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Superação: Alexandra e um de seus cães, Laurinha Isto É - SP 29/05/2010 - 10:38 A mulher que escreve com os olhos Quem é a advogada Alexandra Szafir, que, com os músculos paralisados, luta com humor pela vida, trabalha e escreveu um livro escolhendo letras com o olhar Antonio Carlos Prado Atores profissionais não teriam feito melhor: uma mulher numa cadeira de rodas, empurrada às pressas e aos solavancos por um homem, atravessa o saguão do hospital São Luiz, em São Paulo, numa fria madrugada de abril de 2006. Se cadeiras de rodas já chamam a atenção, mesmo nesses locais, esse casal tinha algo a mais. Bem a mais: ela, a cadeirante, vestia-se como a mais legítima prostituta com direito a botas vermelhas e saia escandalosamente curta. Ele, o condutor da cadeira, trajava-se à perfeição como um explorador de mulheres – sem lhe faltarem os sapatos bicolores e a gomalina no cabelo. A afobação se justificava, uma vez que a mulher sangrava na cabeça. Ao alcançar o balcão da recepção, o homem foi firme: – Temos hora marcada com o professor de neurologia Acari Oliveira. Trata-se de internação. A recepcionista achou esquisito e hesitou. O macho, durão: – Ela é prostituta e eu, cafetão. Brigamos e esmurrei-lhe a cabeça. Agora, por favor, o professor Acari. Imediatamente. O médico foi chamado, cumprimentou o casal com bom humor e a moça foi internada. O homem instalou-se no mesmo apartamento na categoria de namorado. Como já se disse, gente afeita ao palco não teria se saído melhor e isso deixa claro que o casal em questão trabalha em outro ramo. Tal ramo, no entanto, é claro que nada tem a

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  • Superao: Alexandra eum de seus ces, Laurinha

    Isto - SP29/05/2010 - 10:38

    A mulher que escreve com os olhosQuem a advogada Alexandra Szafir, que, com os msculos paralisados, lutacom humor pela vida, trabalha e escreveu um livro escolhendo letras com oolhar

    Antonio Carlos Prado

    Atores profissionais no teriam feito melhor: uma mulher numacadeira de rodas, empurrada s pressas e aos solavancos porum homem, atravessa o saguo do hospital So Luiz, em SoPaulo, numa fria madrugada de abril de 2006. Se cadeiras derodas j chamam a ateno, mesmo nesses locais, esse casaltinha algo a mais.

    Bem a mais: ela, a cadeirante, vestia-se como a mais legtimaprostituta com direito a botas vermelhas e saiaescandalosamente curta.

    Ele, o condutor da cadeira, trajava-se perfeio como umexplorador de mulheres sem lhe faltarem os sapatos bicolores e a gomalina no cabelo.A afobao se justificava, uma vez que a mulher sangrava na cabea.

    Ao alcanar o balco da recepo, o homem foi firme:

    Temos hora marcada com o professor de neurologia Acari Oliveira. Trata-se deinternao. A recepcionista achou esquisito e hesitou. O macho, duro:

    Ela prostituta e eu, cafeto. Brigamos e esmurrei-lhe a cabea. Agora, por favor, oprofessor Acari. Imediatamente.

    O mdico foi chamado, cumprimentou o casal com bom humor e a moa foi internada.

    O homem instalou-se no mesmo apartamento na categoria de namorado.

    Como j se disse, gente afeita ao palco no teria se sado melhor e isso deixa claro que ocasal em questo trabalha em outro ramo. Tal ramo, no entanto, claro que nada tem a

  • O processo de escrita dolivro (acima): o namorado,lfio, aponta a letra eAlexandra arregala os

    ver com o lenocnio. A moa se chama Alexandra Lebelson Szafir, paulista e conhecidaem todo o Brasil pelo seu brilhantismo como advogada.

    filha de uma das mais tradicionais e socialmente bem colocadas famlias judias do Pas,estudou no difcil colgio israelita I.L.Peretz e formou-se em direito pela Universidade deSo Paulo. Tem um casal de filhos (Pedro e Isabella) e trs irmos:

    Salomo, Priscila e o ator e empresrio Luciano Szafir (gmeo da irm). Seu pai sechama Gabriel, sua me a empresria, estilista e socialite Betty Szafir.

