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Universidade Federal de Campina Grande Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino 1 ANAIS ELETRÔNICOS ISSN 235709765 O CORDEL NO COTIDIANO ESCOLAR DA EJA Rodrigo Nunes da SILVA [email protected] PPGFP da Universidade Estadual da Paraíba Linduarte Pereira RODRIGUES [email protected] DLA e PPGFP da Universidade Estadual da Paraíba RESUMO A literatura de cordel é considerada como legítima manifestação da cultura popular brasileira. De forma interdisciplinar, pode-se encontrar na sua riqueza temática uma prática eficaz de letramento, o que permite à aquisição de conhecimentos múltiplos. O trabalho busca refletir sobre formas de abordagens exitosas nas aulas de língua materna. Para tanto, apresenta o relato de uma experiência de trabalho com folhetos de cordéis numa turma da Educação de Jovens e Adultos (EJA) de uma escola pública do município de Soledade - PB. Compreende a EJA como um segmento de ensino da rede pública da Educação Básica permeada por complexidades, envolvendo questões que vão além do plano educacional. Diante disso, propõe uma reflexão voltada para o desenvolvimento de uma educação de qualidade, vinculada a mudanças no cotidiano da formação crítica/reflexiva dos alunos componentes da EJA. Propõe um projeto pedagógico para o ensino língua portuguesa que enxerga o cordel como agente textual/linguístico para se atingir os objetivos propostos. Como suporte teórico, parte das leituras efetuadas em Bakhtin/Voloshinov (1999), Geraldi (2010), Kleiman & Signorini (1995) e Street (2014). Atentando para o fato de que os estudos do letramento ultrapassam o plano da escrita formal, perpassando à reflexão sobre a própria linguagem dos sujeitos em contextos que extrapolam os muros da escola, o estudo revelou o estabelecimento de conexões com textos orais e/ou escritos que fazem parte do cotidiano das famílias dos alunos envolvidos num processo de letramento desenvolvido com folhetos de cordel, evidenciando-se, assim, que esse material sociocultural e sociolinguístico é prática discursiva que propicia o letramento escolar na região campo da pesquisa. PALAVRAS-CHAVE: Ensino de língua portuguesa. Letramento. Cordel.

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ANAIS ELETRÔNICOS ISSN 235709765

O CORDEL NO COTIDIANO ESCOLAR DA EJA

Rodrigo Nunes da SILVA [email protected]

PPGFP da Universidade Estadual da Paraíba Linduarte Pereira RODRIGUES

[email protected] DLA e PPGFP da Universidade Estadual da Paraíba

RESUMO

A literatura de cordel é considerada como legítima manifestação da cultura popular brasileira. De forma interdisciplinar, pode-se encontrar na sua riqueza temática uma prática eficaz de letramento, o que permite à aquisição de conhecimentos múltiplos. O trabalho busca refletir sobre formas de abordagens exitosas nas aulas de língua materna. Para tanto, apresenta o relato de uma experiência de trabalho com folhetos de cordéis numa turma da Educação de Jovens e Adultos (EJA) de uma escola pública do município de Soledade - PB. Compreende a EJA como um segmento de ensino da rede pública da Educação Básica permeada por complexidades, envolvendo questões que vão além do plano educacional. Diante disso, propõe uma reflexão voltada para o desenvolvimento de uma educação de qualidade, vinculada a mudanças no cotidiano da formação crítica/reflexiva dos alunos componentes da EJA. Propõe um projeto pedagógico para o ensino língua portuguesa que enxerga o cordel como agente textual/linguístico para se atingir os objetivos propostos. Como suporte teórico, parte das leituras efetuadas em Bakhtin/Voloshinov (1999), Geraldi (2010), Kleiman & Signorini (1995) e Street (2014). Atentando para o fato de que os estudos do letramento ultrapassam o plano da escrita formal, perpassando à reflexão sobre a própria linguagem dos sujeitos em contextos que extrapolam os muros da escola, o estudo revelou o estabelecimento de conexões com textos orais e/ou escritos que fazem parte do cotidiano das famílias dos alunos envolvidos num processo de letramento desenvolvido com folhetos de cordel, evidenciando-se, assim, que esse material sociocultural e sociolinguístico é prática discursiva que propicia o letramento escolar na região campo da pesquisa.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de língua portuguesa. Letramento. Cordel.

