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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PS-GRADUAO
O PRINCPIO DE NO-DISCRIMINAO TRIBUTRIA
NO COMRCIO INTERNACIONAL DE BENS
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da USP como requisito parcial aprovao no DOUTORADO em DIREITO ECONMICO E FINANCEIRO.
Aluno: Washington Juarez de Brito Filho Orientador: Professor Associado Livre-docente Heleno Taveira Trres
So Paulo Abril 2011
Brito Filho, Washington Juarez de O princpio de no-discriminao tributria no comrcio internacional de bens / Washington Juarez de Brito Filho. So Paulo : W. J. de Brito Filho, 2011. 621 p. Tese (Doutorado) Faculdade de Direito da USP, 2011.
Orientador: Professor Associado Livre-docente Heleno Taveira Trres Notas de rodap. Inclui bibliografia. 1. No-discriminao 2. Tributao indireta 3. Livre Circulao de mercadoria 4. Ajustes fiscais
de fronteira 5. Protecionismo I. Ttulo.
CDU 351.713:332.453.
WASHINGTON JUAREZ DE BRITO FILHO
O PRINCPIO DE NO-DISCRIMINAO TRIBUTRIA
NO COMRCIO INTERNACIONAL DE BENS
So Paulo, _____ de ____________ de 2011.
Banca Examinadora:
_______________________________________
Professor Associado Livre-docente Heleno Taveira Trres Orientador
_______________________________ Examinador
_______________________________ Examinador
_______________________________ Examinador
_______________________________ Examinador
AGRADECIMENTOS
Meus sinceros e profundos agradecimentos ao Professor Heleno Taveira Trres,
mais do que meu orientador e professor, um exemplo de tica acadmica e pessoal, que me
permitiu retornar aos bancos da quase bicentenria Faculdade de Direito da Universidade
de So Paulo e que viabilizou a elaborao deste trabalho, compreendendo, com
humanidade, todas as dificuldades ultrapassadas por mim nesse perodo.
A Virgnia, Victor, Anita e Enrico, cujos amores so o combustvel que me move.
SUMRIO
1. Da Introduo...................................................................................................................12
2. Sobre a Dicotomia Livrecambismo X Protecionismo......................................................27
3. Do Princpio de No-Discriminao no Sistema Multilateral de Regulao do Comrcio
Internacional da OMC..........................................................................................................65
3.1. Da Contextualizao Histrico-Legal..................................................................65
3.2. Da No-Discriminao entre produtos estrangeiros - O Tratamento Geral de
Nao Mais Favorecida (Art. I).................................................................................101
3.3. Da No-Discriminao entre produto nacional e estrangeiro - O Tratamento
Nacional (Art. III)......................................................................................................107
3.3.1. Art. III:1 (consideraes gerais)...................................................................107
3.3.2. Art. III:2 (no-discriminao tributria).......................................................124
3.3.3. Art. III:2, 1 frase (discriminao explcita).................................................127
3.3.4. Art. III:2, 2 frase (discriminao implcita).................................................133
3.3.5. Art. III:4 (no-discriminao regulatria)....................................................139
3.4. Dos Julgados do rgo de Soluo de Controvrsias sobre o Artigo III...........141
3.4.1. Dos Critrios de Julgamento.........................................................................141
3.4.2. Testes objetivos teste diagonal e teste de impacto assimtrico.................143
3.4.3. Teste subjetivo aims-and-effects............................................................157
3.5. Das Crticas Doutrinrias Jurisprudncia........................................................173
3.6. Das Excees ao Princpio de No-Discriminao............................................186
4. Do Princpio de No-Discriminao no Sistema da Unio Europeia.............................195
4.1. Da Livre Circulao Comunitria de Mercadorias.............................................195
4.2. Da Evoluo Histrico-Legal.............................................................................215
4.3. Da No-Discriminao Tributria no comrcio de bens - Art. 90 do Tratado que
institui a Comunidade Europeia................................................................................261
4.3.1. Art. 90, 1 frase (discriminao explcita)...................................................262
4.3.2. Art. 90, 2 frase (discriminao implcita)..................................................282
4.4. Das Excees ao Princpio de No-Discriminao Tributria...........................316
5. Dos Ajustes Fiscais de Fronteira....................................................................................333
5.1. Do Conceito e das Modalidades.........................................................................333
5.2. Do Breve Histrico.............................................................................................340
5.3. Do Tratamento no Sistema Multilateral de Regulao do Comrcio
Internacional..............................................................................................................355
5.4. Do Tratamento no Sistema da Unio Europeia..................................................373
5.5. Do Caso Brasileiro.............................................................................................377
6. Do Princpio de No-Discriminao na experincia dos Estados Unidos da Amrica..396
6.1. Do Federalismo Constitucional norteamericano................................................396
6.1.1. Do Histrico.................................................................................................396
6.1.2. Da doutrina dos poderes enumerados e da sua superao............................402
6.1.3. Da The Supremacy Clause........................................................................415
6.1.4. Do Poder de Tributar e de Despender..........................................................418
6.2. Da The Commerce Clause..............................................................................441
6.3. Da The Dormant Commerce Clause...............................................................448
6.3.1. Da Evoluo Conceitual...............................................................................448
6.3.2. Da Discriminao Tributria........................................................................467
6.3.2.1. Da Discriminao Tributria Explcita..........................................475
6.3.2.2. Da Discriminao Tributria Implcita..........................................484
7. Do Princpio de No-Discriminao Tributria na experincia do MERCOSUL e do
Brasil..................................................................................................................................495
7.1. Do Princpio de No-Discriminao Tributria na experincia do
MERCOSUL......................................................................................................................495
7.2. Do Princpio de No-Discriminao Tributria na experincia brasileira.........508
8. Para uma Densificao Semntica do Princpio de No-Discriminao Tributria.......520
8.1. Dos Conceitos Jurdicos Indeterminados e a Jurisprudncia.............................520
8.2. Da No-discriminao Tributria como Neutralidade Fiscal.............................532
8.2.1. Da (impossvel) Neutralidade Fiscal Absoluta.............................................532
8.2.2. Do (inexistente) Princpio Geral de Neutralidade Fiscal..............................547
8.2.3. Das (possveis) Neutralidades Fiscais (Relativas e Parciais).......................555
9. Das Concluses..............................................................................................................563
10. Da Bibliografia.............................................................................................................574
LISTA DE ABREVIATURAS
ADI Ao Direta de Inconstitucionalidade.
BISD Basic Instruments and Selected Documents.
CIDE Contribuio de Interveno no Domnio Econmico.
COFINS Contribuio para o Financiamento da Seguridade Social.
FMI - Fundo Monetrio Internacional.
GATS - General Agreement on Trade in Services (Acordo Geral sobre o Comrcio de Servios).
GATT General Agreement on Tariffs and Trade (Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e
Comrcio).
ICM - Imposto sobre operaes relativas circulao de mercadorias.
ICMS - Imposto sobre operaes relativas circulao de mercadorias e sobre prestaes de
servios de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicao.
IPI Imposto sobre Produtos Industrializados.
IVA Imposto sobre o Valor Agregado.
MERCOSUL Mercado Comum do Sul.
NAFTA - North America Free-Trade Agreement.
OCDE - Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico.
OECD - Organisation of Economic Cooperation and Development.
OIC Organizao Internacional do Comrcio.
OMC Organizao Mundial do Comrcio.
OSC rgo de Soluo de Controvrsias.
PIS/PASEP Programa de Integrao Social/ Programa de Formao do Patrimnio do Servidor
Pblico.
RE Recurso Extraordinrio.
REsp Recurso Especial.
SATAP so as to afford protection ... de modo a proteger.
SPS - Agreement on Sanitary and Phytosanitary Measures (Acordo sobre a Aplicao de Medidas
Sanitrias e Fitossanitrias).
STF Supremo Tribunal Federal.
STJ Superior Tribunal de Justia.
TBT - Agreement on Technical Barriers to Trade (Acordo sobre Barreiras Tcnicas ao Comrcio).
TCE Tratado que institui a Comunidade Europeia.
TCEE Tratado que institui a Comunidade Econmica Europeia.
TJCE Tribunal de Justia das Comunidades Europeias.
TJUE Tribunal de Justia da Unio Europeia.
TPR Tribunal Permanente de Reviso do MERCOSUL.
TUE Tratado sobre o Funcionamento da Unio Europeia.
RESUMO
Hoje em dia, muito se fala sobre a globalizao e o aprimoramento das relaes
comerciais no plano internacional, tanto do ponto de vista econmico quanto do poltico.
No entanto, tais fenmenos carecem de estudos mais aprofundados quanto a alguns dos
seus aspectos eminentemente jurdicos.
No que se refere disciplina multilateral de regulao do comrcio, o objetivo
do sistema GATT/OMC o de, mediante um contnuo processo de reforma e liberalizao
das polticas comerciais nacionais, proporcionar melhores condies de competitividade
entre os pases, especialmente por meio da proibio da edio de normas nacionais
discriminatrias que afetem a livre circulao de mercadorias.
Todavia, tal proposta no tem alcanado a efetividade que deveria, no s em
funo da proposital limitao do seu escopo como tambm por conta da fluidez conceitual
que, ainda hoje, ronda alguns de seus institutos basilares. O mesmo pode-se falar a respeito
de outros sistemas, tanto regionais, como o da Unio Europeia, quanto nacionais, em
pases de forma de estado federalista, como os Estados Unidos.
O objetivo da tese , portanto, aps fornecer um levantamento sistemtico dos
instrumentos mais evoludos atualmente disposio dos juristas, apresentar uma proposta
de soluo para essa fluidez conceitual que, ao mesmo tempo em que faa uso de
referencial terico objetivamente construdo, permita que se possa vislumbrar a perspectiva
de que o mundo globalizado, no futuro, torne-se mais justo e igual.
Palavras-chave
No-discriminao Tributao indireta - Livre Circulao de Mercadorias
Ajustes Fiscais de Fronteira - Protecionismo.
ABSTRACT
Nowadays, globalization and international economic relations improvement are
very common subjects, both in the economic and political point of view. Nevertheless,
such phenomena need deeper studies related to their law aspects.
In what concerns to the multilateral trade regime, the GATT/WTO system
purpose is to, by means of a continuum process of reform and liberalization of national
trade policies, provide better competitive conditions to the states, specially through
prohibition of internal discriminatory laws that affect the free movement of goods.
