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:: Verinotio – Revista Online de Educação e Ciências Humanas Nº8, Ano IV, Maio de 2008 – Publicação Semestral – ISSN 1981-061X O CAMINHO DE VOLTA - DA ONTOLOGIA DO SER SOCIAL À HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE  Lendo Lukács com Antonino Infranca Resumo Leitores e estudiosos de Lukács dividem-se entre defensores da obra juvenil ou da obra madura, apontando esta ou aquela como o legítimo legado do autor húngaro. A interpretação de Antonino Infranca (2005) rompe com essa dicotomia ao analisar no conjunto dos escritos – com destaque para História de consciência de classe de 1923 e a Ontologia do Ser Social  de finais dos anos 60 do século XX – os traços comuns da reflexão lukacsiana, sem negligenciar a especificidade que distingue os vários momentos da abordagem de Lukács. O presente artigo recupera a leitura de Infranca, recorrendo também diretamente aos textos do autor húngaro. Palavras chave: Ontologia do ser social, método, perspectiva da totalidade. GOING BACK – FROM ONTOLOGY OF SOCIAL BEING TO HISTORY AND CLASS CONSCIOUSNESS Reading Lukács with Antonino Infranca Abstract Readers and researchers of Lukács can be divided between those who defend his early production and those who favor Lukács’s late writings, each of which considers either period as the genuine legacy of the Hungarian author. Antonino Infranca’s interpretation (2005) breaks such dichotomy, as it analyzes the common points of György Lukács’s reflections throughout his entire production – especially in 1923’s History and Class Consciousness and in Ontology of Social Being, from the end of the 1960’s. Infranca does not ignore the specificities of each of Lukács’s periods. This paper discusses both Infranca’s interpretation and György Lukács’s original writings. Keywords: Ontology of Social Being, method, totality perspective. Em entrevista concedida a Leo Kofler em 1966 Lukács afirma – após breve digressão de seu interlocutor que relaciona determinado tema desenvolvido em  História e Consciência de Classe (daqui para frente HCC) e na Estética – que considera HCC um livro superado. Acrescenta ainda que a “definição que se encontra neste livro, portanto, nada tem a ver com os problemas desenvolvidos na Estética” (Kofler.; Abendroth; Holz, 1969, p.71). Poucos anos depois, em 1971, nas entrevistas publicadas sob o título Pensamento vivido, Lukács, respondendo a uma pergunta a respeito da

O CAMINHO DE VOLTA - DA ONTOLOGIA DO SER SOCIAL À HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE Lendo Lukács com Antonino Infranca

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O CAMINHO DE VOLTA - DA ONTOLOGIA DO SER SOCIAL À HISTÓRIA E CONSCIÊNCIADE CLASSELendo Lukács com Antonino Infranca

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    :: Verinotio Revista Online de Educao e Cincias HumanasN8, Ano IV, Maio de 2008 Publicao Semestral ISSN 1981-061X

    O CAMINHO DE VOLTA - DA ONTOLOGIA DO SER SOCIAL HISTRIA E CONSCINCIADE CLASSE

    Lendo Lukcs com Antonino Infranca

    Resumo

    Leitores e estudiosos de Lukcs dividem-se entre defensores da obra juvenil ou daobra madura, apontando esta ou aquela como o legtimo legado do autor hngaro. Ainterpretao de Antonino Infranca (2005) rompe com essa dicotomia ao analisar noconjunto dos escritos com destaque para Histria de conscincia de classede 1923 ea Ontologia do Ser Socialde finais dos anos 60 do sculo XX os traos comuns da

    reflexo lukacsiana, sem negligenciar a especificidade que distingue os vriosmomentos da abordagem de Lukcs. O presente artigo recupera a leitura de Infranca,recorrendo tambm diretamente aos textos do autor hngaro.

    Palavras chave: Ontologia do ser social, mtodo, perspectiva da totalidade.

    GOING BACK FROM ONTOLOGY OF SOCIAL BEING TOHISTORY AND CLASSCONSCIOUSNESS

    Reading Lukcs with Antonino Infranca

    Abstract

    Readers and researchers of Lukcs can be divided between those who defend his earlyproduction and those who favor Lukcss late writings, each of which considers eitherperiod as the genuine legacy of the Hungarian author. Antonino Infrancasinterpretation (2005) breaks such dichotomy, as it analyzes the common points ofGyrgy Lukcss reflections throughout his entire production especially in 1923sHistory and Class Consciousness and inOntology of Social Being, from the end of the1960s. Infranca does not ignore the specificities of each of Lukcss periods. Thispaper discusses both Infrancas interpretation and Gyrgy Lukcss original writings.

    Keywords: Ontology of Social Being, method, totality perspective.

    Em entrevista concedida a Leo Kofler em 1966 Lukcs afirma aps breve

    digresso de seu interlocutor que relaciona determinado tema desenvolvido em

    Histria e Conscincia de Classe(daqui para frente HCC) e na Esttica que considera

    HCC um livro superado. Acrescenta ainda que a definio que se encontra neste livro,

    portanto, nada tem a ver com os problemas desenvolvidos na Esttica (Kofler.;

    Abendroth; Holz, 1969, p.71). Poucos anos depois, em 1971, nas entrevistas publicadas

    sob o ttulo Pensamento vivido, Lukcs, respondendo a uma pergunta a respeito da

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    continuidade de um determinado livro (O Jovem Hegel) em relao a outro texto seu

    (as Teses de Blum), declara: minha vida forma uma seqncia lgica. Acho que no

    meu desenvolvimento no h elementos inorgnicos (Lukcs, 1999, p. 83).Certamente, no se trata de afirmaes antagnicas. A seqncia lgica pode

    incluir superaes e modificaes de abordagem. De todo modo, dita por outro autor, a

    ltima afirmao, talvez, no merecesse a citao, mas em se tratando de Lukcs h

    de se ressaltar as implicaes que ela envolve. Como sabido, pelos estudiosos que

    conhecem minimamente a obra e o itinerrio terico e poltico do autor, sua trajetria

    foi marcada por uma srie de autocrticas, algumas em funo de necessidades tticas

    imediatas, digamos assim, outras construdas a partir da convico de mudanas, e at

    mesmo rupturas, em sua concepo terica1. Como mencionado na entrevista a Kofler,

    este ltimo o caso de seus textos publicados originalmente em 1923 e que foram

    acompanhados na edio de 1967 de um posfcio no qual Lukcs critica sua posio

    intelectual no final da dcada de 10 e incio da dcada de 20 do sculo passado. Lukcs

    denuncia no posfcio o seu hegelianismo, na interpretao dos escritos de Marx,

    quando da redao de HCC.

