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    Belo Horizonte

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    Carlos Ayres Britto

    O humanismo como categoria

    constitucional

    2ª reimpressão

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    © 2007 Editora Fórum Ltda.  2010 – 1ª reimpressão  2012 – 2ª reimpressão

    É proibida a reprodução total ou parcial desta obra,por qualquer meio eletrônico,

    inclusive por processos xerográcos,

    sem autorização expressa do Editor.

    Editora Fórum Ltda. Av. Afonso Pena, 2770 – 15º/16º andares

    Funcionários – CEP 30130-007Belo Horizonte – Minas Gerais

     Tel.: (31) 2121.4900 / 2121.4949 www.editoraforum.com.br

    [email protected]

    Editor responsável: Luís Cláudio Rodrigues FerreiraCoordenação editorial: Olga M. A. Sousa

    Bibliotecária: Alessandra Rodrigues da Silva – CRB 2459 – 6ª RegiãoProjeto gráco e formatação: Walter SantosCapa: Michelangelo, A criação de Adão, detalhe.

    Britto, Carlos Ayres

    O humanismo como categoria constitucional / Carlos Ayres Britto. 1. ed.2. reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

    124 p.ISBN 978-85-7700-088-3

    1. Humanismo. 2. Poder Judiciário. 3. Justiça. 4. Democracia. 5. Cons-tituição. I. Britto, Carlos Augusto Ayres de Freitas. II. Título.

    CDD: 342  CDU: 342(81)

    B862h

    Informação bibliográca deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da AssociaçãoBrasileira de Normas Técnicas (ABNT):

    BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional . 1. ed. 2. reimp. BeloHorizonte: Fórum, 2010. 124 p. ISBN 978-85-7700-088-3.

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     A todas as pessoas que procuram fazer do

    breve o intenso. Modo infalível de se fazerda eternidade uma experiência.

    Também a todos os juízes que abrem as

     janelas do Direito para o mundo circundante,

    solícitos aos reclamos de uma justiça que sequer tão real quanto a vida que há lá fora.

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    “Bom mesmo é ir à luta com determinação e

    abraçar a vida com paixão, perder com classe

    e vencer com ousadia, pois o triunfo pertence

    a quem mais se atreve e a vida é muito para

    ser insignicante” 

    Charles Chaplin

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    Sumário

    CAP Í TU LO I

    O humanismo como ilustração mental ...............................................................................................15

    CAP Í TU LO I I

    O humanismo como doutrina de exaltação ou culto à humanidade ..........19

    CAP Í TU LO I I I

    O humanismo como expressão de vida coletiva civilizada .......................................25

    CAP Í TU LO I V  

    O humanismo como transubstanciação

    da democracia política, econômico-social e fraternal ........................................................31

    CAP Í TU LO V  

    O necessário vínculo operacional entre humanismo e Direito ..............................37

    CAP Í TU LO V I

    O descompasso entre a teoria e a prática humanista comoatestado de pobreza  eficacial do Direito ............................................................................................43

    CAP Í TU LO V I I

    A imperiosa mudança de mentalidade como condição de

    encurtamento de distância entre o discurso humanista e sua prática .......51

    CAP Í TU LO V I I I

    A mudança de mentalidade que implique analogia entreo humanismo e a justiça e que ainda diferencie justiça

    em abstrato e justiça em concreto ............................................................................................................55

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    C A P Í T U L O I X

    O operador do Direito na condição de ponte  entre a justiçaem abstrato e a justiça em concreto ......................................................................................................59

    C A P Í T U L O X

    A estrutura dual do próprio cérebro humano como impulso

    para a busca da justiça em concreto ....................................................................................................65

    CAP Í TU LO X I

    A inteireza do ser que maneja a reflexão e se abre para a intuição ............71

    CAP Í TU LO X I I

    O sentimento como o lado do cérebro que mais interage

    com o mundo dos valores. O rebento da consciência  .................................................77

    CAP Í TU LO X I I I

    A Constituição como o Direito mais axiológico e de mais forte

    compromisso humanista .......................................................................................................................................87

    CAP Í TU LO X I V  

    A Constituição dirigente como garantia de efetivação do humanismo .....91

    CAP Í TU LO X V  

    A Constituição dirigente como imperativo de reconceituação

    das chamadas “normas constitucionais programáticas” ............................................101

    CAP Í TU LO X V I

    O Poder Judiciário como garantidor da Constituição dirigente

    e do humanismo .........................................................................................................................................................107

    CAP Í TU LO X V I I

    Conclusão: a governabilidade constitucional como o clímax

    da governabilidade humanista ..................................................................................................................115

    BIBLIOGRAFIA .........................................................................................................................................................................119

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    C A P Í T U L O I

    O humanismo

    como ilustração mental

    1.1. Humanismo é vocábulo plurissignificativo.Polissêmico, então, como passamos a expor.

    1.2. Uma das mais conhecidas acepções do verbete

    é de aprofundado conhecimento das línguas e litera-

    turas antigas. Inicialmente, cultivo do grego e do latim.

    Com o passar do tempo, cultivo também do italiano e dofrancês, que nesse conjunto de idiomas é que foi escrita

    a maior parte das obras representa tivas da literatura

    ocidental (nela encartada a poesia). Sem obscurecer,

    registre-se, a contribuição do inglês em que se expressou

    o gênio de William Shakespeare, tanto quanto o espanhol

    de que se valeu Miguel de Cervantes para compor o seuimortal “DON QUIJOTE DE LA MANCHA”.

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    1.3. Outra vertente do vocábulo é a de pendor ou

    gosto pelas ciências ditas “humanas”, em oposição

    ao estudo das ciências tidas como “exatas”. Dicotomia

    que bem se manifestava na antiga divisão dos cursos de

    formação escolar de 2º. grau, aqui no Brasil, em “curso

    clássico” e “curso cientíco”. Ambos preparatórios para o

    exame-vestibular dos cursos de nível superior, sendo queo clássico se destinava ao estudo das ciências humanas;

    também chamadas de ciências sociais.

    1.4. O engate lógico já se percebe: humanista é a

    pessoa versada nas referidas línguas, ou, então, voca-

    cionada para as ciências sociais; pois que se trata deum modelo acadêmico de humanismo. Humanismo

    dos doutos, subjetivado, marcadamente, nos lólogos,

    historiadores, filósofos, juristas, cientistas políticos,

    literatos, enm. Estrato social ainda hoje referido como

     ícone de erudição ou cultura comumente adjetivada de

    enciclopédica. Tudo muito próprio de uma sociedade

    que exagera um pouco no prestígio à pura ilustração

    mental de suas intelectualizadas elites, confundindo,

    não raras vezes, bons costumes com boas maneiras;

    acúmulo mecânico de informações com aprofundada

    formação cultural; talento com memória; conhecimentocom sabedoria.

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    1.5. Era, e ainda é, residualmente, o humanismo

    típico de uma sociedade não por acaso apelidada de

    bacharelesca; ou seja, palavrosa , enfatuada, conser vadora

    (conservadora no plano da Política, conservadora no

    plano das convenções sociais). O que não tem impedido

    o despontar de estudiosos que aliam ao mais sólido lastro

    cultural o mais vivo compromisso com a emancipação

    político-social das massas empobrecidas.

    1.6. O mais vivo compromisso, acresça-se, também

    com o fazer da questão nacional uma trincheira de

    resistência a um tipo de colonialismo mental que responde

    pela descrença em nossa incomparável originalidade.

    Esse colonialismo invisível, camuado, que, na agudapercepção de Eduardo Galeano, “te convence de que a

    servidão é um destino e a impotência, a tua natureza: te

    convence de que não se pode dizer, não se pode fazer,

    não se pode ser” (em O livro dos abraços . 11. ed. Porto

     Alegre: LP&M , 2004. p. 157).

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    C A P Í T U L O I I

    O humanismocomo doutrina de exaltação

    ou culto à humanidade

    2.1. Uma terceira dimensão conceitual do humanismo

    se nos dá como doutrina. Consiste num conjunto de

     princípios que se unicam pelo culto ou reverênciaa esse sujeito universal que é a humanidade inteira.

    Logo, o humanismo no sentido de crença na aventura

    humana. Isto no pressuposto de ser o homem a obra-

    prima da Criação. O “animal político” de que falava

     Aristóteles, porquanto dotado da aptidão de sobrepor ao

    espontâneo mundo da natureza o elaborado mundo da pólis; ou, como viria a teorizar Rousseau, o homem como

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    único ser capaz de pactuar com os seus semelhantes uma

     vida em “estado de sociedade”, tendo por contraponto

    um virginal “estado de natureza”.1

    2.2. De fato, o desenrolar do tempo tem situado

    o gênero humano no centro do universo. Da procla-

    mação de que “o homem é a medida de todas as coisas”

    (Protágoras) ao “cógito” de René Descartes, passando pelamáxima teológica de que todos nós fomos feitos à imagem

    e semelhança de Deus, o certo é que a pessoa humana

    passou a ser vista como portadora de uma dignidade inata.