    O namorado, lfio Dvila, no fica atrs: um dos mais famosos e bem-sucedidospromotores de eventos e produtores musicais brasileiros, acumulando no currculo, porexemplo, o fato de ter colocado no palco o roqueiro Raul Seixas em seu ltimo showantes de morrer.

    De volta quela madrugada, Alexandra tinha mesmo internao marcada (aplicao dehemoglobina), estava em cadeira de rodas porque o movimento de suas pernas se faziaaltamente comprometido, mas antes de ir ao hospital decidira curtir, ao lado doinseparvel lfio, uma balada fantasia.

    Ao sair do carro, um Dobl branco que mais parecia ambulncia e dava o confortonecessrio cadeirante, ela cara e ferira a cabea. Da a encenao.

    Sabe-se que o destino estoca na pacincia de alguns seres humanos o mais natural ehomeoptico de todos os remdios, o to decantado rir para no chorar.

    Ento, por que no aproveitar, mesmo em cadeira de rodas e com dor, uma festa noprprio dia da internao? Por que no se dar esse prazer se dessa internao poderiasair um terrvel veredicto? Veredictos jurdicos, esses Alexandra tira de letra em seus maisde 20 anos de advocacia, mas quo assustador pode ser um veredicto mdico?

    Dependendo de qual seja, s cabe impetrar recurso a Deus ou s mesmo uma Alexandrapara encar-lo com o seu remdio de rir no o rir dos tolos, mas, isso sim, o bom humorda inteligncia temperado na garra pela vida, na altivez e fora de carter.

    A hemoglobina no foi eficaz e veio assim o diagnstico encurralando Alexandra, 43anos, no traioeiro corredor da morte das doenas genticas degenerativas.

    Alexandra Szafir portadora de esclerose lateral amiotrfica(ELA), um buraco negro e sem cura da medicina, que progressivae avassaladoramente paralisa os msculos e leva aofalecimento. Atualmente, o mximo que ela faz, com o mximoesforo, e no mximo perodo de tempo, arregalar os olhosquando lfio lhe aponta uma letra numa tabela com o alfabeto eela quer sinalizar que tal letra compe a palavra que vai formular.

    assim que Alexandra se comunica, assim que Alexandraopina em processos e redige habeas corpus, assim queAlexandra escreveu o livro desCasos, uma Advogada s Voltascom o Direito dos Excludos, a ser lanado na segunda-feira 31

  • olhos

    Alexandra a mulher daminha vida. Fala peloscotovelos, mas com osolhos. E nos ensina aviver: lfio Dvila,promotor de eventos e

    pela Editora Saraiva, em So Paulo, no Iate Clube de Santos (s19 horas, na avenida Higienpolis, 18).

    Minha irm sempre fez tudo o que quis, diz Priscila. Agora era o livro, e ele est pronto.

    Escrever mal, dessa forma, j muito. S que Alexandra d uma aula de excelente escritae estilo, at porque, se as mos fazem o texto (no caso dela, os olhos), so a originalidadee a integridade do carter do autor que compem a obra. Mede-se isso nas palavras deseu scio, o advogado Alberto Zacharias Toron:

    O livro escancara as entranhas da Justia Penal, expondo suas mazelas e a truculnciadaqueles que Michel Foucault chamava de pequenos ortopedistas da moral. Reunindocasos reais nos quais atuou, as veias que saltam de paixo e desespero, as vozes quegritam e as mos que se estendem no livro so de desvalidos e injustiados.

    Alexandra delegava a colegas audincias de defesa de colarinho-branco, que renderiammilhes, para impedir despejo em favela. Educada para patricinha, o que a tornouassim? Nada a tornou, diz Priscila. Nasceu com esse gene, at de cachorro de rua elacuidava.

