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O PROJETO DE ALFABETIZAÇÃO “TODAS AS LETRAS”: A EXPERIÊNCIA DESENVOLVIDA COM JOVENS E ADULTOS CASTANHAL/PA HELLEN DO SOCORRO DE ARAÚJO SILVA 1 -UEPA [email protected] RESUMO O texto ora apresentado trata da experiência de educação com Jovens e Adultos que desenvolvi enquanto educadora popular em uma turma de alfabetização no “Projeto Todas as Letras” da CUT. Este projeto teve uma abrangência nacional e se desenvolveu pautado nos objetivos da inclusão social e educacional a partir do olhar sindical na educação dos trabalhadores. Os eixos temáticos e norteadores do projeto foram: Trabalho, Cultura e Desenvolvimento construídos na perspectiva do letramento. No Brasil a meta foi atingir 80 mil trabalhadores rurais e urbanos no período de 8 meses. A experiência aqui relatada será as ações executadas em uma turma de 25 educandos/as no Bairro do Jaderlândia no município de Castanhal/PA. A experiência ocorreu na primeira versão do projeto no ano de 2005. Os sujeitos atendidos foram trabalhadores/as que se dispunham a frequentar aulas no turno da noite. O local de funcionamento foi a associação de moradores do bairro. Os resultados obtidos no processo de alfabetização foram a conclusão de 23 educandos, sendo que 5 evadiram por dificuldades diversas e a matricula de 15 deles (as) na escola formal dando prosseguimento no processo de escolarização. Palavras chave: Alfabetização de Jovens e Adultos. CUT. Educação popular. Projeto Todas as Letras. INTRODUÇÃO O projeto de alfabetização “Todas as Letras”, surge por meio de iniciativa da CUT que por sua “inserção no programa Brasil Alfabetizado, do governo federal, situa - se no âmbito das lutas que têm como propósito recuperar o papel do Estado como provedor das políticas públicas e recolocar o debate sobre educação de EJA no campo do direito. (caderno pedagógico da CUT/2005). Com a proposta de educação sindical e com as políticas de inclusão social dos trabalhadores, desperta seu olhar para o campo da educação. No processo de alfabetização o projeto procurou articular vários objetivos, os quais destacarei os que de fato estão relacionados com a experiência que ora apresento. Construir um projeto político pedagógico de alfabetização para trabalhadores (as) jovens e adultos que possibilite a formação de leitores 1 Pedagoga e professora de EJA na Secretária de Estado de Educação. Cursa mestrado em Educação na UEPA, com vínculo na Linha de Pesquisa- Formação de Professores.

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O PROJETO DE ALFABETIZAÇÃO “TODAS AS LETRAS”: A EXPERIÊNCIA

DESENVOLVIDA COM JOVENS E ADULTOS – CASTANHAL/PA

HELLEN DO SOCORRO DE ARAÚJO SILVA1-UEPA

[email protected]

RESUMO

O texto ora apresentado trata da experiência de educação com Jovens e Adultos que desenvolvi

enquanto educadora popular em uma turma de alfabetização no “Projeto Todas as Letras” da

CUT. Este projeto teve uma abrangência nacional e se desenvolveu pautado nos objetivos da

inclusão social e educacional a partir do olhar sindical na educação dos trabalhadores. Os eixos

temáticos e norteadores do projeto foram: Trabalho, Cultura e Desenvolvimento construídos na

perspectiva do letramento. No Brasil a meta foi atingir 80 mil trabalhadores rurais e urbanos no

período de 8 meses. A experiência aqui relatada será as ações executadas em uma turma de 25

educandos/as no Bairro do Jaderlândia no município de Castanhal/PA. A experiência ocorreu na

primeira versão do projeto no ano de 2005. Os sujeitos atendidos foram trabalhadores/as que se

dispunham a frequentar aulas no turno da noite. O local de funcionamento foi a associação de

moradores do bairro. Os resultados obtidos no processo de alfabetização foram a conclusão de

23 educandos, sendo que 5 evadiram por dificuldades diversas e a matricula de 15 deles (as) na

escola formal dando prosseguimento no processo de escolarização.

