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1 O imaginário no design gráfico autoral um estudo a partir de coleções literárias *

O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

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TCC apresentado em janeiro de 2011 no curso de Artes Visuais - habilitação Design Gráfico na Universidade Federal de Pelotas - UFPel

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Page 1: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

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O imaginário no design gráfico autoralum estudo a partir de coleções literárias

*

Page 2: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

2 3

Universidade Federal de Pelotas

Instituto de Artes e Design

Curso de Artes Visuais

Habilitação em Design Gráfico

O imaginário no design gráfico autoral:

um estudo a partir de coleções literárias

Carolina Moraes Marchese

Pelotas, 2010

Trabalho de conclusão de curso apresentado

ao Curso de Artes Visuais Habilitação Design

Gráfico da Universidade Federal de Pelotas,

como requisito parcial à obtenção do título de

Bacharel em design gráfico

Orientadora Profa. Ms. Ana da Rosa Bandeira

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4 5

Banca examinadora

Guilherme Carvalho da RosaMarcos Namba BeccariMaria de Lourdes Valente Reyes

*

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6 7

Ao Caio Fernando Abreu, por reaparecer nesse momento. À

Ana, por compartilhar o amor pelos livros e entender meus

encantamentos. E por ser a melhor orientadora. À Maria

de Lourdes e ao Guilherme, por terem aceito o convite para

a banca e me presentearem com suas considerações. Ao

Marcos Beccari, pelas oficinas no N-Curitiba, as trocas de

e-mail, os referenciais e, principalmente, por ter aceito ser

membro da banca mesmo à distância. Aos professores Fer-

nando, Kelly, Duda, Daniel e Vivian, por terem sido ótimos

nos encontros durante esses quatro anos de IAD, provocando

reconsiderações e reencantamentos. Ao PET Artes Visuais,

pelas experiências. Aos amigos, por serem lindos. Sempre.

Ao Lauro, por estar junto. Ao meu avô Ery e à minha avó Eu-

nice, por existirem e compartilharem isso comigo. Aos meus

pais, por serem e permanecerem. *

Agradecimentos *

Page 5: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

8 9

Resumo

O presente trabalho procura estabelecer algumas relações entre o objeto livro

e seu projeto gráfico, focando o estudo em coleções literárias. Através da histó-

ria da leitura, vista a partir de André Belo e das mudanças de configuração do

objeto ao longo do tempo, pela visão histórica de Philip Meggs, são realizadas

considerações à respeito da apresentação deste objeto na contemporaneidade.

Utilizando a sociologia compreensiva de Michel Maffesoli e as noções discu-

tidas pelos Estudos do Imaginário, são realizadas algumas considerações a

respeito da identidade gráfica de coleções literárias selecionadas e do próprio

objeto, refletindo também algumas ideias do filósofo Vilém Flusser. Ao final

da pesquisa teórica, são apresentadas as capas pertencentes a uma coleção

autoral, cuja estruturação do projeto utiliza as noções desenvolvidas ao longo

deste processo. Palavras-chave: design editorial, capa de livro, imaginário

Abstract

This study tries to estabilish some relationships between the book object and

its graphic project, focusing the study in literary collections. Throughout the

history of reading, seen since André Belo and the changes of the object con-

figuration over time, through the historical view of Philip Meggs, conside-

rations are made about how this object is presented in contemporary times.

Using Michel Maffesoli’s comprehensive sociology and the notions discus-

sed by the Imaginary Studies, some considerations are made about graphi-

cal identity of selected literary collections and the object itself, also reflecting

some ideas of philosopher Vilém Flusser. After the theoretical research, co-

vers from an authorial collection whose design structure uses the notions de-

veloped throughout this process are presented. Keywords: editorial design,

book cover, imaginary

Page 6: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

10 11

Lista de figuras

Figura 1 - Capa do Livro das perguntas ................................................................... 17

Figura 2 - Lombada do Livro das perguntas ...........................................................17

Figura 3 - Capa de Bartleby, o escrivão.....................................................................18

Figura 4 - Páginas de Bartleby, o escrivão sendo refiladas.............................18/19

Figura 5 - Rolo de velino. ............................................................................................22

Figura 6 - Tipos móveis ..............................................................................................23

Figura 7 - Bíblia de Gutenberg .................................................................................24

Figura 8 - Página de Vita et Fabulae, impressão de Anton Sorg, 1479...............25

Figura 9 - Página de livro de geometria projetado por Pickering.................26/27

Figura 10 - Página interna de The works of Geoffrey Chaucer.....................26/27

Figura 11 - Imagem tipográfica do livro Alice no país das maravilhas................28

Figura 12 - Páginas de Un coup de dés....................................................................28

Figura 13 - Capa para livro de Reiner Maria Rilke...................................................29

Figura 14 - Base nine and twelve, tipografia de Zuzana Licko.............................29

Figura 15 - Página interna da revista Ray Gun.........................................................29

Figura 16 - Sobrecapa e capa para livro de David Sedaris.....................................30

Figura 17 - Capa para livro de Kurt Andersen...........................................................31

Figura 18 - O leitor de livre postura...........................................................................35

Figura 19 - Livros incorporados à decoração..........................................................36

Figuras 20, 21, 22, 23 - Estrutura do livro...........................................................38/39

Figura 24 - Página de The telephone book..............................................................40

Figura 25 - Página de Hella Lonjerius........................................................................40

Figura 26 - Página de Informal....................................................................................40

Figura 27 - Capa de Antologia Poética......................................................................41

Figura 28 - Capa de Budapeste..................................................................................41

Figura 29 - Capa de Love Poems................................................................................41

Figura 30 - Capa de A pista de gelo...........................................................................42

Figura 31 - Capa de Atlas.............................................................................................42

Figura 32 - Capa de Em outros quartos, outras surpresas.....................................42

Figura 33 - Capa de Até o dia em que o cão morreu..............................................43

Figura 34 - Capa de Satolep........................................................................................43

Figura 35 - Capa de A disciplina do amor.................................................................43

Figura 36 - Capa de Urupês.........................................................................................44

Figura 37 - Capa de Caravana dos destinos.............................................................45

Figuras 38,39 e 40 - Capa, página de abertura de capítulo e página dupla de

miolo de Nós..................................................................................................................45

***** Figuras 41,42 e 43 - Capas da Colecção de obras célebres..................................46

Figura 44 - Capas da editora José Olympio.............................................................47

Figura 45 - Capas de Eugenio Hirsch.........................................................................48

Figura 46 - Capa de Ziraldo.........................................................................................49

Figura 47 - Capa de Bea Feitler...................................................................................49

Figura 48 - Capa de Marius Bern................................................................................49

Figura 49 - Capas do Clube do Livro.........................................................................49

Figura 50 - Capas do Clube do Livro.........................................................................50

Figura 51 - Capas da coleção Debates......................................................................51

Figuras 52 e 53 - Capas d’O Livro amarelo do terminal.........................................53

Figura 54 - Capa e quarta-capa d’O Livro amarelo do terminal...........................54

Figura 55 - Diferentes tipos de papel d’O Livro amarelo do terminal.................55

Figura 56 - Uso da transparência dos diferentes tipos de papel d’O Livro

amarelo do terminal ....................................................................................................55

Figura 57 - Coleção Clássicos da Editora Abril........................................................58

Figuras 58, 59 e 60 - Capas da coleção Great Ideas...............................................59

Figura 61 - Lombadas da coleção Great Ideas........................................................59

Figura 62 - Capa da Penguin, 1935............................................................................60

Figura 63 - Capa da Penguin, 1949...........................................................................60

Figura 64 - Capa do selo Penguin-Companhia, 2010...........................................60

Figuras 65, 66, 67 e 68 - Capas da coleção Raymond Chandler..........................61

Figuras 69, 70, 71 e 72- Capas para livros de Caio Fernando Abreu...................61

Figuras 73, 74, 75 e 76 - Capas da coleção Particular............................................62

Figura 77- Caixa da coleção Moda Brasileira I.........................................................63

Figura 78- Livros da coleção Plenos Pecados..........................................................63

Figura 79 - Detalhes da coleção Particular..............................................................65

Figura 80 - Detalhes da abertura de páginas em Zazie no metrô........................66

Figura 81 - Detalhes de Primeiro Amor.....................................................................67

Figura 82 - Detalhes da abertura de páginas em Primeiro Amor.........................67

Figura 83 - Detalhes da coleção José Lins do Rego..............................................68

Figura 84 - Detalhe da impressão da coleção José Lins do Rego.......................69

Figuras 85, 86, 87, 88, 89 e 90 - Volumes da coleção Moda Brasileira I.............71

Figura 91 - Estrutura de capa da coleção Moda Brasileira I..................................72

Figura 92 - Detalhes internos de Ronaldo Fraga.....................................................73

Figura 93 - Detalhes da coleção Plenos Pecados...................................................74

Figura 94 - Detalhes da aplicação de verniz............................................................75

Figura 95 - Detalhes da estrutura interna dos livros..............................................76

Figura 96 - Detalhe da página de abertura de capítulo.........................................77

Page 7: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

12 13

Sumário

Introdução..............................................................................15

1 O livro....................................................................................21

1.1 O objeto.............................................................22

1.2 A imprensa no Brasil........................................32

1.3 A leitura, o leitor...............................................34

2 O design no livro.................................................................37

2.1 A estrutura.........................................................38

2.2 O design de livros no Brasil............................44

2.3 O livro e o designer.........................................52

3 Coleções literárias como base para criação.................57

3.1 O que é coleção literária.................................58

3.2 Análises..............................................................64

3.2.1 Coleção Particular................................65

3.2.2 Coleção José Lins do Rego................68

3.2.3 Coleção Moda Brasileira I...................71

3.2.4 Coleção Plenos Pecados....................74

3.3 Criando uma coleção.....................................80

4 Descrição metodológica.................................................143

Considerações finais...........................................................149

Referências Bibliográficas..................................................157

** *

* * *

* * * **

**

Page 8: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

14 15

Introdução

amor (ô). [Do lat. amore.] S. m. 1. Sentimento que

predispõe alguém a desejar o bem de outrem, ou

de alguma coisa: amor ao próximo; amor ao patri-

mônio artístico de sua terra. 9. Afeição, amizade,

carinho, simpatia, ternura. 10. Inclinação ou ape-

go profundo a algum valor ou alguma coisa que

proporcione prazer; entusiasmo, paixão. 11. Muito

cuidado; zelo, carinho. (In: FERREIRA, 1986, p.

107).

mania. [Do gr. manía, ‘loucura’, pelo lat. mania.]

S. f. 4. Gosto exagerado ou imoderado por alguma

coisa; obcecação resultante de desejo imoderado.

5. O alvo desse gosto ou desejo: Colecionar bor-

boletas tornou-se a sua mania. (In: FERREIRA,

1986, p. 1080).

A pesquisa a partir da qual esse texto foi gerado não

trata, de maneira alguma, das possibilidades do amor entre

pessoas, assim como o ato de colecionar borboletas não faz

*A única magia que existe é estarmos vivos

e não entendermos nada disso. A única

magia que existe é a nossa incompreensão.

Caio Fernando Abreu

Page 9: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

16 17

parte do corpus referencial do trabalho. Esse texto trata de livros: o objeto

livro, suas possibilidades e formatos.

livro. [Do lat. libru] S. m. 1. Reunião de folhas ou cadernos, soltos,

cosidos ou por qualquer outra forma presos por um dos lados e

enfeixados ou montados em capa flexível ou rígida. (In: FERREI-

RA, 1986, p.1042).

É possivel unir os conceitos de amor e livro, assim como o de mania

e livro. Desta forma, são originados dois conceitos que foram muito impor-

tantes na geração do problema de pesquisa e na estruturação deste trabalho

de conclusão de curso:

bibliofilia. [De bibli(o)- + -filia.] S. f. 1. Amor aos livros. (In: FER-

REIRA, 1986, p. 253).

bibliomania. [De bibli(o)- + -mania.] S. f. Mania de acumular li-

vros. (In: FERREIRA, 1986, p. 253).

Devo dizer que este trabalho parte do meu grande interesse por li-

vros e literatura, do carinho pelo objeto. A ideia deste trabalho vem da vivência

e da observância deste comportamento, da relação afetiva dos homens com

seus livros.

Como unir a literatura ao design gráfico de uma forma mais dinâ-

mica do que simplesmente projetar capa e miolo de um volume? Criando um

objeto, um livro que seja suporte para a criação gráfica, que permita ao desig-

ner a impressão de sua marca, a reflexão de suas vivências, o imaginário como

reservatório/motor (SILVA, 2006).

O que me proponho a investigar, utilizando conceitos do Imaginá-

rio já abordados por Michel Maffesoli e Juremir Machado da Silva, é a rela-

ção que o designer estabelece com os livros, através das seguintes perguntas:

“Quais as possibilidades de criação da identidade gráfica de um volume único

e de uma coleção?”, “Quais as relações do projeto gráfico com a obra que este

comporta?” e “Como se apresenta o processo de autoria em design gráfico,

especialmente em projetos editoriais?”.

Para falar em autoria no projeto gráfico de livros, parto da edição

de 2008, da editora brasileira Cosacnaify, do Livro das Perguntas, de Pablo

Neruda (Fig. 1). Neste volume, o nome de Isidro Ferrer, autor das ilustrações,

está presente na capa, com mesmo destaque e importância que o nome de Ne-

ruda. Na lombada (Fig. 2), lemos: Neruda+Ferrer+Gullar, o que coloca autor,

ilustrador e tradutor em mesmo grau de importância.

Figura 1 (esquerda) - Capa do Livro das perguntas. Fonte: da autora

Figura 2 (direita) - Lombada do Livro das perguntas. Fonte: da autora

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18 19

Ainda neste sentido cito a edição de 2005, também da editora Co-

sacnaify, da obra Bartleby, o escrivão: Uma história de Wall Street (Fig. 3), es-

crita no século XIX por Herman Melville. O livro pede mais do que uma sim-

ples leitura: o leitor necessita, literalmente, descosturá-lo. Capa e contracapa

são costuradas uma na outra em linha vermelha. Após o exercício da (des)

costura, o leitor se depara com um volume que, para a leitura da história, pede

auxílio de uma lâmina cortante para suas páginas se abrirem e o texto surgir

(Fig. 4). Cria-se aí uma nova experiência, uma nova interpretação proposta

por Elaine Ramos para a novela escrita na segunda metade do século XIX.

Além disso ,este projeto acaba propondo uma reflexão (mesmo que involun-

tária) sobre o próprio objeto livro e sua história, visto que, na época em que

a história foi escrita, por falta de acabamento e refile do volume, os próprios

leitores muitas vezes tinham de destacar ou abrir as páginas de um livro novo.