    Por isso que titular do “inalienável” direito de se assumir

    tal como é: um microcosmo. Devendo-se-lhe assegurar

    todas as condições de busca da felicidade terrena.

    2.3. Essa altissonante dignidade do ser humano está

    pressuposta na Magna Charta Libertatum dos ingleses, de

    1215, e com explicitude passou a gurar nas modernas

    declarações constitucionais de direitos, numa espécie de

    viagem civilizatória sem volta . Isto ainda a partir da própriaInglaterra, sobretudo com a Petition of Right, de 1628,

    1 Ver a obra O contrato social (Princípios de Direito Político), de Jean- Jacques Rousseau, Ediouro, tradução de Antônio de P. Machado,estudo crítico de Afonso Bertagnoli, capítulo VI, p. 34-36. Quanto

    à expressão “estado de sociedade”, de se ver que ela ganhou forosde positivação jurídica na secção I da “Declaração de Direitos”,de Virgínia, datada de 16 de junho de 1776.

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    a Lei de Habeas Corpus, de 1679, e o Ato de Estabelecimento,

    de 12 de junho de 1701, assim como das emblemáticas

    declarações de direitos das revoluções liberais que se

    deram nos Estados Unidos da América e na França.

     Aqui, tendo por linha de partida  a famosa “Declaração dos

    Direitos do Homem e do Cidadão”, de 26 de agosto de

    1789; ali, a menos conhecida porém igualmente meritória

    “Declaração de Direitos de Virgínia”, datada de 16 de

    junho de 1776.

    2.4. Diga-se mais: toda essa perspectiva do humanismo

    até hoje conserva o seu originário caráter político-civil

    de prevalência do reino sobre o rei . Que outra coisa não

    signicou senão a consubstanciação de três paulatinase correlatas idéias-força: a) o Direito por excelência é o

     veiculado por uma Constituição Política, fruto da mais

    qualicada das vontades norma tivas, que é a vontade

    jurídica da nação; b) o Estado e seu governo existem

    para servir à sociedade; c) a sociedade não pode ter outro

    m que não seja a busca da felicidade individual dos

    seus membros e a permanência, equilíbrio e evolução

    dela própria.2

    2 Expressam bem essas três idéias-força as seguintes passagens

    da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26de agosto de 1789: “Art. 1º. Os homens nascem e são livres eiguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na

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    2.5. Mas é claro que, por conhecido desdobramento

    histórico desses três entrelaçados princípios reitores, o

    que se deu foi uma considerável ampliação na lista dos

    clássicos direitos individuais, como, verbi gratia , o direito

    à informação, ao desembaraçado acesso às instâncias

    judiciárias, ao tratamento não-preconceituoso e até

    mesmo favorecedor dos segmentos sociais historica-

    mente discriminados (notadamente o dos negros e dos

     índios, das mulheres e dos portadores de deciência).

     Tanto quanto se vericou o reconhecimento formal

    dos direitos de cunho econômico-social, mormente os

    de matriz constitucional e incluídos, hoje, no rol dos

    direitos fundamentais da pessoa humana  (Santo Agostinho dizia que “sem um mínimo de bem-estar

    material não se pode sequer servir a Deus”). Sendo

    que tais direitos de índole econômico-social se liam,

    historicamente, às Consti tuições mexicana (1917),

    soviética (1918) e alemã (Weimar, 1919), enquanto que

    utilidade comum”; “Art. 2º. O m de toda a associação política éa conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do homem.Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e aresistência à opressão”; “Art. 3º. O princípio de toda a soberaniareside essencialmente na Nação (...)”; “Art. 6º. A lei é a expressão da

     vontade geral (...)”; “Art. 16. Qualquer sociedade em que não estejaassegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separaçãodos poderes não tem Constituição”.

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    os direitos neste nosso estudo designados por fraternais  se

    denem com mais precisão nas Constituições portuguesa

    de 1976 e brasileira de 1988.3

    2.6. É o que se pode designar por constitucionalismo

    cumulativo. Um constitucionalismo crescentemente

    superavitário, como se dá com a ciência e a cultura, a

    ponto de autorizar a ilação de que, graças a ele, o Estadode Direito termina por desembocar num Estado de direitos .

    O que não signica uma generalizada situação de afrouxa-

    mento dos deveres e responsabilidades de cada indivíduo

    para com o próprio Estado e a sociedade civil. As duas

    coisas bem podem conviver na mais perfeita harmonia.

    3 Constituições de cujo preâmbulo faz parte o vocábulo “fraterno(a)” como objetivo a ser alcançado ora pelo “País” (Portugal), orapela “sociedade” (Brasil).

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    C A P Í T U L O I I I

    O humanismocomo expressão de

    vida coletiva civilizada

    3.1. Passo a consignar uma terceira signicação do

    humanismo. Não sem antes realçar o seguinte: toda essa

    histórica e formal proclamação de ser a pessoa humana

    portadora de uma dignidade “inata” é o próprio Direito

    a reconhecer o seguinte: a humanidade que mora   em

    cada um de nós é em si mesma o fundamento lógico ou

    o título de legitimação de tal dignidade. Não cabendo a

    ele, Direito, outro papel que não seja o de declará-la. Não

    propriamente o de constituí-la, porque a constitutividadeem si já está no humano em nós.

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    3.2. Em palavras outras, a circunstância do humano em

    nós é que nos confere uma dignidade primaz. Dignidade

    que o Direito reconhece como fator legitimante dele

    próprio e fundamento do Estado e da sociedade.

    Percepção tão recorrente nos escritos do inglês John

    Locke e do franco-suiço Jean-Jacques Rousseau, tanto

    quanto no iluminismo francês de Voltaire, Diderot,Marat, Mirabeau, Danton e Emanuel Joseph de Sieyès

    (todos eles sob ponderável inuência de Rousseau, tanto

    quanto Rousseau foi ponderavelmente inuenciado por

    Locke). Mas uma percepção que também permeia os

    ensinamentos dos místicos e as composições dos poetas,

    de que serve de amostra este belíssimo verso dos artistas

    brasileiros Tom-zé e Ana Carolina: “Cada homem é

    sozinho a casa da humanidade”. Sem falar no antológico

    poema “Tabacaria”, do português Fernando Pessoa, que

    principia com os seguintes versos:

    “Não sou nada.

    Nunca serei nada.

    Não posso querer ser nada.

     À parte disso, tenho em mim todos os sonhos  do mundo”.

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    3.3. Não há negar. O princípio jurídico da dignidade

    da pessoa humana decola  do pressuposto de que todo ser

    humano é um microcosmo. Um universo em si mesmo.

    Um ser absolutamente único, na medida em que, se é

    parte de um todo, é também um todo à parte; isto é, se

    toda pessoa natural é parte de algo (o corpo social),

    é ao mesmo tempo um algo à parte. A exibir na lapelada própria alma o bóton de uma originalidade que ao

    Direito só compete reconhecer até para se impor como

    expressão de vida comum civilizada (o próprio Direito

    a, mais que impor respeito, se impor ao respeito, como

    diria o juiz-poeta sergipano João Fernandes de Britto).

    3.4. Sucede que, ao reconhecer por modo jurídico a

    inata dignidade da pessoa humana — sobretudo quanto

    à modelagem de um pluralismo que não desemboque

    jamais no preconceito como traço cultural, de parelha

    com a preceituação de uma aproximativa igualdade de

    acesso às fontes do poder, da riqueza e do saber —,a sociedade termina por se autoconferir a credencial

    de civilizada. O qualicativo de evoluída. Sendo esse,

    precisamente, o terceiro signicado do huma nismo: tra-

    duzir uma vida em comum que mereça o galardão de

    culturalmente avançada. Entendendo-se por sociedade

    culturalmente avançada, ao menos no plano norma-tivo, a que institui: a) mecanismos de oportunidades

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    aproximativamente iguais nos campos da política, da

    economia e da educação formal; b) acesso facilitado

    aos órgãos do Poder Judiciário, aos serviços públicos

    e à seguridade social (saúde, previdência e assistência

    social); c) vivência de um pluralismo político e também

    cultural (ou social genérico), tendo este por limite a não-

    incidência jamais em preconceito.

    3.5. Por que estamos a indicar esses domínios de

    interação humana como denotadores de humanismo,

    neste último sentido de sociedade evoluída ou cultu-

    ralmente avançada? Porque são eles que, em seu

    conjunto, mais respondem pela qualidade de vidade todo um povo. Por isso que  jurisdicizados , contem-

    poraneamente, como situações jurídicas ativas que se

    desfrutam às expensas do Estado e de toda a sociedade.

