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O oS AMANTES DE SOTSCHI KONSALIK Era a primeira vez que montava uma mula e não sabia dizer o motivo que verdadeiramente a levara a deixar-se içar para a sela dura e puída. Os restantes membros do grupo de turistas tinham acolhido a mula com grande alarido e repentinamente surgiu também diante dela um desses pacientes animais, ao mesmo tempo que um homem de sorriso amável lhe dizia em mau alemão: - Gospoda, também montar? Assim que esboçara um aceno de cabeça, logo se sentiu levantada do chão e agora equilibrava-se em cima das costas da montada, que tremia ligeiramente. Pegou nas rédeas de couro que não sabia manejar e sentiu-se extremamente imbecil. O ruído das vozes à sua volta soava-lhe aos ouvidos como se fosse o zumbido de abelhas gigantes. "E aqui trotamos através da paisagem", pensou, "uma mula atrás de outra, deixando-nos levar pelo entusiasmo de podermos montar! ", Como se pode ser infantil, por vezes! Teria sido melhor ficar no hotel a contemplar o mar do terraço. Há já duas semanas que ali estava, isolada e recolhida numa busca contínua do seu próprio eu. Esta excursão à plantação de chá estatal dos Dagomys fora um erro; o riso das pessoas quase lhe provocava uma dor física. Olhou à sua volta e pensou se não deveria desmontar, renunciando a esta estúpida cavalgada para turistas. Contudo, já era tarde de mais para tal atitude. A coluna pôs-se em movimento, chefiada por um condutor com o traje dos camponeses Krasnodãrer. Algumas mulheres soltaram um gritinho quando os animais que montavam arrancaram subitamente; um homem gordo, em que ela já tinha reparado no autocarro devido às suas piadas estúpidas, exclamou com um agitar da cabeça ruiva: - Não se esqueçam do necessário apertão das coxas, meninas! E, depois, também a sua mula avançou e tomou lugar na coluna. Seguiram ao longo de caminhos estreitos e ladeados de bosques, atravessando os amplos e verdes campos de chá, e depressa chegaram a uma magnífica floresta que era atravessada por pequenos riachos brilhantes. O gordo, quatro mulas à sua frente, mostrava-se predisposto às cançÕes e gritou: - Todos: Porque é que no Reno é tão bonito... Três,

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oS AMANTES DE SOTSCHIKONSALIK

Era a primeira vez que montava uma mula e não sabia dizero motivo que verdadeiramente a levara a deixar-se içar para asela dura e puída. Os restantes membros do grupo de turistastinham acolhido a mula com grande alarido e repentinamentesurgiu também diante dela um desses pacientes animais, aomesmo tempo que um homem de sorriso amável lhe dizia emmau alemão: - Gospoda, também montar? Assim que esboçara um aceno de cabeça, logo se sentiulevantada do chão e agora equilibrava-se em cima das costas damontada, que tremia ligeiramente. Pegou nas rédeas de couro que não sabia manejar e sentiu-seextremamente imbecil. O ruído das vozes à sua volta soava-lhe aosouvidos como se fosse o zumbido de abelhas gigantes."E aqui trotamos através da paisagem", pensou, "uma mulaatrás de outra, deixando-nos levar pelo entusiasmo de podermosmontar! ", Como se pode ser infantil, por vezes! Teria sidomelhor ficar no hotel a contemplar o mar do terraço. Há jáduas semanas que ali estava, isolada e recolhida numa buscacontínua do seu próprio eu. Esta excursão à plantação de cháestatal dos Dagomys fora um erro; o riso das pessoas quase lheprovocava uma dor física. Olhou à sua volta e pensou se não deveria desmontar,renunciando a esta estúpida cavalgada para turistas. Contudo, jáera tarde de mais para tal atitude. A coluna pôs-se emmovimento, chefiada por um condutor com o traje doscamponeses Krasnodãrer. Algumas mulheres soltaram um gritinhoquando os animais que montavam arrancaram subitamente;um homem gordo, em que ela já tinha reparado no autocarrodevido às suas piadas estúpidas, exclamou com um agitar dacabeça ruiva: - Não se esqueçam do necessário apertão das coxas,meninas! E, depois, também a sua mula avançou e tomou lugar nacoluna. Seguiram ao longo de caminhos estreitos e ladeados debosques, atravessando os amplos e verdes campos de chá, edepressa chegaram a uma magnífica floresta que era atravessadapor pequenos riachos brilhantes. O gordo, quatro mulas àsua frente, mostrava-se predisposto às cançÕes e gritou: - Todos: Porque é que no Reno é tão bonito... Três,quatro. . . Contudo, ninguém juntou a voz à dele. Agora, o caminhoera a subir; os animais apressaram o andamento, quase iniciandoum meio galope; as mulheres soltaram exclamaçÕese ela também sentiu dificuldade em se aguentar na sela. Numa curva do caminho, aconteceu: um homem alto emagro desequilibrou-se da montada, rolou pela estrada e ficouestendido, de lado, junto a um arbusto, atordoado devido à

queda. O gordo ordenou com voz de trovão:

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- Parem todos! Algumas mulheres gritaram: - Stop! No entanto, dado que a mula que ia na frente continuou aandar, os restantes seguiram-na sem hesitar. A montada dela, porém, deteve-se com um solavanco. Ostrês turistas que seguiam atrás passaram por ela agitandoos braços; também eles gritavam debalde: - Pára! Pára! - Eu ocupo-me dele - gritou-lhes. - Fico aqui à espera. Desmontou cuidadosamente. O animal mantinha a imobilidade deum monumento e não lhe causou problemas. O homemcontinuava deitado junto do arbusto, de costas, tinha dobradoas pernas e apalpava-as com as duas mãos. A mula deleconservava-se ao lado, com a cabeça inclinada. - Karascho! - disse o homem com um riso um tantoforçado no momento em que ela se debruçou sobre ele. Passouas mãos pelos cabelos louros, após o que se sentou. Elaajudou-o, ao mesmo tempo que lhe amparava as costas. - Prastiti!Iswiniti sa bispakoistva... - Não falo russo. - Ajoelhou-se ao lado dele e examinou-o.Aparentemente, não estava a sangrar. - Mas falo inglês oufrancês. - Desculpe - repetiu, em alemão. Continuou a falar quasecorrectamente, apenas com uma pronúncia um tanto dura.Disse: - Desculpe o incómodo... O riso acentuou-se. Ela pensou, espantada, que ele tinhaolhos cinzentos. ."Cabelos louros e olhos cinzentos! Desconheciaque havia olhos cinzentos!", Uma estranha cor de íris...impenetrável, opaca. - Deu uma queda aparentemente perigosa - disse-lheela. - Deu, pelo menos, três voltas. - Rolei sobre o corpo - retorquiu, pousando as mãossobre as pernas estendidas e soltando uma risada juvenil. -Exercitei-me muitas vezes. Durante os treinos para pára-quedista.Não é engraçado? Uma pessoa aprendeu a saltar dealguns milhares de metros para o vazio, mas aqui no solocai-se de uma mula como se fosse um saco de batatas! - Miniasavut Boris Alexandrovitch Bubrov - acrescentou, sem se levantare com uma ligeira vénia. Não precisou de traduzir. Ela esboçou um aceno de cabeçae respondeu: - Chamo-me Irene Walther. - Irina, um bonito nome! A minha avó chamava-se Irina.Uma mulher maravilhosa. Jamais a esquecerei. O tipo de conversa sem dúvida superficial que naquelemomento travavam estava visivelmente a embaraçá-los a

ambos. - Magoou-se? - perguntou-lhe ela num tom mais alto doque desejaria. - Não sei. Os braços e as pernas estão no sítio. Apenas medói e sinto picadas no tornozelo esquerdo, quando mexo o pé. - Permite-me que o examine? - Inclinou-se sobre o pédele. - Sou médica.- Que sorte a minha! - exclamou Bubrov, erguendo aperna das calças. Usava peúgas de algodão finas e brancas ecalçava elegantes sapatos pontiagudos e de cor creme que deforma alguma pareciam provenientes de uma fábrica soviética,mas antes um produto italiano. - Uma médica da Alemanha.

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Pode perguntar-se de onde? - De Munique. Mais exactamente: perto de Munique.Uma pequena localidade junto ao mar. - Certamente romântica. - Muito romântica. - Moveu-lhe cautelosamente o pé,Bubrov soltou um ligeiro gemido e o joelho contraiu-se. IreneWalther largou-lhe imediatamente o pé. - Torcido! Nada degrave, mas doloroso e demorado. O tornozelo irá ficar inchado.Massagens com álcool e ligaduras apertadas. - E repouso na cama. - Seria aconselhável. - Nem pensar, senhora doutora! Não vim a esta paisagemparadisíaca para ficar na cama. E agora de maneira nenhuma! -Bubrov experimentou pôr-se em pé. Só o conseguiu com aajuda de Irene, que o agarrou por baixo dos braços. - Obrigado!Como vê, mantenho-me de pé. - O seu tornozelo irá castigá-lo imediatamente. - Eu castigá-lo-ei! Como é possível que ele queira irritar-me,agora que a conheci'? - Deu um passo, fez uma careta dedor e apoiou-se pesadamente no ombro de Irene. - Que traiçoeiroeste tornozelo! - Uma semana de cama! - Abandono o combate. Ajuda-me, senhora doutora? - Bubrov ergueuum pouco a perna esquerda e conservou-se nomesmo lugar, num pé só. Afastou da testa os cabelos louros edeitou um olhar de relance a Irene Walther naquele cenário defloresta inundada de sol. - E se tivermos o seu marido comoaliado... Ele também é médico'? - Sou solteira - retorquiu Irene Walther. - Não é verdade! - Se me permite! - Vive entre cegos? - Por favor! - Soltou uma ligeira risada, mas a rejeiçãotornou-se visível. - Não gosto dessas trivialidades. É capaz de voltar a subir para o seu burro, Herr Bultrov? - Bubrov. Mas peço-lhe que me trate muito simplesmente por Boris.

- Porquê'? Não vejo qualquer motivo. - Aqui na Rússia, as pessoas tratam-se pelo nome próprio e o nome do pai. Boris Alexandrovitch, portanto. Contudo, é extenso de mais. Por esse motivo, simplesmente Boris. Por favor! - Fitou-a com os olhos cinzentos, que conseguiam implorar como os de um cãozinho. - Nesse caso, também poderei dizer-lhe Irina. Dois cavaleiros voltaram atrás, o que a impediu deresponder. Eram empregados da plantação de chá oficial dosDagomys. Bubrov trocou com eles um breve diálogo, balouçou a perna esquerda e apontou para a Dra. Walther. - As suasexplicaçÕes pareceram convincentes; os cavaleiros riram, acenaram a Irene, viraram a garupa dos cavalos e afastaram-se agalope. - Não nos ajudam? - perguntou Irene surpreendida. - Porquê'? - O seu tornozelo! - Disse-lhes: "Está aqui uma médica, irmãos! Podem fazer mais do que ela? Estou nas mãos indicadas. Portanto, bom dia, camaradas." Consegue-se muita coisa com a delicadeza! - Não é possível! - retorquiu Irene, ao mesmo tempo que retirava a mão de cima do ombro dele e se dirigia até à sua montada.

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- O que tem em mente, Irina? - perguntou Bubrov. - Agora vou trepar para a sela, digo "Upa!", bato na ilharga do animal e espero que ele siga na peugada dosoutros. - Não pode fazê-lo, Irina! - E porquê, se me é permitido saber`? - É médica e tem aqui um ferido que precisa da sua ajuda! Como é capaz de se ir muito simplesmente embora? - Não está impossibilitado! - E de que maneira! Nem consigo mexer-me deste sítio. - Há minutos atrás a conversa era diferente. - Na sua qualidade de médica sabe perfeitamente que acondição de um doente pode agravar-se em questão de segundos.É um tornozelo torcido... oh, está fora do controlo da razão!Vivem-se surpresas... - Bem pode dizê-lo... - Voltou atrás, puxou a mula deBoris pelas rédeas e trouxe-a até ao lado dele. - Monte! -ordenou. - Ou está à espera de que o arraste até à casa dechá`? - Onde mora, em Totschi`? - perguntou Boris. Içou-secom dificuldade, rangeu melodramaticamente os dentes e soltou umsonoro `"Uff!," quando por fim ficou sentado na sela. - No Hotel Shemtschushina. - Confortável, confortável! - Foi-me indicado pelo Hotel Intourist - esclareceu friamente,ao mesmo tempo que trepava para cima da sua mula

e aguardava os acontecimentos seguintes. Para onde seguiriao animal? Atrás dos outros ou de volta à plantação de chá'? - É narealidade um belo e moderno hotel. - Eu sei: novecentos e cinquenta e oito quartos, praia privada,restaurante, bar, sauna, pista de dança... - E você'? - Eu tenho um quarto no Sanatório Saria. Por vinte e quatrodias. - Está doente? - retorquiu Irene, avaliando-o como olhar. Parecia-lhe a pessoa mais saudável que tinha conhecidona vida. - Isso seria exagerar. Estou aqui para recuperar forças. - Oh, céus! Nesse caso parece-me digno de compaixão!Foi por uma questão de fraqueza que caiu da mula? - Não troce, Irina! - retorquiu Bubrov, ao mesmo tempoque espicaçava o animal. Este emitiu um grunhido e começou a trotar ao lado deIrene. Ele sabia dirigi-lo, segundo verificou surpreendida. - Sou engenheiro! - prosseguiu. - Engenheiro hidráulico. Umaprofissão extenuante. Sempre ao relento. E imagine:um engenheiro hidráulico é enviado para Sotschi a fim de alireceber banhos e massagens debaixo de água. É quase perverso. Masbem mereço! - Cale-se, por favor! - observou ela bruscamente. - Agora estáa ser idiota. Ele aplicou uma palmada entre as orelhas do animal montado por Irene, que sepôs em movimento e começou a trotar de volta à casa de chá da plantação.A mula de Bubrov avançava mesmo ao lado da dela. - E você, Irina`? Como veio parar a Sotschi?' - Com uma excursão de turistas alemães.- Porquê precisamente Sotschi? Uma alemã decente da República Federal da Alemanha viaja até Maiorca, Ibiza,Torremolinos ou Tenerife. Mas até Sotschi, no mar Negrosoviético? Onde se dizem coisas tão terríveis sobre a Rússia: nada que

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comer, mau serviço, canalizaçÕes estragadas, por todo o ladoa improvisação... - O que está interessado em escutar neste momento`? Umelogio a Sotschi`?. - Não necessariamente. Amo a minha Rússia. Mas por que está aqui? - Por motivos pessoais - respondeu ela bruscamente. Queria estar sem muita gente alemã à minha volta... digamos para descansar. E agora tenho, no entanto, um alemão nogrupo que canta no mar Negro: Porque é que no Reno é tão bonito... - Soltou uma risada um tanto amarga. - Apesar de tudo, foram duas belas semanas. - E quanto tempo vai ficar ainda? - Mais sete dias. - Deus do céu! Só`? - exclamou Bubrov unindo as mãos

com força. A sua montada assustou-se e começou a trotar. A de Irene seguiu o exemplo. - Tanto que temos de fazer em sete dias! - Você vai repousar o tornozelo na cama! - Tenho uma proposta melhor: jantarmos hoje no RestauranteMagnólia. - Impossível, Boris. - Obrigado. - Obrigado porquê'? - Tratou-me finalmente por Boris, Irina.' - Vou esforçar-me por evitar tais deslizes., - O que a leva a ser tão brusca para mim, Irina? - Vim para Sotschi para estar só. - Mas eu sou um doente. Tem de cuidar de mim. - Há centenas de médicos em Sotschi. - Não confio em nenhum deles. Sabe perfeitamente comoé decisivo o estado psicológico do doente em relação ao processode cura. O meu tornozelo só se cura se for tratado por si.E, a concluir, conheço o meu tornozelo há trinta e cinco anos.Um tornozelo teimoso! - Veremos - replicou ela ao mesmo tempo que se firmavana montada. Os animais farejaram o estábulo e iniciaram ummeio galope. - Não acredito que seja capaz de ir ao Magnólia. - Mas estará lá'? - Sim. - Sou o homem mais feliz do mundo! - exclamouBubrov, erguendo os braços ao céu.

Durante o regresso a Sotschi viajaram sentados juntos noautocarro. O gordo, que pertencia à Câmara dos Pares, contavaos últimos mexericos. Os alemães dobravam-se de riso. Quemmais ia no autocarro para além deles esboçou um sorrisoembaraçado. - Fui educado a falar duas línguas - disse BorisAlexandrovitch. - Russo e alemão. A minha avó materna era naturalda Suábia. A inesquecível Irina. Amo a Alemanha, emboranunca a tenha visitado. Pedi nove vezes um passaporte e foi-mesempre recusado. Diz-se que sei de mais a respeito dosplanos da economia naval. É uma estupidez, visto que toda agente sabe onde construímos barragens. E também onderegularizamos o curso dos rios. Gostaria muito de conhecer o seupaís, lrina. Deve ser bonito. - É mesmo. Mas não há uma Sotschi. - Mas há um mar da Baviera junto do qual você mora. - Até hoje você não tinha a mínima suspeita da existência

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desse mar. - A voz dela soava brusca e fria. Bubrov olhou-ade lado e admirou-lhe o perfil, os cabelos de umcastanho-arruivado que lhe chegavam aos ombros e as linhas docorpo.

Em seguida, desviou o olhar e esboçou um aceno deconcordância. - É verdade. Contudo, hoje para mim a Alemanha é aindamais um país de saudade do que dantes. Em Sotschi ele desceu na paragem do Hotel Intourist, a fimde apanhar um autocarro para o Sanatório Saria. Pousoucuidadosamente a perna esquerda no chão e via-se que estava commuitas dores, mas não abandonou o sorriso. Portou-se com amaior coragem. - Aparece hoje no Magnólia`? - perguntou, apertandocom força a mão de Irene. - Mantenho as minhas promessas, Boris. - Vou meter o pé em gelo. - O mais provável é que os médicos do sanatório nãoo deixem sair. - Nesse caso não sabem quem é o Bubrov. Prendo umacorda na janela e desço. Acenou-lhe quando o autocarro se afastou. O ventodespenteava-lhe o cabelo louro e fazia-lhe inchar a perna dascalças. "Um indivíduo simpático,", pensou Irene Walther. "Muitodiferente do que imaginamos do russo no Ocidente. Como sãoequívocas as imagens com que vivemos e em cuja verdadeacreditamos. " Recostou-se no assento, escutando as piadas do gordo comose viessem do fundo de um poço e fechou os olhos, a fim de sedistanciar ainda mais do mundo que a rodeava. E inesperadamente sobressaltou-se. Já não estava sozinhaconsigo própria... Boris Alexandrovitch Bubrov estava juntodela com o seu riso, os olhos cinzentos, o cabelo louro onduladoe o comportamento juvenil. Uma pessoa que se tinha intrometidosem pedir licença na sua desejada solidão. A fim de o afugentar, voltou a abrir os olhos e contemploua costa protegida pelo quebra-mar, a maravilhosa praia pejadade cadeiras de lona e guarda-sóis coloridos, os bosques depalmeiras e os barcos brancos que deslizavam ao longo daságuas azul-escuras. Era uma paisagem espantosa, protegida dosventos agrestes pela cordilheira do Cáucaso Ocidental, umjardim em flor que só na região de Sotschi se estende por centoe quarenta e cinco quilómetros junto à costa do mar Negro. Uma bela e ricaregião, com gente amável e alegre a quem desagradava que se lhes chamassemrussos; queriam ser caucasianos. Apôs ter descarregado o gordo da Câmara dos Pares diantedo seu hotel, o autocarro regressou ao Hotel Shemtschushina.No gigantesco hall forrado de mármore, o recepcionistaestendeu-lhe uma carta. Depois de uma olhadela para o remetente,Irene Walther rasgou-a e atirou-a sem a ler para um cestode papéis. O recepcionista sorriu delicadamente, estendeu-lhe achave do quarto e perguntou-lhe num alemão duro:

- A plantação de chá agradou-lhe`? - Muito bonita. Obrigada. - Pegou na chave e subiu noelevador até ao décimo primeiro andar, onde se situava o seuquarto. Deitou-se no terraço na cadeira de lona, recostando acabeça para trás e contemplando o céu azul-claro. ," Não vou ao Magnólia", disse de si para si. "Não, não vou.

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Não quero mais. Gato escaldado de água fria tem medo. O quefaz um Bubrov nos meus pensamentos? Vim para aqui esquecer e nãotrocar um Hanns por um Boris..." Hanns Heroldt. A carta era dele. Como teria sabido que elaestava em Sotschi`? Longe de mais para falarem outra vezpessoalmente ou por telefone. Contemplou o mar banhado pelo sol e usufruiu a tranquilidadeque este momento lhe proporcionava. Uma linha doiradaassinalava o local da união entre o céu e o mar. "Tem um riso agradável", pensou. "É totalmente diferentedo Hanns. Simples e franco, escuta-se e vê-se-lhe o coração.Olha-se para dentro dele e sabe-se o que é a honestidade. " Boris Alexandrovitch Bubrov... Já nem o céu ou o maro afugentavam. Levantou-se de um salto, entrou no quarto e foi pôr-sediante do espelho. Mirou-se demoradamente. Em seguida, sacudiua cabeça. - Grande parva! - insultou-se em voz alta. - Estes setedias também vão passar. Levanta a cabeça; Boris também nãopassa de um homem! à noite estava sentada no restaurante feudal Magnóliacom um vestido de cocktail decotado, usando como adorno um colar com uma gemagrega e à espera de Bubrov. Sentia o coração a bater como se fosse umarapariguinha inexperiente. Surpreendentemente, Boris Alexandrovitch comportou-se de uma forma muito diferente do que Irene Walther esperara. Com o tornozelo envolto numa grossa ligadura, que estaria a condizer com um esquiador ferido num acidente, entrou a coxear na ampla sala de jantar, apoiado a uma bengala preta de cabo de marfim, e dirigiu-se ao empregado que pretendeu ajudá-lo com um sorriso severo: - Nada de compaixão, camarada! Não fui ferido emcombate, mas apenas caí de uma mula! Dirigiu-se à mesa de Irene, beijou-lhe a mão, o que também num estado socialista não era de espantar, e sentou-se. Vestia um fato cinzento-escuro de corte inglês, uma gravata moderna de Yves St. Laurent e uma camisa de seda a condizer. Nada? o diferenciava de qualquer industrial do Ocidente que ocupa o seu lugar no terraço do Hotel Paris em Monte Carlo. - Tinha razão, Irina - declarou com um suspiro.' - Em quê'? - riu ela gostosamente e sentindo-se bem com a presença e o comportamento dele. - Relativamente aos médicos. Queriam prender-me à cama.

Consegui, porém, subornar o guarda do quarto. E aqui estou. - Eu não me deixo subornar - retorquiu ela, rindo. - O que vamos comer? - Começamos com uma sopa de peixe, feita com barbos pescados há pouco. Em seguida, um schaschlik, que sabem preparar maravilhosamente neste restaurante. E ainda compota de morangos, ginja e ameixas. Como sobremesa, o famoso gelado russo. E o que vamos beber? Naturalmente, omaravilhoso vinho local caucasiano, tinto e radioso como se em cada copo houvesse um pedacinho de sol. De acordo? - Com tudo! - Mas que frase! - Referia-me apenas à ementa. A noite decorreu bastante calma. Bubrov comportou-se de uma forma correcta, falou da casa dos pais, do pai, que tinhasido gravemente ferido na guerra, das duas irmãs, que haviam procurado maridosbons e abastados, da mãe, que morrera há três anos de um ataque cardíaco. Efalou de si próprio, do seu trabalho em novos projectos de diques e no

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grandioso projecto de através do desvio de curso dos rios, transformar asregiÕes secas e de difícil cultivo do Cazaquistão em campos produtivos. Irene ouvia-o surpreendida e pacientemente. Quase se sentiaum pouco desiludida. Não se encontrava diante do encantadorBubrov, fazendo-lhe um cerco à feminilidade, mas de um espertoe realizado engenheiro que falava de si e dos seus planoscom justificado orgulho. Não se justificava de forma algumaum esboço de recusa a um impetuoso flirt para que se tinhapreparado - apenas precisava de o escutar e de se admirarcom a sua capacidade. - E você`? - perguntou Boris Alexandrovitch quando jánão sabia o que mais contar de si. - Como vive, Irina? - Só. - Isso é um enigma que não compreendo. Como médica,tem oportunidade... - Deixei de exercer. - O que faz, nesse caso`? - Trabalho na investigação. - Para uma companhia farmacêutica'? - Mais ou menos. - Estou a compreender. Vacina coelhos, porquinhos-da-índia eratos e observa como os pobres animais reagem àsdoenças ou aos medicamentos. Não seria capaz de um trabalhodesses. Sou doido por animais, Irina. Também jamais poderiaser caçador. Como é que é capaz de dar cabo com essas belasmãos de um coelho branco, de olhos azuis... - Não faço experiências com animais - interrompeu-obruscamente, como se quisesse evitar a todo o custo que eleficasse com uma má opinião a seu respeito. - Tenho umaespecialidade. - Ah, sim'? - retorquiu Bubrov fitando-a alegrementecom os olhos cinzentos. - Deixe-me adivinhar, Irina! Cancro!

Está a trabalhar na pesquisa contra o cancro! - Não. - Os nervos? Esclerose múltipla! - Também não. - Com os diabos! Dedica-se à genética'? - Não. - O que resta, então? - interrogou-se Bubrov, ao mesmo tempo que batia com a bengala na volumosa ligadura da perna. - às malditas "ferazinhas,", os micróbios, as bactérias e os vírus. É isso? Bactereologia'? - Mais ou menos - concordou Irene Walther, piscando o olho e erguendo o copo de vinho. - É assim tão importante`? Brindemos a esta bela noite, Boris. - Brindemos, sim. Contudo, gostaria de saber ainda mais coisas a seu respeito, Irina. Muito. Tudo. - Porquê? - questionou, ao mesmo tempo que sorvia um longo trago e fitava Boris por cima da borda do copo. "É simpático", pensou. "Neste momento um pouco acanhado e inibido, não sei porquê. Contudo, sinto-me contente com estes sete dias que me restam em Sotschi, depois de terem passado catorze em que me encolhi a um canto como se fosse um cão doente. " - Porquê? - repetiu ele. - Quando foi a última vez que se olhou ao espelho`? - Há uma hora. - E não lhe agradou`? - Pouco encontrei de excitante. Sou uma mulher. - Se isso não chega para alterar o mundo é porque entendi

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mal o princípio do velho Arquimedes. Tem um desgosto? - acrescentou Bubrov, inclinando-se na sua direcção. Ela estremeceu como se a tivessem esbofeteado e comprimiuos lábios.` - Não. Dou essa sensação`?, - Dá. - Que disparate! Na primeira semana tive dificuldade em' adaptar-me ao clima, na segunda percorri Sotschi de uma ponta. à outra e agora, na terceira semana, queria divertir-me um pouco. É então que aparece alguém que cai de uma mula.' É tudo. - E o que a atormenta'? - Nada. - Não tem talento para mentir, Irina. Basta olhá-la, o queos lábios dizem nada tem de importante. - Vou passar desde já a usar óculos escuros. - E o que pretende ocultar por detrás das lentes? Oh, soumesmo um teimoso incurável! Não tenho qualquer direito ainterrogá-la e, no entanto, é o que faço. Para mim, vocênão é uma pessoa que conheço há sete horas; é como se semprea tivesse conhecido. Ficou desiludida, Irina?

- Deixemos o assunto de parte - retorquiu ela. - O queme diz a um passeio pelo parque`? - Com o meu tornozelo neste estado? - Podia ampará-lo. - Experimentemos. Saíram da faustosa sala de jantar do Magnólia. Apoiado noombro dela e com a outra mão na bengala, avançou a coxearpelo parque iluminado por lanternas coloridas. Não demorarama sentar-se num banco colocado no meio de um grupo dehibiscos pejados de gigantescas flores vermelhas. - Vou passar a noite a dar fricçÕes com álcool - anunciouBubrov. - E amanhã daremos um passeio de barco aolongo de toda a costa de Sotschi. Dos Dagomys à propriedadeestatal Jushnyje Kultury. Alugarei um barco a motor. - É assim tão simples? - É. Acha que ainda vivemos na Idade da Pedra`? - retorquiuBubrov quase ofendido. - Esta arrogância ocidental! Oh,Irina! Nestes sete dias ainda tenho de lhe mostrar muita coisado meu país. Bubrov apanhou um táxi para a viagem de regresso aoSanatório Saria. Voltou a beijar a mão de Irene Walther eacenou-lhe pela janela, enquanto o automóvel se afastava. Elaficou a olhá-lo até os faróis traseiros desaparecerem numaalameda. Em seguida, dirigiu-se através da noite calma e cheia doaroma das flores até ao Hotel Shemtschushina e deteve-se algumasvezes diante de palmeiras e ramalhetes de flores, contemplandopensativamente as trevas. ",Será que, realmente, só nos conhecemos há nove horas`?",pensou. "O que há nele que faz com que não o esqueças ummomento que seja? É três anos mais velho do que tu, muito inteligente e educado, se bem que frequentemente muito directo. Tem olhos cinzentos, o que para ti é uma novidade. E cabelos louros, o que de forma alguma corresponde ao teu tipo. Nunca te interessaste por homens louros e também Hanns Heroldt tem este encanto do Sul, ainda que provenha dosgentios de Luneburgo. E agora surge um Boris Alexandrovitch Bubrov. Um russo! Precisamente um russo! Respira-se um pouco de loucura nestas paragens junto ao mar Negro!"

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Deixou-se ficar na praia privada do seu hotel. Para onde quer que olhasse, avistava casais de apaixonadosestreitamente enlaçados: na prancha de onde podia saltar-se para as águas fundas, junto às arcadas dos balneários e da esplanada. Por todo o lado. Por todo o lado o amor. Recolheu-se nas sombras da casa dos barcos, onde se guardavam os barcos a pedal, e sentou-se num banco de madeira. Mais sete dias e depois estaria de volta a Munique.Queimada do sol e repousada, como diriam os colegas. Contudo,

isso não passava de uma ilusão. A carta de Heroldt, que tinha rasgado sem ler, dava-lhe a entender que este período da sua vida não terminara ainda. Hanns Heroldt, o representante de produtos farmacêuticos com o estilo de vida do herdeiro de uma fábrica. O sedutor com um Jaguar de doze cavalos, o iate a motor ancorado no porto de São Remo e a casa do amor em Rottach, onde ela entrara sem saber que era a número 37. Até Heroldt ter cometido um erro decálculo: a número 38 já estava à espera dele, quando Irene Walther apareceu de surpresa para o fim-de semana. Percebeu nessa altura o significado de quando se diz que o mundo desaba. As ruínas tinham-na sepultado. Três anos da sua vida haviam desta forma perdido todo o sentido e era necessário apagá-los. Na realidade, HannsHeroldt afirmou que tudo não passava de um equívoco e inventou, -como sempre, uma série de mentiras, mas por fim elareconheceu que sempre havia sido enganada na sua boa-fé. "Ficar só", pensara. "De agora em diante ficar só. Podeviver-se perfeitamente sem ligaçÕes firmes. Há a profissão,que, se for tomada bastante a sério, pode tornar-se numarealização quase erótica, há as pequenas alegrias que nãoculpabilizam e existe acima de tudo a liberdade de se poder fazersempre tudo o que dá prazer. O mundo mantém-se aberto e quandoaparece um homem a falar de imbecilidades há sempre a hipótesede se lhe responder orgulhosamente: "Você é um homem,e como tal para mim a coisa mais insignificante deste mundo!"" Fora com essa ideia que tinha fugido para Sotschi, e porquatro vezes impedira de forma idêntica a aproximação dehomens, até que no hotel se espalhara o boato de que ela erauma estúpida alemã. Uma médica imbecil. Não era, por conseguinte,de admirar que se sentasse sozinha na sala de jantar auma pequena mesa junto à parede, como que rodeada por umaparede de vidro. Era essa a situação que queria e que lheagradava. E, no entanto, existia agora subitamente este BorisAlexandrovitch Bubrov.

Sete dias podem decorrer com a velocidade de sete fôlegos.Quando se é feliz, as horas esfumam-se, perdem-se no tempo. No dia seguinte, Bubrov apareceu no Hotel Shemtschushina. Poucocoxeava já e a imponente e grossa ligadura tinhasido substituída por uma meia elástica a proteger-lhe otornozelo. Ainda usava a bengala, mas balouçava-a descuidadamenteno instante em que Irene saiu do elevador. Vestia nesse diaumas calças de linho brancas, uma camisa de riscas azul-clarae na cabeça pusera uma espécie de boné de marinheiro. Sempreiam dar um passeio de barco. - O barco está pronto - exclamou ele alegremente, aomesmo tempo que dava o braço a Irene. - Chama-se Mietsch.

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A "espada"! E agora vamos trespassar o mar Negro como quecom uma espada. Tenho, além disso, uma surpresa a bordo. - Uma geleira com champanhe - riu Irene desdenhosamente. - Éassustadora a forma como os homens são parecidos em determinadassituaçÕes. - Está a ofender-me, Irina! Trouxe o meu bajan comigo. - Algum parente? - Um instrumento musical. Um acordeão. Toco muitomal, mas algumas vezes consegue reconhecer-se a melodia.E no mar ninguém me ouve e posso finalmente cantar porqueestou tão feliz. "Ele não tem juízo nenhum!", pensou Irene. ."Defende-te.Diz-lhe uma grosseria qualquer e abandona-o. Ainda estás magoadado último golpe e já queres abrir uma nova ferida?! Umrusso! Tudo isto não passa de um disparate!" Por volta do meio-dia passavam com o barco a motor dianteda costa de Adler com o seu imponente e novo hotel, o Gorisont,e a piscina forrada de grandes mosaicos coloridos. BorisAlexandrovitch pôs o seu bajan de lado e fitou Irenesilenciosamente. Até esse momento tinha tocado e cantado,enquanto Irene tomava conta do leme e mantinha o curso do barco aolongo da costa. - Você é um mentiroso! - comentou ela, evitando-lheo olhar. - Toca e canta maravilhosamente. Bubrov não lhe deu resposta, aproximou-se do leme,tomou-lhe a cabeça entre as mãos e beijou-a. De início, elamanteve-se rígida, mas em seguida deixou de opor resistência erespirou fundo. Apertou com força a roda do leme. - Agora, podes atirar-me pela borda fora - disse Bubrovno momento em que a libertou. - Suponho que és também um óptimo nadador - respondeu,engolindo em seco algumas vezes. - Nós somos doidos,Boris! - E porque havemos de ser os únicos sensatos destemundo? - Mais seis dias. E depois? - Espero que a Terra dure mais do que seis dias, Irina. - Boris! - Ela desligou o motor, o barco deslizou maisalguns metros e, em seguida, manteve-se a flutuar nas águasbrilhantes como um espelho. - Somos duas pessoas adultas enão propriamente estúpidas. Encontrámo-nos e daqui a seisdias separamo-nos novamente. Porque havemos de levar deSotschi um tal peso de alma? Sejamos amigos! - Amo-te. - Bubrov passou os dedos esguios pelo cabelolouro. Agora, ela já sabia que o fazia sempre que algo oentusiasmava ou também o preocupava. - É totalmente antiquado,Irina, mas amo-te. - Mas não temos futuro, Boris! - Foi ter com ele aoamplo banco a bombordo e sentou-se ao seu lado. Ele rodeou-lhe

os ombros com o braço, atraiu-a a si e beijou-lhe as fontese a testa. - Tu próprio disseste que nunca sairás da Rússia. - Também existe uma outra solução: vens tu viver para aRússia. - Uma impossibilidade tão grande como a outra. - Eu encarrego-me de convencer as autoridades. - Não é isso, Boris. A minha profissão... - Sem ti os teus micróbios ficarão virulentos. - Eu... eu estou incumbida de um importante trabalho deinvestigação - replicou irritada. - Nada de banalidades, por

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favor. Não posso sair da Alemanha. Não posso explicar-temais nada. - Beijou-o na face e rodeou-lhe a cintura com obraço. - Porque há-de ser Sotschi um motivo de sofrimentopara nós? Vivamos estes seis dias como bons amigos. Poderemosficar a corresponder-nos e manteremos uma belarecordação. - Isso chega-te, Irina? - perguntou tristemente. - Tem de chegar! A sensatez, Boris! - E se nos tivéssemos conhecido em Saint-Tropez? -. . . e tu te chamasses Jean Lebrun e fosses natural deGrenoble? Sim, tudo seria muito mais fácil. - Portanto, só porque sou russo... - Não te deixam entrar no Ocidente, Boris! Fazes parte deum sistema que exige uma total subordinação das pessoas.Sabe-lo perfeitamente. Manteve-se silencioso ao lado dela, acariciando-a, com osolhos fixos nas águas inundadas de sol e os dentes cerrados. - Temos de analisar todas as possibilidades, Irina. - observoufinalmente. - Não vou deixar que me roubem aminha felicidade. Não sou uma pessoa de frases imponentes,mas a verdade é que a minha vida deixaria de ter sentido setivesse de continuar sem ti... Nessa noite dormiram juntos pela primeira vez.

De tudo o que Deus foi capaz de oferecer de belo à natureza,deixou um pedaço em Sotschi: as palmeiras, ciprestes,oleandros, hibiscos e mimosas nesta costa de sonho do marNegro, as camélias e os plátanos nos jardins e parques floridos,as rosas perfumadas e esplendorosas durante o ano inteiro, osrepuxos e a música permanente escoando-se dos cinemas eteatros ao ar livre ou trazida do Riviera Park. Quem passeia porSotschi fica convencido de que de todos os lugares paradisíacosda Terra este é o mais belo. Boris e Irene sentaram-se no enorme teatro de estilo clássicode Sotschi e escutaram" a Ruslan e Ldjudmila, voaram dehelicóptero para Krasnaia Poliana, no Cáucaso Ocidental, ecomeram o típico schaschlik caucasiano na Estalagem Schatior.Regalaram-se com o forte vinho tinto, subiram os milmetros junto ao mar Riza, repousaram nas termas Gagra, no

Dendrarium, visitaram o Museu árvores da Amizade,detiveram-se junto à sepultura do grande poeta Nikolai Ostrovski,deixaram-se fotografar junto à enorme escultura dohomem brincando com um delfim, pararam um tanto oprimidosem Novorossisk, chamada "cidade dos heróis", com o seumonumento aos combatentes da península Malaia Semlia, epouco depois bebiam o melhor vinho no Restaurante ChishinsaLesnika, que significa algo como "Cabana do Guarda-Florestal", Seis dias de felicidade. Seis dias de sopro paradisíaco. Seisdias de um esquecimento desejado da realidade. Seis dias vividosapenas com o coração... Quando se encontravam diante do portão de embarque doaeroporto de Sotschi, com a bagagem de Irene já arrumada efora anunciado o voo número 123 com destino a Francoforte,conservavam-se de mãos firmemente dadas. Apenas se olhavam,retendo indissoluvelmente a imagem um do outro e sempronunciar palavra, porque sabiam: é o adeus definitivo. A última chamada. Já não restava tempo. A hospedeirarecomendava que se apressasse.

"Há dois dias, consegui um enorme êxito na minha investigação.

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Quase por acaso, como por acaso acontecem tantasdescobertas importantes. Desde então, tenho andado tão esgotadapor causa do trabalho que nem tempo me resta para meentregar à saudade. Só durante as noites é que é pior. Nessasalturas sinto a falta da tua respiração calma, do teu calor, domovimento dos teus membros quando te voltas durante o sono... Nãosabes quantas vezes e quanto tempo permaneci deitada ao teu ladoa observar-te, a forma como conheço exactamente os teus hábitos,a contracção do teu rosto enquantodormes, o esfregar inconsciente das solas dos pés... Oh, Boris!Estás sempre comigo. "Já marquei as próximas férias para Abril. Felizmente, épossível. O meu trabalho pode chegar a uma fase em que sereiindispensável. O pior está em conter a impaciência até poderver-te outra vez. "Amo-te, Boris. Talvez esteja a amar realmente pela primeiravez na vida. Não sei. Sei apenas que tudo o que sinto énovo e desconhecido, maravilhoso e infindo. "Sinto como me abraças... "Tua Irinaschka.,"

O Iliuschin da Aeroflot tinha sobrevoado a fronteira checaem Ostrava e tomava a rota de Praga, quando na sexta fila, nolugar da coxia, um homem se levantou e avançou lentamentepelo corredor. Era um homem discreto e delicado que beberaum copo de vinho e comera uns pastéis durante o voo e que aosubir para o avião, em Moscovo, tinha parecido um poucoacanhado e tímido como se aquela fosse a sua primeira viagem.

Vestia um fato cinzento, de bolsos cheios, abrira o colarinhoda camisa e a fralda da camisa saía-lhe um pouco dascalças. Atravessou o bufete com um passo calmo e colocou amão no puxador da porta que dava para a cabina da pilotagem.A hospedeira Ielena Nikolaievna dirigiu-lhe um sorriso amávele pôs-lhe a mão no ombro. - Não pode entrar aí, camarada. - Eu sei. Mas apesar disso vou entrar, irmãzinha. - Vai haver confusão. Por favor, o comissário Kaschlevrequer a máxima ordem. - Também eu! - riu o homem, como que num pedido dedesculpa. - No seu lugar, também me sentiria irritado. Contudo,não é possível evitá-lo. Empurrou a estreita porta de metal, entrou na cabina eesboçou um pequeno aceno de cabeça ao engenheiro de bordo,que estava sentado diante do complicado quadro de instrumentose observava os movimentos da agulha no painel de controlo. Oco-piloto virou a cabeça, deitou um olhar admirado aovisitante e disse pacientemente: - A casa de banho não é aqui. - Já lá estive e fiz o que tinha a fazer. Obrigado, camarada.- Meteu a mão no bolso, donde tirou uma pistola Tokarev,apontando-a entre os olhos do comissário de voo, quetambém se virara nesse momento. Tudo se processou sem pressa, sempalavras gritadas, sem dramatismo. Um homem entrana cabina, tira uma pistola do bolso e conserva-a na mão. Nadamais. - Você é doido? - balbuciou o co-piloto. Fez menção dese levantar, no que foi imitado pelo engenheiro de bordo, maso homem sacudiu a cabeça e apontou o cano da arma ao estômago dopiloto. - Não faça isso, por favor. Não é uma pistola de alarme e

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está carregada e pronta a disparar. - Meteu a mão no outrobolso do casaco, de onde tirou um objecto escuro e arredondadoque começou a rolar na palma da mão. O comissário comprimiu oslábios e ofegou. - Conhece perfeitamente o quetenho aqui, camarada! - prosseguiu o homem calmamente. - É umagranada de mão. Se explodir a esta altitude de dez milmetros e abrir um buraco na chapa, a pressão e a sucçãoproduzirão o efeito igual a como se todo o avião fosse umabomba. Um motivo suficiente para que troquem impressÕessensatas entre todos. E nada de pânico. Para quê? Somos todospessoas com cabeça. - O que pretende? - perguntou o comissário num tom devoz rouco. - Que se desvie da rota de Praga e faça escala em Munique. - Não! - ripostou o comissário num tom duro. - Então! Seja sensato, caro irmão. Como se chama? - Oleg Georgievitch Kaschlev.

- E você`? - perguntou o homem, ao mesmo tempo queapontava a Tokarev na direcção do co-piloto. - Iuri Nikolaievitch Vatlov. - Decerto tem mulher e filhos pequenos. Porque hão-deeles chorar? - Estamos em comunicação pela rádio com a torre de Praga. -Kaschlev apontou para um dos muitos instrumentos. - O pilotoautomático encontra-se regulado nesse sentido. Comovou justificar uma mudança de rota`? - Diga a verdade, caro Oleg Georgievitch. - Sabe o que acontecerá em seguida`? - Nada. - O homem soltou uma risada alegre. - O quefarão? Enviam a Força Aérea checa? AviÕes de caça? Apenasnos podem rodear como mosquitos e nada mais. Eu fico aquicom a minha granada de mão e despoleto-a se houver qualquercoacção do exterior. - Devo comunicar? - Por favor! - respondeu o homem, apontando como cano da pistola para o painel de instrumentos. - Mas primeiromude a rota, Oleg Georgievitch. Estabeleça ligação comMunique e informe as pessoas de lá da minha chegada. - Não tem por acaso um cartão de visita também? - retorquiu oco-piloto num tom de voz ligeiramente histérico. - Deixe-se de criancices, Iuri Nikolaievitch! Mas por quemotivo hei-de silenciar o meu nome`? Chamo-me BorisAlexandrovitch Bubrov. Não é segredo. O comissário de voo Kaschlev tinha aproximado o microfone daboca e estava a falar com a torre de controlo de Praga.Bubrov escutava interessado, mantendo a pistola apontada aVatlov e ao engenheiro de bordo. Na mão esquerda seguravaa granada. Kaschlev esboçou alguns acenos de cabeça, depois do quese recostou no lugar com um suspiro. - O que diz Praga`? - Manter a rota. Vão enviar caças. - O homem é realmente uma criatura estranha - observouBubrov, enquanto rolava a granada na palma da mão. - É tãoesperto e deixa-se abater pela sua estupidez. O co-piloto Vatlov deixou que o avião descrevesse umacurva larga. Pretendia que o raptor julgasse que estava a mudara rota, mas Bubrov riu indulgentemente e abanou a cabeça. - Deixe-se dessas graças, Iuri Nikolaievitch! O tempo écurto. Há que comunicar a Praga que existe um plano por fases

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de acordo com a boa tradição socialista. Primeira fase: se nãofor seguida a rota para Munique, abato em primeiro lugar ocamarada engenheiro. Segunda fase: você, meu caro e simpáticoIuri Nikolaievitch, tem de pagar pela sua estupidez.Terceira fase: também você, Oleg Georgievitch, não teriasalvação.

- E quem iria dirigir, nesse caso, o avião? - retorquiuKachlev num tom mais acalorado. - Ninguém. - Temos cento e setenta e nove pessoas a bordo! - Eu sei. - E também você não sobreviveria. - Calculei esse risco. E já não me assusta - respondeuBrubov, fitando o pálido engenheiro de bordo. Este pareciacomo que pregado ao assento, diante dos reluzentes instrumentosde bordo. - Dadas as circunstâncias, camaradas - continuou Bubrov-, porquê armarem inutilmente em heróis? Ficaassente: o Iliuschin não explode se fizerem o que vos disse, atripulação viverá, cento e setenta e nove passageiros viverão,tudo isso custará apenas umas horas de atraso, e um homemchamado Bubrov desce do avião em Munique. Valerá a penasacrificar tudo para o impedir`? - Bubrov apontou com a Tokarev.- Rota para Munique. Por favor, camaradas. Kaschlev rangeu os dentes, trocou umas breves palavrasmais com a torre de Praga e em seguida desligou. Foi cortadoo contacto com Praga para que se estabelecesse o contacto comMunique. Respirando ofegantemente, Kaschlev participou a invulgarocorrência e pediu autorização para entrar na República Federalda Alemanha e aterrar em Munique. - O que dizem eles? - quis saber Bubrov, quando Kaschlevinterrompeu bruscamente o diálogo. - Que podemos ir! - Mais nada? - Perguntaram se você é um louco. - E o que lhes respondeu, Oleg Georgievitch? - Que sim - disse Kaschlev, olhando através da janela.Os caças checos deviam estar a surgir. Não poderiam servir demais do que uma companhia até à fronteira. Este Bubrov nãose deixava impressionar com demonstraçÕes militares. - Devia terdado outra resposta? A porta escancarou-se. A bonita Ielena Nikolaievna espreitoupara a cabina. Tinha estranhado a mudança de rota. Abriu aboca como que para soltar um grito ao avistar o homem simpáticoe tímido que se havia sempre mostrado tão cortês, de pé eapontando uma pistola ao comissário Kaschlev. Vatlov puxou-abruscamente para dentro e fechou a porta. - E agora calma! - aconselhou Bubrov sem erguer avoz. - Nada de barulho, por favor, camarada. Nada acontecerá, setodos nos mantivermos calmos. Os passageirosnão precisam de saber o que está a acontecer aqui. Irão aterrare julgar que estão em Praga. Que aventura. Cento e setenta enove russos sem visto nem autorização na AlemanhaOcidental! - Terei... terei dificuldade... - disse Ielena num tom

queixoso. - Bebe um copo de água e controla-te - disse Vatlov eacariciou-lhe o rosto. - Não digas nada. Vou fazer umacomunicação de imediato.

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Ielena esboçou um aceno afirmativo, deitou mais um olharsurpreendido a Bubrov e saiu da cabina. Vatlov estendeu a mãopara o microfone de bordo e comunicou que iriam sobrevoaruma região de tempestades, e que era necessário apertar oscintos por causa dos poços de ar. A situação tinha o seu quê deestranho na medida em que lá fora brilhava um sol radioso e oavião voava muito acima do lençol de nuvens. No entanto, umpassageiro de bordo não pergunta muito, mas limita-se aescutar. - Como conseguiu passar a arma no controlo? - perguntouKaschlev. - O nosso sistema de segurança funcionaimpecavelmente. - Acredita na perfeição do trabalho do homem, camarada?Sou engenheiro e nesta profissão têm-se ideias construtivas.A granada de mão estava num salto de sapato desaparafusávele isolado contra os raios. Afivelei a pistola entre as pernas.O decoro proíbe que se apalpe nesse sítio. - E o que o leva a querer ir para a Alemanha tãoobstinadamente, Boris Alexandrovitch? - Se lhe contasse o motivo, iria considerar-me de facto umlouco. Falamos disso em Munique! - Lá estão eles! - exclamou Vatlov, apontando através dajanela. - Quatro caças. Sob o céu azul e inundado de sol quatro caças checosaproximaram-se do Iliuschin, manobraram e colocaram-se aolado. Kaschlev estabeleceu comunicação pela rádio. - Sim. Está tudo em ordem a bordo - disse. - Umacalma total. Nenhum pânico. Os passageiros ainda não sabemnada. Vou explicar o vosso aparecimento como se se tratassede um voo de treino. Sim, ele está ao meu lado... - Kaschlevolhou para Bubrov. - O capitão da esquadrilha quer falar consigo.Por incumbência do Governo checo. Bubrov agarrou no microfone, colocou os auscultadorese pôs-se em contacto. O oficial falou em inglês e Bubrovrespondeu-lhe na mesma língua. - Desista do seu propósito! - disse o checo. - Temosordem para não o deixar passar a fronteira. - Como tencionam cumprir essa ordem? - Obrigá-lo-emos a aterrar. - Terão de nos abater e haverá cento e setenta e novemortos. Já falou com Moscovo`? Este avião é soviético, meucaro. Um aparelho de um grande amigo irmão. Uma coisadestas não se abate tão simplesmente... Está a fazer um péssimobluff." - Estaria disposto a sacrificar cento e setenta e nove

pessoas? - Sim. - Quais são as suas condiçÕes`?' - Nenhumas. Só quero ir para Munique. - Mais nada? - Fica surpreendido? Não tenho quaisquer motivos políticos,não quero liberdade de expressão, não protesto contra quaisquer medidas, não tenho uma mensagem de salvação a anunciar, nem quero modificar o mundo. Só quero ir para Munique. - Um bilhete de avião teria ficado mais barato. - Diga isso a Moscovo. Recusaram-me um bilhete de avião. Mas sou individualista. Quero ir para Munique eportanto ' vou para Munique. Está a ver que é assim.? A comunicação foi cortada, os caças afastaram-se e

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desapareceram. Kaschlev dirigiu um arremedo de sorriso a Bubrov. - Assustou-os. Também se compreende. Porque não o deixaram sair, Boris Alexandrovitch?? - Porque estou incumbido de regular o curso dos rios, o que supostamente é secreto. E, no entanto, o resultado do meu trabalho virá indicado em todos os mapas. - Estamos a aproximar-nos da fronteira alemã - anunciou Vatlov gravemente. - Damos uma volta para que ainda tenha outra oportunidade de os convencer, Boris Alexandrovitch? - Você é um jovem simpático, mas estúpido, Iuri Niko laievitch. - Bubrov encostou-se à porta da cabina. - O que me acontece, se volto. Então? Fica calado! Por conseguinte,, agora só nos resta seguir em frente. Mantenha a rota para Munique, camarada!

A primeira e vaga informação enviada pela torre de controlo de Praga foi quase recebida com cepticismo. Pelo menos, atéo comissário Kaschlev ter dito com indescritível excitação: - Não compreendem? Fomos raptados! Ele tem uma pistola euma granada de mão e ameaça mandar-nos pelos ares.Cos diabos! Não se trata de uma graça de mau gosto. Ele está atrás de nós. Tenho o cano da pistola encostado à nuca. Exige a rota para Munique. Sim. Munique. Porquê? Talvez queira ir à Feira de Outubro. Sei lá! Aguardo ordens imediatas. O que se seguiu a estas palavras foi uma operação gigantescaque movimentou meia Europa. O Governo de Praga alarmou-se, oMinistério da Guerra enviou dois especialistas para atorre, o Kremlin mobilizou o estado-maior a que pertenciama KGB bem como o GRU, o Centro de Espionagem Militar.O estado-maior enviou um representante, a direcção da ForçaAérea apareceu em peso, em Praga gerou-se o alarme na ForçaAérea, cujo comandante se mantinha em contacto permanentecom o comandante das Tropas de Choque. Um avião de passageiros soviético é desviado? E ainda

por cima por um cidadão soviético? Sem indicação dos motivos`?Uma coisa assim não é muito simplesmente possível!Rota para Munique! Um dissidente? Como se chama? Bubrov`?Desconhecido. Certamente sem importância. Deve ser umlouco. O general da Aviação Ianik Trebic deu inicialmente a ordem paraque quatro caças levantassem voo. Fê-lo assumindouma responsabilidade pessoal, visto que de Moscovo apenas serecebiam respostas reservadas a todas as perguntas. O Iliuschinainda sobrevoava a região checa, mas tinha tomado uma rotaanormal: afastando-se de Praga na direcção da fronteira alemã,em seguida ao longo da fronteira novamente na direcção dePraga, descrevendo largas curvas sobre Pilzen e Eger - o queo comissário Kaschlev estava a fazer era uma jogada perigosa.ninguém sabia como o pirata do ar reagiria se desse contadestes truques. Curiosamente, ninguém parecia ter pressa em Moscovo.O estado-maior demorou, pelo menos, três horas até estarcompleto: há muito que o avião podia ter aterrado em Munique.O comissário Kaschlev não seria capaz de protelar aquela situaçãoindefinidamente. Entretanto, no gabinete do coronel SulfiIvanovitch Ussatiuk, da KGB, Departamento II, reuniram-se ogeneral do GRU Victor Borissovitch Butaiev e o general LeonidSimonovitch Masarov, do comando das Forças Armadassoviéticas. O coronel Ussatiuk tinha-os convidado, o que por sisó constituía uma situação invulgar. Mais surpreendente ainda

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era o facto de este estar ainda sentado a discutir com um copode vinho da Crimeia na mão, enquanto o Iliuschin ainda nãofora desviado, mas continuava a descrever curvas pacificamenteno céu soviético. A notícia do acto de pirataria chegou ao conhecimento deUssatiuk no preciso momento em que se criticava a política dosEstados Unidos no Irão e se considerava absolutamente necessárioa intensificação do papel de Cuba como posto avançado.O general Nasarov ficou surpreendido e corou. - Já está a começar entre nós`? - retorquiu, excitado. -Pirataria aérea! Instituiremos o exemplo. Pena de morte para ospiratas do ar. - Primeiro, era preciso apanhá-los - disse o coronelUssatiuk, soltando uma risada que Nasarov achou totalmentedespropositada naquela situação. - Também se pode pronunciar a condenação à revelia.Quem é o patife`? - Um tal Boris Alexandrovitch Bubrov. Engenheirohidráulico. - E`? - retorquiu Nasarov voltando-se na direcção do seucolega general do GRU. - O que se passa? - O avião aterrará em Munique - retorquiu Ussatiuk,deitando vinho no copo.

