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O Formalismo como sistema Flávio R. Kothe O formalismo russo não só vê a obra literária e a própria literatura como sistemas, mas ele mesmo se constitui em sistema. Isto encontra seu fundamento e seu ponto de partida Sklovskij (especialmente nos ensaios “A Ressureição da Palavra” e “A Arte como Procedimento”), mas se mostra de modo mais claro em Tynianov. Sistema é um conjunto de elementos coerentes entre si e distintos de seu meio. Eles são organizados segundo um determinado princípio que é a dominante. Sistema e dominante são categorias que se implicam mutuamente. A dominante é o governo do sistema. A dominante do Formalismo russo é o conceito de estranhamento. Ele está, portanto, presente em todos os conceitos do sistema que ele constitui e organiza. A existência da dominante permite estabelecer conexões entre conceitos que aparentam ser totalmente desvinculados. A conexão não é mera projeção do analista atual, mas existe objetivamente como traço de união estabelecido pela dominante conceitual. No Formalismo, a forma artística aparece como deformação do material; os próprios conceitos básicos do Formalismo, porém, sofrem o influxo da vontade da dominante. Isto não elimina as diferenças específicas entre esses conceitos, mas, sendo enfatizado o ponto de conexão, a identidade, entre esses elementos, tende a haver um processo de castração dessas diferenças. É o ponto de conexão que permite ver certas coisas, mas obriga também a deixar de ver e considerar a outras, que, contudo, ainda fazem parte do objeto que o modelo quis captar. O primeiro esforço a ser feito é compreender o âmbito do possibilitado pela dominante; o esforço seguinte é o de, completamente, entender o não abarcado pela dominante. Isto leva, porém, à superação do sistema inicialmente proposto. A dominante manifestase em todos e em cada um dos elementos dominados, os quais ela seleciona e controla. Ela gosta de esconder a sua presença e camuflar a sua

O Formalismo Como Sistema - Flavio Kothe

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Texto de Flávio R. Kothe para o Suplemento de Literatura de Minas Gerais

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  • O Formalismo como sistema

    Flvio R. Kothe

    O formalismo russo no s v a obra literria e a prpria literatura como sistemas,

    mas ele mesmo se constitui em sistema. Isto encontra seu fundamento e seu ponto de

    partida Sklovskij (especialmente nos ensaios A Ressureio da Palavra e A Arte

    como Procedimento), mas se mostra de modo mais claro em Tynianov.

    Sistema um conjunto de elementos coerentes entre si e distintos de seu meio. Eles

    so organizados segundo um determinado princpio que a dominante. Sistema e

    dominante so categorias que se implicam mutuamente. A dominante o governo

    do sistema. A dominante do Formalismo russo o conceito de estranhamento. Ele

    est, portanto, presente em todos os conceitos do sistema que ele constitui e

    organiza.

    A existncia da dominante permite estabelecer conexes entre conceitos que

    aparentam ser totalmente desvinculados. A conexo no mera projeo do analista

    atual, mas existe objetivamente como trao de unio estabelecido pela dominante

    conceitual. No Formalismo, a forma artstica aparece como deformao do material;

    os prprios conceitos bsicos do Formalismo, porm, sofrem o influxo da vontade

    da dominante. Isto no elimina as diferenas especficas entre esses conceitos, mas,

    sendo enfatizado o ponto de conexo, a identidade, entre esses elementos, tende a

    haver um processo de castrao dessas diferenas. o ponto de conexo que

    permite ver certas coisas, mas obriga tambm a deixar de ver e considerar a outras,

    que, contudo, ainda fazem parte do objeto que o modelo quis captar. O primeiro

    esforo a ser feito compreender o mbito do possibilitado pela dominante; o

    esforo seguinte o de, completamente, entender o no abarcado pela dominante.

    Isto leva, porm, superao do sistema inicialmente proposto.