    E em se tratando de direitos ambientais, sociais e do

    tipo fraternal, a sua efetividade se eleva à condição de

    dado conceitual de toda a economia do País. É dizer,

    economia que já não restringe a sua noção de dinamismo

    à abertura para as inovações tecnológicas e aos ganhos

    de produtividade; tem que passar pelo atendimento às

    necessidades de preservação do meio ambiente e às postu-

    lações de segurança social e de uma decidida integraçãocomunitária (logo, fraternal).

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    3.6. Convém repetir, com ligeiros acréscimos: focado

    pelo prisma dos interesses do todo social, o desenvol-

     vimento tem que ser mais do que um mecânico ou linear

    crescimento econômico. Ele há de exibir uma dimensão

    política ou de soberania nacional, pela exigência que

    se lhe faz de ser um desenvol vimento do tipo auto-

    sustentado ou sem temerária dependência externa.

    Como também há de exibir três outras dimensões:

    a) a dimensão da pura justiça social, a se dar por um

    progressivo compartilhamento dos seus frutos com

    todos os estratos de que a sociedade se compõe; b) a

    dimensão do mesmo e respeitoso tratamento para os

    referidos grupos de pessoas que até hoje experimentamo travo da discriminação social (por isso que destinatárias

    da compensação em que se traduz a ferramenta   das

    ações armativas; d) a denitiva absorção da idéia de

    equilíbrio ecológico enquanto elemento de sua própria

    denição. É como está, por sinal, na própria Consti tuição

    brasileira de 1988, conforme um pouco mais à frentecomprovaremos. 

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    C A P Í T U L O I V  

    O humanismocomo transubstanciaçãoda democracia política,

    econômico-social e fraternal

    4.1. Eminentemente cultural, portanto, é essa terceira

    dimensão conceitual do humanismo. Visto, porém, sob

    roupagem jurídica, e mais especicamente sob roupagem

    jurídico-constitucional, esse padrão de humanismo se

    confunde com a própria democracia. Transubstancia-

    se na democracia que gradativamente se impôs

    como idéia-força ou princípio de organização dos

    Estados e das sociedades nacionais do Ocidente,após a segunda guerra mundial.

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    4.2. Deveras, a Democracia ocidental dos dias

    correntes é a que se constitui em inexcedível para digma de

    mobilidade vertical nos campos, justamente: a) da política

    enquanto área específica do poder governamental-

    administrativo; b) da economia enquanto fonte de toda

    riqueza material; c) da educação formal enquanto espaço

    de um saber direcionado “ao pleno desenvolvimento dapessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua

    qualicação para o trabalho” (art. 205 da Constituição

    brasileira de 1988). Tudo isso de parelha com as citadas

    relações sociais de facilitado acesso à jurisdição, aos

    serviços públicos e à seguridade social, mais o pluralismo

    político e o social genérico (estes últimos a signicar odireito de ser pessoalmente inconfundível com quem

    quer que seja, contanto que esse direito de ser diferente

    não resvale para a prática da discriminação de outrem).

    Sendo que o campo da política é de ser entendido na

    sua renovada conguração político-civil, de modo aabarcar os clássicos e novos direitos individuais (dentre

    estes, o direito à informação, à ética na Adminis tração

    Pública e às ações armativas  ), a vigorar de modo paralelo

    às relações de soberania popular e de cidadania. Já o

    campo da economia, a se materializar na dualidade básica

    do capital e do trabalho, de sorte a compor uma ordemeconômico-nanceira de prestígio, a um só tempo, da

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    liberdade de iniciativa e do atendimento das necessidades

    materiais básicas dos empregados e dos trabalhadoresautônomos. E quanto ao campo do saber, enm, a se

    espraiar pelos domínios da educação formal, dos cursos

    prossionalizantes e do mencionado preparo para o

    exercício da cidadania.

    4.3. Sendo assim, dá-se verdadeira fusão entre vidacoletiva civilizada (culturalmente vanguardeira, foi dito) e

    democracia. Isto no sentido de se entender por vida em

    comum civilizada aquela que transcorre, circularmente,

    nos arejados espaços da contemporânea democracia.

    Com o que o humanismo e a democracia passam a

    formar uma unidade incindível. Inapartável.

    4.4. Recolocando a idéia: status civilizatório ou

    elevado padrão de civilidade de todo um povo é

    uma terceira dimensão conceitual do huma nismo.

     A mais recorrente, por sinal. A ser alcançada mediante

    mecanismos de Direito positivo que já se contêm no

    contemporâneo conceito de democracia. Democracia

    que em Constituições como a portuguesa de 1976

    e a brasileira de 1998 ostentam os seguintes traços

     sionômicos :

    I – democracia  procedimentalista , também conhe-

    cida por Estado Formal de Direito ou EstadoDemocrático de Direito, traduzida no modo

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    popular-eleitoral de constituir o Poder Político

    (composto pelos parlamentares e pelos que se

    investem na chea do Poder Executivo), assim

    como pela forma dominantemente representativa

    de produzir o Direito legislado;

    II – democracia substancialista ou material, a se

    operacio nalizar: a) pela multiplicação dos nú-cleos decisórios de poder político, seja do lado

    de dentro do Estado (desconcentração orgânica),

    seja do lado de fora das instâncias estatais

    (descentralização personativa, como, por amos-

    tragem, o plebiscito, o referendo e a iniciativa

    popular); b) por mecanismos de ações distributivistas  no campo econômico-social. Vínculo funcional,

    esse (entre a democracia e a segurança social), que

    a presente Constituição italiana bem expressa na

    parte inicial do seu art. 1º., verbis : “A Itália é uma

    República democrática fundada no trabalho”;

    III – democracia fraternal, caracterizada pela positi-

     vação dos mecanismos de defesa e preservação

    do meio ambiente, mais a consagração de um

    pluralismo conciliado com o não-preconceito,

    especialmente servido por políticas públicas de

    ações armativas   que operem como fórmula decompensação das desvantagens historicamente

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    sofridas por certos grupamentos sociais, como os

    multirreferidos segmentos dos negros, dos índios,

    das mulheres e dos portadores de deciência física

    (espécie de igualdade civil-moral, como ponto

    de arremate da igualdade política e econômico-

    social).

    4.5. É o quanto basta para a dedução de que o huma-nismo enquanto vida coletiva de alto padrão civili zatório

    é aquele que transcorre nos mais dilatados   cômodos   da

    contemporânea democracia de três vértices: a procedi-

    mentalista, a substancialista e a fraternal. Os dois termos

    (humanismo e democracia) a se interpenetrar por osmose,

    e não mais por simples justaposição. Donde a metáforada transubstanciação.

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    C A P Í T U L O V  

    O necessáriovínculo operacional

    entre humanismo e Direito

    5.1. Esse atualizado humanismo signica atribuir à

    humanidade o destino de viver no melhor dos mundos.

     A experimentar o próprio céu na terra , portanto. Mas

    assim transfundido em democracia plena, ele passa amanter com o Direito uma relação necessária. O Direito

    enquanto meio, o humanismo enquanto m. É como

    dizer: o humanismo, alçado à condição de valor jurí-

    dico, é de ser realizado mediante  guras de Direito. Que

    são os institutos e as instituições em que ele, Direito

    Positivo, se decompõe e pelos quais opera. No caso, eperti nentemente à formatação do Estado, tais guras de

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    Direito se traduzem em coisas como audiências públicas,

    sufrágio universal, voto direto e secreto, eleições perió-dicas, referendos, iniciativa popular, programações orça-

    mentárias, políticas públicas, acordos internacionais

    (entre as políticas públicas, as de natureza tributária que

    se mostrem seleti vamente estimuladoras de uma ordem

    econômico-nanceira que se volte para a crescente partilha

    social dos seus ganhos).

    5.2. Não que as Constituições precisem nominar

    o humanismo. Basta que elas falem de democracia

     para que ele esteja automaticamente normado.

    Como se pode concluir dos incisos de I a V do art. 1º.

    da Constituição de 1988, que, sob a denominação de“fundamentos” da República Federativa do Brasil, fez

    da democracia (logo, do humanismo) uma feérica estrela

    de cinco pontas : “soberania”, “cidadania”, “dignidade da

    pessoa humana”, “valores sociais do trabalho e da livre

    iniciativa”, “pluralismo político”. Sendo que a expressão

    “dignidade da pessoa humana”, ali naquele dispositivo,ainda não é todo o humanismo; é a parte do humanismo

    que mais avulta, de modo a ocupar uma posição de

    centralidade no âmbito mesmo dos direitos fundamentais

    de todo o sistema constitucional brasileiro.