- Vergonhoso! Imaginem só o grito de Hurra! da imprensaocidental. Um avião soviético desviado. De que maneira irãoexplorar politicamente o facto! E acreditarão emtodas as mentiras desse maldito tipo. Os jornalistas voltarão aderramar o seu veneno e a colocar a opinião pública contra nóse de novo a União Soviética aparecerá como o inimigo daliberdade e da paz. É nojento! Porque está a sorrir, SulfiIvanovitch? O que o diverte assim tanto`? - A nossa embaixada em Bona já está avisada. Irá exigir aentrega de Bubrov na eventualidade de ele aterrar realmente emMunique. Contudo, arriscaremos tudo para que o avião nãoconsiga permissão de aterrar em Munique. Indicaremos o factocomo uma atitude desagradável que afectará as relaçÕes entreos nossos povos. Interviremos com todas as forças. - Muito bem. Nesse caso, Bubrov continuará no ar até seacabar o combustível do avião, que se verá forçado a aterrar.Num Estado com quem mantemos laços de amizade? - De forma alguma - replicou Ussatiuk num tom jovial. - E porque não? - As autoridades alemãs conceder-lhe-ão indubitavelmentepermissão de aterragem. Ele quer ir para Munique e porconseguinte assim será. Terá dificuldades com a justiça, mas nãoterá de recear a repatriação. Os humanos ocidentais dar-lhe-ãoasilo. - E faz essa afirmação tão calmamente, Sulfi Ivanovitch?E você, Victor Borissovitch, o que tem a dizer? O general Butaiev olhou por cima da cabeça de Nasarov nadirecção da parede onde estava pendurada uma reprodução dofamoso quadro Lenine Fala aos Trabalhadores. - Bubrov irá beijar a terra por mim em Munique - disse. - Raios! - exclamou Nasarov, surpreendido. - Desencadearemos uma tempestade de protestos - declarouUssatiuk gravemente. - E quanto mais celeuma se causar,melhor para nós. - Não compreendo - retorquiu Nasarov, fitando desesperadamenteos outros. - Serei assim tão parvo? - Deixemo-lo primeiro aterrar em Munique - replicou

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Ussatiuk, com um gesto que punha termo à conversa. - Muitacoisa depende da reacção das autoridades alemãs e docomportamento de Bubrov. Seja como for, é uma questãointeressante. O general Nasarov deixara de entender o que quer quefosse. Fumava, bebia e abafava a sua raiva patriótica.

O Iliuschin aterrou às 15 e 19 no aeroporto deMunique. Para todos os que observavam a aterragem tratava-se de umvoo normal, mas na torre de controlo notava-se uma visíveltensão; bloqueara-se o espaço aéreo durante um quarto de hora

para apenas se abrir novamente depois de o avião se encontrarno solo. O aparelho foi imediatamente evacuado da pista e dirigidopara uma parte reservada do aeroporto, rolando até ficar atrásdo hangar das cargas. Uma companhia de guardas de defesa dafronteira bloqueou hermeticamente esta área. Uma fila deautomóveis mantinha-se à espera como se tivesse aterrado umconvidado do Governo. Apareceram três representantes do Governo bávaro, acompanhadospelo chefe da Polícia de Munique e alguns agentes, ochefe do Comissariado Político, o director do aeroporto,funcionários dos Serviços de Defesa Militar (MAD) e dos ServiçosSecretos (BND). Nem sequer faltou uma ambulância e trêscarros de bombeiros com três médicos. Um grande aparato, mas eraaquele o primeiro avião soviético desviado para Munique eignorava-se se os piratas do ar soviéticos reagiam deforma diversa dos raptores normais. Tudo estava previsto. O comissário de voo Kaschlev desligou o painel de instrumentos.A hospedeira de bordo explicou aos surpreendidospassageiros que deveriam manter-se sentados nos seus lugares.A aterragem não se efectuara em Praga, mas em Munique. Nãohouvera avaria, mas tinha havido necessidade de um desvio derota segundo as regras internacionais. O voo para Praga iriaverificar-se com algum atraso. Pedia-se compreensão. Os passageiros soviéticos acataram a explicaçãodisciplinadamente. Só um inglês exigiu informaçÕes maispormenorizadas; foi ouvido com uma paciência russa até desistirde protestar. - Munique! - exclamou Kaschlev, apontando com umaexpressão severa para a pistola de Bubrov. - Realizou o seudesejo, Boris Alexandrovitch. E, agora, saia imediatamente domeu avião, antes que ainda me arme em herói! Pode abater-me, masneste momento há cento e setenta e oito pessoasque se encontram em segurança. Saia, seu porco! - Porque está tão excitado, Oleg Georgievitch? - retorquiuBubrov, metendo a granada de mão no bolso. - Tem duashoras de atraso no voo de Praga e nada mais. O que perdeu?Nada! Nem sequer a sua honra. Comportou-se de uma formaexemplar. Ainda receberá uma condecoração. Os meus parabénsantecipados. Lamento ver-me obrigado a separar-me de si. Ouviu levantar o trinco da porta e o ruído da porta a abrir-se.Uma escada foi empurrada e encostada a um dos lados doavião. Ielena Nikolaievna apareceu na cabina e começou atremer ao avistar a pistola de Bubrov. - Pode... pode descer, camarada... - gaguejou. Bubrov esboçou um aceno de concordância. Saudou com aarma levantada os três homens que se encontravam na cabina,deu uma palmada no ombro do engenheiro e disse ao co-piloto:

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- Agora, não chore ainda, por favor, Iuri Nikolaievitch! -

depois do que estendeu a mão livre ao comissário. Kaschlevignorou-a. - Um bom voo de regresso! - desejou Bubrov delicadamente. -Podem crer que vou ter saudades da pátria, camaradas ! Passou junto à hospedeira de bordo, abandonou o avião edeteve-se no primeiro degrau da escada. Olhou para baixo nadirecção dos homens que o aguardavam. Verificou um tantodesiludido que, aparentemente, a imprensa não fora informada.Não havia câmaras de televisão nem repórteres fotográficos.Apenas homens de expressÕes graves, vestidos com fatos emtons de cinzento ou azul. Os guardas da fronteira estavamdispostos num amplo círculo e com as metralhadoras aperradas.Quando descobriu a ambulância esboçou um arremesso desorriso. Desceu lentamente a íngreme escada de metal conservandoa pistola Tokarev na mão. Quando faltavam cinco degraus,parou, agarrou na pistola pelo cano e estendeu-a ao homem queesperava ao fundo da escada. O chefe do Comissariado Políticopegou na arma e passou-a aos que estavam atrás de si. - Ainda há mais uma coisa - declarou Bubrov no seuimpecável alemão. - Meteu a mão no bolso do casaco, deonde tirou a granada de mão. - Não é nada de novo. O modelovulgar. Desceu o último degrau, pisando nesse momento o soloalemão, e permitiu que um dos guardas da fronteira lheapreendesse a granada de mão. - Peço asilo político. - Por agora, está preso - declarou o comissário secamente. -Tem mais alguma arma em seu poder? - Não. Alguns agentes subiram a escada, a fim de examinar se tudose encontrava em ordem no avião. Não passaram da porta.Junto à mesma mantinham-se Kaschlev e o co-piloto Vatlov,semelhantes a dois anjos. O Iliuschin era região oficialsoviética, possuía direitos extraterritoriais e ninguém podiaentrar nele sem consentimento do comissário de bordo. - Tudo em ordem - declarou Kaschlev num tom irado. - Peço paralevantar voo imediatamente. Não existe qualquermotivo para nos deter aqui mais tempo do que o necessário.O meu Governo já protestou? - Naturalmente - responderam os agentes alemães numtom trocista. - Ficaríamos, no entanto, muito gratos se nospusesse ao corrente de como se processou o desvio. - Para quê? Bubrov quis vir para Munique e agora está emMunique. Agora, só as autoridades alemãs podem retardara continuação do nosso voo para Praga. - A esse respeito não há dúvidas - retorquiu um doscomissários sarcasticamente. Virou as costas e desceu novamente a escada. Se os soviéticos

não queriam cooperar, cada minuto representava tempoperdido. Bubrov viu-se no círculo dos homens que o rodeavam e riuembaraçado. - Qual dos senhores é a autoridade competente? - perguntou. - É um refugiado político? - replicou alguém de entre amultidão. Tratava-se de um funcionário do BND. - Não. - O seu embaixador em Bona já protestou veementemente.

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- É essa a sua função. - Não se protesta assim, quando está em causa uma pessoasem importância. - Espanta-me a importância que possa ter para o meu país. - Vamos de automóvel até ao edifício - decidiu calmamente ochefe da Polícia. - E quanto ao prosseguimento dovoo do avião soviético para Praga? - Pela minha parte, não vejo qualquer inconveniente. -comentou o director do aeroporto. - Podemos dar ordem paraque levante voo a qualquer momento. Desde que não existaminteresses mais elevados... osso muito duro de roer.,, pensou. "Logo se verá. Não operderemos de vista.."

O primeiro interrogatório numa sala isolada do aeroporto provou-se uma desilusão para quem esperava uma sensação. Um desertor da KGB? Nenhum portador de segredos? Um cientista importante, um oficial de alta patente, umespecialista ' em energia nuclear ou electrónica? Nada disso. Nada denada. Ali estava sentado numa poltrona de cabedal um homem com um ar desportivo, cabelo louro e olhos cinzentos, que afirmava ter trinta e cinco anos, ser engenheiro hidráulicode profissão, membro do Partido Comunista, condecorado umavez com o título honorífico de ' `Técnico Meritório daComunidade Russa", solteiro, com boa aparência, falando correcta mente alemão e inglês e razoavelmente francês - um soviético que não tinha qualquer motivo para abandonar a pátria comum golpe de mestre. Os membros das autoridades em causa estavam consternados, ainda que não dessema entendê-lo. O peixe grosso nem sequer era uma sardinha. O único dramatismo residia no acto. de pirataria. Contudo, também este fora executado num tomde conversa, delicadamente, acompanhado de desculpas pelosincómodos que se via obrigado a causar. Os juízos feitos tinham, sido diferentes. Bastava pensar em Mogadíscio ou nadinamita ção do avião da Lufthansa no deserto. Este russodesfazia os mistérios. - Mantém, por conseguinte, a afirmação de que mudou a rota do avião apenas por causa de uma mulher? - O funcionário do Comissariado

Político encarregado do interrogatório evitou a palavra `"desvio". Os conceitos generalizados confundiam-se neste caso. Ninguém tinha sido desviado a fim de, forçar algo, também não existiam reféns no sentido vulgar,o Iliuschin aterrara entretanto em Praga e todos ospassageiros tinham sido poupados. E, contudo, verificara-se um facto altamenteinsólito: um homem desejou ir ao encontro da mulher que amava e dado que não lhe concederam autorização de saída raptara um avião. Um desertor por amor. Um motivo suficiente para que osjornais e revistas especulassem durante semanas. Sob uma perspectiva política, o incidente nada revelava, àexcepção de que um soviético rompera a Cortina de Ferro. Bubrov esboçou pacientemente um aceno de concordância.Sempre as mesmas perguntas. É esse o truque de todos os queinterrogam: bater na mesma tecla com a esperança de que apessoa perca o controlo e diga mais do que o pretendido. Portodo o lado métodos iguais, quer na Rússia ou na Alemanha. - Sim - replicou delicadamente. - Por causa de umamulher. Sei que é difícil de acreditar. Entendo a sua

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desconfiança. Mas não posso confessar outra coisa qualquer: mudeia rota do avião para Munique por causa de uma mulher.Conhecemo-nos no Verão passado, em Sotschi. Já esteve alguma vezem Sotschi? Era evidente que nenhum daqueles senhores conhecia asbelezas de Sotschi. Bubrov dispôs-se a descrever o paraísojunto ao mar Negro, mas o comissário interrompeu-o com umgesto da mão. - Vai dizer-nos o nome da senhora? - Porque não? - replicou Bubrov com uma risada jovial. - Semela, nada disto teria acontecido. Também gostaria depedir-lhe que me levasse à presença dela o mais rapidamentepossível. - Bateu com a mão no bolso do casaco, onde senotava um volume. - Trouxe comigo dois mil marcos alemães. Nãosou um pedinte. E quero trabalhar na Alemanha.Aqui também existem rios, barragens e lugares costeiros... - Não é tudo tão simples como imagina. - Como assim? Julgo que me encontro num país livre! - Também temos as nossas leis, Herr Bubrov. - Mas nenhuma que impeça uma pessoa de trabalhar,presumo? Foi uma pergunta que não agradou a muitos. Além de quecontribuiu para que Bubrov surgisse sob uma outra perspectiva." Vejam só", pensaram os senhores. "Ele não é o estúpido queaté aqui parecia. Esta pergunta desmascara-o. Por detrás dafachada de inocente, esconde-se o cão de dentes arreganhados.Ele sabe exactamente o que o espera." - Tem, no entanto, consciência de que cometeu um actocriminoso? - retorquiu um membro do Governo. - Pôs emrisco a vida de cento e setenta e nove pessoas e ameaçou-as de

morte a fim de colher uma vantagem pessoal. São esses osfactos. - Seria menos condenável se tivesse dito: ",Quero sair daRússia, porque sou um ardente opositor do regime? Distribuípanfletos em Moscovo e na Sibéria e uma edição do Arquipélago deGulag"? Em que posição estaria? - Falando francamente: melhor do que agora. - Mas não posso nem quero mentir. Não tenho qualquermotivo para atraiçoar a minha pátria. Apenas queria vir ter comIrina. - E daí resultou um acto criminoso - observou o chefe daPolícia. - Se todos os que querem ir ter com uma senhoradesviassem um avião, onde íamos parar? - Aqui toda a gente pode ser livre - observou Bubrovcom uma expressão grave. - Contudo, a mim recusam-me aliberdade de ir ter com Irene. Não é uma questão política? - Num sentido lato. Num sentido muito lato... Era visível que se esforçavam por se mostrar solícitos paracom Bubrov, caso ele quisesse ainda transformar-se num desertorpolítico. De qualquer maneira, ele continuava a ser consideradoum "caso bicudo"; o protesto do embaixador soviéticonão deixava qualquer dúvida a esse respeito. Para os Soviéticos,Bubrov era um criminoso que devia ser extraditado. - Como se chama, então, a senhora? - quis saber o chefeda Polícia. - Doutora Irene Walther. - Doutorada em quê? - É médica. - Residente onde? - Em Steinebach, junto ao WÕrthsee.

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- Também sabe qual é o número de telefone? - Claro que sim - respondeu Bubrov, indicando-o. - Vaitelefonar a Irina? - Naturalmente. - Ela deve vir imediatamente. - Virá, sim. Vamos mesmo mandá-la buscar - declarouo agente encarregado do interrogatório, fitando o seu chefe,que lhe respondeu com um aceno de concordância. - Agora,vamos até à prisão. Ali, veremos. - Fico, por conseguinte, detido? - retorquiu Bubrovcalmamente. - Até que tudo se esclareça, encontra-se sob prisãocondicional, Herr Bubrov. Com base nos protestos da suaembaixada, o senhor é um caso melindroso que deve ser tratadocom o máximo tacto. Amanhã será o alvo da opinião pública.A imprensa... - E não se pode evitá-lo? Apenas desejo calma, meussenhores! Quero ir ter com Irina e nada mais. - Num país livre a imprensa também é livre - observou

o agente. - Por conseguinte, tem de submeter-se, Bubrov. Farão de si o herói do dia. - Não sou um herói. - Um russo fugido é sempre um herói. Contudo, tambémisso passará. - Espero bem que sim - suspirou Bubrov. - O que restaa um mundo em que amar é tão dificultado? Os homens riram delicadamente. Como era possível que sefosse tão ingénuo!

O automóvel da Polícia que estava incumbido de ir buscarIrene Walther a Steinebach regressou sem ela. Na pressa dointerrogatório tinham-se esquecido de perguntar se a Dra.Walther era uma médica em exercício. Não era, como agora seprovava. Os vizinhos apenas sabiam que ela saía de manhãnum VW-Golf' verde-claro e voltava à tarde. Onde trabalhava,em que hospital, ninguém sabia. Foram recolhidos dados mais exactos através da rádio.A Dra. Irene Walther trabalhava em Gauting, no laboratório depesquisas da firma Bio-Agrar. O nome era um disfarce; olaboratório era pertença do Estado e dependia do Ministério daDefesa. Contudo, ninguém o sabia, nem sequer a polícia deMunique. A Bio-Agrar ocupava-se oficialmente com a pesquisa debactérias vegetais ainda desconhecidas. Não se levantava aquestão do motivo de se necessitar de uma médica paraessa finalidade. Era demasiado o respeito com que se encaravaa ciência. Bactérias vegetais desconhecidas é coisa séria. A Dra. Irene Walther ficou muito surpreendida quando foichamada ao gabinete do chefe do laboratório e ali encontroudois polícias uniformizados que a olharam curiosamente. O Dr.Ewingk, que aos olhos do público não passava de um químico,encolheu os ombros à guisa de desculpa e disse em seguidacom uma expressão grave: - Querem vê-la, Irene. São da Polícia de Segurança Pública. Oque fez? Certamente não estacionou mal o carro? Ouserá que a sua beleza terá provocado um engarrafamento? Os polícias esboçaram um sorriso. Irene fitou-os perplexa. - Não faço ideia... - Nós também não, senhora doutora. O primeiro-sargento estava um tanto confuso. Parecia tercaído numa espécie de reino interdito: em muitas portas lia-se:

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`" Atenção! Perigo! Entrada proibida!.. Por cima de outras portasestava acesa uma luz vermelha. Nos corredores, que seassemelhavam a acessos de abrigos atómicos, lia-se: "Barragem I`.e "Barragem II". e "Danger - Perigo.". Um ambiente um tantoopressivo. - Apenas recebemos ordens pela rádio do comissariadopara que a levássemos - informou o primeiro-sargento. - Do comissariado`.' - repetiu Irene num tom de

descrença. - Deve ser um caso bicudo! - riu o Dr. Ewingk. - Do próprio senhor comissário. - Uma situação bastante invulgar, convenhamos - retorquiu o Dr.Ewingk, despindo a bata branca do laboratório. - Vouacompanhá-la, Irene. Contudo, ainda falarei primeiro comBona. - Mas nós só devemos... - começou a dizer o primeiro-sargentonum tom hesitante, sendo interrompido por um gestodo Dr. Ewingk. - Os senhores ignoram o que se trata. Esclarecerei o vossochefe de que estou autorizado a estar presente durante aconversa com Frau Walther. Esperem cinco minutos, porfavor. Dirigiu-se à divisão contígua, onde o ouviram telefonar,após o que regressou, esboçando um aceno de cabeçasatisfeito. - O ministério vai participar a minha chegada ao vossosuperior. Podemos seguir, meus senhores. Bubrov estava sentado no gabinete do chefe da Polícia,rodeado pelos indivíduos que o interrogavam, e falava-lhes dasua vida. Não era particularmente interessante. Qualquer dospresentes tinha, em comparação, vivido muito mais do que esterusso fugido. - Quando chega Irina? - perguntava ele incessantemente. - Já vem a caminho. - Como é que ela reagiu? Gritou de alegria? Ou chorou? - Ainda desconhece a sua presença aqui, Herr Bubrov. Nessa altura explicou-se a situação jurídica a Bubrov, foi-lhedito que o desvio de um avião por amor - de resto umanovidade na história da pirataria aérea - não justificavaatenuantes e que provavelmente teria de suportar também todos oscustos da acção que tinha levado a cabo. Só a taxa de aterragemem Munique era uma elevada maquia. - Pagarei tudo com o trabalho - retorquiu Bubrov numtom confiante. - Quando chega Irina? Quatro horas após a aterragem do Iliuschin em Munique, aDra. Irene Walther entrava no Comissariado da Polícia acompanhadapelo Dr. Ewingk. A imprensa já estava entretanto apar da notícia e aguardava a grande sensação. Ainda não sesabia nada de preciso; contudo, o mero facto de que um aviãosoviético fora desviado para Munique, que a embaixada protestarae que toda a situação tinha sido até então tratada como topsecret bastava para título de primeira página. Pelos serviços de imprensa da Polícia nada se descobriu, e aadministração do aeroporto limitou-se a declarar que um aviãode passageiros soviético "fizera escala,? em Munique, mas jáhá muito que levantara voo novamente - também isso pareciaum facto inocente, que deixava antever uma história sensacional.

Dado que ninguém sabia, porém, que uma mulher tinhaa ver com o assunto, os jornalistas deixaram que Irene Walther

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e o seu companheiro transpusessem a entrada calmamente. - O que se passa afinal? - perguntou imediatamenteo Dr. Ewingk, depois de ter cumprimentado o representante dochefe da Polícia, que estava na sala de espera. - Já lhe disseramque... - O Ministério da Defesa telefonou. Contudo, não é umaquestão de serviço, mas particular. - Não tenho nada a ver com a Polícia - replicou Ireneenergicamente. - Neste caso a Polícia também apenas serve de intermediário -riu o agente. - Acompanhe-me, por favor. Ele abriu a porta. De início, Irene só avistou um grupo dehomens que fumavam e bebiam água mineral, mas em seguidaouviu um grito que quase lhe fez parar o coração. - Irina! Moj drug! Irina. Um homem levantou-se de um salto, ergueu os braçose atirou-se para diante. Fez-se uma névoa repentina na suafrente e sentiu que o Dr. Ewingk a apoiava. - Boris... - balbuciou, ao mesmo tempo que os músculosdo rosto se lhe contraíam. - Meu Deus! Boris! Estás aqui! Boris chegara junto dela, abraçou-a fortemente, beijou-lheas faces e as pálpebras e tornava-se comovente observar comotinha os olhos cinzentos cheios de lágrimas. - Eu... eu disse-te que viria ter contigo! - arquejouBubrov. - Não podem agarrar-me, não podem prender-me.Sem ti não havia vida, Irina. Fiz uma coisa horrível para estarao teu lado... - O motivo podia ser bem claro - declarou jovialmenteo homem do BND. - Um rapto por amor. Nada de político,meus senhores. Trata-se pura e simplesmente de um actocriminoso.

Decorreram mais três horas antes que libertassem BorisAlexandrovitch; teve primeiro de ler e assinar o relatório dointerrogatório. Irene Walther responsabilizou-se de imediatopor uma morada fixa ao seu lado. Ficou sob controlo policial erecebeu uma licença de permanência limitada. O Ministério doInterior bávaro teria de considerar com que base rejeitar oprotesto soviético. A imprensa foi informada do momento em que IreneWalther e Bubrov saíram do comissariado. As máquinas fotográficasdispararam, e puseram-lhes microfones na frente. Irene Walthersacudiu a cabeça, mas Bubrov, amável como sempre e feliz como umgaroto, rodeava a cintura de Irene com umbraço e afirmou despreocupadamente: - Sim. Desviei um avião. Queria vir ter com Irina. Não,nenhum outro motivo. Amo a Irina... não chega? Se me tivessem

concedido a autorização para viajar, nada disto aconteceria.Sinto-me feliz por estar na Alemanha. As pessoas sãotodas simpáticas aqui. - Isso irá mudar - retorquiu um dos jornalistas secamente. -Espere e verá. Afastaram-se velozmente no GoIJ de Irene, na direcção deWÕrthsee, até Steinebach. Atendendo às circunstâncias, o Dr.Ewingk concedera dispensa a Irene para os próximos dias. - Mantenha-se escondida - dissera. - Não terá um minuto desossego. Dentro de duas semanas tudo estará esquecido, mas atélá, vai ter de desaparecer com o seu Boris. No quese refere ao controlo da Polícia, tratamos de tudo com oministério.

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Em Steinebach, Irene preparou rapidamente uma pequenamala, enquanto Boris se conservava de pé, à janela da casa,olhando para as montanhas e parecendo um rapazinho a quemtivessem oferecido uma prenda. - Que bonito! - não se cansava de repetir. - Quebonito! Ao cair da noite já se encontravam numa pensãozinha emReit im Winkl e chamavam-se Heinemann. Bubrov usava umbigode postiço e Irene pusera uma peruca loira. Seria impossívelreconhecê-los através de qualquer fotografia. Ouviram o último noticiário em que foi divulgado o desvio doavião por amor. Deixaram-se ficar sentados em frente do televisorda pensão, rindo furtivamente e ansiando pela noite próxima Os jornais do dia seguinte vinham cheios da "Fuga porAmor,". Dado que politicamente nada havia a comentar, tudo seconcentrava na recusa da autorização de sair e mais uma vez secensurou a "desumanidade do sistema soviético". "O amor nãopode ser punido!", escrevia um jornal e divulgava o acordo demilhÕes de leitores. ."Quando os contos de fadas são realidadena nossa época, as autoridades não podem destruí-los.Bubrov não é um criminoso. É o príncipe encantado modernoque superou os obstáculos para ir ao encontro da suaprincesa...

Em Moscovo, o coronel Ussatiuk e o general Butaiev, doGRU, estavam sentados novamente na sala do Departamento IIda KGB e bebiam uma garrafa de Krimsekt com uma expressãosatisfeita no rosto. O general Nasarov conservava-seostensivamente um tanto afastado. Tinha chegado há cinco minutos,após ter finalmente descoberto toda a verdade. - A imprensa da Alemanha Ocidental é um espanto! - observoucontente Ussatiuk. - O bom Boris Alexandrovitchconvenceu-os e agora está totalmente embebida com uma históriacomovente. O herói do amor. Jamais se libertará destaauréola. O que se quer mais? Um golpe de mestre. É a primeira vez

que temos do outro lado um homem sem disfarce.A ideia do desvio do avião foi única, e preciosa. - E quem teve a ideia do avião? - perguntou o generalNasarov. - O próprio Bubrov! - respondeu Ussatiuk, esfregando asmãos. - Boris Alexandrovitch é um dos meus melhores homens. -Ergueu os olhos para o general Butaiev, do GRU. - Quando VictorBorissovitch nos participou que Irene Waltheria para Sotschi, logo Bubrov foi escolhido para tratar do caso.A maneira como caiu do burro: simplesmente maravilhosa!Donde recebeu, de facto, a informação, Victor Borissovitch? - Refere-se à maneira como chegámos a Irene Walther? - retorquiuo general Butaiev. - Um dos nossos homens tinha-nos revelado queela trabalha no departamento de pesquisa eaperfeiçoamento de armas B e C. - Butaiev acendeu um grossocharuto e deteve-se a olhar pensativamente os anéis defumo. - Ocupa-se dos objectos B, as bactérias! Uma silenciosamorte de milhÕes, se estes micróbios fossem soltos através deuma bomba. A nós interessa-nos quais as bactérias que sãocultivadas ou preparadas em Munique. Para nós, Irene Waltheré uma mulher muito importante. - E acredita que Bubrov a faça quebrar? - perguntouNasarov num tom duvidoso. - Sem dúvida! Se alguém é capaz, esse alguém chama-se

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Boris Alexandrovitch! - riu Ussatiuk. - Tenhamos um poucode paciência, camaradas! Se o truque do avião resultou, paraque pôr em dúvida o potencial de Bubrov? - Ergueu o copo,num brinde longínquo e riu novamente. - Muitas felicidades,Boris Alexandrovitch! E, agora... faz amor, camarada!

Tanto em Moscovo como em Munique tinham-se feito oscálculos certos: o "par romântico do ano", o "pirata doamor". o "príncipe por detrás da Cortina de Ferro" e os demais títulosconcedidos a este aventureiro - decorridas duas semanastambém esta história perdera o impacto da novidade. As tentativas de localizar o par escondido haviam saídomalogradas e por conseguinte os jornalistas tinham inventadouma história romântica com muita "alma russa". Bubrov sópodia estar certo e a sua inocência foi exaltada e documentadavezes sem conto. Já que todo o mundo acreditava em históriasde fadas, também as autoridades não desconfiariam. Para Irene Walther o reencontro com as pessoas do seumeio parecia-lhe doloroso. Pensava com um aperto no coraçãosobre o que iria acontecer depois das semanas do jogo dasescondidas. Temia acima de tudo o seu regresso a Steinebach.Ali, tornar-se-ia a heroína local, todos sentiriam com ela e lhedesejariam felicidades. E principalmente surgiria a curiosidadesobre este russo, este príncipe destemido, que desviara pelaprimeira vez um avião soviético para o Ocidente - e ainda por

cima apenas por amor! Quando os jornais noticiaram que seriapunido por isso, ergueu-se um clamor em toda a República Federal da Alemanha. Aspáginas dedicadas às cartas dos leitores abarrotavam deprotestos. - óptimo! - exclamou o coronel Ussatiuk. - Isto excedeas minhas expectativas! Acertámos nos nervos dos Alemães. E Bubrov dizia a Irene, quando, como fazia todas as manhãs, liaos jornais e as revistas: - Isto irá causar mágoa em Moscovo. O meu acto serviráde sinal. De futuro, passarão a ser mais generosos quando setratar de autorizaçÕes para viajar. - Afastar-nos-emos de Steinebach - declarou Irene subitamente.Estava sentada na pequena varanda de balaustrada demadeira da pensão, rodeada pelos jornais abertos. - Mas porquê, minha querida? - Surgirás ali como o fenómeno que todos quererãoconhecer. - Isso acabará por passar. Quando todos me tiverem visto.também me tornarei monótono. - Ainda tens o processo na tua frente. Os jornais nemsequer tocaram nisso. - Contudo, depois tudo ficará calmo. E poderemos viver,Irinashka... Bubrov foi ter com ela à balaustrada da varanda, inclinou-sesobre o seu corpo, acariciou-lhe os seios e beijou-lhe a nuca.Sentiu um estremecimento de alto a baixo. Nela existia umapaixão que já não tinha controlo possível. Agora, sabia pelaprimeira vez com todas as fibras do corpo o que pode ser oamor. Já não contava os dias mediante uma sequência de horas, masde abraços. Já não existia tempo e também muitasvezes nem espaço - apenas contava a proximidade dele, a suaternura, a sua posse e a sua realização. Jamais suspeitara quepudesse haver uma entrega tão absoluta. - A União Soviética vai expatriar-te - disse ao mesmotempo que se descontraía sob as suas mãos acariciadoras.

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- Era o melhor que podia fazer. - Nesse caso, ficas apátrida, Boris. - Nacionalizar-me-ei alemão. - Não é assim tão simples. - E se casarmos? - Também não. - Só quero trabalhar, viver contigo e ser feliz. Porque sedificultam tanto as coisas simples? - Nesse caso tens de perguntar quem são os responsáveispelas leis.

Ficaram três semanas em Reit im Winkl, passearam imenso.passaram horas a fio nas pastagens alpinas, refrescaram-se nosregatos claros e frios das montanhas e amaram-se nos prados

floridos ou nas medas de feno. O Dr. Ewinãk telefonou duas vezes. Participou que a Embaixadasoviética tinha apresentado uma proposta formal deextradição - um novo e bom truque de Ussatiuk! - e quenão se estava preparado para satisfazer o pedido. Podiamesmo suceder que se considerasse a fuga de Bubrov comodesejo de asilo político - e nesse caso talvez não houvesseprocesso. - O que quer que façam, é-me indiferente. Só se tiver devoltar para a Rússia é que me suicido - declarou Bubrovcalmamente. - Sei o que me espera do outro lado. Irene telefonou imediatamente ao Dr. Ewingk e contou-lheo que Bubrov lhe dissera: - Peço-lhe, por amor de Deus, que faça tudo para que lheconcedam asilo político - implorou. - Caso contrário vaipara um campo de trabalhos forçados na Sibéria. É um motivo.não é? Se isso não bastar...

Passadas três semanas, regressaram a Steinebach. Contudo.Bubrov seguiu imediatamente viagem para Munique e alugouum quarto numa pensão em Schwabiná. Por conselho do Ministériodo Interior, devia ?,ser afastado da circulação?,. Erapreciso tempo para ganhar. Foi uma coisa que Bubrov, na qualidade de russo, logoaceitou. O tempo é o nosso amigo - este é o décimo primeiromandamento para qualquer russo. O tempo ajuda a que muitosproblemas se solucionem por si próprios.

Irene Walther fez esperar os seus concidadãos em WÕrthseee os repórteres: mais tarde estariam sempre a tempo de apertara mão a Herr Bubrov. Voltara a retomar o seu trabalho nolaboratório Bio-Agrar. Bubrov passava a maior parte do dia noquarto e lia livros alemães sobre engenharia hidráulica ou deficção científica. à tarde foi comer ao restaurante local de Schwabinger,discretamente como sempre, e riu intimamente ao reconhecer oagente que era a sua sombra negra e que sempre consumia umacerveja e um cachorro-quente pagos pelo Estado. Havia quemoderar despesas. Apesar da vigilância conseguiu fazer um telefonema,quando foi à casa de banho. Foi um breve diálogo comBruxelas. Ali, encontrava-se sentado, num moderno gabinete, o importadorde fruta Harrelmans, que se alegrou ao escutar a vozde Bubrov. Chamava-se, de facto, Michail Iefimovitch Orlovski edetinha a patente de tenente-coronel do GRU. Era o

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chefe do departamento principal no Ocidente: pela sua firma defrutas passavam os contactos da espionagem militar soviéticada Europa Central. - Finalmente! - exclamou Harrelmans-Orlovski. - Nãose pode ficar permanentemente ao lado de uma mulher. - Só agora me foi possível telefonar. - Onde está? - Em Munique, Schwabing. - Bubrov indicou a morada. - Aindaestou sob vigilância. Despache-se Michail Iefimovitch, senãoninguém irá acreditar que ainda estou na casa debanho. - O seu contacto é A Cinco. Peter Hammerling. Ele irá terconsigo. O código é "Franz-Josef... - Muito engenhoso. - É um homem de humor, Boris Alexandrovitch. Quandopodemos contar consigo? - Preciso de tempo. Primeiro preciso de ser completamenteilibado. Eu comunico. Fim. - Muitas felicidades, Franz-Josef - desejou Harrelmans-Orlovski - e desligoucom uma gargalhada.

O aGente da Polícia Continuava sentado pacientemente atrásda sua cerveja e sentiu-se cOntente Quando Bubrov saiu doreStaurante e reGressou à pensão. Nenhum acontecimento especial. Tinha comido uma sopade almòndegas e um assado tirolès e bebido duas cervejaspEQUEnas. CinQuenta pENiX dE Gorjeta. Duas horas depOis Irene cheGou para dormir com Bubrov.Tinha passado três dias sem ele. sem a sua ternura. sem a sua" mão. Quase não aGuentara. és dOida, dissera de si para si. . Mas é uma loucura

maravilhOsa. De Que nunca me Quererei curar. Que sou eu semBoris.'?? Ele recebeu-a de braços abertos ao vê-la irromper pelo Quarto,levantou-a do chãO e levou-a para a cama.

CheGOu o Inverno. O processo contra Bubrov tinha sidoarquivado. tanto mais Que também a Embaixada soviética emBona não parecia rejeitar a ideia de deixar cair o caso numdoloroso esQuecimento. O facto de a União Soviética nadapoder Fazer relativamente ao desvio de um avião era umreconhecimento amarGo Que não Lhe devia aGradar. Eram essastambém as únicas reticências do coronel Ussatiuk; contudo,havia Que ceder um ponto para se introduzir um Bubrov naCentral da Investigação B e C. Mesmo assim, Moscovo ainda levou a efeito um peQuenoacto de dramatismo que de facto serviu para enGrandecer BorisAlexandrovitch aos olhos do Ocidente: expatriou Bubrov.Dado que Bubrov não era um escritor, mas apenas um insiGnificanteenGenheiro hidráulico, teve a sorte de não ter decolocar-se ao abriGo de um "alardoado alemão do Prémio Nobel;podia ficar a viver com Irene Walther e foi finalmente paracasa dela em Steinebach. Durante duas semanas Boris Alexandrovitch circulou pelolocal, bebeu café na villa de um milionário de tèxteis e comeufondue de Queijo no chalé de um conselheiro de economia suíço.Passeou num barco à vela e teve oportunidade de provar ogrelhado de um dos grandes tenores de Wagner da nossa época.brincar com os cães dele e escutar árias de óperas russas. Onde quer que Bubrov se deixava ver, causava sensação.

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O grande tenor de Wagner, com toda a experiência mundana queo caracterizava, expressou a sua opinião no círculo dos amigos: - O indivíduo é demasiado transparente para o meu gosto! -disse. - Toda a gente tem artimanhas, o que visivelmente nãoacontece com ele. Não posso impedir-me de afirmar que medesagrada. Dado que só raramente se tomavam a sério as opiniÕes detenores, ainda que fossem famosos, logo se esqueceu esteincidente. Bubrov, porém, não voltou a ser convidado pelo cantorde música de câmara. Festejaram o Natal em Garmisch. Os olhos de Bubrovhumedeceram-se de lágrimas quando se cantaram as velhascançÕes de Natal alemãs, quando cheirou os doces e os fritos,e provou broa de mel pela primeira vez na vida. - Não te posso oferecer nada, Irinaschka - disse numtom triste. - Não tenho nada, sou um homem pobre, semtrabalho nem pátria... - Estás aqui - interrompeu-o cheia de felicidade. - E isso éum presente inestimável. Entre o período do Natal e do Ano Novo um electricista dos

Serviços Municipais foi a casa de Irene verificar a segurançadas instalaçÕes eléctricas. Estas encontravam-se na cave eBubrov acompanhou o electricista. - Chamo-me Peter Hammerling! - disse o homem. - AsinstalaçÕes estão em ordem, Franz-Josef? Bubrov mediu o electricista com o olhar e esboçou umaceno de concordância. "É este portanto o A 5. Um homemnovo e de grandes olhos castanhos. ?. - A luz brilha sem incidentes - declarou Bubrovcalmamente. - Não é o que se ouve dizer... - Tinha pedido tempo. - Já lá vão quase cinco meses. - Quatro! - Tem de haver uma boa luz. - Primeiro têm de fazer-se as ligaçÕes. - Quando? - No próximo ano haverá mais luz. Quando Bubrov subiu novamente ao andar de cima, apresentava umaexpressão fechada. - Alguma coisa que não está bem? - perguntou Irene. - Com a luz, tudo certo. - Bubrov hesitou e em seguidanão se conteve: - Tem de acontecer algo, Irina! Assim nãopode continuar. O andar por aí, à espera, à inutilidade, àcaridade! - Boris! - Voltei a escutar o que as pessoas pensam. O electricistaperguntou-me: "Ainda está sem trabalho? A construção navaltalvez esteja fora de questão, mas o senhor é engenheiro! Hámuitas oportunidades..." É assim que as pessoas me vêem:como um parasita que só vive do teu trabalho. A situaçãoarrasa-me os nervos, Irinaschka. Desculpa-me. - Vou falar com o doutor Ewingk - prometeu Irene, surpreendidacom a explosão de Boris. Era a primeira vez que elese tinha pronunciado. - Para que posso servir no laboratório? - Ewingk conhece muita gente. Há certamente qualquercoisa em que te ocupares. - Vocês fazem pesquisas no campo da economia agrária.Não há qualquer departamento que esteja ligado com condutas

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de água? - Não. Apenas com a química da água. - Já é alguma coisa. - Trata-se de projectos de um pequeno grupo de trabalho.Não há nada a fazer. - Querem melhorar a água? - Não se sabe exactamente - respondeu-lhe num tomevasivo. - Continuo sem entender o que é que, na tua qualidade de

médica, tens a ver com as bactérias vegetais. - Investigo o efeito nas pessoas. - Ah! Era a primeira vez que ela lhe contava um pormenor do seuâmbito de trabalho. Bubrov comportou-se como um vulgar leigo;fez uma expressão de quem entendia muito pouco do assunto. - Há bactérias infernais - prosseguiu. - Bactérias quemal se conhecem porque foram criadas pela primeira vez.Conseguem despovoar regiÕes inteiras. - Agora, estás a exagerar! - riu Bubrov e sacudiu a cabeça.Dirigiu-se a uma cadeira onde se deixou cair e tirou umabroa de uma lata redonda. - Na era dos antibióticos as bactériasjá deixaram de oferecer perigo. - Os antibióticos já não servem para nada. Explicar-te-eium dia destes. A "ligação" estava feita. Em Moscovo podia acender-se aluz.

Na noite de São Silvestre aconteceu um estranho crime. No jardim do hotel da montanha onde Irene e Boris saudavam oAno Novo, descobriu-se um cadáver por volta das duasda manhã. Estava sentado num banco coberto de gelo; não seencontrava, porém, gelado, mas envenenado. Via-se pelocinzento-arroxeado do rosto e cheirava-se mesmo. Era um odora amêndoas amargas. Cianeto. Inicialmente tinha-se pensado em suicídio, mas quando omédico chamado ao local despiu o morto, tornou-se visível apicada no braço esquerdo. O assassino devia ter espetadorapidamente uma agulha através do fato e da camisa e injectadoo veneno. A vítima nem sequer tivera tempo de gritar ou de sedefender. Só restava o mistério de como o homem se sentarano banco. Com semelhante temperatura e sem sobretudo. O chefe da patrulha alertada examinou o morto com umolhar tão mau como se ele fosse o assassino. Há eras queninguém era assassinado neste local; tinha por conseguinte dereflectir sobre qual a atitude a tomar. Segundo as noçÕes que seaprendiam na Escola da Polícia, nada havia a aplicar aqui:"Não tocar em nada, vigilância do local do crime e dos indíciosde pegadas, fotografias de todos os ângulos, depoimentosdas testemunhas. " Tudo isso era impossível. O morto já estavadeitado e nu numa cave do hotel. A brigada de homicídios,chamada pelo telefone, não podia por este motivo proceder aum tratamento "clássico" do caso. Embora a orquestra continuasse a tocar no salão de festasdo hotel, deixara de haver ambiente. As pessoas, até aí tãoalegres, dispersaram-se e também Irene e Boris se retirarampara o seu quarto e se deixaram ficar sentados e acabrunhadosna cadeira. - Ele estava só aqui - disse Irene, enquanto Bubrov ia

buscar uma garrafa de Sekt ao pequeno frigorífico e a

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desarrolhava. - Vi-o sentado num canto do salão e completamentesozinho. Por volta da meia-noite limitou-se a fazer um brindeao seu vizinho de mesa e em seguida retirou-se para qualquerlugar sem ser notado. - Sem ser notado, não é bem assim. O assassino devetê-lo seguido. Ou esperou por ele lá fora. - Cianeto! Quem é que nos nossos tempos ainda mata comcianeto? Com uma injecção? - É a morte mais silenciosa. - Bubrov encheu os copos,foi ter com Irene e sacudiu a cabeça. - Não devemos estragara nossa primeira passagem do ano juntos, moj druk. Eprincipalmente não devemos ser supersticiosos! Para nós inicia-seum ano feliz! Na manhã do novo ano o hotel enriquecera a sua quantidadede hóspedes. Sete automóveis tinham chegado de Munique esurpreendentemente apenas dois eram da Polícia. Tinham aparecidoagentes do BND, o Departamento de Criminologia foraavisado, dois procuradores da República tinham informado aProcuradoria da República. No parque de estacionamentoviam-se igualmente duas grandes limusinas americanas. O morto fora identificado como Ewald Blotz. Vendedor,com residência em Nuremberga. Todos os dados eram falsos;tinham sido imediatamente averiguados pela rádio. A casa emque supostamente morava era um bordel. O homem devia serum indivíduo com sentido de humor. No sapato, debaixo deuma palmilha, descobriu-se um bilhete de identidade americano como nome de James C. Forster, residente em Washington. Dava quepensar o facto de os especialistas da brigada dehomicídios declararem que a morte se devera a cianeto, masnão através da injecção com a agulha. Esta ??morte?? não cheiravaapenas a amêndoas amargas... Os peritos do BND e da CIA tinham também a mesmaopinião sobre o desenrolar dos acontecimentos: James C.Forster tinha sido abatido com uma pistola de injecção. O lugardo achado, o banco do jardim, não era o mesmo do crime.Apenas tinham colocado ali o morto. - Este tipo de morte corresponde aos conhecidos métodosde liquidação utilizados em determinados países de Leste. -afirmou o chefe da delegação da CIA, após se ter analisadoo cadáver exaustivamente uma vez mais. Para esse efeito foratrazido um médico da CIA, que era versado neste tipo deassassínios. - Temos exemplos que cheguem. Fugitivos políticos,indesejáveis críticos do regime, contra-revolucionários,redactores de jornais de exilados ou da emissora Europa Livrejá foram liquidados desta maneira. São empurrados em qualquerrua, em restaurantes ou praças de mercado, mal sentemuma picada, o abalroador desculpa-se cortesmente e perde-sepor entre a multidão. Segundos depois, o indivíduo atacado

começa a respirar dificilmente, fica roxo e cai por terra. Quandose descobre a verdade, há muito que o executante se encontra numaoutra cidade ou noutro país. - O homem da CIAlançou um olhar ao corpo nu de Forster. - Conhecemospormenorizadamente estas pistolas de veneno. E também a suaproveniência. - Quem era esse James Forster? - perguntou um dosprocuradores da República. - Não é assunto para discutirmos aqui - respondeuo chefe da delegação da CIA. - Este caso deve ser tratadocom a maior discrição. - Ele era um dos vossos?

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O homem da CIA ignorou a pergunta. - Já foi passada revista aos hóspedes? - quis saber. - Claro. Está tudo em ordem. - É sempre o que acontece. - replicou o homem da CIA. - Oautor do crime já não deve estar entre os hóspedes. - A doutora Irene Walther e esse Bubrov também estão cá. -disse um agente da brigada de homicídios. - Recordam-se,meus senhores? O desvio do avião no Verão passado. O ?pirata poramor", Um russo. - Ora aí está! - retorquiu o homem da CIA. - Aí está o quê? - O anzol que o nosso peixe morderá. - Se os soviéticos quisessem vingar-se de Bubrov, paraque liquidarem o Forster? Um erro? Fora de questão! Forstere Bubrov não se confundem. - Bubrov é russo - retorquiu o homem da CIA, obstinado. - E ohomicídio com a pistola de veneno é uma descoberta soviética.Embora Bubrov seja um fugitivo e mansocomo um cordeirinho, permanece um russo!" - Quererão envolvê-lo na morte de Forster? - Não temos provas. - Aqui está - declarou o chefe da brigada de homicídios. - Adoutora Walther e Herr Bubrov têm um álibi inabalável.Estiveram sentados a uma mesa de seis pessoas em alegreconvívio. Nem sequer à casa de banho ele foi sozinho. Um doselementos da mesa, o doutor Felsing, acompanhou-o. Não vejoqualquer relação entre Bubrov e Forster. Seria preferívelinvestigar o que estava Forster a fazer aqui no hotel na noitede São Silvestre... se é que pertencia à CIA. - Talvez estivesse apenas a tomar um copo. - Sozinho Sem uma companhia feminina? Forster era umeremita ou impotente? Só nesse caso estaria sozinho na noitede São Silvestre. Por volta do meio-dia levaram o cadáver de James C.Forster. Os hóspedes do hotel foram uma vez mais interrogados emgrupos de quatro, bem como o pessoal pertencenteao hotel, e concluiu-se que entre os mesmos havia quatro

jugoslavos, três gregos, dois polacos, dois checos e trêsitalianos. - Já temos algo com que nos ocuparmos - replicouo chefe da brigada de homicídios, num tom apreensivo. - Opessoal, na noite de São Silvestre, andou naturalmente ocupadoe de um lado para o outro.

No dia 2 de Janeiro, Irene e Bubrov regressaram aSteinebach. Ignoravam que James C. Forster fora assassinado no quartoque eles haviam ocupado no hotel da montanha, quando estavaprecisamente ocupado a montar um "percevejo", um emissorem miniatura, no candeeiro da mesa-de-cabeceira. Lá em baixo, nosalão, dançava-se e ninguém deu pela falta do tranquiloForster. No entanto, o assassino devia tê-lo observado de muitoperto. A Polícia alemã e a CIA americana também ignoravameste facto. No departamento da CIA em Munique apenas reinou asurpresa quando foi recebida a ordem de Washingtonpara que se tratasse o caso Forster como um vulgar homicídio ese deixassem as investigaçÕes mais detalhadas a cargo dasautoridades alemãs. Deviam pura e simplesmente proceder àtrasladação do corpo de Forster para Washington. Ele tivera apatente de capitão. Fim.

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Alguns dias mais tarde, quando Irene estava novamente atrabalhar no laboratório da Bio-Agrar, Bubrov fez uma chamada deuma cabina telefónica para o seu contacto A 5. - Fala Franz-Josef - disse. - O que aconteceu de factona noite de São Silvestre? Estavam à espera.' - Teve de ser. - Idiotas! - Ele estava a montar um "percevejo" no candeeiro da suamesa-de-cabeceira. - E acham que, na cama, falamos de micróbios? Foi umerro crasso. Agora, a CIA está a ferver. - E sabemos, finalmente, que os americanos andam atrásde si. Franz-Josef. O que correu mal? - Nada. Existe a sua permanente desconfiança contra nós,os russos. Os alemães mudaram e recebem com agrado qualquerfugitivo do outro lado. Se tivessem deixado o microfoneno candeeiro, teria sido uma prova da minha inocência. Agoraalguma coisa cheira mal. " - Não queríamos correr riscos. - E o que têm agora? Bubrov desligou. Estava encolerizado e desiludido por causado erro do seu pessoal de chefia. Também Harrelmans, emBruxelas, não devia estar muito satisfeito. Era de supor quenão se comunicasse esta idiotice ao coronel Ussatiuk. SulfiIvanovitch podia ser extraordinariamente duro. à tarde,Bubrov disse a Irene:

- Tenho de fazer algo. Sem trabalho acabo por comero tapete! Agora vou correr todas as entidades oficiais, atéconseguir uma licença de trabalho. - O doutor Ewingk vai tentar arranjar-te qualquer coisajunto das autoridades ligadas aos problemas agrários e navais.Planeiam-se novas empresas. - Seria uma maravilha. Sou técnico de represas! Como tudome parecia tão simples em Sotschi, Irina. Ama-se e o mundopertence-nos! No entanto, este mundo é-nos adverso, ondequer que seja. Não o quero muito simplesmente compreender!

No dia 1 de Fevereiro, Bubrov foi colocado como engenheirono Departamento de Planificação VI. Aqui projectava-se umanova represa. Os planos básicos estavam elaborados; agoratratava-se dos pormenores. - Esta represa é relativamente pequena - disse Bubrovaos seus novos colegas. - Na Rússia fazemos construçÕes dezvezes maiores. Também temos espaço suficiente e outro tipode caudais. Além disso, contemos as represas segundo umprincípio extraordinariamente simples. Decorridas três semanas, Bubrov era um colaborador respeitado.Mediante a sua experiência apresentara propostas queofereciam novas oportunidades para a construção de barragens. Ninguém se apercebeu de que ele recolhia em microfilmeplanos e cálculos, principalmente no que se referia à defesamilitar destes locais. Enviou os filmes para a morada de PeterHammerling. Eram as primeiras entregas que fazia desde a suafuga. Dois dias mais tarde, A 5 telefonou. Bubrov já não precisavade telefonar às escondidas; agora, tinha telefone própriono seu gabinete e ninguém se interessava a quem ele telefonavaou quem lhe telefonava. - O que é isto? - perguntou Hammerling sem preâmbulos. - Não entendo a pergunta.

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- Os planos da represa! - São muito importantes. - Quando uma represa explode talvez morram milhares.mas quando uma bomba B explode morrem centenas demilhares! - Para se entrar na Investigação B, precisa-se de muitotempo. Tudo está a correr a contento. Já fomos convidadospessoais do doutor Ewingk. Uma coisa destas não se podeforçar. Vai tudo a pouco e pouco. Se o Harrelmanns conseguirmelhor, ele que venha. - Eu digo-lhe. A 5 desligou. Bubrov pousou o auscultador com um gestoirritado e acendeu um cigarro. "Orlovski deve ser um cabeçade asno", pensou. "Ussatiuk jamais insistiria. Sabe exactamenteque os problemas têm de ser resolvidos pela devida

ordem. Primeiro, o mais importante: ganhar a confiança portoda a parte. É este o óleo que abre silenciosamente as portas. Já por duas vezes Irene tentara explicar-lhe, na cama, o quefazia na Bio-Agrar. Fizera-se de parvo. Além disso, Irene sólhe explicou o que ele há muito sabia. Em dez meses tinha-sefamiliarizado com a investigação das bactérias por intermédiode especialistas. O facto não o tinha transformado numinvestigador, mas encontrava-se em posição de distinguir o quese sabia genericamente e o que era novo e perigoso. - Vou perguntar ao Ewingk se podes participar numa experiência- dissera Irene. - Como espectador. E Bubrov respondera sem grande entusiasmo: - Sim, seria interessante. Contudo, nada percebo doassunto. No que me diz respeito, só gostaria de ver onde ecomo trabalha a minha querida. Irene Walther mencionou o assunto ao Dr. Ewingk. - Sabe que é impossível - respondeu Ewingk num tomreservado. - O nosso departamento secreto não é o I, mas oSuper I. Nem sequer a minha mulher sabe exactamente o queeu faço e somos casados há mais de vinte e cinco anos. Julgaque investigamos processos de combater os escaravelhos dasbatateiras, os pulgÕes e os bichos da farinha. Nunca desmenti. - Sinto-me mesquinha perante o Boris. - Como assim? - Trata-se de uma falta de confiança que ele não merece.O que ele passou para vir ter comigo... - São duas coisas inteiramente distintas, Irene. No nossotrabalho existe uma fronteira muito rígida entre os segredosparticulares e os profissionais. Nada tem a ver com a falta deconfiança. O que você sabe pertence ao Estado e à sua defesa enão a um marido ou a uma mulher. - Contudo, as experiências com as ratazanas não sãosecretas. - Ele perguntará: porque é que elas começam subitamentea tossir e cospem os pulmÕes ensanguentados pela boca? - Um novo processo para eliminar ratazanas. - Não! - retorquiu o Dr. Ewingk, sacudindo a cabeça. - Soucontra. O que se passa por detrás das nossas portas não éda conta de ninguém. Pode encontrar outras formas de mostrara Boris que o ama, Irene. Não deve dar-lhe a entender quecultivamos bactérias destruidoras dos pulmÕes. Creio igualmenteque o assunto não lhe interessa. Tem sorte em participarno projecto da represa. Irene Walther disse: - Obrigada, doutor Ewingk - após o que regressou à

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Câmara de Pesquisa III. Ali, por detrás de vidros grossos einquebráveis, nove cercopitecos ginasticavam-se em ramos nodososou em cordas penduradas. A gaiola de vidro estava isolada comborracha e era iluminada por projectores.