    Alexandra no est comprometida com a verso da advogada, ela comprometida com abusca da justia. Tem olho clnico para a injustia, diz a tambm scia e advogadaHelosa Estellita.

    J paralisada pela doena, Alexandra comeou a escrever com o nariz atravs de umprograma especial de computador. Quando tambm o nariz se cansou, o arregalar deolhos entrou em ao. Ela tem uma fora inquebrantvel, diz lfio.

    Na verdade, no s para escrever e trabalhar. No incio da doena, em 2005, quandoainda andava, embora com muita dificuldade e claudicando, fez questo de ir ao showdos Rolling Stones, no Rio de Janeiro, e percorreu a p distncias nas quais muito atletade fim de semana, sarado, pediria gua.

    No domingo 23, foi com o namorado assistir ao novo filme de Woody Allen e adorou.

    Alexandra lio de vida e superao, traduzida agora em livro, olhando para o dedo onamorado que lhe aponta letras com o auxlio incansvel da enfermeira MagnaCoutinho.

    Namorado, alis, que outra lio de vida. lfio tinha tudo parase mandar quando Alexandra adoeceu porque eram, ento, seismeses de relacionamento. Isso ainda em 2005.

    Ele est at hoje com a tabela de letras na mo

    Leia o captulo "Quem mandou morar na favela?" do livrodesCasos, uma Advogada s Voltas com o Direito dosExcludos, de Alexandra Szafir

    Quem trabalha com direito penal conhece a cor da pele

  • promotor de eventos eprodutor musical amarelada, tpica de quem est preso.

    Tambm h um odor caracterstico, para o qual no encontreioutro nome seno cheiro de cadeia.

    Sempre que algum solto e vem ao meu escritrio dias depois, impressiona muito adiferena fsica que alguns dias de liberdade produzem.

    Num caso extremo, ao entrar na sala onde meu cliente me aguardava, no o reconheci eachei que tinha entrado na sala errada pedi desculpas e sa, tamanha a diferena jfeita por poucos dias fora da cadeia.Da decorre a enorme vantagem de fazer um jri com o ru solto.

    Com raras excees, qualquer pessoa presa durante um tempo fica com cara de bandido,ainda que no o seja, o que, evidentemente, piora a impresso causada aos jurados.

    E isso pode impedir, portanto, um julgamento verdadeiramente justo. Para fazer umaanalogia, mais ou menos como se um jogo de futebol j comeasse com o placar de 1 a0 (ou mais, dependendo do caso) a favor do time adversrio.

    Quando o acusado est preso numa carceragem de Distrito Policial, esse efeito semaximiza.

    Em tima hora, a gesto do ento Secretrio da Administrao Penitenciria de SoPaulo Nagashi Furukawa acabou com a prtica de manter presos por meses, e s vezesat anos, em carceragens de Distritos Policiais. Originalmente destinadas a seremprovisrias, por um ou dois dias, acabaram tendo esse objetivo deturpado em razo dasuperlotao dos estabelecimentos penitencirios.

    O resultado? Todos os cidados, mesmo os que no militam na rea penal, deveriam irver in loco, pois, por maior que fosse a minha capacidade descritiva, no conseguiriaprovocar o horror que a viso desses lugares inspira.

    Trata-se de um pequeno ptio cercado por celas tambm pequenas, que geralmenteabrigavam o dobro ou o triplo de sua capacidade. Assim confinados, os presos passavammeses sem condies mnimas de higiene.

    Em certos Distritos nem sequer existia um ptio, impossibilitando que eles vissem a luz dosol e provocando-lhes inmeras doenas. O cheiro sentia-se de longe.

    Certa vez, chegando cedo para uma visita, quando as celas ainda no haviam sidoabertas para os corredores, vi os presos dormindo em pedaos de pano amarrados sgrades, como arremedos de redes, um por cima do outro, pois no havia mais lugar paradormirem no cho.

    Tambm no era raro que, na impossibilidade de se deitarem todos ao mesmo tempo, ospresos se revezassem em turnos para dormir.

