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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO O PRINCÍPIO DE NÃO-DISCRIMINAÇÃO TRIBUTÁRIA NO COMÉRCIO INTERNACIONAL DE BENS Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito da USP como requisito parcial à aprovação no DOUTORADO em DIREITO ECONÔMICO E FINANCEIRO. Aluno: Washington Juarez de Brito Filho Orientador: Professor Associado Livre-docente Heleno Taveira Tôrres São Paulo Abril 2011

o princípio de não-discriminação tributária no comércio

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PS-GRADUAO

    O PRINCPIO DE NO-DISCRIMINAO TRIBUTRIA

    NO COMRCIO INTERNACIONAL DE BENS

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da USP como requisito parcial aprovao no DOUTORADO em DIREITO ECONMICO E FINANCEIRO.

    Aluno: Washington Juarez de Brito Filho Orientador: Professor Associado Livre-docente Heleno Taveira Trres

    So Paulo Abril 2011

  • Brito Filho, Washington Juarez de O princpio de no-discriminao tributria no comrcio internacional de bens / Washington Juarez de Brito Filho. So Paulo : W. J. de Brito Filho, 2011. 621 p. Tese (Doutorado) Faculdade de Direito da USP, 2011.

    Orientador: Professor Associado Livre-docente Heleno Taveira Trres Notas de rodap. Inclui bibliografia. 1. No-discriminao 2. Tributao indireta 3. Livre Circulao de mercadoria 4. Ajustes fiscais

    de fronteira 5. Protecionismo I. Ttulo.

    CDU 351.713:332.453.

  • WASHINGTON JUAREZ DE BRITO FILHO

    O PRINCPIO DE NO-DISCRIMINAO TRIBUTRIA

    NO COMRCIO INTERNACIONAL DE BENS

    So Paulo, _____ de ____________ de 2011.

    Banca Examinadora:

    _______________________________________

    Professor Associado Livre-docente Heleno Taveira Trres Orientador

    _______________________________ Examinador

    _______________________________ Examinador

    _______________________________ Examinador

    _______________________________ Examinador

  • AGRADECIMENTOS

    Meus sinceros e profundos agradecimentos ao Professor Heleno Taveira Trres,

    mais do que meu orientador e professor, um exemplo de tica acadmica e pessoal, que me

    permitiu retornar aos bancos da quase bicentenria Faculdade de Direito da Universidade

    de So Paulo e que viabilizou a elaborao deste trabalho, compreendendo, com

    humanidade, todas as dificuldades ultrapassadas por mim nesse perodo.

  • A Virgnia, Victor, Anita e Enrico, cujos amores so o combustvel que me move.

  • SUMRIO

    1. Da Introduo...................................................................................................................12

    2. Sobre a Dicotomia Livrecambismo X Protecionismo......................................................27

    3. Do Princpio de No-Discriminao no Sistema Multilateral de Regulao do Comrcio

    Internacional da OMC..........................................................................................................65

    3.1. Da Contextualizao Histrico-Legal..................................................................65

    3.2. Da No-Discriminao entre produtos estrangeiros - O Tratamento Geral de

    Nao Mais Favorecida (Art. I).................................................................................101

    3.3. Da No-Discriminao entre produto nacional e estrangeiro - O Tratamento

    Nacional (Art. III)......................................................................................................107

    3.3.1. Art. III:1 (consideraes gerais)...................................................................107

    3.3.2. Art. III:2 (no-discriminao tributria).......................................................124

    3.3.3. Art. III:2, 1 frase (discriminao explcita).................................................127

    3.3.4. Art. III:2, 2 frase (discriminao implcita).................................................133

    3.3.5. Art. III:4 (no-discriminao regulatria)....................................................139

    3.4. Dos Julgados do rgo de Soluo de Controvrsias sobre o Artigo III...........141

    3.4.1. Dos Critrios de Julgamento.........................................................................141

    3.4.2. Testes objetivos teste diagonal e teste de impacto assimtrico.................143

    3.4.3. Teste subjetivo aims-and-effects............................................................157

    3.5. Das Crticas Doutrinrias Jurisprudncia........................................................173

    3.6. Das Excees ao Princpio de No-Discriminao............................................186

    4. Do Princpio de No-Discriminao no Sistema da Unio Europeia.............................195

    4.1. Da Livre Circulao Comunitria de Mercadorias.............................................195

    4.2. Da Evoluo Histrico-Legal.............................................................................215

    4.3. Da No-Discriminao Tributria no comrcio de bens - Art. 90 do Tratado que

    institui a Comunidade Europeia................................................................................261

    4.3.1. Art. 90, 1 frase (discriminao explcita)...................................................262

    4.3.2. Art. 90, 2 frase (discriminao implcita)..................................................282

    4.4. Das Excees ao Princpio de No-Discriminao Tributria...........................316

    5. Dos Ajustes Fiscais de Fronteira....................................................................................333

    5.1. Do Conceito e das Modalidades.........................................................................333

    5.2. Do Breve Histrico.............................................................................................340

  • 5.3. Do Tratamento no Sistema Multilateral de Regulao do Comrcio

    Internacional..............................................................................................................355

    5.4. Do Tratamento no Sistema da Unio Europeia..................................................373

    5.5. Do Caso Brasileiro.............................................................................................377

    6. Do Princpio de No-Discriminao na experincia dos Estados Unidos da Amrica..396

    6.1. Do Federalismo Constitucional norteamericano................................................396

    6.1.1. Do Histrico.................................................................................................396

    6.1.2. Da doutrina dos poderes enumerados e da sua superao............................402

    6.1.3. Da The Supremacy Clause........................................................................415

    6.1.4. Do Poder de Tributar e de Despender..........................................................418

    6.2. Da The Commerce Clause..............................................................................441

    6.3. Da The Dormant Commerce Clause...............................................................448

    6.3.1. Da Evoluo Conceitual...............................................................................448

    6.3.2. Da Discriminao Tributria........................................................................467

    6.3.2.1. Da Discriminao Tributria Explcita..........................................475

    6.3.2.2. Da Discriminao Tributria Implcita..........................................484

    7. Do Princpio de No-Discriminao Tributria na experincia do MERCOSUL e do

    Brasil..................................................................................................................................495

    7.1. Do Princpio de No-Discriminao Tributria na experincia do

    MERCOSUL......................................................................................................................495

    7.2. Do Princpio de No-Discriminao Tributria na experincia brasileira.........508

    8. Para uma Densificao Semntica do Princpio de No-Discriminao Tributria.......520

    8.1. Dos Conceitos Jurdicos Indeterminados e a Jurisprudncia.............................520

    8.2. Da No-discriminao Tributria como Neutralidade Fiscal.............................532

    8.2.1. Da (impossvel) Neutralidade Fiscal Absoluta.............................................532

    8.2.2. Do (inexistente) Princpio Geral de Neutralidade Fiscal..............................547

    8.2.3. Das (possveis) Neutralidades Fiscais (Relativas e Parciais).......................555

    9. Das Concluses..............................................................................................................563

    10. Da Bibliografia.............................................................................................................574

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    ADI Ao Direta de Inconstitucionalidade.

    BISD Basic Instruments and Selected Documents.

    CIDE Contribuio de Interveno no Domnio Econmico.

    COFINS Contribuio para o Financiamento da Seguridade Social.

    FMI - Fundo Monetrio Internacional.

    GATS - General Agreement on Trade in Services (Acordo Geral sobre o Comrcio de Servios).

    GATT General Agreement on Tariffs and Trade (Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e

    Comrcio).

    ICM - Imposto sobre operaes relativas circulao de mercadorias.

    ICMS - Imposto sobre operaes relativas circulao de mercadorias e sobre prestaes de

    servios de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicao.

    IPI Imposto sobre Produtos Industrializados.

    IVA Imposto sobre o Valor Agregado.

    MERCOSUL Mercado Comum do Sul.

    NAFTA - North America Free-Trade Agreement.

    OCDE - Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico.

    OECD - Organisation of Economic Cooperation and Development.

    OIC Organizao Internacional do Comrcio.

    OMC Organizao Mundial do Comrcio.

    OSC rgo de Soluo de Controvrsias.

  • PIS/PASEP Programa de Integrao Social/ Programa de Formao do Patrimnio do Servidor

    Pblico.

    RE Recurso Extraordinrio.

    REsp Recurso Especial.

    SATAP so as to afford protection ... de modo a proteger.

    SPS - Agreement on Sanitary and Phytosanitary Measures (Acordo sobre a Aplicao de Medidas

    Sanitrias e Fitossanitrias).

    STF Supremo Tribunal Federal.

    STJ Superior Tribunal de Justia.

    TBT - Agreement on Technical Barriers to Trade (Acordo sobre Barreiras Tcnicas ao Comrcio).

    TCE Tratado que institui a Comunidade Europeia.

    TCEE Tratado que institui a Comunidade Econmica Europeia.

    TJCE Tribunal de Justia das Comunidades Europeias.

    TJUE Tribunal de Justia da Unio Europeia.

    TPR Tribunal Permanente de Reviso do MERCOSUL.

    TUE Tratado sobre o Funcionamento da Unio Europeia.

  • RESUMO

    Hoje em dia, muito se fala sobre a globalizao e o aprimoramento das relaes

    comerciais no plano internacional, tanto do ponto de vista econmico quanto do poltico.

    No entanto, tais fenmenos carecem de estudos mais aprofundados quanto a alguns dos

    seus aspectos eminentemente jurdicos.

    No que se refere disciplina multilateral de regulao do comrcio, o objetivo

    do sistema GATT/OMC o de, mediante um contnuo processo de reforma e liberalizao

    das polticas comerciais nacionais, proporcionar melhores condies de competitividade

    entre os pases, especialmente por meio da proibio da edio de normas nacionais

    discriminatrias que afetem a livre circulao de mercadorias.

    Todavia, tal proposta no tem alcanado a efetividade que deveria, no s em

    funo da proposital limitao do seu escopo como tambm por conta da fluidez conceitual

    que, ainda hoje, ronda alguns de seus institutos basilares. O mesmo pode-se falar a respeito

    de outros sistemas, tanto regionais, como o da Unio Europeia, quanto nacionais, em

    pases de forma de estado federalista, como os Estados Unidos.

    O objetivo da tese , portanto, aps fornecer um levantamento sistemtico dos

    instrumentos mais evoludos atualmente disposio dos juristas, apresentar uma proposta

    de soluo para essa fluidez conceitual que, ao mesmo tempo em que faa uso de

    referencial terico objetivamente construdo, permita que se possa vislumbrar a perspectiva

    de que o mundo globalizado, no futuro, torne-se mais justo e igual.