However, this purpose hasnt been well succeeded, due not only to its deliberatedly restrict
scope but also to a conceptual fluidity of some fundamental institutes of the system. Thats
also the reality of some other situations - regional systems, like the European Union, or
national ones, in the case of federalist states, like the United States of America.
So, the thesis purpose is to provide a sistematic survey of the more advanced
legal instruments today available and to present an objective and theoretically-built
solution to solve this conceptual fluidity which permits that we all might foresee a fair and
more equal globalized world in the future.
Key-words
Non-discrimination Indirect Taxation Free Movement of Goods - Border
Tax Adjustments - Protectionism.
RESUM
Aujourdhui, on parle beaucoup sur la mondialisation et lamlioration des
relations commerciales internationales, sur les points de vue conomique et politique.
Malgr cela, ces phenomnes ont besoin dtudes plus aprofondis sur ces aspects
mminement juridiques.
En ce que sagit du rgime commercial multilatral, lobjectif du systme
GATT/OMC est, par un processus de rforme et de libralisation des politiques
commerciales, pourvoir meilleurs conditions de concurrence entre les pays, surtout par la
proibition dedition des lges discriminatoires. Nanmoins, cette intention ne reste pas bien
heureux, non seulement cause dune delibre limitation de sa extension, comme aussi
par compte de la fluidit conceptuelle de quelques de ses institutes fondamentaux. a est
vrai aussi pour les systmes regionaux, comme lUnion Europenne, comme pour les
systmes federalistes, comme cet des tats Unis de lAmerique.
Alors, la proposition de cette thse est celle de fournir une enqute
systmatique des plus evolus instruments juridiques presentement disponibles et de
presenter une solution pour cette fluidit conceptuelle qui, tandis que sutilise dune theorie
objective, permette aussi quon peut entrevoir une mondialisation qui soit vraiment juste et
galitaire.
Mots-cles
Non-discrimination Fiscalit Indirecte Libre Circulation des Marchandises -
Ajustements Fiscaux la Frontire - Protecionisme.
12
1. DA INTRODUO.
Hoje em dia, muito se fala sobre a globalizao e o aprimoramento das relaes
comerciais no plano internacional, tanto do ponto de vista econmico quanto do poltico.
No entanto, tais fenmenos carecem de estudos mais aprofundados quanto a alguns dos
seus aspectos eminentemente jurdicos.
Talvez no exista objeto de controvrsia de cunho ideolgico mais aguerrida,
hoje em dia, no debate internacional, do que a aferio da justia e da equidade na
distribuio dos ganhos e perdas com o advento do sistema multilateral de regulao do
comrcio entre os Estados independentes (KAPSTEIN, 1999), hoje administrado pela
Organizao Mundial do Comrcio (OMC).
Trata-se da instituio internacional reconhecida como o mais evidente smbolo
da globalizao econmica (WOLF, 2001, p. 183), fenmeno sobre o qual, nos nossos
dias, tanto se fala, mas que pouco realmente se compreende1.
Por um lado, h vozes que identificam diversos pontos positivos na existncia
de um arcabouo institucional regulatrio estvel no plano internacional.
Assim os defensores do atual sistema multilateral de regulao do comrcio
internacional argumentam, por um lado, em funo de consideraes terico-econmicas
(TANZI, 2002), entendendo a funo do arcabouo institucional como meio de assegurar a
segurana e a previsibilidade necessrias maximizao dos lucros entre as partes,
caracterstica intrnseca do estudo das trocas nas teorias modernas sobre o comrcio
exterior (CARVALHO; SILVA, 2004), superando o jogo de soma zero denunciado por
Adam Smith em 1776 (KRUGMAN; OBSTFELD, 2004).
Para esses entusisticos defensores, a implementao, ainda que no total, de
dogmas como o da reduo de tributos aduaneiros, da eliminao de barreiras regulatrias
e do livre acesso a mercados2 guardam estreita correlao com a prosperidade econmica
que caracterizou a segunda metade do Sculo XX (SHORT, 2001).
Assim, a prpria existncia permanente de um sistema internacional de
regulao do comrcio deve ser entendida como um bem pblico3 internacional (WOLF,
1 Trata-se, a globalizao econmica, de conceito equvoco, cujas diferentes acepes implicam sempre pesada carga ideolgica. A propsito, quanto aos vrios sentidos e ideologias, ver Gonalves (2003). 2 Trade que se costuma associar ao conceito de livre comrcio, embora a doutrina internacional mais abalizada discuta acidamente tal definio. Nesse aspecto, ver a obra de David Driesen, professor de Direito Internacional do Comrcio (International Trade Law) em Syracuse, NY, Estados Unidos (2001). 3 Bem (puramente) pblico, na teoria econmica, algo de cujo consumo, uma vez produzido, ningum pode ser privado (entendido consumo como o usufruto do benefcio de sua disponibilidade, j que ele no se
13
2001, p. 194), pelo acrscimo geral de bem-estar que gera (JORDAN, 2001, p. 244). Ter-
se-iam alcanados, portanto, os objetivos presentes na primeira parte do prembulo do
Acordo Constitutivo da OMC, internalizado no Direito brasileiro pelo Decreto n 1.355/944
- por sinal, tambm presentes, embora apenas parcialmente, no texto originrio do
prembulo do GATT, de 19475.
Mas h tambm respeitveis posies discordantes, especialmente entre
representantes de pases ditos em desenvolvimento. No negam os dados estatsticos sobre
o incremento do comrcio internacional desde a vigncia do GATT, mas ponderam que tal
realidade foi alcanada mediante desproporcionais esforos entre pases desenvolvidos e
sub-desenvolvidos (RICUPERO, 2001, p. 49 - 54), pelo que o seu atendimento, de to
oneroso aplicao pelos pases menos favorecidos, pode ter acabado por gerar
desemprego e pobreza nesses locais do mundo, em funo da perda de parcelas de mercado
para os seus produtos (SHORT, 2001, p. 60 - 61).
Como consequncia, no se veem realizados, ao menos at o presente
momento, os objetivos arrolados no prembulo do Acordo Constitutivo da OMC, no que
toca aos pases em desenvolvimento6 (KAPSTEIN, 1999), sendo cada vez mais pessimistas
as expectativas quanto efetiva implementao dos objetivos relacionados ao
desenvolvimento previstos na Declarao Ministerial de Doha (WT/MIN(01)/DEC/1), de
20 de novembro de 2001, de que o comrcio internacional efetivamente exera um papel
fundamental na promoo do desenvolvimento econmico e na reduo da pobreza no
planeta7.
exaure non-rival) e cujo custo social marginal de produo para um consumidor adicional zero, no sendo portanto vedado a ningum dele usufruir non-excludable (NICHOLSON, 2002; WOLF, 2001, p. 207). 4 As Partes do presente Acordo, Reconhecendo que as suas relaes na esfera da atividade comercial e econmica devem objetivar a elevao dos nveis de vida, o pleno emprego e um volume considervel e em constante elevao de receitas reais e demanda efetiva, o aumento da produo e do comrcio de bens e de servios, permitindo ao mesmo tempo a utilizao tima dos recursos mundiais em conformidade com o objetivo de um desenvolvimento sustentvel e buscando proteger e preservar o meio ambiente e incrementar os meios para faz-lo, de maneira compatvel com suas respectivas necessidades e interesses segundo os diferentes nveis de desenvolvimento econmico, (...) 5 Recognizing that their relations in the field of trade and economic endeavour should be conducted with a view to raising standards of living, ensuring full employment and a large and steadily growing volume of real income and effective demand, developing the full use of the resources of the world and expanding the production and exchange of goods, 6 Reconhecendo ademais que necessrio realizar esforos positivos para que os pases em desenvolvimento, especialmente os de menor desenvolvimento relativo, obtenham uma parte do incremento do comrcio internacional que corresponda s necessidades de seu desenvolvimento econmico, (...) 7 2. International trade can play a major role in the promotion of economic development and the alleviation of poverty. We recognize the need for all our peoples to benefit from the increased opportunities and welfare gains that the multilateral trading system generates. The majority of WTO members are developing
14
Dado o seu cunho fortemente ideolgico, pretende-se aqui permanecer
margem da discusso centrada principalmente na j tradicional dicotomia liberalismo X
intervencionismo (SUTHERLAND; SEWELL; WEINER, 2001), livrecambismo X
protecionismo (DORDI, 2002, p. 44) ou entre Davos e Porto Alegre, mais modernamente
(GUTMANN, 2004), cidades que acabaram por simbolizar tal embate, embora o Frum
Social Mundial, a partir de 2006, no mais tenha se realizado necessariamente na capital
gacha.
A presente anlise, de cunho eminentemente jurdico, no pretende penetrar na
discusso de polticas pblicas, mas no se pode negar que h a realidade insofismvel da
existncia de um conjunto de regras acordadas entre as naes a afetar profundamente suas
orientaes polticas (SAMPSON, 2001), chegando mesmo a afetar o poder soberano dos
Estados (LEHNER, 2002), criando um historicamente inigualvel grau de
interdependncia entre as naes (VAN GINKEL, 2001).
Em verdade, o que se tem presenciado, e a disciplina multilateral do comrcio
internacional a melhor vitrine dessa realidade (PAHUJA, 2006), uma cada vez maior
interpenetrao, em outras reas do conhecimento e da poltica, de um discurso econmico
predominante nas esferas de domnio global, que impe um conjunto de princpios a serem
adotados pelos ordenamentos nacionais (DAUVERGNE, 2006), sempre formulados em
elevado nvel de abstrao (TWINING, 2006), e empregados pragmaticamente algumas
vezes sem maiores cuidados pelas instituies nacionais.
Nas palavras de Teubner (2006b), essa mistura entre concepes e princpios
econmicos e institutos jurdicos parte de um processo global de acoplamentos
estruturais entre as instituies legais e os ramos de atividade de natureza especializada e
tcnica, entendidos esses acoplamentos estruturais como formas de influncia do ambiente
externo no sistema jurdico (LUHMANN, 2004).
Tal realidade de interpenetrao j tem sido enfrentada em domnios como o
dos direitos humanos, em que se pode apontar hoje a existncia de uma doutrina
internacional (BIANCHI, 2006); ou mesmo do Direito Ambiental (TEUBNER, 2006b).