    A dominante manifesta-se em todos e em cada um dos elementos dominados, os

    quais ela seleciona e controla. Ela gosta de esconder a sua presena e camuflar a sua

  • natureza, pois ela a dimenso no s das possibilidades como tambm dos limites

    do sistema a que constitui. A dominante o particular que procura apresentar-se

    como o universal; procura, alm disso, mostrar o carter particular do sistema como

    abarcante do universal. Questionada a dominante, todo o sistema comea a oscilar.

    A dominante procura, por isso, disfarar a sua presenaa e at a sua existncia:

    assim consegue sobreviver melhor e consegue impor mais o seu sistema. Quem

    melhor questionou a dominante do Formalismo russo foi Pavel Medvedev, j em

    1928.

    Sistema e dominante so a retomada e o espelhamento do social no plano lgico. O

    sistema s entendido como sistema quando j comea a ultrapassar as suas

    fronteiras. A anlise imanente de um sistema s consegue descobrir-se como

    imanente quando comea a deixar de ser apenas imanente. Em si, ela s se

    movimenta dentro dos limites e das fronteiras do sistema. Sem compreender ou

    vislumbrar o outro daquilo a que ela analisa no sistema, ela tambm no capaz de

    entender propriamente a natureza do que ela pretende estar analisando. Com isso,

    ela tambm tende a no conseguir ultrapassar os limites do sistema que a prpria

    anlise se inclina a constituir.

    A anlise restritamente imanente, no conseguindo captar o sistema como sistema,

    no consegue avaliar o poderio das linhas de fora que o organizam: deixa-se,

    portanto, levar por elas, sem captar o ndice de liberdade representado pelo outro

    do sistema. A anlise imanente est dentro de uma jaula sem ver as grandes que

    cercam e limitam o seu espao.

    A dominante repousa basicamente na categoria da identidade; o sistema

    necessariamente acompanha isto, tendendo a negar o novo e o diversificado. A

    dominante s aceita o diferente que se submeta sua dominao: para tanto, este

    tem de negar o seu carter mais prprio de ser algo diferente, submetendo-se a ser

    uma espcie de representao local e parcial da dominante.

  • A dominante procura exibir apenas uma face positiva: a de ser a canalizao e a

    conjugao das foras presentes no sistema. Ela busca esconder ou negar a

    represso que exerce para com tudo o que no se adeque sua dominao. A

    dominante deforma os outros elementos dominados, inserindo-os no sistema, de

    modo tal que eles acabam dizendo aquilo que a dominante quer que eles digam. A

    obra de arte o palco em que a classe dominante tanto atravs dos artistas que

    sempre a serviram ou que a ela pertenceram, quanto atravs do pblico que a

    contemplou exerceu e exercitou ludicamente o plano ideal de sua dominao.

    Sistema e constelao so categorias similares, mas bastante contrapostas. O

    sistema o centrpeto: seu centro a dominante. A constelao centrfuga, ou

    melhor, no tem centro, realiza-se como negao do centro. No nega a grandeza

    maior de certas estrelas; estas podem at ofuscar a presena de estrelas menores. A

    constelao vive, porem, da existncia de estrelas de varias grandezas, realizando-se

    no jogo de lusco-fusco que se instaura entre elas. Parece que a categoria de sistema

    se adequa mais obra tradicional orgnica, enquanto que a constelao serve mais

    para o entendimento da obra inorgnica de vanguarda, nascida sob o signo do

    inconformismo.

    A dominante guarda em si uma grave inclinao para o suicdio: de tanto excluir,

    acaba excluindo a si mesma. A dominante s dominante em funo dos elementos

    dominados. Sem estes, ela deixa de ser dominante. Caso se examine, por exemplo, a

    historiografia literria, verifica-se que o sistema literrio nunca examinado. Tudo

    construdo apenas base daquilo que, a posteriori, foi considerado ser a escola

    dominante de uma poca. O sistema eliminado. Ocorre a uma espcie de

    decapitao: fica-se s com a cabea e o corpo eliminado. Como se sabe, uma

    cabea decapitada no mais uma cabea viva. pouco o que resta do sistema

    literrio havido, mas este resto apresentado como a prpria realidade, sem o

    critrio de seleo (e excluso) seja explicitado nem se mostre como parcial.