    Palavras-chave

    No-discriminao Tributao indireta - Livre Circulao de Mercadorias

    Ajustes Fiscais de Fronteira - Protecionismo.

  • ABSTRACT

    Nowadays, globalization and international economic relations improvement are

    very common subjects, both in the economic and political point of view. Nevertheless,

    such phenomena need deeper studies related to their law aspects.

    In what concerns to the multilateral trade regime, the GATT/WTO system

    purpose is to, by means of a continuum process of reform and liberalization of national

    trade policies, provide better competitive conditions to the states, specially through

    prohibition of internal discriminatory laws that affect the free movement of goods.

    However, this purpose hasnt been well succeeded, due not only to its deliberatedly restrict

    scope but also to a conceptual fluidity of some fundamental institutes of the system. Thats

    also the reality of some other situations - regional systems, like the European Union, or

    national ones, in the case of federalist states, like the United States of America.

    So, the thesis purpose is to provide a sistematic survey of the more advanced

    legal instruments today available and to present an objective and theoretically-built

    solution to solve this conceptual fluidity which permits that we all might foresee a fair and

    more equal globalized world in the future.

    Key-words

    Non-discrimination Indirect Taxation Free Movement of Goods - Border

    Tax Adjustments - Protectionism.

  • RESUM

    Aujourdhui, on parle beaucoup sur la mondialisation et lamlioration des

    relations commerciales internationales, sur les points de vue conomique et politique.

    Malgr cela, ces phenomnes ont besoin dtudes plus aprofondis sur ces aspects

    mminement juridiques.

    En ce que sagit du rgime commercial multilatral, lobjectif du systme

    GATT/OMC est, par un processus de rforme et de libralisation des politiques

    commerciales, pourvoir meilleurs conditions de concurrence entre les pays, surtout par la

    proibition dedition des lges discriminatoires. Nanmoins, cette intention ne reste pas bien

    heureux, non seulement cause dune delibre limitation de sa extension, comme aussi

    par compte de la fluidit conceptuelle de quelques de ses institutes fondamentaux. a est

    vrai aussi pour les systmes regionaux, comme lUnion Europenne, comme pour les

    systmes federalistes, comme cet des tats Unis de lAmerique.

    Alors, la proposition de cette thse est celle de fournir une enqute

    systmatique des plus evolus instruments juridiques presentement disponibles et de

    presenter une solution pour cette fluidit conceptuelle qui, tandis que sutilise dune theorie

    objective, permette aussi quon peut entrevoir une mondialisation qui soit vraiment juste et

    galitaire.

    Mots-cles

    Non-discrimination Fiscalit Indirecte Libre Circulation des Marchandises -

    Ajustements Fiscaux la Frontire - Protecionisme.

  • 12

    1. DA INTRODUO.

    Hoje em dia, muito se fala sobre a globalizao e o aprimoramento das relaes

    comerciais no plano internacional, tanto do ponto de vista econmico quanto do poltico.

    No entanto, tais fenmenos carecem de estudos mais aprofundados quanto a alguns dos

    seus aspectos eminentemente jurdicos.

    Talvez no exista objeto de controvrsia de cunho ideolgico mais aguerrida,

    hoje em dia, no debate internacional, do que a aferio da justia e da equidade na

    distribuio dos ganhos e perdas com o advento do sistema multilateral de regulao do

    comrcio entre os Estados independentes (KAPSTEIN, 1999), hoje administrado pela

    Organizao Mundial do Comrcio (OMC).

    Trata-se da instituio internacional reconhecida como o mais evidente smbolo

    da globalizao econmica (WOLF, 2001, p. 183), fenmeno sobre o qual, nos nossos

    dias, tanto se fala, mas que pouco realmente se compreende1.

    Por um lado, h vozes que identificam diversos pontos positivos na existncia

    de um arcabouo institucional regulatrio estvel no plano internacional.

    Assim os defensores do atual sistema multilateral de regulao do comrcio

    internacional argumentam, por um lado, em funo de consideraes terico-econmicas

    (TANZI, 2002), entendendo a funo do arcabouo institucional como meio de assegurar a

    segurana e a previsibilidade necessrias maximizao dos lucros entre as partes,

    caracterstica intrnseca do estudo das trocas nas teorias modernas sobre o comrcio

    exterior (CARVALHO; SILVA, 2004), superando o jogo de soma zero denunciado por

    Adam Smith em 1776 (KRUGMAN; OBSTFELD, 2004).

    Para esses entusisticos defensores, a implementao, ainda que no total, de

    dogmas como o da reduo de tributos aduaneiros, da eliminao de barreiras regulatrias

    e do livre acesso a mercados2 guardam estreita correlao com a prosperidade econmica

    que caracterizou a segunda metade do Sculo XX (SHORT, 2001).

    Assim, a prpria existncia permanente de um sistema internacional de

    regulao do comrcio deve ser entendida como um bem pblico3 internacional (WOLF,

    1 Trata-se, a globalizao econmica, de conceito equvoco, cujas diferentes acepes implicam sempre pesada carga ideolgica. A propsito, quanto aos vrios sentidos e ideologias, ver Gonalves (2003). 2 Trade que se costuma associar ao conceito de livre comrcio, embora a doutrina internacional mais abalizada discuta acidamente tal definio. Nesse aspecto, ver a obra de David Driesen, professor de Direito Internacional do Comrcio (International Trade Law) em Syracuse, NY, Estados Unidos (2001). 3 Bem (puramente) pblico, na teoria econmica, algo de cujo consumo, uma vez produzido, ningum pode ser privado (entendido consumo como o usufruto do benefcio de sua disponibilidade, j que ele no se

  • 13

    2001, p. 194), pelo acrscimo geral de bem-estar que gera (JORDAN, 2001, p. 244). Ter-

    se-iam alcanados, portanto, os objetivos presentes na primeira parte do prembulo do

    Acordo Constitutivo da OMC, internalizado no Direito brasileiro pelo Decreto n 1.355/944

    - por sinal, tambm presentes, embora apenas parcialmente, no texto originrio do

    prembulo do GATT, de 19475.

    Mas h tambm respeitveis posies discordantes, especialmente entre

    representantes de pases ditos em desenvolvimento. No negam os dados estatsticos sobre

    o incremento do comrcio internacional desde a vigncia do GATT, mas ponderam que tal

    realidade foi alcanada mediante desproporcionais esforos entre pases desenvolvidos e

    sub-desenvolvidos (RICUPERO, 2001, p. 49 - 54), pelo que o seu atendimento, de to

    oneroso aplicao pelos pases menos favorecidos, pode ter acabado por gerar

    desemprego e pobreza nesses locais do mundo, em funo da perda de parcelas de mercado

    para os seus produtos (SHORT, 2001, p. 60 - 61).

    Como consequncia, no se veem realizados, ao menos at o presente

    momento, os objetivos arrolados no prembulo do Acordo Constitutivo da OMC, no que

    toca aos pases em desenvolvimento6 (KAPSTEIN, 1999), sendo cada vez mais pessimistas

    as expectativas quanto efetiva implementao dos objetivos relacionados ao

    desenvolvimento previstos na Declarao Ministerial de Doha (WT/MIN(01)/DEC/1), de

    20 de novembro de 2001, de que o comrcio internacional efetivamente exera um papel

    fundamental na promoo do desenvolvimento econmico e na reduo da pobreza no

    planeta7.

    exaure non-rival) e cujo custo social marginal de produo para um consumidor adicional zero, no sendo portanto vedado a ningum dele usufruir non-excludable (NICHOLSON, 2002; WOLF, 2001, p. 207). 4 As Partes do presente Acordo, Reconhecendo que as suas relaes na esfera da atividade comercial e econmica devem objetivar a elevao dos nveis de vida, o pleno emprego e um volume considervel e em constante elevao de receitas reais e demanda efetiva, o aumento da produo e do comrcio de bens e de servios, permitindo ao mesmo tempo a utilizao tima dos recursos mundiais em conformidade com o objetivo de um desenvolvimento sustentvel e buscando proteger e preservar o meio ambiente e incrementar os meios para faz-lo, de maneira compatvel com suas respectivas necessidades e interesses segundo os diferentes nveis de desenvolvimento econmico, (...) 5 Recognizing that their relations in the field of trade and economic endeavour should be conducted with a view to raising standards of living, ensuring full employment and a large and steadily growing volume of real income and effective demand, developing the full use of the resources of the world and expanding the production and exchange of goods, 6 Reconhecendo ademais que necessrio realizar esforos positivos para que os pases em desenvolvimento, especialmente os de menor desenvolvimento relativo, obtenham uma parte do incremento do comrcio internacional que corresponda s necessidades de seu desenvolvimento econmico, (...) 7 2. International trade can play a major role in the promotion of economic development and the alleviation of poverty. We recognize the need for all our peoples to benefit from the increased opportunities and welfare gains that the multilateral trading system generates. The majority of WTO members are developing

  • 14

    Dado o seu cunho fortemente ideolgico, pretende-se aqui permanecer

    margem da discusso centrada principalmente na j tradicional dicotomia liberalismo X

    intervencionismo (SUTHERLAND; SEWELL; WEINER, 2001), livrecambismo X

    protecionismo (DORDI, 2002, p. 44) ou entre Davos e Porto Alegre, mais modernamente

    (GUTMANN, 2004), cidades que acabaram por simbolizar tal embate, embora o Frum

    Social Mundial, a partir de 2006, no mais tenha se realizado necessariamente na capital

    gacha.

    A presente anlise, de cunho eminentemente jurdico, no pretende penetrar na

    discusso de polticas pblicas, mas no se pode negar que h a realidade insofismvel da

    existncia de um conjunto de regras acordadas entre as naes a afetar profundamente suas

    orientaes polticas (SAMPSON, 2001), chegando mesmo a afetar o poder soberano dos

    Estados (LEHNER, 2002), criando um historicamente inigualvel grau de

    interdependncia entre as naes (VAN GINKEL, 2001).

    Em verdade, o que se tem presenciado, e a disciplina multilateral do comrcio

    internacional a melhor vitrine dessa realidade (PAHUJA, 2006), uma cada vez maior

    interpenetrao, em outras reas do conhecimento e da poltica, de um discurso econmico

    predominante nas esferas de domnio global, que impe um conjunto de princpios a serem

    adotados pelos ordenamentos nacionais (DAUVERGNE, 2006), sempre formulados em

    elevado nvel de abstrao (TWINING, 2006), e empregados pragmaticamente algumas

    vezes sem maiores cuidados pelas instituies nacionais.

    Nas palavras de Teubner (2006b), essa mistura entre concepes e princpios

    econmicos e institutos jurdicos parte de um processo global de acoplamentos

    estruturais entre as instituies legais e os ramos de atividade de natureza especializada e

    tcnica, entendidos esses acoplamentos estruturais como formas de influncia do ambiente

    externo no sistema jurdico (LUHMANN, 2004).