Michel Maffesoli, em seu livro Elogio da razão sensível (2001), colo-

ca o fator sensível como sendo primário no conhecimento, aliado ao intelecto.

É certo que se a experiência sensorial/estética se dá de maneira empírica, e

relaciona-se com o imaginário no qual o indivíduo-receptor está imerso, a pro-

dução de objetos/produção em design deve-se valer desta sensibilidade para

criar, reconhecer e projetar experiências/produtos para este indivíduo. Desta

forma, ao projetar e propor experiências com seu produto, o designer, assim

como o poeta, ao escrever, “desperta as vozes adormecidas na memória cole-

tiva” (MAFFESOLI, 2001).

O estudo aqui apresentado tem seu método baseado na sociologia

compreensiva, descrita por Maffesoli como uma “atitude que pensa em ter-

mos de globalidade” (2007, p. 30). É uma postura que recusa toda discrimi-

nação e repudia qualquer avaliação de mérito, tendo sua base na descrição

fenomenológica do objeto de estudo, considerando que este é imerso em “um

rio cujas águas passam muitas vezes no mesmo lugar, sempre iguais e sempre

diferentes” (SILVA, 2006, p. 8), em imaginários.

A fim de melhor estruturar o estudo do fenômeno apresentado, di-

vidi o trabalho em três partes, que dão origem aos capítulos aqui presentes: O

livro; O design no livro; e Coleções literárias como base para criação.

Na primeira parte, O livro, procuro contextualizar o objeto livro e

situá-lo ao longo da história, abordando suas modificações e evoluções. Para

compreender melhor como se configura este objeto, se mostrou necessário re-

alizar uma breve pesquisa sobre a leitura e o sujeito leitor e sobre a imprensa

no Brasil.

Figura 3 (esquerda) - Capa de

Bartleby, o escrivão. Fonte: da

autora

Figura 4 (direita) - Páginas de

Bartleby, o escrivão sendo

refiladas. Fonte: da autora

Page 11: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

20 21

As relações do objeto livro com sua apresentação visual dão ori-

gem à segunda parte do trabalho, denominada O design no livro. Esta parte

se caracteriza pela apresentação da estrutura do livro e referências históricas

em projeto gráfico, visto que é necessário realizar este apanhado para melhor

analisar e vislumbrar as possibilidades de produção do objeto na contempora-

neidade. Ainda nesta etapa, faço um estudo centrado no caso brasileiro, tanto

por minha própria posição geográfica de habitante do Brasil, quanto pela ori-

ginalidade e maestria dos profissionais que aqui trabalham (e trabalharam),

tornando o país referência nesta área do design. Ao final do capítulo, apresen-

to o estudo relativo à autoria no projeto gráfico.

A prática projetual neste trabalho se encontra no capítulo Coleções

literárias como base para criação gráfica, que, além de apresentar diferentes

possibilidades de coleções, comporta análises, por mim realizadas, de cole-

ções projetadas por Victor Burton e Elaine Ramos, dois projetistas brasileiros

de diferentes momentos históricos e de grandes projetos. Tais análises seguem

o que Maffesoli apresenta como “descrições de elementos díspares, os quais,

posteriormente, serão passíveis de análise e comparação” (MAFFESOLI,

2007, p. 34), que posteriormente darão origem a “grupos de afinidades mor-

fológicas” (SPENGLER apud MAFFESOLI, 2007, p. 34).

Apresento o projeto gráfico resultante deste estudo no subcapítulo

Criando uma coleção. Neste último momento, utilizo todo o estudo construído

ao longo dos capítulos anteriores para estabelecer meus próprios parâmetros

de unidade de uma coleção: do agrupamento das obras literárias à construção

da identidade gráfica da coleção criada e de seus volumes individuais.

O livro

Historiadores consideram a história do livro não só a partir do

aparecimento deste objeto no formato que conhecemos hoje,

mas considerando qualquer material que serve de suporte

para escrita, como jornais; tábuas de argila; rolos de pergami-

nho; e até mesmo a tela luminosa do computador, como parte

integrante da história deste objeto. Ou seja, “livro é uma metá-

fora que usamos para designar um suporte do texto” (BELO,

2002, p. 27). A palavra livro é derivada do latim liber, termo

utilizado para designar uma parte da árvore que era utilizada

como suporte para escrita. Com a História da Leitura ocorre

um fenômeno parecido: são consideradas, neste caso, não só

a leitura verbal, mas também a leitura imagética, pelo fato de

o alfabetismo ser um privilégio das elites em dados momentos

da história, e a leitura coletiva, ou oral, era um modo fácil já

que era necessário apenas um livro e um leitor para um núme-

ro expressivo de indivíduos. A partir destas considerações, po-

de-se então entender que a história do livro e da leitura é, antes

de tudo, a história da difusão e do acesso ao conhecimento.

1

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22 23

1.1O objeto

Como já mencionado anteriormente, o livro obteve diversos

formatos até configurar-se no objeto que se conhece hoje.

Mas, para fins de melhor estudá-lo neste trabalho, escolhi

discorrer apenas sobre os dois formatos mais difundidos ao

longo da história - o rolo e o códice.

Os rolos, ou volumem, em latim, eram pesados ro-

los de papiro ou pergaminho e por isso sua leitura se dava de

maneira horizontal: era exigida do leitor uma postura especí-

fica, como descreve André Belo:

[...] as duas mãos ficavam ocupadas com a tarefa

de desenrolar e segurar o rolo; a porção de texto

visível a cada momento da leitura era relativamen-

te pequena e a operação de avançar ou recuar no

texto para relembrar certas frases ou comparar

trechos distantes não era cômoda (BELO, 2002,

p. 26).

Desse modo, a leitu-

ra tornava-se trabalhosa e “tor-

nava impossível ao leitor escre-

ver apontamentos ao mesmo

tempo que lia” (BELO, 2002, p.

26), o que, a princípio, dificulta-

va a existência do leitor crítico,

já que este estava ocupado em

segurar e desenrolar o rolo.

Figura 5 - Rolo de velino.

Fonte: PAIVA, 2010, p. 16

Entre os séculos II e

IV, uma nova forma de livro sur-

giu: o códice, ou códex, a forma

utilizada até hoje, que consiste

em um “conjunto de cadernos

costurados uns aos outros e en-

cadernados” (BELO, 2002, p.

25). Este novo formato provo-

cou inovações não só na maneira

de armazenar e projetar o livro,

mas também na relação corpo-

ral e no processo intelectual da

leitura, já que as mãos ficavam

livres e o leitor era capaz de realizar apontamentos e navegar livremente pelas

páginas, revisitando trechos com facilidade a qualquer momento.

Outra revolução no modo de leitura e expansão de conhecimento

ocorreu no século XV, com o advento da impressão tipográfica (Fig. 6), desen-

volvida por Johannes Gutenberg. De acordo com Meggs,

Tipografia é o termo para a impressão com pedaços de metal

ou madeira independentes, móveis e reutilizáveis, cada um dos

quais com uma letra em alto-relevo em uma de suas faces. Essa

definição seca não dá a devida proporção do enorme potencial de

conexão entre as pessoas e os novos horizontes para o design grá-

fico que foram desencadeados por esse extraordinário invento, em

meados do século XV, por um incansável inventor alemão cujo re-

trato e assinatura se perderam na implacável passagem do tempo.

A invenção da tipografia pode ser classificada ao lado da invenção

da escrita como um dos avanços mais importantes da civilização

(MEGGS, 2009, p. 90).

Figura 6 - Tipos móveis. Fonte: HEITLINGER, 2007.

Page 13: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

24 25

Antes da tipografia, os livros

eram manuscritos, logo, sua reprodução

era lenta, o que fazia com que os livros, e

portanto, o conhecimento, ficassem pre-

sos a um círculo determinado de pessoas.

A partir do século XV a impressão permi-

tiu, então, a expansão do conhecimento e

o aumento do índice de alfabetismo.

De fato, os livros tipográficos

não foram facilmente absorvidos. Os co-

lecionadores de livros e os copistas - res-

ponsáveis pela cópia dos livros manuscri-

Figura 7 - Bíblia de Gutenberg.

Fonte: MEGGS, 2008, p. 100.

tos - buscavam o retorno à tradição dos livros reproduzidos manualmente. Os

primeiros, por acreditarem que o livro manuscrito era mais vistoso e, por ter

menos cópias, mais valioso, e os últimos - os copistas -, pelo temor de serem

rapidamente substituídos pela nova ferramenta, não tendo de onde tirar seu

sustento.

Durante muito tempo, após Gutenberg ter divulgado sua invenção

e esta estar a pleno uso, os dois meios de reprodução de livros, manual e mecâ-

nico, “eram utilizados de forma complementar, não oposta, consoante a situa-

ção e o público que se pretendia atingir” (BELO, 2002, p. 87). Assim, os livros

impressos eram destinados a grandes públicos e os manuscritos a pequenos

círculos de leitores. Além disso, os livros manuscritos eram livres de censura,

enquanto os tipográficos teriam de ser submetidos à revisão.

É importante, também, fazer uma análise das mudanças sociais e

culturais ocorridas com o surgimento da tipografia e não somente as trans-

formações de cunho técnico. Elisabeth Eisenstein defende que a imprensa

alterou significativamente a leitura e a compreensão dos textos de forma in-

telectual e que seu surgimento possibilitou o pensamento científico moderno

(EISENSTEIN apud BELO, 2002, p. 23).

Outros autores, como Roger Chartier, acreditam que as mudanças

ocorridas a partir de Gutenberg não foram tão importantes quanto as que se

sucederam com o surgimento do códice (CHARTIER apud BELO, 2002, p.

25). De fato, a numeração de páginas, a presença dos títulos de capítulos e

ainda os índices - elementos que hoje são considerados essenciais para orien-

tação do leitor - surgiram quando o livro tomou esta nova configuração, na

época dos livros manuscritos.

Apesar da revolução técnica na edição de livros ocorrida neste perí-

odo, as contribuições para o design gráfico foram realizadas por um pequeno

número de impressores, já que “a maioria se contentava em imprimir cópias

de manuscritos ou edições anteriores já publicadas” (MEGGS, 2009, p. 107).

A efetiva inovação ocorreu em território alemão, liderada por xilogravuristas e

impressores tipográficos, dando origem ao livro tipográfico ilustrado (Fig. 8).

Um novo período de inovação na produção de livros começou com

a chegada dos livros tipográficos ilustrados na Itália. O período renascentista

era propício para o avanço da edição de livros, visto que ocorreu um renasci-

mento da literatura clássica grega e romana.

Neste momento o design do livro como um

todo foi repensado: tipografia; ilustrações;

leiaute de página e ornamentos foram qua-

lificados. Sobre esta contribuição italiana

Meggs comenta:

O livro tipográfico chegou da

Alemanha à Itália como um livro

de estilo manuscrito impresso

com tipos. Uma série de inova-

ções, como a folha de rosto, tipos

Figura 8 - Página de Vita et Fabulae, impressão de Anton Sorg, 1479. Fonte: MEGGS,

2008, p. 109.

Page 14: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

26 27

romanos e itálicos, números de página

impressos, ornamentos em xilogravuras

e metal fundido e métodos inovadores no

leiaute de ilustrações com tipos, permitiu

aos impressores italianos do Renasci-

mento legar à posteridade o formato

básico do livro tipográfico como hoje o

conhecemos (MEGGS, 2009, p. 135).

Dessa maneira pode-se entender que, em um curto período de tem-

po da História - um intervalo de aproximadamente dois séculos -, ocorreram

as mudanças mais significativas da história do livro.

Somente ao final do século XIX e com a Revolução Industrial, a

produção de livros foi revista. Neste momento a figura de Willian Pickering é

essencial: de aprendiz de livreiro se tornou editor e montou sua própria livraria

em Londres. Pickering foi especialmente importante “na separação do design

gráfico da produção tipográfica” (MEGGS, 2009, p. 215). Assim, definia for-

matos, ilustrações, tipografias, e o trabalho era executado por editores contra-

tados sob sua supervisão. Apesar de Pickering ter produzido uma série de tra-

balhos de alto nível, o design de livros - assim como o de produtos - continuou

sofrendo desgaste de qualidade (pela falta de projetos adequados a esta nova

maneira de produção) com o advento da tecnologia das máquinas industriais.

Foi com os esforços de William Morris e com o surgimento do mo-

vimento Arts and crafts que a produção editorial finalmente se abriu para no-

vos horizontes. Morris, em 1888, iniciou-se na produção de tipos e impressão.

Desta maneira nasceu a Kelmscott Press, cujo principal objetivo era recuperar

a tradição de beleza dos livros incunabulares. Os livros (Fig. 10) projetados

por Morris eram pensados em sua globalidade: tipografia; ilustrações; orna-

mentos; filetes; capitulares etc, todos em perfeita harmonia conceitual, tor-

nando-os verdadeiras obras de arte. É importante frisar que Morris era um fiel

defensor do trabalho manual em plena efervescência

industrial. O parodoxo reside no fato de que enquan-

to Morris “procurava refúgio no trabalho manual

feito no passado, desenvolveu atitudes em relação ao

design que delineavam o futuro.” (MEGGS, 2009, p.

226).

Após Morris os livros passaram a ter proje-

tos gráficos mais elaborados, quase sempre com foco

especial na tipografia, pois acreditava-se que a legibi-

lidade do texto era a prioridade. A tipografia, portan-

to, deveria chegar ao ponto de não ser percebida pelo

leitor, o que ainda é prezado por muitos designers

contemporâneos, como Richard Hendel comenta em

O design do livro:

O trabalho real de um designer de livros

não é fazer as coisas parecerem “legais”,

diferentes ou bonitinhas. É descobrir

como colocar uma letra ao lado da outra

de modo que as palavras do autor pare-

çam saltar da página (HENDEL, 2006,

p. 3).

Estes pressupostos foram base para a cria-

ção até o surgimento das vanguardas artísticas do sé-

culo XX. A partir daí o design, como as artes visuais,

tomaria um novo rumo, se valendo de experiências

plásticas dos artistas modernos. Neste período des-

tacam-se, especialmente, os futuristas e dadaístas.

Estes grupos realizavam colagens tipográficas com

letras de diferentes pesos, estilos e tamanhos, utili-

Figura 10 - Página interna de

The works of Geoffrey Chaucer.

Fonte: MEGGS, 2008, p. 225.

Figura 9 - Página de livro

de geometria projetado por

Pickering. Fonte: MEGGS, 2008,

p. 216/217.

Page 15: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

28 29

zando o texto como base para criação e expressão visual, herança do escritor

Lewis Carroll (Fig. 11) e do poeta francês Stephan Mallarmé (Fig. 12).