Irene manteve-se diante dos animais a observar a alegriacom que brincavam. Em todos fora aplicado um minitransmissor queemitia as batidas do coração, tensão arterial eas mensagens do cérebro para um receptor onde se podiam lertodos os impulsos. "Amanhã começará a sua destruição", pensou Irene. "Atravésda tosse, como se tivessem apanhado um resfriamento.Seguir-se-á o ronquido semelhante ao da bronquite. Pouco depoisrevelam-se aspectos dramáticos de uma pneumonia, até se assistir a como os pulmÕes se destroem e são cuspidos aos` bocados. O fim é assinalado por uma golfada de sangue..", Código oficial desta morte diabólica: R-PB 428/IV. O IV significava a fase de maior perigo. Um descuido no' laboratório - e as consequências eram imprevisíveis. Nem sequer pensar numa coisa dessas. Contudo, também não seria de pensar no que aconteceria se se enchessem bombas com R-PB 428/IV e se fizessem explodir em regiÕes povoadas. O efeito da explosão seria praticamente nulo, mas a morte silenciosa reinaria por todo o lado. Um mundo pronto a funcionar existiria - mas sem pessoas. Uma> visão que excedia a imaginação mais audaciosa. ."Não poderia realmente contar uma coisa daquelas a Boris.", pensou Irene Walther. Ele perguntaria imediatamente: Porque fazes isto? Porque não és uma médica como milhares deoutras? Porque te dedicas à investigação da morte de milhÕes, em vez de combateres a morte com a tua profissão de médica? Como podes fazer tal coisa na tua qualidade de mulher?Destruir em vez de salvar? Sinto um medo súbito de ti, Irina.` E o que podia responder-lhe? Nada! Quando, aos vinte e oito anos entrou sob juramento no grupo de pesquisas do Dr. EwinQk, sentira-se orgulhosa porque o seu professor arecomendara para esse trabalho.; - Em sítio algum receberá tamanha responsabilidade dissera-lhe.- Responsabilidade perante a Humanidade e perante siprópria. Como havia possibilidade de explicar tal coisa a Boris. Saiu da Câmara de Pesquisa III, subiu no elevador e terminouo trabalho por esse dia., Enquanto se dirigia ao parque de estacionamento, pensava em como poderia satisfazer Boris com uma simples explicação. Do lado oposto à saída da Bio-Agrar, cujos portÕes só seabriam electronicamente e se encontravam sob vigilâncianoite e dia, esperava um homem elegantemente vestido, que lhe. acenou com os dois braços no momento em que Irene virou para entrar na estrada.i Hesitou por momentos e desejou instintivamente pisar oacelerador, mas em seguida travou e parou o automóvel uns metrosà frente. " Ele não deve ficar com a ideia de que tenho medo

dele", pensou belicosamente. ."Agora, deixei de ser cobarde.A minha vida sofreu uma mudança radical. ?, Hanns Heroldt não se tinha modificado. Os cabelos castanhosapresentavam-se cuidadosamente penteados, estava queimado do sol,vestia um fato inglês por medida e um sobretudopor cima dos ombros, na medida em que entretanto arrefecera

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e voltara a nevar e a haver gelo por todo o lado. - Que maravilha! - exclamou ao ver Irene na sua frentee aconchegou mais o sobretudo em redor dos ombros. - Ainda mereconheces. Sinto-me inchado de orgulho. - O que queres? - perguntou ela com uma expressãodistante. - É a pergunta que se impÕe depois de termos estado tantotempo juntos? - Nesta altura já se disse o suficiente. Tenho pena de ti.É tudo o que querias ouvir? - Queria voltar a ver-te - respondeu com umsorriso descarado. - Agora és uma pequena celebridade.Desviam-se aviÕes por tua causa. Fazes perder a cabeça aospróprios russos. E a mim, não estás disposta a perdoar? Agarrou-lhe fortemente os braços. - Irene... - Digo-te que me largues. - Ainda andas com o russo? - Vamos casar! - Essa tem graça! Ele só fugiu para o Ocidente porqueaqui encontra os tachos e panelas cheios. Em oitenta por centodos desertores é esse o motivo, embora nenhum deles o mencione,dado que tal não se enquadra no âmbito político. Emresumo: desviar um jacto. O tipo é de força! - Gosto mais dele do que duma dúzia de homens como tu.É a pessoa mais decente deste mundo. - Como te provou isso? - É uma coisa que se sabe depois de o conhecer. - Okay! Não estou interessado numa análise psicológica.Só quero recordar-te que vivemos quatro anos felizesum com o outro. - Porque eu estava cega. No entanto, a nossa relação teveum ponto positivo: serviu para me abrir os olhos. - Agrada-me ouvir-te falar assim. - Deixa-te de idiotices! Hanns Heroldt soprou os dedos das mãos. Não trazia luvascalçadas. - Nunca consegui esquecer-te, Irene. Sei que te ris demim, se te disser que és o meu único amor. Estás a ver comosorris? No entanto, juro-te que é verdade. És mesmo. Escrevi-tepara Sotschi... - Rasguei a carta sem a ler. - Foi um erro. Nela estava tudo o que nunca te disse.

Talvez tudo corresse de uma forma diferente se tivesses lido acarta. Jamais teria existido este russo. - Já lá estava! - retorquiu Irene num tom distante. - Chegastetarde de mais, Hanns! - Quis falar-te para te dizer que me foi confiada a direcçãode um negócio de produtos farmacêuticos em Tunes. Podemosviver numa villa branca junto ao mar e com o pessoal domésticoque quiseres. Com uma remuneração paga em dólares.Estou a colocar-te As Mil e Uma Noites aos pés... - É típico de ti! - retorquiu ela, erguendo a gola de pele.Tinha-se levantado um vento áspero e gelado. A neve cintilavapor entre o sol do entardecer. - Para ti é tudo comprável,inclusive as mulheres. Não falas de amor. - Irene! Estás a entender-me mal. Só quis que compreendessesque também eu modifiquei por completo a minha vida. - Tarde de mais, Hanns! - Nunca é tarde de mais! Se é que ainda me amas.

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- Não te amo! Assim, são escusadas quaisquer tentativasde me convenceres. - Por causa desse russo? - Sim. Por causa de Boris Alexandrovitch. - Foi só por tua causa que aceitei este negócio em Tunes. - Não demorarás a encontrar uma outra mulher que desempenhe opapel de devota nessa tua villa branca junto ao mar. - Estás a ser vulgar, Irene - replicou Hanns Heroldt, queestava cheio de frio e ansiava pelo seu automóvel aquecido. -Contudo, não vou desistir. - O que queres dizer com isso? - replicou ela subitamente,tomando consciência de que o diálogo atingira umponto crítico. - Vou lutar por ti. - Lês demasiados romances de Konsalik... Ele regressou ao seu Jaguar e ainda se voltou mais uma vezpara trás, antes de entrar. Irene aguentou o olhar, mantendo acabeça virada para o lado. "Vivi quatro anos com este homem?.,pensou. ",Um fala-barato com sorte!" - Estou a falar a sério - disse-lhe ele em voz alta. - Nãovou desistir de ti. - Não faz sentido - ripostou ela. - Para mim, faz. Compreende, por amor de Deus, quete amo. É-me insuportável o pensamento de que um russo tetenha nos braços. Ela voltou-se sem lhe responder, dirigiu-se ao seu Golf eafastou-se rapidamente. Hanns Heroldt deixou-se ficar a olhar as luzes da retaguarda.Em seguida, meteu-se no seu Jaguar. "Com este russoposso eu bem.", pensou. .,Ouve-se e vê-se sempre o mesmo: orusso só entende a linguagem dos fortes! E nesse aspecto possobem servi-lo, Boris Alexandrovitch!?.

O encontro com Hanns Heroldt foi para Irene a gota deágua que a levou a mostrar a sua confiança a Boris. O Dr.Ewingk era evidentemente contra, era um homem de princípios.Estava casado há vinte e cinco anos, era um pai de famíliacom três filhos crescidos e um realista frio e praticamenteisento de emoçÕes: como se comporta de maneira diferenteuma mulher que descobriu finalmente o significado do amor! Decorridos quatro dias, Irene Walther trouxe da Bio-Agraros seguintes objectos para casa: uma pequena gaiola de vidro,hermeticamente fechada, mas com tamanho suficiente para albergartrês ratazanas, uma pequena garrafa selada com umlíquido claro, um evaporador transportável, sapatos de borracha,duas máscaras de protecção, dois fatos impermeáveis ealguns tubos e provetas de vidro. Dado que ninguém a controlava - o que teria sido absurdo -, foifácil trazer as coisas à tarde. Decorridos quatro diastinha na sua casa em Steinebach tudo o que era necessário parauma experiência, salvo as ratazanas. Comprou-as em Muniquenuma casa de comércio de animais, onde muitos institutos seforneciam de ""artigos para experiências". Boris Alexandrovitch registava tudo, sem no entanto dar aentender que reparava em alguma coisa. E quantas mais coisasIrene trazia e as guardava na despensa, mais pensativo ficava.O que Irene lhe queria mostrar era apenas o começo. Contudo,o alvo pretendido estava agora mais próximo. Após ela terlevantado uma ponta do segredo, já não constituiria problemaarrancar-lhe todas as informaçÕes valiosas: os campos depesquisa, a evolução do cultivo das bactérias, os possíveis

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antídotos. Para a União Soviética, este conhecimento era deprimordial importância. Faz amor, camarada - só assim descobres tudo... Era isso mesmo o que nesse momento se enterrava na carnede Bubrov como se fosse um espinho. Amor por ordem...Quando aceitara a missão, ignorava quem era a Dra. IreneWalther. As fotografias que lhe tinham tirado em Sotschio coronelUssatiuk mostrara-lhas - eram as de uma mulhernova e interessante, de expressão grave, um corpo bonito eolhos escondidos por detrás de óculos escuros. Mulheres assimhá muitas, e à pergunta de Ussatiuk: "Seria do seu agrado,Boris Alexandrovitch?",, Bubrov tinha respondido: ".Claro, antesque me torne eremita... Esta resposta agradou plenamente a Ussatiuk, que lhe ofereceuum conhaque acompanhado de uma risada. Agora, tudo assumira uma feição diversa. O verdadeiro amortinha surgido a partir de uma cópula ordenada. E não tentarafazer-lhe frente. Ainda que os dias maravilhosos em Sotschipudessem não ter passado de uma missão agradável ao serviço daKGB e do GRU, a verdade é que posteriormente, após a partidade Irene, percebera que teria saudades dela, que - perigoso para

um homem na sua situação! - se habituara à sua presença e quetambém ela lhe sentiria a falta quando não o tivesse ao lado. Ussatiuk não se apercebera do evoluir desta situação aopensar como se podia introduzir Bubrov com alarde (pois essepróprio facto lhe conferia uma capa de discrição) no Ocidente.A sua proposta de desviar um avião era tão arrojada e loucaque teve de se pedir licença às cúpulas do Kremlin. Tudo tinhade parecer autêntico e, por conseguinte, nessa encenaçãoenquadrou-se o protesto do embaixador soviético em Bona, queteve um toque de intrínseca realidade, visto que ele não recebeuexplicaçÕes do que se encontrava por detrás. Assim, quando Bubrov efectuou o grande golpe e voou dePraga para Munique, fê-lo de coração alegre e satisfeito porrever Irina. Tinha recebido a carta dela como se fossem beijos -embora se tivesse autocriticado pela " idiotice". Agora há seis meses que viviam juntos e para Bubrov erasimplesmente insuportável e mesmo impossível pensar que ele,depois de alcançado o objectivo proposto, abandonaria Irene,tal como se fecha e se pÕe de lado um canivete, após se tercortado um fio. Em Moscovo esperava-se pelos resultados num clima detensão. Era-se paciente, o que faz parte de missÕes de talenvergadura, mas também a paciência russa tem um limite.Para Bubrov a missão de que estava incumbido transformou-senum pesadelo. Isso porque para a executar se via obrigado aatraiçoar o amor de Irene, a sua ignorância da realidade ea incondicional confiança. "Sou um russo",, dizia de si para si frequentemente nosúltimos meses. "Sou um comunista. Está em causa a grandeluta das diferentes camadas sociais. Trata-se da revoluçãomundial no sentido de Lenine. Para a destruição do capitalismoe da burguesia. Trata-se da sobrevivência da União Soviética.Deus nos salve se nos atirarem bombas de bactérias! Não seouvem, não se cheiram - e milhÕes morrem com elas. Tensde manter-te fiel à tua missão, Boris Alexandrovitch!," Para acalmar os seus escrúpulos, algumas vezes jogava coma ideia de informar os resultados da investigação de Irene aMoscovo e depois, porém, quando a missão estivesse cumprida,abandonar o trabalho junto da KGB e continuar a viver

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em Munique na qualidade de verdadeiro emigrante comotantos outros. Estes pensamentos, no entanto, constituíam uma utopia. Elesabia bem de mais que uma pessoa não pode muito pura esimplesmente abdicar dos serviços secretos soviéticos como sese tratasse de uma profissão normal. Não se pode abdicar. Só aideia de desistir jà constitui uma traição. Foi numa tarde de sábado que Irene Walther tinha preparado tudopara a experiência. à sua casa pertencia igualmenteuma cave, onde até esse momento apenas tinham existido uma

mesa de pingue-pongue e um aparelho de massagens. Notampo da mesa colocara nesse momento os seus preciosos tesouros;na gaiola de vidro, três enormes ratazanas de umcinzento-acastanhado saltavam umas por cima das outras e batiamcom a cabeça de encontro aos vidros. Bubrov, que estava a desempenhar o papel de indivíduoextremamente surpreendido e enojado, mantinha-se à portada cave. Apontou para a gaiola de vidro com a mão estendida. - Ratazanas! Não tenho nojo de nada, excepto de ratazanas. Oque significa isto, Irinaschka? Nunca me tinhascontado que trabalhas com animais tão repugnantes comoesses. - Trabalho neste momento com cercopitecos e macacos,mas não podia trazer-te esses animais para aqui. O que tens dever, também podes vê-lo com ratazanas. - Não quero ver nada - retorquiu Bubrov com uma expressão derepugnância. Irene fechou a porta à chave, dirigiu-se até junto dos fatosimpermeáveis e das máscaras que estavam pendurados nos pregos,pôs uma touca de plástico na cabeça e esboçou um acenoindicativo a Bubrov. - Anda! Não pode fazer-se isto sem protecção. - E lidas diariamente com coisas tão perigosas? - perguntouBubrov, sem arredar pé da porta. - Gostava queinvestigasses uma coisa diferente, Irina. Não terei um minutode descanso mais... Pronunciou a frase num tom tão preocupado e ansioso queela se viu obrigada a rir. Se estivesse mais próxima dele,tê-lo-ia beijado. - Estas experiências realizam-se com grandes medidas desegurança. - replicou. - O que trouxe para aqui é apenasuma versão muito moderada. Anda. Veste o fato de protecção.Nada de medo. Vais admirar-te com o que te mostrarei. Trouxe-lhe o fato de plástico, deu-lhe um beijo na ponta donariz e ajudou-o a meter-se naquele tecido especial. - Se agora puser a máscara, fico parecido com um marciano -disse Bubrov. - Mas em Marte também não existe nada semelhante aoque verás - retorquiu ela, enfiando as luvas de borracha. -Ninguém o tem. Apenas nós. Com o coração a saltar-lhe do peito - sentia as pulsaçÕesnas próprias fontes -, Bubrov aproximou-se da gaiola devidro com as três ratazanas. Bubrov gozava da fama de ser um dos agentes mais frios daKGB e a quem nada abalava, um daqueles homens de quemUssatiuk se orgulhava tanto como se fossem seus filhos. E em certa medida eram mesmo. Passavam pela sua escola,tinham aprendido a esquecer os nervos e em situaçÕes críticasnão passavam de máquinas que executavam as missÕes sem um

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mínimo de emoção. Distinguiam-se da massa dos restantesagentes da KGB e do GRU pelo sangue-frio, inteligência euma audácia pessoal que levava a crer que a própria vida lhesera completamente indiferente quando posta ao serviço dapátria. Faziam a mesma avaliação da vida dos adversários.A parte contrária era algo que se devia eliminar. As situaçÕesapenas se diferenciavam através dos meios a utilizar. A pistola com veneno do que Forster fora uma vítima eraum desses meios, pertencia por assim dizer ao equipamentobásico. Boris Alexandrovitch Bubrov tinha, de facto, estudadoengenharia hidráulica antes de ingressar na KGB. Uma profissãodecente e inofensiva abre muitas portas. Assim, Bubrov játinha operado na áfrica do Sul, em Angola e Moçambique, naArgélia, e também nos Estados Unidos, na Holanda, em Cuba ena Argentina. Ussatiuk enviava-o a todos os lados onde, segundoa opinião soviética, surgira uma situação crítica e ondeum indivíduo competente, entregue a si próprio, pode conseguirmuita coisa. Até esse momento ainda não matara ninguém;contudo, no seu campo de actuação havia sempre vítimas cujamorte nunca foi esclarecida. A morte não era igualmente ogénero de Bubrov. Tinha uma aversão quanto a solucionar osproblemas por estes processos primitivos. Por esse motivo Ussatiukchamava-lhe "o meu diabinho humano". Quando Bubrov aceitou a missão "Franz-Josef", Ussatiukdissera-lhe: "Desta vez pode ser um caso muito quente, camarada.A investigação B na República Federal da Alemanhapertence aos segredos mais bem defendidos do Ocidente.A própria imprensa se cala porque não consegue informaçÕesnem se aproxima das pessoas que têm a ver com o assunto.Ninguém as conhece, todas vivem perfeitamente dissimuladaspor detrás de profissÕes civis: médicos, químicos, físicos,especialistas agrónomos, biólogos, climatólogos... Assim,descobrir a pessoa exacta só por um golpe de sorte. E, agora,temos esse golpe de sorte: a doutora Irene Walther! Médica e bióloga,colocada na firma Bio-Agrar. Investigação de processos dedesenvolvimento e melhoria do ambiente. Que piada! O que sedá é exactamente o contrário. Investigam bactérias e vírus comque se provoque a morte silenciosa das massas." Ussatiuk tomara fôlego, antes de prosseguir: "Um acaso colocou-nos na pista certa. Deve ter acontecidoum pequeno acidente de trabalho, ao que parece qualquerrecipiente que ficou mal fechado. De qualquer modo e duranteuma semana todo o terreno ocupado pela firma foi desinfectadopor pessoal especializado, selado hermeticamente e ostrabalhadores mantidos de quarentena. Faz-se uma tal coisa quandose está a melhorar a qualidade de morangos?! Vigiámos seguidamentea Bio-Agrar e verificámos que esta doutora IreneWalther pertence exactamente ao tipo de mulher que lhe agrada,

meu caro Boris Alexandrovitch. E, agora, até vem a Sotschi,segundo nos informaram os serviços da nossa embaixada emBona. Só você, camarada Bubrov, pode agora deslindar ossegredos da investigação alemã. O caminho até lá passa porIrene Walther e a sua cama.," Neste momento Ussatiuk tinharevirado os olhos e dado um estalo com a língua. "Como oinvejo, Boris Alexandrovitch! Não tem uma Suska com quemesteja casado há vinte e três anos!" Fora assim que tudo começara. E, agora, encontrava-senuma cave, disfarçado com um fato impermeável e uma touca,uma máscara de respiração e luvas de borracha, a observar

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Irene Walther, que estava a colocar na tampa da gaiola devidro uma pequena bucha de borracha no sítio onde se via umaabertura. Por um dos lados e através de um pequeno tubotambém de borracha foi introduzida a dose necessária de oxigéniona prisão de vidro. As três ratazanas sentiam-se bem, saltavamumas por cima das outras, cheiravam as paredes de vidroe fitavam Boris com os seus olhos negros e redondos. Ireneretirou a máscara do rosto e Boris imitou-a. - É tudo? - perguntou ele. - Mais uma explicação, querido - respondeu com umaexpressão grave. - O que agora vou deitar na gaiola é umconcentrado. Esta forma de concentrado não se destina autilização. Contudo, visto que o processamento normal leva detrês a nove dias e tu tens de ver rapidamente o que se passa,vejo-me obrigada a usá-lo. - E o que acontece? - quis saber Bubrov. - As ratazanas morrerão. - Tem mesmo de ser? Detesto ratazanas. Na nossa casatínhamos sempre ratoeiras. Cresci por assim dizer com ratosmortos, mas ainda nunca vi uma ratazana morrer. Estão apreparar um veneno contra as ratazanas? É então isso! - exclamouBubrov com um gesto de quem entendera. - Nãoquero ver. Acredito em ti. - É outra coisa - replicou ela, hesitante. - Um gás? - Mais ou menos. - Ah! - Um líquido que misturado com o oxigénio se transformaem gás. - Isso não é novidade! - replicou Bubrov, fitando-a como se elaestivesse a troçar dele. - Gás líquido! Também otenho aqui no bolso! No meu isqueiro. Para o encher, nãopreciso de um fato de protecção. Desempenhava tão bem o papel de ingénuo que Irene seconvenceu de que este homem jamais alcançaria o seu segredo.Ficaria impressionado com o que via como um jovem queadmira um modelo particularmente bonito de uma carruagemem miniatura. Horrorizar-se-ia com a morte das ratazanas, mas

não seria preciso falar da utilização como material bélico. - PÕe a máscara! - disse Irene, ao mesmo tempo que lhefazia um aceno de cabeça acompanhado de uma gargalhada.Boris tapou o rosto com a máscara. Observou através do vidroplastificado como Irene enfiava uma comprida e fina agulha deinjecçÕes num frasco de tampo de borracha hermético e recolhiatrês centímetros cúbicos de um líquido claro no êmbolo daseringa. Voltou a retirar a agulha do frasco logo após a recolha ecobriua seringa com uma bola de algodão preparada para o efeito. Seestivesse ali o Dr. Ewingk mostrar-se-ia horrorizado e tão-poucoIrene se sentira totalmente à vontade quando expusera a agulhaao ar livre. No laboratório tudo se processava em grandescaixas de vidro completamente fechadas, onde se podia meteras mãos protegidas com punhos de borracha. Nada aconteciafora daquele espaço defendido. Os poucos segundos em queIrene manejara a agulha ao ar livre podiam bastar paradesencadear uma catástrofe. MilhÕes de bactérias podiamlibertar-se. Enfiou a agulha na bucha de borracha do tampo de vidro einjectou o líquido para a gaiola das ratazanas. Quando se

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misturou com o oxigénio, formou-se uma névoa fina. A mesmadissipou-se, porém, no espaço de segundos e nada indicou queo ar e o medicamento se tinham misturado, formando umanova essência mortífera. As três ratazanas não pareceram sentir nada. Continuavam acorrer, saltavam de encontro às paredes e raspavam no vidro.Boris pôs-se de cócoras e observou atentamente os animais.Irene tinha metido a seringa num revestimento de plástico queestava humedecido com um líquido no interior. A seringadesapareceu neste saquinho e ela fechou-o rapidamente com umafita adesiva especial. Para obter uma segurança total, meteu osaco numa caixa cromada que se fechava hermeticamente. Emseguida pegou numa espécie de pulverizador e espalhou portoda a cave uma névoa fina e brilhante sob a luz da lâmpada. Boris encolheu imperceptiveLmente os ombros. Era tudo tãoirreal que se sentia gelado. Sabia que à sua volta podia serliberta a morte para milhares e no entanto, ao ver-se Irenemanobrar o pulverizador, julgar-se-ia antes que ela pretendiaespalhar um aroma agradável na divisão. Apesar da enorme concentração dispersa no ambiente, asratazanas não mostravam qualquer reacção. "É absolutamentenatural,?, pensou Bubrov. "Não se trata de nenhum gás venenoso,de nenhum processo químico, mas de um fenómeno biológico:desenvolve-se uma doença! Três a nove dias, disse Irene... É issoexactamente o que existe de ardiloso nesta novaarma; nas regiÕes infestadas fica-se sem saber nem suspeitar,durante dias, que a sentença de morte já foi pronunciada

relativamente à população. Quando aparecem os primeiros indícios,é tarde de mais. Num laboratório há possibilidade de defesa.Como salvar, porém, centenas de milhares de pessoascontaminadas? " Boris verificou horrorizado que Irene tirava a máscara esacudia os cabelos. Também ele tirou a sua, cheirou um aromalevemente desagradável, que devia provir do spray, e não seatreveu a respirar fundo. - Tu... tu és muito descuidada - replicou num tomabafado. - De acordo com os pareceres humanos nada podeacontecer-nos, querido. - Isso não é de fiar. Errar é humano. - Dispomos agora de cerca de três horas. Inalado com o are à temperatura do corpo, este concentrado deveria actuarrapidamente. Trata-se de bactérias com um poder destrutivoinacreditavelmente rápido. Quanto mais quente é o seu campovital, mais depressa se verifica o efeito. Estamos nesta altura aproceder a experiências com um tipo que até se desenvolve no friosiberiano. Isto era novidade. Bubrov olhou indiferentemente parao lado, mas o coração começou a bater-lhe mais depressa. - Na Sibéria temos ratazanas muito especiais - declarou num tom marcadamente ingénuo. - Vi-as quando procedi à construção de canais. Riam-se dos vulgares venenos contra ratazanas. Comiam-nos como sobremesa. Tinham de ser abatidas a tiro ou com páse paus. - Não se trata de ratazanas, Boris. - De quê, então? Ela fitou-o pensativamente. Boris evitou olhá-la bem no fundo. Apalpou o fato de plástico e aparentemente descobriu o que procurava. - É permitido fumar-se? - perguntou. - Ou vamos pelos

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ares? - Podes fumar, Boris. - Obrigado. - Tirou um cigarro do maço, acendeu-o e ficou contente por poder respirar de novo. - Acreditas em Deus? - perguntou ela subitamente. - Não! - Quando tens de jurar... então porque juras? - Pela eternidade da minha pátria russa. - E dantes? - Ainda nunca precisei de jurar. Só quando fui soldado. Mas nesse caso tratava-se da defesa da pátria. É evidente que quanto aos assuntos particulares se pode jurar por tudo. Pela luz dos olhos... ou pela potência... - Não estou muito na disposição de rir, Boris. Gostava, que me jurasses pelo que tens de mais querido. - Isso és tu! - replicou imediatamente e ela soltou uma

leve risada. As ratazanas começavam a mostrar-se inquietas, batiam com a cabeça de encontro às paredes de vidro e o corpo estremecia-lhe. - Promete-me que não falarás a ninguém do que agora vês. - Isso está implícito. A quem iria falar?, - Por exemplo ao doutor Ewingk. Perco imediatamente o emprego e sou presa. - Presa? Porque matas ratazanas na minha frente? Pode levar-se realmente a protecção aos animais demasiado longe. - Boris! Eu... eu entrego-me totalmente nas tuas mãos. - Já há muito que o fizestes. - Se me atraiçoas só me resta suicidar-me. - Irinaschka! - Não é uma afirmação à toa! Não me resta, de facto,outra saída. Ele pós-lhe o braço em redor dos ombros e atraiu-a a si.Sentiu como ela tremia através do tecido de plástico. - Céus! Ficaste subitamente com medo? - Sim. Tenho medo. - Pousou-lhe a cabeça no ombro,tirou-lhe o cigarro da mão, aspirou longamente o fumo trêsvezes e devolveu-lho. - Estou perdida, se falares do que visteaqui. É esse o motivo porque tens de jurar. - Não tenho nada que me seja sagrado - replicou sinceramente.- De que vale uma jura? Tens simplesmente de acreditar que jamaiste abandonarei. Nunca. Aconteça o que acontecer. É isso o maisimportante, Irinaschka. Tens de acreditarsempre em mim! Ainda que seja difícil. Quem sabe o que avida ainda nos reserva? - Dado que vivemos juntos, aguentaremos tudo juntos. - Acenouvárias vezes com a cabeça. - Sim. Acredito em ti.E... e era preciso mostrar-te tudo isto. Não podem existirsegredos entre nós. O que o coronel Ussatiuk jamais acharia possível: Bubrovcomeçava a sentir escrúpulos. Disse de si para si: .,Sou umporco infame! Um canalha! O mais vil dos vis! Mas o queposso eu fazer agora? Devo dizer-lhe quem sou? Nesta hora emque ela confia tão incondicionalmente em mim? Devo dizer-lhe:Pára, Irinaschka! Chamo-me, de facto, Bubrov, sou engenheirohidráulico, mas é aí que pára a verdade! Sou um dosmelhores homens da KGB, tão bom, que até o GRU me utiliza, o queé noutras circunstâncias impossível, dado que setrata de duas organizaçÕes totalmente diversas. Falam sempreda KGB, mas quem conhece o GRU? E, no entanto, eles são

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os mais argutos, os melhores, os impiedosos. Passa-se omesmo nos Estados Unidos: o FBI e a CIA. Só que a KGBainda tem um desdobramento no estrangeiro e está infiltradapor todo o mundo. Ali, a KGB actua frequentemente comouma névoa que rodeia protectoramente a actividade do GRU.

Oh, Irinaschka! Como posso contar-te tudo isto sem te perderpara sempre? Encaraste o problema sob o justo ângulo de visão:depois destas horas aqui na cave só te resta a morte emcaso de traição! O que hei-de fazer?." Beijou-a, passou-lhe as mãos pelos cabelos e sentiu-semiseravelmente. Se Ussatiuk pudesse suspeitar as emoçÕes que oassaltavam, tê-lo-ia mandado chamar imediatamente de volta aMoscovo, se necessário pela força. As ratazanas tinham ficado moles. Deixaram de correre limitavam-se a mover-se fatigadamente de um lado parao outro. De vez em quando estremeciam convulsivamente. Borisobservava os animais num estado de tensão. - Estão a tossir... - informou Irene sem levantar a voz. - As ratazanas também tossem? - São animais que respiram pelos pulmÕes e, por conseguinte,tossem. Depressa começarão a cuspir sangue. - O que fazem? - As bactérias que respiram devoram-lhes os pulmÕes. - Oh, meu Deus! - exclamou Boris, abalado. - Mas tu não acreditas em Deus... - Mas no Diabo, sim... - Bubrov não tirava os olhos dasratazanas. Elas contorciam-se, respiravam com dificuldade, batiamcom a cabeça de encontro ao vidro. "É monstruoso!?,,pensava Bubrov. "Isto é um inferno de que nem Ussatiuk ouButaiev suspeitam sequer! Nem sonham com tal coisa. Esteinstrumento diabólico utilizado na explosão de uma bomba oude uma granada - espalhado numa capital ou num país ultrapassaas mais horríveis visÕes de destruição da Humanidade. No prazode três a nove dias as bactérias devoram ostecidos dos pulmÕes. Podemos proteger-nos de uma bomba esobreviver em abrigos debaixo da terra após uma explosãoatómica. Contudo, esta morte silenciosa, lenta e invisível,respira-se sem qualquer suspeita, talvez na atmosfera clara elímpida de uma bela tarde de Verão. Como Irene dizia: quantomais calor estiver, mais rapidamente actuam as bactérias. E,em seguida, começa-se subitamente a tossir, o peito começa aarder como no caso de bronquite, a traqueia entope-se, abre-sea boca, mas os pulmÕes recusam desempenhar a sua função e ostecidos dos pulmÕes rompem-se, a tosse instala-se nacavidade bucal e expele-se a vida com cada ataque de tossedoloroso e dilacerante. Milhares, milhÕes, a Humanidade inteiraa perder sangue pela boca... O que são as visÕes doInferno de Dante comparadas com isto?" As ratazanas estavam agora deitadas de lado, contorcendo-se ecuspindo pedaços de pulmão. O próprio Bubrov, a quempraticamente nada impressionava, quase vomitava de nojo. IreneWalther levantou-se. - Queres que cubra a gaiola? - perguntou. - Ponho umpano por cima.

- Por favor! - disse Bubrov que respirava mais ofegantemente,como se sentisse a decomposição dos próprios pulmÕes.Esperou até Irene ter coberto a gaiola de vidro com uma velhatoalha de mesa e voltado a sentar-se ao seu lado. - E agora? -perguntou. - Morrem.

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- Ninguém pode salvá-las? - Com este concentrado é impossível. - E com um normal? - Descobrimos um antídoto, mas que só ajuda na faseinicial. Quando os pulmÕes começam a ser devorados, é tardede mais. - O spray que utilizaste é esse antídoto? - Sim. Contudo, estava fortemente moderado, caso contrário nãopoderíamos suportá-lo por não estarmos doentes.O antídoto serviria para nos envenenar. - Tu levas uma vida realmente calma! - observouBubrov. - Esta experiência pôs-me em pânico e só me libertareiquanto te tiver de novo nos meus braços. Desiste dessa profissão,Irinaschka! Regressa à profissão de médica! Vamo-nos emboradaqui! Para bem longe. Para Hamburgo, junto ao Reno, paraqualquer lugar onde possamos construir uma nova vida. Ondeninguém nos conheça. Afastemo-nos deste inferno, peço-te! - De momento é impossível, Boris! - Nunca é impossível começar tudo noutro lado. Já o provei! Saído isolamento da Rússia! Vamos embora daqui. É melhorpara todos! - Primeiro tenho de concluir a minha investigação. Nãoposso desistir a meio. - Podes! - O que direi ao doutor Ewingk? Que motivo apresento? - És uma mulher. É isso que deves dizer-lhe. Já nãotens coragem para desenvolver um tal potencial destrutivo.Não suportas mais, muito pura e simplesmente. Elecompreenderá. - Ewingk? Jamais. Disse-me uma vez que eu era o maisviril dos membros da sua equipa. - Nunca me dei conta de que ele é cego. - Ele acha que supero todos em resistência. - Eu podia afirmar o contrário. - Acho uma afirmação despropositada, Boris! - É só um pouco de humor negro, Irinaschka! - Borisrespirou fundo. - Sinto um pavor de morte. Suspeito deque não pretendem destruir meramente ratazanas com esseinstrumento. Com ele o mundo ocidental será invencível. Deixa quesejam os outros a espalhar os seus processos mortíferos... nósaparecemos silenciosamente e seguros da morte.É assim? - Que queres que te responda? - Afastou os cabelos datesta e encostou a cabeça à parede. - Estou, de facto, à beira

de um colapso nervoso. - Descobriremos uma solução - retorquiu Bubrov comuma expressão grave. - Assim, não pode continuar. Acabamos pornos destruirmos. "Principalmente no que me diz respeito", pensou, voltandoa sentir calafrios no corpo. "Moscovo quer saber notícias e veralgo. Como posso comunicar a Butaiev o que Irina investiga?Devo ser cúmplice da destruição do mundo?.?

Bubrov comunicava com o seu contacto A 5 por telefone oupor um assim chamado " marco postal ", um esconderijo ondese colocam informaçÕes que são regularmente recolhidas pelosagentes secretos; desta forma, evita-se um contacto pessoal;quando é um assunto muito urgente ou importante é que semarca encontro, regra geral na confusão de um armazém, talvezna secção de vendas de géneros, onde não chama as atençÕes se

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se estiver de pé junto a um balcão a falar com o vizinho dolado. Na maior parte das vezes começa-se pelo futebol; asnotícias e informaçÕes são introduzidas no meio do diálogo. Embora Bubrov se tivesse apercebido de que deixara de servigiado há semanas, principalmente desde que fora integradonos Serviços Municipalizados, evitava um contacto directocom Peter Hãmmerling. Este também deixara de se disfarçar deoperário; o aparecimento do agente da CIA, James C. Forster,na noite de São Silvestre demonstrava que os americanos erammenos despreocupados do que os alemães e que desconfiavamde Bubrov. As informaçÕes que Boris Alexandrovitch enviou paraMoscovo através do A 5 causaram estranheza a Ussatiuk e aButaiev. - Sempre nos afirmou que Bubrov era o seu melhor homem, SulfiIvanovitch - observou Butaiev com um esgar. - O seu departamentoé assim tão mau? - Mantenho a minha palavra, Victor Borissovitch - replicouUssatiuk, folheando as poucas informaçÕes que tinhamchegado de Munique. - Só conseguiremos algo com esta operação porintermédio de Bubrov. Além disso, o que já temosem nosso poder é muito interessante. - Não consigo concluir do que possa tratar-se. - Essas malditas bactérias dos pulmÕes a que Bubrov serefere no último contacto... - E, de facto, uma pista, mas não uma informação exacta.Onde estão as fórmulas, as fotocópias do diário da investigaçãoe os pormenores? Butaiev sentia-se nervoso. A informação de Bubrov sobreo desenvolvimento de uma bomba silenciosa que destruía apopulação de uma região inteira em nove dias era alarmante,mas não era uma novidade. Também a Rússia soviética possuíaessas armas diabólicas em bunkers subterrâneos. Bombas de

vírus e granadas com gás destinado a atacar os nervos e emcuja utilização só com horror se podia pensar. A Butaiev apenaslhe interessava saber se os Alemães-Ocidentais teriamdescoberto um antídoto. Caso contrário, de que serviria umaterra conquistada pejada de mortos, se os próprios conquistadoresrespirassem as bactérias e fossem destruídos da mesmaforma, nove dias mais tarde? Até a uma guerra atómica poderiasobreviver-se. Mas relativamente a uma terra infestada debactérias? - Devia fazer pressão sobre Boris Alexandrovitch - teimouButaiev. - Não receia que Bubrov leve a sério o amor,Sulfi Ivanovitch? - Esse aspecto não me preocupa, Victor Borissovitch. -respondeu Ussatiuk com um sacudir de cabeça. - O que o leva a ter tantas certezas? Só conheço Bubrovpelo que me conta dele. É um homem com interesses divergentes? - Oh, céus! Não! É um herói das mulheres. - Então... - A Irene Walther representa apenas uma missão para elee nada mais. - Recordo-me dos dias da minha infância - retorquiuamargamente o general Butaiev, ao mesmo tempo que retiravao celofane de mais um Papyrossa. - Nunca gostei de espinafres.Sempre que apareciam espinafres na mesa, ficava doente,não me sentia bem, não tinha fome... mas de nada serviaporque tinha de comê-los. Com visível tortura. E hoje? Quandome cheira a espinafres, o coração salta-me no peito. Espinafres

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com cebolas e noz-moscada e um travo de alho é para mimcomo um céu sem nuvens. Por isso, tudo muda com o andardos tempos - prosseguiu Butaiev com um sorriso filosófico.- Quem pode garantir-nos que Bubrov também não tenharetirado prazer do amor que lhe foi ordenado? Um dever quedepressa se transformou em fascínio... - Bubrov é um patriota! - Contudo, o amor pela pátria não exclui o amor do homem pelamulher. - Não é assim com Bubrov. Se ele desistisse por nãopoder estabelecer a fronteira entre a missão e o amor, não lherestaria qualquer hipótese de voltar à Rússia. Na nossaprofissão, todos sabem o que teriam a esperar aqui. - Ussatiuk esboçou alguns acenos de cabeça como se se aplaudissea si próprio. - É esse facto que me torna tão seguro, VictorBoris sovitch. Bubrov ama a pátria acima de tudo. Acimade tudo: peço que tome estas palavras à letra. Nunca a trocariapor uma mulher. Nunca!' - Mas o que apresentou até agora é mais do queescasso.+ - Agora sabemos que a doutora Irene Walther se dedica exactamente ao que tínhamos suspeitado. Isso constitui

uma grande vitória. E sabemos que está a ajudar adesenvolver uma nova bomba de bactérias. É uma outra vitória.Conhecemos (apenas em traços largos, reconheço) o efeito destabomba. Destruição dos pulmÕes. É a maior das vitórias. O quepodemos esperar mais neste espaço de tempo relativamente curto? Boris Alexandrovitch ainda irá enviar pormenores. Estáno rasto. É um lobo solitário que farejou sangue. - E em seguida comerá o cordeirinho e ficará saciado - comentou o generalButaiev, passando as mãos pelo cabelo branco e cortado curto. - Trata-se semprede um jogo com muitos imprevistos, quando uma mulher assume ocontrolo da situação. Pense em César e Cleópatra. - Bubrov não é nenhum César! - retorquiu Ussatiuk com uma risada. - Mas se isso o descansa mais, camarada general, vou escrever a Bubrov e apressar-lhe o andamento!

Dois dias depois, tocou o telefone no gabinete 28do Departamento de Planificação VI dos ServiçosMunicipalizados. Bubrov, que estava sentado a fazer um cálculo, levantou-se contrariado. A telefonista de serviço nacentral informou-o que se tratava de uma chamada de um Dr.Zimmermann. Bubrov não conhecia nenhum homem com este nome, mas estremeceu ao escutar a voz que lhe chegava dooutro lado do fio: - Bom dia, Franz-Josef! - foi o cumprimento. Bubrov recostou-se na cadeira. Era quase como sesentisse um vento frio soprado de Moscovo. - Em que posso ser-lhe útil, doutor Zimmermann? -perguntou. - Trata-se da sua proposta A Cinco? - Exacto. - Peter Hãmmerling, portanto. - O que iria seguir-se jáBubrov sabia. - Examinou a nossa sugestão? - perguntou o Dr. Zimmermann. - Evidentemente. - E tem uma proposta de aperfeiçoamento? Bubrov esboçou um aceno afirmativo. Era isso, então!Aperfeiçoamento! Moscovo estava descontente. Faltavam ospormenores. - Ainda estamos numa fase de desenvolvimento - retorquiu. - Não

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podem fazer-se milagres quando se trata de grandes projectos. - Há muito que estamos a ouvir o mesmo. Pessoalmentenão me sinto nada contente. Só que há a minha simpatia por si.E seria uma pena se tudo o que correu tão bem fosse por águaabaixo a curto ou longo prazo. - Ainda continuo a pensar no assunto, doutor Zimmermann. - O que devo dizer aos meus directores? - Vou esforçar-me. - Não há nada de concreto? - Não. - Uma pena...

- Se os senhores acham que podem fazer melhor, só têmde vir aqui ensinar-me. Aprendo depressa. Peter Hãmmerling desligou. Bubrov deixou-se ficar aindaum bom bocado sem se mexer, sentado à secretária e olhandoatravés da janela. "Eu podia", pensou. "Ussatiuk avalia a situação de umaforma inteiramente correcta. Podia descobrir mais coisas atravésde Irene. Ela deve trazer consigo o diário do laboratório eeu podia fotocopiá-lo ou passá-lo a microfilme. Podia pedir-lheque repetisse a experiência e depois tentar obter uma amostradeste preparado diabólico e enviá-lo para Moscovo. O caminhoé simples: de A 5 para Bruxelas até Minher Harrelmanns. DeBruxelas para Moscovo através de um correio. Podia tantacoisa... mas já não quero! " Levantou-se, arrumou a secretária, e pôs-se telefonicamenteem contacto com o chefe da sua divisão; dava-se conta de queestava com uma enorme dor de cabeça por causa do vento dasmontanhas. Qual o habitante de Munique que não compreendiauma tal justificação? Uma enxaqueca nesta base é sempre umaboa desculpa. Bubrov apanhou como sempre o metropolitano de Steinebach atéWÕrthsee e percorreu a pé a distância que o separavade casa - eram uns escassos dez minutos - e de caminhocomprou no supermercado duas boas garrafas de vinho, bolachas etodo o género de aperitivos. Ao chegar a casa, fechou-se à chave e deitou-se à tarefa derebuscar sistematicamente todos os armários e gavetas, e emespecial o que lhe parecesse um bom esconderijo. Irene sóchegaria com toda a probabilidade dentro de três horas e alémdisso colocara a corrente interior na porta. Nada encontrou de importante. Na secretária de Irene haviaalgumas notas que se relacionavam com as suas pesquisas, masnão proporcionavam qualquer informação. Numa outra gavetahavia um maço de cartas. Remetente: Hanns Heroldt. Bubrov leu a carta que estava no topo das restantes: umaqueixa relativamente a Irene nem sequer permitir que falassecom ela. E, em seguida, a temática era apenas de amor.Bubrov resistiu à tentação de ler mais cartas de Hanns Heroldte devolveu o maço ao lugar donde o tirara. Irene apenas sereferira a Heroldt de passagem, como se se tratasse de umconhecimento superficial. No entanto, só esta carta servia paracomprovar que este homem tinha desempenhado um papel decisivo nasua vida. Bubrov sentiu um espinho no coração. Irritou-se, visto queos ciúmes em relação ao passado são a coisa mais estúpida emque uma pessoa pode cair. Fechou a gaveta e prosseguiu abusca com o instinto de um cão de caça. Descobriu, por fim, o diário de Irene. Tinha-o escondidoonde ninguém iria procurá-lo: na cama, entre o colchão de

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molas e o apoio da cama. A sua lógica era concludente: qualo homem que se aplica tanto a fazer uma cama de modo alevantar o colchão? Bubrov folheou rapidamente o livro. As indicaçÕes começavam unsseis meses antes de Sotschi; relacionavam-se basicamente comHanns Heroldt, que, a julgar pela descrição, deviaser um indivíduo detestável - e mudavam totalmente de estiloquando os dias em Sotschi passaram ao papel. Bubrov leu, decoração sobressaltado, o que Irene escreveu a seu respeito. Eratodo um hino de amor e de confiança. " Acho que nunca nenhuma mulher o amou como eu oamo. . . ,", escrevia ela e Bubrov soube que ela estavaconvencida de que assim era. Poderia ter escrito por debaixo:"Eu também"... E nesse momento já não teria sido mentira. Sentou-se na beira da cama e continuou a folhear o diário.Surgiram três folhas que lhe fizeram acelerar a respiração:Irene Walther descrevia as suas experiências quase concluídascom macacos. "A doença revela-se primeiro sob a feição de uma pneumoniafibrinosa e depois a infecção da Klebsiella pneumoniae.A base do nosso preparado reside, de facto, nas bactériasdescobertas por Friedland em 1883, cuja cultura conseguimosdesenvolver, em particular no que se refere à sua integração nacirculação. Além disso, conseguimos uma combinação com obacilo da pneumonia plasmocelular, a Pneumocysti carinü, queaté agora não eram cultivados nem num solo arável nemtransmitidos a cobaias. Apenas atacavam os recém-nascidos e osbebés, com uma taxa de mortalidade superior a cinquenta porcento. Após a segunda mistura com ectotoxinas obtivemos umacultura de bactérias que torna possível a sua utilização comoinstrumento de guerra. Nas experiências com animais maioreso período mais longo de sobrevivência ascendeu a nove dias.Decorridos dois dias revelou-se uma expectoração de umcastanho-avermelhado, que no quarto dia passou a umvermelho-vivo cheio de bacilos. O processo mais acelerado deleucopneumonia! A consequente destruição radical dos pulmÕesconstituiu, a nosso ver, praticamente um fenómeno parao qual não existe paralelo em medicina. Desenvolvemos umadoença inteiramente nova, temível e incontrolável, que leva aoextermínio mais rápido até agora obtido. No campo infeccioso -à excepção do envenenamento com gás e cogumelos, além das doenças tóxicas - não existe outra letalidade comidêntica rapidez. Creio que demos vida a uma substânciadiabólica... E assim prosseguiam as três páginas com exemplos,cálculos, observaçÕes e explicaçÕes de como era possível proceder-se a um cocktail destas bactérias mortíferas. Bubrov prosseguiu a leitura com um fascínio quesimultaneamente o entusiasmava e entristecia. Entusiasmava,

porque tinha aqui descoberto a chave das armas mais pérfidasimaginadas pelo pensamento; entristecia, porque tinhade ser precisamente Irene quem participava de uma formadecisiva nesta descoberta. O seu entusiasmo prevaleceu sobretudo na suaqualidade de russo cujo dever consistia em afastar esta mortesilenciosa do seu país! Nesse aspecto não lhe restava maisreflexão! Quando os cérebros humanos inventavam uma tal arma de destruição, todos eram chamados a impedir por quaisquer meios a sua utilização. Aqui como em qualquer parte do

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mundo! Para salvar a Humanidade não havia que terescrúpulos, se a situação assim o exigia., Bubrov serviu-se da máquina de microfilmes efotografou estas três páginas do diário de Irene. Em seguida voltoua colocá-lo no seu esconderijo por debaixo do colchão,tirou o rolo da máquina e meteu o minúsculo objecto numa cápsulade chumbo. Levou a cápsula para a cave, colocou-a numafenda da parede e cobriu-a com gesso. Pôs uma marca com opolegar que apenas ele reconheceria. Ao entardecer, Bubrov escutou o ruído do motor do Golf deIrene. Ela arrumou o carro na garagem, ele destrancoua porta e abriu os braços no momento em que a ouviu subir aescada. Pareceu-lhe como sempre maravilhosa, com os cabelosdespenteados pelo vento e os olhos brilhantes.. - Minha querida! - exclamou Bubrov sem conseguir disfarçar a emoção que lhe embargava a voz. ,"Um anjoque trabalha para a morte!",, pensou. - Chegaste finalmente.Vens uma hora mais tarde do que o habitual? - Tivemos uma visita do Ministério. Não lhe disse que os macacos contaminados haviam chegado à última fase e queos senhores de expressão perplexa tinham assistido à sua morte horrível pordetrás das vidraças. - Que jamais haja uma guerra! - retorquira o Dr. Ewingklá atrás. - Jamais! Infelizmente, porém, não se encontrava nenhum chefe deEstado entre os espectadores.

Numa tarde chuvosa chegou a Francoforte, vindo de NovaIorque, um homem de estatura média, a quem o cabelo louro-palhadava uma aparência invulgar. Dois indivíduos vestidosde cinzento-escuro vieram recebê-lo junto do portão da alfândegae apertaram-lhe a mão. - Que tal vai isso, Ronny? - perguntou um deles. - Washington continua a ser bom para montar um colégiode raparigas? - perguntou o outro. - Trago-vos cumprimentos da Blondie Zyx! - riu o recém-chegado.- O vosso pequeno Howard tem agora três anos de

idade. Segundo os cálculos dela só vocês podem ser o pai.A sério. Qual de vocês foi? Soltaram uma gargalhada, encolheram os ombros e comportaram-secomo estudantes adolescentes depois de ganharemum jogo de futebol. Levando o visitante no meio, saíram doaeroporto de braço dado, meteram-se num enorme Pontiac eseguiram para a base aérea americana, onde eram esperadospor um avião oficial. Ronald Cohagen tinha sido introduzido na Alemanha. Cohagen, major da CIA, desfrutava da inestimável vantagem deninguém o conhecer. A acrescentar havia a circunstância de atéaí não ter contactado com a KGB, o GRU, tãopouco os Serviços Secretos israelitas, nem ainda o DeuxièmeBureau de França e de não desempenhar qualquer papel naLiga dos Agentes Secretos. Tinha lutado no Vietname comosegundo-tenente, fora desmobilizado como capitão e em seguidadesaparecera numa herdade do distante Wisconsin. Defacto, a CIA tinha-o debaixo das suas asas. Ascendeu à patentede major e continuara na sombra. Só alguns homens de confiançadas cúpulas da CIA sabiam que determinados factosocorridos no Laos e Cambodja tinham o seu cunho. Em Beirute

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chamava-se Sven Thorboerg e era natural do Sul da Suécia equando se manteve na região crítica da América Central apenaso conheciam como Ludwig Meermann, de Solingen, representante deuma fábrica de talheres, que no entanto tambémvendia machados e achas. Quando desconhecidos tinham assassinado o pobre JamesC. Forster com uma pistola envenenada no dia de Ano Novo ecolocado o corpo no banco do jardim de hotel coberto de neve,Ronald Cohagen recebeu a informação em mão. Havia sidocolocado na Central numa função burocrática - informaçÕesvindas da Alemanha - e leu atentamente o protocolo dointerrogatório. O que os seus colegas informavam não estava deacordo com a sua perspectiva: a morte de Forster não tinhaqualquer ligação com o russo Boris Alexandrovitch Bubrov quefugira em circunstâncias tão sensacionalistas?! Cohagenrecordava-se desta fuga. Estivera exactamente em Pretória,quando em todo o mundo se falara do desvio do avião. Umpirata do ar por amor... "Tudo isto é uma merda!?,, comentara Cohagen na altura, desi para si, ante a leitura dos jornais. "Se, de facto, as coisasse passaram assim, este russo é um asno! Mas não tem nada essear! Nem pouco mais ou menos! Não é o tipo de homem quedesvie aviÕes para depois voar para a cama de uma mulher.," Agora, verificava-se a morte de Forster e novamente lheocorreu o nome de Bubrov. Uma mera coincidência? O absurdo teatro da vida? Cohagen não acreditava nessas coisas. A morte de Forsterocorrera tipicamente à maneira do Leste e um russo soviético

encontrava-se indubitavelmente nas proximidades. Como erapossível que a morte de Forster não estivesse relacionada comele? Só porque o glamour-boy russo era um homem tão simpático,afável, íntegro e ingénuo? Cohagen pôs-se telefonicamente em contacto com o seuchefe de departamento, o coronel Phil Boone, mas este,um homem de temperamento desconfiado, afastou a ideia comum gesto: - Acredita, de facto, Ronny, que já não passámos tudoisso a pente fino há muito? O russo está tão limpo como aminha camisola interior! - Não me parece assim tão convincente - respondeu Cohagen numtom seco. Boone era um indivíduo com humor, além de que conheciao suficiente de Cohagen. Riu e considerou a conversa comoacabada. O mesmo não aconteceu com Cohagen. Este Bubrovnão lhe saía da cabeça. Quando regressou a Washington,mandou vir o dossier sobre Bubrov e dedicou-se a uma leituraatenta. Segundo o resultado das investigaçÕes, tinha de se dar razãoa Phil Boone: Bubrov era um cordeirinho inofensivo! Tambémas investigaçÕes que os agentes secretos tinham desenvolvidona União Soviética não forneciam qualquer pista. Nada denada. Boris Alexandrovitch era um nome entre milhÕes, pelomenos no que se referia à sua actividade política. Eraengenheiro, um técnico de engenharia hidráulica; conseguiu mesmoarranjar uma fotocópia do seu diploma de curso. A CIA nãotinha qualquer motivo para a mínima suspeita. - Na minha opinião, o rapaz é limpo de mais - disseCohagen a Phil Boone, quando lhe devolveu o dossier. - Buriladode mais! - Você tem um trauma soviético, Ronny! - riu Boone

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paternalmente, ao mesmo tempo que dava uma pancada amigável noombro de Cohagen. - A morte de Forster tem ummotivo diferente. Andava no rasto de uma organização chamadaCélulas Elementares e de atentados a bases de tropasamericanas. De resto, os assassinos jogaram em falso.Forster apenas desempenhava uma função insignificanteneste caso. - E o que o levava a querer montar um microfone noquarto de Bubrov durante a noite de São Silvestre? - Ele era como você, Ronny! Este Bubrov causava-lheuma certa impressão. O que fez nessa altura foi por iniciativaprópria. Não tinha qualquer indicação nossa para tal! - E é precisamente isso que me inquieta. Gostaria que medessem autorização para ir a Munique, senhor. - Por conta própria? - Gostava de o convencer de que por detrás de tudo seoculta uma missão. Forster não era um idiota!

Phil Boone preCisou de uma semana para convencer asautoridades abalizadas da CIA de que era oportuno enviar Ronald Cohaáen à velha Alemanha. Apareceria na qualidade derepresentante de uma firma de detergentes para sondar o mercado relativamente a um novo produto, que praticamente nãotinha resíduos químicos e por conseguinte também era do maiorinteresse para a ciência hidráulica. Desta forma poderiacontactar, com o máximo à-vontade, Bubrov, que de facto construía represas, mas estava ligado aos problemas da água. - Missão cumprida! - informou Boone. - Pode partir para a Alemanha, Ronny. Conseguiu a missão maisextraordinária do mundo: não vai procurar nada. É de facto genialcomo você consegue estas coisas. DispÕe de seis meses!Desejo-lhe umas alegres férias com mão de porco, chucnzte, cervejae jovens alemãs! Ronald Cohagen encarava a sua missão sob umaperspectiva diferente. Logo após a sua chegada a Munique, dirigiu-seàs instalaçÕes locais da CIA, dissimuladas como umainofensiva empresa de transportes, e pediu que lhe mostrassem todas as fotos disponíveis de Bubrov. Em seguida contactoutelefonicamente do quarto de hotel a Embaixada americana na aldeia de Plitters (Bona), mandou chamar o tenente-coronel Paddington e informou alegremente: - Cá estou eu, Dan! Paddington, tenente da CIA na Alemanha, registadooficial mente como colaborador da vasta Câmara deComércio, olhou espantado para o auscultador do telefone. - Quem está aí? - perguntou. - Ronny Cohagen. - Onde? - Em Munique. - Prevê-se um golpe de Estado em Munique? - retorquiuPaddington num tom azedo. - Que gracinha! - riu Cohagen jovialmente. - Apenaste quis informar para que não fiques surpreendido seacontecer alguma coisa fora do vulgar em Munique. - É sempre de esperar que seja assim quando estás porperto! Porque é que a tua central não nos avisouantecipadamente? - Porque não estou aqui como um cidadão inofensivo.Represento o milagre Lavagem Atómica. Uma camisa brancaem dez minutos e a trinta graus! - Ah! - exclamou Paddington, olhando para o tecto.