    Tal realidade de interpenetrao j tem sido enfrentada em domnios como o

    dos direitos humanos, em que se pode apontar hoje a existncia de uma doutrina

    internacional (BIANCHI, 2006); ou mesmo do Direito Ambiental (TEUBNER, 2006b).

    Lamentavelmente, no se pode dizer o mesmo do Direito do Trabalho ou da disciplina

    internacional da nacionalidade e da naturalizao (DAUVERGNE, 2006).

    countries. We seek to place their needs and interests at the heart of the Work Programme adopted in this Declaration. Recalling the Preamble to the Marrakesh Agreement, we shall continue to make positive efforts designed to ensure that developing countries, and especially the least-developed among them, secure a share in the growth of world trade commensurate with the needs of their economic development. In this context, enhanced market access, balanced rules, and well targeted, sustainably financed technical assistance and capacity-building programmes have important roles to play.

  • 15

    No caso do Direito Tributrio, ramo do Direito em que a anlise, no presente

    trabalho, das consequncias de tal multiplicidade de fontes normativas vai concentrar suas

    atenes, hoje se fala em um Regime Tributrio Internacional International Tax

    Regime (AVI-YONAH, 2007), pelo que os pases, no campo da tributao direta,

    repositrio das preocupaes com a segurana jurdica por parte dos detentores do capital,

    no poderiam, no exerccio de suas soberanias fiscais, fugir de uma srie de princpios de

    coerncia do sistema, como a preveno bitributao econmica e jurdica, a tributao

    do investimento passivo na residncia e da renda negocial ativa no pas da fonte dos

    rendimentos (p. 1).

    O problema saber quais so os limites desses regimes, se que existem, e se

    realmente do interesse do bem-estar geral do planeta que eles se consolidem da forma

    como hoje so prevalescentes.

    Embora haja quem defenda que a OMC e o discurso econmico globalizado

    no implicam reduo do poder soberano dos Estados, mas apenas dos grupos de interesse

    protecionistas (McGINNIS; MOVSESIAN, 2001), no h dvida que a globalizao

    econmica um fenmeno multifacetado (VAN DEN BOSSCHE, 2005), sendo a prpria

    emergncia de um necessrio requestionamento da doutrina tradicional das fontes do

    Direito (TEUBNER, 2006a) uma manifesta consequncia dessa realidade.

    No entanto, pode-se contestar em que aspectos a globalizao realmente um

    fenmeno novo, mesmo no aspecto legal (GOLDMAN, 2006), mormente sabendo-se que a

    histria dos acordos comerciais entre naes independentes, no hoje j arcaico sentido

    westphaliano (ZACHER, 1992), monta ao Sculo XII (MATSUSHITA; SCHOENBAUM;

    MAVROIDIS, 2005). Mas a existncia de uma desterritorializao do poder de deciso das

    instituies democrticas, com a formao de redes policntricas de produo normativa

    (LADEUR, 2003), aspecto ainda em aberto no pensamento jurdico internacional.

    Nessa perspectiva, a proposta do presente trabalho deve ser, dentro dessas

    realidades cada vez mais insofismveis de interpenetrao, tanto dos conceitos e

    disciplinas internacionais nos ordenamentos nacionais quanto dos conceitos econmicos na

    cincia jurdica, tentar buscar um novo entendimento em relao quele que o princpio

    basilar (BALASSA, 1962; COTTIER; MAVROIDIS, 2000; UCKMAR, A, 2002) do

    sistema multilateral de regulao do comrcio internacional o Princpio de No-

    Discriminao, em uma das duas principais vertentes de aplicao prtica, a que se

    direciona a produtos nacionais em relao aos estrangeiros, representada no plano

    multilateral, pela obrigao aos Estados-Membros de obedincia clusula de tratamento

  • 16

    nacional (Art. III do GATT 1947) sem entrar mais profundamente no outro pilar bsico

    do GATT, a disciplina que projeta seus efeitos entre dois ou mais produtos estrangeiros: a

    clusula de nao mais favorecida (Art. I do GATT 1947) (HUDEC, 2000). Paralelamente,

    estudar-se- como tal obrigao concebida e implementada em outros sistemas jurdicos,

    regionais e locais, em se tratando de pases federais.

    de tal relevncia a vedao ao tratamento discriminatrio nas relaes

    comerciais internacionais que declarada como sendo o objetivo expresso da celebrao

    dos acordos internacionais multilaterais iniciados com o GATT e sucedidos pelo atual

    Acordo Constitutivo da OMC, ao lado do instrumento concreto para a sua obteno,

    construdo na base da reciprocidade e das vantagens mtuas, que a reduo substancial

    das tarifas aduaneiras e dos demais obstculos ao comrcio, como relacionado nos

    prembulos dos textos de 19478 e de 19949.

    Mais do que simplesmente reconhecer sua relevncia, ser a partir da

    comparao com o sentido com o qual o Princpio de No-Discriminao compreendido

    em outros sistemas jurdicos, caracterizados pela multiplicidade de fontes normativas, que

    se pretende concluir por um sentido terico mais consistente para o princpio.

    No se deve esquecer que, como muito bem lembrado por Thomas Cottier e

    Petros Mavroidis (2000), o sistema westphaliano de naes Estado foi construdo sobre

    determinaes e esforos discriminatrios. A ideia de nao tem sido, portanto,

    ancestralmente ligada e consolidada custa do prejuzo e do preconceito em relao ao que

    se origina do exterior, sejam produtos, sejam pessoas, manifestaes culturais ou

    pensamentos.

    Uma questo preliminar que avulta , portanto, saber, empregando as

    modalidades de soberania delimitadas por Krasner (2001), at que ponto o exerccio da

    soberania legal internacional - na medida em que os Estados soberanos acordaram entre si

    8 Being desirous of contributing to these objectives by entering into reciprocal and mutually advantageous arrangements directed to the substantial reduction of tariffs and other barriers to trade and to the elimination of discriminatory treatment in international commerce, Have through their Representatives agreed as follows: 9 Desejosas de contribuir para a consecuo desses objetivos mediante a celebrao de acordos destinados a obter, na base da reciprocidade e de vantagens mtuas, a reduo substancial das tarifas aduaneiras e dos demais obstculos ao comrcio, assim como a eliminao do tratamento discriminatrio nas relaes comerciais internacionais; Resolvidas, por conseguinte, a desenvolver um sistema multilateral de comrcio integrado, mais vivel e duradouro que compreenda o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comrcio, os resultados de esforos anteriores de liberalizao do comrcio e os resultados integrais das Negociaes Comerciais Multilaterais da Rodada Uruguai; Decididas a preservar os princpios fundamentais e a favorecer a consecuo dos objetivos que informam este sistema multilateral de comrcio, acordam o seguinte:

  • 17

    pela submisso ao sistema multilateral que a est diante de todos ns - restringe ou atenua

    o exerccio da soberania westphaliana, a capacidade dos Estados de se gerirem sozinhos,

    nas suas decises no plano interno que afetem as fontes externas de autoridade (os demais

    Estados soberanos). Porm, trata-se de ponto apenas a ser indicado, sobre o qual no se

    pretende evoluir, por transbordante anlise a ser empreendida.

    Tal indagao ainda mais relevante se admitirmos como vlida a preocupao

    de Maduro (2003, p. 257) quanto percepo comum de que a liberalizao comercial

    seria mesmo uma inexorabilidade.

    No se pretende chegar a uma definio terica do que seja livre comrcio, algo

    que aguou a pesquisa de investigadores nos ltimos quatrocentos anos (DRIESEN, 2001).

    Por outro lado, conceituar livre comrcio como trocas ocorrendo em ambiente com

    normatividade no-discriminatria, como Driesen faz, acaba gerando um novo problema, o

    de definir o que seja a normatividade no-disciminatria. O presente objetivo, ao menos no

    plano das incidncias tributrias, pois, discutir esse novo problema.

    O tema aqui proposto ser abordado dentro de uma perspectiva interdisciplinar,

    que procurar demonstrar como as realidades do Direito Internacional, do Direito

    Tributrio e da Economia demandam a elaborao de um modelo terico que d

    fundamento mais consistente ao processo de soluo de conflitos comerciais que se refiram

    aos eventuais efeitos protetivos das incidncias tributrias.

    Considerando todas essas tendncias at ento expostas, o tema objeto de

    reflexo no se limitar a examinar, portanto, apenas o contedo da obrigao do

    Tratamento Nacional, na disciplina positiva da OMC, ou da Livre Circulao de Bens, na

    Unio Europeia10, mas sim, dentro de toda essa perspectiva terica e consoante a casustica

    da advinda, tentar chegar a um conceito material do princpio que seja abrangente e

    ultrapasse a ideia formal de tratamento diferenciado em funo da origem ou destino.

    Tencionando alcanar o objetivo de conduzir espontaneamente a esse tipo de

    reflexes, e a propor respostas a algumas delas, inicia-se o estudo com uma resumida

    contextualizao histrica da disciplina do comrcio internacional de bens e servios, na

    qual se far um cotejo dos fatos histricos, com nfase na normatizao jurdica que os 10 Deve ser relembrado que, a partir de 1 de dezembro de 2009, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a Unio Europeia passou a ter existncia jurdica como tal, inclusive passando a ser Membro da OMC com essa denominao. A propsito, ver o stio na organizao internacional em http://www.wto.org/english/thewto_e/countries_e/european_communities_e.htm. Acesso em 27/03/2011. No obstante, os relatos dos julgados arbitrais pelos Grupos Especiais do OSC da OMC, que sero empreendidos no decorrer do desenvolvimento do texto, empregaro o termo histrico, Comunidades Europeias. Tambm as referncias aos rgos e diplomas da atual Unio Europeia, quando do estudo da no-discriminao em seu mbito, respeitaro as denominaes de cada poca.

  • 18

    provocou, pari passu a exposio resumida do pensamento jurdico e econmico que

    banhava a atuao legislativa naqueles momentos, ou que, eventualmente, a ela se opunha.

    A partir desse Captulo 2, de carter introdutrio, o leitor dever contextualizar

    o advento histrico do sistema multilateral de regulao do comrcio internacional dentro

    da teia de interesses que era o motor da atuao dos seus grandes idealizadores poca.

    Pois, como afirma Sainz de Bujanda (1986, p. 254 256), a formulao dos sistemas

    fiscais sempre compreende, ponderadamente, os aspectos de racionalidade e de

    historicidade. Assim se inicia o Captulo 3.