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1 INTRODUÇÃO

A literatura de cordel tem sido utilizada em muitas práticas e eventos de

letramento no cotidiano de escolas da região nordeste do Brasil. Para Kleiman &

Signorini (1995, p.20), a escola devia ser a mais importante agência de letramento

social, ou, pelo menos, a que se preocupe com aspectos da realidade social em que o

sujeito se insere, o que não ocorre na maioria das escolas.

Quando ampliamos o escopo dos estudos do letramento, veremos que o

letramento escolar é apenas um, em meio aos vários letramentos que não são levados

em consideração pelo Estado, e que o alunado tem acesso em suas práticas sociais.

Diante dessa constatação, cabe destacar que o termo letramento é foco de discussões

várias no meio acadêmico. De modo geral, o estudo do letramento vai além do

conhecimento do que seja um ser letrado. Ele desenha uma forma de pensar o sujeito

dentro da realidade contextual (social, histórica, cultural) que o indivíduo faz parte.

Street (2014) explica que os eventos de letramento são espaços de negociação

e de transformação dos sujeitos. Mediados por gêneros textuais, tais eventos

postulados pelo autor, são possíveis de desenvolvimento escolar no Nordeste

brasileiro mediante folhetos de cordel pelo simples fato de que o cordel pode

contribuir para a transformação e melhoria dos índices de aprendizagem dos alunos da

EJA. Em nossos estudos, identificamos que o cordel em sala de aula gera possibilidades

de despertar nos alunos da EJA o gosto pela leitura e a circulação na escola de outros

gêneros da sociedade, pois envolve o cotidiano dos alunos da EJA em diversas regiões

de nosso país. A partir do momento em que o cordel é abordado como objeto

linguístico/literário/textual, e não simplesmente na perspectiva de folclorização,

observamos que há um ganho potencializador de leituras estéticas e sociais, além de

conhecimentos culturais, essenciais ao ambiente escolar.

Tomamos por base os estudos realizados por Bakhtin/Voloshinov (1999),

Geraldi (2010), Kleiman & Signorini (1995) e Street (2014), apresentamos uma

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experiência de trabalho com folhetos de cordéis numa turma da EJA de uma escola

pública do município de Soledade - PB. Os cordéis utilizados nas oficinas de leitura

foram selecionados com vistas a atender a multiplicidade temática e cultural local de

nossa região. A partir de práticas e eventos de letramento com o cordel, apresentamos

um projeto pedagógico interdisciplinar que permitiu desenvolver conexões com textos

orais e/ou escritos que fazem parte do cotidiano das famílias dos alunos,

evidenciando-se, assim, que esse material sociocultural e sociolinguístico é prática

discursiva que propicia o letramento escolar na região campo da pesquisa.

Apoiados em Geraldi (2010), enfatizamos que projetos de letramentos para

nossa região não pode deixar de lado as tradições orais de transmissão cultural, a

exemplo da literatura de cordel. Acreditamos também que para que haja êxito numa

política de expansão de leitura, faz-se necessário pensar num trabalho de formação

docente atento as demandas de letramentos da contemporaneidade e suas

especificidades, como é o caso da EJA.

2 LETRAMENTOS

O estudo dos letramentos perpassa pela busca de explicações/descrições sobre

um fenômeno, com interesse social. Jogo de poder e ideologia também se farão

presentes nos estudos do impacto social da escrita (KLEIMAN & SIGNORINI, 1995). Um

dos pontos relevantes nos estudos do letramento diz respeito aos fatores locais (sócio-

históricos e culturais) de produção e recepção da "letra". Diferentes práticas de

letramento, a partir de métodos experimentais e etnográficos, vão desempenhar

consequências distintas nos sujeitos pesquisados, entendendo que essas práticas são

socialmente determinadas.

Kleiman & Signorini (1995, p.18) explica que “em certas classes sociais, as

crianças são letradas, no sentido de possuírem estratégias orais letradas, antes mesmo

de serem alfabetizadas”. Com o exposto, podemos distinguir o ser alfabetizado e o ser

letrado. Diante disso, evidencia-se que os estudos do letramento atravessam a

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realidade social do sujeito, para além do ambiente escolar. Muitas práticas de

letramento são vivenciadas no dia a dia, na prática cotidiana. Na escola, o tipo de

prática de letramento presente é de caráter dominante, na maioria das vezes

prescritivo/normativo.