    5.3. Também por instantânea dedução, infere-se

    que, dissolvendo-se na democracia, ou em outro valoruniversalmente aceito como o próprio fim de uma

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    civilizada convivência humana (paz, bem comum, justiça,

    bem-estar geral...), o humanismo não podia car do

    lado de fora do Direito. Não podia ser indiferente ao

    Sistema Jurídico de cada povo soberano. Sabido que o

    Direito é a realidade normativa que mais se aproxima

    dos atributos da unidade, coerência e plenitude. Única,

    além do mais, a se caracterizar pela heteronomia e

    garantida possibilidade de execução dos seus comandos

    (só as normas jurídicas são “imperativos autorizantes”,

    preleciona Goffredo Telles Júnior). Numa frase, o Direito

    é o mais engenhoso esquema que a humanidade até hoje

    concebeu para viabilizar o absolutamente necessário

    “estado de sociedade”. Estado de sociedade sem o quala experiência humana estaria condenada à barbárie,

    num autofágico pugilato de todos contra todos. O anti-

    humanismo por denição.4

    4 O rousseauniano  estado de sociedade pressupõe, já foi dito, umcontrato social que Afonso Bertagnoli assim comenta: “Emsentido mais losóco, o contrato aparece como forma bilateralou multilateral, incluindo compromissos recíprocos. O contratosocial de Rousseau — também designado como pacto social — éo conjunto de convenções fundamentais que, ainda que nuncahajam sido formalmente enunciadas, resultam implícitas na vidaem sociedade, sendo a sua fórmula a designada de que cada umde nós coloca em comum a pessoa em seu total poderio, sob a

    suprema direção da vontade geral; em conseqüência, recebemos,cada um, uma parte indivisível do todo comum” (prefácio do livroO contrato social , anteriormente indicado).

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    5.4. Por assim entender foi que o emblemático Von

    Ihering falou do Direito como o complexo das próprias

    condições existenciais da sociedade, garantidas pelo Poder Público.

    “O modus vivendi ” possível, na síntese feliz de Tobias

    Barreto, por se constituir numa “força cultural destinada

    a ser domadora das forças naturais da vida” (apud José

    Silvério Leite Fontes, em O pensamento jurídico sergipano,Ed. UFS, ano de 2003, p. 19). Tudo na linha dos brocardos

    latinos que tanto se sabe de cor e salteado: “ubi societas ib

    jus”, “ubi jus ib societas” (onde houver sociedade haverá

    direito, onde houver direito haverá sociedade), a traduzir

    duas realidades que se exigem e se complementam, na

    trama de uma dialética de verdadeira “implicação epolaridade”, na precisa linguagem de Miguel Reale.

    5.5. Realmente, salta aos olhos  que o Direito é o sistema

    de normas que melhor concilia imperatividade com

    exigibilidade. Imperatividade, na medida em que todo

    dispositivo jurídico é um comando, uma determinação,um mandamento, uma ordem, enm, ditada por órgãos e

    agentes de pronto referidos como autoridades do Sistema.

     A própria face visível do poder. Exigibilidade, a seu turno,

    por sempre haver previsão legal de sanções ou medidas

    de constrição que tais autoridades cam habilitadas a

    impor contra quem lhes resista às determinações. Demodo coerente, aliás, com o princípio da presunção de

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     verdade e licitude dos atos do Poder Público. Princípio

    que, na Constituição de 1988, tem uma de suas matrizes

    no seguinte enunciado:

    “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito

    Federal e aos Municípios:

    II – recusar fé aos documentos públicos”.

    5.6. São considerações que cimentam a radicalidade

    deste juízo: mais do que não poder ser visto como um

    indiferente jurídico, o humanismo teria mesmo que se

    positivar como a própria democracia de três vértices.

    Principalmente se considerarmos que esse paradigma

    de democracia é um processo de armação do poder

    ascendente. Que é um poder que nasce de baixo

     para cima, e não de cima para baixo. Logo, poder

    umbilicalmente comprometido com os interesses da

    maioria do povo (situada na base da pirâmide social), enão daquelas pessoas já situadas no topo da hierarquia

    estatal, ou econômica. Noutro dizer, próprio da

    democracia é o constante empenho para tirar o povo

    da platéia e colocá-lo no palco das decisões que lhe

    digam respeito. De passivo espectador para autor do seu

    próprio destino. “Todos decidindo sobre tudo”, comopreconizava Rousseau. Quem quer que seja a dizer o

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    que quer que seja (acrescentamos), de sorte a se poder

    inferir que ela, democracia, é o único regime que faz da

    mais ampla participação popular o aplainado caminho

    de busca da mais abrangente inclusão social e integração

    comunitária (nunca é demais lembrar que a palavra

    comunidade vem de comum unidade , na holística percepção

    espiritual-quântica de que, anal, “tudo é um”).

    5.7. E aqui vem o arremate da idéia do necessário traço

    de união entre o humanismo como valor cultural genérico

    e a democracia como especíco valor jurídico, a ponto de

    o primeiro se dissolver na segunda: é que não há nada

    de essencial ao humanismo que já não se contenha

    no espectro atual da democracia. Por isso que esta oabsorve e a ele comunica sua natureza de tema central

    de Direito Constitucional.

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    C A P Í T U L O V I

    O descompasso entre

    a teoria e a prática humanistacomo atestado de pobreza  

    eficacial do Direito

    6.1. Juridicamente, pois, estamos a lidar com

    preciosas formulações regratórias. Lapidares “normas

    de organização e de conduta” (Bobbio), tracejadoras de

    um padrão de humanismo que já é a própria democracia

    de três vértices. Mas não podemos esquecer que mesmo

    um excelente referencial normativo para o concreto agir

    humano ainda não é o concreto agir humano. Pois o certo

    é que o humanismo não se tem feito acompanhar senão

    de uma prática muito aquém dos prometidos mundos e fundos . Tem sido algo muito mais retórico do que real.

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    Bom para a auto-estima das pessoas patrimonializadas e

    dos países ditos desenvolvidos, mas incapaz de esconder

    a vexatória verdade de que somente uma micro-minoria

    de seres humanos é que vive de regular para ótimo. Já a

    macro-maioria, muito ao contrário, vive mesmo é de ruim

    para péssimo. Como evidenciam os dramáticos desníveis

    de riqueza e de saber entre os Estados Unidos da América

    do Norte e países membros da União Européia, de um

    lado, e, de outro, parte dos países da Ásia e a grande

    maioria dos povos da África e da América do Sul. Tanto

    quanto as gritantes assimetrias entre habitantes dos

    próprios Estados mais ricos. No interior deles, então.

    Não sendo despropositado dizer, trocadilhando, que o planeta está empanturrado de gente com fome .5

    5 Um dos maiores paradoxos da globalização é que ela universalizaa informação mais aliciante para o consumo de tudo quanto ébem material, porém elitiza a respectiva aquisição. Do que decorreuma crescente insatisfação por parte das massas econômica esocialmente excluídas, a se manifestar sob a forma tendencialde violência urbana. O que faz eclodir, a seu turno, o conhecidofenômeno da criminalidade de situação ou de ambiência de vida.Pelo que ela, globalização, bem pode ser visualizada como correiade transmissão desse maestro ideológico que atende pelo nomede “neoliberalismo”. Fincado, este, no tripé economicista dananceirização (trânsito sem fronteiras do capital especulativo,sempre sedento dos mais altos juros), da terceirização e da

    privatização. Estes dois últimos aspectos incessantementedenunciados na arrebatadora fala e nos luminosos escritos de Celso Antônio Bandeira de Mello.

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    6.2. Numa frase, o humanismo dos dias atuais ainda

    é mais de fachada  do que autêntico. Feito o ditado populardo “ faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”, mesmo

    no círculo de uma economia mundial que atravessa um

    eufórico período de autopropulsão. Daí que os enver-

    gonhados semáforos e marquises de Nova Iorque (capital

    nanceira dos Estados Unidos da América) e de Bruxelas

    (capital política da União Européia) não consigam

    esconder que por debaixo deles há grupos de mendigos

    dividindo com a sarjeta suas últimas sobras de gente. Isso

    como conseqüência do fato de que o presente modelo

    de globalização reduz tão sistematicamente postos

    de trabalho para o homem de baixa instrução escolarque já se pode dizer que a luta de classes, hoje, é entre

    desempregados e desempregadores. Assim como agudiza

    o problema do fechamento das fronteiras dos países

    economicamente mais prósperos para as levas e levas

    de imigrantes que o exausto sistema produtivo dos seus

    países de origem não tem como absorver. A comprovarque esse padrão globalizante de vida não signica livre

    circulação de pessoas e idéias, propriamente, porém de

    capitais avessos a qualquer tipo de controle jurídico por

    parte dos Estados de baixo teor de poupança interna

    (por isso que dispostos a pagar juros muito mais altos

    que os praticados nos países de origem desses capitaistão sanguessugas  quanto voláteis).