Lamentavelmente, no se pode dizer o mesmo do Direito do Trabalho ou da disciplina
internacional da nacionalidade e da naturalizao (DAUVERGNE, 2006).
countries. We seek to place their needs and interests at the heart of the Work Programme adopted in this Declaration. Recalling the Preamble to the Marrakesh Agreement, we shall continue to make positive efforts designed to ensure that developing countries, and especially the least-developed among them, secure a share in the growth of world trade commensurate with the needs of their economic development. In this context, enhanced market access, balanced rules, and well targeted, sustainably financed technical assistance and capacity-building programmes have important roles to play.
15
No caso do Direito Tributrio, ramo do Direito em que a anlise, no presente
trabalho, das consequncias de tal multiplicidade de fontes normativas vai concentrar suas
atenes, hoje se fala em um Regime Tributrio Internacional International Tax
Regime (AVI-YONAH, 2007), pelo que os pases, no campo da tributao direta,
repositrio das preocupaes com a segurana jurdica por parte dos detentores do capital,
no poderiam, no exerccio de suas soberanias fiscais, fugir de uma srie de princpios de
coerncia do sistema, como a preveno bitributao econmica e jurdica, a tributao
do investimento passivo na residncia e da renda negocial ativa no pas da fonte dos
rendimentos (p. 1).
O problema saber quais so os limites desses regimes, se que existem, e se
realmente do interesse do bem-estar geral do planeta que eles se consolidem da forma
como hoje so prevalescentes.
Embora haja quem defenda que a OMC e o discurso econmico globalizado
no implicam reduo do poder soberano dos Estados, mas apenas dos grupos de interesse
protecionistas (McGINNIS; MOVSESIAN, 2001), no h dvida que a globalizao
econmica um fenmeno multifacetado (VAN DEN BOSSCHE, 2005), sendo a prpria
emergncia de um necessrio requestionamento da doutrina tradicional das fontes do
Direito (TEUBNER, 2006a) uma manifesta consequncia dessa realidade.
No entanto, pode-se contestar em que aspectos a globalizao realmente um
fenmeno novo, mesmo no aspecto legal (GOLDMAN, 2006), mormente sabendo-se que a
histria dos acordos comerciais entre naes independentes, no hoje j arcaico sentido
westphaliano (ZACHER, 1992), monta ao Sculo XII (MATSUSHITA; SCHOENBAUM;
MAVROIDIS, 2005). Mas a existncia de uma desterritorializao do poder de deciso das
instituies democrticas, com a formao de redes policntricas de produo normativa
(LADEUR, 2003), aspecto ainda em aberto no pensamento jurdico internacional.
Nessa perspectiva, a proposta do presente trabalho deve ser, dentro dessas
realidades cada vez mais insofismveis de interpenetrao, tanto dos conceitos e
disciplinas internacionais nos ordenamentos nacionais quanto dos conceitos econmicos na
cincia jurdica, tentar buscar um novo entendimento em relao quele que o princpio
basilar (BALASSA, 1962; COTTIER; MAVROIDIS, 2000; UCKMAR, A, 2002) do
sistema multilateral de regulao do comrcio internacional o Princpio de No-
Discriminao, em uma das duas principais vertentes de aplicao prtica, a que se
direciona a produtos nacionais em relao aos estrangeiros, representada no plano
multilateral, pela obrigao aos Estados-Membros de obedincia clusula de tratamento
16
nacional (Art. III do GATT 1947) sem entrar mais profundamente no outro pilar bsico
do GATT, a disciplina que projeta seus efeitos entre dois ou mais produtos estrangeiros: a
clusula de nao mais favorecida (Art. I do GATT 1947) (HUDEC, 2000). Paralelamente,
estudar-se- como tal obrigao concebida e implementada em outros sistemas jurdicos,
regionais e locais, em se tratando de pases federais.
de tal relevncia a vedao ao tratamento discriminatrio nas relaes
comerciais internacionais que declarada como sendo o objetivo expresso da celebrao
dos acordos internacionais multilaterais iniciados com o GATT e sucedidos pelo atual
Acordo Constitutivo da OMC, ao lado do instrumento concreto para a sua obteno,
construdo na base da reciprocidade e das vantagens mtuas, que a reduo substancial
das tarifas aduaneiras e dos demais obstculos ao comrcio, como relacionado nos
prembulos dos textos de 19478 e de 19949.
Mais do que simplesmente reconhecer sua relevncia, ser a partir da
comparao com o sentido com o qual o Princpio de No-Discriminao compreendido
em outros sistemas jurdicos, caracterizados pela multiplicidade de fontes normativas, que
se pretende concluir por um sentido terico mais consistente para o princpio.
No se deve esquecer que, como muito bem lembrado por Thomas Cottier e
Petros Mavroidis (2000), o sistema westphaliano de naes Estado foi construdo sobre
determinaes e esforos discriminatrios. A ideia de nao tem sido, portanto,
ancestralmente ligada e consolidada custa do prejuzo e do preconceito em relao ao que
se origina do exterior, sejam produtos, sejam pessoas, manifestaes culturais ou
pensamentos.
Uma questo preliminar que avulta , portanto, saber, empregando as
modalidades de soberania delimitadas por Krasner (2001), at que ponto o exerccio da
soberania legal internacional - na medida em que os Estados soberanos acordaram entre si
8 Being desirous of contributing to these objectives by entering into reciprocal and mutually advantageous arrangements directed to the substantial reduction of tariffs and other barriers to trade and to the elimination of discriminatory treatment in international commerce, Have through their Representatives agreed as follows: 9 Desejosas de contribuir para a consecuo desses objetivos mediante a celebrao de acordos destinados a obter, na base da reciprocidade e de vantagens mtuas, a reduo substancial das tarifas aduaneiras e dos demais obstculos ao comrcio, assim como a eliminao do tratamento discriminatrio nas relaes comerciais internacionais; Resolvidas, por conseguinte, a desenvolver um sistema multilateral de comrcio integrado, mais vivel e duradouro que compreenda o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comrcio, os resultados de esforos anteriores de liberalizao do comrcio e os resultados integrais das Negociaes Comerciais Multilaterais da Rodada Uruguai; Decididas a preservar os princpios fundamentais e a favorecer a consecuo dos objetivos que informam este sistema multilateral de comrcio, acordam o seguinte:
17
pela submisso ao sistema multilateral que a est diante de todos ns - restringe ou atenua
o exerccio da soberania westphaliana, a capacidade dos Estados de se gerirem sozinhos,
nas suas decises no plano interno que afetem as fontes externas de autoridade (os demais
Estados soberanos). Porm, trata-se de ponto apenas a ser indicado, sobre o qual no se
pretende evoluir, por transbordante anlise a ser empreendida.
Tal indagao ainda mais relevante se admitirmos como vlida a preocupao
de Maduro (2003, p. 257) quanto percepo comum de que a liberalizao comercial
seria mesmo uma inexorabilidade.
No se pretende chegar a uma definio terica do que seja livre comrcio, algo
que aguou a pesquisa de investigadores nos ltimos quatrocentos anos (DRIESEN, 2001).
Por outro lado, conceituar livre comrcio como trocas ocorrendo em ambiente com
normatividade no-discriminatria, como Driesen faz, acaba gerando um novo problema, o
de definir o que seja a normatividade no-disciminatria. O presente objetivo, ao menos no
plano das incidncias tributrias, pois, discutir esse novo problema.
O tema aqui proposto ser abordado dentro de uma perspectiva interdisciplinar,
que procurar demonstrar como as realidades do Direito Internacional, do Direito
Tributrio e da Economia demandam a elaborao de um modelo terico que d
fundamento mais consistente ao processo de soluo de conflitos comerciais que se refiram
aos eventuais efeitos protetivos das incidncias tributrias.
Considerando todas essas tendncias at ento expostas, o tema objeto de
reflexo no se limitar a examinar, portanto, apenas o contedo da obrigao do
Tratamento Nacional, na disciplina positiva da OMC, ou da Livre Circulao de Bens, na
Unio Europeia10, mas sim, dentro de toda essa perspectiva terica e consoante a casustica
da advinda, tentar chegar a um conceito material do princpio que seja abrangente e
ultrapasse a ideia formal de tratamento diferenciado em funo da origem ou destino.
Tencionando alcanar o objetivo de conduzir espontaneamente a esse tipo de
reflexes, e a propor respostas a algumas delas, inicia-se o estudo com uma resumida
contextualizao histrica da disciplina do comrcio internacional de bens e servios, na
qual se far um cotejo dos fatos histricos, com nfase na normatizao jurdica que os 10 Deve ser relembrado que, a partir de 1 de dezembro de 2009, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a Unio Europeia passou a ter existncia jurdica como tal, inclusive passando a ser Membro da OMC com essa denominao. A propsito, ver o stio na organizao internacional em http://www.wto.org/english/thewto_e/countries_e/european_communities_e.htm. Acesso em 27/03/2011. No obstante, os relatos dos julgados arbitrais pelos Grupos Especiais do OSC da OMC, que sero empreendidos no decorrer do desenvolvimento do texto, empregaro o termo histrico, Comunidades Europeias. Tambm as referncias aos rgos e diplomas da atual Unio Europeia, quando do estudo da no-discriminao em seu mbito, respeitaro as denominaes de cada poca.
18
provocou, pari passu a exposio resumida do pensamento jurdico e econmico que
banhava a atuao legislativa naqueles momentos, ou que, eventualmente, a ela se opunha.
A partir desse Captulo 2, de carter introdutrio, o leitor dever contextualizar
o advento histrico do sistema multilateral de regulao do comrcio internacional dentro
da teia de interesses que era o motor da atuao dos seus grandes idealizadores poca.
Pois, como afirma Sainz de Bujanda (1986, p. 254 256), a formulao dos sistemas
fiscais sempre compreende, ponderadamente, os aspectos de racionalidade e de
historicidade. Assim se inicia o Captulo 3.
De posse da informao assim introduzida, deve-se tentar entender quais os
vetores que esto por trs do imbricamento do sistema de tratados, multi, pluri e bilaterais,
se a principiologia econmica ou o jogo de interesses nacionais.