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Sempre que Cohagen aparecia, qualquer coisa cheirava malalgures, muito mal. - Visto que oficialmente nada sabemos,oficialmente não existes e não tens que esperar ajuda nossa. - E se o Boone anunciar a minha presença? - Ficas evidentemente debaixo das nossas asas! - Seria o pior que poderia acontecer-me - retorquiu Cohagen com

uma expressão grave. - É por isso que estou atelefonar-te. Deixem-me em paz! Não interfiram, muito pura esimplesmente! Se os meus sentidos não me enganam, doishomens neste caso já são de mais! Só quis dizer-te que estouaqui. Nada mais. Bye, bye! Ronny Cohagen desligou e voltou a examinar as fotografiasdo russo Bubrov quando da aterragem do avião desviado, adescer a escada de acesso, a ser recebido e durante a primeiraexplicação. Bubrov com a Dra. Irene Walther, numa ópera, noTegernsee, a fazer esqui em Garmisch. Bubrov no metropolitano queo conduz ao local de trabalho e a comer num restaurante localbávaro. Bubrov numa cervejaria diante de uma canecade litro e um cachorro-quente. Parecia sentir-se perfeitamente à vontade na Alemanha. Umnovo e inofensivo cidadão. O que Cohagen ignorava: junto a Bubrov, na cervejaria,estava o AS encostado ao balcão. Irene reparou que nessa tarde Bubrov parecia distraídoe muito triste. Além disso verificou surpreendida que elecozinhara o jantar, um autêntico schaschlik caucasiano comcebolase um molho especial de pimenta; cheirava divinamente edespertava-lhe recordaçÕes da sua excursão a Krasnaia Poliana,onde quase se tinha embriagado com o maravilhoso vinhotinto caucasiano. No entanto, ele mostrava-se taciturno enquantocomiam e soltou uma risada triste quando ela lhe elogiouo cozinhado. - O que tens? - perguntou-lhe, enquanto comia o pudimum pouco doce de mais e ainda quente. - Vieste mais cedopara casa? - Vim - respondeu Bubrov, ensaiando novamente umsorriso. - Apeteceu-me cozinhar. - Mas não foi esse o motivo? - Não. Tinha umas malditas dores de cabeça. O vento dasmontanhas. Pelo menos foi o que disse ao meu chefe. - Mas não tens dores de cabeça! - retorquiu, pousando acolher. - O que te entristece, Boris, meu querido? - Ainda és capaz de perguntar? - Agarrou-lhe nas mãose atraiu-a a si. - Podias tirar férias? - Agora? - Imediatamente. - Porquê? - Gostaria de fazer uma viagem contigo. Para qualquerlado bem longe de Munique. Durante umas semanas. - Está inteiramente fora de questão - respondeu, fitando-osurpreendida. - Temos um plano de férias esquematizado, Boris.E algumas semanas? Não tenho mais do que quatro semanas paragozar férias. O meu contrato estipula vinte eoito dias úteis. Só em caso de doença...

- Nesse caso, mete baixa, Irinaschka! - Porque me propÕes uma coisa dessas? - retorquiu, sacudindoa cabeça num gesto perplexo. - Para tal preciso deum atestado médico. E mesmo que o consiga as pessoas doentes não

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podem sair de casa. - Na qualidade de médica podes procurar qualquerdoença que torne necessária uma viagem. - Beijou-lheas palmas das mãos e encostou-as às faces. - Ou entãocomunicas que estás doente e vamos para longe, muitolonge. Não regressarás, muito simplesmente. Não seriaum motivo para que te despedissem imediatamente?Assim, afastar-te-ias finalmente dessas horríveis experiências. - É isso, portanto, o que te entristece? - Mordeu o lábioinferior e observou as feiçÕes de Bubrov. "Não devia ter-lhemostrado,", pensou. "Devia ter sabido como ele é sensível,como reage ao que o perturba. Ofereci-lhe a minha confiançailimitada, mas essa confiança agora deprime-o. " - Não consigo afastar a imagem daquelas três ratazanas acuspirem sangue - declarou num tom surdo. - No entanto,vives num país livre. Pelo menos, sempre se afirmou que assimera. Cada pessoa pode dispor de si, pode decidir o que quer, oque faz, o que se pode fazer com ela. Ninguém pode obrigar-te,se quiseres partir. Tens o direito de dizer sim ou não.Tudo isto ainda se torna mais espantoso quando se vem de umpaís onde isso não existe. Porque não dizes que não,Irinaschka? - Já falámos muitas vezes e longamente a esse respeito,Boris... - Temos de viver na Alemanha? Ela fitou-o, chocada e perplexa. Era a primeira vez que lheescutava tais palavras. Jamais tinha pensado em viver noutrolugar que não fosse em Munique. - Não te sentes bem na Alemanha? - perguntou-lhe hesitante. -Começas a arrepender-te de ter vindo? - Irinaschka! - Beijou-lhe novamente as mãos. - Amo-te. Eexactamente porque te amo é que tudo se tornapreocupante. - Preocupante? "Como posso explicar-lhe?", pensou Bubrov, cerrando osolhos. "Sim, como posso dizer-lhe? Toda a verdade? Ela nãoaguentaria. Como poderei informá-la de que a partir da missãode Ussatiuk de "pela sua cama" conseguir os segredos dassuas pesquisas surgiu o amor, o amor-paixão? Quem acreditana mudança de Boris A Bubrov?." Pensou no microfilme escondidona fenda da parede e simultaneamente no seu dever de transmitir os resultadosdesta horrível pesquisa, a fim de salvar a sua pátria. Sabia,no entanto, que este compromisso assumido não justificava por siuma quebra de confiança. Ele era um espiãosoviético que tinha fingido haver desviado um avião por

amor dela. O facto de a verdade ser totalmente diferente iriaaniquilá-la. - Já não me sinto seguro na Alemanha - disse-lhe. - Boris! - Todo o corpo lhe estremeceu e ergueu osombros como se se sentisse gelada. - Como podes dizer isso?Notaste alguma coisa? Andam a seguir-te? Ameaçaram-te?A Embaixada soviética... - A Embaixada não tem nada a ver com isto. - Os serviços secretos do teu país? - Também não! - respondeu Boris, sacudindo a cabeça. - Tenho,no entanto, a sensação de que algo se vai passar. Muitoem breve. - Queres que informe a polícia? - Sobre uma sensação? Iriam rir-se! Temos de ser nós aajudar-nos, Irinaschka. - Levantou-se, deu uma volta à mesa

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e escondeu a cabeça no peito dela. Ela tremia e rodeou-lhe acintura com o braço. - És médica! Podes trabalhar em qualquerlado. E eu tenho duas mãos fortes que podem fazer tudo oque se traduza em dinheiro. Vamos embora para longe,querida! - Para onde? - retorquiu num fio de voz. - Para onde,meu Deus? - Para a América. - Logo a América! Não é o Ocidente dourado como sejulga no Leste. - Mas lá eu estaria mais seguro, Irinaschka! - Se os russos de facto te querem punir, a América só ficauma porta mais adiante. Terias de desaparecer para um outroplaneta. - Fitou-o atentamente e reparou no rosto tenso. "Elesabe mais do que diz", pensou, chocada. "Aconteceu qualquercoisa nos últimos dias de que ele não quer falar abertamente.Será que Moscovo comunicou secretamente com ele e oameaçou?" - Não se passou, de facto, nada? - perguntou, e sentiuque se lhe formava um nó na garganta. - Não. Ainda não. - Nenhum aviso? - Não. Mas espero por ele. - E de quem virá? - Isso não sei - mentiu-lhe. - Em seguida, porém,disse-lhe a verdade: - Quanto mais calmos se mantêm, maiscrítica se torna a situação. - `?Quanto mais calmo eu estiver",pensou. " Mas isso não posso dizer-lhe. " - Tens subitamente medo? - Medo? Será esse o nome exacto? - retorquiu Bubrov,sacudindo a cabeça. - Apenas gostava que vivêssemos maisseguros em qualquer lado e que deixássemos o passado atrásdas costas. Tão longe que não nos pudesse afectar. Poderiasexercer a profissão de médica em qualquer lugarzinho da América

Central, podemos comprar uma pequena herdade que euadministrasse... uma vida num sítio amplo e tranquilo. Devíamospensar nisso, Irinaschka. Pensar rápida e seriamente. Desprendeu-se dos braços dela, dirigiu-se ao barzinho metidona parede, pegou em dois copos e numa garrafa de conhaque eriu-se para Irene sem conseguir dissimular a tensão. - O meu cozinhado não estava uma maravilha? - Quando nos casamos? - perguntou ela, enquanto aceitava ocopo. - Quando te afastares dessas horríveis bactérias. - Olhoufixamente o copo e pareceu sofrer uma repentina transformação.- Não posso viver com estes monstros. Eu sei, eu sei quenão se agarram a ti. Mas o pensamento de que vens de juntodeles, que fizeste experiências com eles durante horas a fio,é-me cada vez mais insuportável! Desculpa, Irinaschka, masnão pode ser de outra maneira! Ela acreditou nele, como sempre acontecia. Bebeu o conhaque evoltou a pousar o copo na mesa um tanto bruscamente. - Vou tentar - disse. - O quê? - Rescindir o contrato. - Oh, minha querida! - Vou falar com o doutor Ewingk, que não compreenderá nada... - Partamos muito simplesmente, então! Desaparecemose pronto. - Isso causaria uma perseguição por todo o mundo. Fiz

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um juramento, Boris! Uma coisa assim não se quebra sem seperder a dignidade. Não podes compreender isto, porque nuncaestiveste numa situação semelhante. - Como não? - retorquiu, fitando-a e soltando uma risadaalegre e jovial. - Eu jurei nunca te atraiçoar, nunca contaro que me mostraste na cave. - E quebrarias a jura? - Não! - A palavra saiu-lhe sem esforço dos lábios. - Nunca. - E eu devo fazê-lo? - Fala com o doutor Ewingk - respondeu-lhe e voltou aencher os copos. - O facto de já termos abordado o assunto é ocomeço de um novo caminho. Irinaschka: tem de ser Munique? - Não. - Como me fazes feliz! - exclamou com os olhos brilhantes, etentando reter as lágrimas. - Há tantos lugaresbonitos neste mundo!

Ronald Cohagen não pertencia ao tipo de pessoa que seimpacienta rapidamente; conseguira finalmente reunirconhecimentos bastantes na àsia para aprender que uma determinadaespera conduz mais facilmente ao êxito do que a precipitaçãoàs cegas. Tinha procedido a uma vigilância a par e passo de Bubrov

durante catorze dias para vir a descobrir o que sobre ele podialer-se nas actas da CIA: um indivíduo inofensivo, que apenascometera uma transgressão quando tinha desviado um aviãopor amor de uma mulher. Era até de tomar em consideraçãoque nem ele próprio compreendia o acto e ficava com as mãossuadas ao recordar-se do que se passara. Cohagen visitou em seguida o local de trabalho de Bubrov,falou com o chefe do pessoal de protecção das águas e falou-lheno novo detergente americano que em breve iria aparecerno mercado. O chefe escutou-o interessado, embora perguntasse oque tinha o assunto a ver com ele, visto que a autorização paratal produto era do âmbito de outros institutos. Noentanto, Cohagen procedeu a uma explicação pormenorizada econcreta, no que foi ajudado pelo seu excelente alemão;alargou-se sobre a protecção das águas em geral, abordou osprojectos americanos de represas e falou larga e demoradamente sobre aconstrução de represas em regiÕes ameaçadas por sismos. Foi durante esta visita que conheceu também pessoalmenteBoris Alexandrovitch Bubrov. O chefe do pessoal quisera tomar aseu cargo mostrar as instalaçÕes ao visitante eapresentou-lhe Bubrov como um técnico que se especializavano desenvolvimento de novos processos para cimentar murosem sítios mineralíferos. Cohagen trocou umas dez frases comBubrov e depois foi-se embora. Nada entendeu dos detalhesfornecidos por Bubrov sobre o leito de construção, masapercebeu-se de imediato que se tratava de um trabalho impecável.Outra coisa não tinha esperado; sempre que Moscovoenviava um dos seus homens, ele teria de ser um indivíduo-chavena profissão em que se inseria. Nesse aspecto jamais sehaviam verificado falhas, visto que esse tipo de pessoas eramtecnicamente impecáveis - eram sempre os pequenos erros àmargem que as desmascaravam. à tarde, Cohagen telefonou do seu gabinete na CIA parao coronel Boone, em Washington. - Já esfolou os pés? - perguntou Boone, trocista. - Oudescobriu o lobo mau disfarçado de cordeirinho, Ronny? - Bubrov é um fenómeno! - declarou Cohagen num tom

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convicto. - Gostava que me esclarecesse esse ponto. - Ou é realmente o imbecil que desviou o jacto por amor enesse caso o seu trabalho de uma precisão extrema como engenheironão se enquadra nesta imagem. Ou é um agente deMoscovo e merece um Oscar pelo seu papel de homem digno.Hollywood devia pagar-lhe milhÕes. - O que é ele afinal? - perguntou Phil Boone, secamente. - Já alguma vez esteve em Las Vegas? - retorquiu RonnyCohagen. - Claro. - Consegue saber de antemão o que vai sair no jogo?

Antes que os dados parem? - Que pergunta idiota! Quem pode saber? - Pois é isso o que agora se passa comigo. Estou naexpectativa. - Por que telefonou, afinal, Ronny? - perguntou Boone. - Osares alemães tornam as pessoas filosóficas? Cohagen conseguia imaginar perfeitamente Boone, sentadona cadeira, com as pernas em cima do tampo da secretária e afumar um dos seus horríveis e amargos charutos que mandavavir do México. - Até onde posso avançar? - perguntou numtom formal. - Você nunca fez uma pergunta tão idiota, Ronny - irritou-seBoone. - Quer eliminar o Bubrov? O risco seria seu. - Eu estou a pensar em dólares. - Ouve-se sempre muito mal em Washington. - Boonepuxou uma fumaça do charuto, o que Cohagen ouviu nitidamente. -Bubrov é então subornável? - Tenho a excelente ideia de o contratar. Se ele forinofensivo, lançará a mão caso os nossos serviços de represas lheoferecerem um lugar de engenheiro. No entanto, a propostaterá de ser (expressa em dólares) atraente. Devemos pôr-nosem contacto com as individualidades competentes. Tenho deaparecer-lhe com uma oferta concreta. Se, porém, Bubrov recusar,seja por que motivo for, faço-lhe um buraco na armadura. Elesabe-o e tem de negociar. E em seguida acontecemos pequenos pormenores que fazem ir tudo pelos ares. - Desta vez tenho a impressão de que vai ficar mal colocado comesses truques, Ronny! - É possível, senhor - replicou Cohagen com uma risadaseca. - As actas da CIA têm tantos buracos como um queijoflamengo. A doutora Irene Walther, o grande amor de Brubov,é médica. - Isso está no dossier, Ronny. - E também onde ela trabalha? - Onde é que uma médica trabalha? - Irene Walther só exerce a profissão em caso de necessidade.Está a participar num projecto de pesquisa. - Uma rapariga esperta! - E de que maneira! De momento está ocupada com asarmas B... - Oh, céus! - Foi uma exclamação que se assemelhou aum grito. - Foi o que eu disse! - replicou Cohagen e desligou.

Ussatiuk começava a ficar impaciente. Depois das primeiras e escassas informaçÕes de Bubrov,nada mais chegou ao conhecimento da KGB. Em Bruxelas, oimportador de fruta Harrelmanns apenas sabia informar que

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também o A 5 em Munique nada recebera e que "Franz-Josef",

se mostrava extraordinariamente indelicado quando se lhetelefonava. Uma das vezes fora a ponto de dizer que devialamber-se-lhe o cu. Um contacto pessoal tornara-se impossível;Franz-Josef já não dava oportunidade a que isso acontecesse.Comia agora na cantina, à tarde apenas saía na companhia de IreneWalther, não andava de metropolitano, mas comprara uma belamotorizada. A 5 tentara uma vez empurrá-lo para a sarjeta como automóvel para assim provocar um acidente - mas já sesabe como é Bubrov! Qual artista desviara-se e metera-se porum prado. Tal acontecera na estrada que leva de Wessling aSteinebach. Ussatiuk ficou furioso com estas notícias, sentiu que oscabelos se lhe punham em pé e pensou nos elogios que tecerapor todo o lado a Bubrov, particularmente diante dos generaisButaiev e Nasarov. Já nada entendia do mundo. Não havia desculpas. Frente à KGB, nenhumas. Havia queaguentar as falhas que não estavam excluídas deste tipo deactividade, mas um malogro total como se verificava com BorisAlexandrovitch já não era suportável. Ussatiuk decidiuabdicar da sua paciência russa e colocar Bubrov entre a espadae a parede. De início, apenas um aviso. Quais as consequênciasque se seguiriam, não havia necessidade de citá-las aBubrov. Também ele tinha conhecimento dos que falhavame tinham desaparecido na Sibéria para surgirem mais tardena construção de caminhos-de-ferro ou em colónias delenhadores. Harrelmanns, em Bruxelas, recebeu ordem para se ocuparintensivamente de Boris Alexandrovitch. Intensivamentesignificava neste caso: mais nenhum contacto por interposição,mas directo. Directo, porém, queria dizer confronto. Durante alguns dias Ussatiuk andou intratável. Os colegasafastavam-se-lhe do caminho, em casa maltratava a mulhercom ralhos injustos, dava a comida ao seu cão Skoll, atiravao chá pela janela e comportava-se como um tirano. Bubrov era para ele como um filho tresmalhado. Tinha-odescoberto no Exército, quando Boris Alexandrovitch conseguiradesmascarar uma sabotagem dos pára-quedistas da suacompanhia; tinha-o promovido, inserido nos melhores centrosde preparação da KGB e tomado provisÕes para que ele pudesseestudar a expensas do Estado. A sua primeira missão noestrangeiro - no Iémen - fora um êxito total e falava-se delecom o maior respeito em Moscovo. E agora este malogro!Ussatiuk sentia um espinho no coração. Mas qual o pai que nãoluta pelo filho pródigo? Um dia após Harrelmanns ter recebido novas informaçÕes,Ussatiuk sentiu como que uma pancada na cabeça quando chegou ainformação codificada pela rádio. A 5 tinha comunicadoque "Franz-Josef" enviara uma mensagem. Ainda não estavadeterminada a data, mas o material era único.

- Eu sabia! - exclamou Ussatiuk, feliz. Bebeu um copinho, à tarde beijou a mulher na face, o que asurpreendeu e deu-lhe uma palmada nas nádegas redondas, oque ainda a deixou mais perplexa; pôs a tocar um disco comvalsas vienenses e comportou-se como se tivesse contratadouma nova secretária, jovem e loura. - Um Boris Alexandrovitch não me deixa ficar mal! - disseigualmente ao general Butaiev, cujo GRU tinha na alturacatorze especialistas em missão nos EUA, a fim de recolher

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informaçÕes mais exactas sobre a bomba de neutrÕes americana. Oprincípio desta bomba estava, de facto, esclarecido,mas ignorava-se até que ponto havia avançado a investigaçãodos EUA e se já se encontravam protótipos capazes de entrarem acção em abrigos subterrâneos. No que se referia à bomba Bos peritos do Kremlin eram unânimes em afirmar que a armasecretamente pesquisada na Alemanha - embora estivesseainda numa fase laboratorial - significava um novo e grandeperigo e servia para tornar o Ocidente ainda mais poderoso.O desenvolvimento nacional das armas B e C decorria deforma satisfatória e surgia um arsenal de meios de destruiçãoinfernais, mas o que se tramava no Ocidente era excepcionalmenteinquietante. Ussatiuk resolveu esperar mais oito dias até Minher Harrelmannsatacar Bubrov em força. Após os primeiros momentosde euforia, a desconfiança regressou como um veneno infiltradono sangue. O que tinha Bubrov realmente comunicado?No fundo, nada. Participava uma mensagem a que chamava"única". Isto podia significar tudo: o triunfo ou a catástrofe.

Num desses dias em que a inquietação de Ussatiuk aumentava,Ronald Cohagen encontrou-se numa oficina com Boris A.Bubrov. Um mero acaso, naturalmente; Cohagen levou o seuFord à revisão e Bubrov esperava a reparação de uma avaria aque o chefe da oficina chamou uma sujeira. Alguém tinhadeitado açúcar no reservatório de gasolina da sua motorizada.Agora, os tubos tinham ficado entupidos. - Típicas brincadeiras de miúdos! - disse o chefe de oficina.- Se eu pudesse apanhar um garoto desses, punha-lhepimenta no rabo! Bubrov não se recordava de Cohagen, mas este tomou a seucargo torná-lo mais falador. - Como o mundo é pequeno! - disse alegremente e estendeu a mãoa Boris. - Não sabe onde situar-me? Tivemos umencontro muito breve no seu local de serviço. O seu chefemostrou-me as instalaçÕes e também fomos ao seu gabinete.Durante três minutos explicou-me um gráfico de que nãopercebi uma palavra - prosseguiu Cohagen com uma risadadesarmante. - Tratava-se de processos de ancoramento.Recorda-se?

- Não - respondeu Bubrov sem mentir. - Contudo,visto que me fala tão pormenorizadamente, deve ter sido assim.Estou a trabalhar num projecto de represas. - Era isso mesmo! - Cohagen encostou-se à parede daoficina, ao lado de Bubrov, e ofereceu-lhe um cigarro. Indicouao mesmo tempo um Mercedes enorme com um gesto de cabeça. -Aquele automóvel é seu? - Acha-me um milionário ou um proprietário de negóciosescuros? Sou um funcionário público. - Bubrov correspondeuà gargalhada, aceitou lume e apontou para a sua motorizada. -É aquele o meu automóvel de luxo. - Vamos até lá fora! - sugeriu Cohagen, escondendo ocigarro na mão em concha. - Aqui é estritamente proibidofumar! Ficaram diante da oficina e instalaram-se em cima da carroceriade um Opel totalmente destruído e que estava à espera dachegada de um perito. Há três dias que o automóvel se desfizerade encontro a uma árvore. - Pertenço ao ramo dos detergentes - disse Cohagenquando estavam sós. - Um campo interessante. Aliás: chamo-me

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Ewald Reinberg. Pretendemos lançar um novo processobiológico no mercado. Foi estudado durante cinco anos nosEstados Unidos. Agora está amadurecido para a produção. - Representa uma firma americana? - perguntou Bubrov. - Sim. Temos sede em Boston. Ronald Cohagen estava muito satisfeito. A pergunta deBubrov, ainda que feita num tom desinteressado, abrira umaporta. Sentiu que a pele se lhe arrepiava: ele tinha mordido aisca! Agora, Bubrov iria apalpar terreno e Cohagen aguardavatensamente como seria. Ficou desiludido. Bubrov aparentemente não demonstrouo mínimo interesse pela investigação americana de detergentes.O diálogo ameaçava ruir, antes mesmo de ter começado. - Já alguma vez esteve nos Estados Unidos? - perguntouCohagen, visto que apesar de a pergunta ser idiota, havia quecontinuar. - Não. Ainda não tive oportunidade. - Mas decerto gostaria de ir até lá alguma vez? A Américaé fascinante. Desde as montanhas aos desertos há de tudo.E em formato ampliado... a própria América também o é! - Cohagensoltou uma risada. - Eu próprio só vi uma pequenaparte, mas continuo a dizer: quem não conhece os EstadosUnidos, não sabe o que é uma vida livre. Era um tiro. Vida livre - algo destinado a apanhar Bubrov.Cohagen observava-o como um pugilista que observa o efeitodo golpe aplicado. Contudo, Bubrov manteve-se imperturbável. - Quando tiver tempo disponível - retorquiu despreocupadamente- irei passar duas semanas de férias à América. - Duas semanas? Isso é o mesmo que querer avaliar uma

pessoa depois de um ataque de caspa. - Mais não está em causa, Herr Reinberg. E primeiro estáMaiorca, ou Ibiza ou Rodes. Fica mais perto e é mais barato. -Bubrov puxou uma fumaça do cigarro e sacudiu a cinza. - A vidana América não é muito perigosa? "Ah", pensou Cohagen e respirou de alívio. "Lá vem ele aomeu encontro. Lá vem ele. Segue calmamente atrás de mim,jovem. Eu abro-te o caminho.," - Não tanto como se descreve nos romances policiais. Excluindoo caso das grandes cidades. Trinta mortos é a taxanormal em Nova Iorque. Trinta assassinados, quero dizer. Masno campo? Continua a ser um paraíso! Há regiÕes onde a vidaé uma verdadeira delícia. O estado de Nova Inglaterra, porexemplo. Ou a pradaria. Ou as montanhas Rochosas. Tem-se asensação de que só agora o mundo surgiu ali, inclusiverelativamente à televisão, telefone, frigorífico e Coca-Cola.Ninguém se preocupa com os outros e é-se rei de um pequenorincão. É a verdadeira nação da liberdade! - Em vez de detergentes devia vender viagens aos EstadosUnidos - retorquiu Bubrov e riu-se para Cohagen. - Fazcrescer água na boca a quem o ouve. Nesse mesmo dia Peter Hãmmerling, o A 5, controlou quatro"marcos postais," vazios depois da informação de Bubrov. Azar seu que tivesse sido acidentalmente observado por umguarda-florestal, que ficou surpreendido ao verificar como A 5fazia um buraco debaixo da raiz de uma árvore, espreitava lápara dentro e voltava depois a cobri-lo com folhagem. Não se pode levar a mal que um polícia de aldeia poucoconheça ou nada saiba dos hábitos da espionagem internacional.Retira alguma coisa dos romances, vê-os na TV ou nocinema, e de vez em quando também os jornais e as revistas

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publicam notícias rocambolescas sobre agentes que saltam depára-quedas ou se infiltram disfarçados. Contudo, tudo isto fazlembrar os acontecimentos das velhas e sangrentas lendas heróicase nada têm a ver com a realidade. Por conseguinte, também Aloys Pettinger, chefe da polícia,esboçou um sorriso quando o guarda-florestal Wilm Hartmanno informou, junto à mesa de trabalho, a respeito daquele cómicoindivíduo que estivera a escavar debaixo da raiz de umaárvore. - E daí? - perguntou Pettinger. - Foste lá verificar? - Fui. Não havia nada. - Nesse caso, porque estás tão excitado? - Por ele ter feito um buraco e não haver nada lá dentro. - Talvez ele quisesse apenas aliviar-se e o tenhas perturbado!- retorquiu o chefe da polícia Pettinger. - Comopessoa civilizada, fez primeiro um buraco. - O buraco já estava feito. - Melhor ainda. Viu o buraco e pensou: "É mesmo ali que

me vou agachar... - Ele parecia procurar alguma coisa. - Na floresta? - É isso mesmo, Aloys! O que procura uma pessoa nafloresta? Há por conseguinte qualquer coisa que não está bem.Ele abriu o buraco, espreitou lá para dentro e fechou-onovamente. Devia conhecer o sítio. Queria encontrar qualquercoisa no buraco! O chefe da polícia Pettinger levou a caneca de cerveja àboca, engoliu uns goles, pousou-a e limpou a espuma doslábios. - Em que estás a pensar? - perguntou. - Podia ser um receptador em busca de mercadoria" quente ". - Esses não têm esconderijos na floresta. Seria uma idiotice.Os receptadores moram em casas normais e parecem homens dignos.Que aspecto tinha esse teu homem? - De estatura média e magro. Vestia um casaco de algodãocinzento e um barrete de malha enterrado até às orelhas.Não sei portanto a cor do cabelo. - Com isso não se pode começar nada - retorquiu Pettinger,fitando a caneca de cerveja e pondo-se a reflectir. Não lheocorreu a ideia de que pudesse tratar-se de um "marco postal".Como poderia ter-lhe ocorrido? A suposição de que agentes semovimentavam na floresta era um absurdo. - Com isso não sepode começar nada - repetiu após uma reflexão prolongada.- De qualquer maneira pode manter-se a árvore sob vigilância. Seo tipo voltar, seria motivo para o observar de maisperto. Mas ele não volta, Wilm. Apesar de tudo, na manhã seguinte Aloys foi de automóvelà floresta, onde o guarda-florestal Hartmann lhe mostrou aárvore. Afastaram a relva, espreitaram para o buraquinho efitaram-se. - É habitado! - declarou Hartmann. - Só se for por um anão! - retorquiu Pettinger com umesgar. - Habitado? - Quero dizer: tem qualquer objectivo. Alguém o temmantido limpo. - Uma perversidade talvez? - Pettinger endireitou-se,olhou em volta e sacudiu a cabeça. - Demasiado próximo daestrada. Não sei se deva comunicar isto. - Manteve-se silenciosoaté Hartmann ter voltado a tapar o buraco com folhas e

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húmus. - Podem tomar-me por idiota. Só que podia dizer quefoste tu que me meteste nisto. - Entendido, Aloys. A informação de Aloys Pettinger seguiu, portanto, pelasvias convenientes. Na medida em que não se relacionava comum assalto ou assassínio, um desvio ou terroristas, apenas foilida superficialmente, troçada e posta de lado.

Um guarda-florestal avista um fantasma na floresta Unteracher.O homem podia andar à procura de cogumelos. Talvezfosse um pesquisador de cogumelos, um micólogo. Encontram-secogumelos em todas as épocas do ano e também nos troncos deárvores. As pessoas só ficaram mais alertadas quando oguarda-florestal Hartmann telefonou e informou nervosamenteque o estranho tinha aparecido outra vez junto da árvore econtrolado o pequeno buraco. Era assim visível que esperava qualquer coisa. Também nessa altura ninguém pensou ainda em agentes. Naperspectiva da polícia, era pura e simplesmente claro que osuspeito procurava mercadoria "quente", Possivelmentebrilhantes ou jóias, obras de arte ou moedas valiosas, talveztambém uma quantia em dinheiro. Fosse como fosse, era proibido.Era novidade que alguém se dedicasse a esse tipo detransacçÕes na floresta. A Polícia de Munique foi informada. Trocaram-se as primeirasimpressÕes com o comissariado. Nada se sabia de qualquer rapto.Havia quatro casos de chantagem, mas em nenhumdeles se exigia uma entrega de dinheiro na floresta. Além dissoninguém conhecia o montante pedido. Decerto seria bastanteelevado. E quanto ao produto de um roubo que pudesseesconder-se num buraco? Pensou-se no recente assalto por umnegociante de selos. Mas qual seria o entendido em selos e noscuidados exigidos pelos mesmos que fosse escondê-los numlugar húmido? - Partamos do princípio que se trata de chantagem. - Foieste o resultado da discussão. O chefe da brigada criminal fitouo chefe do comissariado. - O facto de o homem já ter estado por duas vezes nolocal leva a supor que irá uma terceira vez. Se ele nada tirardo buraco, nada se fará excepto continuar a vigiar. Quem sabe amina de ouro que se esconde por detrás? A partir dessa manhã foram postos dois agentes permanentementeemboscados. O guarda-florestal Hartmann tinha construído umaespécie de abrigo num arbusto cerrado e que não podia seravistado de onde quer que fosse.Os polícias mantinham-se enterrados até ao peito num género detrincheira rodeada de arbustos. Tinham na frente asmetralhadoras, uma máquina fotográfica, binóculos e ummegafone provido de pilhas para poderem gritar: "Alto! Fiquequieto!" Nada podia correr mal, se o homem voltasse ao buracojunto da árvore. Ele apareceu no dia seguinte. De facto, Peter Hãmmerlìng não quisera ir, mas MinherHarrelmanns pressionava, telefonava diariamente e afirmavaque Franz-Josef tinha prometido uma comunicação importante. - O nosso amigo de negócios aguarda insistentemente. - disse

o amável importador de fruta. - Está a ficar impaciente. - Eu também! Porque é que Franz-Josef não me dá notíciaspessoalmente?

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- Deve ser coisa "quente". - Ele pode sempre falar comigo e em qualquer altura. Masnão quer. Há qualquer coisa que não corre bem. Receio queessa tal Irene Walther o tenha debaixo da sua alçada; ela deveser uma boa cama. Franz-Josef está simplesmente desmoralizado. - Não nos devemos importar com as suas obrigaçÕes decama! - riu Harrelmann. - Controle diariamente o ponto deencontro. Por conseguinte, Hãmmerling voltou à floresta por volta domeio-dia. Já tinha controlado três ".marcos postais." vazios edeixara um bilhetinho: "Comunica, Franz-Josef! A Tia Emmyestá impaciente!" Não deixara o automóvel na estrada, mas num desvio comofaziam os passeantes que iam da cidade até aos bosques, a fimde aproveitarem a atmosfera rica em ozono. Aliás, o tempo nãoestava muito convidativo. A Primavera retirava o verde dosrebentos das árvores, mas chovia ininterruptamente e fazia frioe vento. Apenas os idealistas amigos e simpatizantes da naturezase dispunham a um passeio. Os dois polícias de guarda mantinham-se no esconderijo,tinham coberto a cabeça com um pano de lona e mostravam-secarrancudos. Estar acocorado no meio dos arbustos com umtempo daqueles e molhados até aos ossos - será que umacoisa assim fazia parte do seu dever de polícias? Além disso,se se pensasse logicamente, era de esperar que um tempo assimtambém impedisse o desconhecido de inspeccionar o misteriosoesconderijo. Por volta do meio-dia, exactamente quando os políciastinham desembrulhado o pão com manteiga e bebiam caféconservado nos termos, surgiu Peter Hãmmerling. Vestia umimpermeável, usava um chapéu e protegia-se além disso comum guarda-chuva cinzento-escuro. Tinha virado as dobras dascalças por causa da humidade; usava meias de lã de umcinzento-azulado e calçava sapatos pretos de sola de borracha. Os dois polícias entreolharam-se e puseram de lado o pãocom manteiga. Era aquele o homem? Tudo indicava tratar-se de um inofensivo passeante. Contudo,qual a pessoa que vai passear calmamente para a florestacom um tempo daqueles? E já se ouviu falar de um jovemrobusto que utilize um guarda-chuva? Os polícias trocaram uma piscadela de olhos: "Espera,camarada! Se ele se dirigir ao esconderijo, atacamos! Se passarao lado, é apenas um amigo da natureza!" Peter Hàmmerling meteu a mão no bolso do impermeável,retirou o papel com a informação, dobrou-o ao meio e prendeu-o

com os dentes. Ao chegar à árvore, parou, segurou o guarda-chuvacom a mão esquerda e serviu-se da direita para retiraras folhas e o húmus da cavidade. O comportamento não deixava dúvidas. Os dois políciasactuaram. Um deles pegou no megafone e rosnou: - Alto! Não se mexa! Levante as mãos! Polícia! O segundo desembaraçou-se dos arbustos com a metralhadora empunho, embora tivesse tropeçado na lona com o péesquerdo. Hãmmerling sobressaltou-se com a primeira ordem, o papelcaiu-lhe dos dentes e fitou surpreendido o polícia que escorregouno chão da floresta. Em seguida, assistiu ao aparecimentodo segundo polícia, que rompera através dos arbustos e reconheceude imediato que a fuga era impossível.

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- Fique quieto! - voltou a rosnar o polícia que tinha omegafone, se bem que Hãmmerling não se mexesse. O seu colega que tropeçara pôs-se em pé, pronunciou." Merda" entre dentes e apontou-lhe a metralhadora aoestômago. - Aproxime-se! - ordenou bruscamente. - Devagar. Levante asmãos! - E o meu guarda-chuva? - Chega a mão que tem livre. Hãmmerling aproximou-se três passos. Em seguida, parouna expectativa e avaliou a situação. As instruçÕes em casossemelhantes eram claras: falsas declaraçÕes, silêncio e tentativade descobrir o que pretendia o adversário. Quando era oportuno,defesa - se fosse sensata. E era sensata naquele momento? Os polícias surgiram na sua frente. A chuva abatia-se sobreos corpos, semelhante a uma queda de água. Hãmmerling quasesentiu pena deles. Cobriu-os com o guarda-chuva e esboçouum aceno amistoso. - Serve para todos - declarou num tom amigável. Os polícias ficaram um tanto embaraçados. Tal não se enquadravano comportamento de um criminoso. - O que está a fazer aqui? - perguntou o do megafone.Tinha mais uma estrela do que o outro no ombro e tomou a seucargo o interrogatório. - Ando a passear. - Foi o que pensámos. - Nesse caso, está tudo esclarecido. Só não sei por que segrita a um passeante e se lhe aponta uma metralhadora. - A passear com uma chuva destas? - Gosto da chuva. Quando açoita estas árvores tão altase as gotas pingam dos ramos, quando a terra fica húmida emole, é uma maravilha passear pela floresta. É impossível nãose ficar maravilhado. - Pode ir contar essa à sua avó.

- A minha avó era também uma grande amiga da natureza. Acampavafosse com que tempo fosse. Numa tenda! Numsaco de campanha. E de que morreu? Não foi de pneumonia.Não. Escorregou num chão encerado e quebrou a espinha! - Nome? - Sophie Hallerbach! - O seu nome! - grunhiu o polícia. - Jens-Maria Budde - respondeu Hãmmerling com umaleve risada. - O Maria perturba-me sempre, mas os baptizados nãotêm voz... - O seu bilhete de identidade, por favor. - Se o tiver comigo, é para já. Contudo, jamais iriapensar que ao dar um passeio me pedissem a identificação.Ou faz parte da lei que agora quem anda a passear traga umnúmero como se fosse a matrícula de um automóvel? Tudo épossível neste país! Os que andam a cavalo já têm de usar umaplaca. Porque não os passeantes? - Hãmmerling ergueu ochapéu-de-chuva. - Aproximem-se, meus senhores. Vão ficartodos molhados. Se nos juntarmos, o guarda-chuva chega paratodos. Os polícias formaram fila. Hãmmerling olhou de relancepara a metralhadora. Satisfeito, verificou que ainda não estavaarmada. Colocá-la pronta para disparar era uma questão desegundos, mas também esses segundos eram necessários. A chuva batia de encontro ao megafone que o outro polícia

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mantinha às costas. - O que têm contra mim? - perguntou Hãmmerling. - Que andea passear à chuva? Há nadadores que durante oInverno quebram o gelo para nadar nos rios e nos lagos. Comodevem parecer anormais aos olhos da polícia! - O que pretende daquela árvore? - Há imensos cogumelos próximo. - Não nesta época do ano. - Pensei que com esta permanente humidade pudessemrebentar alguns. Tratava-se de uma argumentação irrefutável. O polícia quetinha uma estrela mais coçou o queixo. - O seu bilhete de identidade! Hãmmerling esboçou um aceno de cabeça. Desabotoou ocasaco sob o impermeável que pingava, mostrando-se muitodesajeitado. - Quem é capaz de me segurar no guarda-chuva, por favor? -pediu. - Caso contrário, não consigo procurar nosbolsos. O polícia que segurava a metralhadora ofereceu-se para segurarno guarda-chuva. Hãmmerling respirou de alívio. Tãodepressa ser-lhe-ia impossível servir-se da arma. Uns segundosterríveis, apoderar-se da metralhadora - precisaria de quatrosegundos - não, eram dois segundos!

Hãmmerling fez menção de tirar a carteira do bolso. Noentanto, logo em seguida as suas mãos dispararam, agarraramas cabeças dos polícias à sua esquerda e à direita e bateufortemente com uma de encontro à outra. Atingiu simultaneamenteo homem do megafone com o joelho nas partes baixas,ao mesmo tempo que um punho acertava em cheio no queixodo que segurava o guarda-chuva. O polícia que tinha recebido o pontapé nos testículosmantinha-se agachado, inclinado para a frente e com as mãosno sítio dorido, incapaz de actuar. A dor, insuportável,prendia-lhe os movimentos. Hãmmerling aproximou-se dele,bateu-lhe com a palma da mão aberta na nuca e libertou-o porlongo tempo da dor. Inclinou-se tranquilamente, apanhou o guarda-chuva, examinouos dois polícias inanimados e em seguida correu nadirecção do automóvel. Tinha executado um trabalho deprecisão. No entanto, cometeu um erro grave: esqueceu-se dobilhete... Após esta derrota da polícia, alarmada principalmente pelaresistência do suspeito, que desta forma comprovara não serum inofensivo passeante, a Polícia Judiciária só entãointerferiu. Uma busca imediatamente ordenada revelou-se, noentanto, como tempo perdido na medida em que, quando os doispolícias deitados por terra e o automóvel de serviço foram porfim encontrados pela guarda e puderam lançar o alarme, hámuito que Peter Hãmmerling estava sentado no seu quarto ecomunicava o incidente para Bruxelas. - Para mim é um enigma aquela emboscada da polícia. - disse,respirando com dificuldade e ainda vestido com as roupasencharcadas pela chuva. - Não ando a ser vigiado. Contudo, nãofoi um acaso. A polícia conhecia o esconderijo. Como,pergunto? É tudo muito estranho. - Por agora mantenha-se quieto - respondeu Harrelmanns, num tomsurpreendentemente calmo. - Acha que oreconheceram?

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- Ninguém me conhece! - Será possível reconstituírem um retrato-robot seu a partirda descrição que os dois polícias fizeram de si? - Dificilmente. Tinha o barrete de malha enfiado até àsorelhas. Chovia em catadupas. - Chovia o quê? - retorquiu Harrelmanns. Como iria saber umrusso o que aquilo significava? - Chovia imenso. A água escorre-nos pela cara e porconseguinte fica-se com uma aparência diferente da normal. - Destrua o barrete, o impermeável, o fato. Tudo o quelevava vestido. - Entendido. - Hãmmerling fixou pensativamente a parede. Aliestava pendurada uma gravura a cores, Entardecer em

Ishia. Uma ilusão para os ignorantes. - E voltando aoretrato-robot, não seria aconselhável ir passar umas férias longedaqui? Por exemplo em Ischia? - É um caso a considerar. Vou informar-me. - Quem não aparece, é impossível de reconhecer - declarouHãmmerling num tom suave. - Decorridas algumas semanas já ninguémtem a imagem na cabeça. De momento, já nãoposso ocupar-me de Franz-Josef. - Nem pensar nisso - concordou Harrelmanns, parecendoreflectir. - Muito bem. Vá então, viajar - acrescentou. -Contudo, preciso sempre de saber onde contactá-lo. - Comunico imediatamente quando chegar às termas deCaesaren. - E nada de histórias com mulheres! Seria uma idioticenesta situação. - Nem um eunuco aguentaria Ischia sem mulheres. - A responsabilidade é sua! - retorquiu Harrelmannsmais secamente. - Já temos sarilhos que cheguem neste caso. Enquanto Hãmmerling contactava telefonicamente comBruxelas, a Polícia Judiciária tomara a seu cargo a busca depistas. As pegadas no solo ensopado da floresta nada revelaram;tudo se confundia. As únicas marcas reconhecíveis tinhamsido deixadas pelo megafone e pela metralhadora, quando sehaviam enterrado no solo molhado juntamente com os políciasatirados por terra. Também se encontraram evidentemente as marcas dospneus no atalho onde Hãmmerling estacionara o automóvel.Eram confusas mas apesar disso foram retiradas. Talvez aindapermitissem qualquer identificação. O automóvel também tinhaperdido óleo. Deitou-se a terra brilhante de óleo num saco deplástico. Era possível que o laboratório pudesse identificar amarca. Além de que a mínima esperança é sempre umaesperança. Relativamente à descrição da pessoa, foi dramático. Cadaum dos dois polícias recordava-se do criminoso de maneiradiferente. Não poderia imaginar-se que tal coisa acontecessecom polícias que supostamente têm de reparar em todos ospormenores e efectuar descriçÕes exactas. Nada deve escapar-lhesda ponta dos cabelos à ponta dos pés. E visto que os doispolícias, segundo o relatório feito, tinham estado próximo docriminoso e abrigados pelo seu guarda-chuva, não se compreendiaporque é que cada um deles via o criminoso de maneiradiferente. Começou-se pelo barrete. Era cinzento, era castanho... osolhos eram azuis, os olhos eram castanhos... tinha mais oumenos 1,74 de altura, mas também podia ter 1,80. Tinha umrosto redondo, tinha um rosto marcadamente afilado. Falava

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alto-alemão, com um ligeiro sotaque bávaro. Tinha trinta anos,mas também podia andar pelos quarenta. As opiniÕes só coincidiam

no facto de ser inteligente e um canalha com sangue-frio. A cenaem que pusera um dos polícias a segurarno guarda-chuva a fim de poder atacar à vontade erahollywoodesca. Após as declaraçÕes, o comissário encarregado da investigação,habituado a problemas, fez um retrato-robot quepodia ter saído de um espelho de feira. - Assim, nunca o poderemos identificar - disse ao seuprimeiro-sargento, que regressou com o saco de plástico,cheio de terra com óleo, ao carro de reserva, uma carrinhaVW. - Tudo se passou muito rapidamente e além disso oscolegas ainda se encontram em estado de choque. Você repararianos pormenores, Michéls, se alguém lhe desse umpontapé no sítio? - Acho que não - respondeu Michels com um esboço desorriso. - Já tinha bastante com que me ocupar comigo. - Dispomos, por conseguinte, de duas descriçÕes de criminosos.Utilizemos um truque: vamos fazer o retrato de ambos efazer acreditar que são dois! Fizeram mais uma pesquisa no local do ataque e foi Michelsquem descobriu o papelinho molhado e sujo por detrás de umaárvore. Ainda conseguia perceber-se a letra. Tinha sido escritacom uma boa esferográfica à prova de água. "Comunica,Franz-Josef. A Tia Emmy está impaciente. " - Aqui há coisa! - declarou o comissário, ao mesmotempo que metia cuidadosamente o papelinho num invólucrotransparente. - Quem é Franz-Josef? - Não é de certeza o rei da Baviera. - E a Tia Emmy? Se foi criminoso que perdeu isto, temosduas coisas distintas em mão: a sua caligrafia e dois nomes! Etemos um motivo: ele queria deixar aqui uma mensagem... estamensagem. O buraco junto da árvore é sem dúvida um esconderijo."Comunica, Franz-Josef. A Tia Emmy está impaciente. ," Isto soamesmo a chantagem. - Ou é uma palavra de código... - retorquiu Michels. - Mas isso era de estoiro! - exclamou o comissário, fitandosurpreendido o seu primeiro-sargento. - Donde lhe veioa ideia? - à noite, costumo ler romances do FBI - disse Michelsquase envergonhado. - Oh, céus! - Já sei. Umas vezes é um idiota chapado, mas muitasdelas... "Comunica, Franz-Josef... " O texto é tão cómico.Uma coisa destas não se pÕe na floresta debaixo da raiz de umaárvore. - E ainda por cima manda dois polícias para o hospital. - Ocomissário voltou a observar mais uma vez o papelinhometido no invólucro de plástico. - Se a mensagem pertenceao criminoso, Michels, o caso pode ser quente, dadas as

circunstâncias! Deve resolver o fundamental. Em Munique as averiguaçÕes do I Comissariado relativas aomisterioso pedaço de papel provocaram uma profunda reflexãoa que se seguiu uma entusiástica actividade. O director daJudiciária era de opinião que o texto se enquadrava tipicamenteno género da conspiração, no que era ajudado pelo comportamentodo criminoso, assim perfeitamente lógico. O caso foi imediatamente entregue ao Departamento 14, o

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Departamento da Política, pelo chefe da Polícia de Munique elogo transmitido ao departamento local de Defesa do Estado,ao Departamento Criminal local da Baviera, Secção VIB, aoDepartamento Criminal Nacional, Secção St., em Bad Godesberg, eà Direcção Criminal II de Munique, dado que também se consideravapossível tratar-se de um simples delito de chantagem. - O texto é típico - repetiu o chefe da Judiciária numaconferência. - Possui o tom exacto de uma transmissão a queestamos habituados no campo de actividade dos agentes. Tenhocuriosidade em saber se Franz-Josef e a Tia Emmy já constamdos registos. Não constavam. Eram nomes recentes. De todos os departamentoscontactados foi recebida uma resposta negativa. O "marco postal," tinha perdido o interesse. Dali não viriamnovas informaçÕes. Estava desperdiçada a grande oportunidade deexaminar as notícias entre o emissor e o receptor epenetrar assim no círculo deste grupo de agentes. - Quem ia imaginar uma coisa destas? - retorquiu o regedorofendido, quando o chefe da polícia lhe deu a entender, pormeias palavras mas sem deixar lugar a dúvidas, que tinha atingidocaça grossa. - Não posso perseguir como espião cadahomem que se agacha na floresta! O Departamento 14 preparou dois retratos-robots segundoas indicaçÕes fornecidas pelos polícias e enviaram-nos para asrestantes secçÕes. Observaram-se as fotos e procedeu-se àconsulta de um computador. Contudo, os retratos não eram dequaisquer agentes conhecidos. Um homem novo. Onde procurar, onde investigar, ondeinterrogar? Os agentes duplos que faziam parte dacontra-espionagem em Colónia a nível de defesa nacionalinformaram: completamente desconhecido. - Pode ser peixe miúdo, mas também pode ser peixegrosso! - declarou o director do Departamento 14, após recebidastodas as averiguaçÕes negativas. - Não acredito numsimples caso de chantagem. O indivíduo era esperto de mais.Um sangue-frio como o dele provoca-me comichão na pele.

Peter Hãmmerling viajou imediatamente. Tomou o aviãopara Ischia, e instalou-se num quarto de um hotel médio comvista para o mar e terraço; estava convencido de que aquininguém iria reparar num retrato-robot nos jornais alemães

para o caso de vir a ser publicado. Comunicou para Bruxelas e foi informado por MinherHarrelmanns de que todo o aparelho alemão de espionagem seencontrava em movimento. - Deus do céu! - exclamou Hãmmerling, verdadeiramentesurpreendido. - Como é possível? Não havia qualquerpista. - Você esqueceu-se de um papelinho - retorquiu Harrelmanns numtom de censura. - Com uma intimação a Franz-Josef. - Oh! Merda! - Uma palavra adequada! O meu informador também estavaespantado. Uma sorte que apenas três homens saibamquem é Franz-Josef. - Que devo fazer? - perguntou Hãmmerling, num fio devoz. Uma falha numa profissão como a dele é sempre crítica.Em Moscovo só o êxito interessa. - Por agora deixe-se estar em Itália - respondeu Harrelmannsnum tom bastante frio. - Volto a entrar em contactoconsigo. Tem dinheiro que chegue?

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- Tenho. - Ainda bem. De mim também não teria recebido maisnenhum! Hãmmerling viu-se com o auscultador desligado na mão.A última frase tinha-o atingido em cheio. Sentiu a pele suadade medo. Pelo espaço de um momento ainda pensou em telefonar aBubrov e avisá-lo, mas talvez já fosse tarde de mais para isso.Se bem conhecia Harrelmanns, este já tecera uma rede à volta deBubrov e pusera-o sob vigilância de homens novos que tambémele desconhecia. O telefone podia igualmente encontrar-se sobescuta e Hãmmerling não queria, de forma alguma, comunicarmais para o local de trabalho. Se a mínima suspeita incidisseem Bubrov, ele já estaria a ser vigiado. Hãmmerling não estavanada interessado em alongar a pista até Ischia.

Nesse dia Bubrov referiu de passagem a Irene, quando nodomingo já estavam sentados há um bom bocado numa pastelaria deSchwabing: - Conheci um indivíduo interessante. Um representante dedetergentes ou delegado ou qualquer coisa do género de umacompanhia americana. Um mero acaso. Tinham deitado açúcarno meu reservatório de gasolina e começámos a falar na oficina.Tem um Ford em bom estado e podia comprar-lho porum preço acessível. Andei a experimentá-lo, enquanto esperava queme fizessem a reparação. - Gostavas de ter um automóvel, querido? - perguntouela. - Era apenas uma ideia - respondeu Bubrov, enquantomexia com a colher a sobremesa, gelado de baunilha com Cointreau

servido numa grande taça. - Também me falou daAmérica. Tem lá uma série de conhecimentos. Um tio dele estáà frente de um projecto fluvial. Muito interessante mesmo. Ela fitou-o, mas ele desviou o olhar. Ainda não tinha abordadoo problema de Boris com o Dr. Ewingk. Falar-lhe daexperiência secreta era totalmente impossível. Apesar da amizadequase paternal que ligava o Dr. Ewingk a Irene Walther,seguir-se-ia a única consequência possível. As pesquisas da Bio-Agrar enquadravam-se nos mais altossegredos de Estado. - Achas que te deixam emigrar para os Estados Unidos?perguntouela. - Porque não? - Sendo um russo? - Precisamente por isso. Onde é que Solschenitzyne viveactualmente? Em Vermont! E Siniavski? Igualmente na América!Solschenitzyne, um homem que possa ser indicado como dissidente.Não és um desertor político, não és perseguido pelaKGB, és apenas um homem apaixonado que desviou um aviãopor minha causa e a quem amo acima de tudo neste mundo.Mas isso não é suficiente para justificar a emigração para osEstados Unidos. Ante a referência à KGB, Bubrov tinha pestanejado ligeiramente,ainda que mantendo uma expressão impassível. - Apenas tenho um pensamento - disse ele. - Precisode saber ao certo se também queres ir para a América. - Não quero. - Sacudiu negativamente a cabeça eBubrov olhou-a surpreendido. No entanto, ela acrescentou logoem seguida: - Mas vou para onde tu fores. Somos dois seresnum só. Jamais te abandonarei.

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- Devia ser o homem mais feliz do mundo! - replicouBubrov num tom surdo. - E diabos me levem se não serei. Pensou em Bruxelas, naquele Harrelmanns da importaçãode fruta, e julgou saber o que havia a fazer de momento.

Harrelmanns chegou a Munique num Boeing da Sabena einstalou-se num hotel de luxo do centro. Foi-lhe atribuído umbelo quarto com mobília de estilo inglês, vista para o Karlstore para a Kaufingerstrasse; encomendou uma pequena ceia comsalmão e caviar, preparou um cocktail com a ajuda das bebidasdo minibar existente no quarto e pôs-se a observar satisfeito otráfego movimentado, lá em baixo. Decorrida uma hora ligou para o Departamento Hidroagrário,identificou-se como membro de uma firma de estiradores epediu a ligação com Bubrov. - Tenho uma boa proposta a fazer - disse sem qualquerintrodução prévia. - Onde poderemos discutir o assunto - Com quem estou a falar? - retorquiu Bubrov. - Sou representante de uma firma de equipamento de escritório

de Bruxelas. Ouvimos dizer que anda à procura de umamesa de desenho especial. Pode arranjar-se. As narinas de Bubrov dilataram-se, ao mesmo tempo quesemicerrava os olhos. Tinha chegado à central da Europa.O prazo concedido por Ussatiuk terminara. Bubrov já o esperara,mas tinha acreditado ser capaz de deter o inevitávelaté ter contactos mais estreitos com a América e partir semsensacionalismo. A impaciência de Ussatiuk modificava asituação. - Tem propostas a fazer? - replicou calmamente. - Temos elementos concretos. - Onde poderemos encontrar-nos? - A secção de géneros dos Armazéns Hertie é muito boa.Têm um vinho de reserva. - Posso aparecer daqui a uma hora. - Por mim, acho óptimo. - Harrelmanns desligou, preparou maisum cocktail e serviu-se de uma revista de Muniquepara estudar os anúncios dos clubes de sauna e bares privados.Já que ia passar a noite em Munique, queria viver. A mudançaacalma os nervos. Decidiu-se por um dos pequenos anúncios: "Loura e ardente.Tel. ...",, e sublinhou-o com uma esferográfica. Os entendidossabem que estes pequenos anúncios são os melhores. Exactamente uma hora depois Harrelmanns estava no localmarcado com Bubrov. Tinha gravado a sua imagem na memória; asfotografias dos seus agentes ou dos que lhe cabia dirigirestavam no cofre de um banco e ele não se apresentavaevidentemente com o nome de arrelmanns; ali chamava-seVerdeumen. O pequeno cofre que continha a documentação tinhaacoplado um mecanismo requintado. Se alguém levantasse atampa sem se utilizar do código adequado accionava um mecanismoe logo se verificava um incêndio em miniatura que destruía tudode imediato. Além disso, todos os elementos seencontravam escritos num papel especial que em contacto como fogo ficava reduzido a cinzas irrecuperáveis. Harrelmanns reconheceu imediatamente Bubrov, no instanteem que ele entrou na secção de géneros, se deteve aqui e ali,comprou duzentos e cinquenta gramas de presunto num dosbalcÕes e retirou da prateleira de vinhos uma garrafa de roséfrancês da região de Provence. Em seguida, comprou ainda um pão enorme e três pastéis

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folhados. Harrelmanns achou que Bubrov estava a exagerar. Bubrov levou os sacos até junto do balcão, encomendouuma cerveja e tirou um dos pastéis de dentro do saco. Partiu-oenquanto esperava que lhe servissem a cerveja e deu umadentada. O folhado estalou. - Bom apetite - desejou Harrelmanns num alemão comsotaque francês. Bubrov, que ainda não o tinha visto, lançou-lheum olhar amistoso.