    De posse da informao assim introduzida, deve-se tentar entender quais os

    vetores que esto por trs do imbricamento do sistema de tratados, multi, pluri e bilaterais,

    se a principiologia econmica ou o jogo de interesses nacionais.

    Evoluindo na anlise, temos que, para a compreenso do principal pilar do

    sistema, o Princpio de No-Discriminao, e para o minucioso entendimento do contedo

    da obrigao do Tratamento Nacional, imperioso que se compreenda com detalhes a

    disciplina normativa do sistema multilateral, assim como entender como se consolidaram

    os conceitos convencionais na experincia arbitral desde a poca do antigo GATT. como

    se desenvolver o Captulo 3.

    Deve-se ressaltar que aqui entendido o Princpio de No-Discriminao, no

    campo eminentemente tributrio, como um plexo conceitual de limitaes s pretenses

    impositivas soberanas tributao discriminatria, tributao protetiva e aos subsdios

    fiscais, na tricotomia apontada por Antonio Uckmar (2002, p. 1118).

    De posse desse conceito, o prximo passo repousa em entender a relevncia de

    questionar se os mecanismos nacionais listados anteriormente e empregados no exerccio

    da poltica comercial e fiscal soberana so ou no so discriminatrios ou, mesmo se o

    forem, se so ou no so considerados ilcitos diante dessa ordem multilateral. Com isso,

    tenciona-se avaliar a eficincia dos critrios hoje empregados na aferio do conceito de

    efeito discriminatrio da norma tributria. Com isso, superar o entendimento meramente

    formal do que seja uma norma tributria nacional de cunho discriminatrio ou protetivo.

    De se ressaltar, a propsito, que o foco do presente estudo, sobre a inteleco

    do Artigo III do GATT, ser aplicado, como se ver, na dico de Antonio Uckmar, tanto

    tributao discriminatria (ou explcita ou de jure, conceitos adiante minudenciados) e

    tributao protetiva (ou implcita ou de facto, idem), dependendo das frases tomadas do

  • 19

    seu pargrafo 2, com nfase na segunda, ou seja, aquela baseada em regras aparentemente

    neutras em relao origem11, pois a que permite maiores reflexes ontolgicas.

    Deve-se ressaltar que no se pretende examinar o Princpio de No-

    Discriminao em seus dois aspectos, tanto o tributrio quanto o regulatrio12, mas apenas

    no fiscal. Estabelecida essa limitao, o prximo passo estudar com mincias que tipo de

    incidncias tributrias o Artigo III do GATT se destina a limitar. De toda essa anlise

    poder-se- verificar que no campo tributrio que as solues jurisprudenciais tm sido

    mais decepcionantes, embora potencialmente mais simples do que as referentes matria

    regulatria. De se ressaltar que a dicotomia tributria-regulatria no s a empregada

    pela doutrina que adota a mesma opo de espectro de anlise que o presente trabalho (por

    exemplo, Ehring, 2002 e Zdouc, 2004), como tambm a do direito positivo, j que

    presente na rubrica do artigo III do GATT13, abrangendo, de forma sistemtica, todo o

    campo de anlise do poder normativo soberano estatal: tributrio e de polcia

    administrativa.

    O presente trabalho visa, portanto, a investigar como as limitaes ao poder

    impositivo tributrio (e no o regulatrio) estatal devem ser entendidas, apenas com

    relao ao comrcio de bens, sem entrar no mrito, por exemplo, de como os acordos

    11 Origin-neutral, no original em ingls. 12 Deve-se perceber que os adjetivos aqui empregados, tributrio e regulatrio, correspondem aproximadamente ao conceito que alguns doutrinadores do Direito Internacional (de formao no advinda do Direito Tributrio) e todos os estudiosos de matiz econmica atribuem aos vocbulos tarifrio e no-tarifrio. Esse emprego dos termos tarifrio e no-tarifrio, muito comum tambm nos escritos jurdicos em ingls, no obstante, no pode ser utilizado em um estudo de Direito Tributrio, mesmo que fundado no Direito Internacional do Comrcio, como o presente, por dois motivos. Primeiro porque o Direito Tributrio brasileiro, predominantemente, adotou um conceito autnomo e diferenciado para o que seja tarifa - como preo pblico; distante, portanto, de entender no mesmo sentido de Imposto de Importao (no Direito Brasileiro), ou direitos aduaneiros, como empregado pelo GATT, inclusive na sua verso em portugus. Em segundo lugar, porque, como se ver adiante, h normas do GATT que so direcionadas ao tratamento de tributos que no o imposto de importao, direitos aduaneiros ou encargos de efeito equivalente. Ou seja, o GATT trata especificamente, em mais de um ponto e, como veremos, em uma disciplina relevante e minuciosa, de tributos que no a chamada tarifa aduaneira. Assim, no rigor cientfico, no existe, na disciplina que estamos estudando, a mencionada dicotomia tarifrio ou no-tarifrio, motivo pelo qual empregar-se-o unicamente os termos do direito positivo, tributrio e regulatrio. Assim, a indicao do termo tarifa para o Imposto de Importao, nos moldes do brasileiro, como incidncia diferenciada dos tributos internos, preferencialmente no ser empregada, preferindo-se o emprego dos termos imposto de importao ou tributo ou imposto ou encargo aduaneiro. Por vezes, no entanto, ao mencionar textos de autores econmicos, o termo tarifa poder ser empregado, com o fim de no desnaturar a fundamentao original. Mesmo nesses casos, importante se estar assegurado a que tecnicamente se est referindo, no rigor da cincia tributria. Semelhante abordagem pode ser empreendida em relao ao termo paratarifa para se referir aos ajustes fiscais de fronteira, como se ver oportunamente. 13 Segundo a Lei n 313, de 30 de julho de 1948, que autoriza o Poder Executivo a aplicar, provisoriamente, o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comrcio; (na sua verso original) reajusta a Tarifa das Alfndegas, e d outras providncias: ARTIGO III TRATAMENTO NACIONAL EM MATRIA DE IMPOSTOS E DE REGULAMENTAO INTERNOS.

  • 20

    complementares do GATT tratam da questo dos subsdios, nem das prprias normas, com

    efeitos tributrios, presentes no General Agreement on Trade in Services GATS,

    relativamente ao comrcio de servios. Ou seja, referindo-se s quatro liberdades bsicas14

    ao comrcio internacional referidas no sistema comunitrio europeu, apenas a livre

    circulao de mercadorias ser examinada aqui, at porque aquela em que j se chegou a

    alguma definio conceitual terica na experincia jurisprudencial internacional, como se

    tentar captar ao final.

    O tema dos subsdios fiscais ser aqui abordado apenas tangencialmente.

    Fundamentalmente apenas no que seja necessrio para entender sua distino em relao

    aos ajustes fiscais de fronteira, no caso das exportaes. A necessidade de tocar no assunto

    deve-se ao fato de que, como veremos, a disciplina dos ajustes fiscais de fronteira, nas

    exportaes, na experincia multilateral, vem trazida em conjunto com a dos subsdios

    fiscais de outra ordem e os no-fiscais.

    Em resumo, o trabalho aqui apresentado cingir-se- tentativa de compreenso

    sistematizada do Princpio de No-Discriminao no comrcio internacional de bens, tanto

    na importao quanto na exportao, no seu carter eminentemente tributrio portanto,

    referente tributao indireta15, em todas as suas modalidades e sem fazer meno seno

    indireta ao complexo problema do interrelacionamento entre os diferentes sistemas

    jurdicos.

    Fala-se hoje da existncia de uma defasagem de legitimao, ora vislumbrada

    no sistema da Organizao Mundial do Comrcio. No h dvida que h ausncia de

    transparncia (RICUPERO, 2001) no processo de tomada de decises da OMC, ao mesmo

    tempo em que se sabe que o prprio aparato normativo pode ser visto como algo se

    prestando a reproduzir as relaes fticas de poder Norte-Sul (SHORT, 2001).

    No obstante, pode-se entender que a busca eficaz da pacificao dos conflitos

    comerciais entre as naes pode vir a ser pari passu alcanada na medida em que o rgo

    de Soluo de Controvrsias (OSC) da OMC aprofunde o debate cientfico sobre a sua

    forma de julgamento. Essa evoluo mereceria ser vista, ento, como, sem negar a

    existncia de crticas gratuitas oriundas de um debate puramente ideologizado, um meio de

    conferir legitimidade ao sistema, ao mesmo tempo em que ele recupera a eficincia e a

    14 De circulao de mercadorias, de servios, de pessoas e de capitais (GORJO-HENRIQUES, 2005). 15 Deve-se ressaltar que no se abordar aqui a controvrsia entre os autores brasileiros e internacionais sobre o correto elemento diferenciador da classificao dos impostos em diretos ou indiretos - segundo meramente o critrio da repercusso econmica, da repercusso jurdica ou no lanamento, entre outros. Adotar-se- a simplificao de que tributos indiretos so aqueles que incidem sobre bens. Para uma abordegam aprofundada da distino, consultar a minha dissertao de mestrado (BRITO FILHO, 2003).

  • 21

    coercitividade de suas decises, vencendo o problema identificado por Maria Livanos

    Cattaui (2001).

    No h meio mais direto de alcanar o respeito da sociedade civil organizada do

    que produzindo decises mais justas e bem fundamentadas. Mais do que isso, tambm a

    investigao cientfica pode fazer com que o prprio arcabouo normativo venha a se

    desenvolver. Como bem afirma Driesen (2001), apenas a inteleco pacificada e

    cientificamente fundamentada do conceito de no-discriminao vai conferir maior

    legitimidade aos conceitos empregados nas arenas internacionais de soluo de conflitos

    comerciais. H quem diga, como Cattaui (2001), que a OMC tem sido vtima do seu

    prprio sucesso, mas no h dvida que essa situao pode e deve ser atenuada com a

    melhoria de suas decises tcnicas. Tambm inconteste que tal aprimoramente cientfico

    deve, idealmente, ser reproduzido em outras experincias internacionais, regionais ou

    nacionais.

    Diante dessa realidade imensamente relevante entender a fundo o

    entendimento do OSC. Ciente dessa necessidade, do meio para o final do Captulo 3

    manifesta-se a preocupao com que se chegue compreenso, com detalhes, no s da

    disciplina normativa do sistema multilateral, como tambm de como se consolidaram os

    conceitos convencionais na experincia arbitral desde a poca do antigo GATT. Para isso,

    o exame do Princpio de No-Discriminao Tributria, um dos pilares do sistema

    multilateral, corresponde compreenso do contedo da obrigao do Tratamento

    Nacional como manifestada pelo OSC da OMC, mormente os conceitos jurdicos

    indeterminados de produtos similares ou diretamente competidores ou substitutos, no

    s nos seus clssicos critrios de aferio (pelas caractersticas fsicas, pela classificao

    fiscal, pela possibilidade de substituio ou pelo mercado de consumo), para evoluir para

    os casos em que tais critrios no mais satisfazem, como tambm os de superiores a e

    de modo a proteger a produo nacional. O Captulo 3, portanto, terminar com o exame

    de como o rgo de Soluo de Controvrsias da OMC tem estabelecido a ocorrncia ou

    no de incidncias tributrias nacionais protetivas no comrcio internacional de bens, por

    meio da anlise dos testes subjetivos e objetivos que o rgo arbitral tem empregado na sua

    jurisprudncia.

