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Adircélio de Moraes Ferreira Júnior O BOM CONTROLE PÚBLICO E AS CORTES DE CONTAS COMO TRIBUNAIS DA BOA GOVERNANÇA Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito, Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito à obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Luis Carlos Cancellier de Olivo Florianópolis 2015

O Bom Controle Público e as Cortes de Contas como Tribunais da

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  • Adirclio de Moraes Ferreira Jnior

    O BOM CONTROLE PBLICO E AS CORTES DE CONTAS

    COMO TRIBUNAIS DA BOA GOVERNANA

    Dissertao apresentada ao Curso de Ps-graduao Stricto Sensu em Direito, Programa de Ps-graduao da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito obteno do ttulo de Mestre em Direito.

    Orientador: Prof. Dr. Luis Carlos Cancellier de Olivo

    Florianpolis 2015

  • Ficha de identificao da obra elaborada pelo autor, atravs do Programa de Gerao Automtica da Biblioteca Universitria da UFSC.

    Ferreira Jnior, Adirclio de Moraes O bom controle pblico e as Cortes de Contas comotribunais da boa governana / Adirclio de Moraes FerreiraJnior ; orientador, Luis Carlos Cancellier de Olivo -Florianpolis, SC, 2015. 257 p.

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de SantaCatarina, Centro de Cincias Jurdicas. Programa de Ps-Graduao em Direito.

    Inclui referncias

    1. Direito. 2. Funo de Controle. 3. Tribunais deContas. 4. Boa administrao e bom controle pblico. 5.Tribunais da Boa Governana. I. Olivo, Luis CarlosCancellier de. II. Universidade Federal de Santa Catarina.Programa de Ps-Graduao em Direito. III. Ttulo.

  • gg. U N I V E R S I D A D E F E D E R A L DE SANTA C A T A R I N A

    *^^^r^^ C e n t r o d e C n d a s uricas

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    O bom controle pblico e as Cortes de Contas como tribunais da boa governana

    ADIRCLIO DE MORAES F E R R E I R A JNIOR

    Esta Dissertao foi julgada e aprovada em sua forma final pelo Orientador e pelos demais membros da Banca Examinadora, composta pelos seguintes membros:

    Prof. Dr. Lus esffos Cancellier de

    UFSC -/Ori

    Prof. Dr. l^uizJ^H-i^IFWtFTart Cademarto

    UFSC - Membro

    Prof. Dr. Edmundo Lima-Jnior

    UFSC - Membro

    Prolf. Dr. Juarez Freitas UFRGS - Membro

    uda

    ProNDr. Luiz Otvio Pimentel Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Direito

    Florianpolis, 26 de fevereiro de 2 0 1 ^

  • Perguntar como as coisas esto indo e se elas podem ser melhoradas um elemento constante e imprescindvel da busca da justia.

    (Amartya Sen, 2011)

  • RESUMO

    O funcionamento do Poder Pblico implica uma atividade financeira, de carter instrumental, cuja finalidade arrecadar recursos para devolv-los sociedade por meio da prestao de servios pblicos. Dentre os princpios e valores constitucionais consagrados pelo Estado brasileiro, encontram-se a justia financeira e o direito fundamental boa administrao e governana pblica, que devem nortear toda a atuao estatal, desde a elaborao at a execuo oramentria. Essa vinculao impe a eficincia e eficcia do agir do Estado por meio de suas polticas pblicas de tributao e de gasto. Os Tribunais de Contas, por sua vez, como rgos titulares da funo de controle da administrao pblica, colocam-se na posio de promotores ou garantidores do cumprimento desses compromissos constitucionais, devendo cobrar esse engajamento e a adoo de uma boa governana pblica por parte de seus jurisdicionados. Essa postura demanda por parte daqueles rgos um novo paradigma de controle, mais eficiente, eficaz, racional e abrangente, que se traduz na ideia de bom controle pblico, alado tambm condio de direito fundamental na sociedade contempornea. A partir da construo dessa nova concepo de controle, e aps traar um diagnstico do dficit de legitimidade de que padecem as Cortes de Contas brasileiras, o que se sugere no presente trabalho so alguns prognsticos no sentido do redimensionamento material e procedimental dessas instituies, visando combater as anomalias da atuao estatal causadoras de injustias, notadamente a ineficincia, a ineficcia e a corrupo, de forma que as Cortes de Contas se convertam em verdadeiros Tribunais da Boa Governana Pblica.

    Palavras-chave: Justia financeira. Boa administrao e governana pblica. Funo de controle. Tribunais de Contas. Bom controle pblico. Tribunais da Boa Governana Pblica.

  • ABSTRACT The operation of the Government involves a financial activity, that has an instrumental character and whose purpose is to raise funds to return them to society through the provision of public services. Among the constitutional principles and values enshrined by the Brazilian State, are the financial justice and the fundamental right to good public administration and governance, which should guide all the actions of the State, from the preparation to the budget execution. This link requires the efficiency and effectiveness of State acting through its public policies of taxation and expenditure. The Courts of Accounts, in turn, as organs holders of the control function over the public administration, are placed in the position of promoters or guarantors of the compliance with these constitutional commitments and must demand this engagement and the adoption of good public governance from those who are under their jurisdiction. This attitude demands from those organs a new paradigm of control, more efficient, effective, rational and comprehensive, which means the idea of good public control, also elevated to a fundamental right condition in contemporary society. From the construction of this new conception of control, and after tracing a diagnosis of legitimacy deficit suffered by Brazilian Courts of Accounts, which is suggested in this essay are some measures towards the material and procedural resizing of these institutions, in order to combat anomalies of State action that cause injustice, especially inefficiency, ineffectiveness and corruption, so that the Courts of Accounts turn themselves into true Courts of Good Public Governance.

    Keywords: Financial justice. Good public administration and governance. Control function. Courts of Accounts. Good public control. Courts of Good Public Governance.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABIN Agncia Brasileira de Inteligncia ADI Ao Direta de Inconstitucionalidade ATRICON Associao dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil AUDIBRA Instituto dos Auditores Internos do Brasil CADE Conselho de Defesa da Atividade Econmica CFC Conselho Federal de Contabilidade CICC Conveno Interamericana de Combate Corrupo CNJ Conselho Nacional de Justia CNMP Conselho Nacional do Ministrio Pblico CNTC Conselho Nacional dos Tribunais de Contas CNUCC Conveno das Naes Unidas Contra a Corrupo COAF Controle de Atividades Financeiras CPI Comisso Parlamentar de Inqurito CRFB/88 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 CRP Constituio da Repblica Portuguesa EFS Entidade Fiscalizadora Superior EURORAI Organizao Europeia de Instituies Regionais de Controle Externo do Setor Pblico (European Organization of Regional External Public Finance Audit Institutions) IFAC Federao Internacional de Contadores (Iternational Federation of Accountants) GAO Escritrio de Accountability Governamental (Government Accountability Office) IIA Instituto de Auditores Internos (Institute of Internal Auditors) INTOSAI Organizao Internacional das Entidades Fiscalizadoras Superiores (International Organization of Supreme Audit Institutions) IRB Instituto Rui Barbosa ISSAI Normas Profissionais para Entidades Fiscalizadoras Superiores (International Standards of Supreme Audit Institutions) LDO Lei de Diretrizes Oramentrias LOA Lei Oramentria Anual LOLF Lei Orgnica relativa a Leis de Finanas LRF Lei de Responsabilidade Fiscal NAG Normas de Auditoria Governamental NBC Normas Brasileiras de Contabilidade OCDE Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico ONG Organizao No Governamental ONU Organizaes das Naes Unidas

  • PEC Proposta de Emenda Constituio PPA Plano Plurianual STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justia TAG Termo de Ajustamento de Gesto TCCE Tribunal de Contas da Comunidade Europeia TCE Tribunal de Contas do Estado TCG Termo de Compromisso de Gesto TCM Tribunal de Contas dos Municpios (ou do Municpio, conforme o caso) TCU Tribunal de Contas da Unio TSE Tribunal Superior Eleitoral

  • SUMRIO

    1 INTRODUO 15 2 JUSTIA FINANCEIRA, BOA ADMINISTRAO E GOVERNANA PBLICA: SUA RELAO COM A FUNO DE CONTROLE 21 2.1 A JUSTIA FINANCEIRA COMO PRINCPIO NORTEADOR DO ESTADO CONSTITUCIONAL 23 2.2 NITI E NYAYA, DUAS CONCEPES DE JUSTIA 32 2.3 A INTERDISCIPLINARIDADE NA ATUAO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS E A COLISO DOS DISCURSOS ENVOLVIDOS 34 2.4 O DIREITO FUNDAMENTAL BOA ADMINISTRAO E BOA GOVERNANA PBLICA 41 2.5 O ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO E A FUNO DE CONTROLE 49 2.5.1 Evoluo histrica e a necessria superao da teoria clssica da separao tripartite de poderes 50 2.5.2 O transconstitucionalismo entre ordens jurdicas para tratamento de problemas constitucionais e a funo de controle como poder de Estado 61 3 O CONTROLE DA ADMINISTRAO PBLICA NO BRASIL E NO MUNDO 71 3.1 ACCOUNTABILITY E CONTROLE: CONCEITO E TIPOLOGIA81 3.2 OS TRIBUNAIS DE CONTAS NO BRASIL 96 3.2.1 As competncias constitucionais e a funo dos Tribunais de Contas 103 3.3 A JURISDIO FINANCEIRA OU DE CONTAS 103 3.4 A ATROFIA DO PODER DE CONTROLE NO BRASIL E O DFICIT DE LEGITIMIDADE DE QUE PADECEM OS TRIBUNAIS DE CONTAS 115 3.4.1 O processo de escolha dos membros dos Tribunais de Contas e o desequilbrio na composio do rgo 120 3.4.2 A ineficincia e ineficcia do controle tradicional 127 4 O BOM CONTROLE PBLICO: NOVOS PARADIGMAS DE ATUAO DOS TRIBUNAIS DA BOA GOVERNANA 133 4.1 O REDIMENSIONAMENTO MATERIAL NECESSRIO SOB A PERSPECTIVA DO BOM CONTROLE PBLICO 138 4.1.1 Fomento de boas prticas na administrao pblica 138 4.1.2 Polticas pblicas em foco 143 4.1.3 Avaliao da gesto regulatria do Estado 147

  • 4.1.4 Participao na elaborao oramentria 151 4.1.5 O imperativo enfoque qualitativo na anlise das contas pblicas 155 4.1.6 A busca pela concretizao da boa receita pblica 168 4.2 REDEFINIES PROCEDIMENTAIS CONSECTRIAS DO BOM CONTROLE PBLICO 174 4.2.1 Um reforo orgnico na preveno e no combate corrupo 174 4.2.2 Abordagem interinstitucional 175 4.2.3 Acesso a informaes protegidas pelos sigilos bancrio e fiscal 183 4.2.4 Prerrogativa de obteno de informaes de terceiros 199 4.2.5 A interface entre a accountability horizontal e a accountability vertical eleitoral 202 4.2.6 A reforma processual na jurisdio de contas e a aproximao intrainstitucional 218 5 CONCLUSO 225 REFERNCIAS 231

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    1 INTRODUO Na obra Os Maias, clssico da literatura portuguesa de Ea de

    Queiroz, em determinada passagem, possvel encontrar um dilogo revelador do dficit de legitimidade dos Tribunais de Contas e da funo de controle:

    Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara o relgio. E eu aqui, empregado pblico, tendo deveres para com o Estado, logo s dez horas da manh. Que diabo se faz no tribunal de contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaquea-se? Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo... At contas! (EA DE QUEIROZ, 1888, p. 168-169)

    O romance, que se passa em Portugal, mais precisamente em

    Lisboa, no final do sculo XIX, dotado de forte crtica social, caracterstica marcante no realismo-naturalismo queirosiano.1

    Muito embora distante no tempo e no espao, o que se verifica que a viso negativa que a sociedade tem dos Tribunais de Contas ainda persiste nos dias de hoje e possui razes em questes histricas, polticas, sociais e culturais, podendo ser considerada fruto tambm de nossa herana colonial.

