Upload
gabriel-iuris
View
217
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
1/129
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
2/129
PÁGINA EM BRANCO
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
3/129
PÁGINA EM BRANCO
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
4/129
O humanismo como categoria
constitucional
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
5/129
PÁGINA EM BRANCO
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
6/129
Belo Horizonte
2012
Carlos Ayres Britto
O humanismo como categoria
constitucional
2ª reimpressão
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
7/129
© 2007 Editora Fórum Ltda. 2010 – 1ª reimpressão 2012 – 2ª reimpressão
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra,por qualquer meio eletrônico,
inclusive por processos xerográcos,
sem autorização expressa do Editor.
Editora Fórum Ltda. Av. Afonso Pena, 2770 – 15º/16º andares
Funcionários – CEP 30130-007Belo Horizonte – Minas Gerais
Tel.: (31) 2121.4900 / 2121.4949 www.editoraforum.com.br
Editor responsável: Luís Cláudio Rodrigues FerreiraCoordenação editorial: Olga M. A. Sousa
Bibliotecária: Alessandra Rodrigues da Silva – CRB 2459 – 6ª RegiãoProjeto gráco e formatação: Walter SantosCapa: Michelangelo, A criação de Adão, detalhe.
Britto, Carlos Ayres
O humanismo como categoria constitucional / Carlos Ayres Britto. 1. ed.2. reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
124 p.ISBN 978-85-7700-088-3
1. Humanismo. 2. Poder Judiciário. 3. Justiça. 4. Democracia. 5. Cons-tituição. I. Britto, Carlos Augusto Ayres de Freitas. II. Título.
CDD: 342 CDU: 342(81)
B862h
Informação bibliográca deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da AssociaçãoBrasileira de Normas Técnicas (ABNT):
BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional . 1. ed. 2. reimp. BeloHorizonte: Fórum, 2010. 124 p. ISBN 978-85-7700-088-3.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
8/129
A todas as pessoas que procuram fazer do
breve o intenso. Modo infalível de se fazerda eternidade uma experiência.
Também a todos os juízes que abrem as
janelas do Direito para o mundo circundante,
solícitos aos reclamos de uma justiça que sequer tão real quanto a vida que há lá fora.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
9/129
PÁGINA EM BRANCO
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
10/129
“Bom mesmo é ir à luta com determinação e
abraçar a vida com paixão, perder com classe
e vencer com ousadia, pois o triunfo pertence
a quem mais se atreve e a vida é muito para
ser insignicante”
Charles Chaplin
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
11/129
PÁGINA EM BRANCO
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
12/129
Sumário
CAP Í TU LO I
O humanismo como ilustração mental ...............................................................................................15
CAP Í TU LO I I
O humanismo como doutrina de exaltação ou culto à humanidade ..........19
CAP Í TU LO I I I
O humanismo como expressão de vida coletiva civilizada .......................................25
CAP Í TU LO I V
O humanismo como transubstanciação
da democracia política, econômico-social e fraternal ........................................................31
CAP Í TU LO V
O necessário vínculo operacional entre humanismo e Direito ..............................37
CAP Í TU LO V I
O descompasso entre a teoria e a prática humanista comoatestado de pobreza eficacial do Direito ............................................................................................43
CAP Í TU LO V I I
A imperiosa mudança de mentalidade como condição de
encurtamento de distância entre o discurso humanista e sua prática .......51
CAP Í TU LO V I I I
A mudança de mentalidade que implique analogia entreo humanismo e a justiça e que ainda diferencie justiça
em abstrato e justiça em concreto ............................................................................................................55
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
13/129
C A P Í T U L O I X
O operador do Direito na condição de ponte entre a justiçaem abstrato e a justiça em concreto ......................................................................................................59
C A P Í T U L O X
A estrutura dual do próprio cérebro humano como impulso
para a busca da justiça em concreto ....................................................................................................65
CAP Í TU LO X I
A inteireza do ser que maneja a reflexão e se abre para a intuição ............71
CAP Í TU LO X I I
O sentimento como o lado do cérebro que mais interage
com o mundo dos valores. O rebento da consciência .................................................77
CAP Í TU LO X I I I
A Constituição como o Direito mais axiológico e de mais forte
compromisso humanista .......................................................................................................................................87
CAP Í TU LO X I V
A Constituição dirigente como garantia de efetivação do humanismo .....91
CAP Í TU LO X V
A Constituição dirigente como imperativo de reconceituação
das chamadas “normas constitucionais programáticas” ............................................101
CAP Í TU LO X V I
O Poder Judiciário como garantidor da Constituição dirigente
e do humanismo .........................................................................................................................................................107
CAP Í TU LO X V I I
Conclusão: a governabilidade constitucional como o clímax
da governabilidade humanista ..................................................................................................................115
BIBLIOGRAFIA .........................................................................................................................................................................119
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
14/129
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
15/129
PÁGINA EM BRANCO
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
16/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
15
C A P Í T U L O I
O humanismo
como ilustração mental
1.1. Humanismo é vocábulo plurissignificativo.Polissêmico, então, como passamos a expor.
1.2. Uma das mais conhecidas acepções do verbete
é de aprofundado conhecimento das línguas e litera-
turas antigas. Inicialmente, cultivo do grego e do latim.
Com o passar do tempo, cultivo também do italiano e dofrancês, que nesse conjunto de idiomas é que foi escrita
a maior parte das obras representa tivas da literatura
ocidental (nela encartada a poesia). Sem obscurecer,
registre-se, a contribuição do inglês em que se expressou
o gênio de William Shakespeare, tanto quanto o espanhol
de que se valeu Miguel de Cervantes para compor o seuimortal “DON QUIJOTE DE LA MANCHA”.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
17/129
CARL OS AYRES BR I TTO
16
1.3. Outra vertente do vocábulo é a de pendor ou
gosto pelas ciências ditas “humanas”, em oposição
ao estudo das ciências tidas como “exatas”. Dicotomia
que bem se manifestava na antiga divisão dos cursos de
formação escolar de 2º. grau, aqui no Brasil, em “curso
clássico” e “curso cientíco”. Ambos preparatórios para o
exame-vestibular dos cursos de nível superior, sendo queo clássico se destinava ao estudo das ciências humanas;
também chamadas de ciências sociais.
1.4. O engate lógico já se percebe: humanista é a
pessoa versada nas referidas línguas, ou, então, voca-
cionada para as ciências sociais; pois que se trata deum modelo acadêmico de humanismo. Humanismo
dos doutos, subjetivado, marcadamente, nos lólogos,
historiadores, filósofos, juristas, cientistas políticos,
literatos, enm. Estrato social ainda hoje referido como
ícone de erudição ou cultura comumente adjetivada de
enciclopédica. Tudo muito próprio de uma sociedade
que exagera um pouco no prestígio à pura ilustração
mental de suas intelectualizadas elites, confundindo,
não raras vezes, bons costumes com boas maneiras;
acúmulo mecânico de informações com aprofundada
formação cultural; talento com memória; conhecimentocom sabedoria.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
18/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
17
1.5. Era, e ainda é, residualmente, o humanismo
típico de uma sociedade não por acaso apelidada de
bacharelesca; ou seja, palavrosa , enfatuada, conser vadora
(conservadora no plano da Política, conservadora no
plano das convenções sociais). O que não tem impedido
o despontar de estudiosos que aliam ao mais sólido lastro
cultural o mais vivo compromisso com a emancipação
político-social das massas empobrecidas.
1.6. O mais vivo compromisso, acresça-se, também
com o fazer da questão nacional uma trincheira de
resistência a um tipo de colonialismo mental que responde
pela descrença em nossa incomparável originalidade.
Esse colonialismo invisível, camuado, que, na agudapercepção de Eduardo Galeano, “te convence de que a
servidão é um destino e a impotência, a tua natureza: te
convence de que não se pode dizer, não se pode fazer,
não se pode ser” (em O livro dos abraços . 11. ed. Porto
Alegre: LP&M , 2004. p. 157).
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
19/129
PÁGINA EM BRANCO
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
20/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
19
C A P Í T U L O I I
O humanismocomo doutrina de exaltação
ou culto à humanidade
2.1. Uma terceira dimensão conceitual do humanismo
se nos dá como doutrina. Consiste num conjunto de
princípios que se unicam pelo culto ou reverênciaa esse sujeito universal que é a humanidade inteira.