    Avanando nesse passar de olhos nos exames tericos a serem empreendidos

    adiante, deve-se entrar ento na concepo positiva e doutrinria europeia, mas,

    principalmente, no exame dos julgados do Tribunal de Justia das Comunidades Europeias.

    Essa a funo do Captulo 4.

  • 22

    Como se sabe, a doutrina europeia entende que a primeira das liberdades, a

    liberdade base (ALMEIDA, 1985, p. 265), a liberdade de circulao de mercadorias,

    pressupe basicamente dois princpios: o princpio de acesso ao mercado, que diz com o

    direito de atravessar as fronteiras fsicas, e o princpio de igualdade no mercado, que

    consiste justamente na vedao discriminao por nacionalidade ou origem (TERRA;

    WATTEL, 2008, p. 44).

    Inicialmente, h que serem identificados os campos de anlise, dentro de um

    princpio de independncia de disciplinas: de um lado, o art. 12 do Tratado que institui a

    Comunidade Econmica Europeia (TCEE), de Roma; aps, o art. 25 do Tratado que

    institui a Comunidade Europeia (TCE), lavrado em Maastricht, com a renumerao

    efetivada pelo Tratado de Amsterdam; atual art. 30 do Tratado sobre o funcionamento da

    Unio Europeia (TUE), aps o Tratado de Lisboa, de 2007, que pode ser resumido na

    proibio de medidas de efeito equivalente aos direitos aduaneiros; de outro, a

    eliminao das restries quantitativas, do art. 30 originrio, aps art. 28, atual art. 34,

    cujo entendimento vem sendo profundamente discutido desde os casos Dassonville16 e

    Cassis Dijon17.

    Tais regras, ambas, se diferenciam das que foram mais desenvolvidas no exame

    das questes concernentes s imposies internas, consoante o art. 95 do TCEE; aps, art.

    90 do TCE; atual art. 110 do TUE. Foi larga a atuao jurisprudencial, especialmente nos

    anos oitenta, com vistas a dar efetividade a essa disposio comunitria, aclarando o

    significado de termos como imposio interna, imposio discriminatria, produtos

    similares, produtos em relao de concorrncia, tratamento diferenciado e efeito

    protetivo, o que alcanou, em ltima anlise, a realizao concreta da harmonizao

    tributria europeia, no seu aspecto negativo.

    Na verdade, do exame dessa jurisprudncia comunitria pode-se identificar

    realmente o grande cimento que consolidou a integrao europeia, ainda na fase de unio

    aduaneira ou mesmo com o advento do mercado comum. A partir da construo

    jurisprudencial europeia, pode-se entender a relevncia da definio, tendo em vista os

    fundamentos integracionistas aqui abordados, do chamado Princpio de No-

    Discriminao.

    16 Caso 8/74 - Procureur du Roi v. Dassonville. ECR 1974, 837. 17 Caso 120/78 - Rewe-Zentrale AG v. Bundesmonopolverwaltung fr Branntwein. ECR 1979, 649.

  • 23

    Tal princpio, cuja definio genericamente considerada a hoje presente no

    art. 718 do TCEE; aps, art. 1219, do TCE, atualmente art. 1820 do TUE, agora

    expressamente destinado, nessa localizao, s questes de cidadania, parte,

    conjuntamente com os princpios da solidariedade e da liberdade econmica, para a

    doutrina comunitria - entre outros, Laureano (1997, p. 18) -, da trilogia de princpios que

    constitui a espinha dorsal do esforo integracionista europeu.

    Mais do que isso, defende Laureano (1997, p. 19) ser a no-discriminao,

    nessa abordagem no s no plano fiscal, o aspecto realmente estruturante da Unio

    Europeia, chegando mesmo a apontar fundamentos histricos a comprovarem que o tratado

    constitutivo nada mais que a concretizao desse princpio em termos de normas

    jurdicas.

    No sistema multilateral de regulao do comrcio internacional disciplinado

    pela OMC, encontra-se o sistema de direito positivo que mais bem aborda e trata o

    importante conceito jurdico-tributrio de ajuste fiscal de fronteira, de capital importncia

    para o entendimento de um conceito mais amplo, menos meramente formalista, de no-

    discriminao, que aqui se quer propor. Em complemento, a experincia europeia na

    matria e at a forma com que o sistema brasileiro implementa o conceito, embora sem

    mencion-lo, sero examinados com profundidade. O Captulo 5 dedica-se a esse tema.

    Importante tambm, retomando a anlise dos casos examinados na

    jurisprudncia internacional a respeito, examinar a realidade de pases de forma de estado

    federal, como, tipicamente, os Estados Unidos da Amrica. Ao conhecimento dessa

    experincia dedicar-se- o Captulo 6. Nesse ponto, inafastvel a lio da Suprema Corte

    dos Estados Unidos na formulao da doutrina da The Dormant Commerce Clause.

    18 Article 7. Dans le domaine d'application du prsent trait, et sans prjudice des dispositions particulires qu'il prvoit, est interdite toute discrimination exerce en raison de la nationalit. Le Conseil, sur proposition de la Commission et aprs consultation de l'Assemble, peut prendre, la majorit qualifie, toute rglementation en vue de l'interdiction de ces discriminations. 19 ARTIGO 12 (ex-artigo 6) No mbito de aplicao do presente Tratado, e sem prejuzo das suas disposies especiais, proibida toda e qualquer discriminao em razo da nacionalidade. O Conselho, deliberando nos termos do art. 251, pode adoptar normas destinadas a coibir essa discriminao. 20 PARTE II NO DISCRIMINAO E CIDADANIA DA UNIO Artigo 18 (ex-artigo 12 TCE) No mbito de aplicao dos Tratados, e sem prejuzo das suas disposies especiais, proibida toda e qualquer discriminao em razo da nacionalidade. O Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinrio, podem adoptar normas destinadas a proibir essa discriminao.

  • 24

    Trata-se exatamente da limitao ao poder dos estados-membros da federao americana

    em legislarem, na inexistncia de norma federal a respeito, quanto a relaes comerciais

    interestaduais, restrio retirada da interpretao pretoriana do art. 1, 8 da Constituio

    Americana, que autoriza o Congresso Nacional a regular o comrcio entre estados.

    Tambm se pretende estudar o pouco que existe do Princpio de No-

    Discriminao na nossa experincia de integrao regional, o MERCOSUL, a partir do

    estudo dos conflitos concretos ocorridos na nossa iniciativa de integrao e da norma do

    tratado institutivo que o veicula. Ao lado disso, ser abordada tanto a forma com que a

    jurisprudncia brasileira tem tratado assuntos que poderiam se relacionar com a

    experincia internacional apresentada, como tambm como as regras constitucionais

    referentes vedao de diferenas tributrias em funo de origem ou destino so

    abordadas na melhor doutrina brasileira. Assim se encaminhar o Captulo 7.

    Pode-se ressaltar a absoluta ausncia de estudos sistematizados sobre o tema

    diante do arcabouo constitucional brasileiro, ou mesmo por detrs da reduzida

    jurisprudncia superior nacional a respeito, ao menos as que considerem nas suas razes de

    decidir as diretrizes consolidadas internacionalmente. Para piorar, a doutrina brasileira,

    como sempre de costas para o MERCOSUL, no s no discute a no-discriminao em

    matria de tributao indireta e no comrcio de bens, como pula etapas e prefere discutir

    temas de tributao direta, relacionados s liberdades de estabelecimento de pessoas fsicas

    e jurdicas e de capitais (TRRES, 2002; OKUMA, 2003). Como resultado, o Princpio de

    No-discriminao acaba sendo, no Brasil, diminudo em sua carga semntica, como quer

    Xavier (1997), em oposio gradual importncia que o seu estudo vem ganhando no resto

    do mundo. Paradoxal, em se tratando de um pas com um sistema jurdico constitucional

    tributrio to rico.

    Busca-se, portanto, erigir uma construo terica que d supedneo correta

    valorao do princpio e a uma justa aplicao de seus critrios de aferio quando do

    potencial e futuro aparecimento de conflitos concretos internamente, na medida em que se

    conhecem as problemticas j enfrentadas pela Unio Europeia e pela Organizao

    Mundial do Comrcio. Afinal, trata-se de tema com o qual teremos de nos defrontar mais

    cedo ou mais tarde, sob pena de no podermos dizer existente um entendimento nacional

    ou regional sul-americano, jurisprudencial ou doutrinrio, acerca da concepo terica do

    que seja o Princpio de No-Discriminao no comrcio internacional de bens. Tal se

    configuraria desastroso, j que inexorvel e prximo o enfrentamento concreto de tais

    questes na evoluo da integrao econmica do Cone Sul.

  • 25

    Trata-se de realidade insofismvel no apenas porque urge que se progrida no

    aprofundamento da integrao no Cone Sul (AMARAL, 1995), at mesmo no rumo do

    cumprimento dos objetivos previstos no art. 1 do Tratado de Assuno21, saindo de sua

    atual condio de uma unio aduaneira imperfeita (SANTA-BRBARA RUPREZ, 2001,

    p. 203), sua natureza jurdica atual, dentro da classificao tradicional dos nveis de

    integrao econmica (PORTO, 2001), mas tambm porque a recuperao econmica da

    ttrade sul-americana nos ltimos anos tem de tal maneira incrementado22 o comrcio

    regional local, que j se esto verificando amide controvrsias, embora ainda em estado

    incipiente, como se ver.

    Mais do que isso, a inexistncia, no Brasil, no s de uma concepo, seno

    pacificada, mas nem sequer ao menos discutida sobre o assunto, como nem mesmo de um

    mnimo de ateno concertada e organizada para o problema, a menos de vozes isoladas

    (por exemplo, Heleno Torres, 2002), faz com que proliferem, no direito brasileiro,

    especialmente no Direito Tributrio nacional, normas que vm potencialmente de encontro

    ao Princpio da No-discriminao, na forma como entendido no plano internacional.