    A assertiva de que at contas se faz nesses tribunais deve ter, atualmente, outra acepo. E no apenas no que diz respeito conotao pejorativa com que ela foi utilizada no contexto reproduzido acima.

    Com efeito, a CRFB/88 conferiu aos Tribunais de Contas um mandato bastante amplo de controle das contas pblicas. Ela rene em um mesmo rgo, entre outras, as competncias do julgamento de contas e da fiscalizao contbil, financeira, oramentria, operacional e patrimonial da administrao pblica brasileira, o que confere ao tipo de controle a ser exercido uma abrangncia muito maior do que a elaborao de contas aritmticas.

    1 Para Ferreira (2009, p. 110-111), Ea de Queiroz no se manteve apenas no movimento Realista-Naturalista, uma vez que o escritor portugus sempre procurou acompanhar as grandes mudanas culturais da Europa do seu tempo.

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    No entanto, no obstante a amplitude dessa misso, ainda se convive com uma imagem enviesada do controle como ou como deve ser exercido por essas instituies.

    sob esse prisma questionador que se prope, no presente trabalho, uma releitura do controle pblico, de modo a diagnosticar alguns obstculos que ainda hoje assolam a legitimidade institucional dos Tribunais de Contas e apresentar algumas contribuies e alguns prognsticos com o intuito de superar essas barreiras.

    A hiptese central, confirmada ao final da pesquisa, estabelece o bom controle pblico como elemento central na busca pela boa governana na administrao pblica brasileira, a qual, por sua vez, consectria do princpio da justia financeira e do direito fundamental boa administrao que devem nortear o Estado Constitucional e Democrtico de Direito.

    Assim, o problema que move esta investigao questiona o prprio papel das instituies de controle no arqutipo do Estado e pe em evidncia a racionalidade que deve pautar o seu dimensionamento, visando, com isso, perquirir redefinies necessrias na atuao das Cortes de Contas, tanto no campo material como no processual, para a materializao de uma nova concepo de bom controle pblico e para a viabilizao dos objetivos que lhes incumbem, quais sejam, o de contribuir para a boa governana pblica e para a concretizao dos princpios constitucionalmente valorados.

    A perspectiva terica ultrapassa as discusses levadas a efeito no mbito do chamado institucionalismo transcendental dominante, no se preocupando em debater um modelo ideal ou perfeito de instituio de controle, mas que, focando propriamente em realizaes sociais concretas e pontuais, seja capaz de contribuir para a minimizao das injustias perpetradas pela atuao deficiente da administrao pblica brasileira, que o escopo natural do controle levado a efeito por aquelas instituies.

    No entanto, qual a racionalidade que deve pautar essa mudana na maneira de atuar por parte dos Tribunais de Contas?

    sob o enfoque do paradigma ps-moderno, que impe a transdisciplinaridade do conhecimento e a necessidade de dilogo entre as diversas racionalidades existentes na sociedade hipercomplexa contempornea (dentre elas a jurdica, a poltica, a econmica, a administrativa, a contbil, a tecnolgica, etc.) para a soluo do problema do conflito entre esses discursos, que se pretende construir um paradigma afeto s Cortes de Contas, sem que isso represente, no

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    entanto, uma alterao significativa no modelo constitucional tal como positivado.

    a partir desses referenciais tericos, portanto, que se pretende discutir um redimensionamento substantivo e adjetivo de uma jurisdio de contas, como instituio de controle, mais consentnea com o que a sociedade dela espera, principalmente no que diz respeito preveno e ao combate ineficincia, ineficcia e corrupo, to presentes no setor pblico brasileiro.

    E, ao contrrio do que sugere a resposta ao questionamento feito no clssico portugus, essa misso constitucional do controle pblico no mais se limita a meras conferncias aritmticas de cumprimento de limites constitucionais e legais, de quantitativos monetrios de gastos como era no passado. Ela deve ser orientada para verificao dos atos administrativos quanto sua legalidade, legitimidade e economicidade, bem como sua obedincia aos princpios constitucionais vinculantes, notadamente os da eficincia e eficcia.

    Para tanto, o mtodo de abordagem utilizado na pesquisa o indutivo, enquanto que o de procedimento o monogrfico. A tcnica de pesquisa aplicada a documentao indireta, isto , a pesquisa documental e bibliogrfica. Quanto anlise e interpretao dos resultados, a pesquisa tem carter qualitativo, na tentativa de oferecer uma apreciao global sobre as concluses que a investigao possibilitou.2

    A justificativa do tema reside nos frequentes (e crescentes) questionamentos feitos pela sociedade acerca da real efetividade da atuao dos rgos de controle, principalmente em virtude da percepo que se tem da magnitude daqueles fenmenos que comprometem a concretizao da justia pelo Poder Pblico.

    Essas indagaes sobre o que fazem as instituies de controle apontam para a necessidade de se repensar a prpria concepo de controle, colocando, no centro do debate, no apenas o contedo material da fiscalizao e da jurisdio de contas, mas tambm a maneira como ela deve proceder e operar.

    A exposio encontra-se estruturada em cinco captulos: a presente introduo o primeiro, seguida de trs captulos centrais, nos quais ser desenvolvida a exposio da pesquisa e, por fim, no quinto e

    2 Sobre metodologia de pesquisa no Direito, vide Mezzaroba e Monteiro (2007).

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    ltimo, a concluso, onde sero corroborados os objetivos e a hiptese desta dissertao.

    No segundo captulo, sero abordados os trs pilares fundamentais que devem subsidiar uma nova definio nos parmetros de valorao do controle pblico, quais sejam a justia financeira, a boa administrao e a boa governana, que, por sua vez, norteiam a atuao do Estado Democrtico e Constitucional de Direito.

    A partir de duas ideias distintas de justia, inspirada no Direito indiano, uma focada em arranjos institucionais (niti) e outra (nyaya), em realizaes sociais, defende-se a necessidade de os Tribunais de Contas assumirem esse ltimo conceito e atuarem no sentido da remoo de injustias ou de suas causas na atividade do Estado Financeiro, em especial a ineficincia, ineficcia e corrupo na administrao pblica, causadoras de tantas mazelas sociais.

    Sob essa perspectiva, sustenta-se a necessidade de se repensar a atuao das Cortes de Contas de modo a suprirem o dficit crnico de legitimidade de que padecem essas instituies, lembrando que as modificaes no seu modus operandi devem levar em conta a noo trazida pela expresso altera pars audiatur, que preconiza a necessidade de oitiva dos diversos discursos e das muitas racionalidades envolvidas antes da tomada de deciso pelo direito, mormente em uma sociedade hipercomplexa como a contempornea e em um campo interdisciplinar como o da atuao daquelas instituies.

    trabalhada, tambm, a noo de controle como funo do Estado, com base em uma anlise crtica da evoluo histrica da consagrada, porm superada, teoria da separao tripartite de Poderes, concluindo pela necessidade de reconhecimento de outras funes como Poder autnomo e soberano estatal, em especial, daquela que controla a administrao pblica, a fim de legitimar e fortalecer essa atividade, conferindo-lhe maior efetividade.

    Partindo de exemplos concretos de Estados que j promoveram uma ruptura com aquela teoria clssica de diviso de funes, inclusive com o reconhecimento da atividade de controle como Poder, lana-se mo do transconstitucionalismo, que, por meio de conversaes constitucionais, mostra-se um instrumento til para soluo de problemas que surgem em diversas ordens jurdicas e que transcendem as fronteiras de um Pas para atingir a concepo que se tem de Estado como uma realidade mundial concreta, como o caso do desenho da geometria de Poder estatal.

    O terceiro captulo adentra propriamente no sistema de controle da Administrao Pblica, distinguindo os modelos de sistemas

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    existentes no direito comparado e no ordenamento jurdico brasileiro, para analisar especificamente o sistema de controle externo exercido pelos Tribunais de Contas, um dos rgos responsveis pela accountability horizontal do Estado, por meio da sua jurisdio financeira ou de contas.

    Examina-se, ainda, a atrofia do Poder de Controle no Brasil e o dficit de legitimidade das Cortes de Contas, relacionando-os com o processo de escolha de seus membros, com o desequilbrio na composio tcnica e poltica do rgo e com a ineficincia e ineficcia do controle tradicionalmente exercido.

    No quarto captulo, estabelece-se o bom controle pblico como uma nova categoria de direito fundamental, resultante da aplicao dos valores constitucionais enunciados no primeiro captulo. sob o influxo desses valores que se busca identificar uma atuao das Cortes de Contas consentnea com a de um rgo garantidor daquelas diretrizes, ou seja, como um autntico Tribunal da Boa Governana.

    a partir da perspectiva do bom controle pblico e da boa administrao pblica, bem como do paradigma que resulta da relao simbitica entre essas duas concepes, que se busca um redimensionamento material e procedimental na esfera de atuao das Cortes de Contas ou dos Tribunais da Boa Governana.

    Nessa senda, so abordadas, de maneira crtica e no dogmtica, sem a pretenso de esgotar o tema, algumas demandas pontuais, porm centrais, do bom controle pblico, selecionadas a partir do diagnstico traado acerca de alguns dos principais obstculos efetividade do controle tradicional.

    Dessa forma, so debatidas as seguintes necessidades, por parte do bom controle pblico: fomento de boas prticas na administrao pblica; foco nas polticas pblicas; avaliao da gesto regulatria estatal; participao na elaborao oramentria; adoo de um vis qualitativo na anlise das contas pblicas; concretizao da boa receita pblica; um reforo orgnico na preveno e no combate corrupo; abordagem interinstitucional e aproximao intrainstitucional; prerrogativa de obteno de informaes junto a terceiros, bem como de dados protegidos pelo sigilo bancrio; interface entre a accountability horizontal e a accountabilitty vertical eleitoral; e, por fim, reforma processual na jurisdio de contas.