Evoluindo na anlise, temos que, para a compreenso do principal pilar do
sistema, o Princpio de No-Discriminao, e para o minucioso entendimento do contedo
da obrigao do Tratamento Nacional, imperioso que se compreenda com detalhes a
disciplina normativa do sistema multilateral, assim como entender como se consolidaram
os conceitos convencionais na experincia arbitral desde a poca do antigo GATT. como
se desenvolver o Captulo 3.
Deve-se ressaltar que aqui entendido o Princpio de No-Discriminao, no
campo eminentemente tributrio, como um plexo conceitual de limitaes s pretenses
impositivas soberanas tributao discriminatria, tributao protetiva e aos subsdios
fiscais, na tricotomia apontada por Antonio Uckmar (2002, p. 1118).
De posse desse conceito, o prximo passo repousa em entender a relevncia de
questionar se os mecanismos nacionais listados anteriormente e empregados no exerccio
da poltica comercial e fiscal soberana so ou no so discriminatrios ou, mesmo se o
forem, se so ou no so considerados ilcitos diante dessa ordem multilateral. Com isso,
tenciona-se avaliar a eficincia dos critrios hoje empregados na aferio do conceito de
efeito discriminatrio da norma tributria. Com isso, superar o entendimento meramente
formal do que seja uma norma tributria nacional de cunho discriminatrio ou protetivo.
De se ressaltar, a propsito, que o foco do presente estudo, sobre a inteleco
do Artigo III do GATT, ser aplicado, como se ver, na dico de Antonio Uckmar, tanto
tributao discriminatria (ou explcita ou de jure, conceitos adiante minudenciados) e
tributao protetiva (ou implcita ou de facto, idem), dependendo das frases tomadas do
19
seu pargrafo 2, com nfase na segunda, ou seja, aquela baseada em regras aparentemente
neutras em relao origem11, pois a que permite maiores reflexes ontolgicas.
Deve-se ressaltar que no se pretende examinar o Princpio de No-
Discriminao em seus dois aspectos, tanto o tributrio quanto o regulatrio12, mas apenas
no fiscal. Estabelecida essa limitao, o prximo passo estudar com mincias que tipo de
incidncias tributrias o Artigo III do GATT se destina a limitar. De toda essa anlise
poder-se- verificar que no campo tributrio que as solues jurisprudenciais tm sido
mais decepcionantes, embora potencialmente mais simples do que as referentes matria
regulatria. De se ressaltar que a dicotomia tributria-regulatria no s a empregada
pela doutrina que adota a mesma opo de espectro de anlise que o presente trabalho (por
exemplo, Ehring, 2002 e Zdouc, 2004), como tambm a do direito positivo, j que
presente na rubrica do artigo III do GATT13, abrangendo, de forma sistemtica, todo o
campo de anlise do poder normativo soberano estatal: tributrio e de polcia
administrativa.
O presente trabalho visa, portanto, a investigar como as limitaes ao poder
impositivo tributrio (e no o regulatrio) estatal devem ser entendidas, apenas com
relao ao comrcio de bens, sem entrar no mrito, por exemplo, de como os acordos
11 Origin-neutral, no original em ingls. 12 Deve-se perceber que os adjetivos aqui empregados, tributrio e regulatrio, correspondem aproximadamente ao conceito que alguns doutrinadores do Direito Internacional (de formao no advinda do Direito Tributrio) e todos os estudiosos de matiz econmica atribuem aos vocbulos tarifrio e no-tarifrio. Esse emprego dos termos tarifrio e no-tarifrio, muito comum tambm nos escritos jurdicos em ingls, no obstante, no pode ser utilizado em um estudo de Direito Tributrio, mesmo que fundado no Direito Internacional do Comrcio, como o presente, por dois motivos. Primeiro porque o Direito Tributrio brasileiro, predominantemente, adotou um conceito autnomo e diferenciado para o que seja tarifa - como preo pblico; distante, portanto, de entender no mesmo sentido de Imposto de Importao (no Direito Brasileiro), ou direitos aduaneiros, como empregado pelo GATT, inclusive na sua verso em portugus. Em segundo lugar, porque, como se ver adiante, h normas do GATT que so direcionadas ao tratamento de tributos que no o imposto de importao, direitos aduaneiros ou encargos de efeito equivalente. Ou seja, o GATT trata especificamente, em mais de um ponto e, como veremos, em uma disciplina relevante e minuciosa, de tributos que no a chamada tarifa aduaneira. Assim, no rigor cientfico, no existe, na disciplina que estamos estudando, a mencionada dicotomia tarifrio ou no-tarifrio, motivo pelo qual empregar-se-o unicamente os termos do direito positivo, tributrio e regulatrio. Assim, a indicao do termo tarifa para o Imposto de Importao, nos moldes do brasileiro, como incidncia diferenciada dos tributos internos, preferencialmente no ser empregada, preferindo-se o emprego dos termos imposto de importao ou tributo ou imposto ou encargo aduaneiro. Por vezes, no entanto, ao mencionar textos de autores econmicos, o termo tarifa poder ser empregado, com o fim de no desnaturar a fundamentao original. Mesmo nesses casos, importante se estar assegurado a que tecnicamente se est referindo, no rigor da cincia tributria. Semelhante abordagem pode ser empreendida em relao ao termo paratarifa para se referir aos ajustes fiscais de fronteira, como se ver oportunamente. 13 Segundo a Lei n 313, de 30 de julho de 1948, que autoriza o Poder Executivo a aplicar, provisoriamente, o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comrcio; (na sua verso original) reajusta a Tarifa das Alfndegas, e d outras providncias: ARTIGO III TRATAMENTO NACIONAL EM MATRIA DE IMPOSTOS E DE REGULAMENTAO INTERNOS.
20
complementares do GATT tratam da questo dos subsdios, nem das prprias normas, com
efeitos tributrios, presentes no General Agreement on Trade in Services GATS,
relativamente ao comrcio de servios. Ou seja, referindo-se s quatro liberdades bsicas14
ao comrcio internacional referidas no sistema comunitrio europeu, apenas a livre
circulao de mercadorias ser examinada aqui, at porque aquela em que j se chegou a
alguma definio conceitual terica na experincia jurisprudencial internacional, como se
tentar captar ao final.
O tema dos subsdios fiscais ser aqui abordado apenas tangencialmente.
Fundamentalmente apenas no que seja necessrio para entender sua distino em relao
aos ajustes fiscais de fronteira, no caso das exportaes. A necessidade de tocar no assunto
deve-se ao fato de que, como veremos, a disciplina dos ajustes fiscais de fronteira, nas
exportaes, na experincia multilateral, vem trazida em conjunto com a dos subsdios
fiscais de outra ordem e os no-fiscais.
Em resumo, o trabalho aqui apresentado cingir-se- tentativa de compreenso
sistematizada do Princpio de No-Discriminao no comrcio internacional de bens, tanto
na importao quanto na exportao, no seu carter eminentemente tributrio portanto,
referente tributao indireta15, em todas as suas modalidades e sem fazer meno seno
indireta ao complexo problema do interrelacionamento entre os diferentes sistemas
jurdicos.
Fala-se hoje da existncia de uma defasagem de legitimao, ora vislumbrada
no sistema da Organizao Mundial do Comrcio. No h dvida que h ausncia de
transparncia (RICUPERO, 2001) no processo de tomada de decises da OMC, ao mesmo
tempo em que se sabe que o prprio aparato normativo pode ser visto como algo se
prestando a reproduzir as relaes fticas de poder Norte-Sul (SHORT, 2001).
No obstante, pode-se entender que a busca eficaz da pacificao dos conflitos
comerciais entre as naes pode vir a ser pari passu alcanada na medida em que o rgo
de Soluo de Controvrsias (OSC) da OMC aprofunde o debate cientfico sobre a sua
forma de julgamento. Essa evoluo mereceria ser vista, ento, como, sem negar a
existncia de crticas gratuitas oriundas de um debate puramente ideologizado, um meio de
conferir legitimidade ao sistema, ao mesmo tempo em que ele recupera a eficincia e a
14 De circulao de mercadorias, de servios, de pessoas e de capitais (GORJO-HENRIQUES, 2005). 15 Deve-se ressaltar que no se abordar aqui a controvrsia entre os autores brasileiros e internacionais sobre o correto elemento diferenciador da classificao dos impostos em diretos ou indiretos - segundo meramente o critrio da repercusso econmica, da repercusso jurdica ou no lanamento, entre outros. Adotar-se- a simplificao de que tributos indiretos so aqueles que incidem sobre bens. Para uma abordegam aprofundada da distino, consultar a minha dissertao de mestrado (BRITO FILHO, 2003).
21
coercitividade de suas decises, vencendo o problema identificado por Maria Livanos
Cattaui (2001).
No h meio mais direto de alcanar o respeito da sociedade civil organizada do
que produzindo decises mais justas e bem fundamentadas. Mais do que isso, tambm a
investigao cientfica pode fazer com que o prprio arcabouo normativo venha a se
desenvolver. Como bem afirma Driesen (2001), apenas a inteleco pacificada e
cientificamente fundamentada do conceito de no-discriminao vai conferir maior
legitimidade aos conceitos empregados nas arenas internacionais de soluo de conflitos
comerciais. H quem diga, como Cattaui (2001), que a OMC tem sido vtima do seu
prprio sucesso, mas no h dvida que essa situao pode e deve ser atenuada com a
melhoria de suas decises tcnicas. Tambm inconteste que tal aprimoramente cientfico
deve, idealmente, ser reproduzido em outras experincias internacionais, regionais ou
nacionais.
Diante dessa realidade imensamente relevante entender a fundo o
entendimento do OSC. Ciente dessa necessidade, do meio para o final do Captulo 3
manifesta-se a preocupao com que se chegue compreenso, com detalhes, no s da
disciplina normativa do sistema multilateral, como tambm de como se consolidaram os
conceitos convencionais na experincia arbitral desde a poca do antigo GATT. Para isso,
o exame do Princpio de No-Discriminao Tributria, um dos pilares do sistema
multilateral, corresponde compreenso do contedo da obrigao do Tratamento
Nacional como manifestada pelo OSC da OMC, mormente os conceitos jurdicos
indeterminados de produtos similares ou diretamente competidores ou substitutos, no
s nos seus clssicos critrios de aferio (pelas caractersticas fsicas, pela classificao
fiscal, pela possibilidade de substituio ou pelo mercado de consumo), para evoluir para
os casos em que tais critrios no mais satisfazem, como tambm os de superiores a e
de modo a proteger a produo nacional. O Captulo 3, portanto, terminar com o exame
de como o rgo de Soluo de Controvrsias da OMC tem estabelecido a ocorrncia ou
no de incidncias tributrias nacionais protetivas no comrcio internacional de bens, por
meio da anlise dos testes subjetivos e objetivos que o rgo arbitral tem empregado na sua
jurisprudncia.