    Sem dvida, um ponto central de sua autocrtica de 1967 diz respeito

    supervalorizao da conscincia presente em HCC. Lukcs o admite em vrios

    momentos do texto e sob vrias formas, dentre elas na expresso de uma valorizao

    excessiva da contemplao. Segundo ele:De uma forma que historicamente compreensvel, polemizando contra as concepes burguesas eoportunistas do movimento operrio que exaltavam um conhecimento isolado da prxis, a minhapolmica (que, relativamente, tinha muita razo de ser) estava presa a um exagero e a umasobrevalorizao da contemplao. A crtica de Feuerbach por Marx reforava ainda a minha atitude.S que eu no notava que sem um fundamento na prxis real, no trabalho que sua forma originale seu modelo, o exagero do conceito de prxis iria necessariamente invert-lo num conceito decontemplao idealista. (Lukcs, 1969, p. XIX).

    Lukcs atribui o idealismo presente em sua obra de 1923 ao seu universo

    intelectual de ento, que encontra, na sua avaliao, ao mesmo tempo por um lado,

    tendncias para a aquisio do marxismo e para a atividade poltica, por outro,

    tendncias para uma intensificao contnua de problemticas ticas, puramente

    idealistas. Nesse processo, segundo ele, a tica indicava-me a vida da prxis, da

    ao, e, por conseguinte, da poltica. E esta, por sua vez, levou-me at a economia e

    necessidade de uma fundamentao terica, afinal da filosofia do marxismo (Lukcs,

    1969, p. XI). Ou seja, HCC significou, de fato, uma abertura para o marxismo, mas,

    segundo seu autor representava uma tendncia que, /.../ voluntria ou

    1Conferir, dentre outros, em Paulo Netto, J. Lukcs: tempo e modo. InLukcs/ sociologia. Col. Grandescientistas sociais, SP: tica, 1981.

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    involuntariamente, dirige-se contra os fundamentos da ontologia do marxismo

    (Lukcs, 1969, p. XVII). Lukcs refere-se tendncia de rejeitar a posio, presente

    no marxismo, diante da natureza. A este respeito ele afirma ainda que o seu livroassumiu uma posio muito ntida: a natureza representa uma categoria social,

    afirma-se em vrias passagens, e a concepo de conjunto que s a conscincia da

    sociedade e dos homens que nela vivem apresenta interesse filosfico.

    Lukcs admite que havia um esforo para explicar todos os fenmenos

    ideolgicos a partir da sua base econmica, mas a economia empobrecida, visto que

    se elimina a sua categoria marxista fundamental, o trabalho como mediador da troca

    orgnica entre sociedade e natureza (Lukcs, 1969, p. XVIII). Este descarte do

    trabalho est intimamente relacionado ao tratamento relativo realidade natural e

    acaba por excluir de HCC aquela compreenso de Marx segundo a qual a produo

    pela produo no mais do que o desenvolvimento das foras produtivas humanas e

    portanto, o desenvolvimento da riqueza da natureza humana como seu prprio fim.

    Como isso

    no se compreende que deste desenvolvimento das capacidades da espcie homem, emboracomeando por realizar-se custa da maioria dos indivduos humanos e de certas classeshumanas, acaba por quebrar este antagonismo e coincidir com o desenvolvimento superior doindivduo e que, portanto, o desenvolvimento superior da individualidade s se pode comprar pelopreo deste processo histrico em que o indivduo sacrificado. Isto confere involuntariamente umcerto subjetivismo dominante descrio tanto das contradies do capitalismo como da revoluoproletria. (Lukcs, 1969, p. XIX)

    Lukcs, portanto, nessas breves referncias, sinalizou problemas em seu livro

    de 1923 que, no seu entender, transformavam o conceito de prxis em um conceito de

    contemplao idealista. Isso ocorria naquele perodo, na viso lukasciana, em funo

    de sua indiferena em relao natureza o que o distanciava da compreenso do

    trabalho (entendido como mediador da troca orgnica entre sociedade e natureza)

    como forma original e modelo da prxis humana.

    De alguma forma, portanto, o prprio Lukcs autoriza a interpretao de

    Infranca (2005), segundo a qual o trabalho aparece como conceito dominante em toda

    a sua produo terica a partir, no mnimo, de HCC, mesmo levando em considerao

    suas inflexes crticas e conseqentes mudanas de abordagem.

    O autor italiano desenvolve uma cuidadosa anlise dos escritos do marxista

    hngaro, partindo da Ontologiae retomando textos anteriores, na qual defende que h

    um trnsito evolutivo entre HCC e a Ontologia (Infranca, 2005, p. 273). Faz, assim,

    uma crtica queles que sustentam que os ensaios de 1923 tm maior relevncia

    terica do que os estudos posteriores e que, portanto, desqualificam os trabalhos do

    Lukcs maduro.

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    Infranca salienta que enquanto em HCC a categoria central

    alienao/estranhamento, na Ontologia,o trabalho desenvolve o papel predominante.

    Compreende que no primeiro caso a anlise do trabalho est presente numaperspectiva fenomenolgica e no segundo, ontolgica. No nega, portanto, as

    diferenas entre as duas abordagens. Ele afirma que em HCC, o trabalho

    interpretado a partir das conseqncias que este gera no sujeito (alienao,

    estranhamento, reificao); enquanto na Ontologia, pelo contrrio, se analisam

    tambm os valores positivos do trabalho (intercmbio orgnico com a natureza,

    posio teleolgica, humanizao do homem atravs do trabalho). No seu entender,

    portanto, h uma diferena substancial de valorao, que deve ser abordada como

    fruto de uma no menos importante diferena na posio da relao com Hegel e com

    Marx (Infranca, 2005, p. 274). De fato, o prprio Lukcs avalia a sua mudana de

    posio como conseqncia de sua relao com esses dois autores. Contudo, enquanto

    o autor hngaro compreende essa mudana como uma ruptura em relao HCC,

    Infranca situa esse processo como movimento evolutivo. Como vimos nos depoimentos

    de Lukcs essa interpretao no de todo descartada por ele prprio.