  • As Histrias da Literatura no so, portanto, histrias: so meras crnicas da famlia

    real. Contam casamentos e outras ligaes, narram achaques da rainha e eventos

    semelhantes, mas ignoram completamente a verdadeira histria, que social e

    transcende em muito o mbito do que a realeza (aparente) privilegia para si. Essa

    histria no pode ser narrada como crnica: exige a descrio. Nossas Histrias da

    Literatura no so Histrias da Literatura: so crticas sobre autores, sobre

    autoridades literrias.

    Se hoje, de um ponto de vista filosfico (V. Nietsche, Adorno, Derrida, Deleuze), o

    conceito de sistema parece insatisfatrio por ser muito limitador, verifica-se que,

    para o mbito da historiografia literria ele se mostra to amplo que suas

    possibilidades no foram aqui ainda muito exploradas. Ele, apesar de poder ser

    criticado por ser excludente, acaba sendo uma crtica radical maneira de terem

    sido levados os estudos historiogrficos. As crticas j existentes a ele podem,

    porm, servir para evitar erros em pesquisas concretas.

    preciso jogar na tenso que se estabelece entre a literatura como um sistema

    amplo, no qual, atravs de uma peneiragem radical, se chegue dominante que

    constituda pelas poucas obras que realmente possam ser consideradas Literatura.

    Como j foi dito, o Formalismo russo foi o movimento que examinou a literatura

    como sistema. Pode-se observar, por outro lado, que ele mesmo constitui um

    sistema, que se apresenta do modo mais claro, coerente sistemtico, nos vrios

    ensaios de Tynianov. Assim, possvel, por exemplo, estabelecer conexes, atravs

    da dominante que constituda pela categoria do estranhamento, entre conceitos

    afastados como os de pardia e rima (1).

    A pardia um texto que procura causar um distanciamento crtico em relao a um

    outro texto, com o qual tem uma semelhanaa bsica, sendo que as pequenas

    diferenas assumem por isso uma carga semntica potencializada. Esse

    distanciamento crtico um modo de estranhamento. De maneira parecida, a

  • condio da rima est na ao progressiva de seu primeiro membro e na ao

    regressiva do segundo. Pela semelhanaa sonora e rtmica, criam-se a novas

    possibilidades semnticas. H um processo de estranhamento, de retomada

    diferenciadora, do segundo membro com o membro rimado, de um modo

    basicamente semelhante ao que ocorre na pardia. A parecena entre rima e

    pardia, no explicitada por Tynianov, decorre da dominante o estranhamento

    que lhes serve de denominador comum e que constitui a dominante do sistema a

    que esses dois conceitos pertencem.

    No ensaio sobre O Fato Literrio (2), Tynianov, numa perspectiva restritamente

    formalista, apresentou a evoluo literria como correndo nas seguintes etapas: 1)

    como contraste a um principio de construo automatizado, constitui-se,

    dialeticamente, um principio de construo contrrio; 2) o novo princpio encontra

    aplicao; 3) ele se expande, torna-se apario em massa; 4) ele se automatiza e

    provoca princpios de construo contrapostos. Para entender a complexidade da

    evoluo literria, esta explicao puramente formal insuficiente. Ela insuficiente

    em relao prpria teoria de Tynianov presente no ensaio sobre A Evoluo

    Literria (3), pois no considera a correlao com elementos de outras sries.