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    6.3. Ora bem, constatar esse renitente quadro factual

    de esqualidez do humanismo é também comprovar

    que o Sistema Jurídico dos Estados soberanos

    não vem cumprindo a sua especíca função de

    qualicar a vida dos seus humanos destinatários, ao

    menos como característica central. Sabido que tal

    qualicação é a que se põe como exigência mesma

    da justiça enquanto “valor fundante do Direito” 

    (Miguel Reale). E que a realização de nenhum valor

    humano essencial pode ter outra ferramenta institucional

    mais ecaz do que ele, Direito Positivo.

    6.4. Nesse ritmo argumentativo, e somente para

    tomar de empréstimo o discurso da Constituição de 1988,é de se pôr em realce a marcante atualidade do que ele tem

    como objetivos fundamentais da República Federativa do

    Brasil, a saber: “I – construir uma sociedade livre, justa

    e solidária; II – garantir o desen volvimento nacional;

    III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as

    desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bemde todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,

    idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Nada

    obstante, o que se tem ao rés-do-chão ou no plano dos fatos?

     Tem-se que na Terra Brasilis  o humanismo persiste como

    um ideal de reduzido teor de concretude democrática.

    Pois inquestionável é que pelas bandas de cá  prosseguemde extrema gravidade os descompassos sócio-regionais;

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    o subemprego; a incipiente educação ambiental do povo

    e até dos governantes; os mais atávicos precon ceitos; a

    teimosíssima  indistinção entre o espaço público e o privado

    (confunde-se tomar posse nos cargos com tomar posse

    dos cargos); uma economia informal que não pára de

    crescer e cada vez mais sem-cerimônia ; a triste ciranda do

    contingenciamento de despesas de investimento para a

    formação dos altíssimos superávits primários (em torno

    de 4,5% do PIB) com que são pagos os juros mais altos

    do mundo à casta dos rentistas; os estratosféricos lucros

    do setor bancário (só no primeiro semestre do corrente

    ano de 2007 o Banco Itaú e o Banco Bradesco obtiveram

    lucros que, somados, ultrapassaram a casa dos 8 bilhõesde reais; a corrupção sistêmica, enm. Corrupção que

    mais responde por u’a massiva exclusão socioeconômica

    e que já se manifesta no enquadrilhamento de não poucos

    setores das classes “dominante e dirigente” (Gramsci)

    para o prossionalizado saque do patrimônio e dos

    dinheiros públicos. Donde o seguinte comentário deMarcelo Neves:

    “A corrupção sistêmica se associa ao problema da

    exclusão. De um lado, a subinclusão signica que

    amplos setores sociais dependem das exigências dos

    subsistemas da sociedade mundial complexa (terconta no banco, educação formal, saúde etc.), mas

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    não têm acesso aos respectivos benefícios. No campo

    do direito, isso implica subordinação aos deveres

    impostos pela ordem jurídica, mas falta de acesso

    a direitos básicos. De outro lado, a sobreinclusão

    signica que certos setores privilegiados têm acesso

    aos benefícios dos sistemas sociais, mas não se

    subordinam às suas imposições restritivas, o que

    implica exercício dos direitos sem subordinação a

    deveres” (artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo,

    caderno A3, edição de 27 de junho de 2007).6 

    6.5. Também Eduardo Lins da Silva, num rompante

    de santa indignação, bradou que “a corrupção é nefasta

    não apenas por ser imoral. Ela é uma das causas mais

    6 Certo que economistas e cientistas sociais de peso, como oportuguês Antônio Borges, não deixam de creditar ao atual sistemaeconômico brasileiro a virtude dos investimentos que dão mostrasde se deslocar do mercado nanceiro para a produção, tendo por

     pano de fundo uma certa continuidade histórica de políticas públicas,taxa de inação competentemente controlada, responsabilidadescal, moeda forte e crescentes níveis de exportação (conferênciafeita em seminário promovido pela Faculdade de Direito daUniversidade de Coimbra, no dia 9 de julho de 2007, sob acoordenação do professor-doutor Manoel Carlos Lopes Porto).Mas impossível negar que permanecem assustadores os altos índices brasileiros de economia informal, o baixo teor de renda per capita  e coisas como prostituição e trabalho infantil, trabalho

    escravo, moradores de rua, catadores de lixo, proliferação de favelasnos grandes centros urbanos, como São Paulo, Rio de Janeiro, BeloHorizonte, Salvador e Recife.

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    profundas da ineficiência e aumento de custos em

    qualquer organismo no qual ocorra” (mesmo jornal

    Folha de S.Paulo, caderno A, p. 3, em data de 10 de

    junho de 2006). Renitência num patrimonialismo que

    chega ao mais deslavado saque do Erário, pois o fato

    é que o padre Antônio Vieira, desde o século XVII,

    já denunciava o colonizador espanhol e o portuguêscom estas corajosas palavras: “os governadores chegam

    pobres às Índias ricas e saem ricos das Índias pobres”

    (referindo-se às Índias Ocidentais, nome dado à América

    por Cristóvão Colombo, que acreditava haver atingido a

     Ásia). Caldo de cultura  que responde pela triste armativa

    de que “a corrupção é o cupim da República”, feita pelo

    presidente da Assembléia Nacional Constituinte brasi-

    leira de 1986/1988, deputado Ulysses Guimarães. Tudo

    a mostrar a permanência da necessidade de um redobrar

    de esforços de toda a sociedade civil e das instituições

    públicas para a compreensão de que, ali onde a ética na

    política não é tudo, a política não é nada.

    6.6. Cabe perguntar, naturalmente: que metodologia

    ou providência institucional a tomar, diante de tão

    grandes distâncias entre o discurso e a prática do Direito?

    Como fazer da melhor normatividade em abstrato amelhor experiência? Acasalar  o dever-ser dos comandos

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    legislativos e o ser das concretas relações interindividuais

    e intergrupais? Sair das pranchetas da Constituição para

    entrar nos altiplanos da vida?

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    A imperiosa mudançade mentalidade como

    condição de encurtamentode distância entre o discurso

    humanista e sua prática

    7.1. Reperguntando: como principiar a reduzir otamanho desse enorme fosso entre um discurso tão

    altruísta e uma prática tão egocêntrica? Penso que por uma

    radical mudança de mentalidade. Uma decidida disposição

    para retrabalhar  a noção de humanismo, que já não deve

    ser visto apenas como o caminho que vai da humanidade

    para o homem, porém, simultaneamente, do homem paraa humanidade. Equivale a dizer: o humanismo é culto

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    ou exaltação à humanidade, sem dúvida, contanto que

    tal reverência também se dê perante cada qual das

    células de que essa humanidade se compõe. Chegue

    até ao ser humano em carne e osso. Ser humano, ajunte-se,

    tão mais sicamente próximo de nós quanto carente de

    oportunidades socioeconômicas e de igual tratamento

    cortês, respeitoso, fraterno.

    7.2. Esse novo humanismo de necessária mão dupla  

    absorve, sim, a referida máxima de que “o homem é a

    medida de todas as coisas” (Protágoras), porém, primeiro,

    o homem enquanto gênero; isto é, de sorte a abranger

    todos os exemplares masculinos e femininos sem nenhuma

    exceção. Depois, todos os homens e mulheres em suasefetivas condições existenciais de idade, regionalidade,

    cor da pele, etnia, classe social, conformação psicofísica,

    assim como em suas preferências rigorosamente pessoais:

    a religiosa, a losóca, a prossional, a partidária, a

    sexual, etc.. Pois somente assim é que se consegue viver

    numa “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,

    fundada na harmonia social e comprometida, na ordem

    interna e internacional, com a solução pacífica das

    controvérsias”, conforme a prossão de fé que se lê no

    preâmbulo da Constituição brasileira de 1988.

    7.3. De fato, não é só amando a humanidade quese ama o homem, porém, reciprocamente, é amando o

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    homem que se ama a humanidade. Até porque é muito

    fácil, muito cômodo, muito conveniente dizer que se amao sujeito universal que é a humanidade inteira. Difícil,

    ou melhor, desaador é amar o sujeito individual que

    é cada um de nós encarnado e insculpido. Aqui, um ser

    humano em concreto, visível a olho nu, ao alcance da

    nossa mão estendida ou do nosso ombro solidário. Ali,

    não. Ali o que se tem é um abstrato sujeito coletivo.

     Tão espacialmente distante quanto sionomicamente

    indenido. Logo, amor sem risco nenhum de que nos

    façam as únicas perguntas que mais importam para a

    denição da nossa personalidade: como efetivamente

    lidamos com os nossos pais, lhos, esposos e esposas, de

     papel passado ou não? Em clima de amor, efetiva presença

    e responsabilidades divididas? Dando-lhes o exemplo

    pessoal de toda uma vida permeada de compromisso

    ético e devoção cívica? E quanto aos nossos empregados,

    colegas de trabalho, porteiros do nosso condomínio,

    ascensoristas dos prédios que freqüentamos, jornaleiros,garçons,  entregadores de pizza ? Como nos relacionamos

    com cada qual deles? Chamando-os pelos respectivos

    nomes? Reconhecendo seus elementares direitos e

    dispensando-lhes um tratamento cordial? Do mesmo

    jeito que apreciamos ser pessoalmente tratados?