    E, finalmente, no quinto e ltimo captulo, so trazidas as corroboraes dos objetivos e da hiptese da pesquisa, procurando recuperar as ideias centrais dos captulos antecedentes por meio de uma reconstruo sinttica dos aspectos mais relevantes a eles relacionados.

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    2 JUSTIA FINANCEIRA, BOA ADMINISTRAO E GOVERNANA PBLICA: SUA RELAO COM A FUNO DE CONTROLE

    O princpio da justia financeira pode ser extrado de diversos

    outros princpios dispersos na Constituio Federal (CRFB/88), devendo ser interpretado como um dos muitos compromissos constitucionais do Estado brasileiro. Esse princpio informa todo o ordenamento jurdico nacional, preconiza uma justa distribuio da riqueza produzida pelo Pas e deve nortear toda a atuao estatal.

    O funcionamento do Estado implica, necessariamente, a existncia de uma atividade financeira, que consiste na obteno, na gesto e, finalmente, na aplicao de recursos. o fenmeno financeiro que permite a execuo das atividades relacionadas aos muitos fins visados pelo Estado, tais como a manuteno da ordem interna, defesa nacional, distribuio da justia, elaborao das leis, construo de estradas, fiscalizao das atividades dos particulares, prestao de servios pblicos, entre outras. (BASTOS, 2001, p. 3-5)

    Por no se esgotar em si mesma, possvel afirmar que a atividade financeira do Estado tem um carter instrumental, j que h uma relao de meio e fim, na medida em que por intermdio dela que o Poder Pblico pode cumprir todas as demais atividades necessrias para a satisfao da necessidade coletiva da sociedade. (BASTOS, 2001, p. 9)

    Tendo em vista que essa atividade pblica de angariar meios financeiros est intimamente atrelada aos prprios fins do Estado, o papel que as finanas pblicas devem cumprir dentro dessa organizao poltica condicionado pela prpria concepo que se tenha dela. (BASTOS, 2001, p. 11)

    Mas qualquer que seja essa concepo, possvel afirmar que, no que tange s contas pblicas, o Estado age na sociedade por meio da tributao e do gasto, vazando renda do fluxo circular do produto nacional quando arrecada tributos e injetando-a de volta quando devolve aqueles recursos anteriormente arrecadados, atravs dos servios prestados (renda real) e do gasto pblico (renda nominal, que corresponde contrapartida monetria da renda real)3. 3 O conceito de produto ou renda nominal corresponde sua medida em termos monetrios, enquanto que o conceito de produto ou renda real refere-se sua mensurao em termos fsicos. Assim, a sua medida nominal pode variar tanto

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    Dessa forma, importante que, de um lado, esse vazamento de renda se d do modo menos traumtico possvel para a sociedade, enquanto que, de outro, o retorno desses recursos ocorra da maneira mais benfica para a coletividade.

    Para isso, tanto a elaborao quanto a execuo oramentria estatal devem ser pautadas pelo princpio da justia financeira, o qual deve nortear todo esse processo, que vai desde a previso da arrecadao da receita at a realizao da despesa pblica.

    Alm disso, importante ter em mente que esse princpio guarda estreita relao com o direito fundamental boa administrao e governana pblicas, que impe a eficincia e a eficcia da atuao estatal, levada a efeito por meio de suas polticas pblicas, tanto de tributao quanto do gasto, de forma que a deficincia na universalidade e na qualidade dessa atuao constitui violao quelas diretrizes, caracterizando, assim, uma injustia que deve ser combatida. (FERREIRA JNIOR; OLIVO, 2014, p. 218)

    E a vinculao da atividade estatal ao princpio da justia financeira coloca os Tribunais de Contas, como rgos titulares da funo de controle da administrao pblica, na posio de promotores ou garantidores desses princpios constitucionais cuja concretizao depende tambm de um controle eficiente, eficaz e racional por aquelas instituies, harmnico com as diretrizes veiculadas por essa noo de justia e pela ideia de boa administrao pblica. (FERREIRA JNIOR; OLIVO, 2014, p. 218)

    Os Tribunais de Contas, guardies constitucionais das contas pblicas, assumem papel central na promoo de uma justia financeira material, e no apenas formal. Como decorrncia disso, devem incentivar a adoo de uma boa governana pblica por parte de seus jurisdicionados, combatendo as anomalias da atuao estatal, tanto no

    em funo da quantidade como em virtude do preo dos bens ou servios produzidos, enquanto que a mensurao real s varia em funo da modificao na quantidade efetivamente produzida (SAMUELSON, 1973). Dessa forma, possvel traar um paralelo com o gasto pblico, analisado sob o aspecto de sua expresso monetria, com a noo de produto ou renda nominal, enquanto que a sua anlise qualitativa pode ser relacionada ideia de produto ou renda real, ou seja, daquilo que efetivamente entregue para a sociedade no apenas quanto ao seu quantum fsico, mas, sim, quanto qualidade daquilo que fisicamente lhe fornecido.

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    que diz respeito tributao quanto no que concerne ao gasto pblico, geradoras de iniquidades. (FERREIRA JNIOR; OLIVO, 2014, p. 203)

    2.1 A JUSTIA FINANCEIRA COMO PRINCPIO NORTEADOR DO ESTADO CONSTITUCIONAL

    O estudo da justia financeira ou oramentria abrange, de

    maneira simultnea, os aspectos da receita e da despesa pblica, transcendendo, por isso, a ideia de justia tributria, que, por sua vez, se encontra vinculada vertente da receita pblica. Ele expressa, portanto, duas facetas de uma mesma noo: a justia das receitas e dos gastos pblicos. (TORRES, 2000, p. 197)

    Torres (2000 p. 198) recorda que a ideia de justia financeira sempre esteve presente, ocupando lugar de destaque na histria do pensamento jurdico, mesmo quando diluda na concepo de justia poltica ou social. No entanto:

    Com o advento do liberalismo houve um certo esquecimento da idia de justia, inclusive da financeira. A grande preocupao transferiu-se para a problemtica da liberdade e dos direitos fundamentais. A idia de justia, quando examinada, confundia-se com a de igualdade e recebia sempre a interpretao formalista. Como observou Klaus Vogel, houve o desinteresse pelo fundamento das finanas pblicas. A vitria dos positivismos de diversos matizes cientificista, sociolgico, normativista, etc. consolidou a orientao e afastou a preocupao com os fundamentos das finanas pblicas, que passou a ser estudada principalmente sob o ponto de vista do utilitarismo. De uns trinta anos para c, todavia, modificou-se inteiramente o enfoque, reacendendo-se o interesse pela idia de justia, com especial considerao da justia fiscal. [...] Naquela mesma poca (1972), por muito mais que mera coincidncia, foi publicado o livro fundamental de John Rawls sobre a Teoria da Justia. Deu-se a virada kantiana, isto , a retomada de alguns pontos da reflexo do filsofo Knigsberg, como o relacionamento entre direito e moral e a idia de contrato social. Alguns livros importantssimos

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    foram escritos sobre a justia, principalmente os de O. Hffe, M. Walzer, Hayek, Nozick, Larenz, Perelman e B. Ackerman, todos com reflexos sobre a problemtica das finanas pblicas. Muitos outros trabalhos apareceram no campo das justias especiais: na justia tributria os livros fundamentais de Klaus Tipke; na justia econmica, o de Macpherson. Surgiram igualmente livros que negam a possibilidade de uma Teoria da Justia, como os de J. Habermas e de Luhmann. No Brasil o tratamento da matria ainda incipiente, mas no se pode esquecer o trabalho de Ubiratan Borges de Macedo sobre a Justia Social. Em toda essa imensa produo bibliogrfica, insista-se, aparece como um dos aspectos mais importantes o financeiro ou oramentrio, ainda que sem as referncias tcnicas. (TORRES, 2000, p. 198-199, grifo no original)

    Ao expressar sua convico intuitiva na primazia da justia,

    Rawls elabora as seguintes proposies:

    Justia a primeira virtude das instituies sociais, como a verdade o dos sistemas de pensamento. Embora elegante e econmica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se no verdadeira; da mesma forma leis e instituies, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se so injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justia que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razo, a justia nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. No permite que os sacrifcios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual so consideradas inviolveis; os direitos assegurados pela justia no esto sujeitos negociao poltica ou ao clculo dos interesses sociais. A nica coisa que nos permite aceitar uma teoria errnea a falta de uma teoria melhor; de

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    forma anloga, uma injustia tolervel somente quando necessria para evitar uma injustia ainda maior. Sendo virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justia so indisponveis. (RAWLS, 1997, p. 3-4)

    Justia o conceito mais fundamental do Direito e, por essa

    razo, tambm o mais abstrato. Por ter um contedo valorativo de alto grau de indeterminao, ele carrega consigo o risco de uma constante tentao para os adeptos de retricas pomposas e de formas vazias de expresso. Mas o fato que a ideia de direito justo pressupe a existncia de princpios (regras, critrios, padres), que so especialmente necessrios quando direitos e deveres, nus e reivindicaes devem ser distribudos entre os integrantes de uma determinada coletividade. Uma distribuio sem princpios uma repartio arbitrria e essa assertiva vlida tanto no campo da filosofia moral como no da filosofia do direito. (TIPKE; YAMASHITA, 2002, p. 19)

    O princpio permite o tratamento igualitrio e imparcial de todos aqueles por ele abrangidos, criando, assim, uma medida uniforme para o exame de casos semelhantes. A orientao por princpios, por tratar de generalidade e consequncia, retira do legislador o difcil, seno impossvel, encargo de prever e regular todas as situaes possveis, contribuindo, dessa maneira, para evitar lacunas normativas. Princpios fundamentais e subprincpios (ou princpios derivados) compem um sistema, uma hierarquia. (TIPKE; YAMASHITA, 2002, p. 20)

    Dworkin (2007, p. 36) denomina de princpio um padro que deve ser observado, no porque v promover ou assegurar uma situao econmica, poltica ou social considerada desejvel, mas porque uma exigncia de justia ou equidade ou alguma outra dimenso da moralidade.