Palavras chave: Alfabetização de Jovens e Adultos. CUT. Educação popular. Projeto

Todas as Letras.

INTRODUÇÃO

O projeto de alfabetização “Todas as Letras”, surge por meio de iniciativa da

CUT que por sua “inserção no programa Brasil Alfabetizado, do governo federal, situa-

se no âmbito das lutas que têm como propósito recuperar o papel do Estado como

provedor das políticas públicas e recolocar o debate sobre educação de EJA no campo

do direito”. (caderno pedagógico da CUT/2005). Com a proposta de educação sindical e

com as políticas de inclusão social dos trabalhadores, desperta seu olhar para o campo

da educação.

No processo de alfabetização o projeto procurou articular vários objetivos, os

quais destacarei os que de fato estão relacionados com a experiência que ora apresento.

Construir um projeto político pedagógico de alfabetização para

trabalhadores (as) jovens e adultos que possibilite a formação de leitores

1 Pedagoga e professora de EJA na Secretária de Estado de Educação. Cursa mestrado em Educação na

UEPA, com vínculo na Linha de Pesquisa- Formação de Professores.

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da realidade social e política e que fossem capazes de fazer uso da escrita

e da leitura a partir de seu contexto social.

Potencializar a intervenção da CUT nas formulações, definições e

implementação de políticas públicas de EJA que supere a visão

funcional, instrumental e mercantilista da educação [...].

A metodologia adotada pelo projeto se fundamentou na “compreensão de que

todos os sujeitos participam de alguma maneira, nas práticas sociais mediadas pela

escrita, através das relações que se estabelecem na sociedade nas condições concretas

do momento histórico vivido”. (caderno pedagógico da CUT/2005).

A organização pedagógica do projeto “Todas as Letras” está estruturado pelos

seguintes eixos temáticos: Trabalho, Cultura e Desenvolvimento. Esses eixos sempre

estiveram fortemente vinculados as políticas públicas, com destaque para o papel do

Estado na sociedade e da organização dos trabalhadores.

EIXO

TEMÁTICO

CONCEPÇÃO E OBJETIVOS

Trabalho Entendido como ação que funda o ser social. O trabalho é tomado

como princípio educativo, onde o conhecimento do homem se

expressa e, as relações sociais advindas deste trabalho, vão

compondo seu repertório de vida. É nessa relação entre o homem e

a natureza que se dá o processo de humanização, pois, ao agir

conscientemente sobre a natureza para modificá-la, o homem

acumula e socializa conhecimento.

Cultura Compreendida como o modo através do qual os sujeitos

individuais e coletivos concebem a realidade, a representam e nela

se reconhecem e se situam. Nesse sentido, o indivíduo é ao mesmo

tempo, uma pessoa única, e um ser social, já que sua

individualidade é constituída socialmente, fundada em ideias,

valores e experiência coletivas as quais se expressam na estética,

na arte, no habito e costume de um povo.

Desenvolvimento Compreendido como o projeto de sociedade construído

historicamente, a partir de modos diferentes de organizar a vida

social, econômica e política e de se apropriar dos recursos naturais

e transformá-los, refletindo a visão de mundo e de sujeito que cada

grupo social concebe. Fonte: Projeto Todas as Letras- CUT/ 2005.

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A experiência foi desenvolvida mediante ao processo permanente de formação

de educadores/alfabetizadores a partir “das concepções defendidas pela CUT, com vista

a contribuir nos debates sobre projeto político pedagógico das redes publicas de

educação, em particular no âmbito da educação de jovens e adultos”. (caderno

pedagógico da CUT/2005).