    No Brasil, apenas nesse momento comea-se a despertar para a importncia da

    compreenso do alcance e conceituao do Princpio de No-discriminao. Alguns artigos

    doutrinrios j comeam a mencion-lo, como os da lavra de Heleno Trres (2002) ou de

    Alessandra Okuma (2003). So, no obstante, trabalhos dedicados a aplicar o Princpio de

    No-discriminao ao exame de alguma especfica pretensa infringncia detectada no

    regime jurdico brasileiro, sem aprofundar na conceituao do princpio em si.

    Ao final, no captulo 9, procurar-se- sistematizar o conceito de no-

    discriminao, no apenas de uma maneira formal. Pelo contrrio, a partir dos conceitos

    explorados pelas diversas experincias normativas internacionais, construir um conceito do

    Princpio de No-discriminao que seja materialmente consentneo com a necessidade,

    muito bem apontada por Fritz Neumark (1974, p. 273 336), de que a poltica fiscal

    respeite o ordenamento econmico, vedando-se tributos que sejam economicamente

    21 Os Estados-Partes decidem constituir um Mercado Comum, que dever estar estabelecido a 31 DE DEZEMBRO DE 1994, E QUE SE DENOMINAR Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). Este Mercado Comum implica: A livre circulao de bens, servios e fatores produtivos entre os pases, atravs, entre outros, da eliminao dos direitos alfandegrios e restries no-tarifrias circulao de mercadorias e de qualquer outra medida de efeito equivalente; (...) 22 Corrente de comrcio Brasil Mercosul de US$ (FOB) 8.930.395.501 em 2002, US$ (FOB) 11.369.638.701 em 2003, US$ (FOB) 15.335.394.972 em 2004, US$ (FOB) 18.799.710.686 em 2005, US$ (FOB) 22.952.215.052 em 2006, US$ (FOB) 28.978.328.821 em 2007 e US$ (FOB) 35.770.935.245 em 2008 (BRASIL, SECEX, 2010).

  • 26

    dirigistas, com o fim de que o sistema fiscal no interfira na esfera econmica e na espera

    privada dos indivduos. Mais do que isso, as incidncias tributrias no s devem ser

    neutras quanto origem (no discriminatrias no sentido empregado pela OMC), como

    tambm necessrio que no acarretarem em seu bojo qualquer grau de protecionismo.

    Assim, para implementar o que Neumark denomina de carter positivo da neutralidade

    tributria (1974, p. 317) quantos aos aspectos do comrcio internacional decorrentes da

    existncia de fronteiras fiscais, o emprego dos ajustes fiscais de fronteira imprescindvel.

    Pretende-se explorar, embora em outro contexto, a ideia trazida por Heleno Torres (2003,

    p. 11), de fechamento operacional entre o sistema de direito positivo, o poder de tributar,

    e a autonomia privada constitucionalmente atribuda aos particulares, para ento aduzir

    uma conceituao mais densa do que seja o Princpio de No-Discriminao tributria.

  • 27

    2. SOBRE A DICOTOMIA LIVRECAMBISMO X PROTECIONISMO.

    Inicialmente, antes de se analisar especificamente as circunstncias histricas

    que cercaram a criao do GATT e, posteriormente, da OMC, importante previamente

    conhecer algo acerca da evoluo do pensamento econmico e poltico ocidental sobre o

    comrcio internacional, a compreenso de seus mecanismos, assim como as vantagens e as

    desvantagens em regul-lo.

    A inteno a de primeiramente discutir as ideias favorveis e contrrias ao

    comrcio internacional em geral dentro de uma perspectiva histrica, introduzindo assim a

    dicotomia entre o que atualmente Douglas Irwin (1998, p. 4), mencionando John Stuart

    Mill, denomina de doutrina protecionista, e as doutrinas do livre comrcio a que se refere

    Joseph Schumpeter (1954, p. 370).

    A partir dessa viso histrica, tenciona-se ressaltar a importncia capital das

    contribuies de Adam Smith, por meio da concepo das vantagens absolutas, e de David

    Ricardo, acerca da Teoria das Vantagens Comparativas, como ponto de inflexo na

    avaliao negativa anterior, mesmo anteriormente era mercantilista, da maioria do

    pensamento econmico, de maneira a alcanar a situao atual, quando, malgrado a

    diversidade de argumentos contrrios que a essas teorias sobrevieram, nos ltimos dois

    sculos, poder-se dizer, como afirma Harry G. Johnson (1971, p. 187), que a concepo, de

    que a liberdade no comrcio internacional mais benfica do que a proteo, uma das

    mais fundamentais proposies que a teoria econmica pode oferecer para guiar as

    polticas econmicas nos dias de hoje.

    Mais ainda do que expor concepes econmicas, prevalentes ou no, para o

    nosso estudo importa conhecer a evoluo das doutrinas sobre o livre comrcio porque,

    como nos ensina Andreas Lowenfeld (2008, p. 3), o GATT claramente baseado na

    percepo de que o comrcio internacional benfico, que os ganhos para a sociedade

    decorrentes do comrcio ultrapassam as perdas impostas queles que so solapados pela

    concorrncia internacional e que h criao de valor por meio da especializao e das

    trocas em mercados abertos.

    Em verdade, a razo de ser da realidade da preponderncia do pensamento

    livre-cambista o fato de que as ideias econmicas do pensamento clssico,

    independentemente das consideraes pontuais que justificariam ainda hoje o esgrimir de

    argumentos protecionistas especficos, trouxeram de forma definitiva dicotomia

  • 28

    apresentada a questo da eficincia econmica a indagao acerca de como uma

    particular poltica comercial pode afetar a capacidade de um pas em empregar os seus

    recursos escassos, em termos de fatores de produo, como terras, capital e trabalho, de

    forma a gerar a maior renda possvel, como a consequncia de poder adquirir o maior

    conjunto possvel de bens em troca (IRWIN, 1998, p. 4).

    Como afirma Douglas Irwin (1998, p. 3), anteriormente ao pensamento clssico

    havia uma viso largamente difundida de que o uso apropriado de encargos na importao

    e outras restries governamentais constituam polticas comerciais mais efetivas, no que

    tange ao bem-estar da populao, do que o livre comrcio, entendimento que chegou ao

    pice na literatura dita mercantilista, especialmente na Espanha e na Frana.

    Diz-se literatura dita mercantilista porque, como bem ressalta Jos Antnio

    Avels Nunes (2007, p. 291), no correto se afirmar que tenha havido um conjunto de

    ideias ou um corpo coerente e sistemtico do pensamento econmico mercantilista.

    Nenhum dos seus autores assim se proclamava, sendo que esse termo adveio da

    sistematizao didtica realizada, na segunda metade do Sculo XIX, pelos estudiosos da

    Escola Histrica Alem. Nem sequer identifica-se uma terminologia comum, um

    vocabulrio tcnico minimanente rigoroso ou um carter analtico desses escritos, motivo

    pelo qual Schumpeter (1954, p. 187 188) referiu-se ao sistema mercantilista como uma

    entidade imaginria. No existiu, portanto, nem uma escola nem uma doutrina

    mercantilista (AVELS NUNES, 2007, p. 291).

    No obstante, a partir da leitura dos autores dessa poca que, embora muito

    menos interessados em construir um pensamento econmico teoricamente consistente, j

    que visavam mesmo a justificar um sistema de poder e a uma poltica de unificao

    nacional, podemos retirar o corpo mais diversificado de ideias relacionadas com as

    polticas de comrcio internacional de toda a Histria, em regra de fulcro protecionista.

    Da mesma forma, pode-se dizer que foi em reao a todos esses escritos ditos

    mercantilistas que se criou o pensamento analtico econmico clssico e, com ele, a ideia

    de livre comrcio, como, na definio de Douglas Irwin (1998, p. 5), a inexistncia de

    impedimentos artificiais para a troca de bens atravs de fronteiras nacionais, pelo que os

    preos dos mercados diante dos produtores e consumidores domsticos so os mesmos

    determinados pelos mercados internacionais, exceo dos custos de transporte e de

    seguro e de outros custos de transao relacionados.

    Assim, os preos, tanto os locais quanto os internacionais, viriam a refletir, com

    fidelidade, a escassez relativa das mercadorias por todo o mundo, de modo a que possam

  • 29

    se converter, mediante uma anlise inversa, em custos de oportunidade, tanto para os

    produtores, as firmas nacionais, quanto para os consumidores internos, as famlias.

    Essa possibilidade decorre da presuno que, em tese, o mercado mundial

    estar sempre disposto a negociar a esses preos. E essa ideia de custo de oportunidade no

    comrcio internacional, trazida com a Teoria das Vantagens Comparativas, no logra

    enfrentar contraposio relevante mesmo no pensamento econmico moderno.

    Antes disso, durante a Antiguidade clssica, embora o Imprio Romano deva

    parcela significativa de sua opulncia econmica s suas redes rodovirias e de navegao,

    pelo que a cidade de Roma caracterizou-se por ter se tornado um centro de afluncia de

    povos de todo o mundo conhecido poca (SOARES, 2004), assim como a riqueza de

    Atenas tambm se deveu sua localizao geogrfica propcia navegao mediterrnea,

    tornando-se plo de atrao dos comerciantes que trafegavam as zonas que constituam o

    Mundo Antigo (STRENGER, 1996, p. 55), prevaleceu no pensamento antigo a viso de

    profunda desconfiana em relao ao comrcio internacional e de relevo ao seu potencial

    deletrio aos costumes locais.

    O motivo para isso o fato de que o comrcio, mesmo o local, no seu incio, se

    constitua, no dizer de Max Weber (2006, p. 191), em um fenmeno que implicava

    necessariamente um choque cultural, como resultado de uma especializao intertnica da

    produo. Era a poca do comerciante forasteiro (WEBER, 2006, 197), aquele que, para

    reduzir o risco do transporte martimo ou mesmo terrestre, viajava juntamente com a

    mercadoria (WEBER, 2006, p. 200 e 203).

    Por isso, como nos mostra Douglas Irwin (1998, p. 12), Plato, na sua A

    Repblica, sugere que as cidades bem governadas assegurassem que os postos de

    comerciantes e trabalhadores braais fossem reservados s pessoas inferiores, aquelas que

    no teriam sido teis em outras atividades. Aristteles, na Poltica, no mesmo sentido,

    condenava as trocas comerciais com o estrangeiro porque no era de acordo com a

    natureza humana, j que pressupunha que os homens tirassem coisas de outros homens.

    poca, na Grcia, segundo Irwin (1998, p. 12), era difundido o pensamento

    de que os cidados no deveriam participar do comrcio, que deveria ficar restrito

    inteiramente aos estrangeiros residentes, que, privados dos seus direitos, j estavam mesmo

    segregados da vida civil grega. Em regra, os pensadores gregos viam no comrcio um

    perigo moral e cvico.