As vanguardas foram um marco importante na história do design

gráfico. Assim surgiram uma série de projetos que propunham quebrar com

a tradição da beleza e legibilidade, tratando a tipografia como um elemento

passível de interpretação pelo leitor. Além disso, as capas também buscavam

mais do que ser bonitas e informar: elas questionavam e provocavam o leitor.

Outro ponto importante foi a substituição da tipografia de Guten-

berg pela fotocomposição*, que possibilitava o fácil ajuste de dimensão e es-

pacejamento do tipo, além de criar deformações, contornos e itálicos, através

de lentes especiais.

O clima da década de 1970 era plural, os questionamentos a respei-

to da institucionalização e das normas sociais eram correntes. O design gráfi-

co, assim como a arte, e literatura e a política, vivia a queda do modernismo e

o surgimento do design pós-moderno, como define Kopp:

As características gerais do pós-modernismo se referem a uma

estética que rompe com a previsibilidade e assepsia do alto moder-

nismo. (...) A geometria é utilizada de forma descontraída, ou seja,

*Fotocomposição é a composição tipográfica feita por projeção de caracteres sobre

papel (ou película de filme) fotossensível (HEITLINGER, 2007).

Figura 11 (esq.) - Página de Alice no país das maravilhas. Fonte: MEGGS, 2008, p. 322.

Figura 12 (dir.) - Páginas de Un coup de dés. Fonte: MEGGS, 2008, p. 322.

pouca ou completamente despreocupada com a clareza e legibi-

lidade. (...) Tendência a fragmentar imagens e criar múltiplas ca-

madas (fotos sobre texturas, por exemplo). Uso de espaçamentos

tipográficos aleatórios e mistura de pesos e estilos de tipo dentro

da mesma palavra. Opção por colagens, paródias e citações histó-

ricas do design e da arte. Inclusão do ruído (sujeira, imperfeições,

rompimento com o acabamento “limpo”, etc) como elemento

visual. De uma forma geral, essas características encontram-se

nos movimentos que, inconscientes disso ou não, fazem parte das

raízes do design pós-moderno (KOPP, 2004, p. 73).

Nos anos de 1980, o mundo assistia à tecnologia

e à eletrônica avançarem continuamente. Neste momento a

fotocomposição, que havia sido amplamente utilizada des-

de a década de 1960, foi sendo gradativamente substituída

pelo uso do computador. Uma série de experimentações

- antes de alto custo financeiro e grande demora, como a

manipulação fotográfica - eram agora possíveis. Nesse pe-

ríodo destacam-se o trabalho com tipos de Zuzana Licko

(Fig. 14) e a experimentação em design de revistas por Da-

vid Carson (Fig. 15).

Figura 14 - Base nine and

twelve, tipografia de Zuzana

Licko, 1995. Fonte: http://www.

emigre.com/EF.php?fid=79

Figura 13 - Projeto de capa de livro de Daniel Pleavin. Fonte: MEGGS, 2008, p. 621.

Figura 15 - Página interna da revista Ray Gun, direção de arte

de David Carson, 1994. Fonte: MEGGS, 2008, p. 634.

Page 16: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

30 31Meggs (2002) destaca em seu livro a importância do trabalho do

designer Chip Kidd (Fig. 16 e 17) para o design de capas de livro. Seu trabalho

é propor a leitura da capa pelo leitor. Os trabalhos de Chip Kidd são um ótimo

exemplo de como o repertório do designer atua na criação, como ele interpreta

e reescreve a história de maneira visual, ou seja, como é, ele próprio, autor.

Estas observações ficam claras quando o designer as coloca em suas próprias

palavras: “nunca sei realmente se os leitores entendem os trocadilhos visu-

ais de minhas capas, mas não posso deixar que isso guie meu trabalho, a um

ponto em que eu tenha que fazer concessões” (KIDD apud MEGGS, 2009,

p. 657). Para Véronique Vienne “Kidd coloca sobre os leitores uma pressão

muito específica: pede a eles que transponham a distância entre o que leem e o

que veem. Nesse processo ele os educa por demandar que assumam o controle

da comunicação” (VIENNE apud MEGGS, 2009, p. 657) e que façam uso do

imaginário para sua interpretação.

Assim pode-se concluir, no que diz respeito à história do livro, que

os editores/escritores/projetistas gráficos são atentos às mudanças e ao espíri-

to social de cada época. As características, após observadas, são então traduzi-

das em aspectos gráficos - como o geometrismo modernista e a fragmentação

contemporânea, por exemplo. Este trabalho pode ser facilmente relacionado

Figura 16 - Sobrecapa e

capa para livro de David

Sedaris. Fonte: MEGGS,

2008, p. 657.

com o conceito de imaginário como reservatório/motor (SILVA, 2006), visto

que estes profissionais acumulam referências, observações e, a partir delas,

projetam e propõem novas experiências e estruturas.

Figura 17 - Capa para livro de Kurt Andersen. Fonte: MEGGS, 2008, p. 657

Page 17: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

32 33

1.2 A imprensa no Brasil

Nas Américas, o primeiro registro de instalação de Oficina Ti-

pográfica é no México, em 1535. Estima-se que até 1550 já

haviam sido impressos duas dezenas de incunábulos em ter-

ritório mexicano. No Brasil a imprensa se instalou de forma

tardia, se comparado a outros países americanos, em 1808,

com o Decreto de Criação da Impressão Régia. Curiosamente,

os primeiros livros brasileiros datam de 1705, 1710 e 1728,

tendo sido impressos, o primeiro e o último em Lisboa, e o

segundo no México.

A experiência tipográfica tardia do país se deve à

colonização portuguesa que, em 1706, baixou a Ordem Régia,

proibindo a impressão de livros e papéis avulsos em território

brasileiro. Esta ordem supostamente teria fechado a Oficina

tipográfica de Recife, embora não existam registros compro-

vando sua real existência. A proibição de Portugal deve-se ao

fato de que “a cultura, além de não ser negócio, desenvolve a

inteligência e, paralelamente, o sentimento de libertação dos

nativos” (MELLO, 1979, p. 324).

No dia 13 de maio de 1808 foi decretada a criação

da Impressão Régia no Brasil. O primeiro trabalho executado

consistia em um in-folio de 27 páginas, sob o título de Relação

dos despachos publicados na Corte pelo expediente da Secreta-

ria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra no faustís-

simo dia dos anos de S.A.R. o Príncipe Regente N.S. e de todos

os mais que se têm expedido pela mesma Secretaria desde a feliz

chegada de S.A.R. ao Estado do Brasil até o dito dia. Rio de Janeiro. A partir

daí um expressivo número de tipografias começou a operar em todo o país. É

importante aqui citar um trecho de José Barboza Mello: “Naquelas circuns-

tâncias, o 13 de maio de 1808, dia da Impressão Régia, foi, sem falsa retórica,

no Brasil, o início da libertação do pensamento” (MELLO, 1979, p. 329).

Page 18: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

34 35

1.3 A leitura, o leitor

O século XIX foi especialmente impactante para os hábitos de

leitura e a formação de sujeitos leitores, já que a alfabetização

atingiu altos níveis nas classes mais baixas e na comunidade

feminina. Martyn Lyons, em seu artigo Os novos leitores no

século XIX: mulheres, crianças, operários, coloca que a últi-

ma geração a ver o livro sem a competição de outros meios

de comunicação/entretenimento foi a do final do século XIX.

Dessa forma o livro era, sobretudo, objeto de descanso e lazer.

Sobre a importância da leitura para a população em geral há

um curioso relato:

Os leitores americanos, segundo se conta, apinha-

vam-se no cais para esperar o navio que trazia o

último fascículo de The old curiosity shop, de Di-

ckens, tão ansiosos estavam por saber o destino da

heroína Little Nell (LYONS, 1999, p. 166).

Neste período o romance se consolidou como gê-

nero literário, visto que até o século XVIII não era respeita-

do e por isto recebia o rótulo de “arte menor”. Os romances

eram facilmente encontrados em fascículos veiculados no jor-

nal, os quais muitas mulheres recortavam e guardavam para

Que vida desperdiçada - escreveu o marceneiro

James Hopkinson - é a daquele que não tem livro

favorito, que não possui coleção de pensamentos

ou de lembranças felizes sobre o que tenha feito,

experimentado ou lido (LYONS, 1999, p. 191).

posterior encadernação, além das obras completas em livros. O público dos

romances era feminino e as mulheres não liam, segundo correspondência de

Sthendal, menos de cinco ou seis volumes por mês. Esse crescimento da leitu-

ra entre mulheres é um dos fatores associados “ao desenvolvimento da leitura

individual e silenciosa, algo que relegava a leitura em voz alta para um mundo

que estava em vias de desaparecer.” (LYONS, 1999, p. 176)

Este período também foi o período de criação de muitas bibliotecas

públicas, onde a classe média baixa tinha acesso à leitura, especialmente para

lazer e diversão. A leitura era realizada, geralmente, ao ar livre, em bosques e

campos, em intervalos do trabalho ou aos domingos.

No século XIX ler tornou-se ação diária. A leitura oral foi sendo

gradativamente substituída pela leitura silenciosa e intimista, apesar da pri-

meira ainda ter sido preservada em locais de trabalho e para melhor fixação do

texto lido. Os cadernos de anotação surgiram, neste momento, como “método

pessoal de apropriar-se da cultura literária e manter um diálogo pessoal com

os textos” (LYONS, 1999, p. 196).

A partir do século XIX a leitura, que

antes se restringia a livros religiosos e clássicos,

se tornou cada vez mais livre. Alguns autores con-

sideram essa liberdade como uma forma de leitura

“anárquica, egoística, egocêntrica, baseada num

único imperativo: “leio o que bem entendo” (PE-

TRUCCI, 1999, p. 218). Este fato se deve também

ao aparecimento de outras mídias de informação,

comunicação e entretenimento, como a televisão,

que expandiu seu alcance rapidamente.

Figura 18 - O leitor de livre postura. Fonte: flickr.com/

photos/edanjohna/4536986

Page 19: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

36 37

Os hábitos de leitura foram fortemente modificados ao longo do

século XX, pelas modificações de postura corporal (Fig. 18) - se antes o leitor

teria de se sentar à sua escrivaninha, hoje ele pode deitar-se em sua cama,

sentar-se no chão ou até mesmo na poltrona do ônibus; de armazenamento do

objeto - não só em bibliotecas, mas dividindo o espaço doméstico com objetos

decorativos (Fig. 19); e das ações que o leitor exerce nos livros - a escrita, a

marcação de páginas, as dobras etc.

Petrucci realiza observações sobre estes novos hábitos dos novos

leitores. Para o autor “o leitor sempre tem razão e ninguém pode retirar-lhe a

liberdade de fazer de um texto o uso que mais lhe agradar” (1999, p. 223), o

que indica aos autores, editores e designers atentarem para seu público, valo-

rizando-o e propondo novos projetos e experiências.

Figura 19 - Livros incorporados à decoração.

Fonte: fuckyeahreading.tumblr.com/

post/627012236/via-atticarobatics

O design no livro

O livro difere de outros suportes gráficos comuns (cartaz,

folder, flyers etc.) principalmente por sua característica tri-

dimensional. O livro possui altura, largura e profundidade,

logo, estas especificidades necessitam ser levadas em conta

no momento do projeto. Talvez sejam justamente suas carac-

terísticas específicas que oferecem inúmeras possibilidades de

exploração e de (re)configuração do objeto ao longo da his-

tória, para criar “objetos que estabeleçam uma nova emoção

no leitor - informando, estimulando, intrigando, comovendo e

entretendo” (PAIVA, 2010, p. 91) e, para tal criação ,é neces-

sário o conhecimento da estrutura do livro, dos elementos que

o compõem.

2

Page 20: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

38 39

2.1A estrutura

Fontoura apresenta, através de infográficos, os elementos

componentes do livro. Na imagem do livro fechado pode-se

observar os vários elementos que compõem a capa. É interes-

sante perceber que essa estrutura é pouco encontrada hoje,

em novos livros, mas continua sendo a ideia comum do que

seria o objeto. Essas estruturas de nervo, casa e cabeceira são

ainda utilizadas em alguns volumes, mas a grande maioria dos

livros hoje apresenta encadernação do tipo brochura e capas

flexíveis. O marcador de tecido caiu em desuso, sendo substi-

tuído pelo marcador de papel, que passa de livro em livro. A

cantoneira, assim como o marcador de página, é dificilmente

encontrada em novos livros, inclusive tornou-se um recurso

utilizado comumente para criar uma atmosfera antiga em tor-

no de um livro novo.

Figuras 20, 21, 22 e 23 - Estrutura do livro. Fonte: STOLF, 2010

Hoje, os livros encontrados se apresentam, em maioria, seguindo

a estrutura da figura 21. É uma estrutura mais simples e de produção mais

barata do que a primeira apresentada. Geralmente, a capa se apresenta em pa-

pel flexível e suas extensões, as orelhas, auxiliam na sustentação do objeto. A

sobrecapa e a cinta já não são encontradas na maioria dos livros, mas são um

recurso ainda explorado - principalmente para promoção do livro, indicando

que prêmios a obra conquistou, que filme teve seu roteiro baseado na história,

quantas cópias da edição foram vendidas etc.

Page 21: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

40 41

mente o que acontece (HENDEL, 2003). Existem diversas possiblidades

de apresentação de um texto, podendo este “ser visto como uma coisa - um

objeto impávido e robusto - ou como um fluido derramado nos continentes

Figura 24 - Página de The

telephone book. Projeto de

Richard Eckersley. Fonte:

LUPTON, 2006, p. 66

É importante salientar que a estrutura

complexa apresentada nas imagens é dificilmente

utilizada em sua totalidade. Muitos projetos não

apresentam todos os elementos explicitados nas

imagens e não são raras as mudanças de configu-

ração e até mesmo de localização da folha de ros-

to, guarda, folha de guarda etc. Desse modo, essa

estrutura pode ser considerada como tradicional,

sendo ainda hoje utilizada em alguns projetos, mas

é fundamental ter em mente que ela não é fixa e

imutável.

A princípio, a tipografia é o elemen-

to mais presente no projeto de livro. Ela faz parte

do texto e, justamente por isso, também o define.

A maneira com que a tipografia será utilizada dirá

muito ao leitor, mesmo que este não saiba exata-

Figura 25 - Página de

Hella Lonjerius. Projeto

do Studio COMA. Fonte:

LUPTON, 2006, p. 87

Figura 26 - Página de

Informal. Projeto de januzzi

Smith. Fonte: LUPTON,

2006, p. 89.

da página e da tela. Pode ser sólido ou líquido, corpo ou sangue” (LUPTON,

2006, p. 63).