- Obrigado. - Não conheço esses pastéis. Sou estrangeiro aqui. Vale apena provar? - Sem dúvida. Uma especialidade. Quando se está numpaís desconhecido, devem-se sempre provar as especialidades.Por exemplo, as batatas fritas de Antuérpia. - E de Bruxelas também - retorquiu Harrelmanns numtom de satisfação. O contacto estabelecera-se. Bubrov bebeu um longo tragode cerveja e deu outra mordidela no pastel. - Não conheço Bruxelas. - acrescentou, ao mesmotempo que examinava cuidadosamente Harrelmanns por cimada beira do copo. - Mas tive lá um amigo que se chamaOrlovski. - Mikail Iefimovitch... - riu Harrelmanns. - Como estemundo é pequeno! E esse tinha um amigo que se chamavaFranz-Josef. Toda a desconfiança estava posta de lado. Bubrov partiumais um pouco do pastel e rodou-o entre os dedos. Conservavam-se em pé junto do balcão, ao fundo, ninguémos observava e ninguém podia escutar as palavras que trocavam.Não havia pessoas atrás e era-lhes possível observar asidas e vindas dos clientes. Estavam seguros a nível de surpresa. - Escuto, Mikail Iefimovitch! - declarou Bubrov tranquilamente. Tinha feito uma imagem diferente do coronel da KGB.O indivíduo com quem falava era um homem jovial, um tantopesado, de cabelo preto e as faces permanentemente coradas deum diabético. Contudo, a impressão agradável logo se desvaneciaao examinar-se os olhos negros e frios. Eram os olhos deuma pantera. - Preferia ser eu a escutar qualquer coisa - replicou Orlovskicom um esgar. - Sulfi Ivanovitch também é um bomouvinte. - Na fase actual ainda é impossível penetrar no âmbito daBio-Agrar - declarou Bubrov sem rodeios. Orlovski ergueuas sobrancelhas espantado. Era necessário falar tão claramente?- Também nenhum de nós ainda conseguiu pôr o péno famoso Fort Knox. - Não lhe cabe procurar ouro, mas bactérias, BorisAlexandrovitch. Além de que em Fort Knox não há uma belamulher disposta a fazer tudo por uma carícia... - Gostaria de pedir-lhe que não fale tão depreciativamentede Irininka! - interrompeu Bubrov num tom duro. - Haha! - exclamou Orlovski, fitando-o. - Será queSulfi Ivanovitch se enganou? Apaixonou-se mesmo? Contradiga-serapidamente, Boris Alexandrovitch, porque senão talseria uma catástrofe! Recebeu a missão de trabalhar de corpo ealma, mas não de coração! Foi enviado para aqui, camaradaBubrov (espero ainda poder chamar-lhe assim!) para

defender a sua pátria de uma ameaça de morte. - Amo Irina!

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- óptimo. Tomo isso em consideração. Contudo, você éacima de tudo um russo soviético! O nosso melhor homem,Boris! O orgulho de Ussatiuk! - Também nós temos armas B e C, Mikail Iefimovitch.Temos a "chuva dourada?,, um elevado concentrado de micotoxinasdo grupo das tricotezinas, que se a espalharmos provocaa morte no espaço de minutos ou, em casos mais difíceis, dehoras. O homem afoga-se no seu próprio sangue. - Desconhecemos, porém, essa bomba de bactérias alemã,esta nova cultura, a destruidora dos pulmÕes! Será que hámotivo para discutirmos, Boris? Você recebeu uma ordem! - E tenho um microfilme! Orlovski respirou fundo. O rosto adquiriu um tom lívido. - O que tem você, Boris? - Fotografei as anotaçÕes do diário da doutora Walther. - Excelente! E qual o conteúdo? - A voz de Orlovskisubiu um pouco de tom. - Sotschi, quinta-feira, tantos de tal.Noite maravilhosa com Boris. E assim por diante. - Orlovskiengoliu em seco, tal a excitação. - Ussatiuk vai deitar foguetes.Ou tem mais alguma coisa a oferecer-nos, BorisAlexandrovitch? - Uma informação exacta sobre a pesquisa das bactériascom a chave da combinação. Satisfeito? - Oh, céus! E tem isso em filme? - Já lhe disse que sim. Nenhuns detalhes do laboratório,mas o plano geral. A informação básica. - E então, de facto, o nosso grande Bubrov! - exclamouOrlovski quase orgulhoso. - Agora compreendo que não tivessequerido entregar o material ao A Cinco. Agora, estou euaqui. Posso obtê-lo? - Não! - respondeu Bubrov, fixando o olhar em Orlovski. - Não.Dessa maneira, não. Tenho condiçÕes a propor. - Você é doido de todo, Boris Alexandrovitch - balbuciouOrlovski apanhado de surpresa. - Você pÕe condiçÕes aUssatiuk? Já alguma vez se assistiu a tal coisa?! Tem a salvaçãoda pátria na mão e pÕe condiçÕes! Faz favor. Eu escuto.Eu escuto. Orlovski estava tão excitado que passara a falar em russo.Tal jamais deveria acontecer com o chefe da KGB na EuropaOcidental, mas a atitude de Bubrov ultrapassava tudo o quevira até ali na sua carreira, de forma alguma monótona. - Suspeito o que pretende, Boris Alexandrovitch. Querlegalizar o seu amor por Irina! - Mais do que isso, Mikail Iefimovitch. - Ainda mais? Quer que Ussatiuk faça filhos em seulugar? - Se mantiver esse estilo de conversa, recuso-me a continuar

- retorquiu Bubrov. Acabou de beber a cerveja e mandou vir outra.Em seguida, comeu o resto do pastel eregozijou-se por Orlovski quase rebentar de raiva e deimpaciência. - Uma vez mais: o que é isso de condiçÕes? - Vivo no Ocidente e tornei-me corrupto. - Você não passa de um hipócrita filho da mãe! - Orlovski tinhaperdido a cabeça e quando se excitava utilizava alinguagem da sua ascendência de camponês de Dniestr. Era umfacto do conhecimento geral e de que Bubrov já ouvira igualmentefalar e por isso não lhe levou a mal. - Já esteve vezessem conta no Ocidente! - Mas nunca com Irina!

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- E portanto isso! Essa mulher hipnotizou-o! Uma idiotice! Mascontinuemos! O que se segue? - Eu entrego-lhe o microfilme. - Fez uma pequenapausa. - E é o meu último trabalho para a Tia Emmy! Orlovski fitou Bubrov como se ele lhe tivesse cuspido entreos olhos. O último trabalho? Isso significava: saída! Era uma coisa dessas possível? Imaginável mesmo? Umhomem como Brubov diz simplesmente: o meu último trabalho! Só aKGB decide quando se pode ficar em descanso e oque se tem de fazer nessas circunstâncias, para onde se vai ecomo se vive. Um homem como Bubrov pertence à UniãoSoviética e é uma coisa que ele sabe e assim viveu satisfeitoaté essa data e sentindo-se mesmo feliz por ser o grandeBubrov mimado por Ussatiuk. E agora ali está com um copo decerveja na mão, mordiscando um pastel e rindo de uma formatão provocante que apetece dar-lhe um murro nos dentes adizer muito simplesmente: eu saio! - Você está doente, Boris Alexandrovitch - retorquiu Orlovskinum tom mais acalorado. - Vou participar imediatamente o caso aSulfi Ivanovitch. Precisa de descanso, muitodescanso. Conseguirá restabelecer-se num sanatório! - Descanso na Sibéria? numa clínica com portas sem trinco?Talvez numa clínica psiquiátrica onde encontrarei personalidadesoutrora famosas? Até mesmo generais? - Sinto-me abalado! - disse Orlovski, ao mesmo tempoque rodeava o copo de cerveja com as duas mãos. - Vocêtornou-se realmente decadente! - Adquiri finalmente a liberdade de chamar as coisas peloseu próprio nome. - Onde estão os filmes? - perguntou Orlovski, que visivelmentenão tinha qualquer prazer em continuar com o debate. - Um filme apenas, camarada coronel. - Quando o recebo? - Em troca da minha liberdade. Gostava que me concedessem aliberdade sem dramatismos. Compreende, MikailIefimovitch?

- Como se atreve a ameaçar, Bubrov? Dói-me o coraçãosó de escutar tais palavras! - Orlovski inclinou-se para diantee já sem controlar a voz. - Não tem qualquer futuro aqui,Boris Alexandrovitch. Regresse à pátria e esquecemos todaesta conversa! - Porque estamos para aqui a falar sem nos entendermos? -Bubrov partiu o segundo pastel entre as mãos e colocou ospedaços em cima do balcão. Era o único indício do nervosismoque o tomava. Esta conversa estava a modificar todo o rumo dasua vida. Renegava o cidadão soviético Bubrov a fim de setornar apátrida. Nesta hora estava a destruir-se, cheio deesperança de que lhe fosse permitido tornar-se uma outra pessoa.- Já não sou um de vós. - É impossível! - Não é, Mikail Iefimovitch! - É o que você pensa. Para nós você permanece parasempre o que é agora. Até agora foi um herói silencioso eagora não passa de um traidor sem vergonha! - Muito bem! - concordou Bubrov com um aceno decabeça. - Encontrámos finalmente a tónica certa. Não precisade explicar-me como se tratam os traidores. - Isso facilita muito as coisas! Bubrov acabou de beber a cerveja e empurrou o copo paralonge, como se estivesse enojado.

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- Vou mandar-lhe o filme para o hotel - disse. - Quantotempo vai ficar em Munique, Mikail Iefimovitch? - Só depende de si, Bubrov. Se ainda recuperar a razão... - Nunca estive mais lúcido - retorquiu com um fundosuspiro. - Este filme é uma prova do meu amor pela minhapátria, e pelo meu povo. Entrego-lho para salvar a minhaRússia da destruição. É o meu dever. O meu último. - Ainda voltaremos a falar do assunto, BorisAlexandrovitch. - Não. Já falámos demasiado. Passe bem, Mikail Iefimovitch.Onde está alojado? Orlovski indicou o nome do hotel. No momento em queBubrov ia a voltar costas, agarrou-lhe no braço. - Boria... - disse num tom quase ameno. - Uma mulhernunca pode substituir a pátria. Um regaço de mulher não é aMãe Rússia. Bubrov empurrou a mão de Orlovski sem pronunciar palavra epercorreu o vasto corredor entre os expositores de venda.Não olhou para trás uma única vez. Nada oferecia da imagemde um vencedor com o seu andar de ombros inclinados paradiante - mais parecia um homem velho e cansado. Orlovski soltou uma imprecação, torceu o nariz e era visívelque não fora aquele o último encontro com Bubrov.

Os resultados das investigaçÕes chegaram, mas não foram

esclarecedores. A nível criminal quase não ofereciam interesse. Os funcionários do Departamento 14 da Polícia de Muniquenão se sentiam satisfeitos com as suas informaçÕes. ODepartamento de Defesa Nacional, o BKS, Secção St., em BadGodesberg, e o Departamento Criminal, Secção VIII, que tambémdeviam ocupar-se deste caso, eram de facto unânimes em afirmarque o texto descoberto se inseria totalmente no estilo deinformaçÕes dos Serviços Secretos, mas igualmente se acordava quenão existia realmente um bom início para desenrolaro fio à meada. O zelo da polícia destruíra por completo umabela pista. Em vez de proceder à prisão, deveria ter observadode todas as maneiras para colocar em ponto de mira estaaparentemente nova rede de agentes. No entanto, também a Directoria Judiciária II de Munique,especializada em casos de chantagem, teve uma palavra a dizere interferiu na discussão com a opinião de que se podia tratarde um simples caso de chantagem. Nesse caso, o buraco debaixo daárvore não passaria de um lugar para depósito dodinheiro do resgate. Quanto à pessoa sobre quem fora exercidaa chantagem dificilmente se poderia esclarecer agora, depois deos polícias terem sido vítimas de agressão. O assalto - graveofensa corporal - cabia ao âmbito do I Comissariado. As investigaçÕes do laboratório provaram-se desconsoladoras. O papel onde estava escrita a comunicação provinha dafábrica de papel Sudpapier, de Regensburg, e era distribuído àstoneladas pelos comerciantes da especialidade. Era um papelde escrita normal, sem celulose, de oitenta gramas, vulgar ebarato. Tinha sido preenchido com uma esferográfica azul,cuja marca não fora possível identificar. Podia tratar-se de umadessas esferográficas baratas e de deitar fora. Não havia dúvidas de que a pessoa disfarçara a letra. Asmaiúsculas tinham sido desenhadas conscientemente de umamaneira infantil e com uma ligeira inclinação para a esquerda.Em "Franz-Josef", o J estava escrito num desenho latino. Aoque parece, o autor não conhecia o J correcto.

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Não se encontraram evidentemente impressÕes digitais, apenasuma leve mancha de gorduras na beira do papel. Sobexame ao microscópio reconheceram-se linhas confusas. "Parece", concluía a investigação laboratorial, "que o autordo texto segurou o papel entre dentes durante breves instantes.?, Os dois polícias atacados, que ainda estavam internados nohospital, um com a nuca inchada e o outro com os órgãosgenitais afectados, não se recordavam de que o criminoso tivesseum papel entre os lábios. Tal era igualmente impossível,visto que Hãmmerling estava agachado, de costas para eles,diante do buraco, quando lhe haviam dirigido a palavra atravésdo megafone e deixara cair o papel com o susto. Apesar disso, os dois polícias que se encontravam naquele

deplorável estado ainda receberam uma ensaboadela pordescuido e que o colega da Judiciária que os interrogou disfarçoucom palavras polidas: - Vocês deviam ser hortelÕes. Com tantos tomates diantedos olhos... O retrato-robot que se fizera de Peter Hãmmerling - oumelhor dois, um com o rosto redondo outro com o rosto esguio,visto que não tinha sido possível uma concordância foi passadopor duas vezes na televisão e publicado umavez nos matutinos. O desconhecido procurado pela Políciafoi descrito como um ladrão perito em truques. A população nãoatendeu a que um ladrão, ainda que perito emtruques, não costuma desencadear uma busca a esse nível.O mesmo se passou a nível da imprensa; não fez menção a taisrequintes. Este retrato-robot mais não provocou naturalmente do quealguns telefonemas disparatados. O desconhecido fora vistosimultaneamente em Borkum e em Baden-Baden, em Winterberg, emSauerland e em Estugarda. Uma carta enviada deWirten, no Rur, serviu para provocar a hilaridade geral. Umajovem de nome Hermi Schlicker escrevia: "Só pode tratar-se deKarl Westerbusch, conhecido por Kalle. Há três meses que oindivíduo desapareceu, depois de me fazer um filho! Masnunca usou chapéu. Karl tem cabelo castanho e encaracolado.Verifiquem bem: tem um sinal de queimadura na nádega esquerda.Foi provocado por um maçarico. " O director do D 14 meteu a informação no laboratório e osrestantes documentos numa pasta. - Agora, só podemos esperar por uma obra do acaso.O que seria da criminologia sem ele! - rematou. Mas não foi acaso nenhum o facto de o técnico de detergentesEwald Reinberg ter telefonado para o escritório na manhãseguinte ao encontro de Bubrov com Orlovski no balcão doHertie. Bubrov, que tinha atrás de si uma noite de insónias,ficou como que aliviado ao escutar a voz de Reinberg. Tinha permanecido deitado horas a fio, de olhos fixos noescuro e interrogando-se sobre se deveria acordar Irene econtar-lhe toda a verdade. E à semelhança do que frequentementeacontecera nas últimas semanas tinha-se decidido pelanegativa. Como resistiria uma mulher como Irene se o homemamado lhe dissesse: "Tudo foi precisamente planeado e executadoaté ao mais íntimo pormenor; todos os erros imagináveis estavamcalculados - uma acção preparada à altura doestado-maior: a queda do burro na plantação de chá dos Dagomys, os dias e noites de amor em Sotschi, a despedida de partiro coração, o desvio do avião, o pedido de asilo... Tudo foram

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golpes de mestre do agente Bubrov, da KGB. Em seguida,porém, surgiu a mudança e o técnico de sangue-friotransformou-se no amante honesto que tenta por todos os meios

eliminar a sua vida passada e se afasta do campo de batalha;um homem que quer viver livre e feliz, à semelhança de milhÕesde outras pessoas que amam. Como pode ela acreditarem tal coisa?", Pesou uma série de hipóteses - mas tudo o que tomava emconsideração terminava sempre com uma catástrofe. Só tinha acerteza de uma coisa: a KGB de Moscovo não aceitaria calmamenteo afastamento de um dos seus melhores homens. Quemconhecesse Sulfi Ivanovitch Ussatiuk - e Bubrov conhecia-obem de mais! - sabia o que teria a esperar dele a curto ou alongo prazo. Ussatiuk não se precipitava. Podia atacar passadasdécadas e quando já ninguém se lembrasse de que alguma vezexistira um Bubrov. Moscovo não esquece nem perdoa nada. O mundo não tinha tamanho suficiente para que se pudesseescapar à cólera de um Ussatiuk. Ao pequeno-almoço Bubrov dissera: - Fala com o doutor Ewingk para ver se consegues férias,Irininka. - Já o fiz. O mais cedo é daqui a nove semanas. ,"Tarde de mais",, pensou. ,"Tarde de mais. Não serei capazde impedir a actuação de Orlovski durante nove semanas. Temde ser agora, nos próximos três, quatro dias. Não disponho demais tempo.." - Porque não mais cedo? - Estão a chegar as férias grandes. E os chefes de famíliatêm prioridade. - Soltou uma risada sem suspeitar do queestava a passar-se com Bubrov. - Faz parte das normas sociais,Boris. Deves ter compreensão. Não fazes ideia do custo de vida. - tenho uma mulher extremamente esperta - disseBubrov. - Por conseguinte, dentro de nove semanas... ,.Mas que nove semanas?,", pensou. "Vai ser uma lutahorrível. Não contra Ussatiuk, o que ainda vem longe, mascontra mim próprio. Tens de abandonar para sempre a tuapátria, Boris Alexandrovitch. Definitivamente. E terás de pagarum preço absurdo pela tua liberdade." E agora telefonava Ewald Reinberg. No dia exacto! - Pensei que pudéssemos almoçar juntos - disse Reinberg,alegremente. - Temos aqui em Munique um restaurantede especialidades russas. - Estive uma vez em Sotschi - cavaqueava Reinbergdespreocupadamente. - E provei todos os vinhos. Misturei Krimsektcom água mineral. E depois há aquele conhaque, de umtom dourado... - lubileiniv... - replicou Bubrov num tom pensativo. - E oDwin também é espantoso. - E a comida de lá! Devorei-a, simplesmente. Trutas commolho de nozes, pedacinhos de frango, borrego assado combatatas no forno... - Tschornoslivnaia baranina...

- E bolo de nozes à sobremesa... - Orechovie lepeschki... - Ainda me sobem lágrimas aos olhos, quando pensonisso... Essa Sotschi paradisíaca! - O rosto de Reinberg estavacorado de entusiasmo. - Nunca vi uma extensão de praiamais bonita do que a de Lasarevskoi. - Examinou Bubrov,que se conservava silencioso ao seu lado, um pouco reservado

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e olhando pelo pára-brisas. Notavam-se-lhe as maçãs do rosto ecerrava os dentes. Reinberg-Cohagen estava muito satisfeitoconsigo próprio. - Não conhece Sotschi, Herr Bubrov? - Conheço uma Sotschi onde um hotel aberto aos turistas recebetodas as coisas, enquanto a população normalpassa algumas semanas sem ver carne. E nessas alturas têmde estar em bicha durante a noite. - Bubrov fez um gestocomo se pretendesse afastar a ideia. - Tem razão, Herr Reinberg.Sotschi é uma cidade para os amantes. Uma propagandadissimulada. Contudo, não há que vê-la necessariamenteassim. - Quando esteve em Sotschi? - aventurou Reinberg aperguntar. - Ainda pode viajar até lá como russo exilado que é? - Agora, já não. - O que significa "agora,"? - Isso não é uma coisa assim tão simples de explicar. - Bubrovcalou-se, contemplou o tráfego intenso e Reinberg foisuficientemente esperto para não insistir. "Já te voucozinhar", pensou. No restaurante turco foi-lhes destinada uma mesa num reservado.A mesa mais próxima, separada deles por uma divisãode madeira, estava ocupada por três turcos que comiam borregoassado e conversavam animadamente. - Importa-se que seja eu a escolher? - perguntou Reinbergquando lhes trouxeram a ementa. - De que é que nãogosta? - Como tudo. Só não me agradam particularmente lagartasfritas. - Não estamos em Taipé, mas em Munique - retorquiuReinberg com um esgar. - Vamos começar por um aperitivo,uma aguardente de mel? - De acordo. Reinberg escolheu os pratos e mandou vir uma garrafa devinho branco, que tinha um tom cor de mel e um sabor maravilhoso,a recordar bagas da floresta. Em seguida fitou Bubrovcom a cabeça inclinada. - Não parece muito alegre - observou. Bubrov ergueu as sobrancelhas. - Na América, todos os que querem uma autorização delonga permanência - disse sem rodeios - necessitam de terum local de trabalho, uma nacionalidade e uma residência fixa,não é verdade?

- E algo mais. Mas tudo isso se arranja. - No mais curto espaço de tempo? - O que chama curto? - Três dias. - Nem pensar nisso! - respondeu Reinberg-Cohagen, enquanto apele se lhe arrepiava. Sentia que estava a tramar-sealgo. "Céus! Estarei certo? Este Bubrov será de facto algo maisdo que um utópico do amor?", - Quer entrar nos EstadosUnidos no espaço de três dias? Isso até para os turistas édifícil por causa do visto B 2! No entanto, este visto de visitaconsegue-se regra geral no consulado americano em Munique. Noseu caso, porém, seria mais demorado: é russo... O que o levaa querer afastar-se com tanta pressa? Conheço muito bem umdos funcionários do consulado e podia falar com ele. No entanto,iria demorar uma semana. Ainda não se naturalizoualemão? - Não. - Continua, portanto, a ser um russo soviético?

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- Sim. - Bubrov não via qualquer motivo para ocultar averdade. A sua expatriação por causa do desvio do avião tinhasido um mero truque da KGB a fim de o apresentar sem mancha aosolhos do Ocidente. - Era preciso além disso falar com as autoridades americanas-. declarou Reinberg-Cohagen pensativamente. " Fala, rapaz.",pensou. "Deita tudo cá para fora! PÕe as cartas em cimada mesa. Até agora temos jogado às escuras. " - Está de factoa pensar seriamente em trabalhar na América? - Estou. - E a sua mulher? - Ainda não é... - Eu sei - interrompeu-o Reinberg com um gesto. - Nopapel, ainda não é. Contudo, pertence-lhe. - É essa a expressão correcta - retorquiu Bubrov, como olhar fixo em Reinberg. - Sabia que ela é médica? - Não. - Reinberg mentiu propositadamente e foi aoponto de abrir os olhos com uma expressão admirada. - Médicamesmo? - Sim. - Para ela, haveria boas hipóteses de trabalho nos EstadosUnidos. Contudo, como lhe disse, tudo leva o seu tempo.A burocracia! Também é uma coisa que existe na América, sebem que a Europa o ignore. Quem por aqui se queixa daburocracia não conhece a engrenagem americana. - Reinbergergueu o copo e soltou uma risada encorajadora para Bubrov. -Posso ajudá-lo? - De que forma, Reinberg? - Da seguinte: responsabilizo-me por si e pela suamulher. - Era capaz de o fazer?

- Mais ainda: encarrego-me de lhe arranjar um lugar nanossa fábrica. Antes do mais. Depois de lá estar, logo veremos.Assim, teremos resolvido dois problemas básicos da emigração. Sóque não posso fazer correr o tempo mais depressa. "Anda lá!", pensou. "Construí a ponte dourada. Sobe atémim. " Bubrov sacudiu negativamente a cabeça. "Só me restamtrês dias,", pensou. "Orlovski está à espera no hotel. E com eleUssatiuk espera em Moscovo. E, por detrás deles, está à esperao general Butaiev, do GRU. Todos já sabem neste momentoque quero desistir. Só têm as mãos atadas porque eu estou deposse do microfilme.," - Tenho de reflectir - declarou num tom reservado. Eletinha de fazer correr o tempo mais depressa. - Apesar disso,agradeço-lhe do coração, Herr Reinberg. Prezo muito que mequisesse ajudar. E a verdade é que mal nos conhecemos. - Simpatizei imediatamente consigo, Herr Bubrov." Ele está aesquivar-se", pensou Cohagen. " Como se fosse opugilista bailarino no ringue. Faz uma finta, volta aaproximar-se, procura uma oportunidade. Só que continuo sem saberse ele é um adversário de marca ou um parvo". - Aqui está onosso chefe de mesa. Decerto nunca tinha comido um assadocomo este. Mais tarde Reinberg-Cohagen levou Bubrov de voltaao local de trabalho no seu Ford e prometeu telefonar-lhenovamente. Enviou cumprimentos à Dra. Walther e seguiu.Parou junto a uma casa em demolição, puxou o porta-luvaspara fora e transformou o tablier num posto de comunicaçãotelefónica.

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- Fala Ronny - disse, assim que conseguiu a ligação comas instalaçÕes da CIA. - Preparem tudo para acolher o rapaz.Não o percam de vista um minuto que seja, entendido? Ele saido trabalho às dezoito horas. Vão dois homens para Steinebach.Vai actuar nas próximas setenta e duas horas.

Orlovski quase rebentou de ira. à excepção de pequenas falhas que sempre surgem por todoo lado, até mesmo nos excelentes Serviços Secretos israelitas,a secção da Europa Ocidental do coronel Mikail Iefimevitchainda não tivera qualquer motivo de queixa. Tinha os seusagentes sob uma mão forte, os chefes dos agentes dos lugaresisolados eram excelentemente camuflados e formados e opessoal das cúpulas sentava-se onde ninguém desconfiava: nosministérios, nos complexos industriais, nas importantes fábricasde armamentos, nas prisÕes e delegaçÕes da polícia, naAssembleia da República de Bona, no Clube de Imprensa elocais de prazer. Os famosos bordéis rendiam espantosamente;nas amplas camas e diante de paredes espelhadas, sob mãosternas e acariciadoras deixavam algumas vezes de existir

segredos. Não havia, por conseguinte, motivo para mau humor.Contudo, este caso de Bubrov transformava-se em algo quedava que fazer a Orlovski. Pelo menos, Mikail Iefimovitch podia alegar a seu favorque não fora ele a trazer Boris Alexandrovitch para a Alemanha,mas que lhe tinha sido passada esta "batata quente" deMoscovo. De facto era o coronel Ussatiuk o responsável pelocomportamento negativo do seu homem, mas como dizer talcoisa a um dos camaradas de Moscovo! O caso estava dependente deOrlovski e apenas lhe restava pensar na maneira detrazer Bubrov à razão. Orlovski não foi evidentemente ter com a loura que se ofereciano anúncio do jornal. Tinha mais preocupaçÕes do quesubmeter-se a massagens individuais. Encomendou no serviçode bar meia garrafa de vodca - as duas garrafinhas do minibareram, de facto, uma ridicularia! -, deitou num copo de águaaté meio e sorveu o conteúdo em dois tragos, após o querespirou fundo, satisfeito. Não tinha quaisquer ilusÕes a respeito de Bubrov. Algunsagentes já haviam dado o salto, desertado ou "virado a casaca,".Esta última eventualidade era mesmo o desporto favorito dosserviços secretos... Contudo, havia-se tratado, namaioria dos casos, de peixe miúdo ou gente "queimada". Cadavitória do adversário custava, mas não ia ao âmago. Bubrov era de outro calibre. Deixá-lo ir embora significavauma perda que tão cedo não poderia ser reparada. Homenscomo ele não os havia às dúzias; ele era um golpe de sorte paraa KGB. Compreendia-se assim que Ussatiuk estivesse a roer asunhas a pensar na forma de solucionar a questão. Para Orlovski existia apenas uma alternativa: ou Bubrovregressava imediatamente a Moscovo e era retirado deste caso,ou provocava o seu próprio castigo ao manter a atitude queassumira. Não podia fugir, visto que para tal o mundo erapequeno de mais. Durante alguns momentos, Orlovski dedicou-se a fantasiar:"` Ele vai trazer-me o filme, tomamos uma bebida como doisirmãos, abraçamo-nos, beijamo-nos na face e eu direi: "Possodizer-te da parte de Sultì Ivanovitch que a tua missão terminou,Boris Alexandrovitch. Vai para onde quiseres. Continuas a ser nosso

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irmão, se mantiveres o bico calado... ' E Bubrov despedir-se-áfeliz e morrerá envenenado misteriosamente nessa mesma noite." Seria essa a melhor solução! Silenciosa e elegante. Orlovski esvaziou a garrafa de vodca, deitou-se na cama eadormeceu, satisfeito com os seus pensamentos. Na manhã seguinte passeou pelas ruas comerciais de Munique. Emseguida, informou na recepção do hotel que era possível que lheenviassem um pacotinho ou uma carta ao quarto.Telefonou, em seguida, de uma cabina pública para o seu

escritório em Bruxelas. - A tia dele está preocupada - informou o guarda-livrosda firma de importação de fruta e que, na realidade, era omajor Rassul Davidovitch Nikitsch. - Eu também! - rosnou Orlovski. - Deve contactar o sobrinho. Trata-se da herança. A tiadele sente-se muito triste. - Vou falar com o tipo. Mais alguma coisa? - Não. Orlovski desligou. Respirou fundo, a fim de aliviar a cargaque o oprimia. Ussatiuk tinha dado sinal. A ordem de regressoestava implícita. Se agora Bubrov se recusasse, iniciava-se aúltima fase da sua vida. Voltou imediatamente ao hotel com a esperança de queBubrov tivesse levado o filme. Contudo, nada havia sido entregue.Orlovski esperou, entregou-se nervosamente à leitura dealguns jornais, comeu um pacote inteiro de batatas fritas e porvolta do meio-dia contactou telefonicamente para o local detrabalho de Bubrov. Não estava. Saíra para o almoço. Não, não estava na cantina.Fora comer fora. "Ele vem aí", pensou Orlovski. "Agora, vem trazer-me ofilme. Falarei com ele como um pai a um filho. É uma pessoaesperta. O mundo compÕe-se apenas dessa mulher?" Contudo, Bubrov não apareceu. Estava a almoçar com HerrReinberg. Ao fim da tarde, Orlovski telefonou novamente ao seuguarda-livros em Bruxelas. O major Nikitsch limitou-se a repetirque a tia doente esperava. - O sobrinho ficará deserdado, caso não apareça? - perguntouOrlovski. - A tia deve pronunciar-se a esse respeito! Talvez issoo mova a visitar a sua parente doente. Ah!Esta juventude despreocupada!... Depois do jantar, não restavam dúvidas a Orlovski de queBubrov já não iria aparecer nesse dia. Tomou um banho, pôságua-de-colónia, vestiu umas cuecas lavadas, folheou o jornale procurou um número de telefone. - Sim, por favor? - sussurrou uma voz doce. Ao fundo,ouvia-se música abafada. - Está livre? - perguntou Orlovski, ao mesmo tempo quepuxava o fecho das calças. - Se vier já... Aubergstrasse, catorze. Onde há uma tabuletacom o nome de Marion, toque duas vezes, por favor. Orlovski meteu-se num táxi dominado por um sentimentode ira ante o jogo sujo de Bubrov e cheio de expectativa ante avoz fascinante.

- Amanhã, vou ausentar-me durante dois dias - informouBubrov ao jantar. Havia guisado com espinafres, seguido de

maçã assada com molho de baunilha. Bubrov encheu-se de

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espinafres até julgar que ia rebentar. - Uma inspecção de umterreno. Uma maçada, que é necessária. Temos de fazer perfuraçÕespor causa do subsolo. Tentei escapar-me, mas de nadavaleu. Tenho de fazer quatro plantas. - Depois, preparo-te uma malinha com o necessário - riuIrene sem suspeitar de nada. - De que se trata, Boris? - De um sítio de recolha da água. Uma nascente damontanha, que, quando da fusão das neves, transportapermanentemente água, deve ter um melhor aproveitamento. Alémdisso não haverá mais inundaçÕes. - Então, partes amanhã para os Alpes? - Sim. - Como te invejo! Agora começam as pastagens alpinasa florescer. - Queres vir ter comigo? - Inclinou-se sobre a mesa nasua direcção. - Telefono-te imediatamente, assim que arranjarum quarto. Vem ter comigo, Irininka. - Falei com o doutor Ewingk! - Os olhos brilhavam-lhede felicidade. - Posso gozar férias daqui a quatro semanas.Um colega casado e com filhos desistiu das férias porque estáa construir uma casa e fica por aqui. Não é fantástico? Jádaqui a quatro semanas. Para onde vamos? - Para qualquer lado onde possa ser feliz contigo. - respondeuum tanto tenso. "Como ela está alegre",, pensou."Só quatro semanas... Onde estaremos daqui a quatro semanas,Irina?! Vamos sabê-lo amanhã ou depois de amanhã.E depois saberei igualmente a magnitude do teu amor." - É a primeira vez desde a minha fuga que nos separamosdois dias - disse ele. - Durante um ano, não existiu um diasem ti. - De facto! - Fitou-o tão ternamente que o coração deleestremeceu. - É a primeira vez. - Pensarás em mim? Tens de pensar sempre em mim. - Vai ser estranho passar sem ti, ainda que sejam só doisdias. Já estou a senti-lo neste momento - riu. - Mas sãoapenas dois dias e duas noites. Vou aproveitá-los para dar umalimpeza na casa. - Pensa sempre em mim - retorquiu Bubrov num tomabafado. - E não te esqueças do teu amor. Ela achou a última frase perfeitamente idiota; dava a sensaçãode que poderia interessar-se por outro homem naquelesdois dias. Julgava observar pela primeira vez um ataque deciúmes em Boris. Naquela noite amaram-se como se os fossem matar no diaseguinte. E numa das vezes Boris Alexandrovitch esteve à beiradas lágrimas, no momento em que ocultou o rosto entre os seios dela. De manhã, quando ela estava a dormir, esgotada e profundamente,Boris levantou-se furtivamente e escreveu-lhe uma

carta. Quando foi, lá abaixo, buscar o pequeno-almoço, deitou-ana caixa do correio, sabendo que quando ela regressasseà tarde do laboratório, iria abrir a caixa do correio. Nessa altura, já tudo teria acontecido. O total desaparecimento do mapa de Boris AlexandrovitchBubrov. A "viagem ao terreno", só se efectuaria perto do meio-dia.Irene tinha de ir cedo para o trabalho e Bubrov ainda ficou emcasa. A malinha para dois dias estava preparada. Despediram-se um do outro, como se Bubrov fosse paraoutro mundo. Ele beijou-a muitas vezes, acompanhou-a até láabaixo, à porta da rua, e deixou-se ficar a acenar-lhe até o

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automóvel dobrar a esquina. `" Voltarei a vê-la?,", pensou e sentiu um baque no coração."Conseguirá perdoar-me? Conseguirá entender a situação?A carta basta como explicação? És um inimigo, BorisAlexandrovitch. Na realidade, um cobarde! Refugias-te em palavrasescritas, em lugar de falares com ela. É isso precisamente oque ela não compreenderá. De que tiveste realmente medo?Das suas lágrimas, do olhar aterrorizado, do seu desconsolo?Do seu horror de que alguém lhe pudesse ter feito uma coisaassim? Onde está o destemido Bubrov em relação ao qualUssatiuk disse uma vez: "Se viesse uma ordem para eliminar opresidente americano, só Brubov seria homem para essamissão!"," Voltou a olhar para a curva por detrás da qual Irene tinhadesaparecido no momento em que na direcção oposta umreluzente Jaguar se aproximou e travou na sua frente. Umhomem vestido com um elegante sobretudo de camelo desceudo automóvel, fechou a porta atrás de si, mediu Bubrov com oolhar e meteu despreocupadamente a mão no bolso dosobretudo. Bubrov, que, desde o aviso de Orlovski, tinha precauçÕesidênticas às de um animal acossado, meteu-se para dentrorapidamente e encostou as costas à parede. "Não se parece comum exterminador", pensou. "Esses não aparecem com sobretudos decamelo nem em automóveis luxuosos. " - Se lhe apareço dessa maneira aos seus olhos - disseo indivíduo num tom levemente trocista -, você só pode sero russo. Foi uma introdução que serviu para acalmar Bubrov, masque em seguida o irritou. - Sim - respondeu. - O que deseja? - Assisti ao afastamento de Irene no automóvel. Estava aliatrás escondido e com a esperança de me encontrar com o russo.E cá está você! - Qual o motivo desse tratamento de Irene? - Pardon! Deve estar admirado. Chamo-me Hanns Heroldt. -Aguardava qualquer reacção, mas Bubrov manteve-se

impassível. - O meu nome não lhe diz nada? - Absolutamente nada. - Irene nunca o mencionou? - Talvez. Não sei. Esqueço os nomes pouco importantes. - Oh! - exclamou Heroldt num tom mais acalorado. - Não souassim tão insignificante. Deitei-me três anos na camaque você agora ocupa. - E a quem é que ainda interessa tal coisa? - Irene era minha amante. Talvez assim compreendamelhor - retorquiu Heroldt, apontando para a entrada daporta. - Ficamos a conversar aqui fora? - Sim. - Não será melhor entrarmos? - Não. - Então, então! - retorquiu Heroldt com um esgar impertinente.- Não estou familiarizado com os costumes russos.Pode ser que precise de estar junto à sarjeta para se sentir maisà vontade. - Recuou um passo, encostou-se ao seu Jaguar ecruzou as pernas. Brubov mediu-o sem pronunciar palavra. Irene haviaevidentemente citado o nome de Hanns Heroldt algumas vezes,mas ele dissera sempre: "O que aconteceu, pertence às trevasdo passado. Agora, acendemos a nossa luz. ," Assim, também

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retirara a Irene a hipótese de o interrogar sobre a sua vidaanterior. Ela contentava-se com o que ele lhe contava. Noentanto, agora tinha na sua frente aquele macaco que o ofendiae parecia um homem muito forte. - Tem a agradecer-me o facto de Irene ter ido até Sotschi,sabe? - observou Heroldt num tom impertinente. - Discutimos e elafoi passar férias sozinha. A terna Irene podetransformar-se numa gata assanhada... não me refiro à camamas ao dia-a-dia. E em Sotschi tinha a intenção de se vingar demim... quando se lhe dirige um russo sorridente. Alguns diascom "o rufar de tambores," nada têm de especial, mas quandoSotschi desaparece sob as asas do jacto, também termina aaventura. No entanto, você intromete-se, desvia um avião eaparece em Munique. Apanhou Irene simplesmente de surpresano preciso instante em que a nossa reconciliação estava quaseconsumada. - Interessante! - comentou Bubrov, tranquilamente. - É essa também a minha opinião! - replicou Heroldtcom um esgar. O russo parecia acusar o efeito. - Foi realmenteidiota a ponto de pensar que conseguiria agarrar umamulher como Irene? Confesso que nem todas as mulheres têmum russo como amante. Na situação política vigente a situaçãotem mesmo o seu quê de exótico. Por todo o lado o armamento...e depois ter na cama um russo soviético, um comunista degema... Que excitante! Você é, portanto, comunista? - Sou.

- E di-lo assim tão simplesmente? - Com a mesma simplicidade que você se declara umgrande porco. Heroldt estremeceu, afastou-se do Jaguar e aproximou-sede Bubrov. - A velha insolência russa! - declarou num tom enraivecido. -Imiscuir-se em tudo, espalhar por todo o lado a insatisfação eo caos, negar os direitos aos outros! - Heroldtrespirou fundo. - Qual é o seu preço, Bubrov? - Não te compreendo, porco fedorento - retorquiuBubrov com uma risada má. - É assim que um russo supostamentefala, não? É o que esperam de nós! - Você precisa de recomeçar vida no Ocidente. Dou-lhecinquenta mil marcos para desaparecer para bem longedaqui. - Está a querer comprar-me a Irene? - Exacto. - E ela vale assim tanto para si? - É o que vê! - Para mim, ainda vale mais - declarou Bubrov com umaexpressão grave. - No que lhe diz respeito não há preço quechegue. Mas quanto a si, nem um copeque vale. - Canalha de russo presunçoso - rosnou Heroldt entredentes, ao mesmo tempo que tirava as mãos dos bolsos dosobretudo. - Vou utilizar contigo a linguagem que vocês, oscomedores de cebola, entendem! Foram precisos três golpes! Bubrov inclinou-se um pouco, fixou o rosto arrogante deHeroldt e reconheceu-lhe o desejo animalesco de atacar nosolhos, após o que tomou a iniciativa. E com a velocidade de um raio seguiu-se o golpe que Heroldt nemsequer soube donde vinha e que o atingiu em plenoqueixo. Heroldt teve a sensação de que todo o seu corpo se erguia

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do chão. Estava consciente, mas todas as suas funçÕes físicashaviam ficado entorpecidas. Deu uma volta sobre si própriocomo um dançarino executando uma pirueta e aterrou de caracontra o automóvel, ali ficando deitado sobre o capot. Só nessemomento sentiu a pressão que lhe invadia todo o cérebro. Levado por um movimento reflexo quis erguer a perna direitae atacar no momento em que Bubrov se aproximou e lheaplicou o segundo golpe. Atingiu-o no nariz e o sangue jorrou-lhedas narinas e manchou a seda da camisa, a gravata Pucci eo sobretudo de pêlo de camelo. O terceiro golpe acabou com o estado consciente de Heroldt.Voltou a atingi-lo no queixo e a cabeça dobrou-se paratrás. Estendeu os braços e ficou como que crucificado em cimado capot do automóvel. - As cebolas são boas e dão força! - comentou Bubrov

num tom calmo. - E também gostamos de pepinos. Virou costas, deixando Heroldt sem sentidos em cima doseu Jaguar, e entrou em casa. Desceu à cave, retirou o microfilmeda fenda da parede, subiu ao andar de cima, pegou napequena mala e desceu até à porta da rua. A sua motorizadaencontrava-se numa divisória junto à casa. Heroldt e o seu belo automóvel tinham desaparecido. Apenasumas gotas de sangue no asfalto recordavam a dura trocade palavras. Bubrov pôs a motorizada a trabalhar e tomou a direcção deMunique. Na janela de uma casa próxima estava um homem com umauscultador de telefone junto ao ouvido. Há uma semana quetinha alugado o quarto mobilado e era supostamente o repórterde TV Horst Wranger. - Ele partiu neste momento - informou ao telefone. - Com umamala no lugar da bagagem. O tipo do Jaguar tinhaacabado de arrancar. Este Bubrov tem cá um gancho, rapazes.Se tivesse dez anos menos, limparia qualquer ringue. - Agora, deixa-o. Fred. Podes vir em seguida. - Cohagenconsultou o relógio. Nas duas horas seguintes podia dar-seo grande acontecimento, se é que ele fizera o raciocínio certo.- Fim. Bubrov dirigiu-se ao local de trabalho, o que confundiuCohagen. Quando lá chegou, meteu o filme num pacotinho,escreveu a morada do hotel de Orlovski por fora e acrescentounum pedaço de papel: "Levar imediatamente à Tia. Adeus parasempre. " Chamou em seguida um dos empregados, deu-lhe umagorjeta de cinco marcos e encarregou-o de entregar o pacotinhono hotel. O mais mortífero dos segredos da investigação de armamentoocidental foi levada à KGB num automóvel do Estado.Tratava-se da última missão de Boris Alexandrovitch Bubrov.

O guarda do grande portão de acesso do aquartelamentoamericano não se mostrou minimamente surpreendido quandoum civil se aproximou de mala na mão e lhe perguntou ondeficavam as instalaçÕes da CIA. Bubrov sentiu uma enormedesilusão. não era todos os dias que um dos agentes das cúpulassoviéticas se apresentava aos americanos. E também porque o facto de uma pessoa completamenteestranha perguntar: "Como dirigir-me à CIA?,, se bem que estelocal apenas fosse do conhecimento de um pequeno círculo deentidades dos serviços secretos, não desencadeara qualquer acção.

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O guarda respondeu no seu inglês com o sotaque do Texas: -Edifício do estado-maior, segundo andar, salas dezanovea vinte e dois. - Em seguida, levantou a barreira, porque umcarro de géneros surgiu no portão.

Bubrov olhou em volta com uma sensação de abandono,comparando o descuido dos americanos com a desconfiançasempre presente dos soviéticos, que, caso ele tivesse perguntadoonde ficava o GRU, imediatamente o poriam sob custódia.Em seguida, prosseguiu sem que o molestassem, ao longo dalarga avenida, até ao edifício do estado-maior e que reconheceupor um grande relógio sobre a entrada. Só ali foi alvo das atençÕes. Dois polícias militares dedólmenes e cinturÕes brancos, bandoleiras e a indicação de "PM"nos capacetes brancos, tomaram-no sob a sua alçada econduziram-no à sala 22. Bubrov teve uma sensação de vazio. .?Agora já não háretorno,", pensou. "Tudo é definitivo!" O grande passo estavadado e fê-lo com tão pouco dramatismo como se se tratasse deuma ida à casa de banho. O dramatismo apenas vivia dentro desi, na consciência, na alma, no sentimento. Este labirintointerior é percorrido a sós. E então o homem fica preparado paraenfrentar o novo e o desconhecido. O americano da sala 22 era um homem mais novo, com ocabelo cortado à escovinha e um rosto anguloso, tal como se vênos filmes de espionagem. Também isto desiludiu Bubrov.Parecia enquadrar-se nos clichés divulgados. Os dois polícias militares fizeram a continência, deixaramBubrov na sala e foram-se embora. O homem da CIA levantoua mão direita e pronunciou afavelmente: "Olá!," Em seguida, aporta de comunicação com a sala ao lado abriu-se para darpassagem a Cohagen. Agora Bubrov compreendia de súbito por que é que a suachegada fora aceite quase naturalmente. Pousou a pequena mala eencostou-se à esquina da secretária. - Sou um asno! - disse em voz alta. - Há muito quedevia ter desistido. Uma coisa destas nunca poderia acontecer aum homem como eu. Devia ter-me apercebido, HerrReinberg. Sulfi Ivanovitch arrancaria os cabelos se alguma vezsoubesse. Têm razão entre nós: o capitalismo ocidental paralisaos que se colocam sob a sua influência. As pessoas amolecem.- Respirou fundo. - O que sabe a meu respeito, HerrReinberg? - Sou o major Ronald Cohagen. - Cohagen riu, passouo braço em redor do ombro de Bubrov e dirigiu-o ao seugabinete. Estava mobilado um pouco mais confortavelmente, comuma série de cadeiras à volta de uma mesa redonda e a bandeiraamericana ao canto. Em cima da mesa havia copos e umagarrafa de vodca. Vodca Moskovkaia - talvez para que produzisseuma ambiência mais patriótica. Tudo parecia como seestivessem estado a aguardar Bubrov. - Nada sei a seu respeito, Bubrov. - Cohagen sentou-se,depois de ter indicado uma cadeira à sua visita. Agarrou na

garrafa de vodca e serviu. - Quer dizer: conheço, evidentemente,a história do desvio do avião. A sua maravilhosa história de amorcom a doutora Irene Walther e que começou emSotschi. Contudo, acendeu-se de súbito uma luzinha no meucérebro. Tem de saber uma coisa: sou um tipo com um emissorsecreto no corpo. Não existe uma explicação, mas sinto quando

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alguma coisa não corre bem. E quando a sua história nosdossiers da CIA, senti um estremecimento interior. Sou famosopelas minhas loucuras, mas os meus êxitos acabam sempre pordar-me razão. Por conseguinte, também no seu caso sou comoum lobo solitário na perseguição. Ninguém acreditou em mim;no dossier você está tão inocente como um cordeirinho. - Cohagenergueu o copo de vodca, brindou e riu: - Só vaco`hesdarovse... - Spasiba! - Bubrov engoliu a bebida de um trago. - Sabe maisalguma coisa em russo, major Cohagen? - Os amigos tratam-me por Ronny. Nós somos amigos,não é verdade, Boris? - Nesse caso trate-me por Boria, Ronny. - Com muito gosto! Não, não sei russo; apenas aprendiumas palavras quando da sua chegada. Contudo, não voumaçá-lo com isso. Prefere falar inglês ou continuamos como alemão? - Entre nós, inglês. Em breve vou ter de o falar. - Bubrovsentava-se tão rigidamente na cadeira, como se fossefazer uma comunicação. - Peço asilo político e total protecçãoaos Estados Unidos. Sou o capitão Boris AlexandrovitchBubrov, da KGB, Moscovo. Delegado especial da Divisão II,coronel Ussatiuk, em colaboração com o GRU, generalButaiev. - Chegámos ao ponto crítico da situação! - exclamouCohagen, que não podia e também não pretendia esconder aexcitação que a voz revelava. - Você é, por conseguinte, umpeixe-dourado, Boria? - Deixo essa apreciação ao seu critério, Ronny. - Bubrovolhou em volta. - A conversa está a ser gravada? - Claro! - riu Cohagen. - É evidente! - Peço, portanto, protecção porque me desliguei da KGB. - Deus do céu! Eles sabem que você está aqui? - Não. Deixei dito que não vou regressar a Moscovo.Estava à espera desta ordem. Devia chegar hoje ou amanhã.Ainda ninguém sabe que estou aqui. à tarde, Irina ficará asaber, porque lhe deixei uma carta. - Bubrov fitou Cohagencom uma expressão muito grave. - Peço-lhe que se ocupe deIrina, Ronny. Mande buscá-la e trazê-la aqui discretamente.É a única condição que tenho a pôr. O que quer que meaconteça daqui por diante, Irina tem de estar ao meu lado!Apenas desisti por causa dela. - Portanto: os amantes de Sotschi! - Cohagen esboçou

um aceno afirmativo. - Trazemo-la aqui, se ela quiser. - Depois de ler a carta vai sentir-se como que pregada aochão. Ou completamente perdida. Tenho de lhe provar aqui,Ronny, quanto a amo e que este amor transformou a minhavida. - Isso vai ser mais difícil do que o desvio do avião, Boria. - Seja como for. O desvio foi um truque genial da KGB, afim de me catapultar como inocente. A tripulação do avião nãotinha a mínima suspeita, para que tudo fosse mais autêntico.Contudo, a nossa Embaixada em Bona entrou no jogo, bemcomo o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Ministério daAdministração Interna, que exigiu a minha entrega como infractorda lei, e anunciou Uma perturbação das relaçÕesgermano-soviéticas no caso da recusa da mesma. Era este oponto extremamente crítico de todo o plano: o que aconteceriade facto se o Governo da República Federal me entregasse? Erapossível, com este Governo em Bona. Não o fez, mas apenas

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porque a nossa Embaixada não espicaçou mais e desistiu dastemidas represálias. - Foi precisamente o que me ocorreu. Contudo, ninguémacreditou em mim. A nossa despreocupação e ignorância emrelação ao Leste é incrível! O corajoso e pacífico russo! Estaidiotice é um bacilo que vai corroendo lenta mas inexoravelmentea humanidade inteira. Podem assim reunir-se exércitosde blindados junto da fronteira, causariam mais admiração doque se reconheceria a sua verdadeira missão. - O Ocidente não é de forma alguma um conjunto dejardins infantis, Ronny! Nem pensar. Falou de um bacilo... - E agora vamos directos ao fundo da questão, Boria.Irene Walther e a sua pesquisa de bactérias: foi para isso quea KGB e o GRU o utilizaram? - Sim. O que ali se prepara secretamente ultrapassa tudo oque possa ser concebido por cérebros normais. Se esta armaentrar em acção, o nosso planeta fica despovoado. Está despovoadose não se tiverem armas de contra-ataque. - E essas acabariam com o resto! - observou Cohagensarcasticamente. - O que sabe já sobre a investigação B alemã,Boria? - Pouco. - Bubrov fitou Cohagen intensamente. A mentirae o bluff eram as mais insignificantes das artes que Bubrovdominava na perfeição. - Pouco é relativo. Que informaçÕes forneceu a Moscovo? - Nenhumas. - Quem irá acreditar em si, Boria? - Não posso dizer mais nada. Irina nunca me falou dassuas investigaçÕes, nunca tive oportunidade de visitar o seulaboratório e também não o forcei. Nem sequer fiz chantagemcom os cientistas servindo-me de fotografias pornográficas, àsemelhança das idiotices mostradas nos filmes de espionagem.

- E quer vender-me essa mercadoria a sério? - replicouCohagen num tom quase alegre. - E o que tem a dizer-me doseu encontro no balcão do Hertie? - Felicito-o! Estava a vigiar-me? Não dei por nada. - Você saiu bastante abalado do armazém. O seu interlocutordeve ser um osso duro de roer. No hotel registou-se sob onome de Harrelmanns, de Bruxelas. Importação de fruta. Nãoé de supor que queira negociar em pepinos. Harrelmanns é umagente secreto? Indaguei logo junto dos Serviços deIdentificação: um Harrelmanns é novo no ramo. Ainda não recebia informação, mas também deve ser negativa. - Muito bem! - retorquiu Bubrov, recostando-se na cadeira. -Só entrarei em pormenores quando Irina estiver aqui. - Não pode ser antes de hoje à noite. - Não seja tão impaciente, Ronny. - Você tem qualquer intenção, Boria! - Cohagen pôs acabeça de lado e avaliou Bubrov penetrantemente. Contudo,nada mais divisou do que um rosto fechado e teve de admitirque de momento Bubrov ainda podia determinar os acontecimentos.A CIA não podia prendê-lo; para esse efeito teria dealertar-se o Departamento 14, em Munique. Apenas se podiaafastá-lo da circulação, mas só se ele quisesse. Voluntariamente.Não se podia obrigá-lo. Em solo alemão era impossível. - Vocêestá a utilizar-se de um truque baixo. É a isso quechama de amizade.' - Deixe-me permanecer russo por mais umas horas,Ronny. - Raios! O que estará a passar-se lá fora? - Cohagen

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levantou-se de um salto e começou a percorrer nervosamente asala. - Você é um sacana requintado, Boria! Está a tornar-mecúmplice de qualquer sujeira! São estes os meus cálculos:", Entrego-me aos americanos e com esta bomba ficarão super-felizes por seremeles a terem-me e não os alemães.," E agora que me revelou uma sujeira, o meudever era informar imediatamente as autoridades. Tal significa, no entanto,ver-me obrigado a entregá-lo para prisão preventiva. E visto que o GRUestá metido no jogo, também o estão o MAD e o BND. Paranós, você estaria perdido. Sabe que assim é e sabe também quenão vou ceder, porque você é importante de mais para os EstadosUnidos. E, portanto, aqui estou, suspeitando de que nas últimashoras aconteceu qualquer coisa infame e nada mais possofazer do que entrar no jogo. Você é um sacana esperto, Boria! - Quando podemos partir para a América? - perguntouBubrov afavelmente. - É o que vamos saber. - Cohagen pôs-se em contactotelefónico com a embaixada em Bona e mandou chamar otenente-coronel Paddington. - Olá, Dan - cumprimentou. - Precisode um avião diplomático para Nova Iorque, hoje ànoite. Não me digas que não há mais voos hoje. Há sempre umlunático a caminho e preciso de três lugares. Sim, para a noite.