    Ocorre que a existncia de princpios no , por si s, garantia de uma justia material, mas apenas de uma justia formal. Para que exista uma justia material imperativo que o princpio ou o critrio seja justo, de modo que a violao a princpios justos a determinada matria necessite de uma justificativa especial por outro princpio de igual valor ou maior. A violao injustificada de um princpio justo gera um privilgio ou uma discriminao. (TIPKE; YAMASHITA, 2002, p. 20)

    As constituies dos Estados Democrticos de Direito no admitem uma dissociao entre o direito positivo e a tica e partem da premissa de que possvel se distinguir o que justo do que injusto. A

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    Constituio alem, por exemplo, embora no contenha qualquer declarao expressa em prol da justia, estatui a igualdade perante a lei como direito fundamental. O tratamento isonmico como corolrio da justia pressupe, porm, um critrio adequado de comparao, um tertium comparationis orientado na justia. O princpio da isonomia, portanto, um produto da justia e isto somente possvel em virtude de haver um critrio adequado de comparao. (TIPKE; YAMASHITA, 2002, p. 21)

    Ao abordar a justia distributiva, Rawls (1997, p. 303) assevera que o seu principal problema a escolha de um sistema social e que os princpios da justia se aplicam estrutura bsica e regulam o modo como suas mais importantes instituies se organizam formando um nico sistema. O sistema social deve ser estruturado de modo que a distribuio resultante seja sempre justa. Para tanto, necessrio posicionar o processo econmico e social em um contexto de instituies polticas e jurdicas adequadas. A ideia de justia como equidade usar a noo de justia procedimental pura para lidar com as contingncias de situaes particulares.

    Em uma sociedade, embora haja uma identidade de interesses, no sentido da obteno de vantagens mtuas, h tambm um conflito entre seus membros sobre como os benefcios so distribudos. Para escolher entre as vrias formas de ordenao social que determinam essa diviso de vantagens, necessrio um conjunto de preceitos, que so os princpios da justia social. Eles estabelecem uma maneira de conferir direitos e deveres nas instituies bsicas da sociedade, definindo uma distribuio adequada do bnus e do nus do produto social. (RAWLS, 1997, p. 4-5)

    A partir dessas ideias iniciais, possvel afirmar que a noo de justia financeira rene as ideias de justia social e fiscal, encontra seu alicerce no princpio da isonomia e atribui ao valor justia uma dimenso financeira. O seu contedo semntico obriga o Estado Constitucional4 a perseguir a equidade na gesto financeira pblica,

    4 Carbonell (2003, p. 9-10) recorda que o constitucionalismo contemporneo definiu seus traos caractersticos nos ltimos cinquenta anos, sobretudo a partir do ps-guerra, sem que tivesse permanecido, desde ento, como um modelo esttico, seguindo sua evoluo em muitos sentidos. As modificaes operadas sobre o paradigma do Estado Constitucional so de tal magnitude que, hodiernamente, deve-se falar do Estado Neoconstitucional. E talvez no se deva

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    vista sob a tica integrada das duas frentes do agir fiscal do Poder Pblico, quais sejam, a arrecadao e o gasto.5 (FERREIRA JNIOR; OLIVO, 2014, p. 204)

    A frmula jurdica do neoconstitucionalismo, como modelo de organizao jurdico-poltica representativo de um aprimoramento do Estado Constitucional de Direito, reclama uma depurada teoria da argumentao capaz de garantir a racionalidade e de suscitar o consenso em torno da tomada de decises judiciais. A busca por um equilbrio, nunca totalmente estvel, entre o legalismo e o judicialismo, requer uma racionalidade no apenas para essas decises judiciais, mas tambm para as escolhas legislativas, muitas vezes esquecida. O neoconstitucionalismo estimula uma profunda reviso do positivismo terico (e, para alguns, tambm do metodolgico) e requer uma nova teoria das fontes distanciada do legalismo, uma nova teoria da norma que d entrada ao problema dos princpios e uma teoria robusta da interpretao nem puramente mecanicista nem puramente discricionria, onde os riscos que comporta a interpretao constitucional possam ser evitados por um esquema plausvel de argumentao jurdica. (SANCHS, 2003, p. 158-159)

    O princpio da justia financeira encontrado de modo mais explcito na Constituio da Repblica Portuguesa (CRP), notadamente nos seguintes artigos:

    Artigo 81. - Incumbncias prioritrias do Estado Incumbe prioritariamente ao Estado no mbito econmico e social: [...]

    nem falar de um neoconstitucionalismo, mas, sim, de vrios neoconstitucionalismos. 5 Torres (2000, p. 10-20) traa uma evoluo histrica do que veio a se transformar no Estado Democrtico e Social de Direito (no qual opera o Estado Oramentrio), a partir do Estado Fiscal Minimalista ou Estado Oramentrio Liberal, passando pelo Estado do Bem-Estar Social. Ribeiro e Xavier (2008, p. 4), por sua vez, falam em Estado Financeiro, que surgiu com o ocaso do feudalismo e com a formao dos Estados-Naes e que vem se desenvolvendo at os dias de hoje. E apontam os seus diferentes contornos, conforme os ideais polticos, econmicos e sociais de cada momento histrico, subdivindo-os nas seguintes fases: Estado Patrimonial, Estado de Polcia, Estado Fiscal e Estado Social.

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    b) Promover a justia social, assegurar a igualdade de oportunidades e operar as necessrias correces das desigualdades na distribuio da riqueza e do rendimento, nomeadamente atravs da poltica fiscal; [...] Artigo 103. - Sistema fiscal 1. O sistema fiscal visa a satisfao das necessidades financeiras do Estado e outras entidades pblicas e uma repartio justa dos rendimentos e da riqueza. [...] (PORTUGAL, 1976, grifo meu)

    Ao comentar o referido princpio e o tratamento a ele dado pela

    CRP, Costa afirma que:

    A Constituio da Repblica compromete o Estado com o objetivo de construo de uma sociedade justa, por via da promoo da justia distributiva e retributiva. Do discurso jurdico-constitucional resulta uma conceo sistmica de justia, inerente dignidade da pessoa humana, e fortemente ligada ao paradigma da liberdade igual. A Constituio da Repblica comea por afirmar, no seu art. 1., o seu compromisso desta com os valores da liberdade, da justia e da solidariedade. A justia, enquanto valor, informa todo o ordenamento jurdico. A ela no escapa o direito financeiro pblico. O preceituado no art. 81., al. b), e nos artigos 103., n. 1, e 104. da CRP, acolhem uma certa ideia de justia, social e fiscal, que podemos fundir numa ideia de justia financeira. Esta traduz-se, pois, numa importante dimenso da justia distributiva. Na verdade, a problemtica da justia distributiva deve ser abordada numa perspetiva integrada de arrecadao de receita / realizao de despesa pblica. neste sentido que se pode afirmar que impostos e despesas pblicas so duas faces da mesma moeda. A arquitetura de um sistema fiscal pouco nos diz acerca da efetiva realizao da justia

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    distributiva. Esta depende da afetao dos recursos pblicos, ou seja, depende de quem vai beneficiar de tais recursos e em que medida. [...] Assim, afigura-se-nos que, quando abordamos a problemtica da justia distributiva, o recurso ideia de justia financeira prefervel s ideias, parcelares, de justia fiscal e de justia social. Os preceitos da Constituio fiscal e da Constituio social tm como denominador comum um ncleo constitudo pelos valores da igualdade, da democracia e da solidariedade, a par com o valor da liberdade, postulando aquele uma justa repartio dos rendimentos e da riqueza, e estando o Estado comprometido com a sua promoo. (COSTA, 2012, p. 274-275, grifo no original)

    E conclui o autor no sentido de que a CRP, em seu art. 266, ao

    estabelecer a vinculao da administrao pblica ao princpio da justia, sujeita-a, naturalmente, ao dever de promoo da justia financeira. (COSTA, 2012, p. 274-275)

    No Brasil, o princpio da justia financeira pode ser retirado de diversas passagens do texto constitucional. Ele se encontra implcito nos valores que constituem os fundamentos da Repblica, tais como a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1, II e III, da CRFB/88), bem como nos seus objetivos de construo de uma sociedade livre, justa e solidria; de erradicao da pobreza e da marginalizao; de reduo das desigualdades sociais e regionais e da promoo do bem de todos (art. 3, I, III e IV, da CRFB/88). Ele pode ser depreendido tambm do reconhecimento, contido no prembulo da CRFB/88, da igualdade e da prpria justia como um dos valores supremos de uma sociedade fraterna e pluralista. (FERREIRA JNIOR; OLIVO, 2014, p. 204-205)

    O princpio da justia financeira, a partir da tica da arrecadao estatal, encontra sua expresso mxima no princpio da capacidade contributiva (art. 145, 1, da CRFB/88), que uma reafirmao do princpio da isonomia tributria (art. 150, II, da CRFB/88), o qual, por sua vez, projeta no campo fiscal o consagrado princpio da igualdade de todos perante a lei (art. 5, I, da CRFB/88). (FERREIRA JNIOR; OLIVO, 2014, p. 205)

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    Uma breve referncia aos valores relacionados ao princpio da justia financeira pode ser encontrada, ainda, quando, ao tratar da elaborao do oramento pblico, a CRFB/88 determina que as peas oramentrias, fiscal e de investimentos, compatibilizadas com o plano plurianual, tero entre suas funes a de reduzir desigualdades inter-regionais, segundo critrio populacional (art. 165, 7, da CRFB/88). (FERREIRA JNIOR; OLIVO, 2014, p. 205)

    No que diz respeito ao gasto pblico, o princpio da justia financeira pode ser encontrado, ainda que implicitamente, nos dispositivos constitucionais que tratam das diversas reas de atuao do Estado, quando garante a todos o direito aos servios pblicos de sade, previdncia e assistncia social, educao e cultura, segurana, entre outros. Mas no basta a mera prestao desses servios por parte do Poder Pblico para que se d como cumprida, em toda sua dimenso, a previso constitucional. preciso que esses servios sejam prestados com qualidade, de maneira eficiente e eficaz.6 Em outras palavras, no basta uma garantia meramente formal. importante uma garantia material desses direitos aos cidados. (FERREIRA JNIOR; OLIVO, 2014, p. 205)

    O princpio da justia financeira atua na proteo da coletividade e deve corresponder a um critrio de deciso oramentria, incluindo os princpios da justia tributria, da programao oramentria, da boa despesa pblica, entre outros, materializando-se pela eficiente satisfao das necessidades financeiras do Estado, por meio da justa repartio dos recursos e pela persecuo do interesse pblico, com vistas boa satisfao das necessidades de um determinado grupo. (MAGALHES, 2011, p. 40)

    Ao tratar da legitimidade da Administrao Pblica, em conformidade com a tbua axiolgica da Constituio e seus objetivos nada abstratos de justia e desenvolvimento sustentvel, Freitas (2012, p. 18-19) sustenta que ela pressupe a observao cabal das obrigaes sintetizadas no direito fundamental boa administrao e, ainda, a:

    6 Sobre o Estado Constitucional de Direito, sua vinculao com a concretizao dos direitos fundamentais e as consequncias dessa relao de obrigatoriedade de implementao de polticas pblicas necessrias para a promoo e concretizao desses direitos, vide Baratieri (2014, p. 17-179), que ainda analisa o papel do Estado brasileiro e dos servios pblicos previstos na CRFB/88 nesse processo.