    A referida explicao serve, porm, para esclarecer a evoluo interna do prprio

    Formalismo russo, que surgiu como contraposio critica biografizante e

    simbolista, procurou expandir seu princpio de construo, aplicando-o no s

    retrica e ao Cinema, e acabou sendo superado pelo crculo de Bakhtine e pela

    Escola de Praga. Isto quer dizer que o Formalismo no s desenvolveu o

    instrumental metalingustico para a compreenso da obra literria, mas forneceu ao

    mesmo tempo, sem explicit-los, os instrumentos conceituais para a compreenso

    dele mesmo.

    No ensaio sobre Problemas da Linguagem Potica (4), Tynianov mostra-se

    basicamente preocupado com o contato de fatores de uma srie com fatores de

    outra srie. que atravs desse contato ocorre um processo de estranhamento de

  • cada uma das sries em relao outra. Nota-se tambm que o Autor, polemizando

    contra a tendncia de se querer explicar a poesia s por sua dimenso auditiva,

    destaca a os equivalentes do texto potico, isto , todos os elementos verbais que de

    um modo ou outro o substituem. Em Tynianov tal substituio se d dentro do

    poema, sendo substituda uma parte dele que tem sua correspondncia em outra,

    que est nele representada (um verso, uma estrofe, etc.). Pode-se, porm, ampliar

    este conceito e admitir que o poema todo (por exemplo, poema fnico dos

    dadastas) funcione como equivalente sendo a srie potica ento a unidade maior.

    De um modo ou de outro, o que se alcana uma contnua transgresso do

    automatismo, um contnuo pr em relevo o fator construtivo com a consequente

    reformulao dos fatores subordinados (p. 32 1o volume). Isto estranhamento.

    A nvel do metro, a frustrao da expectativa atravs da quebra da regularidade

    rtmica um processo de estranhamento, de quebra do automatismo. Toda a

    preocupao de Tynianov em torno do verso livre se d em funo do contraste

    entre linguagem potica e linguagem prosaica: o verso livre no uma aproximao

    entre ambas, mas uma atualizao de um momento da prosa na linguagem potica,

    de modo a destacar o contraste entre ambas, quebrando o automatismo e

    acarretando, portanto, um estranhamento. Pelo mnimo esta a maneira do

    problema ser encarado dentro do sistema do Formalismo.

    Quando Tynianov se preocupa a com o cancelamento do indcio fundamental da

    palavra ou ento com palavras que se tornam representativas de grupos de

    palavras, ele est no fundo preocupado com o contaste, o choque, a

    desautomatizao que acarreada quando tais palavras so inseridas numa

    sequencia verbal que no lhes tpica ou habitual. sempre o conceito de

    estranhamento que est atuando a de modo mais ou menos claro.

    Pode surpreender, mas o conceito de estranhamento que est subjacente ao

    conceito de instrumentao, ou seja, s repeties de grupos sonoros que se

    evidenciam do fundo recitativo do todo (p. 74 do 2o volume). O estranhamento, que

  • , afinal, um processo de marcao da diferena, decorre a da repetio de sons ou

    grupos de sons, isto , ele decorre de um certo grau de identidade que marca o

    grupo em contraste ao relativamente confuso e catico jogo de diferenas que

    caracteriza a linguagem costumeira.

    O carter sistemtico do pensamento de Tynianov, construdo base de categoria

    do estranhamento, no se restringe a seus ensaios sobre Literatura, mas abarca

    tambm os seus ensaios sobre Retrica e Cinema. Entre os seus estudos sobre

    poesia e seu ensaio sobre Retrica coloca-se o estudo sobre A Ode como Gnero

    Oratrico (5).