    7.4. Essas as perguntas que mais contam, dissemos,porque não pode haver humanismo sem humanistas.

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    República sem republicanos. Como impossível é

     praticar a democracia sem democratas. O que nos

    remete para os domínios do nexo causal entre o modo

    habitual de agir de uma cole tividade (práxis) e a sua

    peculiar visão de mundo. Donde a referência a uma

    urgente mudança de mentalidade, para que, na senda

    do  verbo que se faz carne , o olimpicamente objetivo se

    transmute em concretos fazeres subjetivos.

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    C A P Í T U L O V I I I

    A mudança dementalidade que implique

    analogia entre o humanismoe a justiça e que ainda

    diferencie justiça em abstratoe justiça em concreto

    8.1. Bem, para nós, os operadores do Direito, os

    lidadores jurídicos, a aplicação dessa nova mentalidade

    ao nosso cotidiano labor passa por uma analogia entre

    o humanismo e a justiça; isto é, passa pela colocação

    da justiça como tema-alvo de estudo, como zemos atéagora com o humanismo.

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    8.2. Explico. A justiça em abstrato, aquela que d esla

     pela passarela   do Ordenamento legislado (a partir daConstituição), essa costuma ser de boa qualidade em

    todos os Estados onde vigora o sistema jurídico da

    democracia de três vértices. E assim em abstrato ou em

    tese, é justiça que bem corresponde às mais depuradas

    postulações humanistas. O problema, então, não é esse. O

     gargalo do Direito não está aí, porque nunca se contestou

    que esse tipo retórico de justiça incorpora, sim, os avanços

    que têm assinalado a marcha triunfalmente democrática

    do constitucionalismo ocidental dos últimos 20, 25 anos

    (tirante a ditadura cubana, não há mais como esconder).

    Porém não passa de justiça como discurso legislado ou

     valor simbólico, insista-se. Por isso mesmo que distante,

    fria, orgulhosa de sua imperturbável objetividade (“a

    lei é um padrão objetivo de justiça”, escreveu Hans

    Kelsen). Justiça meramente pensada, por conseguinte, e

    não propriamente vivida. Necessária referência teórica, é

    certo, no sentido de que, sendo a justiça das leis, coloca-se como inafastável ponto de partida para a resolução

    dos casos concretos (“Ninguém será obrigado a fazer ou

    deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”,

    reza o inciso II do art. 5º da Constituição do Brasil). Não,

    porém, como necessário ponto de chegada.

    8.3. Ponto de chegada — essa a questão central — éa justiça que quase todo litígio ou caso concreto exige

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    somente para si. Com exclusividade, destarte, porque

    o mais das vezes cada caso é um caso mesmo. E cada

    caso é um caso, o mais das vezes, devido à irreprimível

     versatilidade da vida, que é surpreendente e novidadeira

    por sua própria natureza. Um arrumar as malas para o

    innito, como no inspirado verso de Fernando Pessoa.

    Daí porque habitualmente irredutível às formulaçõesjurídico-positivas. Aos esquemáticos enunciados do

    Direito legislado.

    8.4. Como de remansoso conhecimento, a lei em

    sentido material quer valer para todas as ações a que

    se refere e por isso é que se adorna do atributo da

    generalidade. Quer valer para todos os sujeitos a que

    se destina e por esse motivo se confere a característica

    da impessoalidade. Quer valer para sempre (enquanto

    não for revogada ou formalmente mexida, lógico) e daí

    o seu traço de abstratividade. Ora, querendo-se assim

    genérica, impessoal e abstrata — é dizer, querendo-se, de uma só cajadada , imperante para tudo, para todos

    e para sempre, a lei não tem como fugir do discurso

    esquemático ou clicherizador   da realidade; que é um

    discurso inescondivelmente simplista. Donde ter que

    pagar um preço por esse discurso-rótulo, e esse preço

    que a lei paga por incidir num tipo de comunicação verbal reducionista é a sua exposição a interpretações

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    polissêmicas e à contínua rebeldia da vida (cambiante

    por natureza).

    8.5. Fechando o pensamento: a justiça das dispo-

    sições legislativas é abstrata. A justiça do caso entre

    partes é concreta. A primeira está para a humani dade

    assim como a segunda está para o homem. Ambas são

    mutuamente complementares, na acepção de que asduas se imbricam e nenhuma é mais básica do que a

    outra. E as duas juntas são o que o direito é: dual,

    bifronte, binário, como na gura mitológica de Jano.

    Corresponde a falar: o Direito é, na sua estruturalidade,

    tanto a abstrata justiça das leis (inclusive e sobretudo

    a justiça das Constituições) quanto a empírica justiçadas decisões judiciais. E também na sua funcionalidade

    o Direito é binário, porque tanto se manifesta sob a

    forma de norma geral (Direito-lei) quanto sob a forma

    de norma individual (Direito-sentença).

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    O operador do Direito

    na condição de ponteentre a justiça em abstrato

    e a justiça em concreto

    9.1. Nessa perspectiva, se o Direito é estrutural e

    funcionalmente bifronte, o que importa para o lidador

    jurídico é transitar pelo sempre custoso, trabalhoso,é certo, mas necessário e instigante caminho do meio

    ( medius in virtus  ). Em linguagem metafórica, nem

    ancorar tão-só no cais da justiça objetiva, nem navegar

    exclusivamente no mar da justiça do caso concreto. Pois

    muitas vezes o cais do porto apenas contém a primeira

    metade do Direito. Situação em que a outra metade sópode estar nas ondulações do mar aberto.

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    9.2. No tema, o princípio regente das coisas

    continua a ser o da complementaridade (implicação epolaridade, conforme Reale). Por isso que, se a primeira

    metade do Direito condiciona o visual da segunda, esta

    última costuma repercutir sobre aquela primeira para

    redimensionar o respectivo perl. Uma como que a

    ajudar a outra para a feitura de um trabalho comum de

    plenicação. Como num aparelho auto-reverse . Ou numa

    gangorra em que o justo-real só pode se postar em

    ambos os assentos. Donde a ilação de que o resgate da

    norma jurídica em sua inteireza exige um processo de

    interpretação que seja: a) uma virginal revelação do que

    se contém no texto normativo ainda sem a inuência do

    caso concreto; b) um refundir dessa inicial revelação, se o

    caso concreto reverberar sobre o texto que o descreve.

    9.3. Noutro modo quiçá mais ilustrativo de colocar

    a idéia: entre o texto legislado e a decisão judicial navega

    o sentido. Ali, algo signicante. Aqui, algo signicado.

    Mas algo signicado que pode ser o fruto de idas e vindas do intérprete entre o texto referente e o caso

    referido, se a relação entre ambos caracterizar-se por

    uma tão mútua quanto irresistível inuência. É quando

    o dever-ser do Direito se concilia com o ser da vida e aí

    já não há descompasso entre a justiça como formulação

    meramente objetiva e a justiça material do caso entrepartes. O que nos transporta para recente entrevista do

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    ministro César Asfor Rocha, do Superior Tribunal de

     Justiça, na parte em que Sua Excelência assim verbaliza

    o mais belo ideal de todo o Poder Judiciário nacional:

    “Nosso maior sonho é ter um Judiciário brasileiro que

    possa distribuir justiça não como iguaria de festa, mas

    como o pão nosso de cada dia” (p. 19 do número 83 da

    revista Justiça e Cidadania , mês de junho de 2007).

    9.4. Também em Konrad Hesse, na sua prossão de

    fé pelo reconhecimento de mais e mais força normativa

    à Constituição, lê-se:

    “O signicado da ordenação jurídica na realidade e

    em face dela somente pode ser apreciado se ambas

     — ordenação e realidade — forem consideradas

    em sua relação, em seu inseparável contexto, e

    no seu condicionamento recíproco. Uma análise

    isolada, unilateral, que leve em conta apenas um

    ou outro aspecto, não se agura em condições de

    fornecer resposta adequada à questão. Para aqueleque contempla apenas a ordenação jurídica, a norma

    ‘está em vigor’ ou ‘está derrogada’; não há outra

    possibilidade. Por outro lado, quem considera,

    exclusivamente, a realidade política e social, ou não

    consegue perceber o problema na sua totalidade, ou

    será levado a ignorar, simplesmente, o signicado da

    ordenação jurídica.