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    [...] gerao de ambiente institucional seguro para os parceiros produtivos, com aguda reduo dos entraves oriundos do burocratismo, da corrupo e da quebra reiterada de confiana. Pressupe, sem tardar, a contnua sinergia entre as polticas sociais e o estabelecimento pactuado de metas e resultados monitorveis em horizonte ampliado. Pressupe, enfim, o enraizamento, em alta escala, dos princpios da boa governana, com inovao de escopo, acompanhada de translucidez, controle participativo e, apesar de riscos tecnocrticos, do rigoroso escrutnio retrospectivo e prospectivo das polticas pblicas. (FREITAS, 2012, p. 19, grifo no original)

    Uma atuao estatal deficiente seguramente causa injustia.

    Dentre as disfunes estatais causadoras de injustias sociais, podem ser apontadas a ineficincia e a ineficcia nas diversas reas de atuao do Poder Pblico, alm da to ou mais grave das causas de desigualdade, a corrupo (aqui tambm includa sua variante relacionada arrecadao de tributos, que a evaso ou a sonegao fiscal), que assola a sociedade brasileira, seja no setor pblico, seja no privado.

    Nesse contexto, o papel da funo de controle, em especial o dos Tribunais de Contas, ganha relevo ainda maior, considerando a crescente demanda da sociedade por melhores servios pblicos, evidenciada, inclusive, pelos recentes levantes populares que se insurgiram por todo o Pas. Na verdade, o cenrio em que se encontra no exclusividade do Estado brasileiro, embora seja, no caso especfico, agravado por razes histricas, sociais, econmicas e culturais.

    Os componentes da crise de identidade do Estado brasileiro so apenas alguns dos muitos que formam um quadro maior, que retrata o conflito por que passa o Estado Moderno como um todo, fragilizado e impotente diante de uma presso global e heterrquica exercida por uma ordem mundial mltipla e plural, como a que exsurge e recrudesce a partir da sociedade contempornea.

    a impotncia do Leviat frente s demandas de uma sociedade hipercomplexa e mundializada, como a contempornea, na qual cada vez mais prevalece a tecnicidade e a economia. E essa disfuno afeta de maneira negativa a sua relao com Tmis, vista como um objetivo concreto de justia a ser atingido pelo Estado, e no mais como um smbolo abstrato. A partir dessa metfora, Neves (2006) sustenta a

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    importncia de uma relao slida, horizontal e profcua entre esses dois smbolos, na construo de um Estado Democrtico de Direito capaz de responder s profundas questes com as quais se defronta atualmente.

    Portanto, as diretrizes emanadas pela justia financeira determinam eficincia e eficcia na gesto pblica, bem como no seu controle, a fim de que o Estado brasileiro consiga fazer frente aos crescentes desafios que a sociedade contempornea lhe impe.

    2.2 NITI E NYAYA, DUAS CONCEPES DE JUSTIA

    Inspirado em dois termos do snscrito clssico, niti e nyaya, Sen

    (2011, p. 50) sustenta duas vises distintas de justia. Uma focada em arranjos institucionais ideais e a outra, em realizaes concretas. Muito embora ambas tragam consigo o significado de justia, a palavra niti tem como utilizao mais corrente a adequao de um arranjo institucional e a correo de um comportamento, enquanto que nyaya reporta a uma noo mais ampla de justia realizada, contrastando com a primeira ideia.

    A partir dessa viso, Sen (2011, p. 50) defende que os papis das instituies, regras e organizaes, importantes como so, tm de ser avaliados da perspectiva mais ampla e inclusiva de nyaya, que est inevitavelmente ligada ao mundo que de fato emerge, e no apenas s instituies ou regras que por acaso temos. Ou seja, no apenas a partir de uma viso de justia ideal, representada pela ideia de niti.

    E ilustra da seguinte maneira:

    Considerando uma aplicao especfica, os antigos tericos do direito indiano falavam de forma depreciativa do que chamavam matsyanyaya, a justia do mundo dos peixes, na qual um peixe grande pode livremente devorar um peixe pequeno. Somos alertados de que evitar a matsyanyaya deve ser uma parte essencial da justia, e crucial nos assegurarmos de que no ser permitido justia dos peixes invadir o mundo dos seres humanos. O reconhecimento central aqui que a realizao da justia no sentido de nyaya no apenas uma questo de julgar as instituies e regras, mas de julgar as prprias sociedades. No importa quo corretas as organizaes estabelecidas possam ser, se um peixe grande ainda puder devorar um pequeno

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    sempre que queira, ento isso necessariamente uma evidente violao da justia humana como nyaya. (SEN, 2011, p. 50-51, grifo no original)

    A essas noes o autor acrescenta a ideia de uma argumentao

    racional sobre justia, abordagem essa a que denomina de institucionalismo transcendental,7 que foca na identificao das instituies ideais, tendo duas caractersticas distintas. (SEN, 2011, p. 36)

    A primeira reside em centrar suas atenes na justia perfeita, ao invs de focar nas comparaes relativas de justia e injustia. Dessa forma, termina-se por buscar a identificao da natureza do justo, quando se deveria identificar algum critrio que ajudasse a concluir que uma alternativa menos injusta que outra. (SEN, 2011, p. 36)

    A segunda caracterstica a concentrao primria em arranjos perfeitos ou ideais, tanto de comportamento como de instituies, sem focar diretamente no mundo real, quando sabido que a natureza da sociedade que resulta de determinado conjunto de instituies depende necessariamente tambm de caractersticas no institucionais, tais como os comportamentos reais das pessoas e suas interaes sociais. (SEN, 2011, p. 36)

    E conclui o filsofo indiano no sentido de que claramente existe um contraste radical entre uma concepo de justia focada em arranjos e uma concepo focada em realizaes: esta necessita, por exemplo, concentrar-se no comportamento real das pessoas, em vez de supor que todas sigam o comportamento ideal.8 (SEN, 2011, p. 37)

    A preocupao com o estabelecimento de instituies justas no capaz de garantir a justia. Pelo contrrio, representa um obstculo remoo das injustias, por concentrar-se nas utopias conceituais da justia perfeita. Por outro lado, a comparao focada em realizaes

    7 Tal abordagem foi iniciada por Thomas Hobbes no sculo XVII, sendo posteriormente seguida por importantes pensadores, cada um ao seu modo, como John Locke, Jean-Jaques Rousseau, Immanuel Kant e John Rawls. (SEN, 2011, p. 36-37) 8 Variadas verses desse pensamento voltado para as realizaes sociais podem ser encontradas nas obras de Adam Smith, Marqus de Condorcet, Jeremy Bentham, Mary Wollstonecraft, Karl Marx e John Stuart Mill, dentre outros pensadores. (SEN, 2011, p. 37)

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    permite uma anlise racional das assimetrias produtoras de injustia na vida das pessoas e na sociedade.

    Ao invs de tratar as instituies como manifestaes de justia em si, o que veicula uma ideia institucionalmente fundamentalista, necessrio pensar um modelo de instituio que promova a justia. (SEN, 2011, p. 112)

    A partir desses parmetros, deve-se perquirir quais modificaes na forma de atuao, tanto material como processual, das Cortes de Contas, que, longe das discusses levadas a efeito no mbito do institucionalismo transcendental dominante, no se preocupe em discutir um modelo ideal ou perfeito de instituio, mas que, focando em realizaes sociais, identifique e procure remover as injustias encontradas no exerccio do controle externo da administrao pblica e, com isso, consiga fazer com que ela promova a justia financeira, dando concretude ao direito fundamental boa administrao.

    O que se sustenta no presente texto uma concepo de Tribunal que, para muito alm do exerccio do controle tradicional das contas pblicas, atue como fomentador da boa governana na administrao pblica brasileira, combatendo, alm das prprias mazelas do controle, as injustias financeiras perpetradas pelo Poder Pblico nas duas frentes em que atua, ou seja, tanto na arrecadao pblica quanto no gasto.

    E o comprometimento da atuao do Poder Pblico com o princpio da justia financeira posiciona as Cortes de Contas, rgos responsveis pelo controle externo tcnico da administrao pblica, como promotores desse princpio constitucional, cuja concretizao depende tambm de um controle eficiente e eficaz por parte delas, ou seja, de um bom controle pblico.

    Enfim, preciso pensar a instituio Tribunal de Contas como uma forma efetiva de realizar conquistas sociais desejveis, aceitveis ou excelentes. No entanto, qual a racionalidade que deve pautar essa mudana na maneira de atuar por parte dos Tribunais de Contas para que se atinjam esses objetivos?

    2.3 A INTERDISCIPLINARIDADE NA ATUAO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS E A COLISO DOS DISCURSOS ENVOLVIDOS

    O campo de atuao dos Tribunais de Contas demanda a

    utilizao de conhecimentos relacionados a diversas reas, tais como a jurdica, econmica, contbil, administrativa, de engenharia,

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    matemtica, estatstica, o que, por sua vez, gera a necessidade de articul-los e organiz-los.

    Para isso, necessria uma reforma paradigmtica (e no programtica) do pensamento, a fim de se enfrentar o problema do abismo existente entre os saberes desunidos, divididos, compartimentados, de um lado, e realidades ou problemas cada vez mais multidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais e complexos, de outro. (MORIN, 2000, p. 35-36)

    necessria, portanto, uma nova forma de atuao das Cortes de Contas, de utilizao dos conhecimentos de que dispem por meio de seu corpo tcnico, de exerccio de sua atribuio de controle e de enfrentamento dos desafios que se revelam, com vistas ao atendimento das necessidades da sociedade contempornea.

    Depois de Posner (1987) ter diagnosticado o declnio e a morte do direito como disciplina autnoma, a racionalidade econmica parece ter a pretenso de representar a nova universalidade jurdica, em um movimento que pretende substituir o enfraquecido conceito de justia pelo ideal da eficincia econmica do direito, de forma que o nico deus remanescente a quem o direito deveria reverenciar chama-se rational choice, cuja filosofia, por sua vez, elabora os princpios racionais de uma nova ordem que reclama sua validade tambm frente ao direito. Esse novo monotesmo fala com o pathos do direito natural em nome da natureza e da razo. As leis internas do mercado e das organizaes representam a natureza da sociedade moderna, e o direito deve refleti-las. (TEUBNER, 2002, p. 93)

    Essa pretenso triunfante do direito e economia, como paradigma que elimina antigas orientaes poltico-morais do direito e que no tolera a coexistncia de quaisquer outros paradigmas ao seu lado, encontra sua razo de ser em sua histrica vitria nas sociedades modernas pela institucionalizao da racionalidade econmica no mundo. A fora dessa corrente reside no argumento de que a sociedade moderna baseada na economia e o direito moderno deve oferecer estruturas legais adequadas s demandas do mercado. (TEUBNER, 2002, p. 93-94)

    Ocorre que, paradoxalmente, nesse argumento que tambm se encontra a grande fraqueza do movimento direito e economia, j que a racionalidade econmica no a nica a possuir o privilgio da institucionalizao da sociedade como um todo. A mudana de paradigma que de fato houve, no foi no sentido da substituio de um monotesmo (poltica-moral) por outro (econmico), mas, sim, da transformao de um monotesmo para um politesmo ou, ainda, do

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    monotesmo de uma racionalidade moderna para um politesmo de muitos discursos. E essa moderna pluralidade dos deuses no uma questo de crena individual, mas uma dura realidade social imposta inexoravelmente ao direito. (TEUBNER, 2002, p. 94-95)

    Em outras palavras, atualmente, o direito atende a vrias peculiaridades dos muitos deuses existentes numa sociedade multicntrica ou policontextual, como a contempornea, as quais reclamam aceitao universal por parte dos diversos subsistemas que formam o tecido social. Tal fenmeno representa uma mudana de paradigma da ps-modernidade, que migrou no de um monotesmo discursivo para outro, mas, sim, de um monotesmo para um politesmo do discurso.

