérprete”. No direito, o desdobramento dessa tese (chamada tese do ato unitário) leva à recusa da distinção entre função cognitiva e normativa na interpretação e a derrubada de postulados clássicos da hermenêutica jurídica, vez que, agora não subsiste a separação entre cognição do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso concreto (MARRAFON, 2008, p. 179-180).

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373

Texto e norma, portanto, não se confundem, mas se comunicam, ato perene

de interpretação e de se compreender superando a velha questão dos métodos de

interpretação e da hermenêutica clássica, já entendidos nesse ponto do estudo

como insuficientes e ultrapassados. E ainda sobre a tensão entre texto e norma é

Müller quem esclarece:

O texto da norma não contém a normatividade e a sua estrutura material concreta. Ele dirige e limita as possibilidades legítimas e legais da concretização materialmente determinada do direito no âmbito de seu quadro. Conceitos jurídicos em textos de normas não possuem “significado”, enunciados não possuem “sentido” segundo a concepção de um dado orientador acabado (MÜLLER, 2005, p. 41).

A alteração da constituição ocorre de forma consensual por meio

democrático, posto que quem a realiza é o constituinte reformador, representante do

povo quando se sente a necessidade de realizar modificações no texto que possam

contribuir com a evolução da presença de constituição no que diz respeito também à

sua efetivação, para acompanhar a faticidade. A alteração é algo intencional (NERY

JUNIOR, 2009, p. 94-95).

Já a mutação constitucional (Verfassungswandlung) não pode ser tida como

processo intencional, ou seja, se ela porventura ocorrer, deverá ter sido

imperceptível, sob pena de se colocar em cheque o caráter democrático do Estado

de Direito, uma vez que apenas se pode modificar a Constituição caso haja

procedimento legislativo específico para tanto, qual seja, a emenda constitucional13.

Diz-se ainda que na mutação o que ocorre não é a alteração do texto, mas a

alteração da norma, permanecendo o texto intocável.

Há que se ter enorme cautela quando se trata de mutação constitucional a

fim de que não se cometa equívocos quanto ao seu significado, à sua legitimidade e

à sua validade no que diz respeito à (também) validade do direito. Nessa

modalidade de modificação o texto permanece intacto e não há uma consciência

efetiva e intencional da mudança, que ocorre no que se refere ao conteúdo da

13

Conforme Nery Junior (2009, p. 104), “a mutação constitucional não pode ser prévia e

intencionalmente anunciada, pois isso constitui a ruptura da constituição, circunstância que ocorre

em Estados totalitários, não informados pelo princípio do Estado Democrático de Direito ou Estado

Constitucional (Verfassunsgsstaat)”.

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norma. Caso fosse explícita, poder-se-ia dizer que o que houve foi uma ruptura

antidemocrática com a Carta Magna, processo ditatorial, já que para se realizar

mudanças na Constituição é preciso se siga o devido processo legislativo14.

Isto posto, fica claro que ela não pode acontecer discricionariamente quando

o intérprete da Constituição assim o decidir. Ela sofre limitações do próprio texto da

Lei Fundamental de um Estado e da sua realidade institucional, bem como do

programa normativo que lhe pertence. Assim, conclui-se que é o Poder Constituinte

o legitimado a instituir os limites de mutação constitucional.

Se persistir e sair vitorioso o entendimento de que houve mutação, a

despeito de se querer impor um novo texto à Constituição15, correr-se-á o risco de

identificar no Supremo Tribunal Federal uma instância com poder constituinte

permanente.

3 MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E DEMOCRACIA: COMO ESSAS QUESTÕES REPERCUTEM NO PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

3.1 O Estado Democrático de Direito, como Contexto Propício ao Desenvolvimento do Neoconstitucionalismo e da Jurisdição Constitucional

O Estado de Direito se justifica pela sua origem (consentimento), sua técnica

(procedimentos pré-estabelecidos) e sua finalidade, essencialmente ética

(declaração e realização de direitos fundamentais). Nesse modelo de Estado

começa-se a falar em legitimidade do poder, devido ao fato deste se desenvolver

14

Devido processo legislativo que é apontado no caso brasileiro no art. 5º. LIV, da CF de 1988. 15

Há uma passagem no voto do Ministro Eros Grau em que ele afirma uma mudança no texto da

Constituição e não na forma de interpretação do art. 52, X. Dirigindo-se ao Relator, diz: “note-se

bem que S. Excia não se limita a interpretar um texto, a partir dele produzindo a norma que lhe

corresponde, porém avança até o ponto de propor a substituição de um texto normativo por outro”.