    Neste estudo, de 1922, a obra literria vista como um sistema de fatores

    correlacionados. Em vista do sistema como um todo, a correlao de cada elemento

    para com os demais a sua funo. O fator que passa a dirigir os demais o fator

    dominante. O sistema literrio est em correlao com as outras sries artsticas e

    com a linguagem cotidiana: essas correlaes permitem que a obra literria se

    constitua como algo especifico, porque fazem com que ela atravesse, em cada um

    dos seus elementos, um processo, de estranhamento para com os demais. Isto se

    torna mais patente no momento em que ocorre uma aproximao maior (real ou

    aparente) entre sries ou/e obras, como o caso da ode, que , afinal, o gnero

    potico mais voltado para a Retrica. O estranhamento , ento, o que possibilita a

    cada obra ser o que ela ; o estranhamento acaba sendo a prpria condio de

    existncia da literatura.

    preciso lembrar ainda que nas teses de 1928 sobre Os Problemas dos Estudos

    Literarios e Linguisticos(6), redigidas por Jakobson e Tynianov, estabelecendo uma

    ponte entre o Formalismo russo e o Estruturalismo tcheco, o conceito de sistema e o

    de estrutura aparecem como equivalentes.

    A preocupao de Tynianov quanto ode, assim como a sua preocupao quanto

    pardia, estilizao, aos equivalentes, etc., decorre da explorao sistemtica das

  • possibilidades oferecidas pelo conceito de estranhamento. Este se mostra

    extremamente fecundo. Nunca foi, porm, discutido e aprofundado em suas

    dimenses esttico-filosficas. Procurando explicitar as suas aplicaes especificas,

    os formalistas no o ligaram ao conceitos de mimese, do qual ele um equivalente,

    desde que mimese no seja entendida como identidade nem identificao (cpia).

    No prprio movimento de aproximao (de uma obra a outra, de um gnero

    literrio a outro, da linguagem potica linguagem cotidiana, etc.), no prprio

    momento em que a identidade parece querer impor-se eis que ocorre uma reao

    estranha na literatura: o prprio gesto de aproximao provoca uma reao

    proporcionalmente contrria, que se guarda e resguarda no gesto mesmo de

    aproximao. Quanto maior a aparncia de identidade, tanto mais intensa tende a se

    mostrar a diferena.

    Segundo Tynianov, a ode um gnero potico que ja foi considerado sinnimo de

    poesia, mas que praticamente havia desaparecido. Enquanto gnero literrio pode

    desaparecer, mas o que no desaparece o gesto que a inspira e origina, o gesto de

    aproximao da poeisa para com a eficcia social e a exposio oral. Note-se que j

    a se torna presente um momento que uma negao de posies mais dogmticas

    do primeiro Formalismo: j se passa a considerar a inteno social da obra como

    algo que determina fundamentalmente o prprio princpio de construo da obra.

    Isto quase que se imps aos formalistas quando, em 1924, publicaram na revista

    LEF um conjunto de ensaios osbre a linguagem e o estilo de Lnin (7). Apesar de no

    estarem voltados para o estudo do nvel ideolgico, o seu objeto de estudos obrigou-

    os a admitir que a inteno de eficcia social de um texto, que s existe num

    processo de comunicao, marca de modo decisivo a prpria estruturao deste

    texto. A estrutura no , portanto, algo extra-social, mas, na literatura,

    intrinsecamente social. S que, naquele momento, os formalistas no foram capazes

    de admitir e levar isto avante de um modo consequente.

  • Tynianov est a preocupado em mostrar como esses artigos, ensaios e discursos,

    voltados para a revoluo da estrutura societria, foram tambm uma inovao

    radical no mbito da Retrica. O importante a que um nvel se mostra intrnseca e

    indissociavelmente ligado ao outro. Retomando o enfoque apresentado no mesmo

    ano no ensaio sobre Problemas da Linguagem Potica, Tynianov examina como

    palavras tpicas de um certo contexto podem ser usadas com eficcia em outro

    contexto, criando um contraste desautomatizador. Do mesmo modo, o uso de aspas

    pode suspende palavras de seu uso habitual, criando um contraste que permite

    dizer algo novo e diferente.