    Assim, a continuidade entre os escritos juvenis e maduros de Lukcs,

    segundo a compreenso de Infranca, deve-se permanncia, ainda que modificada,

    da relao com Hegel. Ele acredita que HCC est prxima Fenomenologia do Esprito

    assim como a Ontologia se relaciona Cincia daLgica2. Essa perspectiva analtica

    traz uma novidade em relao aos lukascianos que interpretam os escritos do Lukcs

    maduro como tributrios diretos de Marx, visto que na viso de Infranca, Lukcs

    nunca superou seu hegelianismo, apenas deslocou a influncia para outros escritos. No

    primeiro captulo de seu livro Trabajo, individuo, historia (2005),ele afirma que o uso

    que Lukcs faz da dialtica marxiana se orienta a ressaltar a derivao desta ltima a

    partir da dialtica hegeliana e inclusive em certos aspectos Lukcs tende a dirigir-se

    diretamente a Hegel, operando uma espcie de reconhecimento da herana hegeliana

    2L-se, por exemplo, no primeiro captulo No intento de reconstruir a gnese do conceito lukacsiano deteleologia atravs da relao estreitssima com Hegel, que por sua vez cumpre a funo de abrir o caminhoinclusive especulao marxiana, abre-se a questo: por que Lukcs na Ontologia apela mais para a Cinciada Lgica, precisamente a seo da teleologia, e no no captulo da Fenomenologia do Espritosobre acoisa mesma, onde tambm aparece exposta uma concepo de teleologia? Obviamente, a resposta pode virs depois de uma anlise atenta do texto hegeliano, dado que a questo se relaciona com a colocao queHegel ofereceu da teleologia nas duas obras: mais ontolgica na Cincia da Lgica, mas fenomenolgica naFenomenologia do Esprito. Permanece a questo como uma marca do empenho de Lukcs por superar umaspecto fenomenolgico do conceito de trabalho, em certo sentido presente em HCC, para chegar a umaontologia cientfico-gentica do trabalho, que exigia uma leitura atenta do trao lgico-cientfico de a Cinciada Lgicaantes que o histrico-fenomenolgico da Fenomenologia do Esprito. In Infranca, 2005, p. 38.

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    em Marx (Infranca, 2005, p. 29). Mais que isso, ele entende que Lukcs persegue os

    traos hegelianos presentes em Marx3.

    Com efeito, partindo da Ontologia pode-se visualizar o vnculo que Lukcsestabelece com Hegel. Logo no incio do captulo dedicado Marx, ele afirma que o

    ponto de partida deste ltimo nitidamente ainda que desde o incio em termos

    crticos a filosofia hegeliana (Lukcs, 1979, p. 11). nesse captulo que Lukcs

    desenvolve o que ele chamou de questes metodolgicas preliminares, onde situa

    alguns elementos da problemtica metodolgica em Marx.

    O objetivo deste artigo apontar os traos gerais expostos por Lukcs na

    Ontologiaacerca do mtodo em Marx, confront-los com seu texto de 1919, O que

    marxismo ortodoxo, analisando, luz da proposta de Infranca, a articulao das duas

    abordagens. Assim como Infranca retoma os textos juvenis de Lukcs buscando o

    reconhecimento da categoria trabalho em suas diferentes abordagens, partindo da

    Ontologia;resgata-se aqui a preocupao de Lukcs com a questo metodolgica em

    Marx a partir, tambm, da Ontologia, recuperando alguns aspectos de sua anlise no

    texto de abertura de HCC.

    No acima referido captulo da Ontologia, Lukcs afirma de imediato que todos

    os enunciados de Marx, se interpretados corretamente (isto , fora dos preconceitos

    da moda), so entendidos em ltima instncia como enunciados diretos sobre um

    certo tipo de ser, ou seja, so afirmaes ontolgicas (Lukcs, 1979, p. 11). Em

    seguida nega qualquer tipo de tratamento autnomo, por parte de Marx, relativo aos

    problemas ontolgicos na relao com a gnosiologia e a lgica. Esta ausncia, no seu

    entender, um aspecto relacionado vinculao do jovem' Marx com Hegel. A partir

    dessa primeira constatao, Lukcs desdobra alguns elementos relativos metodologia

    marxiana, que s tm sentido se entendidos do ponto de vista do ser. J na tese

    doutoral, ele salienta o predomnio do carter onto-prtico4da anlise marxiana. Ao se

    referir aos efeitos reais da representao religiosa, conclui: Marx coloca aqui um

    problema que, mais tarde, quando se tornar economista e materialista, ter grande

    3Infranca afirma no quarto captulo: tambm o ltimo Lukcs tende a rastrear em Marx seu prprio grmenhegeliano, e em alguns aspectos segue transcendendo a Marx para voltar a acoplar-se diretamente a Hegel,chegando a ser deste modo uma espcie de companheiro de escola ideal do prprio Marx. In Infranca,2005, p. 265.4Esse tambm o primeiro aspecto destacado por Chasin em sua anlise sobre a resoluo metodolgicaem Marx. Ele afirma: atentando para momentos fundamentais da elaborao fragmentria de Marx a esserespeito [do mtodo], possvel captar e expor as linhas mestras de sua [de Marx] concepo em trs temasespecficos e interligados: 1) a fundamentao onto-prtica do conhecimento, 2) a determinao social dopensamento e a presena histrica do objeto, 3) a teoria das abstraes. Cf. Chasin, J. Marx: estatutoontolgico e resoluo metodolgica. In Teixeira, F. Pensando com Marx. S. Paulo, Ensaio, 1995, p. 390.