Estou bêbado, Dan, mas de alegria. Ele está aqui! Sentadodiante de mim e a beber vodca. Não, não vai para Bona, masvoa imediatamente para Nova Iorque! Pouco me interessa quesejas o chefe na Alemanha... tenho poderes extraordinários dePhil Boone. Além disso, ainda não disse nada até agora e nãovai cuspir o que quer que seja, antes de estar em segurança.E está tão cheio como uma panela de sopa a ferver. Não façasmerda, Dan. Preciso para hoje à noite de três lugares numavião diplomático para Nova Iorque. Telefona-me a confirmar. -Desligou e fez um aceno a Bubrov, que escutava interessado, esoltou uma risada. - O bom e velho Dan. Deve estar mais queexcitado. Uma aposta em como estará aqui dentro de três horas?Nem que tenha de apanhar o próximo caça! Boria, porfavor... - Acha que em Nova Iorque estaremos mais seguros? - O melhor esconderijo é na grande cidade. Mais segurodo que na selva. Céus! Podíamos escondê-lo em Indiana, ouem Delaware, no Missuri ou na Carolina do Norte. As pradariastambém continuam infinitas hoje em dia, mas quanto maispequeno o local mais um russo chama a atenção. - Mas eu falo um inglês impecável, não é verdade? - Demasiado impecável! - Cohagen voltou a sentar-se eestendeu a mão para a garrafa de vodca. - Até passar aprimeira tempestade, ficará mais seguro em Manhattan. - Espera realmente muito de mim, Ronny? - Uma porção de coisas. Mencionou antes o nomeUssatiuk. Já é o bastante para a qualidade da sua informação. - Conhece-o? - Encontrámo-nos algumas vezes em terrenos sombrios.Recorda-se do caso Svardovski, em Istambul? - Claro que sim. Svardovski caiu numa armadilha comquatro homens. - A armadilha era eu - esclareceu Cohagen com umaleve risada. - E o caso com Mahmed Bougharem emBeirute... - Isso quase causou uma úlcera de estômago a Ussatiuk. -comentou Bubrov de olhos fixos em Cohagen. - Você é umás e um asno, Ronny! - E, agora, tenho em meu poder Bubrov, o melhor homem

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de Ussatiuk! Estou enganado? Encontra-se lá tão no alto,Boria? - Agora, deixe-me descansar um pouco, Ronny. - Bubrov esvaziou ocopo. - Até à chegada de Irina. Tem umasala para mim? Gostaria de estar só. - Um outro truque? - Não! - Bubrov baixou a cabeça. - No entanto,compreenda-me: abandono a minha pátria, abandono a minhaidentidade, atraiçoo os meus velhos amigos, desisto de tudo oque até agora foi a minha vida, esbofeteio a minha pátria em

pleno rosto. Contudo, amo a minha Rússia. Agora, gostava deficar só e de chorar. Talvez só um russo possa compreenderisto. Cohagen levantou-se sem pronunciar palavra e de lábioscomprimidos.Dirigiu-se a Bubrov, que continuava sentado de ombrosdescaídos, deu-lhe uma pancada no ombro, passou-lhe a mãopelo cabelo e em seguida dirigiu-se à porta. - Pode ficar aqui, Boria - disse-lhe. - Não será incomodado.Só voltarei quando carregar no botão verde do telefone.- Boria esboçou um aceno de entendimento. Em seguida,quando Cohagen tinha fechado a porta atrás de si, escondeuo rosto entre as mãos.

Depois de ter almoçado numa cervejaria de Munique, Orlovskiregressou muito animado ao hotel. O motivo da suaalegria não se devia á sopa de almôndegas nem à carne deporco congelada, mas a Mai-theng, uma graciosa tailandesaque pusera o anúncio no jornal: "Descubra a suavidadeasiática. ," A tarde na casa de Marion no dia anterior (toque duasvezes) fora uma desilusão. Marion tinha sido extremamentefria, cobrava antecipadamente e dizia nos intervalos com umaolhadela para o despertador junto da cama: "Despacha-te,querido!," Mai-theng, a suave flor exótica, compensou-o de todos oscontratempos. Deu-lhe a sensação de que ele era o maior, omais forte, o mais atraente. Depois, beijou-lhe o umbigoe agradeceu-lhe humildemente por aquela hora. Esta experiência asiática tinha animado o espírito deOrlovski. Mais difícil ainda se tornou o regresso à realidade, quandona recepção do hotel lhe entregaram o pacotinho. - Foi trazido por um funcionário do Departamento deConstrução de Represas - informou o recepcionista. Orlovski subiu imediatamente ao quarto, rasgou o invólucroe deparou-se-lhe a minúscula bobina do filme. Em seguida, leuo bilhete de despedida de Bubrov e sentiu que o rosto se lheinundava de um suor repentino. Tirou as duas garrafinhas devodca do minibar, desrolhou-as, abdicou do copo e esvaziou-as. - Como se pode ser idiota a este ponto? - disse em vozalta. - Aonde queres chegar, Boria? Orlovski não pensou na hipótese de que Bubrov pudesse irprocurar os americanos. Para ele tal ideia era irrealista. UmBubrov não se entrega ao inimigo. Torna-se quando muito umindependente e não permaneceria muito tempo assim! Ao princípioda tarde revelou-se como a espionagem soviética funcionava semdificuldade e estava bem montada. Tudo se processoucronometradamente.

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Orlovski telefonou para o seu "guarda-livros" em Bruxelas. Bruxelas informou Moscovo. Ussatiuk falou imediatamente com o general Butaiev doGRU. Butaiev comunicou com o Ministério da AdministraçãoInterna e o dos Negócios Estrangeiros. O general Nassarov, do Estado-Maior soviético, foi terimediatamente com Ussatiuk. O Ministério dos Negócios Estrangeiros alertou a Embaixadasoviética em Bona. A Embaixada soviética em Bona efectuou uma démarche-relâmpagojunto do Governo alemão. Foi exigida com grande insistência a entrega do cidadãosoviético Boris Alexandrovitch Bubrov, actualmente a residirem Steinebach, junto ao WÕrthsee, em casa da médica Dra.Irene Walther. InvestigaçÕes feitas haviam levado à conclusãode que Bubrov era responsável por dois assassínios emSamtcheskoi, um lugar a sul da Sibéria. Crime e roubo.Encarar-se-ia o facto como uma reacção desagradável contra aUnião Soviética se... As démarches foram entregues às dezanove horas por ummensageiro. Sem que se verificasse uma anuência total, namedida em que a censura teria de ser analisada, foi passadauma indicação ao chefe da Polícia de Munique. Tal aconteceuàs 20 e 30. Suspeita de homicídio... Era do âmbito do Comissariado I.Contudo, ainda estava bem vivo na memória o caso Bubrov:desvio de um avião por amor. Em seguida, asilo político. Osassuntos de teor político pertencem no entanto ao Departamento14. às vinte e uma horas o comissário de serviço tinha a"castanha quente", em cima da secretária. Telefonou ao chefedo seu departamento; este tentou de imediato apanhar o chefeda Polícia. Este, porém, fora convidado para uma festa deaniversário. Foram buscá-lo ao alegre convívio para que entrasseem contacto pela rádio com o seu automóvel de serviço. Cerca das 22 e 19 o carro da polícia de Steinebach travavadiante da porta da casa da Dra. Irene Walther. Apesar dosinsistentes toques de campainha, ninguém respondeu. Contudo,um vizinho informou: - Um automóvel veio buscar a senhora doutora há cercade três horas - disse. - Sim, senhor. Matrícula de Munique.Decerto foram jantar a qualquer sítio da cidade. Acontecefrequentemente. O encarregado da operação transmitiu a situação aMunique. Novas instruçÕes: quando do regresso de Herr Bubrov levá-loimediatamente ao Departamento 14, Munique. Ou seja:pedir-lhe que os acompanhasse. Não havia mandato de captura.Quem tem a consciência tranquila acede sem resistência.

A essa hora já Irene Walther se encontrava sentada há trêshoras no gabinete de Cohagen a tremer e à beira de um colapsonervoso. - Não consigo entender tudo isto - soluçava. - Nemquero entender. Como é possível: Boris um espião soviético?Oh! Se agora pudesse morrer... muito simplesmente morrer... Bubrov mantinha-se de pé, diante da janela e de costas paraela, com a face encostada ao vidro. Chorava. Exactamente à meia-noite Bubrov disse a Cohagen: - Coloco-me sob a protecção dos Estados Unidos, Ronny.

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Tenho a tua palavra? - Tens. Bubrov olhou em redor. O gabinete de Cohagen estavacheio de homens. O fumo dos cigarros pairava como se fosseuma densa nuvem sobre as cabeças. O coronel Behrends e omajor Assendorff, do MAD, tinham vindo, assim como o director doDepartamento 14, um perito em interrogatórios doBND, dois funcionários do Departamento Criminal da Baviera,Departamento VIII, e dois funcionários do Departamento deDefesa Constitucional. Cohagen deixara de ver qualquer problemaem informar as autoridades alemãs, depois de a Embaixadaamericana ter declarado, sem deixar lugar para dúvidas.que o caso Bubrov era de exclusiva competência dos americanos.Encontrava-se em foro de jurisdição americana e seguiriaainda nessa noite de helicóptero para a base militar deFrancoforte. Daí um avião militar partiria de manhã rumo aosEstados Unidos. Não havia hipótese de aproximaçÕes de Bubrov. Só falarcom ele. Dan Paddington aparecera tal como Cohagen tinha previsto.A sua presença era importante: trazia em seu poder o certificadode concessão de asilo político telegrafado porWashington. A um canto da sala, sentada num sofá de couro, pálida e deolhos inchados, Irene fitava intensamente Bubrov como seainda não entendesse uma palavra do que estava a passar-se.Tinha sido enganada por um homem, esse homem que transformara nocentro da sua vida e em quem acreditara como nonascer e no pôr do Sol. Tinha escutado a sua confissão, tinha-ovisto a chorar como uma criança e pensara: ",Veio para Sotschicom a ordem de me amar. Toda a felicidade não passou de umjogo engendrado. Os passeios de barco, as idas a KrasnaiaPoliana, a Rizasee, a Suchumi e Novorossisk - tudo puramentira! As noites inesquecíveis nos seus braços, todas aspalavras, todas as ternuras - por ordem da KGB! Fui utilizada,rebaixada a objecto! E depois toda esta encenação teatral com odesvio do avião! Exiges que eu fracasse, Boris?". Bubrov meteu a mão no bolso interior do casaco, de onde

retirou uma folha de papel. Cohagen olhava-o fascinado. Atéao momento não tivera a mínima suspeita de que Bubrov pudesseandar muito simplesmente no bolso com o que era provavelmente odocumento mais importante dos Serviços Secretosnos últimos anos. Bubrov consultou o relógio uma vez mais. ". Agora há muito que Orlovski voltou a passar a fronteira deBruxelas"., pensou. ",O microfilme está em segurança. Presteium grande serviço à minha pátria - mas era de supor que emMoscovo tal se considerasse natural. ", Respirou fundo, fincou os dedos na folha de papel e olhoupara Cohagen, que lhe esboçou um aceno encorajador, aomesmo tempo que corava. - Para os senhores que ainda o desconhecem - começouBubrov em alemão e, num tom de voz claro -, gostaria deesclarecer: chamo-me Boris Alexandrovitch Bubrov. Capitãoda KGB, Moscovo, membro do Partido Comunista, delegadoda Liga de Engenheiros, galardoado com quatro ordens demérito e medalhas. No interior da KGB sou delegado especialdo Departamento II sob as ordens do coronel Sulfi IvanovitchUssatiuk. A central confia-me casos de especial importância,missÕes pelo mundo inteiro. Ainda falarei deste assunto.

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A minha última incumbência tratava-se de me aproximar dadoutora Walther com a finalidade de conhecer os planos ouinformaçÕes das pesquisas do desenvolvimento das armas Balemãs. Este plano foi traçado, a curto prazo, na central depoisde se tornar conhecido, através do Departamento de Vistos danossa Embaixada em Bona, que Irene Walther iria passar fériasa Sotschi. - Uma autêntica sujeira! - exclamou em voz alta o coronelBehrends, do MAD. - Pelo nosso lado, jamais devíamoster permitido estas férias. Um simples tenente tem dificuldadeem ir visitar a avó a Dresda porque é portador de informaçÕessecretas, mas uma figura-chave como é a doutora Walther podeir a Sotschi! Vamos sofrer as consequências... - Que informaçÕes transmitiu a Moscovo? - perguntounum tom calmo o homem do BND. Não valia a pena chorarsobre leite derramado. - Nada - respondeu Bubrov com uma risada fraca. - Sei queninguém me acredita. Um agente das cúpulas da KGBpassa um ano na Alemanha e ainda não descobriu nada deimportante! É impossível! Também o coronel Ussatiuk partilhadesta opinião e por esse motivo me mandou chamar de volta aMoscovo. Peço, no entanto, que me acreditem: Irene Waltherera uma fonte absolutamente seca no que se refere ao seutrabalho. Nada me contou sobre o que sabe das pesquisas B.Sempre vincou: o meu trabalho não pode pesar na nossa vida.Também não perguntei mais, na medida em que interiormenteme havia desligado da minha missão. Da ordem: "Faz amor,

camarada!", surgiu um verdadeiro e profundo amor que transformoua minha vida. Agora estou aqui na vossa frente. Nestemomento afasto-me por completo do meu passado. Tal não serelaciona apenas com a política. O meu Governo não secompÕe de anjos, mas o imperialismo ocidental não é dirigidopor santos! Aqui no Ocidente vi muita coisa que me repugna damesma forma que se me torna claro que nós comunistas jamaisdesistimos da ideia da revolução mundial e para ela trabalhamosconstantemente por todos os meios e subterfúgios. Ondeexistem conflitos no mundo, encontram-se igualmente conselheirossoviéticos. Sou inteiramente conhecedor do facto. Eupróprio desempenhei muitas vezes o papel de controlo em regiÕesde crise. A nossa humanidade não retirou qualquer liçãoda guerra. Contudo, também aí não se interroga a humanidade.Estes milhares de pessoas são dirigidas, iludidas, enganadas esacrificadas por um punhado de políticos fanáticos e as suasideologias! Seria utópico acreditar ou esperar que a situaçãopudesse mudar-se. Um punhado de homens honestos que imaginam teruma "missão," servirão sempre para dinamizar asmassas... as massas que são tão influenciáveis porque (resíduosda nossa origem!) têm de ter um chefe da manada! Ele muge, etodos mugem com ele! Por conseguinte, surgem protestos,revoluçÕes, guerras e a destruição dos povos. Em seguida, quandoalgum fracassa, diz-se: os soviéticos... A manada é destroçadae não o chefe. Quem é que ao longo dos séculos condenouimperadores e reis que gastaram a vida inteira em guerras?São mencionados nos compêndios de História, pode-se admirá-losem monumentos e fizeram-se baladas a seu respeito.Chamam-lhes os "Grandes",. E assim será sempre. Também osnossos "Grandes," de hoje nada mais são do que isso. - Viemos aqui, hoje, para escutar uma conversa política? -retorquiu Behrends, num tom azedo. - De que serve tudoisto, Herr Bubrov? Como todas as coisas, cada história tem o

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reverso da medalha. Resta-nos optar por um dos lados. O quetem isso a ver consigo? - Tudo! - respondeu Bubrov, de olhos fixos em Cohagen.Suspeitava que ele era um dos poucos que o compreendia. - Queroprestar um pequeno serviço como fuga a estaloucura. - Exactamente como espião! - retorquiu o major Assendorff, daMAD, sarcasticamente. - Sim. Vou fazer um pouco de luz no escuro. - Bubrovergueu a folha de papel amarrotada. Apercebeu-se da respiraçãoforte de Cohagen ao seu lado. - Entrego-vos uma listaquase completa dos agentes mais importantes da KGB na Alemanhae nos estados do Benelux. Também se encontra mencionado um nomeexistente no quartel-general da NATO. - Amém! - explodiu Cohagen a seguir ao silêncio queresultou das palavras de Bubrov. - Hoje está um belo dia.

- Nada de alegrias prematuras! - replicou Bubrov, estendendoo papel a Cohagen, que o agarrou como se se tratasse deum objecto frágil. - É como num jogo de futebol: a um golosegue-se o contra-ataque! - Pensou em Peter Hãmmerling ena sua primeira conversa com ele. Nessa altura Hãmmerlingmostrara-se ainda muito confiante. - Suponho que nesta alturajá sete agentes do BND e dois da CIA na União Soviéticatenham sido presos. Os nomes foram transmitidos ontem àtarde de Bruxelas para Moscovo. - Você não passa de um bom sacana, Bubrov! - observou o coronelBehrends num tom tenso e amargo. - E o que seria se tivesse fugido sem uma compensação? - Um amigo convertido. - Um porco! - contrapôs Bubrov acaloradamente. - Compreendaque sou russo e apesar de tudo amo a minha belae inesquecível pátria.

Ao princípio da manhã Bubrov e Irene seguiram de aviãopara Francoforte. Um helicóptero do Exército americano, umSikorski, como os que são utilizados para a recuperação desatélites espaciais, rompia o nascer do Sol levando-os comopassageiros. Eram acompanhados por Cohagem e Dan Paddington.Sentiam-se satisfeitos por terem a noite nas suas costas. Tinha havido - o que era de prever - mais algumascomplicaçÕes. Depois da exposição de Bubrov e da entrega da lista deagentes, que foi fotocopiada várias vezes, o chefe doDepartamento VIII da Judiciária da Baviera exigiu a entrega deBubrov, a fim de que fosse julgado pelas autoridades alemãs. Paddington, que trouxera consigo de Bona a concessão deasilo político, fitou irritado o funcionário do Governo alemão. - Mister Bubrov encontra-se sob a protecção dos EstadosUnidos - declarou no seu alemão mastigado. - O que pretendedele? - Segundo as suas próprias declaraçÕes, entregou sete cidadãosalemães à KGB! - E dois nossos! - contrapôs Cohagen secamente. - Ficamos com uma maioria de cinco. - Presumo que os nossos dois camaradas são mais importantes doque os vossos sete! - Era uma afirmação que soavaarrogantemente e provocou um esgar no rosto do funcionárioalemão. - Além disso, Mister Bubrov encontra-se em territórioamericano e não faz tenção de o abandonar. Pode apresentar umaproposta de extradição.

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Era um gracejo e todos o reconheceram como tal. A opção deBubrov era tão vincada que tornava todas as palavrasdesnecessárias. Tinha escolhido os americanos e não os alemães.Contudo, podiam dirigir-se-lhe perguntas quanto ao motivo desta resolução.O director do Departamento 14 atreveu-se a fazê-lo.

- Porque não recorreu a nós na qualidade de repartiçãomais próxima e competente, Herr Bubrov? Não recebeu umtratamento correcto da nossa parte depois do seu espectaculardesvio do avião e que agora se revela como um espantosogolpe de teatro? - Muito correcto. - Bubrov sacudiu a cabeça. - Foramtodos muito prestáveis. - E apesar disso sente desconfiança? - Não. Medo. - Medo! Como assim? - Devido à sua legislação liberal as autoridades alemãs nãopodem garantir-me a protecção que tenho com os americanos. - Por favor, Hen Bubrov! - Moscovo ainda não reagiu? - perguntou Bubrov,desconfiado. - Sim! - respondeu o director do Departamento 14olhando embaraçado para as mãos. - A Embaixada soviéticaprocedeu a uma démarche. Trata-se da sua entrega por causade um duplo crime. - Que divertido! - comentou Bubrov com uma risadadura. - E a reacção? - Por esse motivo quisemos ter uma troca de impressÕesconsigo e mandámos buscá-lo de automóvel a Steinebach.Contudo, já tinha partido. - Uma troca de impressÕes? Com detenção implícita porsuspeita de crime! E em seguida a entrega à União Soviéticapara não deteriorar as relaçÕes diplomáticas... - Não passam de suposiçÕes, Hen Bubrov! - Porque não lhes chama certezas? É precisamente a mimque pretende explicar quais os hábitos vigentes nos serviçossecretos? As conversas silenciosas, o intercâmbio, as negociaçÕessecretas! Meteram na prisão o espião Guillaume, da AlemanhaOriental. Querem apostar há quanto tempo ele aindadorme na sua bela cela habitável, com rádio, televisão, umabiblioteca à disposição e outros adicionais? Já alguma vezpuseram os olhos nas celas soviéticas? Esteve em algum Gulag?Conhece os campos da Sibéria? Em vez de televisão dez horaspor dia são derrubadas árvores e em vez do estudo da filosofiamarxista há o trabalho nas pedreiras ou nos desaguamentos.Em vez de contactos com advogados, políticos e amáveisfuncionários oficiosos existe o internamento em hospitaispsiquiátricos e as injecçÕes que aniquilam a personalidade!Enquanto os vossos terroristas protestam e fazem greve com músicade rádio e montes de revistas, ao mesmo tempo que ossimpatizantes desfilam pelas ruas e destroem montras, vocêsobservam tudo, reviram os olhos e dizem: "Há que falar comessa juventude...," Faz alguma ideia do que acontece quando hámanifestaçÕes na Praça Vermelha contra a KGB ou contra oscampos da Sibéria?

- Nós somos uma democracia liberal! - Pois! E não se dão conta de como permitem que estaliberdade seja destruída por agitadores que citam Marx e sabemexactamente que na Rússia rastejariam! Esta triste mentira éum dos motivos porque não procurei asilo político na Alemanha!

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Vocês nunca poderão proteger-me. Precisam mais dessaprotecção do que quaisquer outros! - Deixemos essa questão de lado, Boria! - retorquiuCohagen quando Bubrov se deteve a recuperar o fôlego. - Jábateu que chegasse nos nossos amigos alemães. - Passou oolhar pelos embaraçados alemães que ali se encontravam. - Têm mais algumas perguntas, meus senhores? - Sim - respondeu o coronel Behrends, do BND, aomesmo tempo que colocava o dedo em cima da lista com osnomes de agentes e moradas dos contactos. - Onde foi buscarestas informaçÕes? - Trouxe-as sempre comigo debaixo da palmilha do sapatoesquerdo. Foi-me fornecida pela central de forma a que pudesseter sempre contactos de todos os lados - replicouBubrov com uma risada triste. - Não se esqueça de umfacto: eu era digno da maior confiança. Pertencia ao quadroespecial. - Avisou as pessoas aqui mencionadas? - Não. Não têm a mínima desconfiança - disse Bubrovcom um encolher de ombros. - Aliás, não poderão prendernenhum à excepção do terceiro homem. Gozam de imunidadediplomática. - A velha canção! - exclamou Behrends, dobrando opapel. Mais tarde, quando se encontravam a sós, Cohagen observoualegremente: - Lá se foram com um grande melão... Dou-lhe razão,Boria. Neste momento estaria a recear por si, se se tivesseapresentado aos alemães. - Fitou a silenciosa Irene e dirigiu-seà porta. - Agora, deixo-vos sós. Não se destruam.A vida ainda será longa e bela em Nova Iorque. Durante o depoimento de duas horas feito por Bubrov, nemuma palavra saíra dos lábios de Irene. Deixara-se ficar sentadaa um canto sem desviar os olhos dos dele. Tudo o que ele contava, o que ele confessava, era tãomonstruoso, tão absurdo, tão inacreditável que ela, mesmodepois de passadas aquelas duas horas, continuava afundada nomaple. "Sou um monte de lixo. Estou acabada. Já não sereicapaz de nada. Se me levantarem daqui, poderão levar-mecomo se fosse uma boneca de trapos. ", Nesse momento fitavaBubrov, que se mantinha em pé, diante da janela, desmoralizado,com os cabelos desgrenhados, os olhos congestionados e oslábios trémulos. Agora que estavam sós, ele dificilmenteconseguia manter a compostura. Sentia asco de si mesmo.

- Irininka! - pronunciou decorrido um grande bocadoe num fio de voz. - Sim. - Eu... eu só fiz tudo isto por nós. - Sim. - Peço-te que esqueças Sotschi. - Como poderia? Foi lá que tudo começou. - Endireitou-se noassento muito rígida e sem que um músculo do rostose lhe movesse, mas dos olhos corriam lágrimas. - Para mimSotschi foi o céu. - E também o foi, Irina. - A comando da KGB ! Faz amor, camarada.. . Como,como foste capaz? - Não fui. Vê-lo agora. Estou ao teu lado para sempre.Bubrov deixou de existir. Por tua causa desisti da minha pátria,atraiçoei-a, tornei-me um anónimo, um apátrida, um desalojado...

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Só tu agora és a pátria, o lar, a vida... Só tu! Irininka...se pudesse chorar contigo! Já não sou capaz. Chorei o diainteiro. - Vê-se! - Tentou soltar uma risada reconfortante, masapenas conseguiu um arremesso de sorriso. - Agradeço-te,Boris. - Tu? A mim? Porquê? - Não me atraiçoaste. Nada contaste sobre a experiênciada cave. Porque não? Agora, teria sido indiferente. - Limpouas lágrimas com as costas das mãos e levantou-se. Bubrovcomeçou a tremer quando ela ficou na sua frente a olhá-lo. -Puseste Moscovo a par da experiência? - Sim - respondeu, acenando várias vezes com a cabeça. - Foia minha despedida da Rússia. - Obrigada por não me mentires também a mim. Quandopartimos para Nova Iorque? - Oh, Irininka! Caiu de joelhos diante dela, escondeu o rosto no regaço erompeu em soluços.

Ao alvorecer, foram detidos pela polícia política belga oimportador de frutas Harrelmanns, na qualidade do coronelOrlovski, chefe da KGB na Europa Ocidental, e o seu"guarda-livros". O "guarda-livros" ainda conseguiu comunicarpela rádio para Moscovo, após o que destruiu o posto emissore comeu o papel onde estava escrito o código. A luta aberta tinha-se iniciado.

Os acontecimentos vividos por Ussatiuk durante a manhãforam extraordinariamente dolorosos. Mereceu a sinceracompaixão de todos, dado que dificilmente alguém recordariaque uma coisa assim lhe tivesse sucedido. O dia iniciou-se de uma forma sombria, com problemas

domésticos para Ussatiuk. A Ussatiuka deixou-se ficar deitadana cama, queixou-se de dores nas costas, dores de barriga,dores nas pernas, dores de cabeça, dores no peito, toda ela eradores, revirava os olhos, respirava com dificuldade ecomportava-se como uma mulher a quem só restam alguns diasde vida. Ussatiuk sabia, no entanto, muito bem que não lhefaltava nada, excepto o casaco de peles que tinha visto numfamoso armazém; um casaco de lontra com uma pele sedosa ebrilhante que, segundo ela acreditava, lhe tirava de cima pelomenos dez anos. Esta ideia assustou Ussatiuk. A Ussatiuka tinha quarenta ecinco anos e atraía qualquer homem que a conhecessesuperficialmente. Contudo, esta impressão desfazia-se com um contacto maisíntimo e ainda mais depois de um casamento de dez anos. Eraembirrenta, teimosa, mesmo ordinária quando discutia com omarido, para em seguida se mostrar novamente lamurienta,queixosa e ausente. Ussatiuk dissera-lhe uma vez: "E lançarameles para o espaço a amorosa Laika, essa corajosa cadelinha.Um animalzinho tão indefeso! Que mal nos fez ela? Haviatantos outros seres humanos que mereciam ser disparados paraas estrelas!" A Ussatiuka nunca lhe tinha perdoado esta frase. Ela sabia aquem era dirigida e acusou durante anos a fio o pobre SulfiIvanovitch de infidelidade conjugal com o fundamento de queo seu desejo de se ver livre dela resultava apenas das suasconstantes ligaçÕes amorosas com as secretárias. Cheirava os

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fatos de Ussatiuk em busca de vestígios de perfume, ia verificar,quando ele estava a tomar banho, se tinha alguns sinais demarcas de unhas e sempre que, de manhã, Ussatiuk assobiavauma canção entre dentes, porque dormira bem durante a noite,explodia imediatamente: "Assobia! Assobia! A quem calhaa vez hoje? à gorda Inna? Já está deitada em cima da tuasecretária, quando entras no gabinete? Corre, depressa,depressa, não deixes que ela arrefeça!," Nesses momentos Ussatiuk deixava de ver a mulher e teriabeijado o raio que a fulminasse. Agora, Ussatiuk opusera uma forte resistência ao casaco delontra. Não porque lhe faltassem os rublos para o comprar, maspara atormentar o seu dragão doméstico. A Ussatiuka reagiucom sintomas de doença da ponta dos pés à ponta dos cabelos,mas quando Sulfi Ivanovitch seguiu imperturbável para o localde trabalho, gritou atrás dele (surpreendentemente, a línguanão lhe doía!): "Poupa o dinheiro para as tuas putas, meurameiro. ", Assim se iniciara o dia. Na repartição, Ussatiuk teve aimpressão de que todos se afastavam do seu caminho, dado quequase não se avistava vivalma nos corredores, onde àquelahora havia sempre numerosas pessoas entretidas com as primeiras

conversas da manhã. A secretária Iulia Leodinovna, umarapariga de rosto afilado que merecia as suspeitas de Ussatiukaquanto a ser hábil noutros campos além da dactilografia, engoliuvárias vezes em seco, quando Ussatiuk entrou no gabinete. - Deve telefonar imediatamente ao camarada general Butaiev,camarada coronel. E depois ao Estado-Maior. Oie! - Que significa essa exclamação? - retorquiu Ussatiuk,bufando. - Passou-se alguma coisa? - Não sei, camarada. Iulia Leonidovna escapou-se furtivamente para o seu gabinete,deixando Ussatiuk a sós com a sua irritação. .,Antes doscapitalistas, deviam exterminar-se as mulheres", pensouencolerizado. " Noventa por cento são histéricas. Contudo, asrestantes dez por cento provocam-nos as fraquezas. " Marcou o número de telefone do general Butaiev e dissenum tom de entusiasmo forçado: - Começa-se a manhã a falar com um bom amigo! Comoestá, Victor Borissovitch? - Você está mesmo bom de cabeça, Sulfi Ivanovitch? - retorquiuButaiev num tom grave. Regra geral, ele costumavarir-se dos seus aforismos. - Claro que sim! - respondeu Ussatiuk, estremecendo. - Andaalgum vírus no ar? Este silêncio pessimista portodo o lado... - E você consegue estar alegre? - "O sol brilha... - Ainda não lhe chegou qualquer informação? - Não. Sobre o quê? - inquiriu Ussatiuk, metendo a cabeçaentre os ombros. Informação? Aquela era uma palavraperigosa. - Nesse caso já estou a perceber! Nós descobrimos atravésda rádio alemã. Não abriu o rádio, hoje de manhã? - Não. A minha mulher encarregou-se de o substituir. Estánovamente muito doente. Voltou a querer morrer... mas fica-sepela promessa! - Em primeiro lugar a notícia foi transmitida pela Rádioalemã e a emissora Europa Livre. Depois, no noticiário damanhã, também pela Bélgica e pela França. Por volta das seis

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horas. Tentou-se entrar em comunicação consigo. Contudo,ninguém atendeu. Não estava em casa? - Não ouvi nada. Confesso, Victor Borissovitch, que ontem ànoite bebi a quantidade de vodca suficiente para conseguiraguentar a minha mulher. - Ussatiuk começou a sentir ocalor subir-lhe às faces. Desabotoou a camisa. - O queaconteceu? - Orlovski e todo o seu grupo foram detidos. Ussatiuk sentiu-se como que atingido em pleno rosto.Começou a oscilar na cadeira. - E quando?

- Ao alvorecer. Fala-se em que toda a rede da EuropaCentral se desfez. Contactámos imediatamente com Bona: aembaixada ainda não tinha qualquer suspeita. O que falhou,Sulfi Ivanovitch? - Ignoro, camarada general! - respondeu Ussatiuk, numtom de voz cansado. - Aguardemos pelas nossas informaçÕes.Dentro em pouco teremos o panorama. Desligou, chamou aos gritos por Iulia Leonidovna e berrou-lhe: - Porque não me disse nada? Porque não me avisou? Todos vocêssó têm merda na cabeça? Iuliaschka achou o comentário horrível, soltou um uivo erefugiou-se junto da máquina de escrever. Raras vezes os Serviços Secretos da Primeira Secção daKGB viveram uma excitação semelhante à dessa manhã. AsligaçÕes pela rádio com a Europa Central chamaram ao serviçotodos os que se encontravam ao alcance. Os oficiais da KGB edo GRU espalhados por todas as embaixadas e instituiçÕesoficiais, os observadores e agentes camuflados, os agentesinfiltrados na indústria e os agentes duplos que ocupavam cargosna CIA, no BND, na NATO e no Secret Service, no DeuxièmeBureau e no Ministério em Bona, foram convocados repentinamentepela Central de Moscovo. Quando chegou a hora doalmoço já se tinha uma vasta panorâmica do que acontecera naEuropa Central. Um quadro desconsolador. A rede esforçadamenteconstruída ao longo dos anos e de funcionamento impecável docoronel Orlovski estava destruída. Mikail Iefimovitchestava preso e com ele mais cinco oficiais em Bruxelas e Paris.A polícia dos vários Estados actuara rapidamente, mas nãotocara nos restantes nomes: os suspeitos eram na íntegradiplomatas. Adidos, conselheiros de embaixada ou cônsules.No entanto, agora conheciam-nos. Seguia-se a morte de cadaum dos agentes. O Departamento da Europa Central tinha explodido. O querestava eram meramente insignificantes espiÕes - carregadores deágua, como se lhes chamava. Puseram-se a coberto porordem de Ussatiuk. Por volta das três horas da tarde já se sabia na KGB e noPolitburo do Kremlin a quem agradecer esta acção. O homemda CIA nos Altos Comandos da NATO de Bruxelas conseguiufinalmente transmiti-la depois de se terem informado todos ospostos da CIA e de a observação dos diplomatas se ter efectuadoem contínuo. Ussatiuk fechou os olhos quando leu o nome escrito nopapel da transmissão. Ronald Cohagen. Contudo, o facto não o abalou. Cohagen era um adversário.Cabia-lhe o direito de combater Ussatiuk. O segundo nome foio que o abalou no mais íntimo. Boris Alexandrovitch Bubrov.

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Ussatiuk já não encontrou consolo no facto de lhe comunicaremque o microfilme vinha a caminho de Munique porintermédio de um correio de Estocolmo. Boris tinha desertado. Um dos melhores. O seu filho naKGB. Todo o seu orgulho. Nesse minuto Ussatiuk perdeu toda a crença na humanidade. O Politburo tomou naturalmente um comportamento político.Instruiu as perplexas embaixadas, por intermédio do Ministériodos Negócios Estrangeiros, que protestassem veementemente contraas enormes censuras que se atribuíam aos diplomatas soviéticos.Dava a entender-se que também se poderiamacusar os diplomatas ocidentais de missÕes obscuras. Mesmo assim tornou-se inevitável a substituição de umgrande número de diplomatas. A sua permanência nas embaixadas jánão fazia sentido, após terem sido desmascarados. NaEuropa Ocidental fizeram-se muitas malas. Após uma reunião com as cúpulas da KGB, Ussatiukregressou ao seu gabinete com os nervos em franja e cansado.Deixou-se cair num maple, de olhos fixos na parede ondeestava um retrato de Lenine, e surpreendeu-se por lhe ter sidopermitido regressar ao gabinete. No tempo de Béria, o antigochefe da polícia secreta, isso teria sido impossível. Falhas detão larga magnitude terminavam sempre com os responsáveismetidos nas celas de Lubianka. Nunca ninguém regressara delas decabeça levantada. ".Ele vai a caminho de Nova Iorque", pensou Ussatiukamargamente. ".Há que conceder o mérito da rapidez a Cohagen. Oque conseguirá arrancar ainda a Bubrov? O que é queele pode contar?., Suspirou profundamente quando desenvolveu esta ideia. Naqualidade de agente secreto permanente, Bubrov sabiaevidentemente todos os truques que lhe haviam sido ensinados aolongo dos últimos anos. Conhecia os seus colegas do PróximoOriente e da Turquia e possuía ligaçÕes com consultores cubanosem Angola e na Etiópia. Se revelasse o que sabia, a própria CIAficaria em polvorosa. Podia principalmente referir-seaos homens do GRU, de entre os quais alguns ocupavam assento nopróprio Pentágono. Uma catástrofe inconcebível. - E agora? - perguntou o general Butaiev, num tom levementetrocista. Foi visitar Ussatiuk, depois do almoço, a seguirà reunião especial com a KGB, e sorvia em pequenos goles ochá servido por Iulia Leonidovna. Parecia água de lavar alouça. Também Iula tinha perdido a noção das medidas antetoda aquela excitação. - O seu brilhante jovem! Bubrov!Ainda há três dias me teria dado um pontapé, Sulfi Ivanovitch,se eu levantasse dúvidas em relação a Bubrov. - Ainda não estou bem em mim - retorquiu Ussatiuk,fatigadamente. - Essa Irene Walther deve ser uma mulher de se lhe tirar

o chapéu! - observou Butaiev, dando um estalo com alíngua. - E ela a chave desta catástrofe. - Também é algo que me ultrapassa. Sabendo como seias mulheres que Bubrov já teve na cama... Incompreensível! - Uma mulher tem mais força do que dez bois, dizem osMongóis. Todas as coisas se complicam necessariamente quandouma mulher entra em cena. - Butaiev bebeu aquela amostrade chá, fez uma careta, pegou na garrafa de vodca edespejou algum na chávena. O cheiro a álcool provocou umasensação de náusea em Ussatiuk.

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- O que farão agora a Bubrov? - Será espremido pela CIA em Nova Iorque. - E deitará tudo cá para fora, não? - Espero que se mantenha firme. - Continua com esperanças, Sulfi Ivanovitch? Vocêestá cego no que se refere a Bubrov! - observou Butaiev,dando uma pancada na perna. - Ainda há muita coisa a sacarde Bu brov? - Infelizmente. Os seus conhecimentos sãovastíssimos. - Devia acender-se uma vela por si, camaradaUssatiuk. - Talvez - concordou Ussatiuk, sem desviar os olhosda parede. - Mas primeiro deixem-me actuar. - O que pensa fazer? - Encontrarei o rasto de Bubrov em Nova Iorque, ou Washington, ou Dallas ou São Francisco, que é decertoo sítio onde estará escondido. Descobri-lo-ei. Tem deconceder-me esse tempo. - E depois? - Butaiev olhava intensamente para Ussatiuk. E de súbitoapercebeu-se de que na sua frente estava sentado um outro Sulfi Ivanovitch,totalmente modificado. Um temível estranho. - Fui eu quem fez o Bubrov - disse Ussatiuk, e uniuas mãos como se rezasse. - Ele é meu aluno, a minha obra. E por esse motivo cabe-me o direito de o destruir.

O voo até Nova Iorque decorreu de uma forma diferenteda que tinha sido prevista por Cohagen. Começou logoquando Bubrov disse a Dan Paddington, no momento em que estequis iniciar um interrogatório exaustivo: - Por favor, deixe-me em paz! Está a fazer perguntaspara o ar, porque eu sou oar. Sinto-me como se fosse o nada, compreende? Cohagen piscou o olho a Paddington, que de momento suspendeu as perguntas. Estavam sentados numa sala dabase aérea americana de Francoforte, até o voo para Nova Iorqueestar garantido, e falavam de tudo e não apenas dosacontecimentos das últimas horas. Pouco antes da descolagem,Bubrov perguntou:

- Leva algumas garrafas, Ronny? - É proibido transportar álcool nos aviÕes militares. - Eu não sou militar. Contra factos não havia argumentos. Cohagen mandou virtrês garrafas de uísqui, um Bourbon antigo, e Bubrov meteu-as namalinha que Irene lhe tinha preparado para os doisdias de inspecção do terreno... continha uma camisa, umascuecas, um casaco de malha, quatro lenços de assoar, um parde peúgas e um retrato de Irene numa moldura. Bubrov colocou as três garrafas ao de cima e soltou umarisada dirigida a Cohagen. - É tudo o que me resta. Pelo menos tenho uma camisapara mudar. - Em Nova Iorque encarregar-se-ão de lhe fornecer o necessário.Além disso, pode vir buscar os seus pertences à Alemanha, desdeque valha a pena. - Viveremos, por conseguinte, da caridade da CIA, querdizer, do Estado americano! - Bubrov fechou a pequenamala. - O que é de esperar como compensação? - Com base na sua lista, foram alertadas as autoridadescompetentes de toda a Europa Central. Suponho que o coronel

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Orlovski e o seu grupo já estarão presos. Quanto aos senhoresdiplomatas terão, pelo menos, uma manhã desagradável. - Cohagenbateu na pequena mala com as pontas dos dedos. -Encarregar-nos-emos de que tudo volte à normalidade. - Pousou oolhar em Irene. Ela mantinha-se sentada em silêncio, com as mãos no regaço ediante da janela, que tinha as cortinas corridas. Nadamais levava do que a mala de mão; vestia uma blusa branca euma camisola verde de riscas, tal como subira para o automóvelquando a tinham ido buscar a Steinebach. " Vamos levá-la aHerr Bubrov!", disseram-lhe e ela deixara tudo atrás de si, àexcepção da carta, que encontrara na caixa do correio ao voltara casa do laboratório. Tinha-a lido e no momento apenas entendidoque Boris se encontrava junto dos americanos e afirmavaser um espião russo. Era um choque sob cuja influência aindase encontrava quando o automóvel da CIA foi buscá-la. - Tem algum amigo ou um parente de confiança que possatratar-lhe das coisas no seu trabalho em Steinebach? - perguntouCohagen. Irene acenou várias vezes com a cabeça, como se fosse umaboneca que, depois de se lhe meter a moeda, devesse acenarcinco vezes com a cabeça. - O doutor Ewingk - respondeu ela, num fio de voz. - No seu caso seria a última pessoa em quem pensaria. Jádeve ter problemas que cheguem por sua causa. - Deus do Céu! É verdade! - exclamou, fitando Cohagencom uma expressão assustada. Só agora tomava consciência doque poderia resultar da sua partida precipitada. - É horrível!

- Esclareceremos a situação com o Ministério da Defesaalemão. Além disso, irá dizer que, tal como dantes, se senteligada ao seu juramento e recusar uma colaboração com a CIA. - É o senhor que me propÕe isso, Mister Cohagen?retorquiuIrene sem compreender. - Não estão interessadosnas nossas pesquisas? - Pouco - riu Cohagen maliciosamente. - Em primeirolugar, nos Estados Unidos já vamos uns passos à frente etambém nas pesquisas de armas B e C, e em segundo lugaro intercâmbio de experiências é de conta dos membros daNATO. Quando a vossa superbactéria estiver pronta a entrarem acção, somos informados. O perigo vem de Leste! - Apontoupara Bubrov. - Não sabemos o que ali se cultiva noslaboratórios. Ainda não. - Tenho uma tia em Augsburg que poderia ocupar-se dosmeus assuntos - disse Irene. - óptimo. Nesse caso vamos encarregar a tiazinha de sedesfazer da sua casa na Alemanha. - Isso significa que nunca mais voltaremos à Alemanha? - replicouela, erguendo os olhos para Bubrov, que fumava umcigarro nervosamente. - Nunca mais? - Durante os primeiros anos, não! - respondeu Cohagen. - Porquê?- Não me agradaria que você ou o Boria fossem vítimasde um acidente, voassem pelos ares ao ligar a ignição de umautomóvel, apanhassem um tiro nas costas ou (como sucedeuao pobre Forster) lhes injectassem veneno com uma pistola.A imaginação da gente dos Serviços Secretos é inesgotável...pergunte ao Boria. Passará muito tempo antes que Moscovo serecomponha desta perda. Até lá gostaria de vos manter afastadosdas zonas de perigo. - Corremos, portanto, perigo? - perguntou ela.

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- Como dificilmente outra pessoa correrá. Cohagen esboçou um aceno de concordância: - Falemos honestamente, Irene: você e Boria terão de viverlongo tempo na clandestinidade. Vocês não só vão desaparecer comonunca mais aparecerão. - O que significa que vamos passar o tempo a fugir? - Nada disso! Viverão tranquilamente algures, mas comopessoas inteiramente novas. Assim que chegarmos a NovaIorque, os nossos especialistas irão apresentar-vos propostas.Entre nós trabalha-se sem convencionalismos e de uma formamuito rápida. Surpreendentemente rápida, já que se trata deautoridades. No avião, um Boeing da Força Aérea americana, Bubrovsentou-se junto a uma das janelas, estendeu as pernas e tirouuma garrafa de uísqui da malinha. Tirou a rolha, levou-a àboca e bebeu. Irene queria levantar-se de um salto e arrancar-lhada mão. Cohagen puxou-a, no entanto, pela camisola.

- Deixe-o, Irene - disse suavemente. - Não devemossolicitá-lo mais, agora. Ele reage sozinho. Deixe-o embebedar-se,se assim se sente mais feliz. Talvez assim afogue tudo oque resta do antigo Bubrov. É uma cruz que ele tem de suportar:é honesto em demasia para estar no Serviço Secreto.Talvez até agora não se tenha apercebido. Tem de repensar eengolir a realidade. - Devíamos ajudá-lo, Mister Cohagen. - Mais tarde. Tem bastante tempo para isso, muito tempo.Um russo sente de maneira diferente da nossa, o que continua asurpreender-me cada vez mais. Nós podemos estar em casa emqualquer lugar do mundo, sentimo-nos tão à vontade na NovaZelândia como na Jamaica, desde que possamos ter um bomnível de vida. No entanto, um russo jamais deixa de sentirsaudades da sua pátria. Onde quer que ele esteja, por melhorque lhe corram as coisas no estrangeiro, para ele é sempre oestrangeiro. Sonha com a Rússia. Bubrov não é uma excepção,pelo contrário! E por essa razão deixe-o embebedar-se, Irene. Era de prever: Bubrov não acabou com a garrafa de uísqui.Foi-se afundando cada vez mais no assento com os olhosturvos. Cohagen tirou-lhe a garrafa da mão e tapou-o com umamanta. Os cento e vinte e três oficiais e praças que nas suascostas liam, jogavam as cartas ou assistiam ao filme que seprojectava no écran de parede, um western, ignoravam a valiosacarga que voava na sua companhia. Apenas se tinhamsurpreendido que uma mulher, uma civil, tivesse obtido licençapara viajar num Boeing militar. Era provavelmente a mulher deum general e daí os lugares reservados na primeira fila. Em Nova Iorque eram esperados no aeroporto por umagrande limusina preta. O coronel Phil Boone viera pessoalmentede Washington a fim de receber Bubrov. Enquanto osdemais passageiros abandonaram o avião pela saída da retaguarda,Cohagen e Irene ampararam o embriagado Bubrov pelaíngreme escada da frente. Ele olhava à sua volta demoradamente,mas era de supor que não reconhecia quem o rodeava.Boone veio ao encontro deles ao fundo da escada, libertouIrene da sua tarefa e ajudou Bubrov a transpor o último degrau. - Agora, está realmente em solo americano - disse, e beijoua mão de Irene, o que surpreendeu Cohagen. Ele nunca chegara atais extremos. - Dou-lhe as boas-vindas. Que tal o voo? - Como pode ver - respondeu Irene com um aceno decabeça na direcção de Bubrov, que se apoiava cambaleante emCohagen. - Ele está completamente embriagado.

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- Amanhã, estará como novo - retorquiu Boone,aproximando-se de Bubrov e apertando-lhe a mão inerte. - Estáem segurança, Boris Alexandrovitch. Bubrov fixou Boone, esboçou um sorriso de um canto aooutro da boca e colocou o braço à volta do ombro de Cohagen. - Tem a certeza? - replicou, arrastando as palavras. - Já

eliminou Sulfi Ivanovitch? - Ele refere-se ao coronel Ussatiuk da KGB - explicouCohagen ao surpreendido Boone. - O seu superior directo emestre. - Aqui está a salvo igualmente do coronel Ussatiuk! - garantiuBoone. - Encarregamo-nos disso. - Seus americanos descuidados! - replicou Bubrov, encostandoa cabeça ao ombro de Cohagen e fechando os olhos.Cambaleeou perigosamente e Irene acorreu a ajudá-lo eagarrou-o com firmeza por debaixo dos braços. - Malditosamericanos descuidados!

Ficaram a morar no edifício da CIA, lá em cima, por baixodo telhado. Era o lugar mais seguro, dado que ninguém poderiaservir-se dos elevadores ou escadas de acesso ao local sem quefosse detectado e era improvável que os caçadores de Ussatiukaterrassem com um helicóptero junto da chaminé. Bubrov ficou a dormir vinte horas. Estava como mono, arespiração mal se lhe ouvia e tinha os músculos frouxos. Ireneapalpava-lhe o pulso de meia em meia hora e mais tardemediu-lhe a tensão, depois de Cohagen lhe ter ido buscar umaparelho apropriado à farmácia mais próxima. - Não precisa recear que ele fique envenenado com álcool. --retorquiu Cohagen, quando Irene voltou a incumbi-lo de irbuscar mais coisas. - Não é uma garrafa de uísqui que fazcair um russo no abismo! - Está a esquecer-se do seu estado psíquico. Boris é umhomem abalado. - Até amanhã. Garanto-lhe: amanhã ele será novamente oantigo Bubrov, que encarará o seu novo mundo como umlenhador duma árvore gigantesca na taiga. Boria é do género dosque tremem mas não caem. Também Irene dormiu algumas horas. Quando se levantou etomou um duche, foi encontrar Cohagen sentado no sofá. Tinhatrazido sanduíches frescas e o cheiro a café fone chegava-lhe deum termo. - Experimentei enfiar uns goles pela garganta de Boria econsegui. Temos homem de volta à realidade. + agora vocêtem de comer alguma coisa, Irene. Há catorze horas que nãotem nada no estômago. Comeram e beberam, iam escutar de vez em quando se algose mexia no quarto de dormir e folhearam a papelada queCohagen tinha trazido. Se bem que o caso Bubrov tivessemerecido um tratamento privilegiado, havia ainda que efectuarmuito trabalho de secretária. - Gostaria de voltar a exercer clínica tão depressa quantopossível - disse Irene. - De preferência numa grande clínicae com uma boa equipa. Num consultório é melhor não pensar. - Dentro em breve. Contudo, achava melhor que se familiarizasse

primeiro com os métodos totalmente diferentes daprática clínica americana. - Eu conheço-os - replicou Irene com uma leve risada. - Passeiseis meses num hospital em Cleveland. Na altura, tinha

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os meus belos vinte e seis anos e ainda não sabia o destino queme esperava. Sempre me fascinou a neurocirurgia, mas emCleveland aprendi que não tenho coragem para tal. - Ignorava que tivesse estado em Cleveland. Esse meioano irá ser-lhe muito útil. - Cohagen mexeu o café. - Receio,porém, que tenha de ser nossa pensionista por um tempomais deleitado. ' - Que significa isso? - perguntou Irene, deixando cair asanduíche no prato. - Trata-se de alguma definição do estadode prisão? - Céus! Claro que não! Expressei-me ao que parece deuma forma idiota. Nos próximos dias chegará da Alemanhatudo o que é importante: a sua conta bancária será transferidapara uma conta local, indicada apenas por um número, até oseu passaporte estar em ordem. Contudo, pode dispor imediatamentedo dinheiro. Se, depois de acordar, Boria se encontrarem condiçÕes, serão tiradas imediatamente fotografias para opassaporte. Você e Boria receberão um passaporte com o nomede Mister e Mistress John Bruce. Contudo, esse passaporte éapenas material de brincar, como lhe chamamos no nosso ramo. NosEstados Unidos viverão com um nome totalmentediferente. No entanto, combinaremos tudo depois com Boria.Tudo depende dele: Terá de enfrentar uma enorme mudança. Cohagen manteve a chávena de café durante muito tempojunto à boca. Desta maneira ganhava tempo para se afastardo tema da conversa. Já bastava o que se seguiria; desencadearuma tempestade antecipada só serviria para arrasar osnervos. - Quanto tempo? - perguntou Irene, quando finalmenteCohagen pôs de parte a chávena de café. - O que quer dizer? - Quanto tempo iremos ficar pensionistas dos EstadosUnidos? - Depende da cicatrização de Boris. - De quê, por favor? - Esperemos até Bubrov ter recuperado em pleno. - respondeuCohagen evasivamente. - Seja como for, precisamos de uma coisa:paciência! Não faz? sentido cravar os olhosno calendário. Ussatiuk vai dar-nos que fazer. E ele dispÕe detempo ilimitado. É nisso que não podemos deixar de pensar. Ainda demorou meia hora até Bubrov ficar razoavelmentemais animado, depois de um banho frio e de três chávenas decafé forte. Cohagen deu uma palmada no ombro de Bubrov. - Já não está treinado, jovem - disse. - Um russo que

se vai abaixo depois de uns copos de uísqui? O seu Ussatiukficaria desiludido! Ressaca? - Não. Apenas fome - respondeu Bubrov ao mesmotempo que pegava nas duas sanduíches que restavam. - Ninguémpensa em mim. Devoraram tudo! - Bater-nos-emos depois com um belo bife - riu Cohagenalegremente. - Na América pode haver muitas falhas, masquanto a bifes ninguém se queixa! Boone ficou completamentedesconcertado consigo, Boris. - Quem é o Boone? - perguntou Bubrov sem deixar demastigar. - Phil Boone, o homem que o tomará à sua guarda. Chefedo Departamento da CIA. Uma espécie de contrapartida deUssatiuk. - E portanto o Boone que me tomará à sua guarda? E qual

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é a sua função, Ronny? - Desapareço da sua vista, quando todo o trabalho estiverfeito. - Que pena. Começo a habituar-me a si. - E o meu emprego! - Cohagen encolheu os ombros. - Os seusrussos não me dão descanso. Metem o nariz em todo olado e onde vocês estão, também tenho de estar! O equilíbriode forças. É uma vida difícil, eu sei. Seria mais fácil se ospresidentes se atacassem mutuamente com cacetes como oschefes dos homens das cavernas. Penso que o mundo surgiriasob uma outra forma e no nosso solo apenas haveria amistososapertos de mão. O presidente americano munido de um cacetecontra o russo: uma visão bela de mais! - Cohagen serviu-seoutra vez de café. - Gostaria de passar a chamar-se Jefferson,Boris? Anthony Jefferson? - Porquê? Esperam que eu venha a ser o novo presidentedos Estados Unidos? Jefferson Segundo? - E você chamar-se-ia Mabel, Irene. Mabel Jefferson. Nãosoa mal. - Julguei que nos chamássemos Mister e MistressBruce. - Só de momento. Não podem andar por aí sem um nome.Jefferson será o vosso nome definitivo. Quando Boris tivertodo o passado atrás das costas. - O que devo atirar para trás das costas? - retorquiuBubrov sem desfitar Cohagen. No olhar brilhava-lhe uma expressão de alerta e defesa.Estavam na América, mas não duvidava de que a liberdadetinha um preço mais elevado do que aquele que pagara. - Estava a pensar na sua frase: ". Quero ser outra pessoa. ?.Acho que tal é igualmente útil, quando se tem um Ussatiukcomo inimigo. Em Moscovo já se sabe agora que não estácamuflado na Alemanha, mas sob a protecção dos americanos.Esse facto serve para arrasar os nervos a Ussatiuk. Também

sou de opinião de que não pode continuar a existir um Bubrov.Nem no estrangeiro! - Cohagen fitou Irene. O que se seguiriadizia-lhe principalmente respeito na qualidade de mulher. Seriao segundo grande choque. - Nós (apenas se ambos estiveremde acordo) iremos modificar o rosto de Boris! - O que... o que significa isso...? - balbuciou Irene, sabendoexactamente o que se passava, apesar de fazer a pergunta. - Temos cirurgiÕes espantosos e especializados nesteramo. - Querem fazer de mim um Frankenstein! - exclamouBubrov, com uma risada triste. - Ficará com uma cara capaz de fazer empalidecer de invejamuitas estrelas de Hollywood, Boria. O seu rosto de agoranão está nada mal, mas depois da operação vai apaixonar-sepor si próprio! - Quer... quer mudar completamente o rosto de Boris? -perguntou Irene, num fio de voz. - Sim. Não pode restar nada que faça recordar o antigoBoris Alexandrovitch. Apenas desta maneira podemos ter agarantia de que os comandos de Ussatiuk jamais o descobrirão. Cohagen inclinou-se na direcção de Bubrov. Falava numtom de voz convincente e implorativo: - Para que Ussatiuk não o descubra, Boris, tem de tornar-seAnthony Jefferson em cem por cento. Sabe-o melhor doque eu. Conhece Ussatiuk a fundo. - Quando é que terá de fazer-se a operação? - perguntou

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Bubrov calmamente. Irene fitava-o horrorizada. - O mais depressa possível. - Quem paga? - O contribuinte americano - respondeu Cohagen comuma gargalhada. - Contudo, fez um bom negócio. Na sualista constavam igualmente dois indivíduos que trabalham naNATO! Se eles tivessem continuado a espiar, iria pagar muitomais caro do que pela sua operação plástica. - E ninguém quer saber a minha opinião? - replicouIrene, elevando a voz. Os olhares de Bubrov e Cohagen voltaram-se na suadirecção. - Como eu disse antes: espera-se a sua compreensão!É isso que está em jogo, Miss Walther! Cohagen meteu a mão no bolso do casaco, donde tirou umapequena garrafa. - Oh, céus! Não! - exclamou Bubrov. - Afaste issopara longe! Sinto o estômago às voltas! Irene acedeu mas sem se mostrar satisfeita. - Se fôssemos viver para qualquer parte do Middle Westou do Sul - disse -, como é que Ussatiuk nos descobriria? - Através do sistema de mosaico. Só precisa de encontrar

uma pedrinha, uma pequena pista aqui em Nova Iorque, paraque junte todas as outras, até ter o desenho formado. A CIAtambém não é impermeável. Sabemos que há fendas... - Nesse caso, também virão a descobrir a operaçãoplástica. - Não. Só há duas pessoas com essa informação: o coronelBoone e eu! Oficialmente, saem de Nova Iorque como Mister eMistress Bruce, para irem morar na Pensilvânia, algures juntoao Erie. Soa bem, não? Assim, perde-se o vosso rasto. Porquesó o desconhecido Mister Jefferson continuará a viver. Sei queo seu rosto ficará tão diferente que podia beber uma cerveja aoseu lado sem o reconhecer. - Voltou a fitar Irene. - Paravocê vai ser difícil, Irene. Recebe um outro homem. - Não amo o rosto dele, mas a pessoa Bubrov! - retorquiu delábios apertados. Sabia, porém, de antemão que iria haver graves problemasquando o corpo fosse realmente o de Boris, mas o rosto que viaquando o beijava e se lhe entregava se transformasse numestranho. Se bem que agora não quisesse tomar consciência darealidade, a pessoa e o rosto não podem separar-se! - Então, fica assente - pronunciou-se Cohagen, satisfeito. -Mais algumas perguntas, Boris? - Não. - A sério que não? - Não. - Nesse caso sou eu que lhe pergunto e de facto repetindo-me:até onde avançou com a sua espionagem das armas B e C? - Até Irina - respondeu Buhrov, ao mesmo tempo queprendia e apertava a mão de Irene. - Ela foi simultaneamenteo "princípio e o fim. Foi-me impossível destruir este amor. - Boris! Quer convencer-me de que ao longo de um anonão enviou qualquer informação para Moscovo. - Nada que respeitasse à informação B. - Sobre o quê, então? - Sobre a construção de represas e os seus pontos fracoscom vista a actos de sabotagem. - E Ussatiuk ficou satisfeito com isso? Não era de forma

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alguma a sua missão! - A ordem de regresso já estava dada: um ultimato. - Ou o regresso... ou a liquidação? - Sim. Orlovski não deixou margem à dúvida. - Por outras palavras: o famoso Bubrov falhou rotundamente...por causa de uma mulher! - Bem pode dizê-lo, Ronny! - E eu devo acreditar! - riu Cohagen trocista. - Vocêsaiu-me o patife mais sofisticado que conheço! - Tenho igual concepção a seu respeito, Ronny! - Deus seja louvado! - comentou Cohagen. - Se o nãofosse, não estava agora aqui sentado.