Podemos conceituar e definir o termo letramento como um conjunto de

práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia em contextos

específicos e com objetivos específicos (SCRIBNER & COLE, 1981 apud Kleiman &

Signorini, 1995). A partir das contribuições desses estudos, o ato de ler e escrever

passou a ser considerado menos pelo seu caráter de codificar e decodificar letras e

números, que não surte efeitos satisfatórios, por estar desvinculado das práticas e

usos sociais efetivos da linguagem. É preciso, isto sim, saber fazer o uso adequado da

leitura e da escrita em meio social. Só assim o sujeito é considerado letrado em

determinada especificidade dos multiletramentos.

Quando revestido de prática social, os eventos de letramento presentes na

escola podem contribuir para uma Educação humanizadora (FREIRE, 1996). Sobre

eventos de letramento, Kleiman (2005, p. 22-23) diz que

Nos eventos de letramento da maioria das instituições, as pessoas participam coletivamente, interagindo, enquanto nos eventos escolares mais tradicionais o que ainda importa é a participação individual do aluno. Isso, afortunadamente para o aluno está mudando. Quanto mais a escola se aproxima das práticas sociais em outras instituições, mais o aluno poderá trazer conhecimentos relevantes das práticas que já conhece, e mais fácies serão as adequações, adaptações e transferências que ele virá a fazer para outras situações da vida real.

Street (2014, p. 43-44) apresenta duas concepções de letramento. A primeira,

denominado modelo autônomo, está ligada à concepção de letramento dominante na

sociedade; não abre espaço para a formação de sujeitos leitores competentes, que

sejam capazes de identificar e diferenciar como a língua é apropriada em diferentes

situações de interação, por ter uma visão única do ato do letrar, ligada a progressão

individual do sujeito. A segunda concepção, o modelo ideológico, contrapõe à primeira,

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ligando-se a práticas plurais de letramento, que “são social e culturalmente

determinadas, e, como tal, os significados específicos que a escrita assume para um

grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida”.

A escola precisa abrir espaço para que se possa desenvolver projetos que visem

incorporar práticas de letramento que visualizem leitura, escrita, oralidade e análise

linguística dentro de contextos específicos de produção cultural. A partir dessas

práticas, em que os educandos se tornam protagonistas de seus discursos, veremos

que as práticas de letramento, aquelas que transpassam pelo modelo ideológico

apontado por Street (2014), promovem a capacidade de identificar e diferenciar a

apropriação da língua em diferentes situações de interação, desenvolvendo

habilidades e competências para uma tomada de decisões e mudança de vida.

3 BREVE CONTEXTO DA EJA

As transformações sociais, políticas, econômicas e culturais de nossa sociedade

repercutem drasticamente no conceito de que se entende por ensinar, principalmente

quando o cenário representado é a EJA. Já dizia Paulo Freire (1996) que ensinar

inexiste sem aprender e vice versa. Ele explica que foi aprendendo

socialmente/historicamente que homens e mulheres descobriram que era possível

ensinar.

Não podemos separar uma pessoa, enquanto sujeito marcado sócio-histórico e

culturalmente, de sua realidade, levando-a até salas de aulas para “ensinar” técnicas,

"macetes" de como fazer/dizer isso ou aquilo. Nas últimas décadas, o ensino de língua

materna tem sido alvo de muitas críticas. Como ensinar? Ensinar o que? Essas são

perguntas que movem o ideário de muitas pesquisas. O fato é que não há regra fixa de

ensino, o que temos são possibilidades e referências experimentais de adequação de

alguns modelos didáticos aos vários contextos de atuação do professor de língua

materna na sociedade da diversidade.

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Buscando dirigir nosso olhar para o ensino de língua(gens) em turmas da EJA

(Ensino Médio), avaliamos necessário perfazermos um percurso pela própria história

dessa modalidade de ensino, compreendendo o perfil dos educandos na atualidade,

atentando para as orientações das políticas educacionais e a organização curricular

presentes nas escolas que oferecem esta modalidade educacional.

Paulo Freire foi um marco quando se fala da EJA. No final da década de 1950,

cria uma nova perspectiva na educação brasileira. Ele desenvolveu uma prática

pedagógica voltada para as necessidades de camadas populares. Os princípios de

educação popular foram assim implantados às práticas de ensino da EJA. O golpe

militar, ocorrido em 1964, apagou muitas das experiências dessa nova abordagem de

ensino. Destaca-se o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), criado e

moldado por uma estrutura doutrinária e centralizadora que deixava de lado a

realidade dos alunos desfavorecidos.