Logo, o humanismo no sentido de crença na aventura
humana. Isto no pressuposto de ser o homem a obra-
prima da Criação. O “animal político” de que falava
Aristóteles, porquanto dotado da aptidão de sobrepor ao
espontâneo mundo da natureza o elaborado mundo da pólis; ou, como viria a teorizar Rousseau, o homem como
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
21/129
CARL OS AYRES BR I TTO
20
único ser capaz de pactuar com os seus semelhantes uma
vida em “estado de sociedade”, tendo por contraponto
um virginal “estado de natureza”.1
2.2. De fato, o desenrolar do tempo tem situado
o gênero humano no centro do universo. Da procla-
mação de que “o homem é a medida de todas as coisas”
(Protágoras) ao “cógito” de René Descartes, passando pelamáxima teológica de que todos nós fomos feitos à imagem
e semelhança de Deus, o certo é que a pessoa humana
passou a ser vista como portadora de uma dignidade inata.
Por isso que titular do “inalienável” direito de se assumir
tal como é: um microcosmo. Devendo-se-lhe assegurar
todas as condições de busca da felicidade terrena.
2.3. Essa altissonante dignidade do ser humano está
pressuposta na Magna Charta Libertatum dos ingleses, de
1215, e com explicitude passou a gurar nas modernas
declarações constitucionais de direitos, numa espécie de
viagem civilizatória sem volta . Isto ainda a partir da própriaInglaterra, sobretudo com a Petition of Right, de 1628,
1 Ver a obra O contrato social (Princípios de Direito Político), de Jean- Jacques Rousseau, Ediouro, tradução de Antônio de P. Machado,estudo crítico de Afonso Bertagnoli, capítulo VI, p. 34-36. Quanto
à expressão “estado de sociedade”, de se ver que ela ganhou forosde positivação jurídica na secção I da “Declaração de Direitos”,de Virgínia, datada de 16 de junho de 1776.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
22/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
21
a Lei de Habeas Corpus, de 1679, e o Ato de Estabelecimento,
de 12 de junho de 1701, assim como das emblemáticas
declarações de direitos das revoluções liberais que se
deram nos Estados Unidos da América e na França.
Aqui, tendo por linha de partida a famosa “Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão”, de 26 de agosto de
1789; ali, a menos conhecida porém igualmente meritória
“Declaração de Direitos de Virgínia”, datada de 16 de
junho de 1776.
2.4. Diga-se mais: toda essa perspectiva do humanismo
até hoje conserva o seu originário caráter político-civil
de prevalência do reino sobre o rei . Que outra coisa não
signicou senão a consubstanciação de três paulatinase correlatas idéias-força: a) o Direito por excelência é o
veiculado por uma Constituição Política, fruto da mais
qualicada das vontades norma tivas, que é a vontade
jurídica da nação; b) o Estado e seu governo existem
para servir à sociedade; c) a sociedade não pode ter outro
m que não seja a busca da felicidade individual dos
seus membros e a permanência, equilíbrio e evolução
dela própria.2
2 Expressam bem essas três idéias-força as seguintes passagens
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26de agosto de 1789: “Art. 1º. Os homens nascem e são livres eiguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
23/129
CARL OS AYRES BR I TTO
22
2.5. Mas é claro que, por conhecido desdobramento
histórico desses três entrelaçados princípios reitores, o
que se deu foi uma considerável ampliação na lista dos
clássicos direitos individuais, como, verbi gratia , o direito
à informação, ao desembaraçado acesso às instâncias
judiciárias, ao tratamento não-preconceituoso e até
mesmo favorecedor dos segmentos sociais historica-
mente discriminados (notadamente o dos negros e dos
índios, das mulheres e dos portadores de deciência).
Tanto quanto se vericou o reconhecimento formal
dos direitos de cunho econômico-social, mormente os
de matriz constitucional e incluídos, hoje, no rol dos
direitos fundamentais da pessoa humana (Santo Agostinho dizia que “sem um mínimo de bem-estar
material não se pode sequer servir a Deus”). Sendo
que tais direitos de índole econômico-social se liam,
historicamente, às Consti tuições mexicana (1917),
soviética (1918) e alemã (Weimar, 1919), enquanto que
utilidade comum”; “Art. 2º. O m de toda a associação política éa conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do homem.Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e aresistência à opressão”; “Art. 3º. O princípio de toda a soberaniareside essencialmente na Nação (...)”; “Art. 6º. A lei é a expressão da
vontade geral (...)”; “Art. 16. Qualquer sociedade em que não estejaassegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separaçãodos poderes não tem Constituição”.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
24/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
23
os direitos neste nosso estudo designados por fraternais se
denem com mais precisão nas Constituições portuguesa
de 1976 e brasileira de 1988.3
2.6. É o que se pode designar por constitucionalismo
cumulativo. Um constitucionalismo crescentemente
superavitário, como se dá com a ciência e a cultura, a
ponto de autorizar a ilação de que, graças a ele, o Estadode Direito termina por desembocar num Estado de direitos .
O que não signica uma generalizada situação de afrouxa-
mento dos deveres e responsabilidades de cada indivíduo
para com o próprio Estado e a sociedade civil. As duas
coisas bem podem conviver na mais perfeita harmonia.
3 Constituições de cujo preâmbulo faz parte o vocábulo “fraterno(a)” como objetivo a ser alcançado ora pelo “País” (Portugal), orapela “sociedade” (Brasil).
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
25/129
PÁGINA EM BRANCO
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
26/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
25
C A P Í T U L O I I I
O humanismocomo expressão de
vida coletiva civilizada
3.1. Passo a consignar uma terceira signicação do
humanismo. Não sem antes realçar o seguinte: toda essa
histórica e formal proclamação de ser a pessoa humana
portadora de uma dignidade “inata” é o próprio Direito
a reconhecer o seguinte: a humanidade que mora em
cada um de nós é em si mesma o fundamento lógico ou
o título de legitimação de tal dignidade. Não cabendo a
ele, Direito, outro papel que não seja o de declará-la. Não
propriamente o de constituí-la, porque a constitutividadeem si já está no humano em nós.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
27/129
CARL OS AYRES BR I TTO
26
3.2. Em palavras outras, a circunstância do humano em
nós é que nos confere uma dignidade primaz. Dignidade
que o Direito reconhece como fator legitimante dele
próprio e fundamento do Estado e da sociedade.
Percepção tão recorrente nos escritos do inglês John
Locke e do franco-suiço Jean-Jacques Rousseau, tanto
quanto no iluminismo francês de Voltaire, Diderot,Marat, Mirabeau, Danton e Emanuel Joseph de Sieyès
(todos eles sob ponderável inuência de Rousseau, tanto
quanto Rousseau foi ponderavelmente inuenciado por
Locke). Mas uma percepção que também permeia os
ensinamentos dos místicos e as composições dos poetas,
de que serve de amostra este belíssimo verso dos artistas
brasileiros Tom-zé e Ana Carolina: “Cada homem é
sozinho a casa da humanidade”. Sem falar no antológico
poema “Tabacaria”, do português Fernando Pessoa, que
principia com os seguintes versos:
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
28/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
27
3.3. Não há negar. O princípio jurídico da dignidade
da pessoa humana decola do pressuposto de que todo ser
humano é um microcosmo. Um universo em si mesmo.
Um ser absolutamente único, na medida em que, se é
parte de um todo, é também um todo à parte; isto é, se
toda pessoa natural é parte de algo (o corpo social),
é ao mesmo tempo um algo à parte. A exibir na lapelada própria alma o bóton de uma originalidade que ao
Direito só compete reconhecer até para se impor como
expressão de vida comum civilizada (o próprio Direito
a, mais que impor respeito, se impor ao respeito, como
diria o juiz-poeta sergipano João Fernandes de Britto).
3.4. Sucede que, ao reconhecer por modo jurídico a
inata dignidade da pessoa humana — sobretudo quanto
à modelagem de um pluralismo que não desemboque
jamais no preconceito como traço cultural, de parelha
com a preceituação de uma aproximativa igualdade de
acesso às fontes do poder, da riqueza e do saber —,a sociedade termina por se autoconferir a credencial
de civilizada. O qualicativo de evoluída. Sendo esse,
precisamente, o terceiro signicado do huma nismo: tra-
duzir uma vida em comum que mereça o galardão de
culturalmente avançada. Entendendo-se por sociedade
culturalmente avançada, ao menos no plano norma-tivo, a que institui: a) mecanismos de oportunidades
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
29/129
CARL OS AYRES BR I TTO
28
aproximativamente iguais nos campos da política, da
economia e da educação formal; b) acesso facilitado
aos órgãos do Poder Judiciário, aos serviços públicos
e à seguridade social (saúde, previdência e assistência
social); c) vivência de um pluralismo político e também
cultural (ou social genérico), tendo este por limite a não-
incidência jamais em preconceito.
3.5. Por que estamos a indicar esses domínios de
interação humana como denotadores de humanismo,
neste último sentido de sociedade evoluída ou cultu-
ralmente avançada? Porque são eles que, em seu
conjunto, mais respondem pela qualidade de vidade todo um povo. Por isso que jurisdicizados , contem-
poraneamente, como situações jurídicas ativas que se
desfrutam às expensas do Estado e de toda a sociedade.