Nesse sentido, está experiência com educação de jovens e adultos constituiu

como meu primeiro contato como alfabetizadora. O relato compõe-se de aulas que de

fato marcaram minha experiência como educadora e que contribuiu significativamente

com a leitura de mundo e da escrita dos educandos que se envolveram nesta jornada.

A EXPERIÊNCIA NA TURMA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E

ADULTOS: RELATO DE UMA EDUCADORA NO PROJETO “TODAS AS

LETRAS”

“Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos [...] o dever de não só

respeitar os saberes com que os educandos chegam a escolas, mas também discutir com

os educandos a razão de ser de alguns desses saberes” (FREIRE, 2002, p.15), foi com

base nos ensinamentos de Freire que iniciei um trabalho educativo na turma de

alfabetização de jovens e adultos no “Projeto Todas As Letras”. Está experiência

estrutura-se em três momentos:

Organização, mobilização da turma e o desafio de conseguir um espaço para as

aulas;

Eixos do projeto e o processo de ensinar e aprender;

Conclusão do projeto e a matricula dos educandos na escola formal.

O primeiro momento foi dedicado a matricula dos educandos e a árdua

dificuldade de encontrar um local para funcionamento das aulas. Esse período foi muito

delicado, uma vez que tivemos somente uma semana para fazer o cadastro dos

educandos, por meio de visitas e articular com lideranças locais.

Dias de muitas andanças batendo de casa em casa, consegui matricular 40

educandos. Sendo que no primeiro dia de aula compareceram 28 trabalhadores e

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trabalhadoras que com o cansaço no corpo víamos na expressão do olhar a vontade e o

desejo de aprenderem a ler e escrever, precisamente seu próprio nome.

A primeira semana de aula ocorreu em uma escola municipal do bairro, mas não

foi possível continuarmos no espaço, porque a sala que estaria a princípio disponível

para o projeto foi desativada. Então, os educandos me indicaram uma escola conveniada

com a prefeitura, mas que de repente poderiam colaborar conosco disponibilizando uma

sala no horário da noite.

Ao conseguirmos a cedência da escola pensávamos que tudo estaria resolvido,

porém quando estávamos com um mês de aula a responsável pelo espaço resolveu

cobrar o aluguel, já que a noite era propriedade privada, diante da situação não tivemos

condições de permanecermos no local.

Assim, tínhamos novamente que encontrar outro espaço, foi quando

conseguimos a disponibilidade da casa de uma jovem que utilizava o espaço para dar

aulas de reforço para crianças durante o dia. Sensível com a situação ela, solidariamente

nos concedeu o ambiente, no entanto, além do espaço ser muito quente tínhamos

dificuldade para comportar todos os educandos.

No problema para ministrar as aulas e com o cuidado para não pará-las e evitar

possíveis evasões, tomamos a iniciativa de organizar uma reunião com o presidente da

associação de moradores para discutirmos sobre o que estava acontecendo, na conversa,

o presidente da associação disponibilizou o espaço para o funcionamento das aulas na

sede comunitária e que poderíamos ficar o tempo que fosse necessário, porém não tinha

quadro e nem cadeira, ou seja, a estrutura mínima, o espaço era um barracão somente

com cobertura.

Vivenciei esse momento como uma ação política, pois conseguimos mobilizar

sujeitos sociais engajados em prol de melhores condições educacionais para o bairro,

deste modo, penso não Freire (2002, p. 37) foi muito próspero ao afirma que, “não

posso ser professor sem me pôr diante dos alunos, sem revelar com facilidade ou

relutância minha maneira de ser, de pensar politicamente. Não posso escapar à

apreciação dos alunos”.

Diante disso, Resolvemos coletivamente que iríamos encarar a situação para que

as aulas continuassem, com muito esforço conseguimos a doação de quadro, e por meio

de um mutirão providenciamos bancos, mesas e também conseguimos cadeiras de um

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estabelecimento do bairro. Neste local funcionamos com muitas dificuldades, por

motivo da violência, mas finalizamos o projeto em outubro de 2005 com a evasão de 5

educandos.