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    importncia: a funo prtico-social de determinadas formas de conscincia,

    independentemente do fato de que elas, no plano ontolgico geral, sejam falsas ou

    verdadeiras (Lukcs, 1979, p. 14). Ou seja, Lukcs chama a ateno para asubordinao do conhecimento ao carter real de determinados fenmenos sociais.

    So as caractersticas prticas do processo real que orientam a compreenso

    marxiana. No caso da representao religiosa o que est em jogo o papel efetivo que

    ela desempenha na histria humana.

    Lukcs salienta ainda o tratamento diferenciado de Marx no que diz respeito

    relao entre natureza e sociedade. Em contraposio filosofia tradicional, Marx no

    separa essas duas formas de ser, ao contrrio considerou sempre os problemas da

    natureza predominantemente do ponto de vista da sua inter-relao com a sociedade

    (Lukcs, 1979, p. 15). Com essa compreenso Lukcs desenvolve sua conhecida

    anlise segundo a qual o ser social pressupe o ser da natureza orgnica e

    inorgnica e se desenvolve a partir de um salto que o diferencia das duas outras

    formas de ser (Lukcs, 1979, p. 17). Para ele, este salto ocorre em funo do pr

    teleolgico do trabalho. Como bem mostrou Infranca, a nfase atribuda teleologia na

    anlise do trabalho um trao claramente hegeliano do velho Lukcs, mas se trata

    de uma influncia j transformada pela perspectiva materialista. Tanto assim, que

    Lukcs critica a filosofia burguesa quando se refere aos chamados domnios do

    esprito - que tratam natureza e sociedade como antteses que se excluem -,

    exatamente a partir dessa compreenso. De outro lado, ele rejeita tambm a

    transposio simplista, materialista vulgar, das leis naturais para a sociedade. Dito

    isso, ele se coloca numa posio de distanciamento em relao s chamadas cincias

    sociais autnomas, tanto aquelas de inspirao positivista/funcionalista, quanto as

    herdeiras de Weber. Essa dupla crtica, como se sabe, j estava presente nos ensaios

    de 1923, que alm desses alvos visava atingir tambm (talvez, at, principalmente

    naquele momento) o marxismo da segunda internacional.

    Explicitamente em relao ao mtodo, Lukcs retoma a conhecida passagem daIntroduo de 1857 a anatomia do homem uma5 chave para a anatomia do

    5Grifo meu. Alterei a traduo a partir da edio alem, onde se l: In der Anatomie des Menschen ist einSchlssel zur Anatomie des Affen inMarx K. Grundrisse der Kritik der Politischen konomie, Dietz VerlagBerlin, 1953, p. 26. Lukcs faz o seguinte comentrio na primeira parte dos Prolegmenos: Marx diz quecategorias so formas de existncia, determinaes da existncia. Por isso, o contedo e a forma de cadaente s podem ser concebidos atravs daquilo que ele se tornou no curso do desenvolvimento histrico. Naanatomia do homem h uma chave para a anatomia do macaco. Marx v aqui, com legtima consideraocrtica, uma chave, no a chave para decifrar o ser em sua historicidade. Pois o processo da histria causal, no teleolgico, mltiplo, nunca unilateral, simplesmente retilneo,mas sempre uma tendncia dedesenvolvimento desencadeada por interaes e inter-relaes reais de complexos sempre ativos. In Lukcs

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    macaco (Marx, 1982, p. 17) em que Marx coloca o complexo como ponto de partida

    ao considerar que na anlise da sociedade burguesa que se torna possvel penetrar

    na estrutura e nas relaes de produo de todas as formas passadas desociedade(Marx, 1982, p. 17). Desse modo, partindo-se do complexo, consideram-se

    ao mesmo tempo as contradies que ele envolve, pois a contradio se revela como

    princpio do ser precisamente porque possvel apreend-la na realidade enquanto

    base de processos tambm desse tipo (Lukcs, 1979, p. 22). Essas implicaes

    metodolgicas da ontologia marxiana, oferecem uma srie de dificuldades para aqueles

    que esto presos aos procedimentos analticos tradicionais das cincias sociais. Com

    efeito, tanto a chamada sociologia compreensiva, quanto aquelas de raiz positivista

    constroem suas referncias metodolgicas buscando criar um campo neutro para

    anlise da sociedade, seja atravs dos tipos ideais no primeiro caso, ou da formulao

    de leis gerais anlogas quelas das cincias naturais, no segundo. Outro ponto em

    comum entre as vrias abordagens das cincias sociais o tratamento da economia

    em que os fenmenos econmicos puros so isolados das inter-relaes complexivas

    do ser social como totalidade (Lukcs, 1979, p. 22). Certamente, essa no a

    proposta de Marx para a compreenso da vida social. Ao contrrio, a economia

    marxiana parte sempre da totalidade do ser social e volta sempre a desembocar nessa

    totalidade (Lukcs, 1979, p. 22). Alm disso, nessa cincia que Marx encontra a

    anlise do que ele chamou em 59 de relaes materiais da vida, ao expor para o

    pblico os motivos que o levaram ao estudo de economia.

    Lukcs demonstra, na seqncia, que tomar os fatos como ponto de partida no

    leva necessariamente ao puro empirismo. No caso de Marx a verificao de um fato,

    toda apreenso de um nexo, no so simplesmente fruto de uma elaborao crtica na

    perspectiva de uma correo factual imediata, ao contrrio, partem daqui para ir alm,

    para investigar ininterruptamente todo o mbito do factual na perspectiva do seu

    autntico contedo do ser, de sua constituio ontolgica (Lukcs, 1979, p. 24), ou

    como afirmara Infranca indaga sempre em torno da necessidade histrica (Infranca,2005, p. 11) de determinado objeto, de uma determinada realidade factual. Nessa

    elaborao, salienta Lukcs, assume um papel decisivo o problema ontolgico da

    diferena, da oposio e da conexo entre fenmeno e essncia (Lukcs, 1979, p.

    25). No ser social essa interconexo est relacionada com o agir interessado, com

    pores teleolgicos de sujeitos que, por sua vez, se apiam em interesses de grupos

    Prolegomeni allontologia dellessere sociale. Questioni di principio di unontologia oggi divenuta possibile.Milao, Guerini e Associati, 1990, p. 35.