Ou seja, da redação atual do dispositivo constitucional parte-se para outro enunciado: “ao Senado

Federal está atribuída competência privativa para dar publicidade à suspensão da execução de lei

declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal

Federal”. A própria decisão do Supremo conteria força normativa para suspender a execução da

lei declarada inconstitucional

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375

através do consentimento coletivo e dos ideais de justiça e legalidade, manifestos

inicialmente na realização das liberdades, nas esferas públicas e privadas.

Diferentemente do Estado Absolutista, no Estado de Direito não é suficiente a

justificação formal do poder, mas torna-se necessária a justificação material, ou seja,

a justificação do conteúdo dos direitos que legitimam o poder, o conteúdo daquilo

que se declara como valores e a sua atribuição aos indivíduos como bens jurídicos

e, como tais, juridicamente protegidos. Ademais, nesse modelo de Estado, a

justificação formal dessa autonomia de vontade é relevante, mas não apenas ela.

Complementando-a, busca-se aí a realização concreta do valor/direito absoluto que

o homem expressa, ou seja, a sua dignidade.

Último estágio na evolução do modelo estatal contemporâneo, o Estado

Democrático de Direito é um contínuo processo de construção. Nesse modelo de

Estado, a hermenêutica toma relevância incomparável, pois é através dela que os

direitos serão interpretados de forma sistêmica e efetivados. Seria impossível

visualizar a efetivação desvinculada da hermenêutica, sem que fosse necessário,

portanto, uma inflação legislativa a fim de prever todos os problemas que se

apresentam na ordem vigente.

Como já visto no início deste trabalho, o neoconstitucionalismo se afirma no

contexto do Estado Democrático de Direito, nas chamadas democracias

constitucionais (pós-segunda guerra mundial) ou Estados Democráticos

Constitucionais, que são aqueles nos quais há na sua Carta Política um rol exaustivo

de Direitos Fundamentais e, por essa razão, a construção dessa doutrina também

depende intimamente da forma como se concebe e se enxerga a Constituição.

O Brasil, assim como os demais países que passaram por um período de

exceção (no caso os regimes ditatoriais), optou por um modelo constitucional

garantidor. Inseriu, assim, o Poder Judiciário no centro das tensões, já que teria a

função de efetivar direitos constitucionalmente previstos por meio do que se chamou

de Jurisdição Constitucional – independentemente do número de regras, leis ou

mecanismos previstos no texto constitucional – realizando sua tarefa por meio da

hermenêutica.

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376

3.2 É a jurisdição constitucional um poder constituinte permanente? O art. 52, X da CF: mutação constitucional e seus reflexos na crise de democracia

Não há como negar que a Jurisdição Constitucional produz o direito ao criar

a norma (resguardadas as devidas diferenciações com o texto da norma), de forma a

efetivar os direitos constitucionalmente previstos e a fazer com que a Constituição

constitua, por meio da hermenêutica16. Cumpre ressaltar que, sob o ponto de vista

de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, como quis Häberle (1997),

cada cidadão é responsável por esse constituir da Constituição e é responsável pela

efetivação de direitos, o que não se confunde absolutamente com interpretação

realizada por meio de cláusulas gerais ou abertas. Entretanto, é o Judiciário, em um

país de democracia recente, o maior responsável por essa efetivação.

A partir dessa compreensão, insere-se no centro do debate democrático17 a

questão acerca do papel do Judiciário e de sua intensa atividade de efetivação que

variavelmente é chamada de ativismo judicial ou decisionismo. De resto, a Jurisdição

Constitucional vai tomando a forma de um ativismo ilimitado e desmedido chegando

ao absurdo de afirmar-se que o “direito é aquilo que os tribunais dizem que é”.