Nesse período havia intensa migração rural-urbana, desconsiderado pelo

sistema educacional vigente. A prioridade era a implantação industrial-urbano,

moldada pelos padrões capitalistas. Na década de 1990 foi promulgada a lei que

considerou a EJA modalidade da Educação Básica, dentro das leis de Diretrizes e Bases

da Educação Nacional, Lei n° 9394/96.

Como observado, a demanda de estudantes da EJA transpassa por contextos

culturais, históricos e sociais específicos/peculiares, que acompanham a história da

educação popular. Isso faz com que a escola busque outras maneiras/modos de

ensinar. No Ensino Médio EJA, a inserção cada vez mais cedo dos jovens no mercado

de trabalho, faz com que muitos procurem terminar seus estudos para se qualificarem.

Há maior parte do alunado da EJA pertence à classe trabalhadora. O ensino deve levar

em consideração esse fato, atendendo melhor essa demanda educacional. Quando

isso é possível, essa modalidade deixa de ser apenas aquela em que se ensina a ler e

escrever, passa a se tornar uma esperança para muitos alunos que esperam reaver o

tempo perdido e buscar uma vida social melhor, mais digna.

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Paulo Freire (2000, p.22) diz que “a leitura da palavra é precedida pela leitura

do mundo”. Segundo o autor, nossa primeira vivência com o mundo deveria ser o

universo de todas as pessoas, de todos os grupos, expressando a realidade de cada um

através de sua linguagem. Ensinar leitura, escrita ou oralidade na escola não pode

negligenciar e deixar de lado o dialogismo da língua (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1999), o

outro, que é sujeito do processo de construção dessas práticas.

As Diretrizes Nacionais em Educação (BRASIL, 2006, p.13), ao discorrer sobre a

Reorientação Curricular para EJA (Ensino Médio)1 apontam que a proposta para o

ensino de língua é justamente “criar as condições para que os alunos possam

comunicar-se em várias linguagens, respeitando as diferenças”. Essa proposta deve

fazer com que o aluno da EJA “se sinta protagonista no processo de produção e

recepção de conhecimentos”.

Sobre o direito que todos têm de manter a história viva, de aprender a se

tornar bons cidadãos, a respeitar o diferente, a cultura do Outro, a compartilhar

experiências, vale ressaltar o direcionamento dos PCN (BRASIL, 1998, p. 117):

A escola deve ser local de aprendizagem de que as regras do espaço público permitem a coexistência, em igualdade, dos diferentes. O trabalho com Pluralidade Cultural se dá a cada instante, exige que a escola alimente uma 'Cultura da Paz', baseada na tolerância, no respeito aos direitos humanos e na noção de cidadania compartilhada por todos os brasileiros.

É preciso que seja estimulada uma prática social de letramento permanente,

movida pelo desejo de saber, de aperfeiçoar-se, rompendo silêncios impostos pelos

perversos processos de exclusão do sistema escolar.

1 1Disponível em: http://www.conexaoprofessor.rj.gov.br/downloads/LIVROVI_EJA_medio.pdf. Acesso

em 25/10/2015.

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4 CORDEL E ENSINO DE LINGUAGENS

As práticas de letramento mediadas por folhetos de cordel ocorrem através de

atividades variadas e multifacetadas, que decorrem de forma prazerosa, pelo fato de

essa forma de expressão popular ter como marca a tradição oral, o humor, entre

outros aspectos necessários ao desenvolvimento de práticas exitosas em ambiente

escolar que instiguem os alunos para uma aprendizagem satisfatória.

Segundo Lima (2000, p.19),

O cordel é uma das formas de expressão linguístico-cultural, resultante de um vasto sistema de interferências do viver dos seus produtores, leitores e ouvintes. Indivíduos quase sempre, oriundos das camadas populares, que constroem em suas poesias uma trama onde símbolos de suas identidades estão amalgamados aos símbolos de suas experiências e trocas com as demais camadas da sociedade.