E em se tratando de direitos ambientais, sociais e do
tipo fraternal, a sua efetividade se eleva à condição de
dado conceitual de toda a economia do País. É dizer,
economia que já não restringe a sua noção de dinamismo
à abertura para as inovações tecnológicas e aos ganhos
de produtividade; tem que passar pelo atendimento às
necessidades de preservação do meio ambiente e às postu-
lações de segurança social e de uma decidida integraçãocomunitária (logo, fraternal).
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
30/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
29
3.6. Convém repetir, com ligeiros acréscimos: focado
pelo prisma dos interesses do todo social, o desenvol-
vimento tem que ser mais do que um mecânico ou linear
crescimento econômico. Ele há de exibir uma dimensão
política ou de soberania nacional, pela exigência que
se lhe faz de ser um desenvol vimento do tipo auto-
sustentado ou sem temerária dependência externa.
Como também há de exibir três outras dimensões:
a) a dimensão da pura justiça social, a se dar por um
progressivo compartilhamento dos seus frutos com
todos os estratos de que a sociedade se compõe; b) a
dimensão do mesmo e respeitoso tratamento para os
referidos grupos de pessoas que até hoje experimentamo travo da discriminação social (por isso que destinatárias
da compensação em que se traduz a ferramenta das
ações armativas; d) a denitiva absorção da idéia de
equilíbrio ecológico enquanto elemento de sua própria
denição. É como está, por sinal, na própria Consti tuição
brasileira de 1988, conforme um pouco mais à frentecomprovaremos.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
31/129
PÁGINA EM BRANCO
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
32/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
31
C A P Í T U L O I V
O humanismocomo transubstanciaçãoda democracia política,
econômico-social e fraternal
4.1. Eminentemente cultural, portanto, é essa terceira
dimensão conceitual do humanismo. Visto, porém, sob
roupagem jurídica, e mais especicamente sob roupagem
jurídico-constitucional, esse padrão de humanismo se
confunde com a própria democracia. Transubstancia-
se na democracia que gradativamente se impôs
como idéia-força ou princípio de organização dos
Estados e das sociedades nacionais do Ocidente,após a segunda guerra mundial.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
33/129
CARL OS AYRES BR I TTO
32
4.2. Deveras, a Democracia ocidental dos dias
correntes é a que se constitui em inexcedível para digma de
mobilidade vertical nos campos, justamente: a) da política
enquanto área específica do poder governamental-
administrativo; b) da economia enquanto fonte de toda
riqueza material; c) da educação formal enquanto espaço
de um saber direcionado “ao pleno desenvolvimento dapessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualicação para o trabalho” (art. 205 da Constituição
brasileira de 1988). Tudo isso de parelha com as citadas
relações sociais de facilitado acesso à jurisdição, aos
serviços públicos e à seguridade social, mais o pluralismo
político e o social genérico (estes últimos a signicar odireito de ser pessoalmente inconfundível com quem
quer que seja, contanto que esse direito de ser diferente
não resvale para a prática da discriminação de outrem).
Sendo que o campo da política é de ser entendido na
sua renovada conguração político-civil, de modo aabarcar os clássicos e novos direitos individuais (dentre
estes, o direito à informação, à ética na Adminis tração
Pública e às ações armativas ), a vigorar de modo paralelo
às relações de soberania popular e de cidadania. Já o
campo da economia, a se materializar na dualidade básica
do capital e do trabalho, de sorte a compor uma ordemeconômico-nanceira de prestígio, a um só tempo, da
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
34/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
33
liberdade de iniciativa e do atendimento das necessidades
materiais básicas dos empregados e dos trabalhadoresautônomos. E quanto ao campo do saber, enm, a se
espraiar pelos domínios da educação formal, dos cursos
prossionalizantes e do mencionado preparo para o
exercício da cidadania.
4.3. Sendo assim, dá-se verdadeira fusão entre vidacoletiva civilizada (culturalmente vanguardeira, foi dito) e
democracia. Isto no sentido de se entender por vida em
comum civilizada aquela que transcorre, circularmente,
nos arejados espaços da contemporânea democracia.
Com o que o humanismo e a democracia passam a
formar uma unidade incindível. Inapartável.
4.4. Recolocando a idéia: status civilizatório ou
elevado padrão de civilidade de todo um povo é
uma terceira dimensão conceitual do huma nismo.
A mais recorrente, por sinal. A ser alcançada mediante
mecanismos de Direito positivo que já se contêm no
contemporâneo conceito de democracia. Democracia
que em Constituições como a portuguesa de 1976
e a brasileira de 1998 ostentam os seguintes traços
sionômicos :
I – democracia procedimentalista , também conhe-
cida por Estado Formal de Direito ou EstadoDemocrático de Direito, traduzida no modo
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
35/129
CARL OS AYRES BR I TTO
34
popular-eleitoral de constituir o Poder Político
(composto pelos parlamentares e pelos que se
investem na chea do Poder Executivo), assim
como pela forma dominantemente representativa
de produzir o Direito legislado;
II – democracia substancialista ou material, a se
operacio nalizar: a) pela multiplicação dos nú-cleos decisórios de poder político, seja do lado
de dentro do Estado (desconcentração orgânica),
seja do lado de fora das instâncias estatais
(descentralização personativa, como, por amos-
tragem, o plebiscito, o referendo e a iniciativa
popular); b) por mecanismos de ações distributivistas no campo econômico-social. Vínculo funcional,
esse (entre a democracia e a segurança social), que
a presente Constituição italiana bem expressa na
parte inicial do seu art. 1º., verbis : “A Itália é uma
República democrática fundada no trabalho”;
III – democracia fraternal, caracterizada pela positi-
vação dos mecanismos de defesa e preservação
do meio ambiente, mais a consagração de um
pluralismo conciliado com o não-preconceito,
especialmente servido por políticas públicas de
ações armativas que operem como fórmula decompensação das desvantagens historicamente
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
36/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
35
sofridas por certos grupamentos sociais, como os
multirreferidos segmentos dos negros, dos índios,
das mulheres e dos portadores de deciência física
(espécie de igualdade civil-moral, como ponto
de arremate da igualdade política e econômico-
social).
4.5. É o quanto basta para a dedução de que o huma-nismo enquanto vida coletiva de alto padrão civili zatório
é aquele que transcorre nos mais dilatados cômodos da
contemporânea democracia de três vértices: a procedi-
mentalista, a substancialista e a fraternal. Os dois termos
(humanismo e democracia) a se interpenetrar por osmose,
e não mais por simples justaposição. Donde a metáforada transubstanciação.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
37/129
PÁGINA EM BRANCO
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
38/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
37
C A P Í T U L O V
O necessáriovínculo operacional
entre humanismo e Direito
5.1. Esse atualizado humanismo signica atribuir à
humanidade o destino de viver no melhor dos mundos.
A experimentar o próprio céu na terra , portanto. Mas
assim transfundido em democracia plena, ele passa amanter com o Direito uma relação necessária. O Direito
enquanto meio, o humanismo enquanto m. É como
dizer: o humanismo, alçado à condição de valor jurí-
dico, é de ser realizado mediante guras de Direito. Que
são os institutos e as instituições em que ele, Direito
Positivo, se decompõe e pelos quais opera. No caso, eperti nentemente à formatação do Estado, tais guras de
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
39/129
CARL OS AYRES BR I TTO
38
Direito se traduzem em coisas como audiências públicas,
sufrágio universal, voto direto e secreto, eleições perió-dicas, referendos, iniciativa popular, programações orça-
mentárias, políticas públicas, acordos internacionais
(entre as políticas públicas, as de natureza tributária que
se mostrem seleti vamente estimuladoras de uma ordem
econômico-nanceira que se volte para a crescente partilha
social dos seus ganhos).
5.2. Não que as Constituições precisem nominar
o humanismo. Basta que elas falem de democracia
para que ele esteja automaticamente normado.
Como se pode concluir dos incisos de I a V do art. 1º.
da Constituição de 1988, que, sob a denominação de“fundamentos” da República Federativa do Brasil, fez
da democracia (logo, do humanismo) uma feérica estrela
de cinco pontas : “soberania”, “cidadania”, “dignidade da
pessoa humana”, “valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa”, “pluralismo político”. Sendo que a expressão
“dignidade da pessoa humana”, ali naquele dispositivo,ainda não é todo o humanismo; é a parte do humanismo
que mais avulta, de modo a ocupar uma posição de
centralidade no âmbito mesmo dos direitos fundamentais
de todo o sistema constitucional brasileiro.