Avanando nesse passar de olhos nos exames tericos a serem empreendidos
adiante, deve-se entrar ento na concepo positiva e doutrinria europeia, mas,
principalmente, no exame dos julgados do Tribunal de Justia das Comunidades Europeias.
Essa a funo do Captulo 4.
22
Como se sabe, a doutrina europeia entende que a primeira das liberdades, a
liberdade base (ALMEIDA, 1985, p. 265), a liberdade de circulao de mercadorias,
pressupe basicamente dois princpios: o princpio de acesso ao mercado, que diz com o
direito de atravessar as fronteiras fsicas, e o princpio de igualdade no mercado, que
consiste justamente na vedao discriminao por nacionalidade ou origem (TERRA;
WATTEL, 2008, p. 44).
Inicialmente, h que serem identificados os campos de anlise, dentro de um
princpio de independncia de disciplinas: de um lado, o art. 12 do Tratado que institui a
Comunidade Econmica Europeia (TCEE), de Roma; aps, o art. 25 do Tratado que
institui a Comunidade Europeia (TCE), lavrado em Maastricht, com a renumerao
efetivada pelo Tratado de Amsterdam; atual art. 30 do Tratado sobre o funcionamento da
Unio Europeia (TUE), aps o Tratado de Lisboa, de 2007, que pode ser resumido na
proibio de medidas de efeito equivalente aos direitos aduaneiros; de outro, a
eliminao das restries quantitativas, do art. 30 originrio, aps art. 28, atual art. 34,
cujo entendimento vem sendo profundamente discutido desde os casos Dassonville16 e
Cassis Dijon17.
Tais regras, ambas, se diferenciam das que foram mais desenvolvidas no exame
das questes concernentes s imposies internas, consoante o art. 95 do TCEE; aps, art.
90 do TCE; atual art. 110 do TUE. Foi larga a atuao jurisprudencial, especialmente nos
anos oitenta, com vistas a dar efetividade a essa disposio comunitria, aclarando o
significado de termos como imposio interna, imposio discriminatria, produtos
similares, produtos em relao de concorrncia, tratamento diferenciado e efeito
protetivo, o que alcanou, em ltima anlise, a realizao concreta da harmonizao
tributria europeia, no seu aspecto negativo.
Na verdade, do exame dessa jurisprudncia comunitria pode-se identificar
realmente o grande cimento que consolidou a integrao europeia, ainda na fase de unio
aduaneira ou mesmo com o advento do mercado comum. A partir da construo
jurisprudencial europeia, pode-se entender a relevncia da definio, tendo em vista os
fundamentos integracionistas aqui abordados, do chamado Princpio de No-
Discriminao.
16 Caso 8/74 - Procureur du Roi v. Dassonville. ECR 1974, 837. 17 Caso 120/78 - Rewe-Zentrale AG v. Bundesmonopolverwaltung fr Branntwein. ECR 1979, 649.
23
Tal princpio, cuja definio genericamente considerada a hoje presente no
art. 718 do TCEE; aps, art. 1219, do TCE, atualmente art. 1820 do TUE, agora
expressamente destinado, nessa localizao, s questes de cidadania, parte,
conjuntamente com os princpios da solidariedade e da liberdade econmica, para a
doutrina comunitria - entre outros, Laureano (1997, p. 18) -, da trilogia de princpios que
constitui a espinha dorsal do esforo integracionista europeu.
Mais do que isso, defende Laureano (1997, p. 19) ser a no-discriminao,
nessa abordagem no s no plano fiscal, o aspecto realmente estruturante da Unio
Europeia, chegando mesmo a apontar fundamentos histricos a comprovarem que o tratado
constitutivo nada mais que a concretizao desse princpio em termos de normas
jurdicas.
No sistema multilateral de regulao do comrcio internacional disciplinado
pela OMC, encontra-se o sistema de direito positivo que mais bem aborda e trata o
importante conceito jurdico-tributrio de ajuste fiscal de fronteira, de capital importncia
para o entendimento de um conceito mais amplo, menos meramente formalista, de no-
discriminao, que aqui se quer propor. Em complemento, a experincia europeia na
matria e at a forma com que o sistema brasileiro implementa o conceito, embora sem
mencion-lo, sero examinados com profundidade. O Captulo 5 dedica-se a esse tema.
Importante tambm, retomando a anlise dos casos examinados na
jurisprudncia internacional a respeito, examinar a realidade de pases de forma de estado
federal, como, tipicamente, os Estados Unidos da Amrica. Ao conhecimento dessa
experincia dedicar-se- o Captulo 6. Nesse ponto, inafastvel a lio da Suprema Corte
dos Estados Unidos na formulao da doutrina da The Dormant Commerce Clause.
18 Article 7. Dans le domaine d'application du prsent trait, et sans prjudice des dispositions particulires qu'il prvoit, est interdite toute discrimination exerce en raison de la nationalit. Le Conseil, sur proposition de la Commission et aprs consultation de l'Assemble, peut prendre, la majorit qualifie, toute rglementation en vue de l'interdiction de ces discriminations. 19 ARTIGO 12 (ex-artigo 6) No mbito de aplicao do presente Tratado, e sem prejuzo das suas disposies especiais, proibida toda e qualquer discriminao em razo da nacionalidade. O Conselho, deliberando nos termos do art. 251, pode adoptar normas destinadas a coibir essa discriminao. 20 PARTE II NO DISCRIMINAO E CIDADANIA DA UNIO Artigo 18 (ex-artigo 12 TCE) No mbito de aplicao dos Tratados, e sem prejuzo das suas disposies especiais, proibida toda e qualquer discriminao em razo da nacionalidade. O Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinrio, podem adoptar normas destinadas a proibir essa discriminao.
24
Trata-se exatamente da limitao ao poder dos estados-membros da federao americana
em legislarem, na inexistncia de norma federal a respeito, quanto a relaes comerciais
interestaduais, restrio retirada da interpretao pretoriana do art. 1, 8 da Constituio
Americana, que autoriza o Congresso Nacional a regular o comrcio entre estados.
Tambm se pretende estudar o pouco que existe do Princpio de No-
Discriminao na nossa experincia de integrao regional, o MERCOSUL, a partir do
estudo dos conflitos concretos ocorridos na nossa iniciativa de integrao e da norma do
tratado institutivo que o veicula. Ao lado disso, ser abordada tanto a forma com que a
jurisprudncia brasileira tem tratado assuntos que poderiam se relacionar com a
experincia internacional apresentada, como tambm como as regras constitucionais
referentes vedao de diferenas tributrias em funo de origem ou destino so
abordadas na melhor doutrina brasileira. Assim se encaminhar o Captulo 7.
Pode-se ressaltar a absoluta ausncia de estudos sistematizados sobre o tema
diante do arcabouo constitucional brasileiro, ou mesmo por detrs da reduzida
jurisprudncia superior nacional a respeito, ao menos as que considerem nas suas razes de
decidir as diretrizes consolidadas internacionalmente. Para piorar, a doutrina brasileira,
como sempre de costas para o MERCOSUL, no s no discute a no-discriminao em
matria de tributao indireta e no comrcio de bens, como pula etapas e prefere discutir
temas de tributao direta, relacionados s liberdades de estabelecimento de pessoas fsicas
e jurdicas e de capitais (TRRES, 2002; OKUMA, 2003). Como resultado, o Princpio de
No-discriminao acaba sendo, no Brasil, diminudo em sua carga semntica, como quer
Xavier (1997), em oposio gradual importncia que o seu estudo vem ganhando no resto
do mundo. Paradoxal, em se tratando de um pas com um sistema jurdico constitucional
tributrio to rico.
Busca-se, portanto, erigir uma construo terica que d supedneo correta
valorao do princpio e a uma justa aplicao de seus critrios de aferio quando do
potencial e futuro aparecimento de conflitos concretos internamente, na medida em que se
conhecem as problemticas j enfrentadas pela Unio Europeia e pela Organizao
Mundial do Comrcio. Afinal, trata-se de tema com o qual teremos de nos defrontar mais
cedo ou mais tarde, sob pena de no podermos dizer existente um entendimento nacional
ou regional sul-americano, jurisprudencial ou doutrinrio, acerca da concepo terica do
que seja o Princpio de No-Discriminao no comrcio internacional de bens. Tal se
configuraria desastroso, j que inexorvel e prximo o enfrentamento concreto de tais
questes na evoluo da integrao econmica do Cone Sul.
25
Trata-se de realidade insofismvel no apenas porque urge que se progrida no
aprofundamento da integrao no Cone Sul (AMARAL, 1995), at mesmo no rumo do
cumprimento dos objetivos previstos no art. 1 do Tratado de Assuno21, saindo de sua
atual condio de uma unio aduaneira imperfeita (SANTA-BRBARA RUPREZ, 2001,
p. 203), sua natureza jurdica atual, dentro da classificao tradicional dos nveis de
integrao econmica (PORTO, 2001), mas tambm porque a recuperao econmica da
ttrade sul-americana nos ltimos anos tem de tal maneira incrementado22 o comrcio
regional local, que j se esto verificando amide controvrsias, embora ainda em estado
incipiente, como se ver.
Mais do que isso, a inexistncia, no Brasil, no s de uma concepo, seno
pacificada, mas nem sequer ao menos discutida sobre o assunto, como nem mesmo de um
mnimo de ateno concertada e organizada para o problema, a menos de vozes isoladas
(por exemplo, Heleno Torres, 2002), faz com que proliferem, no direito brasileiro,
especialmente no Direito Tributrio nacional, normas que vm potencialmente de encontro
ao Princpio da No-discriminao, na forma como entendido no plano internacional.
No Brasil, apenas nesse momento comea-se a despertar para a importncia da
compreenso do alcance e conceituao do Princpio de No-discriminao. Alguns artigos
doutrinrios j comeam a mencion-lo, como os da lavra de Heleno Trres (2002) ou de
Alessandra Okuma (2003). So, no obstante, trabalhos dedicados a aplicar o Princpio de
No-discriminao ao exame de alguma especfica pretensa infringncia detectada no
regime jurdico brasileiro, sem aprofundar na conceituao do princpio em si.