Rodrigues (2006; 2011) explica que o poeta popular transmite, por experiência

própria, os prazeres e augúrios do povo nordestino, atuando como instrumento de

uma memória coletiva através de temas que envolvem heroísmo, o sagrado, histórias

míticas/místicas e lendárias, que perpassam e entrelaçam o real e o ficcional. Para ele,

observa-se nesta expressão linguístico-literário grande variedade de temas,

tradicionais ou contemporâneos, que refletem a vivência popular, desde os problemas

atuais até a conservação de narrativas inspiradas no imaginário do povo e proveniente

da cultura oral.

Evaristo (2000, p.120) enfatiza que

Em termos atuais, pode-se dizer que o cordel mantém, enquanto narrativa, algumas características de origem, como a função social educativa, de ensinamento, aconselhamento, e não apenas entretenimento ou fruição individual... O cordel absolveu algumas tendências da modernidade, entre elas a veiculação de informações: alguns fatos do cotidiano passam a constituir, muitas vezes, sua temática.

Para atender as necessidades sóciocomunicativas do cotidiano, os alunos fazem

uso, lendo e escrevendo textos, muito antes de frequentarem a escola. Entendemos

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que a utilização do cordel em eventos de letramento escolar permite a realização de

práticas pedagógicas exitosas, principalmente quando nos dirigimos para o público da

EJA.

Como já evidenciamos, os cordelistas não tiveram acesso aos saberes escolares

(e mesmo acadêmicos), mas se utilizam da letra, da palavra, isto é, do cordel como

forma de interação, agindo linguisticamente para uma atuação profissional de

produzir, comercializar e permitir que essa tradição oral, evidenciada pela produção de

folhetos impressos, mantenha-se sócio-historicamente pela plasticidade cultural

(RODRIGUES, 2009; 2013). Eles fazem uso do cordel como prática sócio-comunicativa,

mesmo não desenvolvendo os letramentos que geralmente se encontram no ambiente

escolar.

Em trabalho anterior, Silva (2014, p.74) defende que o cordel é um importante

instrumento de representação da memória popular, revelando retratos de uma região

e de uma sociedade. O cordel descreve, de maneira significativa, valores, crenças e

costumes de um povo em contato com o meio social, a cultural regional e a história

que dá coerência aos seus atos e o faz conhecedor das coisas de um mundo.

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5 O CORDEL EM EVENTOS DE LETRAMENTO NA EJA – UM ESTUDO DE CASO

De forma didática, buscamos descrever algumas atividades realizadas a partir

de um trabalho com folhetos de cordel. O Projeto Paraíba minha Terra, minha Gente:

Literatura de cordel e interdisciplinaridades no cotidiano curricular e cultural na EJA

teve como meta e objetivo principal o fortalecimento das práticas de leitura, oralidade

e escrita numa turma de 2° ano médio EJA, da Escola Estadual Dr. Trajano Nóbrega,

Soledade - PB.

Inicialmente, elaboramos um cronograma, traçando metas e objetivos a serem

alcançados com o projeto, através de práticas e eventos de letramento. Através da

temática “Paraíba, minha terra, minha gente” entrelaçamos diversas atividades, para

propiciar ao aluno o contato com o maior número possível de gêneros textuais, além

dos cordéis. Outros professores da escola participaram das atividades, com o intuito

de promover o conhecimento de forma ampliada, interdisciplinar.

As imagens seguintes (figuras 1 e 2) demonstram o arranjo composicional da

cena que ilustra o desenvolvimento e o envolvimento do projeto descrito na escola

campo de nossa pesquisa:

Figura 1: Entrada da sala do projeto

Fonte: Acervo do pesquisador

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Figura 2: Alunos e professores2

Fonte: Acervo do pesquisador

Várias atividades foram realizadas no ambiente de sala de aula e também fora

dela, em atividades individuais e em grupo, para que o processo de ensino pudesse ser

mais prazeroso e assim realizar o desenvolvimento de um processo de letramento que

perpassasse a realidade social dos sujeitos envolvidos com a letra própria de sua

comunidade.

Seguimos com os trabalhos em equipe, que eram realizados tanto em sala de

aula como fora dela: pinturas, desenhos, confecção de cartazes, elaboração de roteiros

para apresentação do projeto, resumo e pesquisa sobre os principais cordelistas da

região, com destaque para Leandro Gomes de Barros, além de escritores consagrados

da literatura paraibana, a exemplo de Ariano Suassuna, José Lins do Rêgo e Augusto

dos Anjos.