5.3. Também por instantânea dedução, infere-se
que, dissolvendo-se na democracia, ou em outro valoruniversalmente aceito como o próprio fim de uma
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
40/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
39
civilizada convivência humana (paz, bem comum, justiça,
bem-estar geral...), o humanismo não podia car do
lado de fora do Direito. Não podia ser indiferente ao
Sistema Jurídico de cada povo soberano. Sabido que o
Direito é a realidade normativa que mais se aproxima
dos atributos da unidade, coerência e plenitude. Única,
além do mais, a se caracterizar pela heteronomia e
garantida possibilidade de execução dos seus comandos
(só as normas jurídicas são “imperativos autorizantes”,
preleciona Goffredo Telles Júnior). Numa frase, o Direito
é o mais engenhoso esquema que a humanidade até hoje
concebeu para viabilizar o absolutamente necessário
“estado de sociedade”. Estado de sociedade sem o quala experiência humana estaria condenada à barbárie,
num autofágico pugilato de todos contra todos. O anti-
humanismo por denição.4
4 O rousseauniano estado de sociedade pressupõe, já foi dito, umcontrato social que Afonso Bertagnoli assim comenta: “Emsentido mais losóco, o contrato aparece como forma bilateralou multilateral, incluindo compromissos recíprocos. O contratosocial de Rousseau — também designado como pacto social — éo conjunto de convenções fundamentais que, ainda que nuncahajam sido formalmente enunciadas, resultam implícitas na vidaem sociedade, sendo a sua fórmula a designada de que cada umde nós coloca em comum a pessoa em seu total poderio, sob a
suprema direção da vontade geral; em conseqüência, recebemos,cada um, uma parte indivisível do todo comum” (prefácio do livroO contrato social , anteriormente indicado).
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
41/129
CARL OS AYRES BR I TTO
40
5.4. Por assim entender foi que o emblemático Von
Ihering falou do Direito como o complexo das próprias
condições existenciais da sociedade, garantidas pelo Poder Público.
“O modus vivendi ” possível, na síntese feliz de Tobias
Barreto, por se constituir numa “força cultural destinada
a ser domadora das forças naturais da vida” (apud José
Silvério Leite Fontes, em O pensamento jurídico sergipano,Ed. UFS, ano de 2003, p. 19). Tudo na linha dos brocardos
latinos que tanto se sabe de cor e salteado: “ubi societas ib
jus”, “ubi jus ib societas” (onde houver sociedade haverá
direito, onde houver direito haverá sociedade), a traduzir
duas realidades que se exigem e se complementam, na
trama de uma dialética de verdadeira “implicação epolaridade”, na precisa linguagem de Miguel Reale.
5.5. Realmente, salta aos olhos que o Direito é o sistema
de normas que melhor concilia imperatividade com
exigibilidade. Imperatividade, na medida em que todo
dispositivo jurídico é um comando, uma determinação,um mandamento, uma ordem, enm, ditada por órgãos e
agentes de pronto referidos como autoridades do Sistema.
A própria face visível do poder. Exigibilidade, a seu turno,
por sempre haver previsão legal de sanções ou medidas
de constrição que tais autoridades cam habilitadas a
impor contra quem lhes resista às determinações. Demodo coerente, aliás, com o princípio da presunção de
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
42/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
41
verdade e licitude dos atos do Poder Público. Princípio
que, na Constituição de 1988, tem uma de suas matrizes
no seguinte enunciado:
“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios:
II – recusar fé aos documentos públicos”.
5.6. São considerações que cimentam a radicalidade
deste juízo: mais do que não poder ser visto como um
indiferente jurídico, o humanismo teria mesmo que se
positivar como a própria democracia de três vértices.
Principalmente se considerarmos que esse paradigma
de democracia é um processo de armação do poder
ascendente. Que é um poder que nasce de baixo
para cima, e não de cima para baixo. Logo, poder
umbilicalmente comprometido com os interesses da
maioria do povo (situada na base da pirâmide social), enão daquelas pessoas já situadas no topo da hierarquia
estatal, ou econômica. Noutro dizer, próprio da
democracia é o constante empenho para tirar o povo
da platéia e colocá-lo no palco das decisões que lhe
digam respeito. De passivo espectador para autor do seu
próprio destino. “Todos decidindo sobre tudo”, comopreconizava Rousseau. Quem quer que seja a dizer o
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
43/129
CARL OS AYRES BR I TTO
42
que quer que seja (acrescentamos), de sorte a se poder
inferir que ela, democracia, é o único regime que faz da
mais ampla participação popular o aplainado caminho
de busca da mais abrangente inclusão social e integração
comunitária (nunca é demais lembrar que a palavra
comunidade vem de comum unidade , na holística percepção
espiritual-quântica de que, anal, “tudo é um”).
5.7. E aqui vem o arremate da idéia do necessário traço
de união entre o humanismo como valor cultural genérico
e a democracia como especíco valor jurídico, a ponto de
o primeiro se dissolver na segunda: é que não há nada
de essencial ao humanismo que já não se contenha
no espectro atual da democracia. Por isso que esta oabsorve e a ele comunica sua natureza de tema central
de Direito Constitucional.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
44/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
43
C A P Í T U L O V I
O descompasso entre
a teoria e a prática humanistacomo atestado de pobreza
eficacial do Direito
6.1. Juridicamente, pois, estamos a lidar com
preciosas formulações regratórias. Lapidares “normas
de organização e de conduta” (Bobbio), tracejadoras de
um padrão de humanismo que já é a própria democracia
de três vértices. Mas não podemos esquecer que mesmo
um excelente referencial normativo para o concreto agir
humano ainda não é o concreto agir humano. Pois o certo
é que o humanismo não se tem feito acompanhar senão
de uma prática muito aquém dos prometidos mundos e fundos . Tem sido algo muito mais retórico do que real.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
45/129
CARL OS AYRES BR I TTO
44
Bom para a auto-estima das pessoas patrimonializadas e
dos países ditos desenvolvidos, mas incapaz de esconder
a vexatória verdade de que somente uma micro-minoria
de seres humanos é que vive de regular para ótimo. Já a
macro-maioria, muito ao contrário, vive mesmo é de ruim
para péssimo. Como evidenciam os dramáticos desníveis
de riqueza e de saber entre os Estados Unidos da América
do Norte e países membros da União Européia, de um
lado, e, de outro, parte dos países da Ásia e a grande
maioria dos povos da África e da América do Sul. Tanto
quanto as gritantes assimetrias entre habitantes dos
próprios Estados mais ricos. No interior deles, então.
Não sendo despropositado dizer, trocadilhando, que o planeta está empanturrado de gente com fome .5
5 Um dos maiores paradoxos da globalização é que ela universalizaa informação mais aliciante para o consumo de tudo quanto ébem material, porém elitiza a respectiva aquisição. Do que decorreuma crescente insatisfação por parte das massas econômica esocialmente excluídas, a se manifestar sob a forma tendencialde violência urbana. O que faz eclodir, a seu turno, o conhecidofenômeno da criminalidade de situação ou de ambiência de vida.Pelo que ela, globalização, bem pode ser visualizada como correiade transmissão desse maestro ideológico que atende pelo nomede “neoliberalismo”. Fincado, este, no tripé economicista dananceirização (trânsito sem fronteiras do capital especulativo,sempre sedento dos mais altos juros), da terceirização e da
privatização. Estes dois últimos aspectos incessantementedenunciados na arrebatadora fala e nos luminosos escritos de Celso Antônio Bandeira de Mello.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
46/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
45
6.2. Numa frase, o humanismo dos dias atuais ainda
é mais de fachada do que autêntico. Feito o ditado populardo “ faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”, mesmo
no círculo de uma economia mundial que atravessa um
eufórico período de autopropulsão. Daí que os enver-
gonhados semáforos e marquises de Nova Iorque (capital
nanceira dos Estados Unidos da América) e de Bruxelas
(capital política da União Européia) não consigam
esconder que por debaixo deles há grupos de mendigos
dividindo com a sarjeta suas últimas sobras de gente. Isso
como conseqüência do fato de que o presente modelo
de globalização reduz tão sistematicamente postos
de trabalho para o homem de baixa instrução escolarque já se pode dizer que a luta de classes, hoje, é entre
desempregados e desempregadores. Assim como agudiza
o problema do fechamento das fronteiras dos países
economicamente mais prósperos para as levas e levas
de imigrantes que o exausto sistema produtivo dos seus
países de origem não tem como absorver. A comprovarque esse padrão globalizante de vida não signica livre
circulação de pessoas e idéias, propriamente, porém de
capitais avessos a qualquer tipo de controle jurídico por
parte dos Estados de baixo teor de poupança interna
(por isso que dispostos a pagar juros muito mais altos
que os praticados nos países de origem desses capitaistão sanguessugas quanto voláteis).