O relato do primeiro momento foi fundamental para contextualizar as

dificuldades que os alunos de classe popular enfrentam para ter acesso a educação e

escolarização.

O segundo momento da experiência trata dos eixos político pedagógico do

projeto e o processo de ensinar e aprender no cotidiano de sala de aula. Os eixos

norteadores do projeto foram “trabalho, cultura e desenvolvimento”. Trabalhávamos

estas temáticas na perspectiva do letramento, portanto os conteúdos propostos estavam

articulados com a experiência de vida dos educandos, a relação com o contexto do

trabalho, o debate de um posicionamento crítico diante da ausência de políticas públicas

no bairro e precisamente a valorização da leitura de mundo desses sujeitos para o

domínio da escrita.

No iniciou das aulas, os educandos de fato esperavam que pudéssemos escrever

no quadro para que pudessem reproduzir em seus cadernos, porque apesar de nunca

terem freqüentado escolas, traziam experiências dos filhos e de outros familiares a

tradicional forma da escola ensina.

Nesse sentido, vou relatar aulas desenvolvidas em cada eixo temático, os

momentos apresentados não se limitam a dia, mas há semanas e meses. Todas as

experiências aqui relatadas foram singulares na construção do processo ensino

aprendizagem, no reconhecimento dos educandos sobre a importância do letramento em

suas vidas, assim como suas mudanças de atitudes no exercício da cidadania individual

e coletiva. Do mesmo modo, procurei me apoiar nos princípios de Freire (1981, p. 15)

ao afirmar que:

A primeira exigência prática que a concepção crítica da alfabetização

se impõe é que as palavras geradoras, com as quais os alfabetizandos

começam sua alfabetização como sujeitos do processo, sejam

buscadas em seu “universo vocabular mínimo”, que envolve sua

temática significativa.

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Fonte: Hellen do Socorro de Araújo Silva- Castanhal/PA- 2005 Projeto Todas as Letras

Março de 2005: tudo iniciou com uma apresentação coletiva, momento em que

eles falaram das suas perspectivas de vida, de educação, de saúde, de amor, de política,

entre outras questões. Todos relembraram da história de suas famílias, do trabalho dos

pais e pontuaram as dificuldades por nunca terem freqüentado escola. Diante do que

tinham apresentado solicitei que colocassem tudo num cartaz, por meio da atividade

chamada “chuvas de ideias”. Assim escrevi no papel os seguintes títulos: “quem fui”

“quem sou” “onde pretendo chegar” e sugeri que representassem por meio de imagens

como eles se identificavam. Os recursos utilizados foram revistas diversas e jornais.

Quando todos concluíram, fizemos um círculo de diálogo, e cada educando

apresentou as questões solicitadas. Para apresentar a conversa, destacarei a fala de uma

educando, o qual usarei o pseudônimo “Jorge” para exemplificar.

Professora quero, dizer que estou hoje aqui é porque já sofri muito na

vida, fui catador de lixo e passei por muitas necessidades, quando eu

era mais jovem, meus pais não tinham condição de me colocar na

escola, só me restava trabalhar no pesado. Dou graças a Deus por não

ser um marginal, porque já vi de tudo nessa vida, assim aos 65 anos

resolvi vim para escola, não enxergo direito, mas vou ficar vindo,

porque já sei fazer conta, só não sei escrever meu nome e nem ler.

AULAS- Eixo temático: Trabalho

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Quando o seu “Jorge” concluiu sua fala, dialogamos a respeito do analfabetismo

no Brasil, onde pontuamos que “é necessário, na verdade, reconhecer que o

analfabetismo não é em si um freio original. Ninguém é analfabeto por eleição, mas

como conseqüência das condições objetivas em que se encontra”. (FREIRE, 1981, p.