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    ‘A despeito de sua evidência, esse ponto de partida

    exige particular realce, uma vez que o pensamento

    constitucional do passado recente está marcado

    pelo isolamento entre norma e realidade, como se

    constata tanto no positivismo jurídico de Escola de

    Paul Laband e Georg Jellinek, quanto no ‘positivismo

    sociológico’de Carl Schmitt. Os efeitos dessaconcepção ainda não foram superados. A radical

    separação, no plano constitucional, entre realidade

    e norma, entre ser ( sein  ) e dever ser ( sollen  ) não

    leva a qualquer avanço na nossa indagação. Como

    anteriormente observado, essa separação pode

    levar a uma conrmação, confessa ou não, da tese

    que atribui exclusiva força determinante às relações

    fáticas. Eventual ênfase numa ou noutra direção leva

    quase inevitavelmente aos extremos de uma norma

    despida de qualquer elemento de realidade ou de uma

    realidade esvaziada de qualquer elemento normativo.

    Faz-se mister encontrar, portanto, um caminho entre

    o abandono da normatividade em favor do domínio

    das relações fáticas, de um lado, e a normatividade

    despida de qualquer elemento da realidade, de

    outro. Essa via somente poderá ser encontrada se se

    renunciar à possibilidade de responder às indagações

    formuladas com base numa rigorosa alternativa.

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     A norma constitucional não tem existência autônoma

    em face da realidade. A sua essência reside na sua

    vigência , ou seja, a situação por ela regulada pretende

    ser concretizada na realidade. Essa pretensão de

    ecácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada

    das condições históricas de sua realização, que

    estão, de diferentes formas, numa relação de interde-

    pendência, criando regras próprias que não podem ser

    desconsideradas” (em A força normativa da Constituição.

     Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:

    Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 13-15).

    9.5. Elucidar é preciso, porém, que estamos a falar

    de “texto normativo” como expressão sinônima de

    “dispositivo”. Enunciado que se exprime em signos

    lingüísticos ou estruturas de linguagem, natural mente.

    Corresponde a dizer: dispositivo ou texto normativo é

    qualquer das partes lógicas de que se compõe o esqueleto, a

    estrutura formal de toda Constituição, todo código, todalei, todo regulamento. Logo, partes que se exteriorizam

    sob a forma de um artigo, ou de um parágrafo, um inciso,

    uma alínea, um número arábico, na invariável condição de

    invólucro de norma jurídica. Seja uma norma-princípio,

    seja uma norma-preceito ou simplesmente “regra”, ambas

    as categorias a ter o seu conteúdo signicante e grau deecácia desvelados a cada momento de sua particularizada

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    aplicação. Donde o caráter de descoberta-construção,

    assim geminadamente, da norma anal aplicada. Com

    o que o próprio conteúdo do justo deixa de ser uma

    formulação tão prévia quanto denitiva para se tornar

    uma constante garimpagem nos veios do processo cultural

    da vida.

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    10.2. Resposta: por efeito de uma virtude pessoal

    que atende pelo nome de senso de justiça real, material .

    Que não é senão sensibilidade social à or da pele . Ou

    o mais sólido compromisso com a vida no seu eterno

    agora  (Krishnamurti, Osho, Eckhart Tolle, Neal Donald

     Walsch, William Segal), sem, contudo, perder de

     vista as coordenadas mentais do Direito legislado.

    Qualidades próprias daqueles que agregam ao manejo

    da reexão o espocar da intuição. Essas duas outras

    categorias que provêm, respectivamente, do hemisfério

    esquerdo e do hemisfério direito do cérebro humano.

    Como sempre disseram os místicos orientais e passaram

    a dizer os maiores expoentes da física quântica.10.3. Particularmente ilustrativo desse pensar quân-

    tico são os ensaios da norte-americana Danah Zohar,

    para quem

    “A mais revolucionária e, para nossos ns, a mais

    importante afirmação que a física quântica fazacerca da natureza da matéria, e talvez do próprio

    ser, provém de sua descrição da dualidade onda-

    partícula (...) a armativa de que todo ser, no nível

    subatômico, pode ser igualmente bem descrito

    como partículas sólidas, como um certo número de

    minúsculas bolas de bilhar, ou como ondas, como as

    ondulações na superfície do oceano. Mais que isso, a

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    física quântica prossegue dizendo que nenhuma das

    duas descrições tem real precisão quando isolada e

    que tanto o aspecto onda como o aspecto partícula

    do ser devem ser levados em conta quando se

    procura compreender a natureza das coisas. É a

    própria dualidade do processo básico. A ‘substância’

    quântica é, essencialmente, ambos : o aspecto onda e

    o aspecto partícula.

    Esta natureza tipo Jano do ser quântico está

    condensada numa das colocações mais fundamentais

    da teoria quântica, o princípio da complementaridade,

    que declara que cada modo de descrever o ser, como

    onda ou como partícula, complementa o outro e queo quadro completo somente surge do ‘pacote’. Como

    os hemisférios direito e esquerdo do cérebro,

    cada uma das descrições fornece um tipo de

    informação que falta à outra (...)” (em O ser quântico,

    publicado pela Editora Best Seller, p. 24-25, ano de

    1990, tradução de Maria Antonia Van Acker, mas

    sem os caracteres negritados).

    10.4. Façamo-nos entender com mais clareza. O

    cérebro humano, também ele, tem duas dimensões.

    Dois hemisférios. Dois lados, enm. O primeiro lado

    é o da mente, que tenho como sinônimo de intelectoou inteligência. O segundo lado é o do sentimento, que

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    também designo por alma ou coração (coração-neurônio,

    lógico, e não coração-músculo-cardíaco). Sendo que estelado sentimento é tão intuitivo quanto o lado da mente

    é reexivo.

    10.5. Muito bem. Pelo uso de sua porção mente , o

    cérebro faz-se reexivo para poder seqüenciadamente

    isolar, analisar, descobrir e conhecer tudo que preexistaa ele. Sem tirar nem pôr. Indiretamente ou por metódicas

    aproximações do objeto investigado. Discursivamente.

     Já pelo uso de sua porção sentimento, o cérebro faz-se

    contemplativo e por um passe de intuição captura o real. É

    dizer: o cérebro libera a nossa imaginação para que ela

    possa, num súbito de percepção, privar da intimidadedo real e nele provocar um tipo inovador de reação.

    Donde se armar que a intuição é criativa, enquanto a

    razão, especulativa. Nesta residindo o conhecimento,

    e, naquela, a sabedoria (é de Einstein a proposição de

    que, “nos momentos de crise, só a inspiração supera o

    conhecimento”).

    10.6. Diga-se agora: quando se movimenta nos

    quadrantes do Direito-lei, a mente se volta para o

    conhecimento do texto normativo e assim é que a

    apreende a justiça objetiva ou em abstrato. Caminho

    inverso ao do sentimento, que, ao interagir com o fenô-meno jurídico, o faz mediante uma particularizada linha

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    direta  com o caso entre partes, se vier a intuir que tal caso

    é dotado de reexividade o bastante para desencadear

    no dispositivo que o descreve um efeito reciclador da

    sua inicial compreensão. É o que se pode chamar de

    reação normativa inédita do texto, mas não inédita por

    inexistir anteriormente, porém inédita por somente

    ganhar espaço de irrupção após impactar-se com

    a reverberação do caso concreto.  Vale dizer, reação

     virginal do texto que se depara com o surgimento de

    um espaço anímico no sujeito que o visualiza pela ótica

    da vida em seu ininterrupto e sempre novidadeiro uir

    (“o ser das coisas é o movimento”, anotava Heráclito,

    fundador da Escola Jônica).

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    A inteireza do serque maneja a reflexão

    e se abre para a intuição

    11.1. A dedução é imediata: o lidador jurídico assim

    ao mesmo tempo reexivo e intuitivo somente concilia o

    Direito legislado com a vida vivida  porque antes disso se

    concilia consigo próprio. Se se prefere, o intérprete que

    faz uso dos dois elementares lados do cérebro somente

    tem a chance de apanhar o Direito por inteiro porque

    ele mesmo se permite encontrar-se em plenitude. Não

    incompleto ou mutilado, quando como refreia em si umadas duas elementares funções do seu próprio cérebro.

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    11.2. Foi nesse especíco sentido — acredito — que

    o poeta Vinícius de Moraes armou que “a vida só se dá

    pra quem se deu”. Vale dizer: a vida só se dá por inteiro a

    quem por inteiro se dá a ela. E não seria assim na sinérgica

    relação entre o Direito e seu intérprete? Mormente o

    seu jurisdicional aplicador? O Direito a reconhecer,

     orteguianamente, “eu sou eu e as minhas circuns-

    tâncias”? Circunstâncias de que faz parte o juiz que sobre

    ele atua na plenitude do seu potencial reexivo e intuitivo?

    Como no poema de Fernando Pessoa,

    “Para ser grande, sê inteiro: nada

      Teu exagera ou exclui.

      Sê todo em cada coisa, Põe quanto és

      No mínimo que fazes.

      Assim em cada lago a lua toda

      Brilha, porque alta vive”.