A maioria das pessoas sentem o destino sob o ângulo dahumilhação. Ussatiuk encarava-o como incentivo. Durante trêsdias, as cúpulas da KGB, a chefia do GRU e do Politburotamborilaram-lhe em cima como se ele fosse uma pele detambor. Em seguida passou o primeiro choque e voltaram afalar com ele de uma forma sensata e humana. Visto que Boris Alexandrovitch Bubrov, na qualidade decapitão, se encontrava sob a jurisdição militar, um tribunalespecial do Exército Vermelho reuniu-se, escutou a queixa quefoi apresentada por um major e interrogou Ussatiuk, queremrevelar os altos segredos secretos - expôs a traição deBubrov. O tribunal ditou a sentença esperada depois de umprocesso sumário. Bubrov era condenado à morte à revelia. O facto significava que os agentes soviéticos tinham o deverde matar Bubrov, onde quer que o encontrassem. Era compreensívelque o traidor devesse ser liquidado. Depois da acção do tribunal e da comunicação da sentença,Ussatiuk ficou mais ou menos reabilitado. O Politburo e todosos superiores tinham reconhecido que Sulfi Ivanovitchconsiderara, de facto, Bubrov como sendo o melhor homem paradesempenhar esta missão e que ninguém poderia prever queBubrov viesse a deixar-se influenciar a tal ponto por umamulher. Não podia dirigir-se qualquer censura a Ussatiuk, àexcepção de que esperara tempo demasiado e que deveria teratendido ao que se passava em Munique. Peter Hãmmerling sentia-se felicíssimo em Ischia. O destinoprotegeu-o. Também ele constava dos primeiros nomes dalista de Bubrov; ao romper da manhã a polícia parara de automóveldiante da sua casa, arrombara a porta e passara tudo apente fino. Um amigo escrevera a contar-lhe tudo para umamorada de um hotel em Meran. O hotel enviou por sua vez acarta para Roma, para uma posta-restante. E, em Roma, alguém foibuscar o correio e enviou-o para Ischia. A polícia sóconseguiu seguir o percurso do correio até Roma. A partir daínão obteve mais pistas. Contudo, o Departamento 14 encontrou duas coisas na casade Hãmmerling: o papel onde havia sido escrita a mensagempara Franz-Josef e a esferográfica. Ficou desta maneirapreenchida uma pequena lacuna: Hãmmerling era o desconhecidoque atacara de forma tão traiçoeira os dois polícias. EFrank-Josef teria de ser o nome codificado do espião soviéticoBubrov. Quanto à identidade da Tia Emmy não era necessáriauma busca mais longínqua. - Agora, vemos claro! - exclamou o comissário encarregado doprimeiro interrogatório. - Mas com semanas de atraso! - retorquiu o director da

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Polícia Judiciária. - Agora são os americanos que têm a ave

paradisíaca.

A desilusão sofrida ainda não terminara a nível do Dr.Ewingk. Arrancaram-no da cama, quando Bubrov e Irene jáiam a caminho num helicóptero para a base aérea americanaem Francoforte. Quando pelo telefone interno da casa um tal."comissário Burgstaller do Departamento 14" se fez anunciar,o Dr. Ewingk sentiu-se como que atingido por um raio. Telefonouimediatamente para o posto da polícia mais próximo epediu auxílio. Só quando diante da sua casa parou um carro da políciafazendo soar a sirena, é que abriu a porta. Os polícias tinhamprocedido a um controlo pormenorizado. Naquela época deterror político uma identificação daquele género já não tinhavalor. Contudo, foi confirmado pela rádio de que, de facto,existia um comissário Burgstaller no Departamento 14. - Agora já posso entrar? - perguntou Burgstaller. - É mais fácilfalar com o papa. - Mas esse não tem nada a ver com os assuntos que mecabem em responsabilidade. - O Dr. Ewingk observou ospolícias, deixou entrar Burgstaller em casa e fechou a porta. -Não costumo receber visitas a esta hora - acrescentou,passando o lenço pelo rosto. Cinco horas da manhã. Deviatratar-se de uma coisa gravíssima. - O que se passa, senhorcomissário? - Trabalha consigo uma tal Irene Walther... - Sim. Uma jóia! Deus do céu! Aconteceu-lhe algumacoisa? - O Dr. Ewingk empalideceu. - Um acidente? Foi umacidente, não é verdade? - Como se quiser encarar a situação - riu sombriamenteBurgstaller. - Vai a caminho de Francoforte juntamente comHerr Bubrov num helicóptero militar americano. - Vai o quê? - replicou o Dr. Ewingk, sem compreender. - Brubov é um agente soviético. - Meu Deus! - exclamou o Dr. Ewingk, deixando-se cairna cadeira mais próxima que se encontrava no vestíbulo e queera uma cadeira de estilo barroco em tons de branco e douradoe forrada em damasco. - Não é possível... - Conhecia Bubrov? - Muito bem mesmo. Foi muitas vezes visita aqui de casa.Um homem inteligente e digno que por amor... - Está a referir-se ao assunto do avião soviético? Tudoengendrado pela KGB. Foi o meio de que queria servir-se paracombater o Ocidente e todos acreditaram nele! - disse ocomissário Burgstaller, olhando em volta. - Vamos ficar aqui.na entrada? - Claro que não. Desculpe, mas estou completamentedesorientado. O Dr. Ewingk foi acender as luzes do seu gabinete de

trabalho, que se assemelhava a uma biblioteca, e deixou-se cairnum maple. Burgstaller sentou-se; não levou a mal ao Dr.Ewingk o facto de não lhe ter oferecido lugar. Via-se que ohomem estava completamente fora de si. - Bubrov, um espião... - repetiu o Dr. Ewingk num tommais acalorado. - Inacreditável. E Irene Walther? - Está ao lado dele. - Não pretende por acaso insinuar que a doutora Walthertrabalhava para a KGB? - retorquiu o Dr. Ewingk, no mesmo

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tom acalorado. - Não. Contudo, ignoramos o que confiou a Bubrov. - disseBurgstaller com um esgar malicioso. - É do conhecimento geral quena cama deixam de existir segredos: caem coma camisa de noite. Vai-se mesmo ao ponto de conversar sobrebombas de bactérias. O amor não perturba... - Eu... eu considero impossível - vincou o Dr. Ewingk. - O que sabia a doutora Walther sobre as pesquisas B? - Tudo! - Foi o que receávamos. Tudo, como? - Pela mão dela passavam todas as experiências. É evidente queprocedemos a um intercâmbio constante de dados comos postos de pesquisa. O mesmo acontecia, portanto, com adoutora Walther. - Ela foi por conseguinte um alvo para os Soviéticos? - Sem dúvida. - O Dr. Ewingk tinha-se recomposto umpouco, mas doía-lhe o estômago devido ao choque sofrido eteve de arrotar. - Há qualquer notícia de informaçÕes que elatenha fornecido? - Nenhuma. Bubrov afirma que nada descobriu através deFrau Walther. - Acredito nele. Irene jamais revelaria uma coisa dessas. - Era possível que ela tivesse em seu poder elementossobre as pesquisas a que se dedicava? - Considero improvável. - Porquê? - Pela própria circunstância de que estas pesquisas poderiamser decisivas em caso de guerra no Ocidente. A doutoraWalther sabia exactamente a posição que ocupava. E estava nolugar certo. Tinha a minha confiança ilimitada! - E porque é que ela não confiou em si? - perguntouBurgstaller. - Isso não sei. Nem sequer sei ainda o que aconteceu!Quem desmascarou Bubrov? - Ninguém. Apresentou-se por vontade própria. - O quê? - exclamou o Dr. Ewingk fitando Burgstallercom surpresa. - Bubrov é um desertor? - Com a doutora Walther na sua companhia. A CIAretirou-a imediatamente da circulação. Mal tivemos oportunidadede fazer perguntas. Quando a situação ficou crítica, os

americanos interferiram. Uns indivíduos rudes! Por esse motivoesperávamos ficar a saber mais por seu intermédio! Queexperiências fazem no seu laboratório? - acrescentouBurgstaller, inclinando-se para diante. - Não tenho resposta! - O Dr. Ewingk levantou-se epôs-se muito direito. O estômago continuava a doer-lhe. - Essa atitude 'não vai conquistar-lhe amizades entre nós. - Estou ligado por um juramento a manter um silêncioabsoluto. Antes de prestar declaraçÕes, necessito da permissãodo ministro de Defesa e de saber até onde pode ir o meutestemunho. Já é do conhecimento público o que jamais deveriachegar ao conhecimento público, senhor comissário. A bombaatómica, bom! A bomba dos neutrÕes, também! Mas no que serefere às bombas B e C? O mais profundo silêncio por todos oslados! Nesse aspecto tanto o Leste como o Ocidente são sensíveisno mais alto grau. Portanto, o que se descobre por detrásdas portas blindadas deixa de estar ao alcance da maioria daspessoas! - O Dr. Ewingk dirigiu-se a um pequeno bar, encheudois copos de conhaque e bebeu um gole enorme na companhiade Burgstaller. - Não digo uma palavra que seja sem autorização

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das cúpulas! Ao meio-dia ficou determinado que o Dr. Ewingk apenaspodia prestar declaraçÕes relativamente à pessoa da Dra. IreneWalther e nada mais. Teceu tais elogios a Irene que por fim ochefe da Polícia observou: - Não me admira que santifiquem a senhora... E assim mandou embora o Dr. Ewingk. Ele ficou com a suaprofunda desilusão e a pergunta que também Burgstaller lhefizera: "Porque é que Irene não fora ter com ele?" Não pensounos repetidos pedidos de férias que ela apresentara. Igualmente ficou por responder a pergunta que jamaispronunciaria em voz alta: ."Que tinha contado Irene a esteBubrov?Na cama apenas se falava realmente de amor? Teriam sidoenviadas informaçÕes para Moscovo?". Sentia o espinho da dúvida. E o Dr. Ewingk teve de vivercom ela.

A paciência é a arte de esperar, afirmou Vauvenargues.É de supor que Ussatiuk não conhecesse este filósofo francêse principal representante dos moralistas, um amigo de Voltairee de La Rochefoucauld. Não se teria enquadrado além disso nasua ideologia, dado que para Vauvenargues o homem eraessencialmente bom e Ussatiuk soltaria uma enorme gargalhadaante a ideia. Um homem bom é um homem morto - soava deuma forma muito mais sensata e principalmente mais lógica.Não lhe restavam dúvidas de que tinha de investir muita paciênciapara a morte de Bubrov e o facto de esta paciência seralimentada pela convicção de que conseguiria localizar Boris

Alexandrovitch em qualquer parte do mundo e liquidá-lo eracompreensível por si. Depois de Bubrov ter sido condenado à morte, Ussatiukreflectiu imediatamente na forma de fazer chegar esta notíciavital a Boris Alexandrovitch. Não para o avisar, mas para lheincutir o medo no coração. Este medo cresceria de ano paraano, até se transformar em pânico, dado que Bubrov sabia bemde mais que a uma declaração de culpabilidade se seguiaigualmente a execução. O tempo não tinha qualquer importância.Enquanto Bubrov vivesse, seria um perseguido. O mais simples seria dar a indicação à CIA. O melhor seriadirigi-la a Ronald Cohagen, juntamente com a participação deque também ele ficaria imediatamente debaixo de mira. Nãoera, de facto, um processo requintado, mas Ussatiuk deixara deter prazer em andar em pezinhos de lã relativamente ao caso deBubrov. Acrescia o facto de ser bombardeado com comentáriostrocistas de todos os lados. O general Butaiev disse-lhe: - O bom Boris Alexandrovitch já está morto no papel!É um descanso enorme, não acha, camarada Ussatiuk? Agorapode voltar a dormir-se... E o general Nasarov, do Estado-Maior do Exército Vermelho, quetinha à sua guarda as armas especiais entre as quais asarmas B e C, deu a entender: - Uma sentença justa, não acha? Mas como iremos notificar otraidor em fuga, caro Sulfi Ivanovitch? O microfilme, o presente de despedida de Bubrov à suapátria, tinha sido examinado. As páginas do diário de Irenenada continham de excitante. Era sem dúvida de interesse oacasalamento das várias bactérias, de forma a produzir o efeitoinevitavelmente mortífero. No entanto, os detalhes eram demasiadoimprecisos; faltavam as informaçÕes de laboratório que

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indicavam como se deveriam acasalar os diversos grupos debactérias. O que Bubrov tinha enviado era apenas um começo aque não poderia seguir-se a continuidade. Ussatiuk decidiu duas iniciativas: deu realmente a informaçãoà CIA e pôs ao seu serviço um homem em relação ao qualsabia poder dispor incondicionalmente. Tratava-se de um daquelesfanáticos a quem só era preciso dizer: "É pela pátria?,para se mostrarem dispostos a ser utilizados por exemplo comobombas humanas. O tenente Ruslan Micheievitch Strelenko, do Comando EspecialI, apresentou-se a Ussatiuk. Tinha vinte e três anos de idade, era de estatura média e deuma beleza quase efeminada. Sempre que olhava para Strelenko, não era possível aUssatiuk considerar como verdadeiro o que constava a seurespeito: digam-lhe que se apertar o pescoço à avó é bom paraa Rússia e ele não hesita! Já desempenhara o papel deexterminador por cinco vezes: em Cuba, onde provocara a morte por

afogamento de dois políticos indesejáveis; uma vez em Paris,onde se descobriu um emigrante abatido a tiro na entrada deuma casa, e duas vezes em Londres, onde um dissidente teveum ataque cardíaco num bordel e um segundo caiu do metropolitano.Estavam todos muito satisfeitos com RuslanMicheievitch. - Deram-lhe algumas instruçÕes, camarada tenente? - perguntouUssatiuk quando Strelenko se encontrava, de pé,em frente da sua secretária. Parecia uma rapariga com roupas dehomem. O cabelo preto era encaracolado e estavacuidadosamente frisado, a pele apresentava um leve tombronzeado como se se expusesse muito ao sol e os olhoscastanho-escuros brilhavam. Ussatiuk tirara informaçÕesrigorosas. Não. Strelenko não era homossexual, ainda que oseu aspecto fosse capaz de levar ao êxtase todos os homossexuais.Acontecia precisamente o oposto: Strelenko tinhaligaçÕes amorosas ",normais" umas atrás das outras e na suahistória também havia uma gonorreia. Tudo isto constava dasactas pessoais da KGB, os melhores dossiers de todo o serviçosecreto. - Não - respondeu Strelenko. - Ignoro do que setrata.- Também a sua voz era suave e agradável. - Boris Alexandrovitch Bubrov foi condenado à morte.Conhece Bubrov? - Apenas de nome. O pirata aéreo. - Esse mesmo. - Ussatiuk acenou várias vezes com acabeça. - Bubrov mudou-se para Nova Iorque. De momentoainda se encontra debaixo das saias da CIA, mas não permanecerálá. Irá instalar-se como um respeitável cidadão. Trata-seapenas de lhe comunicar a sentença de morte. - E de a aplicar, camarada coronel? - É lógico. Bubrov representa um perigo constante para aUnião Soviética. Sabe muito; de mais! Espero de si, RuslanMicheievitch, que acabe tão depressa quanto possível com estaameaça à nossa pátria. Os meios dependem da situação: aescolha pertence-lhe por inteiro. Apenas conta o êxito! - Estou a compreender, camarada coronel! - disse Strelenko, semerguer a voz. - Voo sozinho para Nova Iorque? - Não. Levará quatro homens consigo. Munidos de passaportebritânico. Serão metidos em aviÕes diferentes. A sua basede descida é Londres. Soube que fala bem inglês. - Estão satisfeitos comigo, camarada coronel.

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- Em Nova Iorque irão juntar-se-lhe três homens que jávivem há uns anos lá. Tem assim um comando de sete homens.Chega-lhe? - Para liquidar um homem? - retorquiu Strelenko fitandoUssatiuk com uma expressão algo surpreendida. - Nesse casoseremos oito. Para um único homem? - Você não conhece o Bubrov, Ruslan Micheievitch. E nesta

altura Ussatiuk respirou fundo - pode ser um comandosem retorno. Está a compreender-me? Strelenko acenou afirmativamente. O belo rosto manteve-seimpassível. Uma máscara de boneca. - Onde posso obter informaçÕes exactas? - perguntou. - Por meu intermédio - respondeu Ussatiuk, ao mesmotempo que empurrava parte de um dossier na sua direcçãosobre o tampo da secretária. - Examine esses dados, camaradatenente. É um retrato de Bubrov. Toda uma série defotografias com as alteraçÕes a que teve de submeter-se aolongo da sua actividade. Foi mesmo ao ponto de se transformarnum verdadeiro árabe! Foi no Iémen do Sul. A sua cor decabelo natural é o louro. E tem olhos cinzentos. No Iémenusou lentes de contacto castanhas e o cabelo era preto eencaracolado como o seu. Só que não tão bonito. Deve, porconseguinte, tomar em consideração que Bubrov também modifiqueo aspecto em Nova Iorque. Contudo, terá sempre hipótese de oreconhecer: tem um incisivo superior esquerdo com coroa deouro e na palma da mão direita uma cicatriz com quatrocentímetros de comprimento. Recebeu-a em Beirute durante umacena de facadas. - E quem é esta? - perguntou Strelenko, apontando paratrês fotos de Irina Walther. - Para Bubrov é o centro do mundo. Foi condenado àmorte por causa dessa mulher. Ela levou Bubrov à certa.Virou-o completamente. - Interessante - comentou Strelenko, ao mesmo tempoque pegava numa das fotografias e a observava em pormenor. - Éuma mulher muito bonita. - Acha que Bubrov se teria deixado prender se o não fosse? - Ela está com ele em Nova Iorque? - Ela está sempre com ele, o que dificulta a sua missão,camarada tenente. - Isso torna-o mais simples para mim, camarada coronel. -Strelenko devolveu a fotografia ao dossier, cuidadosamente, comose pudesse estragá-la. A voz adquiriu um tomsuave e terno. - Primeiro a mulher e depois Bubrov. Assim,vou fazê-lo sair de onde quer que se esconda. Ussatiuk sentiu uma impressão na garganta. Acenousilenciosamente com a cabeça e observou a fotografia de Irene.Era como se o bonito rosto da mulher se transformasse numacaveira. - Fica tudo ao seu critério, Ruslan Micheievitch - retorquiu numtom mais acalorado. - Repito-lhe que o importanteé o êxito. - Fechou o dossier e entregou-o a Strelenko. - Vocêparte no domingo para Londres. O seu passaporte inglêsestará na nossa embaixada. E volte apenas quando pudermosriscar Bubrov do mapa. Tem todo o tempo que quiser!

- Está aqui a quitação! - disse Cohagen, que apareceu noapartamento debaixo do telhado agitando uma folha de papelna mão.

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Bubrov e Irene estavam sentados diante do televisor a assistira um filme de espionagem americano. Era incompreensívela forma de actuação dos agentes. PerseguiçÕes, tiroteio,automóveis que atravessavam muros... A realidade passava-se nosilêncio, sem dramatismo e no maior segredo. Apenas de vezem quando aparecia algures um morto desconhecido. - Quem a escreveu? - perguntou Bubrov, ao mesmotempo que baixava o som do aparelho. - A mãezinha Rússia! - respondeu Cohagen, entregandoa folha de papel a Bubrov. - Foi passada a um dos nossosagentes duplos. Encantador, não? - Fui condenado à morte - declarou Bubrov lentamente.Entregou a Irene o papel com a informação. Ela leu e começou a tremer: - Já o esperava! - Também eu! - replicou Cohagen, encostando-se à parede. - Eraimpossível que Moscovo aceitasse e registassemuito simplesmente o seu afastamento. - E... e agora? - perguntou Irene num fio de voz. - O nosso Mister Jefferson tem de nascer com a máximaurgência! - respondeu Cohagen, que pousou o olhar na idioticemostrada pelo televisor e desligou o aparelho. - Nas próximasdoze horas você estará na mesa de operaçÕes, Boris. Equando sair de lá a sua própria mãe tratá-lo-ia por "você... - Estou preparado. Irene cobriu o rosto com as duas mãos. A clínica situava-se num local bastante discreto, em StatenIsland, nas proximidades do Wolf's Pond Park, no Bairro PrincessBay. Era a melhor para operaçÕes do género daquela a quepretendiam submeter Bubrov. A casa, de dois andares, ficava num amplo jardim, rodeadopor um muro alto, a coberto de olhares de curiosos. O acessofazia-se por um portão junto ao qual se encontrava a casa doporteiro e entrava-se num caminho asfaltado, que levava à casabranca, por entre cerrados arbustos e plátanos enormes. A entradaera de estilo colonial, com um alpendre sustentado porcolunas e uma escada de três degraus. Um arranjo de floresenfeitava a entrada, mas também ele não desfazia a primeiraimpressão: era uma casa assombrada? Não havia vivalma nojardim, nem automóveis estacionados, nem entrada ou saída devisitas, nenhuma bata branca nem uma touca de enfermeira.Nada. Quando pararam diante da entrada, Bubrov olhara primeiropara Irene e depois para Cohagen. - Parece um mausoléu. Para onde me arrastou, Ronny? - Para a melhor casa que conhecemos. E conhecemos todas! Aclínica dispÕe apenas de trinta e cinco camas, mas tem

seis médicos, quatro assistentes e catorze enfermeiras. Domelhor que há! - E qual o vulgar mortal que pode pagar uma despesadessas? - Oje, Boria! - exclamou Cohagen com uma risada. - Mas quemsai daqui e tem sessenta anos parece ter trinta! Poreste truque cosmético paga-se gostosamente uns bons milhares,quando se têm! E aos doentes aqui internados dinheiro nãofalta. Aqui pode conseguir-se um busto capaz de equilibrarcopos! E quem atravessa estas colunas com um traseiro redondo epesado, sai dez dias depois com umas nádegas bemmodeladas! Um nariz afilado? Não é problema! Pretende-se umnarizinho arrebitado? Orelhas afastadas? E, semelhante a umtoque de varinha mágica, ficam-se com umas orelhinhas de

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fazer inveja. Uma barriga proeminente? Mais outro toque e obiquini serve! Se soubesse o que já se passou aqui, Boria! Sepudesse mencionar-lhe nomes! Há avôs e bisavós por aí queseriam contratados como manequins. - E agora sou eu que vou lá para dentro! - Isso mesmo. Descemos do automóvel? - Porque é que tudo por aqui parece tão sem vida? - Só diante da casa. Nas traseiras, onde está construída agrande piscina, o jardim de repouso, o campo de minigolfe, oterraço para tomar café, há gente por todo o lado quando estábom tempo. Contudo, esses são os doentes que o público nãoconhece. Os famosos não se mostram e permanecem nos seusapartamentos... Ninguém deve saber que aqui se lhes dá umnovo corpo. Muitos deles já se submeteram a quatro operaçÕes.E os cirurgiÕes encontram sempre uma maneira de apagar osanos. - Cohagen piscou um olho. - Vou contar-lhe umaanedota, Boris. Um cirurgião de estética diz a uma senhora quese lhe apresenta pela quinta vez para uma intervenção: "Já nãoposso puxar-lhe mais nada para cima, minha senhora. Destavez ficaria com uma pêra!." - Cohagen soltou uma estrondosagargalhada, desceu do automóvel e ajudou Irene a sair. Bubrov seguiu-a. E nesse momento apareceu um indivíduocom uma bata branca de médico junto à ampla porta envidraçada. - É o doutor Bred Haddix! - informou Cohagen. - O assistentenúmero um do chefe dos operadores. Como vê,estavam à sua espera, Boria. No entanto, aqui tudo se passa deuma forma calma, discreta, sem ética. Subiu os degraus, estendeu a mão ao Dr. Haddix e trocouumas palavras com ele. O Dr. Haddix mediu o novo doentecom um olhar de relance. Os nomes e os acontecimentos já nãoo abalavam; esta casa já vira que chegasse de destinos. - Ainda podemos voltar para trás, querido - disse Ireneem voz baixa. Mantinha-se junto a Bubrov e pegou-lhe namão. - Ninguém pode obrigar-te. - Estou condenado à morte - observou Bubrov com um

fundo suspiro. - Na Rússia! - A Rússia está por todo o lado. Ussatiuk já soprou atrompa de caça. Há que dar razão ao Ronny: a melhor protecçãoreside numa transformação do rosto. Se assim não for,jamais teremos paz, Irininka! Ela concordou com um aceno de cabeça, agarrou-lhe namão e deram a volta ao automóvel, depois do que subiram aescada. O Dr. Haddix pôs o seu mais agradável sorriso deboas-vindas. - Agrada-me que seja nosso convidado. - Disse "convidado.,,uma palavra útil devido à tensão em que se encontravao doente. - O professor Tucker estará à sua disposição dentrode meia hora. Beijou a mão a Irene e abriu a porta envidraçada. No amplohall de entrada, que como calmante dos nervos se encontravadecorado com palmeiras artísticas, pequenas árvores e arranjosde flores, via-se apenas uma graciosa enfermeira vestida comum uniforme branco que lhe mostrava muito das pernas. Nocabelo louro-platinado usava uma minúscula touca branca. - Esta é a enfermeira Vanessa - apresentou o Dr.Haddix. - Miss Vanessa encontra-se exclusiva e permanentementeao seu serviço, Mister Jefferson. Irene estremeceu quando ouviu aquele nome pela primeiravez. Vanessa esboçou um pequeno aceno de cabeça e fixou o

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olhar muito brilhante em Bubrov. - Temos o quarto dezanove. - Pronunciou aquele ..temos", numtom que soou um pouco a conspiração. Cohagen examinou-a com uma expressão admirativa e desejou podertê-la durante dez dias ao seu serviço. Enquanto ele eo Dr. Haddix permaneciam no hall decorado com as palmeiras,Vanessa avançou com passo miúdo; seguia-se uma escada edepois um corredor que estava alcatifado com alegres motivosde flores. Por todo o lado reinavam as cores, as flores, símbolosde uma vida próspera. Até as portas dos quartos estavampintadas com flores e colibris chilreantes. O quarto eragrande e claro. Dava para as traseiras do jardim e uma portaenvidraçada proporcionava acesso a um terraço que conferiaprotecção dos olhares indiscretos através de uma lona pintadacom flores. Num recanto maior, onde anteriormente só haviauma cama, tinham agora posto duas camas. Era um dos quartos das celebridades, onde as pessoas famosasque pretendiam ficar ignoradas procuravam uma nova juventudeatravés do bisturi do cirurgião. Não faltavam evidentemente otelevisor nem o rádio. - Está tudo em ordem, Mister Jefferson? - chilreou aencantadora Vanessa. - Muito bonito - disse Bubrov, olhando à sua volta. O quartoagrada-me.

- A sua bagagem vem já. - São apenas duas malas pequenas. - Serão primeiro desinfectadas. - Serão o quê? - retorquiu Irene num tom de descrença. - Pretendemos eliminar a mínima hipótese de uma infecção,Mistress Jefferson - explicou a enfermeira. Esboçou um aceno de cabeça amável e saiu com o mesmopasso miudinho. Bubrov dirigiu-se à porta que dava para o terraço, abriu-ae contemplou o jardim. Duas mulheres andavam a passear coma cabeça envolta em ligaduras. - Qual será o meu aspecto daqui a duas semanas? - Sinto uma ponta de receio quando penso nisso - observouIrene. - Tu próprio tens de estar consciente da situação:qualquer operação, seja ela a mais simples, representa umaintromissão na natureza. Não quero assustar-te, mas tens decontar com possíveis consequências. - As consequências seriam piores se conservasse o meurosto Bubrov. - Regressou do terraço para vir sentar-se nummaple junto de Irene. - No entanto, bem o mereço. - Escondeu acabeça nas mãos e fechou os olhos: - É o preço pelamaldita sujeira que cometi contra ti, Irininka. - Boris! Não podes pensar assim. Fui tão feliz em Sotschi.E sinto-me tão feliz por tudo o que ainda iremos viver! Tupermaneces o Boris, com o rosto de Jefferson. Permaneces aminha vida! Bateram à porta e Cohagen entrou com a expressão jovialde sempre. - Está tudo esclarecido - anunciou. - O professorTucker quer vê-lo. Já tem algumas surpresas. Vai ficar espantado,Boris. - E eu? - retorquiu Irene muito baixo. - Tem a palavra mais importante a pronunciar, Irene. -- disseCohagen, ao mesmo tempo que colocava o braço emredor do ombro de Brubov. - Vamos. A reflexão só servepara arrasar os nervos.

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Quem se cruzasse com o professor Tucker na rua, não lheatribuiria certamente a menor importância. Esse facto nada tinhaa ver com a sua pequena estatura, mas com o seu aspectoinsignificante. Um rosto perdido na multidão. Sim, tinha umacor acinzentada, como se jamais se tivesse exposto ao solnova-iorquino. E caso se encontrasse aquele indivíduo numarmazém poeirento no meio de pilhas de caixotes de cartão,surgiria o comentário: "É aí que ele pertence!" Esta impressão desfazia-se por completo quando ele começava afalar. Nesse momento, tomava-se consciência imediatada sua vincada personalidade. Expressava-se num tom ríspido,sem muitos gestos, com uma voz sombria e de uma forma

muito precisa. Era visível que não se impressionava comprotestos. A palavra de Tucker era palavra de rei. No seu gabinete estavam penduradas reproduçÕes de quadros deantigos mestres da pintura holandesa e em frente deuma parede, coberta de livros de alto a baixo, marcavam presençauma enorme secretária e um conjunto de maples de cabedal. Ocentro do gabinete era ocupado por um enorme globoque girava sobre um imponente eixo de madeira trabalhada econferia um toque decorativo ao ambiente. O Prof. Tucker veio ao encontro de Irene e de Bubrov,estendeu-lhes a mão, apontou para os maples, esperou até quetodos estivessem sentados, aproximou-se em seguida do seuglobo e apoiou-se ao eixo de madeira. Serviu-se de uma dasmãos para colocar aquela bola em movimento e o mundo começou arodar silenciosamente. Cohagen soltou uma risadatrocista. "Todos os homens têm a sua mania,., pensou. "Adeste é o globo. O homem que faz mover o mundo... " Tuckerparecia um homem muito convencido. - Pus o seu nome na minha agenda de operaçÕes parasexta-feira, Mister Jefferson - disse Tucker sem preâmbulos.- Quer dizer: apenas o tenho a si. Calculo que a operaçãodure sete horas. - Sete horas? - repetiu Irene surpreendida e com o olharfixo no professor. - Mas uma operação com essa duração é... - Cara colega - interrompeu-a Tucker, fazendo girar oglobo uma vez mais. - Posso garantir-lhe que não haveráriscos com a anestesia. O doutor Yamanura, o meu anestesista,é um dos melhores da sua especialidade. Veio de Kioto. Paralhe ser franco, duvido mesmo que o trabalho seja efectuado emsete horas. Dadas as circunstâncias, torna-se necessária umasegunda intervenção. Passemos a essa questão. O professor Tucker dirigiu-se à sua secretária e retirou ummonte de papéis da pilha de livros e de mapas. Inclinou-sesobre o ombro de Irene e foi colocando folha atrás de outra emcima da mesa baixa e comprida. Cada uma das folhas mostravaum rosto saído de uma mistura de fotografia e de desenho.Nenhum deles se assemelhava ao anterior e, no entanto, mantinhamuma certa parecença mútua. Poderia dizer-se: estes rostospertencem a membros da mesma família. Irene sentiu que um arrepio lhe percorria a espinha. Cohagentossicou. Bubrov continuava sentado sem se mexer. Dezrostos diferentes. Apenas os olhos eram iguais. Os olhoscinzentos de Bubrov. - A decisão pertence-lhe. Que aspecto desejaria ter,Mister Jefferson? Posso dirigir-me a Mistress Jefferson: comogostaria de ver o seu marido? Não precisa de resolver já. Temtempo até sexta-feira.

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- Resolvemos agora - disse Brubov num tom duro. - Pousou obraço em redor de Irene e atraiu-a a si. - Para quê

protelar o que é inevitável? - Mas é o rosto com que irá ficar a vida inteira, Boris. -Cohagen tossicou novamente. - Não se pode andar sempre aosabor da faca! - Olhou na direcção do Prof. Tucker, que semantinha inclinado sobre a sua enorme secretária. - Queremficar sozinhos? Acho que deveria falar sobre o assunto comIrene. - Já o fizemos, Ronny. Assim que chegou a sua primeirainformação. - Eu... eu considero a sexta fotografia a melhor - disseIrene em voz baixa. - A sexta a contar da esquerda. - Então é por esta que optamos! - replicou Bubrov,apontando para o esboço do rosto. Irene agarrou-lhe a mão com força. Os dedos embranqueceramquando se lhe cerraram em redor do pulso. - Também é preciso que te agrade, querido. Só assimresultará. - A voz tremia-lhe, mas conseguiu recompor-se. "Que mulher de coragem!", pensou Cohagen. "Apontou paraa sexta fotografia, como podia tê-lo feito em relação à terceiraou à nona: seja como for, Bubrov jamais será Bubrov, masJefferson!., - É a ti que tem de agradar, Irininka! - retorquiu ele,beijando-lhe o braço. - Não sou vaidoso; para mim qualquerdos esboços serve. O oitavo recorda-me alguém... - A forma básica pertence a um conhecido actor de Hollywood -disse o Prof. Tucker pacientemente. - Modificámos-lhe um poucoo rosto. - Olhou para Irene sem rasto de compaixão. Um homemrecebe um rosto novo por ordem da CIA. Paraquê simular compaixão? - Ficamos no número seis? - Acho... que sim - respondeu Irene com um aceno deconcordância. - Uma resolução definitiva, por favor! - Sim! - exclamou Bubrov em voz alta. - Sim! Sim!Sim! Preciso de assinar uma declaração de desistência do meuantigo rosto? Tucker não se ofendeu. Estava habituado ao nervosismo dosdoentes. A quem agrada submeter-se à faca do cirurgião paranão se reconhecer jamais ao olhar para o espelho? Também osagentes da CIA deste calibre têm nervos. Cohagen não tinhaexplicado a Tucker os motivos que se encontravam por detrásde tudo - relativamente ao dono da clínica bastava encomendar umnovo rosto. - O número seis, portanto - disse Tucker calmamente. - Voupreparar tudo. Até sexta-feira tem um programa muitopreenchido, Mister Jefferson. Temos de medir o seu rosto empormenor; são necessárias análises ao sangue. Pode ser de umtipo dado a complicaçÕes. - Importa-se de explicar, por favor? - Há pacientes cujas cicatrizes tendem a formar protuberâncias.

Na maioria dos pacientes verifica-se uma cicatrização total, mashá outros que têm tendência a ficar cominchaços. - Cicatrizo com facilidade! - replicou Bubrov, ao mesmotempo que estendia a mão e mostrava a marca branca na palmada mão. - Veja, professor. Tucker olhou para Cohagen. - Vamos remover-lhe essa cicatriz. Podiam vir a reconhecê-lo

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mais tarde através dela. Na minha profissão élema: disfarce absoluto! Tem mais alguma cicatriz, MisterJefferson? - No joelho - respondeu Bubrov. - Caí quando eracriança. - Vamos tirá-la também. - E também tens uma cicatriz no ombro esquerdo. - observouIrene num murmúrio. - É verdade! - riu Bubrov. - Resultante de um furúnculoespremido. Há nove anos. - Tudo isso vai desaparecer. - Tucker gesticulava com asduas mãos. - Vamos examinar o seu corpo pormenorizadamente,Mister Jefferson. Talvez tenha mais cicatrizes e nãosaiba. Quem é que vai recordar o que se passou há trinta oumais anos e deixou os seus vestígios? Todas as pessoas têmcicatrizes que já esqueceram. De qualquer maneira, é claro queprecisamos de duas intervençÕes até estar como novo. Talcomo se pintássemos um automóvel de uma outra cor. Pretendia ser um gracejo, mas ninguém se riu. Tucker encolheuresignadamente os ombros. Quando se dispunha a fazerhumor, o que raramente acontecia, encontrava indivíduos tãorígidos como aqueles da CIA. - Até amanhã, então! - disse friamente. - Quer permanecer todoo tempo na clínica, Mistress Jefferson? - Quero. - Vai ser aborrecido para si. Não tem qualquer contactocom os outros doentes. Nada, à excepção do seu quarto e doterraço protegido. - Basta-me. - Irene continuava a agarrar o braço deBubrov. - Tenho rádio, televisão, livros. E o Anthony...Pronunciou o novo nome próprio pela primeira vez. AnthonyJefferson. - E além disso sou médica! - acrescentou numtom acalorado. O Prof. Tucker dirigiu-se à mesinha, reuniu as fotografias edevolveu-as à pilha dos seus dossiers. - Quer assistir à operação? - perguntou-lhe. - É permitido? - Porque não? Entre colegas... - Não, não me agradaria assistir - declarou firmemente. -Faltar-me-ia coragem para ver cortarem-lhe o rosto.Qualquer outra operação, mas esta não!

- Compreendo. O Prof. Tucker voltara a aproXimar-se do seu globo e fazia-ogirar no eixo de madeira. Não desprendia os olhos, fascinado, dosEstados em movimento. - Tem experiência de cirurgia de reconstituição? Odeio aexpressão de cirurgia estética ou cirurgia cosmética. - Não. - Nesse caso, gostaria de tê-la como convidada junto damesa de operaçÕes, Mistress Jefferson. Noutras operaçÕes. Podeaprender algo que possa vir a ser-lhe útil mais tarde emrelação ao seu marido. - Desviou o olhar do globo nadirecção do Bubrov. - Você está aí especado como umcarvalho. Contudo, vai chegar o dia em que odiará o seunovo rosto até à destruição. Nessa altura apenas a sua mulherpoderá ajudá-lo. Tive u caso de um doente (e você é dessegénero) que se desfigurou com uma navalha de barba e seapressou a ir ao meu encontro: "Agora acabou a malditacareta... Dê-me o meu rosto de volta. " - Tucker pôs novamenteo globo em movimento. - E eu não posso fazê-lo.

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Não digo que consigo poderá passar-se o mesmo, MisterJefferson. Ainda pode vir a admirar-se. - Parou o globo e deuassim a entender que a conversa estava acabada. - Até amanhã,Mister Jefferson. O doutor Haddix irá buscá-lo para asanálises. Amanhã de manhã estarei a operar às nove horas nasala de operaçÕes dois. Um nariz torto, uma plástica às nádegase uma eliminação de banhas. Está convidada e será bem-vinda, caracolega. Foi colocar-se atrás da secretária, sentou-se e desapareceupor detrás dos seus livros e dossiers, como se mergulhasse nummar de papéis. Cohagen tomou a direcção da porta. Irene e Bubrovseguiram-no hesitantes. Ainda se voltaram uma vez. O Prof.Tucker continuava oculto por detrás do seu muro. - Um homem estranho - comentou Irene para Cohagen equando já se encontravam no corredor. ? - Um génio na sua especialidade. Os génios têm na suamaioria um toque de loucura - riu Cohagen. - É esseo motivo por que não serei imorredouro. Sou normalíssimo.

Hanns Heroldt precisou de quase catorze dias até se decidira voltar a aparecer em público. Ainda tinha a cara um tantoinchada e olheiras amareladas, mas dissimulava-as com unsenormes óculos escuros. O pior era o facto de o soco deBubrov lhe ter rachado a cana do nariz. Só se apercebeu quandoo inchaço aumentou e cada toque no nariz lhe provocavadores até nos dentes. Também lhe era quase impossível respirarpelo nariz. Quando a dor se tornou insuportável resolveu procurar umaclínica. As palavras de conforto dos médicos apenas serviram

para lhe provocar desconfiança e receio. - Já temos visto casos idênticos - disseram-lhe na clínica. -Rachado não é partido. Não se preocupe. O nariz não vaificar inchado nem torto. Dentro de umas semanas não se vê nada. Hanns Heroldt passou este tempo de espera cheio de raiva eem profunda meditação, que acabou por transformar-se numódio profundo. ódio contra esse maldito russo, ódio contraessa "puta da Irene." Quando ainda se encontrava internado na clínica, depois dea fala ter deixado de estar afectada pelo nariz esmurrado,telefonou para a Embaixada soviética em Bona. Exigiu que opusessem em contacto com o Departamento de Segurança, masum funcionário respondeu-lhe friamente num alemão semsotaque: - Não temos um departamento desses. Com quem desejafalar, por favor? Heroldt pousou os olhos no canto do seu quarto da clínica.Pensou: "Que safados! Toda a gente sabe que oitenta por centodo pessoal pertence à KGB. ," E acrescentou num tom maisinsistente: - Trata-se de uma informação muito urgente e de umaextraordinária importância para a União Soviética. - Pelo telefone? - Que outra maneira sugere? Devo pôr-me a cantar diantedas janelas? - Vou pô-lo em contacto com o Departamento de Comércio -anunciou a voz monocórdica. Soaram alguns estalidosna linha e em seguida ouviu-se uma voz com um típico sotaqueeslávico: - Fala Iachnainev. Que deseja, por favor?

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- Conhece a doutora Irene Walther? - perguntou Heroldt. - Não. - Mas conhece sem dúvida Boris Alexandrovitch Bubrov. - Não. - Não é possível! Bubrov, o homem que desviou um aviãoda vossa Aeroflot. Bubrov. que, segundo ouvi dizer há trêsdias, se dirigiu com esta Irene Walther aos americanos e desdeessa altura desapareceu da Alemanha. Vem em todos os jornaise não o conhece? - Não! Tem mais perguntas? - Posso revelar-lhes alguns pormenores interessantes. Tenhofotografias, apenas para dar um exemplo. E tenho... - Não nos interessa! - interrompeu o encarregado de Negóciosnum tom frio. - Contudo, se quiser, pode vir falarconnosco. Pergunte por Maxim Iachnaiev. Como se chama?Onde mora? Hanns Heroldt indicou o seu nome e a morada em Munique. Sabiaque dessa maneira passaria a constar da lista daKGB e seria automaticamente vigiado de futuro pelos serviços

secretos soviéticos. Sentia um ódio grande de mais para quenão aceitasse. - Aparecerei. A que hora lhe convém? - quis saber. - A qualquer hora - e Iachnaiev desligou. Nessa tarde Heroldt bebeu uma garrafa de vinho enquantopensava no que desejava realmente contar à KGB. Não sabiapraticamente nada sobre o trabalho de Irene na Bio-Agrar e deBubrov apenas conhecia a expressão penetrante dos olhoscinzentos e a enorme força dos punhos. Contudo, dado que segundoos jornais alemães publicavam com uma grande dosede fantasia e de especulação - Bubrov era um agente duplo,que agora se mudara para o lado dos americanos, certamente seesconderia na América e Irene estava sempre ao seu lado.Neste aspecto, podia ajudar os soviéticos e dar a suacontribuição para destruir este tipo que lhe dera cabo do nariz. Duas semanas após ter tido alta da clínica, Heroldt apanhouo avião de Munique para Colónia, alugou um automóvel aochegar a esta cidade e seguiu para Bad Godesberg. O imponenteedifício da Embaixada soviética pouco lhe interessou. Nohall de entrada, onde vigorava um extraordinário sistema desegurança, foi imediatamente detido por uma sentinela. - Quero falar com Herr Maxim Iachnaiev - disse Heroldt.Nesse momento invadiu-o uma estranha sensação. Encontrava-seem território soviético e quando se sentasse diante de Iachnaievestava certo de que olharia de frente a KGB. - Sobre que assunto? - quis saber a sentinela. - Herr Iachnaiev encontra-se ao corrente. Diga-lhe queestá aqui Hanns Heroldt, de Munique. Após uma breve conversa telefónica, Heroldt foi levadopara um edifício anexo após percorrido um enorme corredor eintroduziram-no num gabinete. Um homem alto e seco, vestidocom um fato cinzento, que estava atrás de uma secretária,levantou-se à sua chegada. Maxim Iachnaiev usava uns óculosde aros dourados e tinha o ar de um intelectual mal pago quepassa horas metido nas melhores escolas do povo. Indicou-lheuma cadeira dura de madeira, depois fechou a porta nas costasde Heroldt, que estremeceu e teve a sensação de que se encontravapreso, em vias de ser transferido para a Sibéria. Iachnaiev sentou-se na sua frente, avaliou-o por detrás daslentes dos óculos com aros dourados e aguardou. Já há muitotempo que sabia com quem iria lidar, graças às pesquisas

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efectuadas. Representante de produtos farmacêuticos, trinta eseis anos de idade, uma casa luxuosa e de estilo moderno, adoradopelas mulheres, playboy vivido sem conseguir, porém, que oaceitassem na élite dos Jet-set, doido por automóveis eeconomicamente independente, porque representava produtosfarmacêuticos que eram consumidos na ordem dos milhares e rarasvezes faltavam em qualquer farmácia. Um homem destes não édo género dos que se colocam à disposição da KGB a não ser

que fosse um fanático político, o que certamente não correspondiaà realidade factual. - Por onde começamos? - perguntou Heroldt, hesitante.Iachnaiev soltou uma risada cortês. - É o senhor quem quer falar comigo, Herr Heroldt. - Trata-se de Bubrov... - Ele bateu-lhe. - Está a par disso? Iachnaiev riu ainda com mais vontade. - Nestes tempos difíceis é preciso andar bem informado,Herr Heroldt. Teve alguma amizade íntima com a doutoraWalther? - Sim. - Com esta pergunta Iachnaiev colocou precisamente odedo na ferida. No entanto, dominou a sua atrapalhação. - Estivemesmo para casar com ela. - Uma atitude muito digna! - comentou Iachnaiev, trocista. -E Boris Alexandrovitch veio intrometer-se entre os dois? - Irene vestida de cigana. No Carnaval de há três anos.E aqui: Irene vestida de japonesa. Carnaval de há dois anos.E aqui: Irene como dama das camélias no baile de Medicina.Noite de São Silvestre de há dois anos. - Difícil será imaginar que a doutora Walther ande pelaAmérica vestida de dama das camélias. - Espere! Apenas quero mostrar-lhe quantos rostos temIrene, quantas possibilidades tem aí! Sempre que se veste decerta maneira fica diferente e é irreconhecível como Irene!Houve mesmo uma altura em que ela gostava de usar perucas.Era a moda então... ora loura, ora com madeixas claras,loura-platinada, com o cabelo preto encaracolado, liso ouondulado,apanhado atrás ou repuxado. Irene tinha a mania de que não avissem como médica ou cientista e tenho aqui fotografias que amostram com várias perucas. E pensei mesmo para mim próprio: `"Na América também é natural que use peruca. E nessecaso a KGB pode fazer uma ideia de como ela parecerá atravésdestas fotografias. " - Interessante! - comentou Iachnaiev, medindo Heroldtcom o olhar. - Porque faz isto? - O problema é meu. - Tem razão. Iachnaiev puxou os óculos para a testa, inclinou-se sobre asfotografias e examinou algumas de passagem. Em seguida, devolveu-as à posição inicial e deixou penderos óculos sobre o nariz. Hans Heroldt entrelaçou as mãos.Estavam tão húmidas como se tivesse acabado de as lavar. - Isto não é extraordinariamente valioso para vocês?perguntounum tom de voz acalorado. - Não. Bubrov e Irene Walther não nos interessam. - lachnaievsoltou uma risada maliciosa. - Pode voltar a guardar as

fotografias no álbum. - Não preciso delas. De resto, tenho os negativos em meu

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poder. - Heroldt levantou-se. - Desculpe-me pelo tempo quelhe roubei. Iachnaiev levantou-se, dirigiu-se à porta e abriu-a. Umfuncionário da embaixada já estava à espera no corredor. `.Aorganização funciona impecavelmente`., pensou Heroldt.Heroldt rolou sobre a valiosa alcatifa chinesa até se deter junto à parede, com as mãos no baixo-ventre, os olhos reviradose a língua pendente. O indivíduo arrastou Heroldt para o quarto pegando-lhe nas pernas e fechou a porta. Em seguida, colocou o peso morto em cima da cama, sentou-se numa cadeira coberta de pele e ficoua aguardar que Heroldt recuperasse a consciência. Tal nãodemorou a acontecer - mas sentia uma dores horríveis entre as coxas; gemeu em voz alta e de súbito saltaram-lhe as lágrimas dos olhos. - Temos de conversar - disse o adversário calmamente. O que foste fazer ontem à Embaixada soviética? Heroldt começou a tremer. Engoliu em seco várias vezes, mas da garganta nem um som lhe saiu. - Eu... - gemeu finalmente - eu... - Não respondas que foste vender medicamentos! Têm os deles e são muitas vezes superiores aos nossos. De que se tratou, pois? - Eu só... - Heroldt recomeçou a chorar. O visitante inclinou-se sobre a cama e aplicou-lhe duas sonorasbofetadas. - O que contaste? O que sabes sobre o laboratório da B io-Agrar'' - Nada. - Ah! Essa não, por favor. - O visitante voltou a aplicar o mesmo tratamento, fazendo com que a cabeça de Heroldt andasse numa roda viva de um lado para o outro. - O que éque os soviéticos queriam de ti? - Nada. - Faço de ti ovos mexidos, Hanns, se continuas com essa atitude idiota! - Eu... eu levei-lhes fotografias... - balbuciou Heroldt. Tentou rolar sobre o estômago, a fim de proteger o baixo-ventre,mas a visita aplicou-lhe toda a força do punho nas costas. - Fotografias? Que fotografias? - De Irene. - Nenhuma documentação do laboratório? - Não! Eu... eu nunca lhe tive acesso. Impossível...

Com as traseiras dentro de água e u porta-bagagens de fora, à frente, pordetrás do vulante e debaixo de água, estava sentado um homem elegantemente

vestido e que "ainda mantinha as mãos em redor dovolante. Quando, duas horas depois, um guindaste havia retirado oautomóvel da água e o morto jazia na relva diante do comissárioda brigada de homicídios, o médico da Polícia apenas necessitoude cheirar para emitir o diagnóstico final. - Está completamente embriagado! - disse. Mais tarde, chegaram as informaçÕes laboratoriais após seefectuar a autópsia: 2,5 de álcool no sangue, morte causada porembriaguez. Acidente devido a excesso de álcool. E quando sedescobriu o nome, apenas se encontrou um motivo para oexcesso de àlcool: mal de amor. A antiga ligação amorosa deIrene Walther.

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Ficou por responder a pergunta: o " mensageiro do telegrama??pertencia à CIA ou à KGB.'