    Fui nomeada para defender um ru num Jri, quase s vsperas de ele acontecer assim, no houve tempo para visitar o acusado antes do dia do julgamento.

  • Foi somente a que o conheci. Ele estava preso numa carceragem de Delegacia dePolcia fazia um ano e oito meses e tinha, portanto, aquela deplorvel aparncia tpica.

    Olhando o processo, verifiquei que, aps responder parte dele em liberdade, o ru haviasido preso pelo seguinte motivo: mudara de endereo!

    Ele tomara, no entanto, a cautela de avisar o juiz sobre a mudana, por meio de petiosubscrita por advogado, na qual informava o seu novo endereo.

    Pouco tempo depois, sobreveio a sentena de pronncia deciso que determina que oru seja julgado pelo Tribunal do Jri. Quando, porm, a oficial de justia foi ao endereoinformado para intim-lo, teria constatado que o nmero no existia naquela rua, dando-opor local incerto e no sabido. Assim, entendendo que ele no queria estar disposioda Justia, o juiz decretou sua priso preventiva. Ningum fez nada a respeito, pois aessa altura o advogado contratado renunciara defesa, provavelmente porque o ru notinha mais condies de pag-lo.

    O ru acabou sendo preso, o que o levou a perder o emprego, e, no dia do Jri, estavaencarcerado havia um ano e oito meses numa Delegacia de Polcia sem que ningumtivesse tomado qualquer providncia em seu favor. Por sorte havia um erro no libelo deacusao, assim o julgamento no pde ser realizado; finalmente, o juiz entendeu no serjusto mant-lo preso em razo de um atraso causado pela prpria acusao.

    Decidiu solt-lo. Naquele momento, para evitar novo decreto de priso, pedi a ele que meinformasse com urgncia seu endereo correto, para que eu pudesse pass-lo ao juiz.Para minha surpresa, ele me disse que seu endereo era exatamente aquele que haviainformado antes. Jamais se mudara de l (mora ali at hoje), e o nmero informadoanteriormente, segundo ele, estava correto.

    Tendo em vista a certido da oficial de justia, que dizia o contrrio, perguntei se possuaalgum tipo de prova da existncia do endereo. Ele me deu uma correspondnciabancria que lhe fora enviada pelos Correios e entregue pelo carteiro naquele endereo.

    Por uma coincidncia divina, a data de tal correspondncia era a mesma da certidoinformando que o endereo no existia.

    Em resumo: o ru ficou preso durante um ano e oito meses naquele local infecto porque aoficial de justia no procurara seu endereo direito e prestara uma informao errada aojuiz. Obviamente, se tivesse dinheiro para pagar um advogado que se interessasse em ir priso falar com ele nesse perodo, tudo teria sido esclarecido antes, poupando-o dainjusta privao de liberdade.

    Como no poderia deixar de fazer, pedi a punio da oficial de justia.

    Tais procedimentos correm em segredo de justia, portanto no tive acesso a eles, massoube que ela acabou sendo inocentada. Ao externar minha revolta com o juiz, ele, parameu estarrecimento, me disse o seguinte: Doutora, esses endereos em favela somesmo difceis de encontrar.

    Assim, conclu que a culpa de todo o ocorrido era do ru. Afinal, se ele morasse nosJardins, a oficial de justia certamente no teria encontrado dificuldades para localizar sua

  • residncia.

    Mesmo assim, por teimosia, ingressamos com ao indenizatria, que aguardajulgamento.Mas de uma coisa no resta dvida: ele foi preso por ser pobre (afinal, quem mandoumorar na favela?) e ficou preso por tanto tempo tambm por ser pobre e no ter advogadoparticular que fosse falar com ele na cadeia e esclarecesse os fatos ao juiz.

    Por fim, apenas para constar: embora seja irrelevante, o ru inocente e demorou dezanos para ser julgado porque os libelos que se seguiram continuaram contendo erros e,por isso, sendo anulados, e o Ministrio Pblico no conseguia decidir exatamente qualera a acusao contra ele, terminando por requerer sua absolvio, que foi decretadapelos jurados em votao unnime.

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