Ao final, no captulo 9, procurar-se- sistematizar o conceito de no-
discriminao, no apenas de uma maneira formal. Pelo contrrio, a partir dos conceitos
explorados pelas diversas experincias normativas internacionais, construir um conceito do
Princpio de No-discriminao que seja materialmente consentneo com a necessidade,
muito bem apontada por Fritz Neumark (1974, p. 273 336), de que a poltica fiscal
respeite o ordenamento econmico, vedando-se tributos que sejam economicamente
21 Os Estados-Partes decidem constituir um Mercado Comum, que dever estar estabelecido a 31 DE DEZEMBRO DE 1994, E QUE SE DENOMINAR Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). Este Mercado Comum implica: A livre circulao de bens, servios e fatores produtivos entre os pases, atravs, entre outros, da eliminao dos direitos alfandegrios e restries no-tarifrias circulao de mercadorias e de qualquer outra medida de efeito equivalente; (...) 22 Corrente de comrcio Brasil Mercosul de US$ (FOB) 8.930.395.501 em 2002, US$ (FOB) 11.369.638.701 em 2003, US$ (FOB) 15.335.394.972 em 2004, US$ (FOB) 18.799.710.686 em 2005, US$ (FOB) 22.952.215.052 em 2006, US$ (FOB) 28.978.328.821 em 2007 e US$ (FOB) 35.770.935.245 em 2008 (BRASIL, SECEX, 2010).
26
dirigistas, com o fim de que o sistema fiscal no interfira na esfera econmica e na espera
privada dos indivduos. Mais do que isso, as incidncias tributrias no s devem ser
neutras quanto origem (no discriminatrias no sentido empregado pela OMC), como
tambm necessrio que no acarretarem em seu bojo qualquer grau de protecionismo.
Assim, para implementar o que Neumark denomina de carter positivo da neutralidade
tributria (1974, p. 317) quantos aos aspectos do comrcio internacional decorrentes da
existncia de fronteiras fiscais, o emprego dos ajustes fiscais de fronteira imprescindvel.
Pretende-se explorar, embora em outro contexto, a ideia trazida por Heleno Torres (2003,
p. 11), de fechamento operacional entre o sistema de direito positivo, o poder de tributar,
e a autonomia privada constitucionalmente atribuda aos particulares, para ento aduzir
uma conceituao mais densa do que seja o Princpio de No-Discriminao tributria.
27
2. SOBRE A DICOTOMIA LIVRECAMBISMO X PROTECIONISMO.
Inicialmente, antes de se analisar especificamente as circunstncias histricas
que cercaram a criao do GATT e, posteriormente, da OMC, importante previamente
conhecer algo acerca da evoluo do pensamento econmico e poltico ocidental sobre o
comrcio internacional, a compreenso de seus mecanismos, assim como as vantagens e as
desvantagens em regul-lo.
A inteno a de primeiramente discutir as ideias favorveis e contrrias ao
comrcio internacional em geral dentro de uma perspectiva histrica, introduzindo assim a
dicotomia entre o que atualmente Douglas Irwin (1998, p. 4), mencionando John Stuart
Mill, denomina de doutrina protecionista, e as doutrinas do livre comrcio a que se refere
Joseph Schumpeter (1954, p. 370).
A partir dessa viso histrica, tenciona-se ressaltar a importncia capital das
contribuies de Adam Smith, por meio da concepo das vantagens absolutas, e de David
Ricardo, acerca da Teoria das Vantagens Comparativas, como ponto de inflexo na
avaliao negativa anterior, mesmo anteriormente era mercantilista, da maioria do
pensamento econmico, de maneira a alcanar a situao atual, quando, malgrado a
diversidade de argumentos contrrios que a essas teorias sobrevieram, nos ltimos dois
sculos, poder-se dizer, como afirma Harry G. Johnson (1971, p. 187), que a concepo, de
que a liberdade no comrcio internacional mais benfica do que a proteo, uma das
mais fundamentais proposies que a teoria econmica pode oferecer para guiar as
polticas econmicas nos dias de hoje.
Mais ainda do que expor concepes econmicas, prevalentes ou no, para o
nosso estudo importa conhecer a evoluo das doutrinas sobre o livre comrcio porque,
como nos ensina Andreas Lowenfeld (2008, p. 3), o GATT claramente baseado na
percepo de que o comrcio internacional benfico, que os ganhos para a sociedade
decorrentes do comrcio ultrapassam as perdas impostas queles que so solapados pela
concorrncia internacional e que h criao de valor por meio da especializao e das
trocas em mercados abertos.
Em verdade, a razo de ser da realidade da preponderncia do pensamento
livre-cambista o fato de que as ideias econmicas do pensamento clssico,
independentemente das consideraes pontuais que justificariam ainda hoje o esgrimir de
argumentos protecionistas especficos, trouxeram de forma definitiva dicotomia
28
apresentada a questo da eficincia econmica a indagao acerca de como uma
particular poltica comercial pode afetar a capacidade de um pas em empregar os seus
recursos escassos, em termos de fatores de produo, como terras, capital e trabalho, de
forma a gerar a maior renda possvel, como a consequncia de poder adquirir o maior
conjunto possvel de bens em troca (IRWIN, 1998, p. 4).
Como afirma Douglas Irwin (1998, p. 3), anteriormente ao pensamento clssico
havia uma viso largamente difundida de que o uso apropriado de encargos na importao
e outras restries governamentais constituam polticas comerciais mais efetivas, no que
tange ao bem-estar da populao, do que o livre comrcio, entendimento que chegou ao
pice na literatura dita mercantilista, especialmente na Espanha e na Frana.
Diz-se literatura dita mercantilista porque, como bem ressalta Jos Antnio
Avels Nunes (2007, p. 291), no correto se afirmar que tenha havido um conjunto de
ideias ou um corpo coerente e sistemtico do pensamento econmico mercantilista.
Nenhum dos seus autores assim se proclamava, sendo que esse termo adveio da
sistematizao didtica realizada, na segunda metade do Sculo XIX, pelos estudiosos da
Escola Histrica Alem. Nem sequer identifica-se uma terminologia comum, um
vocabulrio tcnico minimanente rigoroso ou um carter analtico desses escritos, motivo
pelo qual Schumpeter (1954, p. 187 188) referiu-se ao sistema mercantilista como uma
entidade imaginria. No existiu, portanto, nem uma escola nem uma doutrina
mercantilista (AVELS NUNES, 2007, p. 291).
No obstante, a partir da leitura dos autores dessa poca que, embora muito
menos interessados em construir um pensamento econmico teoricamente consistente, j
que visavam mesmo a justificar um sistema de poder e a uma poltica de unificao
nacional, podemos retirar o corpo mais diversificado de ideias relacionadas com as
polticas de comrcio internacional de toda a Histria, em regra de fulcro protecionista.
Da mesma forma, pode-se dizer que foi em reao a todos esses escritos ditos
mercantilistas que se criou o pensamento analtico econmico clssico e, com ele, a ideia
de livre comrcio, como, na definio de Douglas Irwin (1998, p. 5), a inexistncia de
impedimentos artificiais para a troca de bens atravs de fronteiras nacionais, pelo que os
preos dos mercados diante dos produtores e consumidores domsticos so os mesmos
determinados pelos mercados internacionais, exceo dos custos de transporte e de
seguro e de outros custos de transao relacionados.
Assim, os preos, tanto os locais quanto os internacionais, viriam a refletir, com
fidelidade, a escassez relativa das mercadorias por todo o mundo, de modo a que possam
29
se converter, mediante uma anlise inversa, em custos de oportunidade, tanto para os
produtores, as firmas nacionais, quanto para os consumidores internos, as famlias.
Essa possibilidade decorre da presuno que, em tese, o mercado mundial
estar sempre disposto a negociar a esses preos. E essa ideia de custo de oportunidade no
comrcio internacional, trazida com a Teoria das Vantagens Comparativas, no logra
enfrentar contraposio relevante mesmo no pensamento econmico moderno.
Antes disso, durante a Antiguidade clssica, embora o Imprio Romano deva
parcela significativa de sua opulncia econmica s suas redes rodovirias e de navegao,
pelo que a cidade de Roma caracterizou-se por ter se tornado um centro de afluncia de
povos de todo o mundo conhecido poca (SOARES, 2004), assim como a riqueza de
Atenas tambm se deveu sua localizao geogrfica propcia navegao mediterrnea,
tornando-se plo de atrao dos comerciantes que trafegavam as zonas que constituam o
Mundo Antigo (STRENGER, 1996, p. 55), prevaleceu no pensamento antigo a viso de
profunda desconfiana em relao ao comrcio internacional e de relevo ao seu potencial
deletrio aos costumes locais.
O motivo para isso o fato de que o comrcio, mesmo o local, no seu incio, se
constitua, no dizer de Max Weber (2006, p. 191), em um fenmeno que implicava
necessariamente um choque cultural, como resultado de uma especializao intertnica da
produo. Era a poca do comerciante forasteiro (WEBER, 2006, 197), aquele que, para
reduzir o risco do transporte martimo ou mesmo terrestre, viajava juntamente com a
mercadoria (WEBER, 2006, p. 200 e 203).
Por isso, como nos mostra Douglas Irwin (1998, p. 12), Plato, na sua A
Repblica, sugere que as cidades bem governadas assegurassem que os postos de
comerciantes e trabalhadores braais fossem reservados s pessoas inferiores, aquelas que
no teriam sido teis em outras atividades. Aristteles, na Poltica, no mesmo sentido,
condenava as trocas comerciais com o estrangeiro porque no era de acordo com a
natureza humana, j que pressupunha que os homens tirassem coisas de outros homens.
poca, na Grcia, segundo Irwin (1998, p. 12), era difundido o pensamento
de que os cidados no deveriam participar do comrcio, que deveria ficar restrito
inteiramente aos estrangeiros residentes, que, privados dos seus direitos, j estavam mesmo
segregados da vida civil grega. Em regra, os pensadores gregos viam no comrcio um
perigo moral e cvico.