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
47/129
CARL OS AYRES BR I TTO
46
6.3. Ora bem, constatar esse renitente quadro factual
de esqualidez do humanismo é também comprovar
que o Sistema Jurídico dos Estados soberanos
não vem cumprindo a sua especíca função de
qualicar a vida dos seus humanos destinatários, ao
menos como característica central. Sabido que tal
qualicação é a que se põe como exigência mesma
da justiça enquanto “valor fundante do Direito”
(Miguel Reale). E que a realização de nenhum valor
humano essencial pode ter outra ferramenta institucional
mais ecaz do que ele, Direito Positivo.
6.4. Nesse ritmo argumentativo, e somente para
tomar de empréstimo o discurso da Constituição de 1988,é de se pôr em realce a marcante atualidade do que ele tem
como objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, a saber: “I – construir uma sociedade livre, justa
e solidária; II – garantir o desen volvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bemde todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Nada
obstante, o que se tem ao rés-do-chão ou no plano dos fatos?
Tem-se que na Terra Brasilis o humanismo persiste como
um ideal de reduzido teor de concretude democrática.
Pois inquestionável é que pelas bandas de cá prosseguemde extrema gravidade os descompassos sócio-regionais;
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
48/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
47
o subemprego; a incipiente educação ambiental do povo
e até dos governantes; os mais atávicos precon ceitos; a
teimosíssima indistinção entre o espaço público e o privado
(confunde-se tomar posse nos cargos com tomar posse
dos cargos); uma economia informal que não pára de
crescer e cada vez mais sem-cerimônia ; a triste ciranda do
contingenciamento de despesas de investimento para a
formação dos altíssimos superávits primários (em torno
de 4,5% do PIB) com que são pagos os juros mais altos
do mundo à casta dos rentistas; os estratosféricos lucros
do setor bancário (só no primeiro semestre do corrente
ano de 2007 o Banco Itaú e o Banco Bradesco obtiveram
lucros que, somados, ultrapassaram a casa dos 8 bilhõesde reais; a corrupção sistêmica, enm. Corrupção que
mais responde por u’a massiva exclusão socioeconômica
e que já se manifesta no enquadrilhamento de não poucos
setores das classes “dominante e dirigente” (Gramsci)
para o prossionalizado saque do patrimônio e dos
dinheiros públicos. Donde o seguinte comentário deMarcelo Neves:
“A corrupção sistêmica se associa ao problema da
exclusão. De um lado, a subinclusão signica que
amplos setores sociais dependem das exigências dos
subsistemas da sociedade mundial complexa (terconta no banco, educação formal, saúde etc.), mas
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
49/129
CARL OS AYRES BR I TTO
48
não têm acesso aos respectivos benefícios. No campo
do direito, isso implica subordinação aos deveres
impostos pela ordem jurídica, mas falta de acesso
a direitos básicos. De outro lado, a sobreinclusão
signica que certos setores privilegiados têm acesso
aos benefícios dos sistemas sociais, mas não se
subordinam às suas imposições restritivas, o que
implica exercício dos direitos sem subordinação a
deveres” (artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo,
caderno A3, edição de 27 de junho de 2007).6
6.5. Também Eduardo Lins da Silva, num rompante
de santa indignação, bradou que “a corrupção é nefasta
não apenas por ser imoral. Ela é uma das causas mais
6 Certo que economistas e cientistas sociais de peso, como oportuguês Antônio Borges, não deixam de creditar ao atual sistemaeconômico brasileiro a virtude dos investimentos que dão mostrasde se deslocar do mercado nanceiro para a produção, tendo por
pano de fundo uma certa continuidade histórica de políticas públicas,taxa de inação competentemente controlada, responsabilidadescal, moeda forte e crescentes níveis de exportação (conferênciafeita em seminário promovido pela Faculdade de Direito daUniversidade de Coimbra, no dia 9 de julho de 2007, sob acoordenação do professor-doutor Manoel Carlos Lopes Porto).Mas impossível negar que permanecem assustadores os altos índices brasileiros de economia informal, o baixo teor de renda per capita e coisas como prostituição e trabalho infantil, trabalho
escravo, moradores de rua, catadores de lixo, proliferação de favelasnos grandes centros urbanos, como São Paulo, Rio de Janeiro, BeloHorizonte, Salvador e Recife.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
50/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
49
profundas da ineficiência e aumento de custos em
qualquer organismo no qual ocorra” (mesmo jornal
Folha de S.Paulo, caderno A, p. 3, em data de 10 de
junho de 2006). Renitência num patrimonialismo que
chega ao mais deslavado saque do Erário, pois o fato
é que o padre Antônio Vieira, desde o século XVII,
já denunciava o colonizador espanhol e o portuguêscom estas corajosas palavras: “os governadores chegam
pobres às Índias ricas e saem ricos das Índias pobres”
(referindo-se às Índias Ocidentais, nome dado à América
por Cristóvão Colombo, que acreditava haver atingido a
Ásia). Caldo de cultura que responde pela triste armativa
de que “a corrupção é o cupim da República”, feita pelo
presidente da Assembléia Nacional Constituinte brasi-
leira de 1986/1988, deputado Ulysses Guimarães. Tudo
a mostrar a permanência da necessidade de um redobrar
de esforços de toda a sociedade civil e das instituições
públicas para a compreensão de que, ali onde a ética na
política não é tudo, a política não é nada.
6.6. Cabe perguntar, naturalmente: que metodologia
ou providência institucional a tomar, diante de tão
grandes distâncias entre o discurso e a prática do Direito?
Como fazer da melhor normatividade em abstrato amelhor experiência? Acasalar o dever-ser dos comandos
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
51/129
CARL OS AYRES BR I TTO
50
legislativos e o ser das concretas relações interindividuais
e intergrupais? Sair das pranchetas da Constituição para
entrar nos altiplanos da vida?
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
52/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
51
C A P Í T U L O V I I
A imperiosa mudançade mentalidade como
condição de encurtamentode distância entre o discurso
humanista e sua prática
7.1. Reperguntando: como principiar a reduzir otamanho desse enorme fosso entre um discurso tão
altruísta e uma prática tão egocêntrica? Penso que por uma
radical mudança de mentalidade. Uma decidida disposição
para retrabalhar a noção de humanismo, que já não deve
ser visto apenas como o caminho que vai da humanidade
para o homem, porém, simultaneamente, do homem paraa humanidade. Equivale a dizer: o humanismo é culto
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
53/129
CARL OS AYRES BR I TTO
52
ou exaltação à humanidade, sem dúvida, contanto que
tal reverência também se dê perante cada qual das
células de que essa humanidade se compõe. Chegue
até ao ser humano em carne e osso. Ser humano, ajunte-se,
tão mais sicamente próximo de nós quanto carente de
oportunidades socioeconômicas e de igual tratamento
cortês, respeitoso, fraterno.
7.2. Esse novo humanismo de necessária mão dupla
absorve, sim, a referida máxima de que “o homem é a
medida de todas as coisas” (Protágoras), porém, primeiro,
o homem enquanto gênero; isto é, de sorte a abranger
todos os exemplares masculinos e femininos sem nenhuma
exceção. Depois, todos os homens e mulheres em suasefetivas condições existenciais de idade, regionalidade,
cor da pele, etnia, classe social, conformação psicofísica,
assim como em suas preferências rigorosamente pessoais:
a religiosa, a losóca, a prossional, a partidária, a
sexual, etc.. Pois somente assim é que se consegue viver
numa “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias”, conforme a prossão de fé que se lê no
preâmbulo da Constituição brasileira de 1988.
7.3. De fato, não é só amando a humanidade quese ama o homem, porém, reciprocamente, é amando o
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
54/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
53
homem que se ama a humanidade. Até porque é muito
fácil, muito cômodo, muito conveniente dizer que se amao sujeito universal que é a humanidade inteira. Difícil,
ou melhor, desaador é amar o sujeito individual que
é cada um de nós encarnado e insculpido. Aqui, um ser
humano em concreto, visível a olho nu, ao alcance da
nossa mão estendida ou do nosso ombro solidário. Ali,
não. Ali o que se tem é um abstrato sujeito coletivo.
Tão espacialmente distante quanto sionomicamente
indenido. Logo, amor sem risco nenhum de que nos
façam as únicas perguntas que mais importam para a
denição da nossa personalidade: como efetivamente
lidamos com os nossos pais, lhos, esposos e esposas, de
papel passado ou não? Em clima de amor, efetiva presença
e responsabilidades divididas? Dando-lhes o exemplo
pessoal de toda uma vida permeada de compromisso
ético e devoção cívica? E quanto aos nossos empregados,
colegas de trabalho, porteiros do nosso condomínio,
ascensoristas dos prédios que freqüentamos, jornaleiros,garçons, entregadores de pizza ? Como nos relacionamos
com cada qual deles? Chamando-os pelos respectivos
nomes? Reconhecendo seus elementares direitos e
dispensando-lhes um tratamento cordial? Do mesmo
jeito que apreciamos ser pessoalmente tratados?