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    sociais. Assim, no ser social a busca da gnese se impe pelo inacabamento do

    produto, sempre provisrio, sempre ponto de partida para novos pores. Da o contra-

    senso em se conceber a anlise da realidade social a partir de um sistema, pois esteenquanto ideal contm, sobretudo, o princpio da completicidade e da conclusividade,

    idias que so a priori inconciliveis com a historicidade ontolgica do ser e que j no

    prprio Hegel suscitam antinomias insolveis (lukcs, 1979, p. 27). Alm disso, a

    idia de sistema pressupe tambm uma ordenao hierrquica das categorias, o que

    segundo o filsofo hngaro entra em conflito com a concepo ontolgica de Marx

    (lukcs, 1979, p. 27). Pois, considera que quando a totalidade se apresenta no

    como um fato formal do pensamento, mas como a reproduo mental do realmente

    existente, as categorias so formas de ser, determinao da existncia, elementos

    estruturais de complexos relativamente totais, reais, dinmicos, cujas inter-relaes

    dinmicas do lugar a complexos cada vez mais abrangentes, em sentido extensivo e

    intensivo (Lukcs, 1979, p. 28).

    Lukcs salienta que Marx no desconsidera a subordinao de uma categoria

    em relao outra e mostra como o conceito de momento preponderante se refere

    exatamente a esta hierarquizao. No entanto, no se trata de uma ordenao a priori,

    mas subordinada aos nexos da realidade. Como afirma Lukcs: quando atribumos

    uma prioridade ontolgica a determinada categoria com relao outra, entendemos

    simplesmente o seguinte: a primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso

    ontologicamente impossvel (Lukcs, 1979, p. 40). assim que Marx evidencia na

    Introduo de 18576 que a produo o momento preponderante na relao com

    consumo, distribuio e troca (circulao) justamente porque prioritria em relao

    aos demais. Sem ela, os outros no existiriam. Mas estes, no entender de Marx, no

    formam um silogismo superficial como para os economistas, para quem:

    Produo a generidade, distribuio e troca, a particularidade; consumo, aindividualidade expressa pela concluso (...) A produo, segundo os economistas, determinada por leis naturais gerais; a distribuio, pela contingncia social, podendo,pois, influir mais ou menos favoravelmente sobre a produo; a troca acha-se situada

    entre ambas como movimento social formal; e o ato final do consumo, concebido nosomente como o ponto final, mas tambm como a prpria finalidade, se encontrapropriamente fora da economia, salvo quando retroage sobre o ponto inicial, fazendo comque recomece o processo. (Marx, 1982, p. 7)

    De modo distinto, Marx analisa cada um desses momentos na sua relao com

    os demais no processo de reproduo social dos indivduos. Mostra, assim, em

    6Tambm aqui me vali das referncias de Chasin (1995) na anlise do mtodo em Marx. Como o autorbrasileiro desenvolve neste texto uma polmica com Lukcs que desviaria o foco do presente artigo, ele noest sendo diretamente considerado, mas suas reflexes esto presentes de forma central nos momentos emque sua investigao se aproxima da de Lukcs. Quanto referida polmica, conferir em Chasin, 1995, p. 390-506.

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    primeiro lugar, que a produo tambm imediatamente consumo em duplo sentido,

    objetivo e subjetivo. Consome os meios de produo utilizados e o prprio indivduo

    que produz. Mas o consumo tambm produo, pois qualquer tipo de consumoproduz o prprio homem. Assim:

    A produo imediatamente consumo; o consumo imediatamente a produo. Cada qual imediatamente seu contrrio. Mas, ao mesmo tempo, opera-se um movimento mediadorentre ambos. A produo mediadora do consumo, cujos materiais cria e sem os quais noteria objeto. Mas o consumo tambm mediador da produo ao criar para os produtos osujeito, para o qual so produtos. (Marx, 1982, p. 8).

    Marx considera que a produo o ponto de partida efetivo, e, por conseguinte

    tambm o momento que predomina. O consumo como carncia e necessidade , ele

    mesmo, um momento interno da atividade produtiva, mas esta ltima o ponto de

    partida da realizao e, portanto, seu momento preponderante, o ato em que se

    desenrola de novo todo o processo (Marx, 1982, p. 10). Quanto distribuio e troca,

    ele mostra que a distribuio primeiro, distribuio dos instrumentos de produo,

    e, segundo, distribuio dos membros da sociedade pelos diferentes tipos de

    produo (Marx, 1982, p. 11). Portanto, ela tambm momento interno de prpria

    produo (assim como o consumo). O mesmo ocorre com a troca na medida em que

    momento mediador entre a produo e a distribuio determinada por ela e o

    consumo (Marx, 1982, p. 13). Concluindo: a produo, a distribuio, o intercmbio,

    o consumo no so idnticos, mas so elementos de uma totalidade, diferenas dentroda unidade (Marx, 1982, p. 10).

    A Introduo de 57, com efeito, um dos raros momentos em que Marx se

    ocupa explicitamente, em um pequeno item, da questo do mtodo. Lukcs reserva

    uma parte do captulo dedicado a Marx de sua Ontologia para acompanhar essa

    anlise. Veremos adiante que tambm em HCC ele havia utilizado esses escritos. Aqui

    como l, Lukcs recupera a perspectiva da totalidade como ponto central da

    investigao social, a partir desses rascunhos de Marx j acessveis ao pblico quando

    da redao de HCC.