Uma fenda abissal cava-se entre texto e norma. A diferenciação é

importante, a distanciação genérica e sem freios é perigosa, uma vez que se inicia,

assim, o problema da validade do direito e da justificação da decisão18. Dessa feita,

ao legislador caberia a produção de textos de normas mais genéricos que

possibilitaria a expressão clara do que é significado e significante na hermenêutica

16

Lenio Streck ([s. d.], p. 1103-1105) esclarece como a hermenêutica deve ser realizada,

denunciando a impossibilidade de cisão em momentos de interpretação e de cisão entre sujeito e

objeto, ressaltando a importância da interpretação como movimento circular resultado da filosofia

da linguagem. Ressalta a superação de dualismos próprios da filosofia da consciência (sujeito e

objeto) para que se chegue a respostas adequadas no direito e para que a Jurisdição

Constitucional cumpra seu papel sem realizar uma ditadura do judiciário. Ademais denuncia

também o “extrair o sentido da norma”, como se fosse possível isolar a norma de sua

concretização. Para ele “hermenêutica é faticidade; é vida; é existência. 17

Debates acerca da Democracia e de sua crise. 18

Adeodato (2006, p. 404) insere o debate entre texto e norma dentro de conceitos de Kelsen e Carl

Schimitt, questionando o problema da justificação da decisão e relacionando tais problemas com a

tópica de Viehweg, para quem deve existir uma abertura excessiva em relação ao texto normativo,

orientando a interpretação por meio dos problemas que vão se apresentando, representando

assim um “método”livre em demasia e insuficiente para a decisão adequada.

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como meio de efetivação, ato constante e circular, impedindo assim que houvesse

interferências drásticas de um poder em relação ao outro, Judiciário em relação ao

Legislativo e Judiciário transformando-se em Poder Constituinte Permanente.

João Maurício Adeodato assim expressa o alijamento do Poder Legislativo,

na medida em que a Jurisdição Constitucional adquire “super-poderes”:

Dentro desse direito dogmaticamente organizado observa-se uma outra sobrecarga na decisão concreta, mediante um crescente distanciamento entre textos legais e decisões, fazendo, por exemplo, com que aumente a importância do Judiciário em detrimento do Legislativo, inclusive e principalmente na concretização da Constituição (jurisdição constitucional). A complexidade vai tornando o direito mais e mais casuístico (ADEOTADO, 2006. p. 393).

O limite a esse ativismo desmedido está em compreender que a norma é

produzida constantemente tendo como fundamento o texto da lei, o qual, por sua

vez, não é meramente simbólico. Fica claro, então, que é a hermenêutica a

responsável pela diminuição da tensão entre texto e norma, não se podendo, assim,

desprezar o papel do Judiciário. Não se pode, também, deixar de lhe conferir os

devidos limites, a partir primordialmente do seu papel como um Poder dentro do

Estado Democrático de Direito, respeitando a existência dos outros Poderes e de

seus devidos papéis. Deve-se levar em consideração a importância de não se

admitir que o Judiciário tenha discricionariedade para (re)criar o texto da norma,

realizando mutações constitucionais.

É sabido que, no Brasil, a intervenção do Senado, prevista no art. 52, X da

CF de 1988 tem uma função democrática: a de fortalecer o sistema de freios e

contrapesos (checks and balances) na relação interinstitucional entre os três

poderes da República. Assim, a tarefa do Senado em sede de controle difuso de

constitucionalidade é a de suspender a norma que foi declarada inconstitucional,

efetivando a declaração de inconstitucionalidade e conferindo teor democrático a

esse ato.

Todavia, observa-se recentemente em parte da doutrina e da jurisprudência

do STF, de forma mais manifesta pelos ministros Eros Grau e Gilmar Mendes, uma

tentativa de se abolir essa função do Senado, de forma arbitrária e sem

fundamentos racionais. O argumento do presente estudo não é simplesmente de

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manutenção da intervenção do Senado por uma mera questão de tradição

constitucional, mas de respeito ao Estado Democrático de Direito, na medida em que

se pretende preservar a separação de poderes prevista pela CF, o devido processo

legislativo de alteração de normas constitucionais e de diferenciação entre controle

de constitucionalidade concentrado e difuso, já que a suspensão sem intervenção do

Senado deve ocorrer apenas no modelo concentrado.