    11.3. Em diferentes palavras, se o cérebro humano

    se manifesta ora como inteligência ora como sentimento,

    porque as duas coisas juntas são o que ele efetivamente

    é, também assim o Direito ora se manifesta como

    justiça da lei (vida pensada) ora como justiça do casoconcreto (vida vivida), porque as duas coisas são o que

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    ele efetivamente é. A justiça da lei a ser descoberta pela

    inteligência (mente, intelecto), a justiça do caso concreto

    a ser intuída pelo sentimento (alma, coração). Os dois

    envolvidos no mesmo e altaneiro empenho de alcançar

    um ponto de unidade que deixe para traz a própria

    dualidade por eles originariamente formada. Ponto de

    unidade que vai possibilitar a visão estelar do justo por

    si mesmo; que é o justo tão auto-evidente que afasta ou

    dispensa qualquer discussão em torno dele. Porque o seu

    acontecer já é um absoluto convencer.

    11.4. A se colocar um nome especíco nesse ponto

    de unidade entre o pensamento e o sentimento, tenho

    como apropriado o termo “consciência”. Esse vocá-bulo a que Pascal expressamente recorreu, quando disse

    que “Ciência sem consciência é ruína da alma”. Isso

    de permeio com uma das frases mais recorrentes da

    cultura ocidental, que é reconhecidamente a de que “o

    coração tem razões que a própria razão desconhece”. A

    mesma consciência, por sinal, de que falam os místicos

    orientais com a designação de “terceiro olho”. Esse olho

    que ninguém vê, por certo, mas que para eles é o único

    a ver tudo.

    11.5. Esse mesmo termo “consciência” também

    perpassa a mencionada obra de Konrad Hesse (embora semnenhum comentário quanto ao seu particularizado modo

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    de surgimento), como espécie de mola propulsora de

    uma psíquica “vontade de Constituição”. Isso paraque ela, Constituição, venha a se dotar de “força ativa”.

    Daí a seguinte passagem do prefácio que traz a abalizada

    assinatura do ministro Gilmar Mendes: “Sem desprezar

    o signicado dos fatores históricos, políticos e sociais

    para a força normativa da Constituição, confere Hesse

    peculiar realce à chamada vontade de Constituição (Wille zur

     Verfassung). A Constituição, ensina Hesse, transforma-se

    em força ativa se existir a disposição de orientar a própria

    conduta segundo a ordem nela estabelecida, se zerem-se

    presentes, na consciência geral — particularmente, na

    consciência dos principais responsáveis pela ordemconstitucional —, não só a vontade de poder (Wille zur

    Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille

    sur Verfassung)” (p. 5, negritos à parte).

    11.6. Por outro modo de dizer as coisas, sem afeti vi-

    dade a andar de braços dados com a inteligibilidade não se

    chega ao ponto ômega da consciência e aí já não se tem agarantia da efetividade do Direito-justo. Quer o Direito-

    justo a desatar dos comandos adjetivos ou processuais

    (sobretudo as chamadas garantias constitucionais do

    processo), quer o Direito-justo a desabrochar dos

    preceitos substantivos ou materiais (especialmente os

    rotulados de “direitos fundamentais” pelas própriasConstituições positivas).

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    11.7. Esse o caminho para se fazer da melhor

    regração em tese a melhor experiência cotidiana.Para relacionar por modo holístico (unitário, portanto)

    o dever-ser do Direito legislado e o ser das concretas

    decisões judiciais. Para aproximar um pouco mais o

    Ordenamento Jurídico romano-germânico (nações

    latinas e germânicas) e o da tradição anglo-americana

    ( common law  ). Somar à vontade da  Constituição a

     vontade de Constituição do operador jurídico. Tornar

    cada homem em particular um decidido humanista. Um

    militante, enm, da máxima cristã do “amai ao próximo

    como a vós mesmos”. Pois não se pode ignorar que o

    Direito, como ensinava o sergipano Tobias Barreto, “não

    é só uma coisa que se sabe; é também uma coisa que se

    sente”. Talvez até uma coisa que se sente em primeiro

    lugar ou com anterioridade em relação à inteligência, pois

    não se pode esquecer jamais que o próprio substantivo

    “sentença” vem do verbo “sentir” (é da poetisa Adélia

    Prado o juízo de que “o olhar amoroso sobre as coisas

    descobre um sentido atrás daquilo, na perspectiva nal

    do sentido da vida”).

    11.8. Deveras, o at lux  é a subida do operador jurídico

    aos páramos da própria consciência. Porque somente ela é

    que lapida o observador em um nível tal de depuração que

    lhe permite ver o quanto de mais lapidado já se encontra,potencialmente, na própria realidade observada. Antes da

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    consciência, o observador é um; depois da consciência,

    ele já é outro.  Mármore em estado bruto versus a Pietá de Michelangelo. Inexplicável dom de picotar o manto da

    noite e agrar o dia escondido lá dentro.

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    C A P Í T U L O X I I

    O sentimento comoo lado do cérebroque mais interage

    com o mundo dos valores.

    O rebento da consciência 

    12.1. Ainda um tanto é de se comentar sobre adisponibilidade da pessoa humana para o seu lado

    coração (alma, sentimento, conforme insistentemente

    anotado). É que esse lado coração tem a propriedade

    de mais fortemente interagir com a esfera dos valores.

     Assim entendidos os bens coletivos que se aninham

    nas regiões ônticas do civismo, da ética, da verdade,

    da estética e da bondade. Mais: interação com o

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    mundo onde se hospeda, num momento da mais

    intensa luminosidade, a decisão justa para o caso

    concreto. Que para esse padrão de justiça é que o Direito

    se põe como o anseio maior da humanidade. Anseio sem

    o qual “já não valeria a pena que os homens vivessem

    sobre a terra”, para lembrarmos festejada pregação de

    Immanuel Kant.

    12.2. Essa propriedade que tem o sentimento de nos

    catapultar  para o mundo dos valores é, portanto, a que mais

    intrinsecamente qualica a existência. Porque nos valores

    estão os mais sólidos fundamentos e os mais cristalinos

    propósitos de toda uma vida individual e ao mesmotempo coletiva (conforme vimos nos “fundamentos” e

    nos “objetivos fundamentais” da República Federativa

    do Brasil, versados, respectivamente, nos arts. 1º. e 3º. da

    Constituição de 1988). Neles residindo a elevação do ser

    a um patamar muito acima da sua mera biologicidade e

    até mesmo da sua mais cartesiana racionalidade. Pois que

    se trata de uma elevação que já é enlevo, encantamento,

    êxtase tão-só experimentado pelos que se vêem a serviço

    do seu próprio crescimento interior e do aprimoramento

    do Direito e da sociedade. Feito o mesmo Kant a dizer,

    tomado de seráco orgulho: “o céu estrelado sobre mime a lei moral dentro de mim”.

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    12.3. Fácil perceber que são eles, os valores, usinas

    de comportamentos sociais convergentes, porque inter-

    nalizados como bens coletivos; quer dizer, bens que

    favorecem a todos. Operando, então, como fatores

    de xidez, estabilidade, coesão, o que já se traduz num

    contínuo plasmar do que se poderia designar por uma alma

    comum. Uma só personalidade ou caráter comuni tário. Tudo por se tratar de idéias-força que se vão depurando

    no cadinho da História, de maneira a ganhar a objetiva

    consistência dos costumes. Daí que muitas vezes o

    desrespeito a eles seja socialmente tido por um escândalo

    ou proceder absolutamente intolerável, porque o fato é

    que os valores, assim guindados à condição de locomotivassociais , vão-se se tornando leis em sentido natural. Com

    um poder de persuasão ou uma vis-atrativa  ainda maior

    que a resultante das leis em sentido estatal-positivo.

    12.4. Seja como for, e para além de todo debate

    losóco sobre as características centrais dos valores(domínio da axiologia pura), são eles a mais consis-

    tente forja de um padrão de conduta retilíneo, rme,

    solidário e transparente. Não sinuoso, não bruxuleante,

    não egoístico, não opaco. Por isso que formadores de

    uma decantada práxis. Donde o reconhecimento de que,

    uma vez internalizados, passam a fazer parte da naturezamesma de cada pessoa e do corpo social por inteiro.

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     Aqui, plasmando o caráter coletivo e se tornando fator de

    coesão nacional (renove-se a proposição). Ali, injetando

    no moral de cada indivíduo a seiva da alegria e da paixão

    sem soberba por uma personalidade que deixa de ser lha

    do acaso pra se tornar uma obra de arte.

    12.5. Como também uma obra de arte, em certa

    medida, pode se tornar a própria descoberta-construçãoda norma de que o julgador precisa para a justa resolução

    do caso concreto. Anal — ainda uma vez recorro ao

    magistério de Tobias Barreto — há um pouco de ciência em

    cada arte, e um pouco de arte em cada ciência . Sendo que essa

    arte jurídica está para o sentimento assim como a ciência

    do Direito está para o pensamento. E se trou xermosessas noções p