    Essa abordagem encontra ressonncia com o paradigma ps-moderno, caracterizado pela ausncia de metanarrativas, pela policontextualidade e pelo esbatimento das fronteiras entre saberes, que tem associada a pluridisciplinaridade ou mesmo a transdisciplinaridade do conhecimento. (COSTA, 2012, p. 22)

    Na perspectiva autopotica dos sistemas de Niklas Luhmann, a Constituio corresponde ao acoplamento estrutural entre poltica e direito9, ou seja, o espao onde ocorre a filtragem das influncias recprocas entre os dois sistemas. Embora normativamente fechado, o sistema jurdico cognitivamente aberto e a Constituio que, como uma forma de dois lados, inclui e exclui, limita e facilita a interpenetrao desses sistemas autorreferenciais. (NEVES, 2006, p. 97-99)

    Para Luhmann, ao excluir certos rudos intersistmicos, a Constituio tambm inclui e fortalece outros. Se para a poltica provoca irritaes, perturbaes e surpresas jurdicas, para o direito provocadora de irritaes, perturbaes e surpresas polticas, possibilitando uma soluo jurdica para o problema de autorreferncia do sistema poltico, ao mesmo tempo em que permite o inverso, ou seja, uma soluo poltica para a questo da autorreferncia do sistema jurdico. (NEVES, 2006, p. 98)

    Ocorre que essa noo de acoplamento estrutural traz consigo uma relao de bilateralidade entre dois sistemas autnomos. No 9 Neves (2006, p. 97) destaca que o conceito de acoplamento estrutural ocupa um lugar central na teoria biolgica dos sistemas autopoiticos de Humberto Maturana e Francisco Varela, qual Luhmann explicitamente recorre na aplicao dele aos sistemas sociais.

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    entanto, como visto, atualmente, o direito responde a diversas racionalidades, que se confrontam entre si, cada uma delas com pretenso de universalidade. (NEVES, 2009, p. 24)

    Da a necessidade, para alm dos acoplamentos estruturais, de uma racionalidade transversal, possvel pela construo de pontes de transio que permitam um dilogo entre as diversas esferas de comunicao. (NEVES, 2009, p. 50-51)

    E essa sociedade mundial contempornea forma uma espcie de conexo unitria de uma multiplicidade de esferas de comunicao que se relacionam de maneira concorrente e complementar, a que Luhman denomina de unitas multiplex. (NEVES, 2009, p. 26)

    E isso nos remete a uma pluralidade de cdigos-diferena que orientam a comunicao nos diversos campos sociais. Neves, baseando-se em Luhmann, ilustra isso, prescrevendo que:

    A diferena ter/no ter prevalece no sistema econmico, o cdigo poder/no poder tem o primado no poltico e a distino lcito/ilcito predomina no jurdico. Na cincia, arte, educao, religio e no amor, tm o primado, respectivamente, os cdigos verdadeiro/falso, belo/feio (afinado versus desafinado esteticamente), aprovao/reprovao (enquanto cdigo-limite da diferena gradual aprender/no aprender, expressa nas notas e predicados), transcedente/imanente e o cdigo amoroso (prazer/amor ou amor/desamor), que serve de base formao da famlia nuclear moderna. (NEVES, 2009, p. 24)

    A anlise fundamental desse novo politesmo deve ser encontrada

    no nos tericos contemporneos, mas, sim, em Max Weber, que enxergava a modernidade como a era do politesmo absoluto. Processos histricos paralelos de racionalizao de diferentes esferas de valores levaram a conflitos insolveis entre os muitos deuses da modernidade, entre foras ideolgicas despersonalizadas que no podiam ser resolvidas ou removidas por aluso Razo nica. (TEUBNER, 2002, p. 98)

    Weber articulava a coliso de discursos apenas de maneira vaga e metafrica como a luta dos deuses, ou seja, como um conflito das esferas ideais de valores, enquanto que Teubner (2002, p. 98) redefine o problema, do ponto de vista sociolgico, como um fenmeno real da

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    sociedade e analisado mais precisamente por linguistas como uma coliso de diferentes gramticas, asseverando que:

    A discusso contempornea elabora mais detalhadamente as gramticas dos jogos de linguagem, analisa com mais exatido as prticas sociais em suas razes e admite a incomensurabilidade dos discursos e a falta de qualquer meta-discurso. Hoje, na concluso provisria do debate, encontramos a distino entre litige e diffrend dos discursos, de Franois Lyotard, a pluralidade de sistemas auto-referentes fechados, de Niklas Luhmann, e as propostas normativas sobre como resolver os conflitos entre os discursos, de Jrgen Habermas. A partir dessas perspectivas, os conflitos aos quais o direito est sujeito no resultam do conflito entre valores ideais, mas do conflito entre as prticas sociais reais, com sua lgica prpria e com um enorme potencial para causar dano a si mesmas. O direito no chamado para julgar o eterno conflito entre o sagrado, o bem, o utilitrio, o verdadeiro, o justo e o belo. O direito est exposto a conflitos potencialmente destrutivos entre discursos conduzidos de maneira concreta em sociedade, entre concatenaes auto-reprodutivas de noncs que so condicionados por uma gramtica interna e por cdigos binrios e programas que reproduzem sua lgica interna hermeticamente fechada. [...] A conflituosidade entre os deuses parece ter aumentado drasticamente. J no h mais uma disputa entre diferentes sistemas de valores; na viso contempornea do conflito entre discursos, os deuses em guerra assumiram propores quase autodestrutivas. Segundo Lyotard, os discursos so to hermeticamente fechados que negam um ao outro o direito de serem ouvidos e s praticam a violncia, a ofensa, a injustia um para com o outro. De acordo com Luhmann e Habermas, os sistemas sociais desenvolveram uma dinmica interna to poderosa e incontrolvel que no apenas sobrecarregam os indivduos e causam danos ecologia, como tambm tm efeitos

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    desintegradores uns sobre os outros. De fato, a luta entre as novas foras ideolgicas produz uma sociedade injuriosa, quando no atormentada. (TEUBNER, 2002, p. 99-100, grifo no original)

    Para Teubner (2002, p. 108), Habermas10 tratou de maneira

    exaustiva da coliso dos diversos discursos sociais autnomos diante do frum do direito, o chamado forum internum, indagando como esses discursos, dotados de lgicas prprias, ingressam no direito e quais argumentos o direito se utiliza para decidir entre eles, aderindo a um modelo processual. O problema dos conflitos internos surge para o direito quando essas formas discursivas autnomas so traduzidas numa linguagem jurdica, que, por sua vez, corresponde a uma forma discursiva autnoma definida pelo critrio de coerncia jurdica.

    Teubner (2002, p. 109-111) critica essa viso, sustentando que Habermas, ao mesmo tempo, superestima e subestima o papel do direito na composio desses conflitos. Superestima a racionalidade comunicativa que realmente se cria no direito pelo procedimento jurdico e subestima a dinmica jurdica, que faz muito mais do que apenas filtrar argumentos. Para Teubner, ao transformar todos os discursos em critrios jurdicos, Habermas termina por escravizar as racionalidades externas, comprometendo o livre jogo de discursos:

    Franois Lyotard, para definir essa escravido, introduziu a distino de litige e diffrend. Por causa de sua gramtica interna diversa, os discursos so isolados uns dos outros de modo tal que, no caso de um conflito entre eles, nenhum litige possvel, isto , no h um procedimento justo no qual ambas as partes possam apresentar autenticamente sua palavra e no qual seja possvel pronunciar qualquer juzo justo. No entanto, se os discrusos podem se encontrar apesar de seu fechamento hermtico, tambm verdade que isso ocorre somente por meio do diffrend, isto , num confronto no qual um discurso violenta a estrutura

    10 Sobre os fundamentos de legitimidade do Estado Constitucional a partir das anlises de Weber a respeito da racionalidade jurdica e do fenmeno da desformalizao do direito e das crticas de Harbemas a esses apontamentos, vide Cademartori (2004, p. 5-20).

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    do outro, cometendo, assim, injustia. (TEUBNER, 2002, p. 111)

    Para Teubner (2002, p. 108-125), as colises entre as diferentes

    racionalidades devem ser solucionadas tanto no forum internum, ou seja, dentro do prprio sistema jurdico, como no forum externum, isto , fora do mbito do direito.

    As diversas racionalidades exteriores ao universo jurdico terminam sendo restringidas pelo sistema jurdico em atendimento s suas finalidades e, por essa razo, devem passar por um processo de reentrada no plano do direito, de forma a permitir que diferentes e incomparveis racionalidades surjam como elementos comparveis entre si dentro do discurso jurdico. (TEUBNER, 2002, p. 108-125)

    Esse processo de reentrada possibilita a soluo do problema de consistncia interna jurdica, no sendo capaz, por outro lado, de resolver a questo da consistncia externa, ou seja, de sua aceitao ou validade no ambiente exterior. O discurso jurdico deve ser sensvel s consequncias inerentes que o direito provoca nos vrios subsistemas sociais, de modo a avaliar o seu impacto no ambiente social. (TEUBNER, 2002, p. 108-125)

    Para tanto, aps a reentrada dos conceitos extrajurdicos no mundo do direito, mister realizar uma operao inversa de reentrada do resultado do discurso jurdico interpretado pelos discursos extrajurdicos e, a partir da, avaliar qual a aceitao daquele por este. Em outras palavras, preciso verificar se o novo produto do discurso jurdico ser tolerado pelo outro discurso e quais os efeitos que causar no sistema social em questo. (TEUBNER, 2002, p. 108-125)

    a partir dessa noo que deve ser compreendida a expresso altera pars audiatur, pela qual se preconiza a ideia de que necessria a oitiva do outro discurso envolvido na coliso antes da tomada de deciso pelo direito. (TEUBNER, 2002, p. 117)

    A racionalidade que impe uma atuao efetiva do controle externo, no que diz respeito ao combate ineficincia, ineficcia e corrupo na Administrao Pblica, determina que a racionalidade que limita a atuao dos Tribunais de Contas seja processada nessas operaes de reentradas a que se refere Teubner e, a partir da, que se verifique, ainda que no campo terico, qual seria o impacto social que uma modificao na maneira de atuar por parte dos Tribunais de Contas causaria na realidade social vivenciada.