7.4. Essas as perguntas que mais contam, dissemos,porque não pode haver humanismo sem humanistas.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
55/129
CARL OS AYRES BR I TTO
54
República sem republicanos. Como impossível é
praticar a democracia sem democratas. O que nos
remete para os domínios do nexo causal entre o modo
habitual de agir de uma cole tividade (práxis) e a sua
peculiar visão de mundo. Donde a referência a uma
urgente mudança de mentalidade, para que, na senda
do verbo que se faz carne , o olimpicamente objetivo se
transmute em concretos fazeres subjetivos.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
56/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
55
C A P Í T U L O V I I I
A mudança dementalidade que implique
analogia entre o humanismoe a justiça e que ainda
diferencie justiça em abstratoe justiça em concreto
8.1. Bem, para nós, os operadores do Direito, os
lidadores jurídicos, a aplicação dessa nova mentalidade
ao nosso cotidiano labor passa por uma analogia entre
o humanismo e a justiça; isto é, passa pela colocação
da justiça como tema-alvo de estudo, como zemos atéagora com o humanismo.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
57/129
CARL OS AYRES BR I TTO
56
8.2. Explico. A justiça em abstrato, aquela que d esla
pela passarela do Ordenamento legislado (a partir daConstituição), essa costuma ser de boa qualidade em
todos os Estados onde vigora o sistema jurídico da
democracia de três vértices. E assim em abstrato ou em
tese, é justiça que bem corresponde às mais depuradas
postulações humanistas. O problema, então, não é esse. O
gargalo do Direito não está aí, porque nunca se contestou
que esse tipo retórico de justiça incorpora, sim, os avanços
que têm assinalado a marcha triunfalmente democrática
do constitucionalismo ocidental dos últimos 20, 25 anos
(tirante a ditadura cubana, não há mais como esconder).
Porém não passa de justiça como discurso legislado ou
valor simbólico, insista-se. Por isso mesmo que distante,
fria, orgulhosa de sua imperturbável objetividade (“a
lei é um padrão objetivo de justiça”, escreveu Hans
Kelsen). Justiça meramente pensada, por conseguinte, e
não propriamente vivida. Necessária referência teórica, é
certo, no sentido de que, sendo a justiça das leis, coloca-se como inafastável ponto de partida para a resolução
dos casos concretos (“Ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”,
reza o inciso II do art. 5º da Constituição do Brasil). Não,
porém, como necessário ponto de chegada.
8.3. Ponto de chegada — essa a questão central — éa justiça que quase todo litígio ou caso concreto exige
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
58/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
57
somente para si. Com exclusividade, destarte, porque
o mais das vezes cada caso é um caso mesmo. E cada
caso é um caso, o mais das vezes, devido à irreprimível
versatilidade da vida, que é surpreendente e novidadeira
por sua própria natureza. Um arrumar as malas para o
innito, como no inspirado verso de Fernando Pessoa.
Daí porque habitualmente irredutível às formulaçõesjurídico-positivas. Aos esquemáticos enunciados do
Direito legislado.
8.4. Como de remansoso conhecimento, a lei em
sentido material quer valer para todas as ações a que
se refere e por isso é que se adorna do atributo da
generalidade. Quer valer para todos os sujeitos a que
se destina e por esse motivo se confere a característica
da impessoalidade. Quer valer para sempre (enquanto
não for revogada ou formalmente mexida, lógico) e daí
o seu traço de abstratividade. Ora, querendo-se assim
genérica, impessoal e abstrata — é dizer, querendo-se, de uma só cajadada , imperante para tudo, para todos
e para sempre, a lei não tem como fugir do discurso
esquemático ou clicherizador da realidade; que é um
discurso inescondivelmente simplista. Donde ter que
pagar um preço por esse discurso-rótulo, e esse preço
que a lei paga por incidir num tipo de comunicação verbal reducionista é a sua exposição a interpretações
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
59/129
CARL OS AYRES BR I TTO
58
polissêmicas e à contínua rebeldia da vida (cambiante
por natureza).
8.5. Fechando o pensamento: a justiça das dispo-
sições legislativas é abstrata. A justiça do caso entre
partes é concreta. A primeira está para a humani dade
assim como a segunda está para o homem. Ambas são
mutuamente complementares, na acepção de que asduas se imbricam e nenhuma é mais básica do que a
outra. E as duas juntas são o que o direito é: dual,
bifronte, binário, como na gura mitológica de Jano.
Corresponde a falar: o Direito é, na sua estruturalidade,
tanto a abstrata justiça das leis (inclusive e sobretudo
a justiça das Constituições) quanto a empírica justiçadas decisões judiciais. E também na sua funcionalidade
o Direito é binário, porque tanto se manifesta sob a
forma de norma geral (Direito-lei) quanto sob a forma
de norma individual (Direito-sentença).
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
60/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
59
C A P Í T U L O I X
O operador do Direito
na condição de ponteentre a justiça em abstrato
e a justiça em concreto
9.1. Nessa perspectiva, se o Direito é estrutural e
funcionalmente bifronte, o que importa para o lidador
jurídico é transitar pelo sempre custoso, trabalhoso,é certo, mas necessário e instigante caminho do meio
( medius in virtus ). Em linguagem metafórica, nem
ancorar tão-só no cais da justiça objetiva, nem navegar
exclusivamente no mar da justiça do caso concreto. Pois
muitas vezes o cais do porto apenas contém a primeira
metade do Direito. Situação em que a outra metade sópode estar nas ondulações do mar aberto.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
61/129
CARL OS AYRES BR I TTO
60
9.2. No tema, o princípio regente das coisas
continua a ser o da complementaridade (implicação epolaridade, conforme Reale). Por isso que, se a primeira
metade do Direito condiciona o visual da segunda, esta
última costuma repercutir sobre aquela primeira para
redimensionar o respectivo perl. Uma como que a
ajudar a outra para a feitura de um trabalho comum de
plenicação. Como num aparelho auto-reverse . Ou numa
gangorra em que o justo-real só pode se postar em
ambos os assentos. Donde a ilação de que o resgate da
norma jurídica em sua inteireza exige um processo de
interpretação que seja: a) uma virginal revelação do que
se contém no texto normativo ainda sem a inuência do
caso concreto; b) um refundir dessa inicial revelação, se o
caso concreto reverberar sobre o texto que o descreve.
9.3. Noutro modo quiçá mais ilustrativo de colocar
a idéia: entre o texto legislado e a decisão judicial navega
o sentido. Ali, algo signicante. Aqui, algo signicado.
Mas algo signicado que pode ser o fruto de idas e vindas do intérprete entre o texto referente e o caso
referido, se a relação entre ambos caracterizar-se por
uma tão mútua quanto irresistível inuência. É quando
o dever-ser do Direito se concilia com o ser da vida e aí
já não há descompasso entre a justiça como formulação
meramente objetiva e a justiça material do caso entrepartes. O que nos transporta para recente entrevista do
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
62/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
61
ministro César Asfor Rocha, do Superior Tribunal de
Justiça, na parte em que Sua Excelência assim verbaliza
o mais belo ideal de todo o Poder Judiciário nacional:
“Nosso maior sonho é ter um Judiciário brasileiro que
possa distribuir justiça não como iguaria de festa, mas
como o pão nosso de cada dia” (p. 19 do número 83 da
revista Justiça e Cidadania , mês de junho de 2007).
9.4. Também em Konrad Hesse, na sua prossão de
fé pelo reconhecimento de mais e mais força normativa
à Constituição, lê-se:
“O signicado da ordenação jurídica na realidade e
em face dela somente pode ser apreciado se ambas
— ordenação e realidade — forem consideradas
em sua relação, em seu inseparável contexto, e
no seu condicionamento recíproco. Uma análise
isolada, unilateral, que leve em conta apenas um
ou outro aspecto, não se agura em condições de
fornecer resposta adequada à questão. Para aqueleque contempla apenas a ordenação jurídica, a norma
‘está em vigor’ ou ‘está derrogada’; não há outra
possibilidade. Por outro lado, quem considera,
exclusivamente, a realidade política e social, ou não
consegue perceber o problema na sua totalidade, ou
será levado a ignorar, simplesmente, o signicado da
ordenação jurídica.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
63/129
CARL OS AYRES BR I TTO
62
‘A despeito de sua evidência, esse ponto de partida
exige particular realce, uma vez que o pensamento
constitucional do passado recente está marcado
pelo isolamento entre norma e realidade, como se
constata tanto no positivismo jurídico de Escola de
Paul Laband e Georg Jellinek, quanto no ‘positivismo
sociológico’de Carl Schmitt. Os efeitos dessaconcepção ainda não foram superados. A radical
separação, no plano constitucional, entre realidade
e norma, entre ser ( sein ) e dever ser ( sollen ) não
leva a qualquer avanço na nossa indagação. Como
anteriormente observado, essa separação pode
levar a uma conrmação, confessa ou não, da tese
que atribui exclusiva força determinante às relações
fáticas. Eventual ênfase numa ou noutra direção leva
quase inevitavelmente aos extremos de uma norma
despida de qualquer elemento de realidade ou de uma
realidade esvaziada de qualquer elemento normativo.