16). Deste modo, pontuamos que se todas as crianças tivessem ao longo da história

oportunidade de estudar em uma escola de qualidade próximo as suas moradias, não

tínhamos um número significativo de jovens e adultos em processo de alfabetização,

procurando se apropria da leitura e da palavra.

No decorrer da atividade identifiquei que todos os educandos traziam um laço

forte com o campo, com a terra e com as águas, pois eram oriundos de áreas de

assentamento ou de praianas. Em seus relatos, enfatizavam que saíram de seus locais de

vivencia na perspectiva de oferecer uma educação aos seus filhos.

A temática trabalho, perpassou em todos os eixos, uma vez as discussões

centraram-se em refletirmos sobre como “o papel do trabalhador social se desenvolve

num domínio mais amplo, no qual a mudança é um dos aspectos. O trabalhador social

atua, com outros, na estrutura social”. (FREIRE, 1981, p. 32).

Articulados neste tema abordei as áreas de conhecimentos conectadas com as

informações pautadas nas experiências, conhecimentos dos educandos, considerando o

acúmulo vocabular que eles apresentavam. Assim, a matemática estava presente nas

leituras de textos, a interpretação fazia parte das aulas de história e geografia e ciências.

A ideia foi trabalhar os conhecimentos a partir da noção de totalidade para que

pudéssemos valorizar o conhecimento dos trabalhadores e a partir daí trabalharmos a

decodificação das palavras.

Junho de 2005: nesse período estávamos trabalhando com o tem cultura e no

processo de produção de palavras e frases. Sempre gostei muito de utilizar revistas,

jornais e textos. Em uma das aulas fomos trabalhar a interpretação de um texto, nele

exploramos interpretação, leitura, palavras chave, o contexto político cultural do

município e especificamente do bairro.

AULAS- Eixo Temático: Cultura

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Durante a conversa a educanda “Vitória” sugeriu que fizéssemos uma festa

junina e no mesmo momento começou a dar várias idéias. Concordei plenamente e

recomendei que formassem duas equipes; uma iria produzir um cartaz/convite e a outra

iria fazer a lista com o que iríamos gastar.

Todos concordaram, enfatizo que todas as atividades sugeridas eram produzidas

no coletivo. Ao iniciarem a atividade perguntaram: professora como vamos fazer uma

lista com os nomes das pessoas e dos materiais necessários se ainda não sabemos

escrever? Nesse período já tínhamos construído durante o subtema identidade as

“carteirinhas” da turma, que os identificavam como educandos do projeto, e ai solicitei

que pudessem pesquisar nas carteiras o nome de cada um e trocarem idéias sobre como

se escreve os nomes e a maneira deles conseguiram escrever. Após esse momento,

fomos trabalhar a origem do nome da cada um, onde pontuamos seus significados

socioculturais e também vocabular.

Para a lista dos materiais que seria necessário ao comes e bebes, fomos ao

supermercado, para que eles pudessem identificar os produtos e no processo de leitura e

escrita eu estava ao lado explicando. Quando voltávamos para sala, claro que não era

possível no mesmo dia, porque o tempo de aula era curto, retomamos as atividades e

formos trabalhar os conhecimentos de linguagem e leitura em conjunto com a

matemática, eles relacionaram com as imagens encontradas nos jornais, nos rótulos e

em seguida fizeram uma demonstração do valor que iriam gastar. Alguns alunos

explicaram o trabalho para a turma.

Fotografias 1: Produção de cartaz em sala de aula

Fonte: Hellen do Socorro de Araújo Silva/junho de 2005. Projeto Todas as Letras.

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Agosto de 2005 estávamos discutindo o tema desenvolvimento e sua relação

com as políticas públicas. No primeiro momento da aula a educanda “Creusa” levantou

e disse para toda a turma que gostaria de fazer um depoimento:

Hoje é um dia muito importante para mim, pois todas as vezes que ia

tirar algum documento pediam para eu colocar meu “dedão” e hoje,

fui tirar minha carteira de identidade, porque eu queria que estivesse

assinada por mim, então hoje conseguir assinar meu nome, e nunca,

mas vou passar vergonha como já passei.