No obstante, j na Grcia Antiga se verificava o que ser o padro do
comportamento das sociedades em relao ao comrcio ao longo da Histria: a incoerncia
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entre a formulao terica e a sua aplicao prtica. Do ponto de vista terico, na prpria
A Repblica, Plato reconhece, naquilo que Douglas Irwin (1998, p. 13) se refere como
a primeira discusso, datada de 380 A. C., acerca das vantagens da diviso de trabalho na
repblica, que dessa repartio de tarefas resulta que mais bens so produzidos, com mais
qualidade e mais facilmente do que um nico homem poderia desempenhar de acordo com
sua natureza, no mesmo momento e em detrimento de suas outras atividades. Prossegue
afirmando que seria praticamente impossvel a uma plis produzir tudo e no precisar
comerciar, pelo que os mercadores so necessrios e que a produo domstica de certos
produtos deveria ser excedentria, para que se pudesse troc-las com as cidades
interessadas.
Anloga, tambm negativa, era a avaliao da atividade comercial em Roma:
Ccero, no De Officiis, afirma que o comrcio deve ser considerado vulgar, embora
reconhecesse a sua importncia econmica.
Jacob Viner (1976, p. 27 54) menciona uma exceo a esse pensamento, no
que ele denominou de Doutrina da Economia Universal. Desenvolvida por filsofos e
telogos dos primeiros sculos depois de Cristo, como Sneca, Filo de Alexandria e
Libnio, apregoava, com base na irmandade universal dos homens, que as trocas de
mercadorias viriam a gerar benefcios para a humanidade, uma vez que os recursos naturais
estavam assimetricamente dispersos pela face da Terra, sendo que cabia interveno
divina agir com a deliberada inteno de promover o comrcio e a cooperao pacfica
entre os homens.
Malgrado essa viso de natureza teolgica, ainda assim os primeiros pensadores
de ndole catlica viram, como os gregos e os romanos, o comrcio, nas palavras de Jacob
Viner (1978, p. 34 - 38), como instigador de fraudes, promotor da avareza e estimulador de
ganhos injustificados, com base no trecho bblico no qual Jesus expulsa os vendilhes do
templo.
Santo Agostinho, por exemplo, defendia que o comrcio no estava nas graas
de Deus, porque consistia em risco s almas pelas tentaes aos pecados da cobia, da
mentira, da trapaa e da fraude. Assim, exortava os cristos a se afastarem dessa atividade
perniciosa.
Interessante observar, como faz Irwin (1998, p. 18) que, diferentemente dos
gregos e romanos, que propugnavam a autarquia de suas culturas, os cristos empenhavam-
se em difundir seus ideais por todo o mundo. Malgrado isso, ambos viam no comrcio o
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indutor de prticas potencialmente nocivas, sendo que os cristos ainda percebiam nas
atividades comerciais o defeito de desviar a ateno dos fieis das questes transcendentais.
Na Idade Mdia, a filosofia escolstica continuou a destilar seus preconceitos
contra a atividade comercial. No entanto, pode-se perceber, paulatinamente, especialmente
diante do crescimento populacional das cidades, e mormente com o revigoramento
comercial decorrente das vitrias nas Cruzadas, iniciadas no Sculo XI, que reabriram a
navegao no Mar Mediterrneo, principal via de distribuio de mercadorias na Europa,
que as resistncias s prticas comerciais foram se atenuando ao longo da Baixa Idade
Mdia e no incio da Idade Moderna.
So Toms de Aquino, por exemplo, na Summa Theologica, do Sculo XIII,
mostrava-se mais tolerante com as atividades comerciais. Reconhecia que os alimentos
poderiam ser produzidos tanto localmente quanto em localidades distantes, mas acreditava
que a produo prpria seria melhor, uma vez que a auto-suficincia seria mais
dignificante. Mas tambm, como Aristteles, alertava contra o contato com estrangeiros e a
degenerescncia moral da advinda, assim como recomendava aos cidados que no
dedicassem suas vidas ao comrcio, j que, dessa forma, estariam se abrindo tentao de
diversos vcios. No entanto, entendia a necessidade das trocas comerciais, pois seria muito
difcil que qualquer cidade produzisse tudo do que necessitasse.
No obstante, permanecia o preconceito contra a atividade que no agregava
valor, que no se consubstanciaria em atividade economicamente produtiva. Assim
tambm entendeu Toms de Aquino, mas no prprio Sculo XIII j se viam telogos,
especialmente na Inglaterra, como Thomas de Cobham, posteriormente eleito Arcebispo de
Canterbury, e Richard de Middletown, que viam utilidade na atividade de transportar as
mercadorias do produtor ao consumidor, da fartura para a escassez.
Mas mesmo a filosofia escolstica nos locais mais apegados tradio crist
aos poucos foi atenuando tal viso negativa. Carletti de Clavasio, veneziano, em sua
Summa Angelica, do final do Sculo XV, mencionado por Douglas Irwin (1998, p. 20),
afirmava que o comrcio no em si uma atividade perniciosa, mas pode s-lo dependendo
das circunstncias e o motivo pelo qual realizado.
Evoluindo mais no tempo, em 1557, nas suas Relectiones Theologicae,
Francisco de Vitria, teorizando acerca do relacionamento entre os espanhis e os nativos
no novo mundo, defendeu que o comrcio um direito das naes, e que o jus gentium
autorizava o comrcio, desde que no houvesse danos fsicos aos indgenas, pelo que nem
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os prncipes nativos poderiam se escusar a comerciar seus produtos nem os soberanos
espanhis deveriam evitar tal atividade (1964, p. 151 153).
Era o nicio de uma nova viso, que se consagrou com os filsofos da chamada
Escola do Direito Natural, os primeiros a trazerem a ideia de liberdade de comerciar como
uma projeo das liberdades naturais do ser humano. Francisco Surez, em seu Tractatus
de Legibus ac deo Legislatore, de 1612, propalava que todo o comrcio deveria ser livre,
como decorrncia da lei dos povos, o jus gentium, assim como qualquer violao ao livre
intercurso comercial deveria ser entendida como infrao a esse direito (1934, p. 2:347).
Alberico Gentili, por sua vez, no seu De Iure Belli Libri Tres, de um pouco
antes, de 1598, chegava mesmo a entender justificvel a guerra contra os pases que se
recusassem a comerciar (1933, p. 86).
Para outro dos grandes tericos da poca, Huig de Groot (Hugo Grcio), no
De Jure Praedae, de 1604, a regra da liberdade de negociar foi fortemente defendida
quando da sua condenao (1950, p. 218) excluso da Repblica das Sete Terras Baixas
Unidas, seu pas, independente desde 1581, do comrcio com as ndias Ocidentais, por
parte do Rei de Portugal, na tentativa de preservar o seu monoplio.
Tal monoplio s veio a ser quebrado com a expedio do navegador holands
Jacob van Neck, que retornou Europa nos fins do ano de 1600, literalmente abrindo o
caminho para a criao da Vereenigde Oost-Indische Compagnie, a Companhia das ndias
Ocidentais, em 1602, diante dos extraordinrios lucros obtidos. Conta William Bernstein
(2008, p. 219) que essa expedio havia partido de Amsterdam, em 1 de maro de 1598,
com vinte e dois navios, tendo chegado, com honras de heri, apenas com catorze deles e
sem metade da tripulao original. Na ocasio, o capito afirmou, segundo Bernstein, que a
sua inteno no roubar ningum em sua propriedade, mas comerciar com justia com
todas as naes estrangeiras.
O entendimento de Hugo Grcio foi reforado na sua maior obra, De Jure
Belli ac Pacis Libri Tres, de 1625, embora, ao mesmo tempo em que defendia que o
comrcio de qualquer Estado no poderia ser restringido, pois a oportunidade de comerciar
era um direito das naes, admitia a incidncia de pequenos encargos aduaneiros que
compensassem as despesas associadas com o comrcio exterior, como aquelas com a
manuteno dos faris, ao mesmo tempo em que rejeitava incidncias que no se
relacionassem com a mercadoria negociada (1925, p. 199).
Do exame do pensamento de Hugo Grcio, mormente em comparao com os
pensadores de matiz crist da Alta Idade Mdia, pode-se inferir o incio de uma tendncia
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que se consolidou na era mercantilista: a considerao de aspectos econmicos em relevo,
em detrimento de indagaes ticas ou relativas moral (IRWIN, 1998, p. 25). Com isso,
no s se pode entender a apario dos escritos dos ditos mercantilistas, assim como,
embora ainda embrionariamente, a emergncia de um relativo pensamento analtico de raiz
econmica o que vai surgir realmente apenas, segundo Douglas Irwin (1998, p. 56 57),
com a obra de Henry Martyn, Considerations upon the East India Trade, de 1701, na
qual retoma, com inacreditvel rigor cientfico, o exame do problema do comrcio com as
ndias Ocidentais, sobre o qual j havia discorrido Hugo Grcio.
Desde o fim do feudalismo, a terra deixava de ser a nica fonte de riqueza.
Assim, os burgueses, comerciantes e banqueiros, mediante a acumulao de capitais
derivados do ressurgimento do comrcio, dadas as condies de segurana e tecnologia da
poca, passaram a no mais terem uma preocupao com a satisfao autrquica de
necessidades, no ideal medieval de desprendimento e de moderao, para pensar a riqueza
como smbolo de poder. Assim, o financiamento dos exrcitos reais, em fase de
consolidao dos regimes absolutistas, como de resto a necessidade de sustentao de toda
a estrutura monrquica, fez o comrcio passar a ser estimulado e financiado pelos Estados
nacionais. Os problemas econmicos passaram a ser examinados sob a tica de Estado
(AVELS NUNES, 2007, p. 290).
Nesse mesmo sentido, cabe relembrar que, nas palavras de Douglas Irwin
(1998, p. 28), duas caractersticas do ambiente econmico internacional de ento passaram
a esculpir o pensamento mercantilista: a vasta expanso do comrcio internacional e a
explorao ultramarina, assim como a ascenso dos Estados-naes como entidades
polticas. Em funo da conjugao desses dois fatores, os comerciantes passaram a ser
vistos como uma classe bem posicionada, apta a explorar o lucro em proveito prprio e dos
respectivos pases. Com isso, deixaram de ser prias sociais, vistos com suspeio, como
ocupados em uma atividade econmica de m reputao, mas sim como bem-sucedidos
cidados com grande potencial de colaborao para a riqueza nacional.