As figuras 24, 25 e 26, apresentam algumas destas possibilidades

de apresentação do texto. Na figura 24 o texto é interrompido por dois espaços

verticais, quebrando a uniformidade do texto corrido, o que não acontece na

figura 25, onde o texto é apresentado em blocos rígidos. A figura 26 combina

diversos alinhamentos e espaçamentos, fazendo uma ponte direta com o título

do livro, Informal.

Figura 27 - Capa de Antologia

Poética. Projeto de Bea Feitler. Fonte:

MELO, 2006, p. 75.

Figura 28 - Capa de Budapeste.

Projeto de Raul Loureiro. Fonte: da

autora

Figura 29 - Capa de Love Poems.

Projeto de Marian Bantjes. Fonte:

bantjes.com/project/love-poems

Mas nem só no miolo do livro encon-

tramos tipografia. A capa, na grande maioria

dos casos, também dá importância a este ele-

mento. Muitas vezes a letra também aparece

reinando absoluta, como nas figuras 27, 28 e 29.

A imagem é outro elemento bastante

presente em projetos editoriais, principalmente

na capa. Desse modo, ela pode tornar o volume

mais enigmático, apresentando pistas sobre a

narrativa, ou contar a história através de seus

elementos.

Page 22: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

42 43

Se forem observadas as capas das figuras 30, 31 e 32, pode-se notar

que estas constroem, através da imagem utilizada, uma relação muito dife-

rente com a narrativa. Na capa de A pista de gelo, de Roberto Bolaño, através

do fragmento de uma pintura abstrata, a relação se dá pela cor e textura, di-

retamente ligada ao nome do livro. Já em Atlas, a capa apresenta a fotografia

do próprio autor do livro, Jorge Luis Borges, uma alternativa corrente para

livros cujos autores já são conhecidos. Finalmente, em Em outros quartos,

outras surpresas, a aura da narrativa é captada pela imagem. Os oito contos

presentes no livro se passam no Paquistão e, apesar de poderem ser lidos inde-

pendentemente, possuem uma forte relação entre si, “é um retrato do Paquis-

tão tecido como uma colcha de retalhos”. Assim, a capa apresenta elementos

próprios da cultura do país e diferentes texturas aplicadas nas figuras, o que

relaciona-se com a ideia de colcha de retalhos, aspecto da narrativa.

Alguns livros como Até o dia em que o cão morreu integram texto e

imagem em sua capa. O texto, neste caso, é tratado como ilustração, tomando

a forma do desenho e fazendo parte deste. Já em Satolep, texto e imagem são

Figura 30 - Capa de A pista

de gelo. Projeto de Raul

Loureiro. Fonte: da autora

Figura 31 - Capa de Atlas.

Fonte: companhiadasletras.

com.br

Figura 32 - Capa de

Em outros quartos,

outras surpresas. Fonte:

companhiadasletras.com.br

separados, em diferentes camadas, mas ainda existem relações entre essas in-

formações: as linhas da arquitetura, os fios ao lado da palavra Satolep, o céu

parece uni-los. Em A disciplina do amor, as informações de imagem e texto são

totalmente descoladas uma da outra, interrompidas por um rígido retângulo

branco na superfície de cor.

É claro que existem infinitas possibilidades de projetar livros, ex-

plorando diferentes elementos gráficos. Os elementos citados e exemplifica-

dos aqui são apenas as possibilidades mais utilizadas, mais comuns de sua

estruturação como objeto. Além disso busquei estabelecer relações de estrutu-

ra mais diretas com as peças que são analisadas e as possibilidades existentes

para a criação do projeto prático apresentado.

Figura 33 - Capa de Até o dia

em que o cão morreu. Fonte:

companhiadasletras.com.br

Figura 34 - Capa de

Satolep. Fonte: da

autora

Figura 35 - Capa de A

disciplina do amor. Fonte:

companhiadasletras.com.br

Page 23: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

44 45

O Brasil possui no projeto gráfico de livros sua maior contri-

buição e reconhecimento no campo do design, o que se mostra

um tanto peculiar se, voltando os olhares para nossa história,

constatarmos que a imprensa chegou no país tardiamente.

Entre os fatores que possibilitaram essa posição/postura do

país - e, portanto, supre o atraso de quatro séculos - é a adoção

e o avanço dos sistemas de produção, distribuição e consumo

de impressos, desenvolvidos na década de 1830, ou seja, em

um período em que a imprensa já estava instalada no país

(CARDOSO, 2005). Além, é claro, da contribuição dos desig-

ners e desenhistas que aqui trabalharam.

A década de 1920 é especialmente importante no

que diz respeito à edição de livros: surgem diversas editoras

no eixo Rio-São Paulo, preparando o surto editorial da década

de 1930 (CARDOSO, 2005). Neste período as editoras focam

sua produção em brochuras, apostando em belos projetos grá-

ficos para desviar a atenção dos materiais precários utilizados

2.2O design de livro no Brasil

na confecção do livro. As capas ilus-

tradas surgem então para tornar o

objeto mais vistoso e impulsionar

as vendas. Aqui cabe citar o nome

do pioneiro no projeto destas capas,

Fernando Correia Dias.

Figura 36 - Capa de Urupês. Projeto de Washt

Rodrigues, 1918. Fonte: CARDOSO, 2005, p. 162.

É nesta década de 1920 que surgem algumas das mais importantes

editoras da história do país, como a Livraria do Globo, na cidade de Porto Ale-

gre, e a Civilização Brasileira, no Rio de Janeiro. Estas editoras, mais tarde,

revelariam profissionais gráficos como Ernest Zeuner e Eugênio Hirsch, além

de escritores como Érico Veríssimo.

As inovações realizadas na década de 1920 dizem respeito a “uma

nova concepção do livro como objeto gráfico industrial” (CARDOSO, 2005,

p. 176). Atentou-se, principalmente, para o livro como objeto tridimensional,

pensando no papel, encadernação, peso e tamanho como partes integrantes

de seu projeto gráfico. Além disso, uma atenção especial foi dada à mancha

tipográfica, às margens e à disposição do texto na página.

Questões de identidade visual e unidade editorial aparecem, mais

especificamente, em 1930. A Colecção de obras célebres, inicialmente publica-

da pela Editora Americana e continuada pela Waissman, Reis & Cia, eviden-

Figura 37 - Capa de Caravana dos destinos.

Projeto de Correia Dias, 1921. Fonte:

CARDOSO, 2005, p. 170.

Figuras 38, 39 e 40 - Capa, página de abertura de capítulo e página dupla de miolo de Nós..

Projeto de Correia Dias, 1921. Fonte: CARDOSO, 2005, p. 173/174.

Page 24: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

46 47

Figuras 41, 42 e 43 - Capas da Colecção de obras célebres. Projetos de Di Cavalcanti (1930), Oswaldo

Teixeira (1931) e Geraldo Orthof (1931), respectivamente. Fonte: CARDOSO, 2005.

cia a preocupação em diagramar os elementos em uma malha e manter uma

estrutura gráfica reconhecível, apesar de os parâmetros gráficos da coleção

terem sido estabelecidos pelo artista Di Cavalcanti e posteriormente seguidos

por pelo menos outros dois projetistas - Geraldo Orthof e Oswaldo Teixeira.

Sobre este caso específico, Cardoso coloca que

A coincidência entre esses três projetos evidencia uma preocupa-

ção da editora com questões de identidade visual que vão muito

além daquilo que se tem propagado sobre a ilustração de capas

na primeira metade do século XX. Apesar da alteração no próprio

nome da editora, a unidade projetual estava sendo utilizada como

ferramenta para conquistar a fidelidade do público leitor. Longe

de ser meramente “decorativa”, a ilustração de capas já era nessa

época um recurso poderoso de comunicação, visando a melhor

comercialização do produto (CARDOSO, 2005, p. 192).

No cenário editorial da década de 1930 destaca-se Santa Rosa, pa-

raibano autodidata que encontrou no design de livros a forma para seu sus-

tento, ao chegar na cidade do Rio de Janeiro. Santa Rosa, primeiramente,

realizou alguns trabalhos para as editoras Ariel e Schimdt, sendo contratado

como produtor gráfico em 1935 pela editora José Olympio. Sobre a produção

editorial da época pode-se dizer que

as editoras não tinham um projeto editorial explícito para dar

unidade à sua produção. Os livros dessa época parecem dever sua

feição gráfica ao gosto variável do autor ou do editor, que possivel-

mente indicavam alguém de suas relações para elaborar sua forma

(CARDOSO, 2005, p. 208).

Uma das preocupações de Santa Rosa diz respeito exatamente às

questões de identidade visual, tanto para pequenas coleções literárias como

para as diversas diferentes publicações de uma mesma editora.

Para este trabalho, é especialmente importante a declaração de

1952, de Santa Rosa, sobre a relação texto e imagem em projetos editoriais,

principalmente por dar atenção aos aspectos processuais de interpretação e

reinterpretação da linguagem.

(...) o que conta para o ilustrador não é o descritivo do poema, do

conto, do romance, mas a atmosfera espiritual em que se movem

os ritmos, os sentimentos, os personagens, o clima que evoca suas

situações íntimas. Tomamos várias atitudes, portamo-nos como

cineastas quando procuramos o ângulo justo em que o assunto

Figura 44 - Capas

da editora José

Olympio. Projetos de

Santa Rosa. Fonte:

CARDOSO, 2005, p.

218.

Page 25: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

48 49

A década de 1960 foi plural: conviviam a agressividade de Hirsch,

o equilíbrio de Marius Bern, o cartum de Ziraldo e Jaguar, a leveza de Bea

Feitler, a integração texto-imagem de Vicente di Grado etc.

Figura 45 - Capas de Eugenio Hirsch. Fonte: MELO, 2006, p. 65.

mais avulta, mais se define, mais se precisa. Ora, espionamos os

personagens de um romance, cercamo-los, esmiuçamos suas vi-

das, seus hábitos mais íntimos, suas manias, seu andar, as rugas

da face (...) (Santa Rosa apud CARDOSO, 2005, p. 220).

Embora o período entre 1920 e 1950 tenha sido de grande evolução

para o design de livros, a estrutura diagramática clássica de capa centraliza-

da é questionada apenas nos anos de 1960. Segundo Chico Homem de Mello

(2006) é neste período que a figura do designer é de fato valorizada.

É importante contextualizar estas mudanças gráficas com o públi-

co leitor da época, “mais informado, mais aberto a novidades, mais crítico,

mais ativo, mais jovem” (MELO, 2006, p. 61), o que possibilitava, por exem-

plo, a existência das capas projetadas por Eugenio Hirsch, e o pensamento de

que “uma capa é feita para agredir, não para agradar” (MELO, 2006, p. 62),

sempre apostando no impacto da capa no leitor.

É importante destacar, neste trabalho, dois casos específicos de co-

leções: as edições populares do Clube do Livro, com projeto gráfico de Vicente

Di Grado, e a Coleção Debates, com projeto gráfico de Moysés Baumstein.

As centenas de volumes editados pelo Clube do Livro de São Paulo

eram recebidas por seus sócios periodicamente. Por este motivo, o livro não

precisava se portar como cartaz no ponto de venda, mas apenas “conciliar

uma visualidade atraente a um custo de produção baixo” (MELO, 2006, p.

88). A coleção não possui logotipo, apenas as informações de autor e editora

Figura 46 - Capa de Ziraldo. Fonte: MELO, 2006, p. 80. / Figura 47 - Capa de Bea Feitler. Fonte:

MELO, 2006, p. 76. / Figura 48 - Capa de Marius Bern. Fonte: MELO, 2006, p. 71.

Figura 49 - Capas do Clube do Livro. Fonte: MELO, 2006, p. 71.

Page 26: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

50 51Figura 50 - Capas do Clube do Livro. Fonte: MELO, 2006, p. 71.

permanecem com a mesma tipografia e posição - superior e inferior, respecti-

vamente. Outro fator que colabora com a identificação destes volumes como

coleção é a capa em apenas duas cores, ainda que estas mudem de acordo com

o título. Há sempre o preto junto a outra cor, uma economia de recursos que

acabou por servir ao projeto e dotá-lo de riqueza expressiva. Não há tipografia

padrão para o título, nem tamanho definido para a ilustração, é de acordo com

a obra que a capa é dada: algumas com tipografia leve e traço áspero, outras

com tipografia pesada e traço delicado: não há padrão. O que pode-se afirmar

destas capas é que Di Grado “aposta todas as fichas na síntese: um título e

uma imagem” (MELO, 2006, p. 90). Além disso, a contracapa permanece a

mesma em todos os volumes, e a lombada apenas altera as informações de

autor/título e a cor correspondente ao desenho de capa.

Já Moysés Baumstein construiu sua coleção baseada em elemen-

tos fixos. Como cita Homem de Melo “na balança das variantes e invariantes,

Moysés jogou todo o peso nas invariantes” (MELO, 2006, p. 95). A coleção

Debates é, até hoje, um catálogo das áreas científicas. De fácil identificação,

possui uma grade rígida: cabeçalho, com seu logotipo seguido da área cientí-

Figura 51 - Capas

da coleção

Debates. Fonte:

MELO, 2006, p. 96

fica da obra, inscrito em dois largos fios horizontais - de cor correspondente

à área de conhecimento, uma grande área branca e, alinhados inferiormente,

nome do autor e título da obra, terminando em um retângulo preto com logo e

nome da editora em branco. Neste caso,

“sai valorizada a coleção, em detrimento da particularidade de

cada volume. Ao mesmo tempo, ele podia se dar a esse luxo. Em

sua maioria, os textos eram tão fundamentais em suas áreas de co-

nhecimento que podiam prescindir de particularização” (MELO,

2006, p. 95).

A década de 1960 configura-se, então, em um marco de “ruptura

com as convenções da cultura editorial gráfica” (MELO, 2006, p. 59), ou seja,

as grades pré-determinadas são deixadas de lado e, em seu lugar, inicia-se

um novo modo de pensar o livro de acordo com cada situação. As mudanças

ocorridas no design editorial nos anos de 1960 são, sem dúvida, referências e

possibilidades que movem o design de hoje.

Page 27: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

52 53

A autoria em design gráfico é considerada fruto da condição

pós-moderna. No período modernista, o design tinha como

orientação o racionalismo, o que deixava poucos espaços para

as construções individuais e emoções.

Foi somente com as vanguardas artísticas, surgidas

no período de transição à pós-modernidade, que o design to-

mou novos rumos e quebrou os paradigmas de legibilidade,

clareza, geometrismo e harmonia. O modelo moderno, reflexo

da industrialização e da guerra, já não era mais válido. O perí-

odo que se iniciava era marcado pela subjetividade e emoção,

os materiais se tornavam efêmeros e transitórios. O pós-mo-

derno propõe espaço para todos os estilos, logo, “não há uma

rejeição da modernidade, mas uma inclusão da mesma junto

às tendências contemporâneas” (DALPIZZOLO; RAHDE,

2007, p. 3).