Faz-se mister encontrar, portanto, um caminho entre
o abandono da normatividade em favor do domínio
das relações fáticas, de um lado, e a normatividade
despida de qualquer elemento da realidade, de
outro. Essa via somente poderá ser encontrada se se
renunciar à possibilidade de responder às indagações
formuladas com base numa rigorosa alternativa.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
64/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
63
A norma constitucional não tem existência autônoma
em face da realidade. A sua essência reside na sua
vigência , ou seja, a situação por ela regulada pretende
ser concretizada na realidade. Essa pretensão de
ecácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada
das condições históricas de sua realização, que
estão, de diferentes formas, numa relação de interde-
pendência, criando regras próprias que não podem ser
desconsideradas” (em A força normativa da Constituição.
Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 13-15).
9.5. Elucidar é preciso, porém, que estamos a falar
de “texto normativo” como expressão sinônima de
“dispositivo”. Enunciado que se exprime em signos
lingüísticos ou estruturas de linguagem, natural mente.
Corresponde a dizer: dispositivo ou texto normativo é
qualquer das partes lógicas de que se compõe o esqueleto, a
estrutura formal de toda Constituição, todo código, todalei, todo regulamento. Logo, partes que se exteriorizam
sob a forma de um artigo, ou de um parágrafo, um inciso,
uma alínea, um número arábico, na invariável condição de
invólucro de norma jurídica. Seja uma norma-princípio,
seja uma norma-preceito ou simplesmente “regra”, ambas
as categorias a ter o seu conteúdo signicante e grau deecácia desvelados a cada momento de sua particularizada
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
65/129
CARL OS AYRES BR I TTO
64
aplicação. Donde o caráter de descoberta-construção,
assim geminadamente, da norma anal aplicada. Com
o que o próprio conteúdo do justo deixa de ser uma
formulação tão prévia quanto denitiva para se tornar
uma constante garimpagem nos veios do processo cultural
da vida.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
66/129
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
67/129
CARL OS AYRES BR I TTO
66
10.2. Resposta: por efeito de uma virtude pessoal
que atende pelo nome de senso de justiça real, material .
Que não é senão sensibilidade social à or da pele . Ou
o mais sólido compromisso com a vida no seu eterno
agora (Krishnamurti, Osho, Eckhart Tolle, Neal Donald
Walsch, William Segal), sem, contudo, perder de
vista as coordenadas mentais do Direito legislado.
Qualidades próprias daqueles que agregam ao manejo
da reexão o espocar da intuição. Essas duas outras
categorias que provêm, respectivamente, do hemisfério
esquerdo e do hemisfério direito do cérebro humano.
Como sempre disseram os místicos orientais e passaram
a dizer os maiores expoentes da física quântica.10.3. Particularmente ilustrativo desse pensar quân-
tico são os ensaios da norte-americana Danah Zohar,
para quem
“A mais revolucionária e, para nossos ns, a mais
importante afirmação que a física quântica fazacerca da natureza da matéria, e talvez do próprio
ser, provém de sua descrição da dualidade onda-
partícula (...) a armativa de que todo ser, no nível
subatômico, pode ser igualmente bem descrito
como partículas sólidas, como um certo número de
minúsculas bolas de bilhar, ou como ondas, como as
ondulações na superfície do oceano. Mais que isso, a
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
68/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
67
física quântica prossegue dizendo que nenhuma das
duas descrições tem real precisão quando isolada e
que tanto o aspecto onda como o aspecto partícula
do ser devem ser levados em conta quando se
procura compreender a natureza das coisas. É a
própria dualidade do processo básico. A ‘substância’
quântica é, essencialmente, ambos : o aspecto onda e
o aspecto partícula.
Esta natureza tipo Jano do ser quântico está
condensada numa das colocações mais fundamentais
da teoria quântica, o princípio da complementaridade,
que declara que cada modo de descrever o ser, como
onda ou como partícula, complementa o outro e queo quadro completo somente surge do ‘pacote’. Como
os hemisférios direito e esquerdo do cérebro,
cada uma das descrições fornece um tipo de
informação que falta à outra (...)” (em O ser quântico,
publicado pela Editora Best Seller, p. 24-25, ano de
1990, tradução de Maria Antonia Van Acker, mas
sem os caracteres negritados).
10.4. Façamo-nos entender com mais clareza. O
cérebro humano, também ele, tem duas dimensões.
Dois hemisférios. Dois lados, enm. O primeiro lado
é o da mente, que tenho como sinônimo de intelectoou inteligência. O segundo lado é o do sentimento, que
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
69/129
CARL OS AYRES BR I TTO
68
também designo por alma ou coração (coração-neurônio,
lógico, e não coração-músculo-cardíaco). Sendo que estelado sentimento é tão intuitivo quanto o lado da mente
é reexivo.
10.5. Muito bem. Pelo uso de sua porção mente , o
cérebro faz-se reexivo para poder seqüenciadamente
isolar, analisar, descobrir e conhecer tudo que preexistaa ele. Sem tirar nem pôr. Indiretamente ou por metódicas
aproximações do objeto investigado. Discursivamente.
Já pelo uso de sua porção sentimento, o cérebro faz-se
contemplativo e por um passe de intuição captura o real. É
dizer: o cérebro libera a nossa imaginação para que ela
possa, num súbito de percepção, privar da intimidadedo real e nele provocar um tipo inovador de reação.
Donde se armar que a intuição é criativa, enquanto a
razão, especulativa. Nesta residindo o conhecimento,
e, naquela, a sabedoria (é de Einstein a proposição de
que, “nos momentos de crise, só a inspiração supera o
conhecimento”).
10.6. Diga-se agora: quando se movimenta nos
quadrantes do Direito-lei, a mente se volta para o
conhecimento do texto normativo e assim é que a
apreende a justiça objetiva ou em abstrato. Caminho
inverso ao do sentimento, que, ao interagir com o fenô-meno jurídico, o faz mediante uma particularizada linha
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
70/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
69
direta com o caso entre partes, se vier a intuir que tal caso
é dotado de reexividade o bastante para desencadear
no dispositivo que o descreve um efeito reciclador da
sua inicial compreensão. É o que se pode chamar de
reação normativa inédita do texto, mas não inédita por
inexistir anteriormente, porém inédita por somente
ganhar espaço de irrupção após impactar-se com
a reverberação do caso concreto. Vale dizer, reação
virginal do texto que se depara com o surgimento de
um espaço anímico no sujeito que o visualiza pela ótica
da vida em seu ininterrupto e sempre novidadeiro uir
(“o ser das coisas é o movimento”, anotava Heráclito,
fundador da Escola Jônica).
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
71/129
PÁGINA EM BRANCO
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
72/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
71
C A P Í T U L O X I
A inteireza do serque maneja a reflexão
e se abre para a intuição
11.1. A dedução é imediata: o lidador jurídico assim
ao mesmo tempo reexivo e intuitivo somente concilia o
Direito legislado com a vida vivida porque antes disso se
concilia consigo próprio. Se se prefere, o intérprete que
faz uso dos dois elementares lados do cérebro somente
tem a chance de apanhar o Direito por inteiro porque
ele mesmo se permite encontrar-se em plenitude. Não
incompleto ou mutilado, quando como refreia em si umadas duas elementares funções do seu próprio cérebro.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
73/129
CARL OS AYRES BR I TTO
72
11.2. Foi nesse especíco sentido — acredito — que
o poeta Vinícius de Moraes armou que “a vida só se dá
pra quem se deu”. Vale dizer: a vida só se dá por inteiro a
quem por inteiro se dá a ela. E não seria assim na sinérgica
relação entre o Direito e seu intérprete? Mormente o
seu jurisdicional aplicador? O Direito a reconhecer,
orteguianamente, “eu sou eu e as minhas circuns-
tâncias”? Circunstâncias de que faz parte o juiz que sobre
ele atua na plenitude do seu potencial reexivo e intuitivo?
Como no poema de Fernando Pessoa,
“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa, Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive”.