    No se pode pensar ou repensar um modelo prtico e terico dessas instituies, com o intuito de propiciar conquistas sociais

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    desejveis, levando apenas em considerao o universo jurdico ou o poltico. preciso que, nesse processo, sejam mantidos dilogos permanentes com as diversas racionalidades e discursos envolvidos, notadamente as relacionadas ao campo de atuao das Cortes de Contas, por meio dos sucessivos e recprocos procedimentos de reentradas referidos anteriormente.

    So esses referenciais tericos que vo embasar a discusso de uma nova realidade material e processual da jurisdio de contas, mais consentnea com o que a sociedade espera dos Tribunais de Contas, como instituies de controle, principalmente no que diz respeito preveno e ao combate ineficincia, ineficcia e corrupo no setor pblico.

    Assim, para alm da misso de zelar pelas contas pblicas, como tradicionalmente concebida essa tarefa, necessrio que, por meio do Bom Controle Pblico, as Cortes de Contas se convertam em verdadeiros Tribunais da Boa Governana Pblica.

    Em outras palavras, as Cortes de Contas devem se converter em instituies comprometidas com os princpios da justia financeira e da boa administrao e governana pblica, por meio do bom controle, e, assim, exigirem e promoverem junto aos seus jurisdicionados esse mesmo engajamento.

    A concepo desse novo modelo de boa governana conclama a mobilizao do Poder Pbico para a utilizao de novos instrumentos de gesto, ou seja, para a prxis de um novo direito administrativo11. Ocorre que uma nova prxis de gesto demanda, tambm, uma nova prxis de controle.

    Para tanto, mister no apenas mudanas materiais no modus operandi dos Tribunais de Contas, mas tambm uma nova leitura do aparato instrumental dessas instituies, com uma imprescindvel reviso e reforma de sua estrutura processual, que apresenta diversos pontos de ineficincia e ineficcia. por meio de uma estrutura processual gil e moderna que se conseguir dar rendimento material satisfatrio jurisdio de contas.

    2.4 O DIREITO FUNDAMENTAL BOA ADMINISTRAO E BOA GOVERNANA PBLICA

    11 Sobre o novo Direito Administrativo e a necessidade de mudana de paradigmas, vide, ainda, Freitas (2012).

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    O direito fundamental boa administrao e boa governana guarda estreita e direta relao com o princpio da justia financeira, bem como com outros esparsos no texto constitucional, como o da eficincia, da eficcia,12 da moralidade, da legitimidade13 e da economicidade14.

    Inspirado no art. 41 da Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia, proclamada solenemente em Nice pelo Parlamento, pelo Conselho da Unio e pela Comisso Europeias, em 7 de Dezembro de 200015, Freitas interpreta o direito fundamental boa administrao como o:

    12 Para Carvalho Filho (2012, p. 31), a eficincia no se confunde com a eficcia nem com a efetividade. A eficincia transmite sentido relacionado ao modo pelo qual se processa o desempenho da atividade administrativa; a ideia diz respeito, portanto, conduta dos agentes. Por outro lado, eficcia tem relao com os meios e instrumentos empregados pelos agentes no exerccio dos seus misteres na administrao; o sentido aqui tipicamente instrumental. Finalmente, a efetividade voltada para os resultados obtidos com as aes administrativas; sobreleva nesse aspecto a positividade dos objetivos. Freitas (2014, p. 23) alerta que se engana quem cr que, ao consagrar o princpio da eficincia em seu art. 37, a CRFB/88 excluiu o da eficcia, pois ele foi mencionado expressamente no art. 74. Inspirado em Peter Drucker, sustenta que ele consiste justamente em incrementar a gesto pblica, de maneira que a administrao escolha fazer o que constitucionalmente deve fazer [...], em lugar de apenas fazer bem ou eficientemente aquilo que, no raro, se encontra mal concebido ou contaminado. E, evocando lio de Vergottini (2004, p. 544), define eficincia como o melhor emprego dos recursos disponveis. 13 O exame da legitimidade importa em confrontar a gesto da coisa pblica com o sacrifcio econmico sofrido pelo cidado. Para Willeman (2008, p. 283-284), o aspecto da legitimidade guarda ntima relao com o fato de que as finanas pblicas devem ser geridas consoante os objetivos politicamente aceitos pela Nao. Sem dvida alguma, o controle exercido sob o ngulo da legitimidade reveste-se de extraordinrio cunho democrtico, invocando a ideia de consenso para a ordem financeira. 14 De acordo com Willeman (2008, p. 284), a ideia de economicidade est intimamente relacionada operacionalizao com o menor custo possvel. Em outras palavras, para se aferir a economicidade necessrio se investigar se no h para um determinado gasto uma soluo alternativa mais barata e igualmente eficaz. 15 A Carta de Nice foi posteriormente incorporada como Parte II do Tratado firmado em Roma pelos vinte e cinco Chefes de Estado e de Governo da Unio Europeia em 29 de outubro de 2004, por meio do qual se estabeleceu a

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    [...] direito fundamental administrao pblica eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparncia, sustentabilidade, motivao proporcional, imparcialidade e respeito moralidade, participao social e plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de observar, nas relaes administrativas, a cogncia da totalidade dos princpios constitucionais e correspondentes prioridades. Observado de maneira atenta, o direito fundamental boa administrao ldimo plexo de direitos, regras e princpios, encartados numa sntese, ou seja, o somatrio de direitos subjetivos pblicos. No conceito proposto, abrigam-se, entre outros, os seguintes direitos: (a) o direito administrao pblica transparente, que supe evitar a opacidade (salvo nos casos em que o sigilo se apresentar justificvel, e ainda assim no definitivamente), com especial destaque para o direito a informaes inteligveis, inclusive sobre a execuo oramentria e sobre o processo de tomada das decises administrativas que afetarem direitos; (b) o direito administrao pblica sustentvel, que implica fazer preponderar, inclusive no campo regulatrio, o princpio constitucional da sustentabilidade, que determina a preponderncia dos benefcios sociais, ambientais e econmicos sobre os custos diretos e indiretos (externalidades negativas), de molde a assegurar o bem-estar multidimensional das geraes presentes sem impedir que as geraes futuras alcancem o prprio bem-estar multidimensional; (c) o direito administrao pblica dialgica, com amplas garantias de contraditrio e ampla defesa dizer, respeitadora do devido processo,

    Constituio Europeia. No Tratado Constitucional, o direito fundamental boa administrao encontra-se numerado como art. II-101.

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    com durao razovel e motivao explcita, clara e congruente; (d) o direito administrao pblica imparcial e desenviesada, isto , aquela que, evitando os desvios cognitivos, no pratica nem estimula discriminao negativa de qualquer natureza e, ao mesmo tempo, promove discriminaes inversas ou positivas (redutoras das desigualdades inquas); (e) o direito administrao pblica proba, que veda condutas ticas no universalizveis, sem implicar moralismo ou confuso entre o legal e o moral, uma vez tais esferas se vinculam, mas so distintas; (f) o direito administrao pblica respeitadora da legalidade temperada, ou seja, que no se rende absolutizao irrefletida das regras; (g) o direito administrao pblica preventiva, precavida e eficaz (no apenas economicamente eficiente), eis que comprometida com resultados compatveis com os indicadores de qualidade de vida, em horizonte de longa durao. (FREITAS, 2014, p. 21-22, grifo no original)

    Para Freitas, esses direitos no excluem outros, j que se referem

    a um padro mnimo, e necessitam ser tutelados em conjunto para que a discricionariedade no atue contra o direito fundamental boa administrao. Portanto, as escolhas administrativas sero legtimas se e somente se forem sistematicamente eficazes, sustentveis, motivadas, proporcionais, transparentes, imparciais e ativadoras da participao social, da moralidade e da plena responsabilidade. (FREITAS, 2014, p. 23)

    No mesmo sentido, Malln (2004, p. 104) conclui que o direito a uma boa administrao tem repercusso mais ou menos intensa ou difusa nas Constituies dos Estados Membros da Unio Europeia e que as referncias a ele so extradas, em regra, dos princpios constitucionais relacionados com a administrao pblica, que, por sua vez, encontram-se dispersos ao longo dos respectivos textos constitucionais de maneira mais ou menos sistemtica.

    Tal direito configura em si mesmo uma espcie de direito-garantia ou instrumental, que possibilita a defesa de outros direitos. No se trata de um direito criado, mas, sim, de novo cunho, a partir de uma formulao autnoma em um catlogo que dota de unidade diversos

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    direitos reconhecidos de modo esparso na ordem comunitria. (MALLN, 2004, p. 42)

    importante distinguir as ideias de governana e de governabilidade. O primeiro conceito est relacionado capacidade financeira e administrativa, em sentido amplo, de um governo realizar suas polticas pblicas, enquanto que o segundo est ligado capacidade poltica de governar, ou seja, a governabilidade seria resultante da relao de legitimidade do Estado e do seu governo com a sociedade. (MATIAS-PEREIRA, 2009, p. 68)

    A governabilidade refere-se, portanto, s prprias condies substantivas e materiais de exerccio do poder e de legitimidade do Estado e do seu governo decorrentes de sua postura frente sociedade. a autoridade poltica do Estado, ou seja, a capacidade que este tem para agregar os mltiplos interesses dispersos pela sociedade e apresentar-lhes um objetivo comum para o curto, mdio e longo prazo. (MATIAS-PEREIRA, 2009, p. 69)

    Governana, por seu turno, a capacidade que um governo tem para elaborar e executar suas polticas pblicas, nelas includa a gesto das finanas pblicas, visando o atendimento das demandas dos cidados. um processo complexo de tomada de deciso que antecipa e transcende o governo. (MATIAS-PEREIRA, 2009, p. 69)

    No setor pblico, a governana engloba essencialmente os mecanismos de liderana, estratgia, e controle postos em prtica para avaliar, direcionar e monitorar a atuao da gesto, com vistas conduo das polticas pblicas e prestao de servios de interesse da sociedade. (TCU, 2013b, p. 14)

    Segundo o Chartered Institute of Public Finance and Accountancy - CIPFA e a International Federation of Accountants - IFAC (2013), a compreenso do que vem a ser uma boa governana no setor pblico passa pelas seguintes diretrizes:

    a) garantir a entrega de benefcios econmicos, sociais e ambientais para os cidados; b) garantir que a organizao seja, e parea, responsvel para com os cidados; c) ter clareza acerca de quais so os produtos e servios efetivamente prestados para cidados e usurios, e manter o foco nesse propsito; d) ser transparente, mantendo a sociedade informada acerca das decises tomadas e dos riscos envolvidos;