Portanto, os pensadores acerca do comrcio internacional deixaram de ser os
filsofos ou os tericos e passaram a ser homens de negcios, comerciantes, ou
administradores pblicos, que discorrem sobre os problemas concretos que se levantam
no mundo dos negcios ou no domnio da administrao estadual. Seus trabalhos no
podem ser entendidos como construes tericas ou especulativas, mas sim programas de
ao inspirados pela diferente realidade de cada pas (AVELS NUNES, 2007, p. 292 -
293).
34
Como se viu, o que se tem de comum na literatura mercantilista, mais do que
um conjunto de ideias, foi um determinado arsenal de temas fundamentalmente, a
necessidade da regulao estatal do comrcio exterior, com algum ou alguns dos seguintes
objetivos em mente: a acumulao de tesouros ou de metais preciosos, a promoo da
riqueza ou do bem-estar nacionais, o atingimento de uma balana comercial favorvel, a
maximizao do emprego, a proteo da indstria nacional ou o acrscimo do poder estatal
(IRWIN, 1998, p. 26).
Jacob Viner (1937, p. 59), a propsito, assinala que o que caracteriza a
literatura mercantilista o fato de que so tratados que, parcial ou inteiramente, aberta ou
disfaradamente, consistem em pedidos com o fim de satisfazer interesses econmicos
especficos. Nesse sentido, no raramente os tratadistas exageram na importncia do
comrcio internacional na formao da riqueza nacional (IRWIN, 1998, p. 29).
Assim que, embora na Idade Moderna, dos Sculos XV ao XVIII, o
mercantilismo fosse a poltica econmica prevalente na Europa, as ideias externadas pelos
seus defensores variavam substancialmente conforme o pas de origem do autor.
Na Espanha predominou o que Antnio Avels Nunes denominou de
bulionismo (2007, p. 293): a preocupao com o entesouramento e a acumulao
contnua de ouro e prata proveniente das colnias da Amrica e com sua conservao no
pas, na convico de que conseguiriam assim preservar a riqueza e o poderio do estado
espanhol. Para tanto, Luiz Ortiz, em 1558, em suas obras Memorial al Rey para prohibir
las salidas de oro e Memorial al Rey para que no salga dinero de estos reinos de
Espaa, apresentados a Felipe II, e Damin de Olivares, no Memorial para prohibir la
entrada de los gneros extranjeros, apresentado, em 1621, a Felipe III, defendem
polticas pblicas intervencionistas com o fim de proibir a sada do pas do ouro e da prata
e de evitar a entrada de gneros estrangeiros, fortalecendo a balana comercial.
Essa poltica alcanou resultados desastrosos, no mesmo compasso em que se
deu a derrocada da economia espanhola, tendo sido mesmo tempestivamente combatida
pelo jesuta Juan de Mariana, reputado como o maior dos mercantilistas espanhis por
Armando Herreras (2005, p. 58). Em obra de 1609, De Monetae Mutacione Disputatio,
Mariana prope restries aos gastos sunturios da coroa espanhola, pleiteia a moralizao
dos servidores pblicos, e advoga que o melhor caminho para o pas obter ouro e prata
seria o desenvolvimento da agricultura e da indstria, traando a distino entre valor
intrnseco e extrnseco da moeda. Explica assim, o fenmeno inflacionrio que assolara a
Espanha do Sculo XVI.
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Para se ter uma plida noo do impacto das remessas de metais preciosos na
economia da Europa dos Sculos XVI e XVII, basta perceber que, segundo Francisco de
Magalhes Filho (1970, p. 235 236), calcula-se que, at 1500, o valor total dos metais
preciosos em circulao ou entesourados na Europa alcanava cerca de cinquenta milhes
de libras esterlinas, valor correspondente a toda a prata e todo o ouro at essa data
produzidos na Europa desde o Imprio Romano. A produo da Europa de ento, anual,
era de apenas cem mil libras, s quais se somavam, desde o final do Sculo XV, igual
produo vinda do litoral da Guin, onde hoje fica a Repblica de Gana. A partir da
descoberta da Amrica, a estimativa anual da produo americana de metais preciosos
chegava a um milho e trezentas mil libras esterlinas, situao que perdurou, embora com
decrscimo na produo, durante todo o perodo colonial, at o incio do Sculo XIX.
Especialmente as grandes jazidas de prata no Mxico e do Alto Potos, em territrio hoje
boliviano, mas escoado pelo Rio Paraguai, at o Rio da Prata, na atual Repblica
Argentina, produziram, por todo esse perodo, aproximadamente duzentos e vinte e seis
milhes de libras esterlinas ou seja, em trs sculos, viu-se sextuplicada a quantidade de
riqueza na Europa em relao a toda a anterior histria da humanidade.
Com isso, diante do aumento da quantidade de moeda em circulao, ainda
lastreada em metais preciosos, e sem o correspondente aumento da produo, gerou-se
inflao, o aumento generalizados dos preos, principalmente na Espanha, local onde os
preos multiplicaram por quatro durante o Sculo XVI.
Muito posterior aos trabalhos de Mariana, em 1726, outra obra relevante do
mercantilismo espanhol, Teora y Prctica del Comercio, de Jeronimo de Uztariz, volta-
se a defender a restrio fuga do ouro, mediante uma balana comercial favorvel, dada a
importncia desse metal para a economia espanhola. No entanto, considera ilusrias e
ineficazes as regulamentaes bulionistas e a proibio das espcies monetrias, sugerindo
como poltica fundamental a industrializao. Para tanto, sugere a imposio de encargos
aduaneiros elevados para as importaes de manufaturados e para as exportaes de
matrias-primas e de baixas alquotas para as exportaes de manufaturados e para as
importaes de matrias-primas.
Diferentemente do caso espanhol, como a Frana no dispunha de metais
preciosos mo, o problema a ser enfrentado, sempre dentro da perspectiva pragmtica das
anlises dos autores mercantilistas, referia-se no sua conservao, mas sua obteno.
O primeiro dos considerados mercantilistas franceses foi Jean Bodin, mas no
por conta de suas obras dedicadas Cincia Poltica e Teoria Geral do Estado,
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especialmente os clebres Les Six Livres de la Rpublique, de 1576, pelas quais passou
imortalidade como pensador. Tal se deve obra de 1568, chamada Rponse au paradoxe
de Monsieur Malestroit, obra que tinha como subttulo a preocupao com a carestia geral
e uma maneira de a evitar (Touchant le fait des monnaies et l'enrichissement de toutes
choses), na qual trata de matrias de economia poltica, em particular da moeda e da
subida dos preos. Tencionava responder ao livro de Malestroit, que, embora reconhecesse
o aumento dos preos na Frana, defendia que tal carestia era apenas nominal, uma vez que
o metal contido em cada moeda havia se reduzido. Jean Bodin refutou tal ideia, entendendo
que a inflao devia-se ao aumento da quantidade do metal precioso vindo da Amrica, aos
monoplios estatais, e aos gastos do Rei e de sua corte, pelo que o empobrecimento era
real, no efetivo (HERRERAS, 2005, p. 64 65). Defendeu efusivamente, em suma, as
regras de formao de preos pelas foras de mercado e o livre comrcio, com nfase na
importncia das exportaes.
Outro autor francs com relevo no pensamento da poca foi Antoine de
Montchrestien, que publicou, em 1615, a sua obra Trait d'Economie Politique, na qual
pela primeira vez se menciona esse ramo do conhecimento econmico. Nela, um
oferecimento endereado ao Rei Lus XIII e sua me de um relatrio sobre as finanas do
reino e dos modos de enriquec-lo, embora considere favorvel a abundncia de metais
preciosos no pas, defende a necessidade para a Frana de uma economia completa e
autosuficiente. Assim, advoga o que foi o entendimento prevalente dos mercantilistas
franceses, a preferncia pela interveno do Estado no sentido de regulamentar a produo,
fortalecer as manufaturas nacionais e de exigir um sistema eficaz de proteo alfandegria,
conquistando assim os mercados externos (AVELS NUNES, 2007, p. 294 - 295).
Mas o grande realizador das determinaes mercantilistas na Frana foi Jean-
Baptiste Colbert, na medida em que foi o Controlador Geral das Finanas de Lus XIV, a
partir de 1665. Colbert quis tornar a Frana a nao mais rica da Europa, e para isso
implantou o que se denominou mercantilismo industrial, apostando na alta qualidade dos
produtos franceses, incentivando a produo de manufaturas de luxo, visando exportao.
Concedeu privilgios especiais s manufaturas, reais ou privadas, mas delas exigiu
rigorosos padres de fabricao. Promoveu a criao das grandes companhias de comrcio
e de colonizao. Empreendeu uma poltica fortemente protecionista, proibindo a
exportao de matrias-primas nacionais, impedindo ou estabelecendo pesada tributao s
entradas de manufaturados estrangeiros, ao mesmo tempo que eliminou os encargos
exportao de manufaturados e importao de matrias-primas aliengenas (AVELS
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NUNES, 2007, p. 294 - 295). Vale dizer, investiu pesadamente no fomento industrial,
como forma de fazer com que os produtos franceses prevalecessem nos mercados externos,
gerando assim superavits comerciais.
Por outro lado, foi severamente criticado por ter descuidado da atividade
agrcola, at como forma de proporcionar baixos preos aos insumos industriais,
assegurando a sua competitividade externa (HERRERAS, 2005, p. 68 69). Da adveio a
reao posterior dos fisiocratas.
Diferentemente do que foi pensado na Espanha e na Frana, o mercantilismo
ingls no se baseou nem no entesouramento em metais preciosos nem na regulao da
atividade industrial. A prioridade da nao deveria ser o atingimento de uma balana
comercial favorvel o que, para tericos como Thomas Mun, em sua obra de 1628, mas
publicada apenas em 1664, England's Treasure by Forraign Trade poderia levar,
indiretamente, entrada lquida de metais preciosos e outros tesouros no pas.
Tal realidade teria vantagens tanto polticas, como a formao de riqueza para
preparar a nao contra contingncias de segurana nacional, como as guerras, fome ou
epidemias, como tambm econmicas, para aumentar a liquidez e o crdito no pas
(IRWIN, 1998, p. 35).
Porm, para tanto, embora at mencione perifericamente a utilidade dos
encargos aduaneiros para alcanar t