    Segundo Tynianov, para se conseguir que uma palavra seja viva, preciso haver

    alguma espcie de no-concordncia que torne o significado dinmico. Esta no-

    concordncia um modo de estranhamento, que, desde o incio, foi entendido por

    Sklovskij como um processo de retirar os marcos habitualmente caracterizadores de

    um objeto, fazendo com que este se apresentasse de um modo novo,

    desautomatizado.

    No ensaio Sobre os Fundamentos do Filme (8), Tynianov parte da ideia de que a

    pobreza aparente do filme, devida basicamente reduo da tri para a bi

    dimensionalidade, de fato o seu princpio construtivo.

    A tomada, o arrancar o objeto filmado ou fotografado de sua circunstncia para dar-

    lhe a moldura, a montagem, o novo tempo tudo isso constitui um longo processo de

    estranhamento. O estranhamento se mostra, ento, no apenas como um

    procedimento habitual, mas como a prpria possibilidade de constituio desta arte.

    Por outro lado, ressurge a sem ser citado, o conceito de autofuno, entendido

    como o conjunto de correlaes de um elemento da obra com elementos anlogos de

    outras obras e outras sries. o ponto de ligao que possibilita passar da obra

    como sistema para o sistema das artes. Mas tambm a os pontos de conexo se

    marcam ao mesmo tempo como pontos de diferenciao.

  • O papel desempenhado pela unidade da tomada no filme visto por Tynianov como

    idntico ao do verso na poesia. Em ambos, momentos do cotidiano so modificados

    de modo significativo (a palavra no verso; objetos e pessoas no filme); em ambos

    ocorre o princpio da montagem. Tudo isso aproxima o filme mais da poesia que da

    prosa ou do teatro, encontrando-se com as pesquisas ento realizadas por Einstein e

    que so hoje um dos mais ricos files a serem explorados.

    Esta pesquisa realizada em alguns tpicos esparsos da ensastica de Tynianov serve

    para demonstrar que o Formalismo russo se constitui em um sistema, constitui um

    sistema, cuja dominante a categoria do estranhamento. Este sistema, partindo do

    estudo da linguagem potica e nela se encontrando, expandiu-se a ponto de abarcar

    no s a Literatura mais tambm a Retrica e a Cinematografia. A evoluo das

    pesquisas dos formalistas russos guarda em si, miniaturalmente, a evoluo dos

    estudos literrios de um nvel imanente restrito a um nvel semitico. O que porm,

    ocorre quando a dominante deste sistema questionada, como foi feito por

    Medvedev, algo que merece outra pesquisa complementar.

    1) Tynianov, Iurij. Dostoiewskij und Gogol in Das literarische Kunstmittel und die

    Evolution in der Literatur, Frankfurt a. M., Suhrkamp V., 1967

    Idem. O Problema da Linguagem Potica. Rio, Ed. Tempo Brasileiro, 1975 esp. p.

    84.

    2) Tynianov, Iurij. Das literarische Faktum in Das literarische (...) op. cit.

    3) Tynianov, Iurij. De lvolution littraire in Todorov, Tzvetan (d.). Thorie de la

    littrature, Paris, Seuil, 1965.

    4) Tynianov, Iurij. O Problema da Linguagem Potica esp. vol. I, p. 32 e vol. II, p. 74

    ss.

  • 5) Tynianov, Iurij. Die Odes als oratorisches Genre in Stempel, Wolf-Dieter (Hrg.)

    Texte der russischen Formalisten Band 2, Mnchen, Fink V., 1972, esp. p. 274 e 275

    6) Tynianov, Iurij e Jakobson, Roman. Les problmes des tudes littraires et

    linguistiques in Todorov, Tzvetan (ed.). op. cit.

    7) Tynianov, Iurij et alii. Sprache und Stil Lenins, Mnchen, Hanser Verlag, 1970.

    8) Tynianov, Iurij. Uber die Grund lagen des Films in Beilenhoff, Wolfgang (Hrg.).

    Poetik des filmes, Mnchen, Fink V., 1974.