Fizemos um momento de motivação inicial, ouvindo a canção "Paraíba joia

rara” do cantor paraibano Ton Oliveira. A música fala da riqueza e alegria de ser

paraibano. Através da exibição de um vídeo intitulado “Conheça a Paraíba”, os alunos

se motivaram grandemente para dar sequência às atividades. O vídeo apresenta a

Paraíba como um recanto bonito do Brasil, exibindo sua riqueza cultural, seus recursos

e encantos naturais, sua infraestrutura e hospitalidade das pessoas que habitam essa

região do Brasil. Foram destacados também os legados arqueológicos e, em seguida, a

apreciação do cardápio regional e da arte popular nordestina.

2 Atentando à ética científica, optamos por manter preservadas as identidades dos colaboradores da

pesquisa.

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Os alunos se encantaram com a região. Muitos não conheciam a capital do

estado, então decidimos fazer uma viagem a João Pessoa para conhecer alguns pontos

turísticos da cidade. Além de outros pontos turísticos, tais como: o vale dos

dinossauros em Sousa; o Pico do Jabre em Maturéia; Patos, conhecida como a morada

do Sol; e o Maior São João do Mundo em Campina Grande; com destaque para

Soledade, cidade natal dos envolvidos com esse processo de letramento.

Apoiados pelo material didático elaborado para o trabalho escolar, iniciamos

então atividades em sala de aula, no que se refere ao contexto cultural e histórico da

literatura na Paraíba, especialmente a literatura de cordel. Expomos um comentário

geral sobre o cordel: sua origem; os objetivos de produção; a linguagem; principais

temas e estrutura textual. Pensamos com a turma sobre o valor sociocultural e

histórico dos cordéis, sua função em nossa região como instrumento de

comunicação/interação.

É sabido que em projetos de leitura, escrita, etc. que se baseiam em imposições

de regras e normas técnicas ao aluno, em que o professor busca apenas o

cumprimento de um programa curricular, o aprendizado da língua se torna prática

desestimulante e improdutiva, por muitas vezes ficar distante da realidade e das

perspectivas dos alunos. Na nossa prática, ora relatada, o resultado foi diferente. Em

sala de aula foram lidos vários cordéis, que perfaziam o universo contextual dos

alunos. A partir de atividades direcionadas, fizemos leituras coletivas com os alunos

que se dispuseram a participar. É fato que o cordel atraiu a atenção do alunado.

Percebemos que o aluno entrou em contato direto com o texto, vivenciando a

experiência com a leitura, o que esta de acordo com o proposto nas OCEM (BRASIL,

2006, p.33), ao relatarem que o momento da leitura deve ser caracterizado como uma

situação significativa de interação entre o aluno e os mais diversos aspectos que

compõem o texto.

Os cordéis foram lidos e discutidos com atenção para expressões e palavras

utilizadas no nordeste brasileiro, algumas desconhecidas em outras regiões do país.

Desse modo, percebemos que o trabalho com cordéis desperta nos alunos a

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capacidade de observação da diversidade linguística, sociocultural, histórica, política e

econômica. O destaque para região Nordeste de nosso país, nos estudos realizados,

deu-se pelo fato de que o cordel encontrou condições favoráveis nesse região para a

produção e propagação desse gênero textual/literário. Por essa razão, enveredamos

também pelo estudo dos sentidos inerentes às expressões que caracterizam a

realidade local do povo paraibano/nordestino.

A experiência da leitura é uma tarefa árdua quando a praticamos para

preencher fichas de leitura, responder exercícios ou como pretexto para trabalhar a

gramática, atividades sem sentido para o aluno. Outro dado é que para muitos alunos,

a literatura pode ser "agradável" e "prazerosa"; já outros não conseguem enxergar

sentido na leitura dos textos literários, preferindo assistir televisão, ouvir música, fazer

outras atividades que exijam menos esforço de compreensão. Por essa razão, nos

encontros subsequentes fizemos uma apresentação sobre grandes nomes da literatura

de cordel, com destaque para poetas de nossa região. Buscamos trabalhar com

gêneros textuais variados e funcionais para a prática desenvolvida no projeto:

resumos, biografias, relatórios, entre outros.

Ao trabalharmos os textos dos escritores paraibanos buscamos realizar uma

metodologia inovadora em sala de aula, que atendesse a demanda dos alunos da EJA.