    Marx inicia seu pequeno esboo relativo ao mtodo com a questo: por onde

    comear? Esse , de fato, um ponto dos mais delicados quando se trata de uma

    investigao cientfica. No prefcio da primeira edio de O Capital, ele afirma: Todo

    comeo difcil; isso vale para qualquer cincia (Marx, 1983, p. 11). Alm do que, diz

    ele, na anlise das formas econmicas no podem servir nem o microscpio nem

    reagentes qumicos. A faculdade da abstrao deve substituir ambos (Marx, 1983,

    p.12). Na tentativa de justificar os fracassos em fundamentar a forma valor, ele

    assinala que o corpo desenvolvido mais fcil de estudar do que a clula do corpo

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    (Marx, 1983, p. 12). Esses enunciados de 1867 esto diretamente relacionados

    queles expostos dez anos antes na Introduo. Em uma palavra, ele esclarece, nos

    dois momentos, que deve-se partir do concreto, sntese de muitas determinaes(Marx, 1982, p. 14). Ou seja, no foi possvel fundamentar a forma valor

    anteriormente, porque ela no tinha sua expresso acabada quando das tentativas

    anteriores. Como sntese de muitas determinaes, o concreto aparece ao

    pensamento (...) como resultado, no como ponto de partida, ainda que seja o ponto

    de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida tambm da intuio e da

    representao (Marx, 1982, p. 14). Marx, criticando o procedimento dos economistas,

    mostra como fcil para o pensamento humano julgar que o todo concreto resultado

    de um processo do prprio pensamento. Ele afirma:

    Para a conscincia o movimento das categorias aparece como o ato de produo efetivo que recebe infelizmente apenas um impulso do exterior - , cujo resultado o mundo, e isso certo (aqui temos de novo uma tautologia) na medida em a totalidade concreta, comototalidade de pensamentos, como um concreto de pensamentos, de fato um produto dopensar, do conceber; no de modo nenhum o produto do conceito que pensa separado eacima da intuio e da representao, e que se engendra a si mesmo, mas da elaboraoda intuio e da representao em conceitos. O todo, tal como aparece no crebro, comoum todo de pensamentos, um produto do crebro pensante que se apropria do mundo donico modo que lhe possvel, modo que difere do modo artstico, religioso e prtico-mental de se apropriar dele. (Marx, 1982, p. 15).

    A apropriao do mundo pela via do pensamento, portanto, uma possibilidade

    dada pela faculdade de abstrair. Mas, para Marx, o mtodo cientificamente exato

    aquele que se eleva do abstrato ao concreto. A prioridade do concreto real expressa

    pela subordinao da abstrao a ele, j que ela (a abstrao) que tem de se elevar

    ao concreto, buscar alcan-lo para reproduzi-lo como concreto pensado (Marx,

    1982, p. 14). Esta a chamada viagem de volta atravs da qual se chega a uma

    rica totalidade de determinaes e relaes diversas (Marx, 1982, p. 14).

    Na segunda parte do captulo IV da Ontologia, Os princpios ontolgicos

    fundamentais em Marx, Lukcs esclarece que do ponto de vista metodolgico,

    preciso observar desde o incio que Marx separa nitidamente dois complexos: o ser

    social, que existe independentemente do fato de que seja ou no conhecido

    corretamente; e o mtodo para capt-lo no pensamento, de maneira mais adequada

    possvel (Lukcs, 1979, p. 35) e, como estes dois complexos se desenvolvem de

    forma distinta, o caminho do conhecimento tambm no se confunde com o da prpria

    realidade (Lukcs, 1979, p. 38). Por isso, todo o cuidado pouco no sentido de no

    conceber a gnese do real no pensamento. o que Marx exemplifica com a categoria

    trabalho, que mesmo sendo to antiga quanto o homem, s assume a forma de

    abstrao na modernidade, com o processo universal de generalizao da atividade.

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    Ou seja, no uma abstrao construda na cabea, mas na histria humana, pois

    como afirma Marx a indiferena em relao ao gnero de trabalho determinado

    pressupe uma totalidade muito desenvolvida de gneros de trabalho efetivo, nenhumdos quais domina os demais (Marx, 1982, p. 17). E continua:

    Tampouco se produzem as abstraes mais gerais seno onde existe o desenvolvimentoconcreto mais rico, onde um aparece como comum a muitos, comum a todos. Ento j nopode ser pensado somente sob uma forma particular. Por outro lado, essa abstrao dotrabalho em geral no apenas o resultado intelectual de uma totalidade concreta detrabalhos. A indiferena em relao ao trabalho determinado corresponde a uma forma desociedade na qual os indivduos podem passar com facilidade de um trabalho a outro e naqual o gnero determinado de trabalho fortuito, e, portanto, -lhes indiferente. Nessecaso o trabalho se converteu no s como categoria, mas na efetividade em um meio deproduzir riqueza em geral, deixando, como determinao, de se confundir com o indivduoem sua particularidade (Marx, 1982, p. 17).

    Assim, o mtodo cientificamente exato (Marx, 1982, p. 14) aquele quereconhece, no s as caractersticas do trabalho em geral, mas sua especificidade em

    cada processo social, o que no se estabelece por nenhuma lei a priori, mas pelo

    exame rigoroso de cada formao social especfica, que pode levar a descoberta de

    determinadas leis, mas no as pressupe. Marx j o havia esclarecido no incio da

    Introduo de 57, ao afirmar que:

    (...) todas as pocas da produo tm certas caractersticas comuns, certas determinaescomuns. Aproduo em geral uma abstrao, mas uma abstrao razovel. Na medidaem que, efetivamente sublinhado e precisando os traos comuns, poupa-nos a repetio.Esse carter geral, contudo, ou esse elemento comum, que se destaca atravs dacomparao, ele prprio um conjunto complexo, um conjunto de determinaesdiferentes e divergentes. Alguns desses elementos comuns pertencem a todas as pocas,outros apenas so comuns a poucas. Certas determinaes sero comuns poca maismoderna e mais antiga. Sem elas no se poderia conceber nenhuma produo, pois se aslinguagens mais desenvolvidas tem leis e determinaes comuns s menos desenvolvidas,o que constitui seu desenvolvimento o que as diferencia desses elementos comuns egerais. As determinaes que valem para a produo em geral devem ser precisamenteseparadas, a fim de que no se esquea a diferena essencial por causa da unidade, a qualdecorre j do fato de que o sujeito a humanidade e o objeto a natureza so osmesmos. (Marx, 1982, p. 4-5)

    Ou seja, a viagem de volta consiste em resgatar as determinaes especficas, em no

    esquecer a diferena essencial, aquilo que especifica determinado objeto, que faz

    dele o que ele . Quatorze anos antes, Marx j havia mostrado como a diferena

    essencial permite a aproximao ao objeto real. Ele afirma na Crtica de 43:

    a crtica verdadeiramente filosfica (...) no indica somente contradies existentes; elaesclarece essas contradies, compreende sua gnese, sua necessidade. Ela as apreendeem seu significado especfico. Mas esse compreender no consiste, como pensa Hegel, emreconhecer em toda parte as determinaes do conceito lgico, mas em apreender a lgicaespecfica do objeto especfico. (Marx, 2005, p. 108).