11.3. Em diferentes palavras, se o cérebro humano
se manifesta ora como inteligência ora como sentimento,
porque as duas coisas juntas são o que ele efetivamente
é, também assim o Direito ora se manifesta como
justiça da lei (vida pensada) ora como justiça do casoconcreto (vida vivida), porque as duas coisas são o que
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
74/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
73
ele efetivamente é. A justiça da lei a ser descoberta pela
inteligência (mente, intelecto), a justiça do caso concreto
a ser intuída pelo sentimento (alma, coração). Os dois
envolvidos no mesmo e altaneiro empenho de alcançar
um ponto de unidade que deixe para traz a própria
dualidade por eles originariamente formada. Ponto de
unidade que vai possibilitar a visão estelar do justo por
si mesmo; que é o justo tão auto-evidente que afasta ou
dispensa qualquer discussão em torno dele. Porque o seu
acontecer já é um absoluto convencer.
11.4. A se colocar um nome especíco nesse ponto
de unidade entre o pensamento e o sentimento, tenho
como apropriado o termo “consciência”. Esse vocá-bulo a que Pascal expressamente recorreu, quando disse
que “Ciência sem consciência é ruína da alma”. Isso
de permeio com uma das frases mais recorrentes da
cultura ocidental, que é reconhecidamente a de que “o
coração tem razões que a própria razão desconhece”. A
mesma consciência, por sinal, de que falam os místicos
orientais com a designação de “terceiro olho”. Esse olho
que ninguém vê, por certo, mas que para eles é o único
a ver tudo.
11.5. Esse mesmo termo “consciência” também
perpassa a mencionada obra de Konrad Hesse (embora semnenhum comentário quanto ao seu particularizado modo
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
75/129
CARL OS AYRES BR I TTO
74
de surgimento), como espécie de mola propulsora de
uma psíquica “vontade de Constituição”. Isso paraque ela, Constituição, venha a se dotar de “força ativa”.
Daí a seguinte passagem do prefácio que traz a abalizada
assinatura do ministro Gilmar Mendes: “Sem desprezar
o signicado dos fatores históricos, políticos e sociais
para a força normativa da Constituição, confere Hesse
peculiar realce à chamada vontade de Constituição (Wille zur
Verfassung). A Constituição, ensina Hesse, transforma-se
em força ativa se existir a disposição de orientar a própria
conduta segundo a ordem nela estabelecida, se zerem-se
presentes, na consciência geral — particularmente, na
consciência dos principais responsáveis pela ordemconstitucional —, não só a vontade de poder (Wille zur
Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille
sur Verfassung)” (p. 5, negritos à parte).
11.6. Por outro modo de dizer as coisas, sem afeti vi-
dade a andar de braços dados com a inteligibilidade não se
chega ao ponto ômega da consciência e aí já não se tem agarantia da efetividade do Direito-justo. Quer o Direito-
justo a desatar dos comandos adjetivos ou processuais
(sobretudo as chamadas garantias constitucionais do
processo), quer o Direito-justo a desabrochar dos
preceitos substantivos ou materiais (especialmente os
rotulados de “direitos fundamentais” pelas própriasConstituições positivas).
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
76/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
75
11.7. Esse o caminho para se fazer da melhor
regração em tese a melhor experiência cotidiana.Para relacionar por modo holístico (unitário, portanto)
o dever-ser do Direito legislado e o ser das concretas
decisões judiciais. Para aproximar um pouco mais o
Ordenamento Jurídico romano-germânico (nações
latinas e germânicas) e o da tradição anglo-americana
( common law ). Somar à vontade da Constituição a
vontade de Constituição do operador jurídico. Tornar
cada homem em particular um decidido humanista. Um
militante, enm, da máxima cristã do “amai ao próximo
como a vós mesmos”. Pois não se pode ignorar que o
Direito, como ensinava o sergipano Tobias Barreto, “não
é só uma coisa que se sabe; é também uma coisa que se
sente”. Talvez até uma coisa que se sente em primeiro
lugar ou com anterioridade em relação à inteligência, pois
não se pode esquecer jamais que o próprio substantivo
“sentença” vem do verbo “sentir” (é da poetisa Adélia
Prado o juízo de que “o olhar amoroso sobre as coisas
descobre um sentido atrás daquilo, na perspectiva nal
do sentido da vida”).
11.8. Deveras, o at lux é a subida do operador jurídico
aos páramos da própria consciência. Porque somente ela é
que lapida o observador em um nível tal de depuração que
lhe permite ver o quanto de mais lapidado já se encontra,potencialmente, na própria realidade observada. Antes da
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
77/129
CARL OS AYRES BR I TTO
76
consciência, o observador é um; depois da consciência,
ele já é outro. Mármore em estado bruto versus a Pietá de Michelangelo. Inexplicável dom de picotar o manto da
noite e agrar o dia escondido lá dentro.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
78/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
77
C A P Í T U L O X I I
O sentimento comoo lado do cérebroque mais interage
com o mundo dos valores.
O rebento da consciência
12.1. Ainda um tanto é de se comentar sobre adisponibilidade da pessoa humana para o seu lado
coração (alma, sentimento, conforme insistentemente
anotado). É que esse lado coração tem a propriedade
de mais fortemente interagir com a esfera dos valores.
Assim entendidos os bens coletivos que se aninham
nas regiões ônticas do civismo, da ética, da verdade,
da estética e da bondade. Mais: interação com o
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
79/129
CARL OS AYRES BR I TTO
78
mundo onde se hospeda, num momento da mais
intensa luminosidade, a decisão justa para o caso
concreto. Que para esse padrão de justiça é que o Direito
se põe como o anseio maior da humanidade. Anseio sem
o qual “já não valeria a pena que os homens vivessem
sobre a terra”, para lembrarmos festejada pregação de
Immanuel Kant.
12.2. Essa propriedade que tem o sentimento de nos
catapultar para o mundo dos valores é, portanto, a que mais
intrinsecamente qualica a existência. Porque nos valores
estão os mais sólidos fundamentos e os mais cristalinos
propósitos de toda uma vida individual e ao mesmotempo coletiva (conforme vimos nos “fundamentos” e
nos “objetivos fundamentais” da República Federativa
do Brasil, versados, respectivamente, nos arts. 1º. e 3º. da
Constituição de 1988). Neles residindo a elevação do ser
a um patamar muito acima da sua mera biologicidade e
até mesmo da sua mais cartesiana racionalidade. Pois que
se trata de uma elevação que já é enlevo, encantamento,
êxtase tão-só experimentado pelos que se vêem a serviço
do seu próprio crescimento interior e do aprimoramento
do Direito e da sociedade. Feito o mesmo Kant a dizer,
tomado de seráco orgulho: “o céu estrelado sobre mime a lei moral dentro de mim”.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
80/129
O HUMAN I SMO COMO CATEG OR I A CONS T I TUC I ONAL
79
12.3. Fácil perceber que são eles, os valores, usinas
de comportamentos sociais convergentes, porque inter-
nalizados como bens coletivos; quer dizer, bens que
favorecem a todos. Operando, então, como fatores
de xidez, estabilidade, coesão, o que já se traduz num
contínuo plasmar do que se poderia designar por uma alma
comum. Uma só personalidade ou caráter comuni tário. Tudo por se tratar de idéias-força que se vão depurando
no cadinho da História, de maneira a ganhar a objetiva
consistência dos costumes. Daí que muitas vezes o
desrespeito a eles seja socialmente tido por um escândalo
ou proceder absolutamente intolerável, porque o fato é
que os valores, assim guindados à condição de locomotivassociais , vão-se se tornando leis em sentido natural. Com
um poder de persuasão ou uma vis-atrativa ainda maior
que a resultante das leis em sentido estatal-positivo.
12.4. Seja como for, e para além de todo debate
losóco sobre as características centrais dos valores(domínio da axiologia pura), são eles a mais consis-
tente forja de um padrão de conduta retilíneo, rme,
solidário e transparente. Não sinuoso, não bruxuleante,
não egoístico, não opaco. Por isso que formadores de
uma decantada práxis. Donde o reconhecimento de que,
uma vez internalizados, passam a fazer parte da naturezamesma de cada pessoa e do corpo social por inteiro.
8/16/2019 O Humanismo como Categoria Constitucional - 2ª reimpressão.pdf
81/129
CARL OS AYRES BR I TTO
80
Aqui, plasmando o caráter coletivo e se tornando fator de
coesão nacional (renove-se a proposição). Ali, injetando
no moral de cada indivíduo a seiva da alegria e da paixão
sem soberba por uma personalidade que deixa de ser lha
do acaso pra se tornar uma obra de arte.
12.5. Como também uma obra de arte, em certa
medida, pode se tornar a própria descoberta-construçãoda norma de que o julgador precisa para a justa resolução
do caso concreto. Anal — ainda uma vez recorro ao
magistério de Tobias Barreto — há um pouco de ciência em
cada arte, e um pouco de arte em cada ciência . Sendo que essa
arte jurídica está para o sentimento assim como a ciência
do Direito está para o pensamento. E se trou xermosessas noções p