    No obstante, j na Grcia Antiga se verificava o que ser o padro do

    comportamento das sociedades em relao ao comrcio ao longo da Histria: a incoerncia

  • 30

    entre a formulao terica e a sua aplicao prtica. Do ponto de vista terico, na prpria

    A Repblica, Plato reconhece, naquilo que Douglas Irwin (1998, p. 13) se refere como

    a primeira discusso, datada de 380 A. C., acerca das vantagens da diviso de trabalho na

    repblica, que dessa repartio de tarefas resulta que mais bens so produzidos, com mais

    qualidade e mais facilmente do que um nico homem poderia desempenhar de acordo com

    sua natureza, no mesmo momento e em detrimento de suas outras atividades. Prossegue

    afirmando que seria praticamente impossvel a uma plis produzir tudo e no precisar

    comerciar, pelo que os mercadores so necessrios e que a produo domstica de certos

    produtos deveria ser excedentria, para que se pudesse troc-las com as cidades

    interessadas.

    Anloga, tambm negativa, era a avaliao da atividade comercial em Roma:

    Ccero, no De Officiis, afirma que o comrcio deve ser considerado vulgar, embora

    reconhecesse a sua importncia econmica.

    Jacob Viner (1976, p. 27 54) menciona uma exceo a esse pensamento, no

    que ele denominou de Doutrina da Economia Universal. Desenvolvida por filsofos e

    telogos dos primeiros sculos depois de Cristo, como Sneca, Filo de Alexandria e

    Libnio, apregoava, com base na irmandade universal dos homens, que as trocas de

    mercadorias viriam a gerar benefcios para a humanidade, uma vez que os recursos naturais

    estavam assimetricamente dispersos pela face da Terra, sendo que cabia interveno

    divina agir com a deliberada inteno de promover o comrcio e a cooperao pacfica

    entre os homens.

    Malgrado essa viso de natureza teolgica, ainda assim os primeiros pensadores

    de ndole catlica viram, como os gregos e os romanos, o comrcio, nas palavras de Jacob

    Viner (1978, p. 34 - 38), como instigador de fraudes, promotor da avareza e estimulador de

    ganhos injustificados, com base no trecho bblico no qual Jesus expulsa os vendilhes do

    templo.

    Santo Agostinho, por exemplo, defendia que o comrcio no estava nas graas

    de Deus, porque consistia em risco s almas pelas tentaes aos pecados da cobia, da

    mentira, da trapaa e da fraude. Assim, exortava os cristos a se afastarem dessa atividade

    perniciosa.

    Interessante observar, como faz Irwin (1998, p. 18) que, diferentemente dos

    gregos e romanos, que propugnavam a autarquia de suas culturas, os cristos empenhavam-

    se em difundir seus ideais por todo o mundo. Malgrado isso, ambos viam no comrcio o

  • 31

    indutor de prticas potencialmente nocivas, sendo que os cristos ainda percebiam nas

    atividades comerciais o defeito de desviar a ateno dos fieis das questes transcendentais.

    Na Idade Mdia, a filosofia escolstica continuou a destilar seus preconceitos

    contra a atividade comercial. No entanto, pode-se perceber, paulatinamente, especialmente

    diante do crescimento populacional das cidades, e mormente com o revigoramento

    comercial decorrente das vitrias nas Cruzadas, iniciadas no Sculo XI, que reabriram a

    navegao no Mar Mediterrneo, principal via de distribuio de mercadorias na Europa,

    que as resistncias s prticas comerciais foram se atenuando ao longo da Baixa Idade

    Mdia e no incio da Idade Moderna.

    So Toms de Aquino, por exemplo, na Summa Theologica, do Sculo XIII,

    mostrava-se mais tolerante com as atividades comerciais. Reconhecia que os alimentos

    poderiam ser produzidos tanto localmente quanto em localidades distantes, mas acreditava

    que a produo prpria seria melhor, uma vez que a auto-suficincia seria mais

    dignificante. Mas tambm, como Aristteles, alertava contra o contato com estrangeiros e a

    degenerescncia moral da advinda, assim como recomendava aos cidados que no

    dedicassem suas vidas ao comrcio, j que, dessa forma, estariam se abrindo tentao de

    diversos vcios. No entanto, entendia a necessidade das trocas comerciais, pois seria muito

    difcil que qualquer cidade produzisse tudo do que necessitasse.

    No obstante, permanecia o preconceito contra a atividade que no agregava

    valor, que no se consubstanciaria em atividade economicamente produtiva. Assim

    tambm entendeu Toms de Aquino, mas no prprio Sculo XIII j se viam telogos,

    especialmente na Inglaterra, como Thomas de Cobham, posteriormente eleito Arcebispo de

    Canterbury, e Richard de Middletown, que viam utilidade na atividade de transportar as

    mercadorias do produtor ao consumidor, da fartura para a escassez.

    Mas mesmo a filosofia escolstica nos locais mais apegados tradio crist

    aos poucos foi atenuando tal viso negativa. Carletti de Clavasio, veneziano, em sua

    Summa Angelica, do final do Sculo XV, mencionado por Douglas Irwin (1998, p. 20),

    afirmava que o comrcio no em si uma atividade perniciosa, mas pode s-lo dependendo

    das circunstncias e o motivo pelo qual realizado.

    Evoluindo mais no tempo, em 1557, nas suas Relectiones Theologicae,

    Francisco de Vitria, teorizando acerca do relacionamento entre os espanhis e os nativos

    no novo mundo, defendeu que o comrcio um direito das naes, e que o jus gentium

    autorizava o comrcio, desde que no houvesse danos fsicos aos indgenas, pelo que nem

  • 32

    os prncipes nativos poderiam se escusar a comerciar seus produtos nem os soberanos

    espanhis deveriam evitar tal atividade (1964, p. 151 153).

    Era o nicio de uma nova viso, que se consagrou com os filsofos da chamada

    Escola do Direito Natural, os primeiros a trazerem a ideia de liberdade de comerciar como

    uma projeo das liberdades naturais do ser humano. Francisco Surez, em seu Tractatus

    de Legibus ac deo Legislatore, de 1612, propalava que todo o comrcio deveria ser livre,

    como decorrncia da lei dos povos, o jus gentium, assim como qualquer violao ao livre

    intercurso comercial deveria ser entendida como infrao a esse direito (1934, p. 2:347).

    Alberico Gentili, por sua vez, no seu De Iure Belli Libri Tres, de um pouco

    antes, de 1598, chegava mesmo a entender justificvel a guerra contra os pases que se

    recusassem a comerciar (1933, p. 86).

    Para outro dos grandes tericos da poca, Huig de Groot (Hugo Grcio), no

    De Jure Praedae, de 1604, a regra da liberdade de negociar foi fortemente defendida

    quando da sua condenao (1950, p. 218) excluso da Repblica das Sete Terras Baixas

    Unidas, seu pas, independente desde 1581, do comrcio com as ndias Ocidentais, por

    parte do Rei de Portugal, na tentativa de preservar o seu monoplio.

    Tal monoplio s veio a ser quebrado com a expedio do navegador holands

    Jacob van Neck, que retornou Europa nos fins do ano de 1600, literalmente abrindo o

    caminho para a criao da Vereenigde Oost-Indische Compagnie, a Companhia das ndias

    Ocidentais, em 1602, diante dos extraordinrios lucros obtidos. Conta William Bernstein

    (2008, p. 219) que essa expedio havia partido de Amsterdam, em 1 de maro de 1598,

    com vinte e dois navios, tendo chegado, com honras de heri, apenas com catorze deles e

    sem metade da tripulao original. Na ocasio, o capito afirmou, segundo Bernstein, que a

    sua inteno no roubar ningum em sua propriedade, mas comerciar com justia com

    todas as naes estrangeiras.

    O entendimento de Hugo Grcio foi reforado na sua maior obra, De Jure

    Belli ac Pacis Libri Tres, de 1625, embora, ao mesmo tempo em que defendia que o

    comrcio de qualquer Estado no poderia ser restringido, pois a oportunidade de comerciar

    era um direito das naes, admitia a incidncia de pequenos encargos aduaneiros que

    compensassem as despesas associadas com o comrcio exterior, como aquelas com a

    manuteno dos faris, ao mesmo tempo em que rejeitava incidncias que no se

    relacionassem com a mercadoria negociada (1925, p. 199).

    Do exame do pensamento de Hugo Grcio, mormente em comparao com os

    pensadores de matiz crist da Alta Idade Mdia, pode-se inferir o incio de uma tendncia

  • 33

    que se consolidou na era mercantilista: a considerao de aspectos econmicos em relevo,

    em detrimento de indagaes ticas ou relativas moral (IRWIN, 1998, p. 25). Com isso,

    no s se pode entender a apario dos escritos dos ditos mercantilistas, assim como,

    embora ainda embrionariamente, a emergncia de um relativo pensamento analtico de raiz

    econmica o que vai surgir realmente apenas, segundo Douglas Irwin (1998, p. 56 57),

    com a obra de Henry Martyn, Considerations upon the East India Trade, de 1701, na

    qual retoma, com inacreditvel rigor cientfico, o exame do problema do comrcio com as

    ndias Ocidentais, sobre o qual j havia discorrido Hugo Grcio.

    Desde o fim do feudalismo, a terra deixava de ser a nica fonte de riqueza.

    Assim, os burgueses, comerciantes e banqueiros, mediante a acumulao de capitais

    derivados do ressurgimento do comrcio, dadas as condies de segurana e tecnologia da

    poca, passaram a no mais terem uma preocupao com a satisfao autrquica de

    necessidades, no ideal medieval de desprendimento e de moderao, para pensar a riqueza

    como smbolo de poder. Assim, o financiamento dos exrcitos reais, em fase de

    consolidao dos regimes absolutistas, como de resto a necessidade de sustentao de toda

    a estrutura monrquica, fez o comrcio passar a ser estimulado e financiado pelos Estados

    nacionais. Os problemas econmicos passaram a ser examinados sob a tica de Estado

    (AVELS NUNES, 2007, p. 290).

    Nesse mesmo sentido, cabe relembrar que, nas palavras de Douglas Irwin

    (1998, p. 28), duas caractersticas do ambiente econmico internacional de ento passaram

    a esculpir o pensamento mercantilista: a vasta expanso do comrcio internacional e a

    explorao ultramarina, assim como a ascenso dos Estados-naes como entidades

    polticas. Em funo da conjugao desses dois fatores, os comerciantes passaram a ser

    vistos como uma classe bem posicionada, apta a explorar o lucro em proveito prprio e dos

    respectivos pases. Com isso, deixaram de ser prias sociais, vistos com suspeio, como

    ocupados em uma atividade econmica de m reputao, mas sim como bem-sucedidos

    cidados com grande potencial de colaborao para a riqueza nacional.