Desse modo, na contemporaneidade, valoriza-se

o profissional de design como indivíduo e seu repertório, há

espaço para impressão do imaginário do designer-autor, que

propõe experiências buscando, através da polissemia das di-

versas formas visuais,

a participação ativa do espectador num jogo de

interpretação, ao manifestar visualidades efêmeras

e descartáveis, tolera a imperfeição, a imprecisão,

a poluição e as interferências externas pós-pro-

dução, valorizando a comunicação e as emoções

2.3O livro e o designer

dos grupos e ironizando sutilmente cânones e estereótipos visuais

hegemônicos e banalizados da alta cultura (DALPIZZOLO; RAH-

DE, 2007, p.3).

Ainda falando de construção de sentido, é importante colocar que

“na estética pós-moderna, este mundo original somente se constitui com a

presença do outro” (WEYMAR, 2009, p. 2), o que relaciona-se diretamente

com a ideia de que “só há imaginário social, nunca individual” (MAFFESOLI

apud SILVA, 2003, p. 14). Logo, quando, neste trabalho, falo do imaginário

do designer-autor, me refiro não ao imaginário individual - que segundo Ma-

ffesoli não existe - mas ao imaginário ao qual o indivíduo pertence e é imerso,

visto que o imaginário “é determinado pela idéia de fazer parte de algo” (MA-

FFESOLI apud SILVA, 2006, p. 14).

Figuras 52 e 53 - Capa do Livro amarelo do terminal.

Fonte: da autora

Para um melhor entendimento das questões que movem e possibili-

tam a construção de um objeto-livro, que seja suporte para autoria, chego a O

livro amarelo do terminal, de Vanessa Barbara, com projeto gráfico de Elaine

Page 28: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

54 55

Ramos e Maria Carolina Sampaio. Neste trabalho, a relação de autoria é extre-

mada, considerando que as designers “projetaram” inclusive o título do livro

juntamente com a escritora.

A primeira obra jornalística a entrar no catálogo da Cosacnaify con-

siste na reportagem de final de curso de jornalismo de Vanessa Barbara, um

mergulho no Terminal Rodoviário do Tietê, na cidade de São Paulo. A jorna-

lista chegou à conclusão de que tal rodoviária é uma “versão condensada do

mundo” e a partir daí começou sua pesquisa sobre a empresa que administra

o terminal e as pessoas que frequentam aquele lugar.

Figura 54 - Capa e quarta-capa d’O Livro amarelo do terminal. Fonte: da autora

O projeto gráfico do livro conta com três tipos diferentes de papel:

amarelo de gramatura baixa (semelhante ao utilizado na segunda via das no-

tas fiscais manuais), papel copiativo (papel branco que leva carbono na com-

posição e, quando manuseado, deixa algumas manchas) e papel roxo de maior

gramatura (menos delicado, sem uniformidade de textura na superfície); além

da cartolina amarela laminada da capa.

Em meio ao texto - em tipografia sem serifa - há interferências com

imagens e texturas. A entrelinha do texto é generosa, a transparência do papel

pede um espaçamento maior que o normal, pois é possível enxergar o texto

impresso no verso da página. Assim, existe um jogo de avanço e recuo do tex-

to: o que pertence à frente e o que pertence ao verso, o que deve ser lido agora e

o que deve ser lido em outro momento. Essa transparência também é utilizada

na folha que apresenta título e autor do livro, na qual o nome da autora é im-

presso no verso da página e, portanto, espelhado.

Figura 55 - Diferentes tipos de papel d’O Livro amarelo do terminal. Fonte: da autora

Figura 56 - Uso da transparência dos diferentes tipos de papel d’O Livro amarelo do

terminal. Fonte: da autora

Voltando à autoria do volume, após a breve apresentação da es-

trutura do livro, observa-se que as designers construíram um objeto repleto

de referências pessoais (muitas das imagens pertencem à coleção de tickets e

Page 29: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

56 57

bilhetes de Elaine Ramos) e consonantal com a narrativa do texto (repleta de

fragmentos de conversas ouvidas pela escritora no terminal rodoviário).

Observando a relação título-objeto, vê-se que o primeiro é constru-

ído em função do segundo, um intenso traço de autoria em design. Assim, o

texto parece exigir esse projeto gráfico. E o projeto gráfico, por sua vez, parece

integrar a narrativa. É certo que em outra estrutura visual - asséptica, padro-

nizada -, o texto realmente seria outro, assim como a sua interpretação. Nas

palavras de Elaine Ramos, “Se criássemos um projeto gráfico apenas organi-

zado e competente, seria como ver a rodoviária vazia, sem ninguém”�. É exa-

tamente este fazer parte da narrativa, proposto pelo designer, o que interessa

neste trabalho.

Gruzinksi fala que “o designer gráfico será sempre um mediador

entre o leitor e o texto, e a ele caberá a decisão de configurar a mensagem

de forma mais próxima da transparência ou da co-autoria” (GRUZYNSKI,

2000, p. 88-89) o que pode indicar - pela presença da expressão “mais próxi-

ma” - que o designer e seu projeto nunca serão invisíveis, assim como nunca

serão autores totais do trabalho, ou seja: sempre existirá, por mais discreta e

recatada que seja, a voz do designer, e sempre existirão vozes externas. A neu-

tralidade existe, mas “por mais neutros que desejemos ser, por mais racionais

que tenhamos de ser, dificilmente as emoções deixam de participar de nossos

julgamentos, das nossas ações” (DALPIZZOLO; RAHDE, 2007, p. 4).

Coleções literárias como base para criação

A identidade gráfica de uma coleção de livros e de seus volumes

é o tema central deste capítulo. Antes de tudo, é necessário en-

tender o que são coleções literárias e como elas se apresentam.

Para isso, são expostos alguns casos, com breves comentários,

a fim de esclarecer critérios de agrupamento de seus volumes

integrantes e características de seu projeto gráfico.

Na segunda parte do capítulo são apresentadas as

análises de algumas destas coleções, dando início à prática

projetual deste trabalho, pois é analisando a maneira como as

peças gráficas são construídas que melhor se vislumbram as

possibilidades de criação. Ao final do capítulo é apresentada a

prática projetual deste trabalho.

3

Page 30: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

58 59

O dicionário Aurélio da Língua Portuguesa conceitua coleção

como: “1. Conjunto ou reunião de objetos da mesma natureza

ou que têm qualquer relação entre si [...]”. Pode-se concluir,

desta maneira, que uma coleção literária é composta por di-

versos títulos agrupados por algum critério escolhido.

3.1O que é coleção literária

A primeira coleção a ser citada neste capítulo é a

coleção Clássicos (Fig. 56), da Editora Abril, lançada no ano

de 2010. A coleção consiste em um agrupamento de 30 obras,

de diferentes autores e épocas, já reconhecidas pela história

da literatura, como O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La

Mancha, de Miguel de Cervantes; Crime e castigo, de Fiodór

Dostoievski; Madame Bovary, de Gustave Flaubert; Os Ser-

tões, de Euclides da Cunha e Hamlet, de William Sheakspeare.

Tratam-se de edições populares, vendidas em bancas de jor-

nal. Assim, a preocupação estética reside, principalmente, na

capa - serigrafada em tecido - pois esta é o contato do volume

com o leitor, já que os livros se encontram envoltos em plástico

no ponto de venda.

Figura 57 - Coleção Clássicos da Editora Abril. Fonte: editorabril.com.br

David Pearson, designer conhecido por seu trabalho junto à Pen-

guin Books, possui em seu portfólio uma série de projetos em design de livro

e, mais especificamente, coleções. Seus trabalhos primam, pode-se dizer, pela

delicadeza e sutileza na composição gráfica dos elementos identitários. Na

coleção Great Ideas, de 2004, os livros possuem apenas formato e cor fixas,

o restante das informações visuais são variáveis a cada volume. Além disso,

Pearson cria capas que se assemelham a partes internas do livro (como folhas

de rosto ou páginas de entrada de capítulos), por trazer parte do texto para a

capa.

Figuras 58, 59 e 60 - Capas da coleção Great Ideas Fonte: davidpearsondesign.com

Figura 61 - Lombadas da coleção Great Ideas

Fonte: davidpearsondesign.com

Page 31: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

60 61

A inglesa Penguin Books é um caso especial no que diz respeito à

coleções literárias. A editora, fundada em 1935, é um marco no design de livros

de bolso. A identidade gráfica de seus livros, datada da abertura da empresa e

sutilmente modificada ao longo dos anos, é reconhecida mundialmente sendo

até hoje utilizada pela editora em algumas de suas publicações.

No Brasil, a editora L&PM, com seu selo L&PM pocket, possui a

maior publicação de livros de bolso do país. Diferentemente da Penguin, a

editora brasileira não possui identidade pré-estabelecida para seus livros, pro-

jetando a identidade - na grande maioria dos casos - em função do autor ou da

obra. As capas da coleção do autor Raymond Chandler (Fig. 64 a 67) são um

exemplo de como a identidade gráfica dos livros é pensada pela editora: o pro-

jeto gráfico dos volumes aposta em elementos da narrativa como ilustração de

Figura 62 - Capa da Penguin, 1935. Fonte: BAINES, 200, p. 18 / Figura 63 - Capa da Pen-

guin, 1949. Fonte: BAINES, 200, p. 57 / Figura 64 - Capa do selo Penguin-Companhia,

2010. Fonte: companhiadasletras.com

Extraído de http://www.lpm-editores.com.br/site/default.asp?Template=../livros/layout_

produto.asp&CategoriaID=608155&ID=745390

capa e foi inspirado nas capas de literatura policial dos anos 1940/1950, uma

referência à época em que o autor mais publicou*.

Um outro exemplo de identidade gráfica baseada na obra do autor

são as capas tipográficas para obras do escritor Caio Fernando Abreu (Fig. 68

a 71). Neste conjunto, a identidade do grupo é dada pela tipografia e seu po-

sicionamento no espaço, enquanto a identidade individual do volume se cons-

trói pela cor e fundo e por sutis alterações na tipografia, que fazem referência

ao título do livro (um corte nas letras se refere à palavra apunhalado; uma

letra “r” se apresenta escura em meio a uma massa de letras claras por conta

da palavra negras e a forma triangular da letra “a” é evidenciada na própria

palavra triângulo).

Figuras 65, 66, 67 e 68 - Capas da coleção Raymond Chandler. Fonte: lpm-editores.com.br

Figuras 69, 70, 71 e 72- Capas para livros de Caio Fernando Abreu. Fonte: lpm-editores.com.br

Page 32: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

62 63

Assim como a Coleção Clássicos, citada no início deste capítulo, as

coleções dos autores Raymond Chandler e Caio Fernando Abreu tratam-se de

edições populares, de bolso. A preocupação principal, nestes casos, reside na

economia de recursos e, por isso, o projeto gráfico interno das publicações é

padrão e o investimento na particularização dos volumes se dá na capa.

Algumas editoras, como a brasileira Cosacnaify, apostam no proje-

to gráfico total como identidade gráfica de uma coleção, projetando também

o miolo com traços característicos do agrupamento. É o caso da coleção Par-

ticular, que conta com quatro obras editadas em projetos gráficos especiais,

que contribuem para a interpretação do texto. Além do já citado na introdu-

ção do trabalho Bartleby, o escrivão, fazem parte da coleção Primeiro Amor, de

Samuel Beckett, Zazie no metrô, de Raymond Queneau e A Fera na Selva, de

Henry James. Este último volume possui projeto gráfico de Lucianna Facchi-

ni, enquanto os outros são assinados por Elaine Ramos.

Elaine Ramos também é responsável pelo projeto gráfico da cole-

ção Moda Brasileira I, também da editora Cosacnaify. A coleção conta com

cinco volumes, cada um dedicado à obra de um estilista específico, acondicio-

nados em uma caixa. Assim como na coleção Particular os projetos gráficos

Figuras 73, 74, 75 e 76- Capas da coleção Particular. Fonte: cosacnaify.com.br

variam de livro para livro, porém, apresentam uma

grade estrutural padrão para a capa.

Um outro exemplo de coleção literária é a

coleção Plenos Pecados, lançada pela editora Objeti-

va no final da década de 1990. São sete livros com o

caráter de conjunto bem explícito, com cores e grade

padrão.

A partir da pesquisa sobre coleções, aqui

brevemente apresentada, é que foram escolhidas as

peças gráficas a serem analisadas. Optei por escolher

dois designers, Elaine Ramos e Victor Burton, com

trajetórias e produções distintas no tempo e em dife-

rentes espaços (diferentes editoras, com diferentes visões de projeto).

Elaine Ramos é atual coordenadora das publicações de design da

editora Cosacnaify, além de ser responsável por diversos projetos gráficos da

editora. É graduada em arquitetura e urbanismo pela USP e em seu currículo

constam vários prêmios por seus projetos editoriais.

Victor Burton é um designer autodidata. Já projetou mais de duas

mil capas de livro e mais de duzentos projetos gráficos de miolo. Começou a

Figura 77- Caixa da coleção

Moda Brasileira I. Fonte:

cosacnaify.com.br

Figura 78- Livros da coleção Plenos

Pecados. Fonte: editoraobjetiva.com.br

trabalhar como capista da edito-

ra Nova Fronteira, logo que che-

gou ao Brasil em 1979. Burton

nunca planejou ser designer, o

envolvimento com a profissão

se deu pela sua paixão por livros

(PERROTTA, 2006).

Page 33: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

64 65

3.2Análises

Como citado anteriormente, esta parte do trabalho se dedica

à análise gráfica de coleções literárias, dando início à práti-

ca projetual deste trabalho. As coleções escolhidas, Coleção

Particular e Coleção Moda Brasileira I, da editora Cosacnaify;

Coleção Plenos Pecados, da Editora Objetiva; e Coleção José

Lins do Rego, da Editora José Olympio, serão analisadas uti-

lizando as noções de informação fixa e informação variável,

descritas por Chico Homem de Melo em seu artigo Design de

livros: muitas capas, muitas caras (MELO, 2006). Ao falar do

trabalho de Odilea Toscano para a Editora Brasiliense, mais

especificamente da Coleção Jovens do Mundo Todo, Melo lança

estas noções de informações fixas e variáveis:

O barrado com silhuetas variadas de jovens muda

de cor de volume para volume, mas seu desenho

permanece o mesmo. Uma linha com o nome da

coleção separa o barrado superior do campo des-

tinado ao título e à ilustração. Dessa forma, fica

estabelecido com clareza o que é informação fixa e

informação variável (MELO, 2006, p. 92).