    Certamente, essa no uma tarefa fcil. Por isso mesmo, Lukcs esclarece que:

    (...) o que Marx designa como uma viagem de retorno pressupe uma cooperaopermanente entre o procedimento histrico (gentico) e o procedimento abstrativo-sistematizante (que evidencia leis e tendncias). A inter-relao orgnica, e por isso

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    fecunda, dessas duas vias do conhecimento, todavia, s possvel sobre a base de umacrtica ontolgica permanente de todo passo frente; e, com efeito, ambos os mtodos tmcomo finalidade compreender, de ngulos diversos, os mesmos complexos da realidade.(Lukcs, 1979, p. 39).

    Complexos estes s apreensveis em sua realidade prpria ou, na expresso de Lukcs,

    no seu em-si, da a necessidade da crtica ontolgica permanente. A viagem de volta,

    portanto, a partir do esclarecimento de Lukcs, envolve: 1) o retorno na histria, ou

    seja, a compreenso do processo que engendrou determinado objeto e 2) o resgate

    das caractersticas especficas de determinada categoria que torna possvel a

    sistematizao de pontos comuns que evidencia leis e tendncias.

    Na mesma poca em que escrevia a Ontologia, Lukcs autoriza uma reedio de

    seu livro de 1923, depois de longa espera e algumas publicaes no autorizadas. A

    nova edio precedida de uma autocrtica em que o autor questiona sua prpria

    posio terica quando da publicao original. No apresenta, no entanto, o mesmo

    distanciamento do prefcio de 1962 Teoria do Romance(2000) , no qual Lukcs se

    refere a si prprio na terceira pessoa. Na verdade, ele no reconhece apenas pontos

    negativos em HCC. Segundo ele: Um dos grandes mritos de HCC foi com certeza o

    de ter dado categoria da totalidade (...) o lugar metodolgico central que sempre

    ocupara na obra de Marx. Lukcs admite que HCC representa, talvez, a tentativa

    mais radical da poca para reatualizar o carter revolucionrio do marxismo reatando

    com a dialtica hegeliana e o seu mtodo e desenvolvendo-os (Lukcs, 1969, p.XXII). Como j foi mencionado, HCC tinha como alvo imediato o marxismo da segunda

    internacional e esse apelo dialtica de Hegel significa um duro golpe na tradio

    revisionista. Lukcs s se dedica leitura de Lnin alguns anos mais tarde7, quando

    descobre que tambm naquele autor se encontravam tendncias semelhantes.

    Os aspectos positivos que Lukcs admite em HCC, portanto, esto relacionados

    diretamente questo metodolgica. A este respeito, ele justifica sua rejeio do

    conhecimento reflexo8, na poca da redao de HCC, principalmente pela sua averso

    ao fatalismo mecanicista que habitualmente recorria a esta teoria no materialismo

    mecnico. Por outro lado, reafirma o acerto de sua tese central em O que marxismo

    ortodoxo, recorrendo a uma longa citao do incio do texto de 1919, na qual afirma

    7Os estudos filosficos de Lnin s foram publicados nove anos depois de HCC. In Lukcs. 1969, p. XXII.8Para Paulo Netto a incorporao por parte de Lukcs da teoria do reflexo um ponto decisivo na inflexo depensamento do marxista hngaro na dcada de 30. Segundo o autor brasileiro necessrio assinalar que nofoi preciso esperar aEstticae a Ontologia... para que ficasse claro que a teoria do reflexo, tal como Lukcs aincorporou, jamais reduziu ou amesquinhou o papel ativo e criador do sujeito humano. In Paulo Netto. J.Lukcs: um exlio na ps-modernidade. InMarxismo impenitente. S. Paulo, Cortez, 2004, p. 147.

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    que a ortodoxia em matria de marxismo refere-se exclusivamente ao mtodo

    (Lukcs, 1969, p. XXVIII).

    O autor considera ainda que no se pode negar que inmeras passagenstentam expor as categorias dialticas na sua objetividade e no seu movimento real,

    passagens que, por conseguinte, tomam o sentido de uma ontologia autenticamente

    marxista do ser social (Lukcs, 1969, p. XXVIII). Exemplifica com uma pequena

    exposio da categoria da mediao como alavanca metodolgica para ultrapassar a

    simples imediaticidade da experincia, no pela importao da subjetividade para os

    objetos, mas como manifestao da sua (do objeto) prpria estrutura objetiva e

    outra que trata da ligao entre gnese e histria, que vale reproduzir:

    gnese e histria s podem coincidir, ou para sermos mais exatos, s podem constituir momentos

    do mesmo processo se, por um lado, todas as categorias em que se edifica a existncia humanaaparecem como determinaes desta mesma existncia (e no apenas de sua compreensopossvel) e, por outro lado, as suas sucesso, ligao e conexo surgirem como momentos doprprio processo histrico, como caractersticas estruturais do presente: a sucesso e a articulaointernas das categorias no constituem, portanto, nem uma srie puramente lgica nem uma ordemsegundo uma facticidade puramente histrica. (Lukcs, 1969, p. XXVIII-XXIX).

    As duas ltimas referncias reproduzidas acima no so de O que marxismo

    ortodoxo, o que demonstra que tambm em outros artigos de HCC Lukcs encontra

    um eco das reflexes que ainda o ocupavam quase 40 anos depois. Na passagem

    acima ntida a crtica ao mtodo weberiano que busca explicaes possveis9, j que

    na viso de Weber no h causas necessrias nos processos scio-histricos.Mas, voltando ao nosso tema, no texto de abertura de HCC Lukcs coloca como

    preocupao central a questo metodolgica, mas esta manifesta-se a partir da nfase

    na funo prtica da teoria e no em sua validade simplesmente teortica, j que

    Lukcs compreende que para o mtodo dialtico, a transformao da realidade

    constitui o problema central. (Lukcs, 2003, p. 68). Trata-se, portanto, de uma

    atitude frente realidade e no somente ao conhecimento, o que confirma a avaliao

    de Lukcs (em 1967) de que a sua publicao de 1923 j assumia a tendncia no

    sentido de uma ontologia autenticamente marxista do ser social. (Lukcs, 1969, p.