O depoimento representa a realidade dos sujeitos que nunca tiveram a

oportunidade de estudar, por esse motivo são constantemente humilhados, nos locais

onde freqüentam, sejam nos postos de saúde do bairro, hospitais, INSS e em vários

lugares. Assim esse depoimento foi um dia emocionante e a partir da fala da educanda

começamos a aula, onde fizemos uma profunda conversa sobre os direitos.

Fotografias 2: diálogo sobre direito em sala de aula

Fonte: Fonte: Hellen do Socorro de Araújo Silva/agosto de 2005. Projeto Todas as Letras.

Discutirmos a concepção de um desenvolvimento econômico e social que na

maioria das vezes exclui de forma perversa os trabalhadores, mulheres, negros, pobres,

ou seja, todos que se encontra em situações vulneráveis na sociedade. Desta forma

fomos inspirados pelos conhecimentos de Cora Coralina, João Cabral de Melo, Solano

Trindade, Zé da Luz, Almino Henrique, entre outros, por cantarem em seus versos os

humilhados e ofendidos, os oprimidos e deserdados, o menor abandonado todos os

marginalizados pela sociedade capitalista.

AULAS- Eixo temático: Desenvolvimento

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TODAS AS VIDAS (Cora Coralina)

Vive dentro de mim

uma cabocla velha

de mau-olhado, acocorada ao pé do borralho,

olhando pra o fogo.

Benze quebranto.

Bota feitiço... Ogum. Orixá.

Macumba, terreiro.

Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho,

Seu cheiro gostoso

d’água e sabão.

Rodilha de pano. Trouxa de roupa,

pedra de anil.

Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim a mulher cozinheira.

Pimenta e cebola.

Quitute bem feito.

Panela de barro. Taipa de lenha.

Cozinha antiga

toda pretinha.

Bem cacheada de picumã. Pedra pontuda.

Cumbuco de coco.

Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim a mulher do povo.

Bem proletária.

Bem linguaruda,

desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa,

de chinelinha,

e filharada. Vive dentro de mim

a mulher roceira.

– Enxerto da terra,

meio casmurra. Trabalhadeira.

Madrugadeira.

Analfabeta.

De pé no chão. Bem parideira.

Bem criadeira.

Seus doze filhos.

Seus vinte netos. Vive dentro de mim

a mulher da vida.

Minha irmãzinha...

tão desprezada, tão murmurada...

Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:

Na minha vida – a vida mera das obscuras.

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CONCLUSÃO DO PROJETO E A MATRICULA DOS EDUCANDOS NA

ESCOLA FORMAL

A primeira versão do projeto terminou em outubro de 2005 e nos resultados

alcançados, conseguimos certificar 23 educandos que estavam em processo de

letramento. Desses somente 15 optaram por continuar os estudos na escola formal, os

demais não se matricularam. As últimas notícias que obtivemos deles é que 3 educandos

já estariam cursando o Ensino Médio, os demais desistiram por fatores dos quais não

consigo mais relatar.

Fizemos vários trabalhos fora do espaço da sala de aula, entre eles destacam-se:

aula passeio no assentamento Cupiuba, protestos em Belém contra atos de violência aos

trabalhadores, participação na caminhada pela paz que ocorreu no município de

Castanhal, reuniões da associação de moradores, entre outras ações.

Pontuo que o trabalho com a alfabetização de EJA foi um primeiro desafio em

minha profissão, mas que para enfrentar todas as dificuldades que surgem no meio do

caminho é preciso ter coragem e acreditar que mudar na educação é difícil, mas é

possível.

REFERÊNCIAS

CUT. II Caderno de apoio pedagógico para educadores. 2006.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa.

São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

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FOTOGRAFIAS