3.2.1Coleção Particular

Livros integrantes:

Primeiro Amor, de Samuel Beckett (edição de 2004)

Bartleby, o escrivão - uma história de Wall Street, de Herman

Melville (edição de 2005)

A Fera na Selva, de Henry James (edição de 2007)

Zazie no metrô, de Raymond Queneau (edição de 2009)

Figura 79 - Detalhes

da coleção Particular.

Fonte: da autora

Page 34: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

66 67

A coleção Particular, da editora Cosacnaify, aposta no projeto grá-

fico como fator a ser interpretado pelo leitor, além do texto. Serão analisados

três dos quatro volumes que compõe a coleção, pelo fato de que Bartleby, o

escrivão, Primeiro amor e Zazie no metrô tem seu projeto gráfico assinado por

Elaine Ramos (este último em parceria com Maria Carolina Sampaio) e, por-

tanto, respondem ao critério utilizado para seleção de peças. O quarto livro da

coleção, A fera na selva, possui projeto gráfico de Luciana Facchini.

À primeira vista, os volumes podem parecer díspares, não tendo um

caráter identificável de coleção, já que não possuem o mesmo suporte, ele-

mento identitário (como um logotipo ou selo), cores e texturas ou tipografia

semelhantes. Até mesmo a encadernação difere de um volume para outro, o

que me faz pensar que a unidade da coleção busca, justamente, a não-unifi-

cação, o que é também reforçado pelo seu nome. E se forem observadas as

datas de lançamento de cada livro, esse caráter de não-unificação é ainda mais

destacado, visto que as obras foram lançadas em diferentes momentos, o que

também dá a idéia de que a coleção pode ainda ser acres-

cida de volumes.

Internamente, os três volumes projetados por

Elaine Ramos possuem uma estrutura de cadernos se-

melhante: são todos compostos por folhas não refiladas,

configurando uma invariável desta coleção. A diferença

neste aspecto reside em seu uso, na maneira gráfica de

explorá-lo. Em Bartleby, o escrivão, é necessário o abrir

de páginas para acontecer o ato de leitura (como já men-

cionado na introdução deste trabalho). Zazie no metrô

possui o texto aparente e a abertura é necessária ape-

nas para observação das ilustrações, cabendo ao leitor

Figura 80 - Detalhes da abertura de páginas em Zazie no metrô.

Fonte: da autora

a decisão de refilar manualmente o livro, para apreciação plena, ou manter

as folhas intactas, fazendo uma leitura das imagens de maneira invertida e

sob o texto através da transparência do papel. Diferentemente dos exemplos

citados é o uso das páginas não-refiladas em Primeiro Amor. Neste livro o “en-

tre-páginas” é em branco, sem impressão e então a folha é utilizada para dar

continuidade, nas páginas pares, ao desenho das páginas ímpares. A operação

de corte/abertura que pode ser feita, neste caso, é junto à linha de costura (da

encadernação) nas páginas pares, unindo duas páginas em uma e não sepa-

rando-as.

Principalmente nesta coleção, foi observado o que Flusser (2007)

nomeia “não-coisa”, algo impalpável, fruto do desvio de interesse das coisas

para as informações. O homem hoje busca conforto em experiências e sensa-

ções e não mais nos aspectos materiais de sua existência. Dessa maneira, a

coleção Particular vai ao encontro destes desejos, de “experimentar, conhecer

e, sobretudo, desfrutar” (FLUSSER, 2007, p. 58).

Figura 81 - Detalhes de Primeiro Amor. Fonte: da autora

Figura 82 - Detalhes da

abertura de páginas em

Primeiro Amor. Fonte: da

autora

Page 35: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

68 69

Coleção José Lins do Rego

Livros integrantes:

Menino de engenho, de José Lins do Rego (edição de 2009)

Fogo morto, de José Lins do Rego (edição de 2010)

Figura 83 - Detalhes da

coleção José Lins do

Rego. Fonte: da autora

3.2.2Diferentemente da coleção Particular, os projetos de capa de Victor

Burton para obras de José Lins do Rego são facilmente identificados como

conjunto. Ambos os livros - Fogo Morto e Menino de engenho - possuem, em

sua capa, ilustrações em preto e branco, de Santa Rosa, originais da primeira

edição dessas obras. Além da ilustração, Burton opta pela presença de uma

caixa de bordas irregulares, no qual título e autor são inseridos.

Deste projeto pode-se destacar o caráter pouco variável. Burton

modifica cores, posições, papéis, mas os elementos básicos são os mesmos.

A principal variável do projeto reside na impressão. Menino de engenho, talvez

pelo fato de se tratar da centésima edição, possui a capa em papel colorido e

relevos (alto para título e autor e baixo-relevo na forma quadrada). Já Fogo

morto apresenta capa completamente plana, em papel branco com cobertura

em brilho. O fato de Menino de engenho ser impresso no lado opaco do pa-

pel (na verdade, há uma inversão da folha: o lado normalmente utilizado para

impressão é o que possui cobertura brilhosa), cria uma maior relação com a

xilogravura de Santa Rosa, causando a sensação de que esta realmente havia

sido impressa na capa, pela técnica original (xilogravura) pela qual estas fo-

ram produzidas.

A lombada e a quarta-capa dos volumes é bastante semelhante -

ambas possuem fundo correspondente à cor utilizada na capa (vermelho para

Fogo Morto e verde para Menino de engenho). Na lombada variam apenas cor

e nome do livro, apesar de Fogo Morto possuir quase o dobro do número de

Figura 84 - Detalhe da impressão em um

volume da coleção José Lins do Rego.

Fonte: da autora

páginas presentes em Menino de

engenho. Na quarta-capa os li-

vros repetem a caixa existente na

primeira-capa, mas em cores in-

Page 36: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

70 71

vertidas: a forma apresenta a cor do suporte. E, se na capa as informações de

autor/título eram localizadas no interior da caixa, na quarta-capa esta abriga

a sinopse da obra.

Um fato observado nestes dois volumes é a iniciativa da editora Re-

cord em lançar livros sob o selo “José Olympio Editora”, visto que esta última

foi uma das primeiras editoras do país a publicar escritores não-consagrados

na literatura e valorizar escritores locais, desempenhando um importante pa-

pel na história editorial do Brasil.

Livros integrantes:

Alexandre Herchcovitch, de Charles Cosac (edição de 2007)

Gloria Coelho, de Carlos Mauro Fonseca (edição de 2007)

Lino Villaventura, de Jackson Araújo (edição de 2007)

Ronaldo Fraga, de Carol Garcia (edição de 2007)

Walter Rodrigues, de Eva Joory (edição de 2007)

Coleção Moda Brasileira I

Figuras 85, 86, 87, 88, 89 e 90 - Volumes integrantes da coleção Moda

Brasileira I. Fonte: cosacnaify.com.br

3.2.3

Page 37: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

72 73

A coleção Moda Brasileira 1 conta com cinco livros que resgatam

trajetória e projetos de cinco estilistas do Brasil. Nas palavras de Ronaldo Fra-

ga: “A coleção traz cinco estilistas com processos de pesquisa e criação muito

diferentes, o que revela a diversidade da moda brasileira. E mais, demonstra

como essa variedade está construindo a tão falada identidade nacional”�.

Nas capas, a coleção valoriza os aspectos invariáveis. Apesar de

cada capa se adequar ao estilista, com desenhos e ilustrações que conversem

com sua produção em moda (utilizando até mesmo croquis do próprio estilis-

ta) há uma grade estrutural padrão muito forte para todos os volumes.

Essa grade estrutural é visível apenas com a presença da sobreca-

pa. Sem ela, as capas apresentam apenas uma ilustração (ou fotografia) e a

identificação de coleção e título do volume. Na presença da sobrecapa, a capa

é dividida em três blocos: um ocupando toda a metade inferior e outros dois

formados a partir da divisão da metade superior. O primeiro bloco, inferior,

possui imagens características da produção de cada estilista. O segundo é

uma faixa de cor, que muda de acordo com o livro/estilista em questão. Final-

mente, o terceiro nada mais é do que um pedaço aparente da capa do livro (a

sobrecapa apresenta-se em tamanho menor do que a capa), apresentando as

informações do volume.

A quarta-capa e a lombada também seguem esta estrutura. Na

lombada, na porção de sobrecapa ausente, a costura das páginas do livro é

aparente, o que se configura em um elemento identitário quando os livros são

Figura 91 - Estrutura de capa da coleção Moda Brasileira I. Fonte: da autora

agrupados em conjunto em uma prateleira, por exemplo. Na quarta-capa o

bloco inferior dá lugar a um texto referente ao que é apresentado no livro.

O projeto gráfico do

miolo do livro constitui a informa-

ção variável da coleção, pois cada

volume foi projetado utilizando

elementos próprios do universo

de cada estilista. No volume dedi-

cado ao estilista Ronaldo Fraga,

por exemplo, as molduras utiliza-

das pelo artista são utilizadas para

reforçar blocos de texto e suas

colagens, sobreposições e combi-

nações de texturas são utilizadas

o tempo todo: em títulos, fundos

e como elementos auxiliares na

Figura 92 - Detalhes internos de Ronaldo

Fraga. Fonte: da autora

diagramação de fotos. Já o volume que apresenta Gloria Coelho possui carac-

terísticas mais sóbrias, que já podem ser observadas na capa. A diagramação

é contida, os ângulos são retos e as cores mais escuras, pois a produção em

moda de Gloria Coelho pede uma apresentação mais formal e discreta.

Page 38: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

74 75

Coleção Plenos Pecados

Livros integrantes (edições de 2009):

Canoas e marolas, de João Gilberto Noll

A casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro

Mal secreto, de Zuenir Ventura

O clube dos anjos, de Luis Fernando Veríssimo

Terapia, de Ariel Dorfman

Vôo da rainha, de Tomás Eloy Martínez

Xadrez, truco e outras guerras, de José Roberto Torero

Figura 93 - Detalhes da

coleção Plenos Pecados.

Fonte: da autora

3.2.4Os sete pecados capitais são o tema da Coleção Plenos Pecados, lan-

çada pela editora Objetiva ao final da década de 1990. Para a coleção, foram

convidados a escrever, sobre cada um dos pecados, sete autores brasileiros.

O projeto gráfico de Victor Burton é um dos mais conhecidos de

sua trajetória como designer e configura-se em uma das raras vezes em que

editoras de público mais abrangente - como é a editora Objetiva - apostam no

projeto gráfico total (capa e miolo) para determinado livro ou coleção.

Assim como as capas da Coleção Moda Brasileira I, as capas de Ple-

nos Pecados possuem uma grade estrutural padrão, na qual a posição de nome

do autor, título, logotipo da coleção e logotipo da editora são iguais em todos

os volumes. Também a tipografia, tanto na capa quanto no miolo, e cores pre-

dominantes são informações fixas.

As ilustrações de capa são de autoria de artistas brasileiros, como

Luiz Zerbini, Leda Catunda e Adriana Varejão. Sua cor predominante é sem-

pre o vermelho, acompanhado do preto. No livro Canoas e Marolas, a ilus-

tração de Leda Catunda apresenta a figura de uma árvore com folhas verdes,

sendo a única imagem com cor variante no projeto, o que pode ser relacionado

com a ausência de cor nas informações textuais nesta capa, visto que as outras

apresentam cores no título, no nome do autor e no logotipo da coleção.

Os livros também possuem o nome do pecado correspondente em

sua capa, em uma camada de verniz. O nome do pecado é relacionado dire-

tamente com o título, pois a camada de verniz é impressa em cima deste. A

leitura se dá pelo contraste entre o papel opaco e a palavra envernizada.

Figura 94 - Detalhes

da aplicação de verniz.

Fonte: da autora

Page 39: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

76 77

A lombada e quarta-capa dos livros também segue um mesmo pa-

drão. Na lombada encontra-se o nome do autor seguido do título do livro, em

cores correspondentes às utilizadas na capa, sobre fundo preto. A quarta-capa

apresenta detalhes ou uma continuação das ilustrações de capa e a sinopse do

livro.

Os livros apresentam pequenas variantes na estrutura de capa,

como o alinhamento do texto na quarta-capa (adaptado à ilustração) e cores

das informações textuais (relacionadas às cores da ilustração e, provavelmen-

te, ao pecado a que o livro corresponde).

Figura 95 - Detalhes da estrutura interna dos livros. Fonte: da autora

Figura 96 - Detalhe da página de abertura de capítulo. Fonte: da autora

Na parte interna do livro observa-se a mudança de função da folha

de guarda, que era antes utilizada para unir a capa do livro aos cadernos com

melhor acabamento. Neste projeto, o que se assemelha à folha de guarda são

ilustrações colocadas nas duas páginas seguintes à folha de rosto. O miolo se-

gue apresentando as ilustrações, ou apenas detalhes das mesmas, ora em tons

de cinza, ora em vermelho, em papel de cor branca ou vermelha. Há inversão

da estrutura tradicional do livro, uma não preocupação em manter a ordem

clássica de seus elementos. O que importa, neste caso, é apenas criar uma nar-

rativa pré-textual através das imagens.

As entradas de capítulo, nos livros apresentam-se em branco sobre

fundo preto, diferentemente das demais folhas de texto, todas brancas com

texto impresso em preto. Além disso, o texto, nas entradas de capítulo é de

corpo duas vezes maior e não obedece às margens estabelecidas nas outras

páginas. Esta estrutura se repete a cada capítulo, em todos os volumes, exceto

em Mal Secreto, que apresenta a estrutura apenas no capítulo inicial, para as-

sim manter a identidade da coleção, e provavelmente sua ausência se deva ao

fato da narrativa não se adaptar a este tipo de recurso gráfico.

Nesta coleção identi-

ficam-se várias situações de au-

toria. A primeira delas reside no

fato de que o editor cria o tema

da coleção (pecados capitais)

e convida escritores a escrever

sobre um pecado específico,

tendo em mente as relações

possíveis entre a personalidade

e característica estilística desse

escritor com o imaginário em

torno de determinado pecado.

Page 40: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

78 79

A segunda relação de autoria é a própria narrativa, a própria história que refle-

te e apresenta a visão do escritor sobre o pecado. As ilustrações presentes nos

livros são realizadas por outros autores, por sete artistas visuais. E, finalmen-

te, a última das relações de autoria identificadas, a figura do designer-autor,

Victor Burton.

Victor Burton, em seus projetos, “sempre traz as referências da-

quilo que gosta - principalmente história da arte” (PERROTTA, 2006, p. 14).