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    e) possuir e utilizar informaes de qualidade e mecanismos robustos de apoio s tomadas de deciso; f) dialogar com e prestar contas sociedade; g) garantir a qualidade e a efetividade dos servios prestados aos cidados; h) promover o desenvolvimento contnuo da liderana e dos colaboradores; i) definir claramente processos, papis, responsabilidades e limites de poder e de autoridade; j) institucionalizar estruturas adequadas de governana; k) selecionar a liderana tendo por base aspectos como conhecimento, habilidades e atitudes (competncias individuais); l) avaliar o desempenho e a conformidade da organizao e da liderana, mantendo um balanceamento adequado entre eles; m) garantir a existncia de um sistema efetivo de gesto de riscos; n) utilizar-se de controles internos para manter os riscos em nveis adequados e aceitveis; o) controlar as finanas de forma atenta, robusta e responsvel; e p) prover aos cidados dados e informaes de qualidade (confiveis, tempestivas, relevantes e compreensveis). (TCU, 2013, p. 8)

    Para Valle (2011, p. 43), a ideia de governana como atributo

    desejvel administrao pblica remonta ao incio dos anos 90, quando o Banco Mundial o conceituou como a maneira pela qual o poder exercido na administrao dos recursos sociais e econmicos de um pas, visando ao desenvolvimento. (WORLD BANK, 1992, p. 1)

    No entanto, a autora atribui um sentido mais abrangente ideia de governana, no sentido de que ela deve ser pensada como processo, sem, no entanto, circunscrev-la aos aspectos gerenciais e administrativos stricto sensu das rotinas dos rgos pblicos. Ela engloba o modus operandi das polticas governamentais, que, por sua vez, abarcam desde a formatao do processo poltico-decisrio, at os mecanismos democrticos de avaliao, sempre tendo em conta a articulao e cooperao entre parceiros sociais e polticos que possam

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    concorrer para a superao das insuficincias do modelo estatal. (VALLE, 2011, p. 42)

    Valle (2011, p. 142-153) elenca, ento, condies para o exerccio da governana. So elas: 1) colaborao da administrao com a organizao da cidadania; 2) administrao que dialoga; 3) a importncia do elemento tcnico na construo da deciso administrativa; e 4) construo da confiana, por meio da governana e accountability.

    E destaca, ainda, os seguintes elementos nucleares do conceito de governana:

    1. o reconhecimento da importncia seja das regras formais (constituio, leis, regulamentos), quanto daquelas informais (cdigos de tica, costumes); 2. a abertura ao concurso de estruturas que extrapolam as relaes de mercado; admitindo que no s as redes de cooperao, mas tambm as hierarquias (como aquelas prprias burocracia) possam concorrer como facilitadores, nas circunstncias apropriadas; 3. aplicao no s da lgica de meios e resultados, inputs e outputs, assumindo que as caractersticas dos principais processos de interao social (transparncia, integridade, incluso) possam se apresentar como valor por si mesmas; e 4. o reconhecimento de que o processo de escolha pblica inerentemente poltico, voltado mediao de distintos segmentos que pretendem exercer poder e fazer prevalecer seus interesses sobre os demais portanto, no se trata de disputa a ser ponderada exclusivamente no mbito do managerialismo ou de elites profissionais. Como se v, sem abdicar da importncia do concurso da tcnica, a ideia de governana atrai a noo de pluralismo, a valorizao da interao social e o carter poltico das escolhas pblicas, como elementos indissociveis de um modo de desenvolver a administrao pblica, trazendo reflexo os meios institucionais e relacionais nesse modo de gerir a coisa pblica. (VALLE, 2011, p. 42-43)

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    Acerca do contexto histrico que provocou a incorporao desses novos conceitos pelo direito administrativo, Moreira Neto recorda que:

    [...] tanto uma boa administrao quanto a governana em condies de realiza-la s passaram a interessar aos juristas depois de uma impressionante revoluo conceitual no segundo ps-guerra, levando o Direito Administrativo a superar o mbito do Estado nacional, no qual se originou, para, sem deixar de ser sua importante pilastra, tornar-se europeu e global, transcendendo os ordenamentos exclusivamente dependentes da autoridade legiferante dos Estados como expresso de suas soberanias, para se tornar um Direito cada vez mais consensual, negociado, democratizado, mundializado e independente de polticas nacionais. (MOREIRA NETO, 2011b, p. 13)

    E conclui no sentido de que a interdisciplinaridade torna-se

    imprescindvel no apenas ao progresso do direito administrativo, mas tambm ao direito em geral, diante da necessidade de contestao de uma metodologia isolacionista de estudo, de carter tipicamente escolstico, dogmtico e formalista, de uma cincia pretensamente pura e ideologicamente neutra, decorrente do positivismo exclusivista, que terminou redundando no atraso do direito em relao aos demais ramos do conhecimento humano. (MOREIRA NETO, 2011b, p. 14-15)

    Em outras palavras, essa necessria multidisciplinaridade faz com que a racionalidade jurdica deva manter um dilogo permanente e harmnico com a racionalidade administrativa que, por sua vez, corresponde a um discurso extrajurdico:

    Um direito fundamental boa administrao identificado com a governana emprestar da racionalidade gerencial algo dos vetores do eficientismo voltado prxis, mas no abdicar de sua pretenso normativa, como articulador das j referidas regras do jogo, que se aplicar ao processo de construo da deciso coletiva desejado pela governana. A palavra de ordem passa a ser integrao das racionalidades, para superar as limitaes do conhecimento jurdico. (VALLE, 2011, p. 118)

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    Mas no apenas com a racionalidade administrativa, e sim como

    todos os demais discursos extrajurdicos envolvidos, o que pode e deve ser feito por meio das pontes de transio referidas anteriormente.

    2.5 O ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO E A FUNO DE CONTROLE

    Um dos pilares do surgimento e desenvolvimento do Estado a

    separao de poderes ou a distribuio de funes, que, gradativamente, se converteu em um verdadeiro dogma poltico e jurdico universal do constitucionalismo e dos Estados Democrticos de Direito como um mecanismo de limitao do poder estatal frente ao indivduo, por meio de sua diviso entre diversos agentes pblicos.

    Mas, mais do que isso, a diviso de funes atende tambm a uma necessidade de maior eficincia e eficcia da atuao do Estado, que so inerentes noo de especializao de tarefas.

    Ocorre que a trplice diviso funcional, no obstante a sua inegvel importncia histrica na construo da ideia que temos hoje de Estado Democrtico de Direito, no se revela mais suficiente para a conformao e realizao de um Estado que necessita atuar numa sociedade cada vez mais global e complexa como a contempornea.

    Urge, portanto, uma reviso da teoria tripartite, com o intuito de aprimorar o Estado, a fim de que este consiga fazer frente aos desafios que surgem diante de si. bvio que a problemtica trazida por uma nova abordagem da teoria clssica da separao tripartite de poderes apenas uma dentre as tantas questes que se coloca frente do Estado neste novo cenrio. De qualquer forma, embora seja uma questo, talvez, menor, o seu enfrentamento no deve ser negligenciado ou postergado, como tem sido ao longo do tempo.

    Como parte desse problema, encontra-se a questo recorrente do posicionamento dos Tribunais de Contas, como rgo de controle, na arquitetura tradicional dos poderes estatais, ou seja, de como se d a insero constitucional dessas instituies dentro do arqutipo atual do Estado brasileiro.

    Uma corrente, embora minoritria, defende que as Cortes de Contas pertencem estrutura do Poder Legislativo, chegando a reservar

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    quelas instituies o papel de mero auxiliar do Parlamento no exerccio do controle externo da administrao pblica.16

    Ocorre que essa abordagem parte da premissa equivocada de que as funes ou os poderes do Estado so apenas trs, o que, por sua vez, fruto de um conservadorismo jurdico histrico que receia a superao da teoria clssica da diviso tripartite de Poder.

    A partir desse equvoco, enxerga-se a necessidade de situar os Tribunais de Contas em um dos trs poderes dogmaticamente consagrados e positivados no nosso ordenamento jurdico, restando o seu posicionamento na estrutura do Poder Legislativo, j que no pertencente ao Executivo nem ao Judicirio, bem como pelo fato de a referncia constitucional s Cortes de Contas se dar no captulo reservado quele Poder.

    A partir de uma anlise crtica do tratamento histrico equivocado dado pelas Constituies Federais brasileiras funo de controle, possvel especular como essa abordagem distorcida contribuiu, e at hoje contribui, para o dficit de legitimidade de que padecem os Tribunais de Contas no Brasil, como rgos titulares do controle tcnico externo da Administrao Pblica brasileira.

    Da a necessidade do expresso reconhecimento constitucional dessa funo de controle como um autntico Poder, ao lado dos trs tradicionalmente consagrados historicamente, como, alis, j vem sendo feito em alguns pases, consoante ser abordado na seo 2.5.2.

    2.5.1 Evoluo histrica e a necessria superao da teoria clssica da separao tripartite de poderes

    Muito embora o poder poltico (fenmeno sociocultural)

    soberano do Estado seja uno, indivisvel e indelegvel (SILVA, J. A., 2011, p. 106-108), pode-se afirmar que ele se divide em vrias funes.

    16 Nesse sentido, vide Temer (1999, p. 134), para quem o Tribunal de Contas parte componente do Poder Legislativo, na qualidade de rgo auxiliar, e os atos que pratica so de natureza administrativa; Moraes (2007, p. 1.249) que sustenta que as Cortes de Contas so rgos administrativos e auxiliares do legislativo, mas sem subordinao, que praticam atos de natureza administrativa, concernentes, basicamente, fiscalizao; e Carvalho Filho (2012, p. 994) que defende que o Tribunal de Contas da Unio o rgo integrante do Congresso Nacional que tem a funo constitucional de auxili-lo no controle financeiro externo da Administrao Pblica.

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    Convencionou-se denominar de separao de poderes a doutrina que preconiza a separao dessas funes em rgos distintos, porm:

    Cumpre, em primeiro lugar, no confundir distino de funes do poder com diviso ou separao de poderes, embora entre ambas haja uma conexo necessria. A distino de funes constitui especializao de tarefas governamentais vista de sua natureza, sem considerar os rgos que as exercem; quer dizer que existe sempre distino de funes, quer haja rgos especializados para cumprir cada uma delas, quer estejam concentradas num rgo apenas. A diviso de poderes consiste em confiar cada uma das funes governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a rgos diferentes, que tomam os nomes das respectivas funes, menos o Judicirio (rgo ou poder Legislativo, rgo ou poder Executivo e rgo ou poder Judicirio). Se as funes forem exercidas por um rgo apenas, tem-se concentrao de poderes. (SILVA, J. A., 2011, p. 108, grifo no original)

    O Estado, por ser uma estrutura social, no possui vontade

    prpria, manifestando-se por seus rgos, que podem ser divididos em supremos ou constitucionais, a quem incumbe o exerccio do poder poltico, ou dependentes, tambm denominados de administrativos, que se encontram em um plano