Sob o pretexto de que esteja ocorrendo uma mutação constitucional, tal ala

citada defende a supressão da manifestação do Senado. Ocorre que, como foi dito,

a mutação ocorre de maneira não programada, não planejada, de acordo com a

vivência da Constituição, pois planejar a mutação é fazer ruptura no sistema, no

Direito, na Constituição e no Estado Democrático de Direito. O STF também (!!!) está

subordinado à Constituição; não dita seus enunciados, mas os interpreta; não pode

cometer ativismos desmedidos e ditaduras judiciais. Na medida em que se admite

mutação constitucional, admite-se também que o texto não seja levado a sério19,

ferindo a tripartição de poderes e, consequentemente, o princípio democrático.

É impossível ao STF “realizar” essa espécie de mutação constitucional

ilimitada, pois, dessa forma, a Corte sutilmente realizaria emendas da maneira

antidemocrática, sacralizando o seu papel de Judiciário e, agora, de Constituinte,

arruinando o Estado Democrático de Direito, o poder do povo de escolher quem é

que faz a sua Constituição, legando um ranço de totalitarismo às gerações futuras. É

a continuidade da crise da Constituição de 1988 e um engrossamento nos

argumentos de quem já defende uma nova Constituinte. É a crise de democracia

que já se alastra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tudo o que foi dito, podemos destacar – a título de considerações finais –

os seguintes resultados:

19

Streck, (2009. p.164 nota de rodapé remetendo a Gadamer: “quem quer compreender um texto,

deve, primeiro, deixar que o texto lhe diga algo”).

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1. De fato, o histórico do constitucionalismo, especialmente a partir das

grandes revoluções, aponta para o ideal de constituição como meio eficaz de

limitação do poder e consequente garantia das liberdades.

2. A criação de uma nova modalidade de limitação do poder com a

construção de instrumentos que procuram travar a “vontade” das maiorias eventuais

– prevenindo um possível governo arbitrário por parte destas maiorias, uma vez que

os representantes eleitos pelo voto majoritário poderiam se tornar um tipo de

“aristocracia de fato” – a partir da garantia dos direitos da minoria. Essa estratégia,

inclusive, pode ser justificada na desconfiança do federalista John Madison,

formulada no seguinte enunciado: “em todos os casos em que a maioria está unida

por um interesse ou paixão comum, os direitos da minoria estão em perigo”.

3. As Constituições, portanto, podem ser encaradas como pré-compromisso.

Dizer que as constituições são pré-compromissos significa que “constituições são

correntes com as quais os homens se amarram em seus momentos de sanidade

para que não morram por uma mão suicida em seu dia de frenesi”. Bem como se

poderia asseverar, que “as estratégias de pré-compromisso constitucionais poderiam

servir para superar a miopia ou a fraqueza da vontade da coletividade”.

4. O exercício da judicial review of legislation – veio a tornar-se a garantia de

que o pré-compromisso constitucional seria devidamente cumprido. E isso é

consequência da verdadeira soberania da lei; não de qualquer lei, mas daquela que

passa a ser entendida como a lei das leis, a paramont law, dotada de supremacia e

rigidez: a Constituição.

5. No Brasil, a judicial review passa a se chamar controle difuso, uma

referência ao caráter abrangente do controle, que se pulveriza por todas as esferas

do poder judiciário. No contexto atual, há também outros modos de se referir a essa

modalidade de controle da constitucionalidade: via de exceção; via de defesa;

controle concreto; incidenter tantum.

6. Ao contrário do Direito estado-unidense, que empresta eficácia vinculante

às decisões da Suprema Corte pelo stare decisis, a tradição jurídica herdada pelo

Brasil o torna carente de mecanismo hábil à generalização (erga omnes) dos efeitos

das decisões do Supremo Tribunal Federal quando declara sobre a

constitucionalidade de uma lei.