O estilo burtoniano valoriza a tipografia e os ornamentos (molduras, fios etc)

e recorre a elementos como o céu, a lua e sol seguidamente (PERROTTA,

2006) - inclusive, o logotipo da coleção Plenos Pecados possui a figura de um

sol.

Quando Flusser (2007) aponta as diferenças entre linha e super-

fície, coloca que no processo de leitura linear o indivíduo obede-

ce a uma ordem pré-definida, enquanto no outro, processo em

superfície, a leitura se dá por uma ordem sugerida (e portanto

é provável que diferentes indivíduos façam diferentes leituras).

Relacionando esses pensamentos com as análises realizadas,

percebo que no projeto gráfico de livro há a convivência entre es-

ses dois tipos de leitura: o texto como pensamento linear e o pro-

jeto gráfico (seja por ilustrações, uso de cor, texturas etc) como

pensamento em superfície. E que o mágico do livro está na inte-

gração e na contaminação de um tipo de pensamento pelo outro.

Page 41: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

80 81

3.3Criando uma coleção

A prática projetual deste trabalho apresentou-se de maneira

natural, enquanto a revisão teórica era construída. Nos inter-

valos entre leituras sobre metodologia, imaginário e design,

meu descanso se dava, principalmente, lendo obras literárias.

Neste período, então, comecei a reler os contos de Caio Fer-

nando Abreu, um dos meus escritores favoritos.

Os textos de Caio sempre me proporcionaram ima-

gens inesquecíveis de seus personagens, situações e lugares.

Assim como Vitor Ramil tem a sua Satolep*, cidade que é fru-

to do imaginário do escritor/músico a partir da observação de

sua própria cidade natal, Caio tem seu Passo da Guanxuma,

cidade onde se passam parte de suas histórias. Essas duas ci-

dades, esses dois imaginários que são construídos a partir do

real, sempre me encantaram, talvez pela sensação de perten-

cer a Pelotas/Satolep ou dessas cidades também pertencerem

a mim.

Então, após esse reencontro com os textos do escri-

tor, surgiu pronta minha coleção. Não foi uma escolha, uma

opção. O que eu lembrava e o que me sensibilizava nos mo-

mentos em que eu estudava e escrevia eram essas palavras,

contos, lugares, pessoas, acontecimentos, o imaginário desse

autor.

*Satolep é palíndromo da palavra Pelotas, “é presença fixa na obra

de Ramil - um lugar a qual ele recorre, percorre e busca recriar para

constituir a si próprio”. Extraído de http://editora.cosacnaify.com.br/

ObraSinopse/11053/Satolep.aspx

Caio Fernando Loureiro Abreu é gaúcho de Santiago, conhecida no

Rio Grande do Sul como “a terra dos poetas”. Nascido em 1948, faleceu aos

quarenta e sete anos, em 1996, vítima do vírus HIV. Chegou a estudar Letras e

Artes Cênicas, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas

não concluiu nenhum dos dois cursos. Trabalhou em revistas como Manchete

e Nova, jornais como Correio do Povo, Folha de São Paulo e Zero Hora. Morou

no Rio de Janeiro, Porto Alegre e em vários países da Europa. Foi perseguido

pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) durante a ditadura.

Refugiou-se na casa da escritora Hilda Hilst (vários de seus textos foram escri-

tos no sítio de Hilda). Escreveu peças de teatro e, acima de tudo, deixou para

as pessoas as suas palavras.

A coleção desenvolvida agrupa sete livros do autor: Morangos mo-

fados, Os dragões não conhecem o paraíso, O ovo apunhalado, Fragmentos,

Ovelhas negras, Limite branco e Inventário do Ir-remediável. Tais livros foram

escolhidos por se tratarem de textos que eu já havia lido.

É importante deixar claro que este trabalho apresenta somente ca-

pas para os livros - e não o projeto gráfico total - pelo pouco tempo disponí-

vel durante este semestre. O projeto gráfico de capa e miolo demandaria mais

atenção e, portanto, mais tempo. Também é necessário falar sobre os mate-

riais disponíveis para impressão dos protótipos, aqui mostrados em material

e impressão mais próximos do ideal. As especificações dos materiais que se-

riam utilizados caso o projeto fosse realmente editado encontram-se junto ao

memorial descritivo de cada uma das capas.

A narrativa dramática de Caio Fernando Abreu revela um ser in-

classificável,

[...] obssessivo com o lado escuro de todas as coisas, mas apaixo-

nado pela vida, sempre em busca da luz, das flores, da leveza. O

Caio simpático com os outsiders, com quem, curioso e temerário,

Page 42: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

82 83

gostava de andar no limite, nas noites mais perigosas, mas nunca

a ponto de se perder, nunca a ponto de perder o caminho de volta,

que marcava, como João e Maria da fábula, não com pedacinhos

de pão ou pedrinhas, mas com seus textos, a literatura (CALLE-

GARI, 2008, p. 11).

Fazendo relações com esses sentimentos e sensações é que foram

criadas as capas da coleção.

Primeiramente, pensei em utilizar manchas em nanquim, por ser

algo que eu tenha contato direto (as manchas e escorridos do líquido como

sugestão e ponto de partida para desenhos), e por ser um material delicado,

no sentido de que qualquer gota d’água que caia sobre o papel ainda úmido

provoca reações na cor e nas formas da tinta, além de muitas vezes seu resul-

tado ser imprevisível - uma relação que acaba sendo estabelecida com o autor

e suas mudanças, suas épocas e sua característica de “inclassificável”.

A opção por realizar cortes na capa, mostrando detalhes do que se

encontra na folha de rosto, é uma tentativa de integrar capa e miolo do livro e

provocar uma contaminação entre estas partes, que é também reforçada pela

presença de trechos de cada um dos livros em cada uma das capas. As dife-

rentes camadas que se sobrepõem, mostrando detalhes internos do livro, são

parte de um jogo em que descobrir, encobrir, fazer emergir, esconder, prote-

ger, expor e revelar são as jogadas-chave. E neste jogo estas camadas se con-

fudem, cabendo ao leitor, através de sua experiência com o objeto, desvendar

as mesmas.

Outro ponto importante, que também revela a estrutura interna do

livro, é a encadernação*, com a costura e estrutura de cadernos aparente. Este

*A fim de mostrar este tipo de encadernação, o presente trabalho é encadernado da

mesma maneira.

**Extraído de www.doe.in.gov/olt/grantprojects/books/Coptic%20Book.htm

tipo de encadernação chama-se encadernação copta, desenvolvida por egíp-

cios, entre os séculos II e III, sendo utilizada comumente na Etiópia até os dias

atuais**. Com esta costura, o livro acaba não tendo lombada impressa e, se por

um lado, em uma prateleira de livros não se dará a identificação imediata da

obra, por outro, haverá uma interrupção, uma massa branca entre as demais

lombadas.

Na quarta capa dos livros optei por repetir a folha de rosto, seguin-

do a noção da integração da parte exterior do livro com seu interior. A única

diferença é o espelhamento dos elementos contidos na folha, o que pode se

identificar como mais uma das jogadas propostas.

A ausência de uma grade estrutural padrão para as sete capas deve-

se à escolha de adequar os elementos às manchas, já que estas possuem apa-

rências e tamanhos distintos. Adequadas à mancha também foram escolhidas

as tipografias e cores. Por tais escolhas, as variantes neste projeto tornam-se

muito mais explícitas do que as invariantes, sendo a unidade da coleção ob-

servada no todo e não em poucos volumes. Além disso, existem aproximações

entre capas, criando pequenos conjuntos (de dois ou três livros), que serão

melhor comentados na descrição de seus projetos gráficos.

Page 43: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

84 85

Page 44: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

Agor

a ab

ria

a po

rta

deva

gari

nho,

ate

nto

aos

ruíd

os q

ue n

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a se

sta

sem

pre

pare

cem

mai

ores

do

que

real

men

te e

ram

.

Page 45: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

A capa de Limite Branco, ao contrário de seu nome, apresen-

ta uma grande mancha negra, que se espalha pela superfície.

A mancha foi obtida através de pinceladas de nanquim preto

e pingos d’água sobre o papel. Após a secagem, o papel foi

arrastado contra a mesa que continha vestígios da tinta, por

isso algumas partes mais claras e outra textura. A mancha não

acaba, ela se estende por toda a capa. Existem algumas áreas

mais delimitadas, mas ainda assim fazem parte de um todo,

de uma mesma massa. O limite, presente no título, é sugerido

pelo corte que separa o nome do livro do nome do autor e re-

vela apenas um fragmento do texto presente na folha de rosto.

Quanto às camadas, essa capa, especialmente, pos-

sui muitas: a camada da folha de rosto, a camada da tipogra-

fia* e as inúmeras camadas de tinta.

Limite branco

*As famílias tipográficas utilizadas serão citadas, juntamente com as

especificações de produção gráfica, em forma de cólofon, ao final da

descrição de cada capa.

Page 46: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

A capa foi composta com tipografia Galette,

e impressa em off-set sobre papel-cartão

TP Premium 300g/m da Suzano.

Page 47: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

Agora abria a porta devagarinho, atento aos ruídos que na hora da sesta sempre parecem maiores do que realmente eram.

Page 48: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

No começo, tinha nojo dele. O homenzinho apagado demais, humilde demais, sempre quieto, como consciente do desprezo que provocava, e por isso mesmo mais desprezível.

Page 49: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

Uma mancha negra que vai se diluindo até um cinza claro

é ponto de partida para a capa de Ovelhas negras, livro que

apresenta diversos contos de Caio Fernando Abreu, escritos

dos 14 aos 46 anos e que, por diferentes razões, nunca haviam

sido editados em um livro. Ao final da introdução, Caio ainda

comenta: “como Rita Lee, sempre dediquei um carinho todo

especial pelas mais negras das ovelhas” (ABREU, 2002, p. 4)

e assina como O Autor-Pastor, o pastor dessas ovelhas negras.

A mancha negra, envolta por uma forma clara, é

uma referência ao título do livro, à própria ovelha-negra, “pes-

soa que num grupo sobressai por suas más qualidades, por

seu mau proceder” (HOLANDA, 1986, p. 1241).

O excerto de texto presente na folha de rosto é do

conto O príncipe sapo, e quando o corte revela o trecho “e por

isso mesmo mais desprezível” cria uma forte relação com o

título do livro.

Ovelhas negras

Page 50: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

A capa foi composta com tipografias Sub-pear

e Book Antiqua, e impressa em off-set sobre

papel-cartão Art Premium 300g/m da Suzano.

Page 51: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

No começo, tinha nojo dele. O homenzinho apagado demais, humilde demais, sempre quieto, como consciente do desprezo que provocava, e por isso mesmo mais desprezível.

Page 52: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

O poço do poço.

poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço.

O limo do poço. A umidade do

Page 53: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

As manchas presentes no livro podem ser relacionadas tanto

com o trecho de texto escolhido quanto ao apunhalado do tí-

tulo. Esparsas, elas parecem sair de um mesmo ponto, fora da

capa, como se algo estivesse se abrindo e deixando um líquido

interior se expandir. Ou então parecem manchas úmidas, mo-

fadas, criando relação com o poço do texto.

Nesta capa, o nome do autor quase desaparece. Ele

está ali, mas por se tratar de um dos livros mais comentados

do autor esta informação é deixada em segundo plano, em

uma tipografia de corpo delicado, que contrasta com as man-

chas fortes e o peso da caixa formada pelo corte.

O ovo apunhalado

Page 54: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

A capa foi composta com tipografias St Marie

Thin, e Museo 500 impressa em off-set sobre

papel-cartão Quartz 230g/m da Suzano.

Page 55: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

O poço do poço.

poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço.

O limo do poço. A umidade do

Page 56: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias
Page 57: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

A capa de Inventário do Ir-remediável não fosse pelo texto e

nome do autor seria uma capa quase transparente, já que não

existem contrastes intensos entre os elementos. A tipografia

do nome do livro some em uma mancha quase inexistente,

transparente, de pinceladas delicadas e aguadas. A folha de

rosto revela apenas sua textura, não há informação agregada

à ela.

Pode-se observar uma pequena relação desta capa

com a capa de O ovo apunhalado; ambas utilizam informações

em segundo plano, quase transparentes, para passar atenção

à outros detalhes. Na capa de Inventário do Ir-remediável dá-se

importância e destaque ao trecho da obra e ao detalhe da folha

de rosto, por se tratar de outro material.

Inventário do Ir-remediável

Page 58: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

A capa foi composta com tipografias St Marie

Thin, Lido STF e Pill Gothic 600, e impressa em

off-set sobre papel-cartão Quartz 230g/m da

Suzano e papel Kraft 300g/m

Page 59: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias
Page 60: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

O rapaz de camisa vermelha aproveitou o silêncio para gritar bem alto que Urano estava entrando em Escorpião. Os outros pareceram perturbados, menos com a informação e mais com o barulho, e pediram psiu, para ele falar baixo, se não lembrava do que tinha acontecido a última vez.

Page 61: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

Assim como O ovo apunhalado, esta é uma das obras mais di-

vulgadas do autor. A mancha aqui é escorrida e escura, sem

grandes variações tonais. A palavra mofados traz caracte-

rísticas de coisas em decomposição, esquecidas, esgotadas

e sempre imagino algo líquido, escorrendo, se perdendo aos

poucos. Também lembro que, durante a leitura do livro, me

marcou a quantidade de vezes em que sangue era presente na

narrativa. Assim, o escorrido da capa refere-se às minhas im-

pressões do livro.

O escorrido da capa parece acabar em um ponto

vermelho - corte na capa -, que estabelece essa relação com o

sangue e com o trecho do texto utilizado, no qual a figura de

um “rapaz de camisa vermelha” é presente.

Relacionando esta com as outras capas pode-se

identificar semelhanças com a capa de Limite branco, pelas

duas possuírem um elemento vertical de destaque, e com a

capa de Inventário do ir-remediável, pelo corte revelar apenas

cor e textura da folha de rosto.

Morangos mofados

Page 62: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

A capa foi composta com tipografias Andron,

Galette e Gill Sans MT impressa em off-set sobre

papel-cartão Quartz 230g/m da Suzano.

Page 63: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

O rapaz de camisa vermelha aproveitou o silêncio para gritar bem alto que Urano estava entrando em Escorpião. Os outros pareceram perturbados, menos com a informação e mais com o barulho, e pediram psiu, para ele falar baixo, se não lembrava do que tinha acontecido a última vez.

Page 64: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as man-chas púrpura, da cor antiga do tapete na escada - agora, que cor? - espal-hadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço.