Sabemos que durante muito tempo, a leitura literária foi vista de maneira equivocada,

por não haver interesse significativo na busca pela compreensão do texto e seu

respectivo contexto. Trabalhamos também com grandes personalidades de nossa

terra, a exemplo dos cantores paraibanos Elba Ramalho, Zé Ramalho, Geraldo Vandré,

Jackson do Pandeiro, Flávio José, Ton Oliveira, entre outros. Ainda em sala de aula,

exibimos uma reportagem especial do programa Terra da gente sobre a Paraíba e

também outra reportagem exibida pelo programa Globo Rural sobre Leandro Gomes

de Barros, considerado pai do cordel no Brasil. Cada vez mais observávamos o

interesse dos alunos aumentar na participação das atividades do projeto.

As pesquisas realizadas pelos alunos foram socializadas através de seminários.

Os alunos formaram grupos, divididos por temáticas; eles teriam a liberdade de

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escolher a forma como socializar o conhecimento adquirido através das pesquisas:

poderiam trazer vídeos, cartazes, apresentação de peças teatrais, exibição de músicas,

documentários, entre outras práticas que compusessem seus eventos de letramento.

Todos se interessaram bastante e as atividades foram realizadas com sucesso. Cada

grupo tinha a oportunidade de se avaliar e podiam contribuir com a avaliação dos

demais colegas.

Durante a Semana Cultural promovida na cidade, a escola realizou mostras

culturais. Na oportunidade, o projeto em foco foi apresentado para a comunidade

escolar e local. Como ilustram as figuras subsequentes (figuras 3, 4 e 5):

Figura 3: Mapa da Paraíba com a variação linguística da região

Fonte: Acervo do pesquisador

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Figura 4: Histórico de governadores

Fonte: Acervo do pesquisador

Figura 5: Grandes nomes da literatura paraibana

Fonte: Acervo do pesquisador

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Os alunos se envolveram com o evento de letramento supracitado (Mostra

Cultural), apresentaram para as pessoas que visitaram a mostra pedagógica,

informando sobre a vida e obra dos poetas cordelistas da região, dentre outras

atividades. Aqueles que visitaram a sala recebiam mostras alimentares (rapadura e

mugunzá) que representavam a culinária local. Muitos alunos, pais, professores,

inclusive pessoas de outras cidades visitaram a mostra. Na banca de cordéis, elemento

exótico para muitos visitantes, as pessoas recebiam informações sobre esta forma

linguístico-literária de expressão cultural de nossa região.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na qualidade de professores de língua materna, precisamos repensar nossas

práticas tentando valorizar e explorar o vasto campo de possibilidades de leitura que

um texto permite, buscando estabelecer pontes capazes de fazer com que os alunos

percebam os diferentes sentidos, frutos da união do contexto de escrita e o contexto

do leitor, preparando-os como leitores perspicazes que busquem no texto sua

essência, tendo em mente a concepção de leitura como compreensão e interação do

mundo mediante outras leituras possíveis e/ou já realizadas.

Nosso trabalho apresentou o desenvolvimento de práticas e eventos de

letramento, sugerindo possibilidades para o incremento de atividades a partir de um

processo de letramento mediado por folhetos de cordel em ambiente escolar.

Constatamos que muitos alunos da EJA tinham aversão a ler, escrever e desenvolver a

competência oral e analítica/reflexiva da linguagem em práticas de letramento escolar.

Na escola, o motivo se dá pela falta de atividades que se relacionem com práticas

sociais de usos efetivos da língua. Cabe ao professor de língua materna oferecer

subsídios e propostas para solucionar problemas locais, possibilitando outras formas

de aprender, incrementadas no modelo ideológico de letramento.

O trabalho com cordéis em nossa prática de professor-pesquisador permitiu o

desenvolvimento de atividades diversas, destacando no campo de pesquisa a ação da

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cultura popular nordestina se efetivando em processo de letramento escolar/literário.

Diante da multiplicidade de temas trazidos por essa forma de expressão popular de

nossa região, demonstramos ser o cordel um elemento inerente a prática de ensino-

aprendizagem língua materna no Nordeste, transformando o ambiente escolar em

espaço de legitimação da letra, fazendo com que alunos da EJA, professores e a

comunidade escolar atuem como protagonistas de uma ação sociocultural apoiada no

texto, dialogando tempo, espaço e sujeitos locais.

REFERÊNCIAS

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