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7. Isso até 1934, quando o constituinte inovou e deu competência ao Senado

Federal para “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato,

deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo

Poder Judiciário” (Art. 91, IV, da Constituição de 1934). Essa disposição se manteve

na vigente Constituição da República, de 1988, com seguinte teor: “compete

privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de

lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”

(Art. 52, X).

8. Portanto, a intervenção do Senado no controle difuso de

constitucionalidade foi e continua sendo, por expressa previsão do texto da Carta

Maior, o instrumento imprescindível ao devido procedimento de generalização dos

efeitos das decisões em que a Corte guardiã da Constituição aprecia – de modo

incidental, ao julgar casos concretos – questões concernentes à constitucionalidade

de leis ou atos normativos.

9. O argumento de que há mutação constitucional no caso do controle

difuso e da intervenção do senado em virtude da tendência concentrada do controle

de constitucionalidade, não é suficiente para autorizar a Corte Constitucional a

deixar de lado a determinação do constituinte – que está ancorada na história

institucional do direito brasileiro – alterando de tal maneira a sistemática do controle

difuso de constitucionalidade que a feição democrática e garantidora de tal

instituição passa a ser colocada em xeque perigosamente.

10. Há uma diferença entre mutação constitucional e alteração formal da

constituição. A mutação constitucional é algo que se reconhece no contexto de toda

comunidade política. Não é uma criação stricto senso da Corte Constitucional; não é

algo que se determina a partir da vontade dos ministros que compõem a Corte; mas

sim algo imposto pela história institucional do direito. No caso do art. 52, X o que se

pretende fazer é uma verdadeira alteração formal no interior da qual o próprio texto

constitucional soçobraria. Ou seja, a Corte Constitucional seria uma espécie de turno

permanente do poder constituinte, que poderia (re)criar dispositivos constitucionais a

seu belvedere, contradizendo – de forma absoluta – toda história de limitação do

poder que caracteriza o movimento constitucionalista e que se apresenta de modo

emblemático na ideia de Constituição como pré-compromisso.

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11. Desse modo, é preciso ter claro que a função da Corte é concretizar a

norma e não textos de normas. Esse é um ponto fundamental, a norma é sempre

resultado de um texto; o texto, por sua vez, é um evento que compõe a cadeia

institucional do Direito professado por uma determinada comunidade política. Mas, o

que fica muito claro dessa discussão é que esse texto não pode ser estabelecido (ou

reformado) pelo poder judiciário. O que se modifica, altera ou adéqua à Constituição

é o sentido projetado por esse texto que produzirá a norma. No fundo, o importante

aqui – para adequada compreensão do problema da mutação constitucional – é o

manejo adequado da distinção entre texto da norma e norma.

12. E é justamente sob o pretexto de uma pretensa mutação constitucional,

que setores do pensamento jurídico pátrio defendem a supressão da manifestação

do Senado. Ocorre que, como foi dito, a mutação ocorre de maneira não

programada, não planejada, de acordo com a vivência da Constituição, pois planejar

a mutação – criando novos textos de norma – é fazer ruptura no sistema, no Direito,

na Constituição e no Estado Democrático de Direito. O STF também (!!!) está

subordinado à Constituição; não dita seus enunciados, mas os interpreta; não pode

cometer ativismos desmedidos e ditaduras judiciais. Na medida em que se admite

mutação constitucional, admite-se também que o texto não seja levado a sério,

ferindo a tripartição de poderes e, consequentemente, o princípio democrático.

13. É impossível ao STF “realizar” essa espécie de mutação constitucional

ilimitada, pois, dessa forma, a Corte sutilmente realizaria emendas da maneira

antidemocrática, sacralizando o seu papel de Judiciário e, agora, de Constituinte,

arruinando o Estado Democrático de Direito, o poder do povo de escolher quem é

que faz a sua Constituição, legando um ranço de totalitarismo às gerações futuras. É

a continuidade da crise da Constituição de 1988 e um engrossamento nos

argumentos de quem já defende uma nova Constituinte.

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