Page 65: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

Uma mancha que parece delimitar um território, e apenas pa-

rece pois essa mancha se confude com o próprio fundo sobre

o qual é colocada. E apenas pode parecer, pois o paraíso não

é um território, ou ao menos não um território limitado, que

exista concretamente. Este livro é um livro sobre amor. Como

diz o autor, em sua introdução, “um livro com 13 histórias in-

dependentes, girando sempre em torno de um mesmo tema:

amor”.

Principalmente neste livro a mancha tem grande

importância. É o elemento que proporciona a maior leitura,

o elemento central. O texto é do conto Linda, uma história

horrível, primeiro conto do livro e um de meus preferidos. O

trecho aparente na capa Um por um foi abrindo os botões tem

relação com o ato de abrir o próprio livro para descobrir o que

se guarda por trás da capa.

Esta capa se relaciona com a capa de Ovelhas ne-

gras, tanto pela mancha quanto pelo corte horizontal que re-

vela o texto e com a capa de Inventário do ir-remediável, pela

mancha clara e luminosa.

Os dragões não conhecem o paraíso

Page 66: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

A capa foi composta com tipografias Fertigo Pro

e Museo, e impressa em off-set sobre papel-

cartão Royal Quartz 230g/m da Suzano.

Page 67: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as man-chas púrpura, da cor antiga do tapete na escada - agora, que cor? - espal-hadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço.

Page 68: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias
Page 69: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

A última capa da coleção possui uma tensão muito forte, obti-

da com a simples rotação dos elementos de capa. Além disso,

a mancha é presente na folha de rosto, o que não acontece em

nenhum dos outros volumes, e é vista em detalhe, por um cor-

te circular deslocado do centro de seu conteúdo - que relaciona

a mancha mais solta e fragmentada com o próprio título do

livro.

A princípio esta capa seria modificada, por ser a

mais destacada como diferente entre as outras, mas com o

tempo observei que todas as capas tinham suas particularida-

des e que enfatizavam diferentes elementos, o que acabou por

justificar a presença da tensão neste caso.

As relações com outras capas podem ser vistas

principalmente pela tipografia - como em Morangos mofados -

e pela configuração da mancha - como em O ovo apunhalado.

Fragmentos

Page 70: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

A capa foi composta com tipografias Florin Sans,

Andron e Consolas, e impressa em off-set sobre

papel-cartão Royal Quartz 230g/m da Suzano.

Page 71: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias
Page 72: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

142 143

Descrição metodológica

Após ter o objeto de pesquisa escolhido comecei uma busca

por referenciais que sustentassem meus pensamentos, regis-

trando tudo que lia e me parecia pertinente para me auxiliar

no trabalho em um caderno - que me acompanha até agora.

Também criei um blog, onde cheguei a registrar alguns pen-

samentos mais soltos, que acabou não funcionando como eu

pretendia - um reservatório de referências.

Durante a busca, lembrei das oficinas que pude

participar no 20º Encontro Nacional dos Estudantes de De-

sign - N Design Imersão, ocorido do dia 11 ao dia 18 de julho

de 2010 em Curitiba. As oficinas Por uma filosofia do design

e Design+Literatura=Criação literária, ministradas por Mar-

cos Beccari e Ivan Mizanzuk me introduziram aos Estudos do

Imaginário, pelos quais me identifiquei imediatamente.

Hoje vejo que naquele momento descobri um ou-

tro mundo. Cheio de outras possibilidades. Um mundo que

conversa, que se relaciona e que respeita o mundo das antigas

possibilidades. Minha atenção se voltou para essas questões

do designer como narrador do vivido, o designer como um in-

4

Page 73: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

144 145

divíduo que projeta a partir das suas percepções e vivências, pois “o ser huma-

no é movido pelos imaginários que engendra” (SILVA, 2006, p. 7).

Essas noções habitaram meu pensamento por muitas semanas e fui

pesquisando referenciais para melhor compreende-las. Ainda no mês de julho,

do dia 26 ao dia 29, tive a chance de participar, pela segunda vez, do Encuentro

Latinoamericano de Diseño - Diseño en Palermo. Lá, pude assistir a apresenta-

ção do designer mexicano Alejandro Magallanes sobre sua produção editorial.

Assim como outros amigos - incluso minha orientadora - fiquei fascinada com

a produção e a paixão com que Magallanes falava do próprio trabalho. Seus

trabalhos eram ideias simples, nada de grandes produções e recursos financei-

ros, mas únicas. E, apesar de não conhecer grande parte do seu trabalho, eu

via Magallanes naquelas peças, o imaginário que impulsionava sua produção.

Esses pensamentos foram aos poucos tomando forma em mim.

E algumas opções foram se re-apresentando em minha memória. Antes das

orientações começarem ainda lembrei dos livros Bartleby, o escrivão e Livro

das Perguntas, já citados na introdução, por serem livros que comprei por sua

forma e pela experiência que me proporcionavam. Possivelmente, escolheria

outro livro - talvez de meus autores preferidos no momento: Jorge Luis Bor-

ges, Roberto Bolaño ou Chico Buarque - não fossem seus projetos gráficos. E

por conta destes livros comecei a me interessar cada vez mais sobre questões

de autoria em design gráfico, especialmente no projeto gráfico dos livros - que

sempre foi a área que mais me encantou.

Para minha sorte, logo no primeiro encontro para orientação, mi-

nha orientadora indicou os livros As tecnologias do Imaginário, de Juremir

Machado da Silva e O conhecimento comum, de Michel Maffesoli, como apor-

te teórico para o trabalho.

Michel Maffesoli é um sociólogo francês, professor da Sorbonne.

Em seu livro O conhecimento comum: introdução à sociologia compreensi-

va, deixa alguns pressuspostos a respeito da pesquisa nas ciências humanas e

ressalta a importância de o pesquisador ter em mente que “não existe uma Re-

alidade única, mas maneiras diferentes de concebê-la” (MAFFESOLI, 2010,

p. 36). Assim, a sociologia compreensiva aceita a subjetividade, por crer que

o pesquisador é movido por suas próprias vivências e aceita “a presença do

imponderável, do acaso, do etéreo na cultura” (SILVA, 2003, p. 16).

Consonante à visão de Maffesoli sobre a pesquisa em ciências so-

ciais é a visão de Juremir Machado da Silva, professor da Pontifícia Universi-

dade Católica do Rio Grande do Sul e discípulo de Maffesoli, sobre o imaginá-

rio. Para Silva, o imaginário é o que move os indivíduos, é por ele que “o ser

constrói-se na cultura” (SILVA, 2006, p. 14) e “encontra reconhecimento no

outro e reconhece-se a si mesmo” (SILVA, 2006, p. 14).

Assim, essas noções me pareceram (e ainda parecem) um bom

modo de refletir sobre o ser designer, que, segundo Flusser é um ser que “de-

duz e maneja eternidades” (FLUSSER, 2007, p. 191), por possuir um “olho-

sentinela”, que “olha para o longe, em direção à eternidade” (FLUSSER,

2007, p.188).

Paralelamente à leitura sobre imaginário, dei início a busca por

fontes que tratassem da história do livro, da evolução do design editorial e de

autoria no design gráfico. Assim, foram encontrados muitos artigos, que me

levaram a outros muitos livros que tratavam destes assuntos. A história do

design é vista a partir de Meggs, que realiza um apanhado da história das ma-

nifestações gráficas desde a comunicação visual da pré-história. É importante

citar que Meggs acredita que “por mais que nos empenhemos em busca da ob-

jetividade, as limitações do conhecimento e das percepções pessoais acabam

por se impor” (MEGGS, 2009, p. 10), pensamento consonante aos pressupos-

tos da sociologia compreensiva. As reflexões a respeito da história do livro e

leitura são vistas através das lentes de André Belo, que realiza um apanhado

histórico sobre as formas do livro e suas mudanças sociais, Martyn Lions, que

faz uma leitura das mudanças na leitura, fruto de mudanças sociais ocorridas

no século XIX, Armando Petrucci e José Barboza Mello, com reflexões sobre

história da imprensa no Brasil.

Page 74: O imaginário no design gráfico autoral: um estudo a partir de coleções literárias

146 147

A escolha de falar do livro enfatizando suas mudanças de configu-

ração como objeto durante a História deu-se pela minha necessidade de reali-

zar esse apanhado para melhor compreender as possibilidades de inovação no

design de livros. Além disso, a opção de dedicar parte do trabalho ao estudo da

leitura e do sujeito leitor foi tomada por perceber que as mudanças de configu-

ração dos objetos são impulsionadas por forças sociais e não apenas por forças

tecnológicas. Assim, construí um pequeno relato histórico destas principais

mudanças na relação dos indivíduos com seus livros, acreditando que o de-

signer gráfico pode se valer dessa interação entre objeto e leitor ao projetar. E,

para melhor compreender como as mudanças do livro se deram no Brasil são

utilizados os autores Rafael Cardoso e Chico Homem de Mello, pois resgatam

importantes personagens e fatos históricos que colaboraram para a evolução

das artes gráficas no Brasil.

Falando de autoria no design gráfico encontrei poucas referências,

comparando à quantidade encontrada sobre os outros temas. Durante essa

pesquisa, coincidentemente, encontrei um artigo de uma professora do meu

próprio instituto - Lúcia Weymar - que fala sobre relações de autoria e alteri-

dade no design gráfico contemporâneo.

Partindo da revisão teórica foram construídas as análises das peças

gráficas escolhidas - iniciando a parte prática deste trabalho - para posterior-

mente servirem de base para o projeto gráfico de uma coleção literária. Em-

bora o projeto gráfico construído nesse trabalho tenha seu foco voltado para a

capa (por questões de tempo), escolhi analisar duas coleções que trabalham o

miolo do livro para construir identidade e proporcionar uma nova experiência

ao leitor e outras duas coleções que focam as questões identitárias em suas

capas.

As coleções Moda Brasileira I, Particular, José Lins do Rego e Plenos

Pecados foram analisadas em seus aspectos formais (o que pode ser relaciona-

do com o conceito de formismo, proposto por Maffesoli, no qual a forma não

é apenas mais um atributo do objeto, mas também seu formante). E para es-

tabelecer relações de unidade da coleção foi utilizado o critério de informação

váriável e informação invariável, de Chico Homem de Mello (2006).

As análises realizadas serviram como ponto de partida para a ela-

boração do projeto gráfico da nova coleção por mim proposta. A princípio, a

coleção se daria por agrupamento de obras que eu me identificasse e possuís-

sem pontos em comum. Essa opção me parece viável, mas houveram alguns

acontecimentos no processo que fizeram com que eu mudasse a maneira de

reunir os livros. As escolhas das obras se deram de forma natural, da maneira

com que as possibilidades se mostravam, relacionadas com o momento que eu

estava vivendo. De um momento para o outro a coleção se apresentou pronta

à minha frente, trazendo livros de um dos meus autores preferidos - o escritor

Caio Fernando Abreu - e o que fiz foi aceitar essa sugestão apresentada, ape-

nas (re)configurando-a.

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148 149

**

Sempre dediquei uma atenção especial aos livros e, desde que

comecei a estudar e conhecer as possibilidades do design grá-

fico, foi nesse objeto que depositei meu especial carinho. Este

trabalho aqui apresentado me fez pensar muito sobre o ser

(indivíduo) designer e rever alguns conceitos muito fechados,

que eu considerava imutáveis.

Este trabalho mudou muito desde a entrega do pro-

jeto de pesquisa, ainda no primeiro semestre do ano. Como

já mencionado, reconsiderei muitos dos meus pensamentos

e, para isso, foram necessárias muitas conversas e reflexões

acerca do objeto para que eu realmente desenvolvesse uma li-

nha de pensamento coerente com o que estava pensando no

momento.

Procurei, durante este trabalho, estabelecer rela-

ções entre o livro e o leitor, entre o livro e o designer e entre

o livro e sua própria estrutura. Falo de relações pois nada que

escrevi é eterno ou a única verdade. É o meu recorte, a partir

das minhas referências, do imaginário a que estou inserida, o

Considerações Finais*

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meu “ponto de vista”, a minha “vista de um ponto” (SILVA, 2006), e assim,

este imaginário “é uma aura em constante mutação” (SILVA, 2006, p. 17).

Creio que as perguntas que estabeleci quando dei início a esta pes-

quisa foram abordadas ao longo dos capítulos. Analisei coleções e, a partir

delas, pude perceber os diferentes modos de criar identidades gráficas, apos-

tando na semelhança das grades estruturais ou, surpreendentemente, até na

total diferença.

É também distinto o modo com que o designer cria relações do pro-

jeto gráfico de um livro com a narrativa presente no mesmo, pois muitas vezes

a intenção é que a leitura se dê quase que inteiramente pelo texto (digo quase

já que sempre haverá algo externo as próprias palavras, considerando que até

as letras são códigos a serem interpretados) e em algumas outras propostas

não só o texto é valorizado, mas sua disposição na página, as imagens que o

ilustram, as texturas de papéis etc.

A noção de autoria no projeto de livro, da maneira como foi aborda-

da neste trabalho, me faz pensar que todo designer é um autor, pois ele sempre

levará em conta aquilo que o move ao projetar. Além disso, suas próprias refe-

rências e repertório aparecem em suas escolhas, direta ou indiretamente. Nes-

te ponto, mais especificamente, considero que ainda há muito o que estudar

e refletir - tanto por este ser um trabalho introdutório no assunto quanto pela

dificuldade em encontrar estudos que me serviriam de aporte teórico.

O projeto gráfico de coleção, resultante da pesquisa desenvolvida,

como já dito anteriormente, apresentou-se para mim. Digo que este se apre-

sentou pelo fato de eu não ter tido dificuldade alguma em estabelecer ou es-

colher entre um ou outro autor, entre uma ou outra obra literária. Acredito

que o trabalho apenas seguiu seu curso e que, de maneira indireta, eu estava

pensando nas opções a serem consideradas para este projeto, levando em con-

ta a trajetória desta pesquisa - para que o projeto prático não se encontrasse

distante de minha pesquisa teórica.

Finalmente, o sentimento é de que este é um trabalho aberto, que

pode ser retomado. Este processo, desenvolvido durante aproximadamente

quatro meses, não acaba neste trabalho. O que apresentou-se aqui é apenas

uma introdução ou uma pequena parte das considerações que tenho a fazer.

Minhas únicas certezas são as de que a cada dia me (re)encanto com as possi-

bilidades e de que este processo deve ser continuado.

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Ainda bem que sempre existe

outro dia. E outros sonhos. E

outros risos. E outras coisas.Caio Fernando Abreu

*

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Composto nas tipografias Lido STF, Museo

Sans e Museo Slab. Impresso laser sobre

papel sulfite 75g/m. Capa em papel paraná

240g/m forrada com tecido 100% algodão.

Costurado com fio encerado.