    Portanto, os pensadores acerca do comrcio internacional deixaram de ser os

    filsofos ou os tericos e passaram a ser homens de negcios, comerciantes, ou

    administradores pblicos, que discorrem sobre os problemas concretos que se levantam

    no mundo dos negcios ou no domnio da administrao estadual. Seus trabalhos no

    podem ser entendidos como construes tericas ou especulativas, mas sim programas de

    ao inspirados pela diferente realidade de cada pas (AVELS NUNES, 2007, p. 292 -

    293).

  • 34

    Como se viu, o que se tem de comum na literatura mercantilista, mais do que

    um conjunto de ideias, foi um determinado arsenal de temas fundamentalmente, a

    necessidade da regulao estatal do comrcio exterior, com algum ou alguns dos seguintes

    objetivos em mente: a acumulao de tesouros ou de metais preciosos, a promoo da

    riqueza ou do bem-estar nacionais, o atingimento de uma balana comercial favorvel, a

    maximizao do emprego, a proteo da indstria nacional ou o acrscimo do poder estatal

    (IRWIN, 1998, p. 26).

    Jacob Viner (1937, p. 59), a propsito, assinala que o que caracteriza a

    literatura mercantilista o fato de que so tratados que, parcial ou inteiramente, aberta ou

    disfaradamente, consistem em pedidos com o fim de satisfazer interesses econmicos

    especficos. Nesse sentido, no raramente os tratadistas exageram na importncia do

    comrcio internacional na formao da riqueza nacional (IRWIN, 1998, p. 29).

    Assim que, embora na Idade Moderna, dos Sculos XV ao XVIII, o

    mercantilismo fosse a poltica econmica prevalente na Europa, as ideias externadas pelos

    seus defensores variavam substancialmente conforme o pas de origem do autor.

    Na Espanha predominou o que Antnio Avels Nunes denominou de

    bulionismo (2007, p. 293): a preocupao com o entesouramento e a acumulao

    contnua de ouro e prata proveniente das colnias da Amrica e com sua conservao no

    pas, na convico de que conseguiriam assim preservar a riqueza e o poderio do estado

    espanhol. Para tanto, Luiz Ortiz, em 1558, em suas obras Memorial al Rey para prohibir

    las salidas de oro e Memorial al Rey para que no salga dinero de estos reinos de

    Espaa, apresentados a Felipe II, e Damin de Olivares, no Memorial para prohibir la

    entrada de los gneros extranjeros, apresentado, em 1621, a Felipe III, defendem

    polticas pblicas intervencionistas com o fim de proibir a sada do pas do ouro e da prata

    e de evitar a entrada de gneros estrangeiros, fortalecendo a balana comercial.

    Essa poltica alcanou resultados desastrosos, no mesmo compasso em que se

    deu a derrocada da economia espanhola, tendo sido mesmo tempestivamente combatida

    pelo jesuta Juan de Mariana, reputado como o maior dos mercantilistas espanhis por

    Armando Herreras (2005, p. 58). Em obra de 1609, De Monetae Mutacione Disputatio,

    Mariana prope restries aos gastos sunturios da coroa espanhola, pleiteia a moralizao

    dos servidores pblicos, e advoga que o melhor caminho para o pas obter ouro e prata

    seria o desenvolvimento da agricultura e da indstria, traando a distino entre valor

    intrnseco e extrnseco da moeda. Explica assim, o fenmeno inflacionrio que assolara a

    Espanha do Sculo XVI.

  • 35

    Para se ter uma plida noo do impacto das remessas de metais preciosos na

    economia da Europa dos Sculos XVI e XVII, basta perceber que, segundo Francisco de

    Magalhes Filho (1970, p. 235 236), calcula-se que, at 1500, o valor total dos metais

    preciosos em circulao ou entesourados na Europa alcanava cerca de cinquenta milhes

    de libras esterlinas, valor correspondente a toda a prata e todo o ouro at essa data

    produzidos na Europa desde o Imprio Romano. A produo da Europa de ento, anual,

    era de apenas cem mil libras, s quais se somavam, desde o final do Sculo XV, igual

    produo vinda do litoral da Guin, onde hoje fica a Repblica de Gana. A partir da

    descoberta da Amrica, a estimativa anual da produo americana de metais preciosos

    chegava a um milho e trezentas mil libras esterlinas, situao que perdurou, embora com

    decrscimo na produo, durante todo o perodo colonial, at o incio do Sculo XIX.

    Especialmente as grandes jazidas de prata no Mxico e do Alto Potos, em territrio hoje

    boliviano, mas escoado pelo Rio Paraguai, at o Rio da Prata, na atual Repblica

    Argentina, produziram, por todo esse perodo, aproximadamente duzentos e vinte e seis

    milhes de libras esterlinas ou seja, em trs sculos, viu-se sextuplicada a quantidade de

    riqueza na Europa em relao a toda a anterior histria da humanidade.

    Com isso, diante do aumento da quantidade de moeda em circulao, ainda

    lastreada em metais preciosos, e sem o correspondente aumento da produo, gerou-se

    inflao, o aumento generalizados dos preos, principalmente na Espanha, local onde os

    preos multiplicaram por quatro durante o Sculo XVI.

    Muito posterior aos trabalhos de Mariana, em 1726, outra obra relevante do

    mercantilismo espanhol, Teora y Prctica del Comercio, de Jeronimo de Uztariz, volta-

    se a defender a restrio fuga do ouro, mediante uma balana comercial favorvel, dada a

    importncia desse metal para a economia espanhola. No entanto, considera ilusrias e

    ineficazes as regulamentaes bulionistas e a proibio das espcies monetrias, sugerindo

    como poltica fundamental a industrializao. Para tanto, sugere a imposio de encargos

    aduaneiros elevados para as importaes de manufaturados e para as exportaes de

    matrias-primas e de baixas alquotas para as exportaes de manufaturados e para as

    importaes de matrias-primas.

    Diferentemente do caso espanhol, como a Frana no dispunha de metais

    preciosos mo, o problema a ser enfrentado, sempre dentro da perspectiva pragmtica das

    anlises dos autores mercantilistas, referia-se no sua conservao, mas sua obteno.

    O primeiro dos considerados mercantilistas franceses foi Jean Bodin, mas no

    por conta de suas obras dedicadas Cincia Poltica e Teoria Geral do Estado,

  • 36

    especialmente os clebres Les Six Livres de la Rpublique, de 1576, pelas quais passou

    imortalidade como pensador. Tal se deve obra de 1568, chamada Rponse au paradoxe

    de Monsieur Malestroit, obra que tinha como subttulo a preocupao com a carestia geral

    e uma maneira de a evitar (Touchant le fait des monnaies et l'enrichissement de toutes

    choses), na qual trata de matrias de economia poltica, em particular da moeda e da

    subida dos preos. Tencionava responder ao livro de Malestroit, que, embora reconhecesse

    o aumento dos preos na Frana, defendia que tal carestia era apenas nominal, uma vez que

    o metal contido em cada moeda havia se reduzido. Jean Bodin refutou tal ideia, entendendo

    que a inflao devia-se ao aumento da quantidade do metal precioso vindo da Amrica, aos

    monoplios estatais, e aos gastos do Rei e de sua corte, pelo que o empobrecimento era

    real, no efetivo (HERRERAS, 2005, p. 64 65). Defendeu efusivamente, em suma, as

    regras de formao de preos pelas foras de mercado e o livre comrcio, com nfase na

    importncia das exportaes.

    Outro autor francs com relevo no pensamento da poca foi Antoine de

    Montchrestien, que publicou, em 1615, a sua obra Trait d'Economie Politique, na qual

    pela primeira vez se menciona esse ramo do conhecimento econmico. Nela, um

    oferecimento endereado ao Rei Lus XIII e sua me de um relatrio sobre as finanas do

    reino e dos modos de enriquec-lo, embora considere favorvel a abundncia de metais

    preciosos no pas, defende a necessidade para a Frana de uma economia completa e

    autosuficiente. Assim, advoga o que foi o entendimento prevalente dos mercantilistas

    franceses, a preferncia pela interveno do Estado no sentido de regulamentar a produo,

    fortalecer as manufaturas nacionais e de exigir um sistema eficaz de proteo alfandegria,

    conquistando assim os mercados externos (AVELS NUNES, 2007, p. 294 - 295).

    Mas o grande realizador das determinaes mercantilistas na Frana foi Jean-

    Baptiste Colbert, na medida em que foi o Controlador Geral das Finanas de Lus XIV, a

    partir de 1665. Colbert quis tornar a Frana a nao mais rica da Europa, e para isso

    implantou o que se denominou mercantilismo industrial, apostando na alta qualidade dos

    produtos franceses, incentivando a produo de manufaturas de luxo, visando exportao.

    Concedeu privilgios especiais s manufaturas, reais ou privadas, mas delas exigiu

    rigorosos padres de fabricao. Promoveu a criao das grandes companhias de comrcio

    e de colonizao. Empreendeu uma poltica fortemente protecionista, proibindo a

    exportao de matrias-primas nacionais, impedindo ou estabelecendo pesada tributao s

    entradas de manufaturados estrangeiros, ao mesmo tempo que eliminou os encargos

    exportao de manufaturados e importao de matrias-primas aliengenas (AVELS

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    NUNES, 2007, p. 294 - 295). Vale dizer, investiu pesadamente no fomento industrial,

    como forma de fazer com que os produtos franceses prevalecessem nos mercados externos,

    gerando assim superavits comerciais.

    Por outro lado, foi severamente criticado por ter descuidado da atividade

    agrcola, at como forma de proporcionar baixos preos aos insumos industriais,

    assegurando a sua competitividade externa (HERRERAS, 2005, p. 68 69). Da adveio a

    reao posterior dos fisiocratas.

    Diferentemente do que foi pensado na Espanha e na Frana, o mercantilismo

    ingls no se baseou nem no entesouramento em metais preciosos nem na regulao da

    atividade industrial. A prioridade da nao deveria ser o atingimento de uma balana

    comercial favorvel o que, para tericos como Thomas Mun, em sua obra de 1628, mas

    publicada apenas em 1664, England's Treasure by Forraign Trade poderia levar,

    indiretamente, entrada lquida de metais preciosos e outros tesouros no pas.

    Tal realidade teria vantagens tanto polticas, como a formao de riqueza para

    preparar a nao contra contingncias de segurana nacional, como as guerras, fome ou

    epidemias, como tambm econmicas, para aumentar a liquidez e o crdito no pas

    (IRWIN, 1998, p. 35).

    Porm, para tanto, embora at mencione perifericamente a utilidade dos

    encargos aduaneiros para alcanar t