    XXVIII).

    A inclinao em direo objetividade est presente desde o incio do texto

    quando Lukcs, retomando a Contribuio a crtica do direito de Hegel(Anais franco-

    alemes), afirma que

    9 H, entre os estudiosos de Lukcs, certa unanimidade em afirmar a presena constante de Weber nosembates crticos do autor hngaro. Conferir, por exemplo, em Vaisman, E. Encontros e dissonncias: o carterda interlocuo de Weber e Lukcs. In Teoria e Sociedade, nmero especial (O pensamento de Max Weber esuas interlocues), B. Horizonte, UFMG, 2005, p. 90-101.

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    apenas tal relao da conscincia com a realidade torna possvel a unidade entre teoria e prxis.

    Para tanto, a conscientizao precisa se transformar no passo decisivo a ser dado pelo processo

    histrico em direo ao seu prprio objetivo (objetivo este constitudo pela vontade humana, mas

    que no depende do livre arbtrio humano e no um produto da inveno intelectual). (Lukcs,

    2003, p. 65-6).

    Os parnteses so particularmente esclarecedores, pois do conta do esforo

    permanente de situar a prioridade da realidade mesmo nesses textos auto-avaliados

    como idealistas. A nfase na conscientizao, como se sabe, perde peso na anlise

    do Lukcs maduro que gradativamente amplia, com grande insistncia, o significado

    da causalidade na relao com a teleologia, par categorial ainda no explorado em

    1923, mas que assume o lugar central da reflexo na Ontologia.

    O reconhecido tratamento precoce de aspectos relacionados ao mtodo em

    Marx se deveu, como fica evidente na leitura de HCC, a um cuidadoso exame das

    poucas obras do autor alemo disponveis. Esse rigor permitiu a Lukcs uma rara

    percepo da continuidade entre os escritos da maturidade e da juventude de Marx.

    Ele afirma que enquanto os marxistas da poca no viam nas obras de juventude

    mais do que documentos histricos esclarecedores da evoluo pessoal de Marx, ele

    j as compreendia como parte integrante de uma imagem de conjunto da concepo

    do mundo (Lukcs, 1969, p. XXVIII). Assim, alm de acompanhar a Introduo de 57,

    Lukcs recorre tambm crtica de Marx a Proudhon em A Misria da Filosofia, aostextos publicados nos Anais franco-alemes e retira de O Capitalpassagens preciosas

    para compreenso do procedimento analtico marxiano.

    Tambm a contradio entendida j, na ocasio da redao de HCC, como

    constitutiva da realidade social e, portanto, ineliminvel da anlise do processo. Lukcs

    afirma:

    O mtodo das cincias da natureza, que constitui o ideal metodolgico de toda a cincia fetichista ede todo o revisionismo, no conhece contradio, nem antagonismos em seu material; se, noentanto, houver alguma contradio entre as diferentes teorias, isso somente o indcio do carterinacabado do grau de conhecimento atingido at ento. (...) no caso da realidade social, pelocontrrio, estas contradies no so sintomas de uma imperfeita apreenso cientfica da realidade,mas pertencem de maneira indissolvel essncia da prpria realidade, essncia da sociedadecapitalista. A sua superao no conhecimento da realidade no faz com que deixem de sercontradies. Pelo contrrio, so compreendidas como contradies necessrias, como fundamentoantagnico desta ordem de produo. Quando a teoria, enquanto conhecimento da totalidade abre ocaminho para a superao dessas contradies, para a sua supresso, ela o faz mostrando astendncias reais do processo de desenvolvimento da sociedade, que so chamadas a superarrealmente essas contradies na realidade social, no curso do desenvolvimento social. (Lukcs,2003, p. 79-80).

    Apesar do peso atribudo ao papel do conhecimento na superao das

    contradies da realidade social, em linhas gerais, a reflexo acima no difere

    substancialmente daquela encontrada na dcada de 1960 na Ontologia.No o que

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    ocorre com a chamada viagem de volta da abstrao. Mesmo afirmando que a

    categoria da totalidade no reduz seus elementos a uma uniformidade indiferenciada

    (Lukcs, 2003, p. 84), Lukcs no atribui em 1923 importncia decisiva, como fardepois, ao elevar-se do abstrato ao concreto. Resta, portanto, como ele prprio

    admite, um trao de valorizao excessiva na abstrao do movimento, pois sem a

    concretizao do caminho de volta, h uma tendncia ainda que negada, como visto

    acima de perder-se a especificidade dos elementos do real na unidade da totalidade.

    Mesmo com consideraes acima, esse exerccio comparativo evidencia muito

    mais aproximaes do que divergncias entre HCC e a Ontologia. Mas, se como Marx

    havia indicado, na busca da lgica especfica do objeto especfico que se alcana a

    verdadeira crtica, as diferenas entre as duas abordagens no podem ser

    negligenciadas. Assim, no se perde a especificidade de cada uma delas e, claro, leva-

    se em considerao a reivindicao do prprio autor em 1967, para quem o que mais

    influncia exerce em HCC justamente o que ele considera falso. Por isso, sua crtica

    d realce aos defeitos do livro (Lukcs, 1969, p. XXIX), ainda que ele reconhea

    tambm seus acertos. Enfim, pode-se dizer que proposta analtica de Infranca

    confirma a avaliao do prprio Lukcs - de que em seu desenvolvimento no h

    elementos inorgnicos (Lukcs, 1999, p. 83) - ao propiciar uma leitura de sua obra

    sob nova perspectiva: nem a supervalorizao dos escritos de 1923, nem sua excluso

    como momento constitutivo do itinerrio lukasciano.

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