Os preparativos para a operação iniciaram-se de manhã cedo. Acabeça de Bubrov foi medida por meio de compassos ede instrumentos que se assemelhavam a objectos de tonsura.Fotografaram-no de todos os ângulos. tiraram-lhe uma determinada"quantidade de sangue, fizeram-lhe radiografias e testaram-lhe osreflexos. e ligaram-lhe o corpo nu a uma máquinaatravés de uma série de fios e ligaçÕes. Era espantosa a formacomo dispunham dele. - Fazem o mesmo a todos os que têm as orelhas afastadasde mais.' - perguntou Bubrov, coberto de suores, quando saiude uma máquina onde se vira obrigado a manejar uma série dealavancas. - Não - riu o Dr. Haddix, que dirigia os preparativos. - Sónu seu caso. Temos de eliminar o minemo risco. Já basta o queé impossível de prever. Pense nisto: o que costumamos fazer emvárias operaçÕes, bocado a bocado, em si tem de ser feito de umavez! A correcção de um nariz, um levantamento de pele, e outrasintervençÕes cirúrgicas importantes como uma plástica dos seiossão sempre operaçÕes isoladas. Contudo, no que lhe diz respeitoirá proceder-se a uma modificação total do corpo: nariz, orelhas, disposição dosolhos, queixo, lábios e sobrancelhas. Em circunstâncias normais efectuar-se-iauma operação de cada vez. - E porque tem de ser assim? - quis saber Bubrov, aomesmo tempo que se colocava debaixo do duche. - Tudo deuma vez só? - Assim se pretende, Mister Jefferson. "Cohagen está com pressa de se desembaraçar de mim",pensou Bubrov. "Um rosto novo, um nome novo, um novocírculo de vida: é a recompensa. Mas depois, fora com ele.Agora já não serve para mais nada. " Por volta do meio-dia, Cohagen apareceu para fazer umavisita. Trazia os jornais mais recentes, alguns livros, revistase as memórias eróticas de um galante cavalheiro do tempo de

Goethe. Irene examinou o livro surpreendida, folheou-o,deteve-se em algumas gravuras muito significativas e pô-lo delado. Cohagen esboçou um sorriso. - Pensei que como recordação... - disse num tom despreocupadoe jovial. - Ronny! - Mas é literatura clássica! Jamais me atreveria a trazer-lheum livro pornográfico moderno. Foi com boa intenção,Irene! Boris vai ficar quieto durante os próximos dez dias.O rosto tem de ficar submetido a um descanso absoluto! - Considera-me uma Messalina, Ronny? - Ao vê-la, consigo entender que um homem corra atrásde si como um galgo atrás de uma lebre. - Pare com a brincadeira, Ronny! - riu Irene. - Boria é um homem de invejar. Posso entender que porsua causa se desvie um avião! - Retirou o livro de cima damesa, folheou-o e meteu-o novamente no bolso do casaco. -Desculpe, Irene. Esqueça isto. De vez em quando passam-meestas coisas pela cabeça... - Bateu com a mão no bolso efitou Irene com um olhar brilhante. - Ou quer que lho deixe?Quer lê-lo em voz alta a Boria? - Voe daqui para fora, Ronny! Cohagen levantou os dois braços como se se considerassevencido. Depois, sentou-se no terraço que estava protegido

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com marquises dos dois lados e apenas permitia uma panorâmica doparque. Várias espécies de flores impediam que lá debaixo se pudessem avistar os ocupantes dos apartamentos. No parque estavam três mulheres deitadas ao sol. Tinhamligaduras em redor do queixo que conservavam o rosto no sítioapós um levantamento da pele. Um homem gordo jogava minigolfe eatirava as bolas cada vez mais para longe dos buracos. - O Boria não vem comer? - perguntou Cohagen, aomesmo tempo que se estendia numa das cadeiras de repouso. - Não faço ideia. Desde as nove horas que não voltei avê-lo. - Estão a fazer-lhe os testes. - Cohagen espreguiçou-sesatisfeito ao sol. Estava um sol quente de Primavera e dooceano soprava uma brisa morna sobre a parte oriental da StatenIsland. - Já se decidiu sobre onde gostaria de viver maistarde, Irene? - Não. De qualquer maneira, não conheço a América obastante para poder dizer: gostava de viver em tal parte. O Borisacha que seria melhor o mais afastado possível dos acontecimentosmundiais, por exemplo no Middle West, na fronteiracanadiana, nas florestas, nas montanhas Rochosas... - Na minha opinião achava mais seguro deixarem-se ficarpor Nova Iorque - retorquiu Cohagen. - De que queremviver? As suas economias alemãs podem ser levantadas embreve. A passagem para a conta bancária está pronta. Tem

trinta e quatro mil seiscentos e setenta e oito dólares na conta.Não é muito para uma vida inteira e gasta-se rapidamente.Podiam evidentemente comprar uma pequena herdade com estaquantia, na Califórnia, na Florida, no Cansas ou em Nebrasca.Contudo, tanto você como o Boria fazem alguma ideia dequanto custa manter uma herdade em funcionamento? É bastantediferente de criar vacas nas pastagens alpinas da Baviera.Os lavradores americanos trabalham no duro! - Cohagen observouIrene. que veio ocupar uma das cadeiras de repouso aoseu lado e passou nervosamente as mãos pelo cabelocastanho-arruivado. - Repito-lhe Irene: em Nova Iorque e no meiode sete milhÕes de pessoas viverão no mais completo anonimato!Você podia trabalhar numa clínica e habitar nos arredores deNova Iorque, talvez no Hudson, no distrito de Hastings, Irvington ou Tarrytown. Ter uma bonita e pequena casa de camponuma paisagem de sonho... tudo isso nos podíamos encarregarde conseguir. - Ou seja: já está tudo preparado. Falou com a clínica, jáalugou a casinha e só precisamos de dizer que sim? - Sabia que era uma mulher de raciocínio lógico, Irene. - E o que fará Boris? A mulher ganha dinheiro. Ele cozinha,limpa a casa, cuida do jardim e leva o cão a passear.Corresponde a matá-lo, Ronny! - Não julgue que fazemos tudo isto por uma questão demera humanidade. Por detrás da minha proposta há muito deinteresse pessoal. Gostaria de ter Boria perto de mim. Falandoclaramente: gostaria de empregar Bubrov no Departamento Notíciasde Leste. - O Boris já sabe? - Não. Primeiro quis falar consigo sobre o assunto. - Não acredito que o Boris concorde. - Porque não? - Se trabalhasse para a CIA, estaria a executar um trabalhocontra a sua pátria. Até esse ponto conheço-o bem: apesardo que aconteceu nos últimos meses, Boris continua e continuará

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a ser um russo que ama ardentemente a sua pátria. Jamaistrabalharia para a CIA. Faz alguma suspeita, Ronny, dotormento interior por que Boris passou quando se lhe apresentouem troca de protecção e lhe ofereceu a lista de agentes daKGB na Europa? Ele contou-me! Tinha a sensação de sangrarpor dentro. E só o fez porque Orlovski lhe deu a entenderclaramente que Moscovo o queria eliminar. Não foi uma ameaça emvão: ele já viveu o suficiente para saber como a KGBreage. - Irene sacudiu negativamente a cabeça: - Boris nãoaceitará a sua proposta, Ronny. - Apenas necessita de trabalhar como tradutor. Não setrata de uma actividade de espionagem! Um trabalho parado, seassim se lhe quiser chamar: lê os jornais soviéticos e traduz-nosos artigos que são interessantes. Não há nada mais legal. Não

afectará a sua alma russa! - E onde é que eu devo trabalhar? - Em Yonkers. No Sprain Ridge Hospital. Um complexogigantesco com cemitério próprio, o Saint-Marys Cemetery. - Cohagenadorava gracejos daquele tipo. - No Departamentode Medicina Interna há uma vaga. E também no de Pediatriae Ginecologia. Pode escolher. Quanto ao problema da licençade trabalho não precisa de quebrar a cabeça; a nossa centralencarrega-se dessa regularização. - O perfeito planeamento das pessoas. Parece-me quevocê é a materialização do talento de organização americano! - Obrigado. Posso orgulhar-me disso. - Cohagen descontraiu ocorpo e pôs as mãos debaixo da nuca. - Na velhaAlemanha sempre me surpreendeu: para nós, Americanos, aindaexiste lá um sopro do velho kaiserismo e apesar disso resulta nosAlemães! Entre nós cada emprego é uma luta pela sobrevivência.- Ouviu-se o ruído de uma porta a abrir-se ao fundoe Cohagen levantou a cabeça. - Ah! Lá vem o nossoFrankenstein! Venha até aqui Boria! Mostre-se. Já lhe cortaramas orelhas? Bubrov dirigiu-se ao terraço, inclinou-se sobre Irene,beijou-a e deu uma palmada no ombro de Cohagen. - Estou pronto! - disse. - Este doutor Haddix fez o seutrabalho em mim. Contudo, apenas sei que estou são como umpero. - Nota-se! - comentou Cohagen, massajando o ombro. - Tive umaconversa tola com Irene sobre o erotismo na épocade Goethe. - Ele já nos arranjou uma casinha numa zona verde e umtrabalho. Para mim numa clínica em Yonkers e para ti comotradutor de jornais soviéticos - retorquiu, fitando-ointensamente. - Está tudo arrumado. - Primeiro o rosto novo. - Bubrov sentou-se entre Irene eCohagen num banquinho lacado de branco. - Quanto possoganhar? - Três mil dólares por mês. É um salário elevado. - Voltaremos a falar no assunto, Ronny. Cohagen esboçou um aceno de concordância e trocou umolhar significativo com Irene. ",Não está basicamente contra",pensou. "Já se avançou bastante.,?

Nesse mesmo dia o tenente Ruslan MicheievitchStrelenka voou de Londres para Nova Iorque na companhia de quatro homens. Estavam munidos de passaportes ingleses e dovisto de turistas de visita aos Estados Unidos. No AeroportoKen? nedy esperava-os um tal Mr. Christie, que se chamava

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na realidade Scholtovski. A morte de Bubrov acabava de aterrarna América.

A operação foi marcada para as oito horas de sexta-feira.Ao almoço de quinta-feira Bubrov já não comeu e bebeu apenas água mineral. à tarde jogou xadrez com Irene enão deixou transparecer a mínima emoção. Tinham trocado mais algumas impressÕes com o Prof. Tucker sobre o novo rosto. As mediçÕes efectuadastornavam necessárias algumas modificaçÕes no esboço, mas quandoo retrato ficou pronto Irene e Bubrov não apresentaramqualquer oposição. Era um rosto viril e muito expressivo, com um queixo pontiagudo e vincado, um nariz quase romano,sobrancelhas espessas e faces cheias. Podem fazer-se milagres commaterial plástico, pedaços de ossos e silicone. Para um génio como Jeff Tucker esta nova forma dada ao rostoassemelhava -se ao trabalho de um escultor. Ele era umPigmaleão da cirurgia estética. Havia ainda um problema mais: - Que idade quer ter? - perguntou Tucker. - Está indicada no passaporte. Trinta e oito. - Isso nada significa, Mister Jefferson - replicouTucker pousando o dedo no esboço. - Uma pessoa de trinta pode parecer sessenta e uma de sessenta ser um Apolo capazde conquistar todas as mulheres. - Gostaria de aparentar exactamente a minha idade, -disse Bubrov calmamente. - Pode colocar algumas rugas, Herr professor. - Só queria saber. - Jeff Tucker pegou no esboço. -As pesquisas laboratoriais revelaram que tem o que sedesigna como uma "boa pele cicatrizante". Parabéns, MisterJefferson.

Durante a noite Bubrov dormiu profundamente e com umarespiração calma, enquanto Irene se manteve sentada na cama aolhá-lo. "Tenho de despedir-me deste rosto", pensou. aomesmo tempo que sentia todos os nervos retesados. ."Este rostoque tanto amo, que se debruçou sobre mim nos momentos maisbelos, sobre os meus seios, o meu corpo, este rosto que agarreientre as mãos, que beijei, que me dirigiu palavras ternas; umespelho da alma, da sua alma, e que me desvendava as profundezasmais íntimas. Que restará dele?." Nada. O esboço era a realidade brutal: quando Boris regressasseda mesa de operaçÕes seria um estranho. "Em tudo o mais, porém, continua a ser o Bubrov..,pensou. "As suas mãos, o seu corpo, a sua fala, o seu andar,os seus movimentos, o seu espírito, o seu amor... Tudopermanecerá e não será adaptado a Anthony Jefferson. Tambémficarão os olhos, os enigmáticos olhos. ," Esqueceu-se de que também os olhos sofreriam uma modificação.Ficariam castanho-escuros por intermédio de lentes decontacto.

Não se cansava de se inclinar sobre o corpo dele e de o beijarcuidadosamente para que não acordasse, acariciava-lhe o rosto efixava o mais ínfimo pormenor. Houve uma vez em que ele soltouuma gargalhada durante o sono e pareceu-lhe tão irresistívelque se sentiu tentada a gritar: "Não! Não!", Contudo. logopensou em Ussatiuk e na certeza de que Bubrov seria perseguido

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e que apenas um rosto novo oferecia a garantia de se escapar àraiva da KGB. às oito e meia vieram buscar Bubrov. A graciosa e platinada Vanessa Wildie fez o seu aparecimento. - Está preparado, senhor? - chilreou, acompanhando aspalavras da habitual mesura e fixando Irene com um olharbrilhante. - Em que posso ser-lhe útil, madame? - Em nada, de momento.Bubrov virou-se uma vez mais, antes de sair do quarto.Em seguida, voltou atrás e abraçou Irene. Beijaram-se durantemuito tempo, de olhos fechados, e foi de olhos fechadosque ele se afastou dela e abandonou o quarto. Era a despedidade Bubrov para sempre. Quando regressasse, seria AnthonyJefferson. Irene abriu os olhos, dirigiu-se com os joelhos trémulos atéjunto de um maple, onde se deixou cair. Agora, fora tomada aresolução definitiva. Recostou a cabeça bem para trás e fixou os olhos no tectopintado de um verde-claro, destinado a actuar como calmante,e deixou-se arrastar pelo pensamento do que agora estaria apassar-se com Bubrov na sala de operaçÕes. Na qualidade demédica conhecia os preliminares pré-operatórios, mas jamaisassistira ou observara uma cirurgia plástica. Apenas estiverapresente uma vez numa operação para o aumento dos seios;sentara-se num assento vidrado por cima da mesa de operaçÕese olhara lá para baixo para o corpo iluminado por holofotes.Fez-se uma intervenção glandular e no lugar dos meros mamilosforam colocados novos e pequenos seios. ". Agora, ele está deitado em cima da mesa de operaçÕes..,pensou. " Estão a tapá-lo com lençóis quentes e esterilizados.O Tucker fará uma anestesia geral ou apenas local? Nas operaçÕescosméticas costuma proceder-se apenas a uma anestesialocal, mas aqui está em causa uma intervenção de totalmodificação. O que disse o Tucker? Que pode demorar sete horasou mais. Deus do céu! Como irei aguentar?." Levantou-se de um salto, dirigiu-se ao terraço e respiroufundo. No parque andavam dois jardineiros a trabalhar. Cortavama relva, varriam as folhas secas, limpavam o campo demini-golfe e remexiam com os ancinhos. Duas enfermeiras detoucas pregueadas saíram dos seus aposentos para se apresentaremao serviço. Irene retirou-se novamente para o quarto e fechou a porta doterraço. ,"Todas as clínicas se parecem", pensou. "No entanto,

os que aqui se encontram não são doentes, são meros vaidosos. Há aconsiderar também, por outro lado, que certas anomalias daestrutura humana podem ser responsáveis por graves traumas." Consultou o relógio. ??Agora está anestesiado??. pensou. ??OProf. Tucker está a controlar a respiração. o pulso e o coração.Pretendem até medir as batidas do cérebro durante a operação.Nem um risco mínimo, uma quantidade de oxigénio errada quepossa resultar em distúrbios cerebrais. ou paralisação. JeffTucker pretende fazer uma obra-prima. Por onde começará?Pelo nariz? Pelas orelhas? Ou com o grande corte no queixo?Os lábios e as faces são os locais particularmente críticos.Neste ponto, se os nervos fossem afectados a boca podia ficartorta... Percorreu o quarto de um lado para o outro com os punhoscerrados. ??Mantém a calma??. dizia de si para si. ??Controla-te,Irene! és médica! Não passaste a vida a dizer aos familiaresque aguardavam resultados "Não se preocupem. Fazemos o

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melhor que podemos! é uma operação normalíssima"? Contudo, o queé aqui melhor? O que é aqui normal? Tudo soa deuma forma diferente quando não se fala a estranhos mas a nósmesmos. Nessa situação tudo soa de uma forma insípida ebanal. As próprias palavras de consolo assumem um tom alarmante.Tu, como médica, Irene, sabes melhor do que ninguémo que pode passar-se numa operação. As surpresas semprepossíveis, mas nunca calculadas, os chamados "acidentes deoperação". O homem não é uma máquina que possa reparar-se.permanece um milagre que origina sempre novos milagres. Quem osabe melhor do que tu, Irene...??? A campainha do telefone começou a tocar De uma formainvulgarmente sonora e aguda. Ela precipitou-se para o aparelhoe levantou o auscultador: - Sou eu, o Ronny! - ouviu a voz despreocupada deCohagen. - Quer que vá aí? - Não, por favor! - disse, respirando com dificuldade. - Convido-a para um passeio de barco. E depois para umarefeição maravilhosa. - Como é que eu seria capaz de engolir o que quer quefosse, Ronny? - Também não pode estar aí sentada à espera durante setehoras. Depois ficará com os nervos arrasados. - Se fosse apenas depois... Já os tenho nestemomento." Agora, já não existe o rosto de Boris. - É precisamente aí que está a idiotice! Tem tempo de mais para pensar! Sei quanto lhe é exigido, Irene. E,por essa mesma razão, cabe-me distraí-la. Não quero queparticipe nu ma festa louca, mas apenas que dê umpasseio comigo pelo Hudson. Gostaria de mostrar-lhe quatro casas queescolhemos para vocês. Pequenas casas de campo maravilhosas e duas

delas em estilo colonial. Quando Mister Jeffersonregressar da mesa de operaçÕes pode dizer-lhe: ."Já sei onde iremosenvelhecer, querido Anthony... " O que acha, Irene? - Gostaria de esperar aqui, Ronny. - Certo! Nesse caso, estarei aí à tarde. Uns cincominutos. Quero apertar a mão ao Tony. frene desligou. Tony... ..Ele já não diz Boria, massim Tony. Para ele Boris já pertence ao passado. ,? Pousou os olhos na parede forrada de papel florido enão deu razão ao psiquiatra que disse que as floresproduziam um efeito calmante nos nervos. Naquele momento,apetecia-lhe arrancar as flores da parede. Por volta das dez, o Dr. Haddix entrou no quarto.Vanessa Wildie chamara-lhe provavelmente a atenção para o factode que Irene não tocara no pequeno-almoço. Nem sequer tinha bebido café. - Está tudo a correr pelo melhor! - informoualegremente. - O professor Tucker mandou-me dizer que a proposta continua de pé, que pode vir até à mesa de operaçÕes eassistir. Ela fixou Haddix com os seus grandes olhos e esboçouum aceno de concordância: - Se... se pudesse sentar-me a um canto. Não junto da mesa. Num canto qualquer. - Onde quiser, Mistress Jefferson. Pode até conversarcom o seu marido. Ele ainda está apenas sob o efeito deanestesia local. Começámos pelas orelhas. Mais tarde procederemosà anestesia geral. Acompanha-me?

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- Sim. Irene passou pelo ritual da lavagem de mãos e daesterilização como se estivesse em transe. Vestiram-lhe uma batacomprida e verde-clara, os cabelos ficaram cobertos por uma toucae dispensaram a máscara, dado que não ia ficar junto da mesade operaçÕes. Contudo, antes de entrar na sala, ainda foipulverizada dos pés à cabeça numa antecâmara com uma espécie depistola de spray. O produto cheirava a anis. Avistou Boris deitado através da vidraça enorme que a separavada mesa de operaçÕes. Estava completamente tapado,apenas se lhe via o rosto, envolto em compressas, gazes einstrumentos brilhantes. Por detrás da cabeça, num quadro depapel prensado, tinham pregado com pionaises o esboço donovo rosto coberto de mediçÕes e de apontamentos que apenaso operador entendia. - Olá! Olá! Cá está ela! - cumprimentou Jeff Tucker,quando Irene entrou na sala de operações. - A sua mulherestá aqui, Anthony! Se conseguir falar, sem mexer muito omaxilar, pode dizer: "Olá, querida!" - Irininka... - Foi apenas um sussurro, mas Irene compreendeu.Sentiu o coração junto da boca.

- Vou ficar aqui sentada junto da parede... Tony - dissenum tom tenso. Custou-lhe extraordinariamente pronunciar estenome, mas ao fazê-lo foi como se se tivesse liberto de umpeso. - Tens-me ao teu lado. - Ainda bem... - pronunciou devagar para não mexer omaxilar inferior. - Amo-te. Ela cerrou os dentes e encostou a cabeça à fria parede deazulejo. O Prof. Tucker deu uma pancada quase amigável naface de Boris. - E cá estamos todos contentes e felizes ao lado uns dosoutros e podemos continuar. Não há um bálsamo mais poderoso queo do amor. Agora, passamos às sobrancelhas, Anthony.Há meia hora deve ter-se interrogado: ?.O que está esse cirurgiãoa fazer aos pelos do meu sexo.' Não precisam ser modificados!?? A verdade, meu caro, é que retirámos alguns delesbelamente encaracolados e que agora implantamos como fartassobrancelhas. Devo confessar que é a primeira vez que utilizoo processo. - Lançou um olhar de relance para Irene, que seconservava sentada num banquinho junto à parede. - Peço-lheque não se sinta embaraçada, quando ao beijar as sobrancelhas do seu marido, sentir comichão... são mesmosobrancelhas! - Jeff Tucker riu e trocou as luvas deborracha fina. - Extraordinariamente divertido: pêlos do sexosobre os olhos! Não pode dar-se publicidade a uma coisa destas. Se isto se souberem Hollywood, pode tornar-se moda! Então, Mistress Mabel... Ria! Irene fez um esforço, mas este tipo de brincadeira nãoa animava. O Prof. Tucker fez um aceno de cabeça dirigidoao Dr. Haddix e a um jovem assistente. A enfermeiraencarregada de lhe passar os instrumentos colocou-se por detrás damesa. A anestesista, uma médica mais velha, com o cabelopintado de preto e olhos verdes, pulverizou mais uma vez assobrancelhas com um produto anestésico. Irene reparouimediatamente que na sala de operaçÕes se estabelecia o mais absolutosilêncio quando a operação prosseguiu. Tucker trabalhavasilenciosamente. Conhecia outros operadores queresmungavam entre dentes, insultavam as enfermeiras, andavam numa

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roda-viva com os instrumentos e se comportavam de uma formaextrema mente indelicada. E curiosamente apenas enquantodurava a operação. Num contacto privado eram frequentementehomens encantadores ou mesmo meigos e tímidos. " - Sente alguma coisa, Anthony? - perguntou algumas vezes o Prof. Tucker. - Não - respondia Bubrov por entre os lábios. - Nada. Em seguida, voltava a reinar o silêncio, apenasinterrompido pelo tilintar dos instrumentos.!' Irene não conseguia ver o trabalho de Tucker, na

medida em que no seu campo de visibilidade apenas se recortavam as suas costas. a nuca inclinada para diante e as pernas abertas. Tinha, porém, consciência de que ele funcionavamuito rapidamente e com a maior segurança. Da mesa deinstrumentos voaram na sua direcção as ".ferramentas"necessárias: agulhas, pinças e compressas. E tudo se processavanumsilêncio apenas interrompido por um estalar dos dedos quando a enfermeira não passava os instrumentos com a rapidezdesejada.Irene sentiu-se acalmar. Cohagen não tinha exagerado: o Prof. Tucker era provavelmente insuperável no seuâmbito. Decorrida uma hora, levantou-se sem fazer ruído, esboçouum aceno de cabeça a Tucker e saiu em bicos dos pés da salade operaçÕes. No apartamento já tinha à sua espera a jovemVanessa com chá quente, limão e rum. Um bule de chá estavaem cima da mesa. - Agora, tem de comer alguma coisa, madame - murmurou. - Senão,o senhor professor zanga-se. Oh! Não oconhece, quando ele se zanga. É horrível. Até as vidraças dajanela estremecem. Não faz diferença entre o pessoal ou osdoentes. Houve uma vez em que se irritou com um famosoactor de cinema e o pobre chorou durante dois dias até oprofessor voltar a dirigir-lhe a palavra. E só porque ele meteuuma rapariga às escondidas no quarto. O guarda da noitedenunciou-o. Irene comeu algumas bolachas, bebeu uma chávena de chásem rum e voltou a consultar o relógio. Tinham passado quasequatro horas. Agora seguia-se a parte mais importante. Aanestesia geral. A modificação total do rosto. Passadas seis horas o Dr. Haddix entrou no quarto. Pareciaesgotado, agarrou na garrafa de rum que estava em cima damesa, bebeu um golo enorme e depois respirou fundo. - Nada correu mal, Mistress Jefferson - disse. - Masprecisava absolutamente de uma bebida. O chefe não é demeias-medidas. Posso informá-la de que ainda está demorado.Podíamos interromper a operação e continuá-la daqui a dias,mas Tucker quer um único troço. Parece um corredor demaratona. - É... e como está o Tony'' - Bem. O coração trabalha como uma bomba bem oleada.Aguenta melhor do que nós! Ele recebe beleza e nós aguentamos oesforço! Haddix dirigiu-se ao lavatório. pegou num copo de papel.bochechou com água gelada para que Tucker não detectasseo cheiro a rum e saiu do quarto. Após uma operação de nove horas trouxeram finalmenteBubrov de maca para o seu quarto. Nove horas de espera - a própria Irene estava esgotada.

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Quando o Prof. Tucker entrou com passo de marcha foiencontrá-la junto à porta do terraço com os olhos congestionados. Era mesmo ?,passo de marcha". a expressão apropriada! Traziavestida uma nova bata branca de estilo Mao, sapatos brancos decabedal, uma camisa de seda branca e dava a sensação de acabadode sair do duche. Não se notava qualquer vestígio de cansaçoou esgotamento; apenas os olhos pareciam mais cavados. - O homem tem ossos de touro! - exclamou Tucker, queficou parado no meio do quarto. - Desculpe, Mistress Jefferson,mas havia que dizer-lhe isto. A parte do queixo deu-noságua pela barba. Uma hora mais do que o que estava planeado!Não se pode muito simplesmente cinzelar os ossos do maxilar,como o escultor faz com a pedra que sobeja. Desenvolvi umatécnica de cinzelar os ossos, uma espécie de esmerilagem(expresso de uma forma profana), mas com o seu marido tive asensação de estarmos a trabalhar em aço. No entanto, já tudoestá concluído. - O seu... o seu rosto está pronto? - quis saber Irenenum fio de voz. - Só ficaremos a saber os resultados depois de lhe tirarmosas ligaduras. Não preciso de lhe dizer, como colega, qual oaspecto de Anthony neste momento. Uma montanha de ligaduras. Pordebaixo podia estar um gorila que não se dava porisso. - A maneira de falar de Tucker era conhecida, mas nasua presente situação Irene não sentia a mínima vontade degracejar. Já anteriormente se tinha irritado com cirurgiÕes quedepois de uma operação costumavam dizer aos familiares queaguardavam em desespero: ."Daqui a duas semanas o operadopode fazer música com as pedras que lhe tirámos da vesícula. " No corredor ouviu-se o barulho típico da maca. A enfermeira Vanessa abriu a porta de par em par e umenfermeiro empurrou Bubrov para dentro do quarto. Estavatapado e parecia que transportavam um morto. O Dr. Haddixvinha atrás, mais parecendo cambalear do que andar. Os trêsretiraram Bubrov da maca para o leito e instalaram os aparelhospara medir a circulação e a tensão. Foram empurradasduas garrafas de soro e ligaram às veias de Bubrov os tuboscom as respectivas agulhas. Bubrov estava ainda anestesiado. A cabeça era de facto umamontanha de ligaduras de onde saíam dois tubinhos de plástico.Um estava metido no nariz e o outro entre os lábios. Eraatravés deles que se estabelecia principalmente a respiração.No rosto nada havia praticamente que não tivesse sido sujeito auma alteração. Tudo tinha de se cicatrizar, antes que tomasseas formas desejadas. - Admito que foi uma operação difícil! - observouJeff Tucker num tom sincero. - Nunca faço uma coisaassim. Regra geral, forma-se um rosto pedaço a pedaço,mas aqui teve de ser numa sessão contínua! Os próximos

dias não vão ser um torrão de açúcar para Anthony. Seráalimentado artificialmente por meio de soro, mas ele é umindivíduo com uma constituição de ferro. Ainda irá demoraraté que consiga mastigar um bife com prazer. Durante umtempo vai ter de o alimentar a caldos. No entanto, maistarde, quando tudo estiver sarado, esquecerá tudo istodepressa. Irene aproximou-se da cama de Bubrov. Era impossívelsaber se já acordara da anestesia. Mantinha-se deitado decostas e imóvel. O Dr. Haddix, que estava a medir-lhe a pulsação.pousou o olhar em Irene.

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- Já voltou a si - disse. - Tony! Está a ouvir-me? Cerre" punho: quer dizer "sim". A mão estendida significa "não".Está a ouvir-me? .A mão de Bubrov cerrou-se. Irene sentiu vontade de gritar,tal a excitação. Sentou-se na beira da cama, acariciou o rosto totalmenteenvolto em ligaduras e pousou a mão no peito nu. - Estou aqui - começou num tom forçadamente calmo.) professorTucker diz que tudo correu maravilhosamente,meu querido... - Durante cerca de uma semana ele não vai poder falar. -retorquiu juvialmente Jeff Tucker. - O sonho de milhÕes dehomens casados: uma mulher silenciosa durante uma semana!Se tiver muitas dores, Tony (é pouco provável que surjam),bata com o punho em qualquer lado. O doutor Haddix ou aVanessa tratarão de si. Sabe quanto tempo me tomou? Mais denove horas! E agora, ponto final. Vou beber uma cerveja efumar um charuto. Também gosta de cerveja? O punho cerrou-se: sim. - Nesse caso está prometido, Tony - disse Tucker batendo asmãos - : a primeira bebida que puder passar-lhe peloslábios vai ser cerveja. Deu uma palmada no ombro de Irene, piscou-lhe o olhomaliciosamente e saiu do quarto com um passo firme e miúdo.O Dr. Haddix seguiu-o com o olhar. - Nem parece um ser humano - observou com uma expressãocansada. Dirigiu-se ao carro dos medicamentos que aenfermeira Vanessa empurrara para dentro do quarto e pegounuma seringa. - O seu marido terá um pouco de febre. Querser a senhora a controlar a temperatura ou prefere que seja aVanessa a fazê-lo? - Eu encarrego-me disso, doutor Haddix. Está morto decansaço. Vá deitar-se. - É o que farei. Só de pensar na cama, já me sinto adormir. - Dirigiu-se uma vez mais até junto de Bubrov einclinou-se sobre ele. - Que tal vamos de respiração?Dificuldades? A mão estendida: não.

- Jamais esquecerei o dia de hoje - disse Haddix e tomoua direcção da porta. - Uma pena que não possa escrever-sesobre esta operação de mamute. Até amanhã, MistressJefferson. - Até amanhã, doutor Haddix. Por volta das oito horas a febre manifestou-se. Não era umatemperatura elevada, apenas 38,8, mas Bubrov devia sentir orosto em brasa por debaixo das grossas ligaduras. Irene deu-lhea injecção destinada a fazer baixar a febre e segurou-lhe namão. Ele agarrou-a e pousou-a no peito. Pelo ritmo de subidae descida do peito, ela apercebeu-se de que ele adormecera. Limpou-lhe o suor do corpo, verificou as duas garrafas desoro, uma das quais deixava lentamente correr antibióticos, eescutou o coração. As batidas eram regulares e fortes. "Agora, somos Mr. e Mrs. Jefferson?,, pensou e foi deitar-sevestida em cima da outra cama. Um tradutor de jornaissoviéticos ao serviço da CIA e uma médica num hospital gigantescode Nova Iorque. Uma casinha num sítio verde à beirado Hudson. .?Oh, Boris Alexandrovitch! Que foi feito dos nossos sonhose do amor que vivemos em Sotschi? Que destino nos foi reservado!Apátrida. com outro nome e com outro rosto. Apenas

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nos resta algo inatingível e intenso: o nosso amor!,?

Passados quatro dias, as ligaduras foram mudadas pela primeiravez. Quando Bubrov regressou da sala de operaçÕes apoiado àpequena Vanessa, trazia o nariz, as orelhas e o cabelo adescoberto. Os olhos ainda continuavam ligados. Tacteava ao ladode Vanessa. Em redor da boca tinha uma ligadura onde haviamfeito buracos para os tubinhos de plástico. - A partir de hoje pode voltar a engolir - dissera JeffTucker. - É um belo presente. Colocaremos um dispositivoapropriado no tubo que lhe permitirá alimentá-lo cuidadosamentecom caldo. A minha promessa continua de pé: mal possaabrir a boca, ofereço-lhe uma cerveja. Bubrov manteve-se no meio do quarto, porque Vanessa paroutambém. Movia a cabeça para a direita e para a esquerdacomo um animal que toma o faro. - Tens orelhas azuis, um nariz abatatado e uma pele engelhada -disse Irene com uma alegria forçada. Pegou-lhe na mão, conduziu-o até junto de um maple einstalou-o. Abriu a porta do terraço e deixou que a brisa vindada Raritan Bay entrasse no quarto. - Sentes o vento quente? - perguntou. - É a brisamarítima. Bubrov esboçou um aceno afirmativo, ergueu a mão eprocurou-lhe a figura. Ela aproximou-se, deixou que a agarrassee os dedos dele percorreram-lhe os seios, o ventre, as

ancas, as coxas e as pernas. Em seguida, iniciaram o caminhode volta até que Irene lhe prendeu as mãos entre as suas. Pouco depois, Cohagen apareceu de visita. Nos últimos quatrodias só viera uma vez. O coronel Boone tinha más notícias paraele, recebidas da Alemanha. A constante vigilância da Embaixadasoviética levara ao rasto de Hanns Heroldt, o antigo apaixonadode Irene Walther. Tinha sido fotografado ao entrar na embaixadae após a ter abandonado, quase uma hora depois. - Agora está morto - informou Phil Boone num tom ".azedo. - Foi encontrado afogado, dentro do automóvel, ecompletamente embriagado. A polícia alemã debate-se com oenigma: acidente ou suicídio. - E em qual das versÕes acredita? - perguntou Cohagen,desconfiado. - A quantidade de álcool que tinha no sangue serve paramatar qualquer um sem acidente! - O que pretendia Hanns Heroldt da Embaixada soviética? - Era essa exactamente a pergunta que queríamos fazer-lhe.Quando fomos, porém, à sua casa não estava ninguém.Nessa altura já andava provavelmente a embriagar-se, dado quefoi encontrado afogado logo na manhã seguinte. Tente sondarjunto de Irene o que sabia Heroldt das pesquisas da bomba B,Ronny. - Nada. Isso já eu sei. Também está no meu relatório. - Nesse caso, o que pretenderia Heroldt vender aosSoviéticos? - Esse é o enigma! E é por essa mesma razão que nãoacredito que Heroldt se tenha suicidado. - InformaçÕes? - Pura intuição! Você está a rir, Phil, como se eu estivessea vender-lhe a banha da cobra. Contudo, até hoje o meu sismógrafonato jamais falhou. O último exemplo tem-lo em Bubrov.Para todos vocês ele era o idiota apaixonado, o cordeirinho que

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desvia aviÕes. E, afinal, o que se encontra por detrás de tudoisso? Raciocinemos com lógica: Heroldt faz uma visita àEmbaixada soviética. No dia seguinte aparece morto! Não aceito,por conseguinte, a hipótese de um acidente. Alguém o tomou àsua conta. - Quem? - prosseguiu Cohagen, fitando o chefe com acabeça inclinada. - Disse que tínhamos observado a visita... - Deixe-se disso, Ronny! Não temos nada a ver como assunto! Absolutamente nada. Posso garantir-lhe. - Nesse caso a Embaixada soviética estava interessada emque a visita de Heroldt à Embaixada não se tornasse conhecidapor qualquer idiotice, indiscrição ou coisa assim. Actuaramcom rapidez, antes que Heroldt pudesse contactar novamentecom alguém. - Está a dar uma visão rocambolesca ao caso, Ronny! -retorquiu Boone, sacudindo a cabeça em negativa. - Acredito

num acidente. Contudo, Heroldt devia ter em seu poder ousaber algo que podia oferecer aos Soviéticos. Cohagen levara alguns dias a colher informaçÕes. A casaagora vazia, que a Polícia tinha selado, parecia ter sidoassaltada por profissionais. Aparentemente, os assaltantes tinhamprocurado dinheiro ou jóias; não levaram tapeçarias, quadrosou esculturas de grande valor. Apenas os armários e gavetas seapresentavam remexidos e virados às avessas - a Polícia ignoravase eles tinham descoberto alguma coisa. - Apenas balÕes de ar! - informou mais tarde Cohagenao coronel Phil Boone. - Uma série de fotografias de mulheres,fotografias tiradas com o automático, cassettes video comfilmes pornográficos (ficaria com inveja), catorze mil marcosem notas grandes. Contudo, nada do que suspeitávamos. Noentanto, Heroldt devia ter tido a sensatez de conservar umduplicado de tudo o que entregou aos Soviéticos. Mas não há nada. - Trata-se pois de um acidente causado por embriaguez! -declarou Boone, satisfeito. - O seu sismógrafo entrou finalmentede férias, Ronny. Era neste pé que se encontrava a situação, quando Cohagenapareceu na clínica. Falou primeiro com Jeff Tucker, que estavamuito satisfeito com o processo de cicatrização deBubrov. Em seguida, entrou de rompante no quarto. Trazia umenorme ramo de flores e uma garrafa de vodca. - Você parece um homenzinho verde caído das galáxias,rapaz! - exclamou Cohagen, ao mesmo tempo que dava umapequena palmada no ombro de Bubrov. - E com esses tubinhos a sairda boca! Se lhe pusessem flautas, saía um concerto.E esse nariz. Um verdadeiro inalador. Cheire, Tonny. Sãorosas vermelhas para Mabel. - Primeiro colocou o ramo deflores debaixo do nariz inchado de Bubrov e em seguida a"garrafa aberta de vodca. - É o que é isto? Uma águinha..com a clareza do cristal, irmãozinho! O perfume do regaçoda mãezinha Rússia. Se se curar depressa, regamo-nos comela... - Afastou a garrafa, estendeu o ramo de flores a Irene esoltou uma risada alegre. - Ele não pode responder... quesorte. E não pode atacar-me pelas costas, porque não vê ondeeu estou. - Está a guardar-se para mais tarde - riu Irene. A alegriade Cohagen trazia um pouco de sol aos dias tristes. - Sentimosa sua falta, Ronny. - A sério? O Tony também? Tive uma quantidade de assuntos atratar. Mas agora tenho uma horinha disponível paracontemplar o homem do outro planeta.

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Cohagen ficou uma hora, contou anedotas e episódios dasua profissão, viu como Irene alimentava Bubrov com umcaldo de legumes e em seguida disse que tinha de se ir emboraporque prometera sair com uma rapariga chamada Jenny. Piscou o olho a Irene e ela foi acompanhá-lo à porta.

- O que se passa? - perguntou desconfiada. - O professorTucker disse alguma coisa? - Com u Tony? Nada. Tudo corre às mil maravilhas.É consigo que estou preocupado. - Comigo? Porquê? Sinto-me muito bem. - Quando é que viu o Hanns Heroldt pela última vez? - No Inverno. Foi esperar-me e quis convencer-me a deixar oBoris - respondeu com um olhar interrogativo paraCohagen. - Porque está a falar-me agora do Hanns? - Ele não sabe nada das suas pesquisas? - Absolutamente nada. Juro. Sabe apenas que trabalhonum projecto, o que não pode silenciar-se quando se estáapaixonado. Ignora, porém, pormenores. - Acredito em si, Irene. Deus do Céu! Você agora chama-seMabel! - O que se passa com Hanns Heroldt, Ronny? - Esteve na Embaixada soviética em Bad Godesberg. Fitou-o incrédula. Cohagen deu-lhe tempo a recompor-se.Por fim, ela quebrou o silêncio: - O que é que ele queria de lá? - É essa a questão. O que queria ele? - Não tinha a mínima ligação com os Russos. É até, muitopelo contrário, um ardente antibolchevista. - Era - corrigiu Cohagen num tom calmo. - Heroldtmorreu. - Morreu? - repetiu ela, abrindo muito os olhos. - Como...como é que aconteceu? - Afogado. Encontraram-no num automóvel dentro deágua e com uma enorme percentagem de álcool no sangue. - Que horrível! - exclamou num fio de voz. - Deus doCéu! Que coisa horrível... - Ele gostava de beber? - Sim. Hanns embriagava-se com muita frequência. Foiuma das coisas que contribuiu para o nosso afastamento. Noseu círculo o desafio da bebida era uma espécie de desporto. "Tudo parece ajustar-se.", pensou Cohagen desiludido." Nem uma fenda através da qual se divise uma verdadesurpreendente. Heroldt estava embriagado. Contudo, tinha idofazer uma visita aos Soviéticos... - Continuemos a ponderar no assunto - disse ao mesmotempo que se despedia de Irene. - Ele deve ter feito algumacoisa que a pudesse prejudicá-la a si e a Jefferson.

Não pode afirmar-se que Strelenko tenha aceite uma missãoinvejável. Quando aterrou em Nova Iorque e foram esperá-lo, sentia-se comose tivesse de procurar um cãozinho perdido na cidadegigantesca. No entanto, se se tratasse de um cãozinho seriamais simples: pÕe-se um anúncio no jornal e pede-se aos

voluntários solícitos que abram os olhos. Até pode publicar-seum retrato. Strelenko, porém, nada mais tinha à excepção da sua missão:liquidar Boris Alexandrovitch! As ajudas que Ussatiuk lhetinha proporcionado eram escassas: alguns contactos em Nova

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Iorque junto de várias autoridades, inclusive na Polícia e noFBI, um agente colocado na CIA, mas cujo trabalho era o devigilante do parque de automóveis, além de outros agentesmenores na indústria e na rede bancária. Nada mais tinha doque fotografias de Bubrov e de Irene Walther e retratos-robotsque mostravam qual a aparência possível dos fugitivos comperucas e vestuário diferente. Strelenko fez o seu quartel-general num local onde nãodesse nas vistas: um edifício de escritórios na Avenue of theAmericas. O trigésimo nono andar estava ocupado por umafirma de corretores. Havia mesmo um secretariado, arquivos euma imponente tabuleta na porta. Esta firma nunca vendera,porém, uma casa ou um terreno. As salas das traseiras eramutilizadas como quarto-sala e serviam de armazém a materialexplosivo, muniçÕes, granadas de mão, algumas metralhadorasKalaschnikov, armas de precisão com mira telescópica, pistolascom silenciadores, pistolas de projécteis envenenados e atémesmo lança-granadas de longo alcance. O director desta firma corretora era um tal Mr. JohnMcDunne, que na realidade se chamava Nodar Vladirovitchßashan e era natural de Samarcanda. Abraçou Strelenko comose fosse seu irmão, beijou-o nas duas faces e disse em seguida:"Com esta missão, lançaram-te às feras, Ruslan Micheievitch.Em Moscovo não conhecem Nova Iorque. A selva da Birmâniaé um jardim de crianças comparado com isto... Strelenko instalou-se numa sala e os seus quatro companheirosdividiram-se por dois amplos "escritórios". Em seguida, McDunneapresentou-lhe os quatro camaradas queseriam as suas tropas de choque. Tratava-se de homems treinadosna Rússia. Atiradores da escola militar em Frunse e quehaviam feito a sua aprendizagem no duro Inverno siberiano.Strelenko disse intimamente que, pelo menos, lhe restava esteconsolo. O seu exército era excelente. Segundo as leis da lógica,Bubrov não teria mais probabilidades, assim que fosselocalizado. - Actuemos de uma forma metódica - disse Strelenko,após ter percorrido Nova Iorque para reconhecimento durantedois dias, desde Bronx a Coney Island e de Hoboken a LittleNeck. - A CIA levou Bubrov da Alemanha. Comecemos,portanto, pela CIA! Temos de saber quem "dirige" Bubrov.É totalmente impensável que o deixem andar por aí à solta.A CIA sabe que ele está condenado à morte; encontram-secientes do perigo e por conseguinte protegem-no. Apenasconseguiremos uma pista através da CIA. Vassili é o homem

indicado para fazer as sondagens. Vassili era o guarda do parque de automóveis da CIA.Podia vigiar quem entrava e quem saía. E frequentementeentabulava conversa, como é característico da sua profissão. Passados mais três dias, Strelenko já sabia que Bubrov tinhavivido junto com Irene Walther no edifício da CIA. Emconversa com uma das mulheres da limpeza, Vassili ficou asaber que ela não tivera licença de limpar o andar superior etambém que durante o dia o elevador não subia a esse piso.Agora, porém, já voltara a fazer a limpeza e confessou a rir aoguarda do parque que os grandes senhores da CIA tambémeram pessoas normais que para variar escondiam raparigas debaixodo telhado. - Havia dois frascos de perfume - disse. - Estrangeiro.E cabelos no balde da casa de banho. Cabelos arruivados. Noquarto de dormir só encontrei umas pantufas debaixo da cama.

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Quem lá estava, deve ter ido embora a toda a pressa. Vassili exibiu dois dólares, conseguiu estar de posse daspantufas no ia seguinte - eram dois números abaixo dos que amulher da limpeza usava - e à tarde colocou-as em cima dasecretária de Strelenko. - Não tens preço, Vassia! - elogiou Strelenko ao mesmotempo que examinava as pantufas. - Pagam-me mil e duzentos dólares, camarada tenente!Uma vergonha... - Diz isso ao camarada Ussatiuk. - Fez rodar uma daspantufas na mão e examinou a etiqueta do interior. - Salamander.É uma firma alemã. Não há dúvida: o sapato pertencea Irene Walther. Bubrov habitou sob o telhado da CIA. Emseguida, teve de partir apressadamente. O que se sabe a esserespeito, Vassia? - Absolutamente nada. Deve ter acontecido durante ánoite. - O que diz o guarda da noite? - Nada. E também é funcionário. - É sempre o mesmo? - Não. - Certifica-te de quem estava de serviço de noite quandolevaram Bubrov, Vassia. Não foi uma tarefa difícil. Logo na manhã seguinte, Vassiatelefonou e informou que o homem se chamava Hubert Miltone habitava em Brooklyn. Era novo, tinha vinte e nove anos deidade. a patente de sargento e lutador de judo. Depois do almoço, Hubert Milton telefonou para o serviçoinformando que estava doente. Ouviram-no tossir em cada duaspalavras que pronunciava e queixou-se de que ia meter-se nacama, beber um bom cálice de aguardente e suar. - Estarei bom daqui a três ou quatro dias! - disse. - Não émesmo uma idiotice uma pessoa engripar-se na

Primavera? Na CIA tomaram nota. Huben Milton, doente. Uma gripe.Duração da doença: cerca de quatro dias. Desta forma Hubert"Vlilton foi legalmente varrido da circulação. Ninguém podia acusar a CIA de ter falhado neste ponto."lilton"era um bom funcionário, uma pessoa engripada falasempre pelo nariz, além de se ter ouvido a tosse - quem iasuspeitar de que o autor do telefonema se chamava luri Ivano"itch Truchkin, era natural de Irkustsk e um agente soviético?Hubert Milton há muito que ia a caminho do escritório daAvenue of the Americas, cloroformizado e metido no porta-bagagensde um discreto Dod"e e apenas lhe restavam quatrohoras de vida. Milton entrou no escritório da firma de corretagem metidonum saco que subiu no monta-cargas. Strelenko tinha preparadotudo e manteve-se fiel à sua fama de ser um homem semsentimentos. John McDunne sentiu um arrepio a percorrer-lhea espinha ao observar a "mesa de interrogatórios" de Strelenko.No Oriente. onde Samarcanda ocupava um lugar histórico, jamaisse era mesquinho quando se interrogavam os presos. Contudo, o queStrelenko trouxera do seu tempo deaprendizagem asiático era de pôr os cabelos em pé. Nodar" ladimirovitch Bashan, que devia encarregar-se do relatório,ansiava por um copo grande de vodca, mas não conseguiusatisfazer o desejo. Strelenko não lhe deu oportunidade deabandonar a sala. Hubert Milton estava acordado quando lhe arrancaram o

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saco do corpo e o sentaram numa cadeira. 'Também ele olhounecessariamente para a secretária de Strelenko, visto que estavasentado diante dela. Os olhos ficaram parados para em seguidase arregalarem. Durante o seu tempo de aprendizagem na CIAtinha visto alguns filmes sobre os métodos asiáticos deinterrogatório recolhidos no Vietname, Laos, Cambodja e naCoreia.Reconheceu imediatamente o que Strelenko montara e pensounos corpos das pessoas que posteriormente haviam sidodescobertos. - Esteja à vontade, Mister Milton - disse Strelenko comuma delicadeza satânica, e tomou lugar atrás da secretária. -Reparo que já conhece estas belas coisas que preparei para si.O ferro incandescente é inofensivo, temos outras coisas maisinteressantes ainda... Por exemplo, os afiados bastÕes debambu embebidos em pimenta... - Mas quem é o senhor? - perguntou Milton num tomabafado. - O que pretende de mim? Decerto me confundiu.Chamo-me Hubert Milton. - Exacto! - riu Strelenko amistosamente. O seu rostoefeminado denotava uma expressão de madona. - Esteve deguarda da noite num determinado dia na CIA. Mais exactamente em

catorze de Junho. - É possível - concordou Milton sem despregar os olhos deStrelenko. E o que estaria em causa? A vigia do portão é dastarefas mais inofensivas na CIA. No entanto, era visível queestava sentado diante de homens que se interessavam pela CIA. - Vamos lá, Hubert! - Strelenko inclinou-se um poucopara diante. - Recorde-se: quem foi que nessa noite saiu doedifício? - HOje! Como quer que saiba? - Milton! Repare bem nos instrumentos... - Não me serve de nada! - Na testa de Milton formaram-se gotasde suor frio. - à noite há pouco que fazer. Mascomo hei-de lembrar-me de pormenores? - Dois homens e uma mulher saíram juntos do edifício? - Não. Disso tenho a certeza. Se alguma mulher tivessesaído de noite, recordava-me. - Há mais alguma saída, Milton? - De elevador, pela garagem do fundo. É tudo automáticoe cá de cima não vemos nada. - Ora! - disse Vassili, o guarda do parque. - Estátudo equipado com câmaras de televisão. Tens o écran nafrente. . . Milton limpou o suor que lhe escorria pelos olhos. - Acreditem em mim. Prefiro assistir aos jogos de basebolna televisão. Nunca ligo para o interior... Dois dias mais tarde, encontraram Milton em casa, deitadona cama. Morto. Síncope provocada por intoxicação comálcool.

Dez dias após a operação, Jeff Tucker disse a Irene: - Chegou o momento, minha querida Mabel. Hoje, vamostirar todas as ligaduras a Anthony. Ontem já me certifiquei deque podemos fazê-lo. Contudo, antes ainda temos de falar umpouco. Sentou-se em frente de Irene. A porta do terraço estavaescancarada, e o sol brilhava, ao mesmo tempo que uma brisaquente vinda do mar entrava no quarto. O Dr. Haddix vierabuscar Bubrov há uma hora, mas não tinha avisado de que

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seria aquele o grande dia: Mr. Anthony Jefferson iria surgirpara o seu novo mundo. Por este motivo o Prof. Tucker aparecerapessoalmente, de novo vestido coma sua bata de estiloMao. Assim que entrara não tinha resistido a emitir um dosseus venenosos gracejos médicos, após o que tomara lugar nummaple. Nessa altura, examinava Irene com uma expressão perscrutadora.Ela tinha cuidado de Bubrov durante dez dias e nosúltimos tempos comunicava por escrito com ele, porque apósTucker ter liberto a parte dos olhos, estes apenas se encontravamprotegidos por uma fina gaze através da qual Bubrov

conseguia ver como se tivesse óculos escuros. Aos olhos dosleigos a pele submetida à intervenção tinha um aspecto horrível,mas a visão de Irene como médica era diferente. Tambémos fios e as linhas não a assustavam. Seria evidentemente piorquando Anthony Jefferson entrasse no quarto sem ligaduras:um estranho. - Sei o que quer dizer, senhor professor - declarou Irenenum tom firme. - Não receberei qualquer choque. Não sepreocupe, porque há muito que ando a treinar-me para esse dia.Agora, estou pronta! - Olhou na direcção da porta. - Quando é queele vem? - Ainda está a ser cuidado. Vamos tirar alguns pontos edar o toque final. Ao comparar o esboço básico com o rostoacho que consegui um bom trabalho. O problema não resideem si, mas no próprio Tony! Até agora ele ainda não teveacesso a um espelho, embora pela sua parte já o tenha examinadoparcialmente e saiba o que tem a esperar. Tony, porém,ao olhar para o espelho verá um rosto ainda inchado e com amarca de pontos. Pode sempre explicar-se a um doente quetudo vai regressar à normalidade, que tudo se recomporá emais tarde não se notará nada, que o que se vê são pontosatraumáticos, o que no momento se vê trata-se de reacçÕes dedefesa do corpo, mas apesar de tudo é sempre extraordinariamentedifícil poupar o operado ao choque sofrido quando ele secontempla pela primeira vez ao espelho. E quando tudo estácicatrizado: de início tinha-se concordado com um novo rosto,aprovado os projectos, ocupado corajosamente a mesa de operaçÕes,mas depois há um dia em que a pessoa deixa de sereconhecer, é um estranho para si próprio e tem de continuar aviver com este rosto estranho. Para isso torna-se necessáriamuita coragem! - Tony possui-a. Falámos deste assunto durante horas afio. - Nós também - retorquiu Tucker, ao mesmo tempo quetirava um papel do bolso da bata branca. - Ele escreveu isto,ontem, quando lhe disse que as ligaduras seriam tiradas hoje demanhã. Estendeu o papel a Irene, ela leu as poucas palavras epousou-o no regaço. ",Tenho medo", estava escrito no papel. O Prof. Tucker esfregou o nariz. Certamente tinha vontade fazergirar o seu globo naquele instante. - Está aí tudo - comentou. - Mas foi-lhe dirigido a si, senhor professor. - Mesmo assim, acho que deve saber, Mabel. - Já o sei - disse Irene baixinho. - Mas há que fazer oimpossível para que ele não saiba que eu sei. De homem parahomem e de doente para o médico é tudo diferente do que quandose está tão inteiramente exposto diante da própria mulher.

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Contudo, Tony tem um orgulho ilimitado. Só lhe vi indícios defraqueza uma única vez, em Munique, quando não sabia se eu ia comele para Nova Iorque. Quando lhe disse: ,.Sim, fico contigo"caiu de joelhos. É um momento que jamais esquecerei. - Muito bem, nesse caso. Libertemos, então, AnthonyJefferson! - Jeff 'fucker levantou-se. - Ele virá sozinho,Mabel, e deixá-la-emos só com ele, até que toque a campainha.Estarei sempre por perto. Tucker saiu do quarto, Irene fechou a porta do terraço e.encostou-se à grande vidraça. Tinha a vantagem de ficarem na sombra e Bubrov olhar contra a luz. Para o caso de entrar equerer descobrir-lhe no rosto indícios de medo, não poderia fazê-lo. Elaganhava segundos preciosos que lhe dariam tempo a recompor-se. Foram minutos de espera em que sentiu o coração ao pé daboca. Por fim, a porta abriu-se. Um homem desconhecido,vestido com um fato cinzento-claro príncipe-de-gales, uma camisarosa e uma gravata cinzento-clara com pintas azuis entrouno quarto. Tinha o cabelo castanho-escuro encaracolado umpouco grisalho junto às têmporas. Os olhos castanhos pestanejaramcontra o sol na direcção de onde Irene se conservavacomo uma sombra. - Sim. Faz favor. O que deseja? - foi o que lhe apeteceudizer ao ver o nariz inchado, o queixo com os pontos e asorelhas ainda avermelhadas. Tinham empoado habilmente apele escarificada. O choque foi superior ao que suspeitara. Tal como se lhetivessem dado um soco no estômago, como se lhe apertassem ocoração. Tinha a cabeça a estalar. "Anthony Jefferson! Este é Anthony Jefferson! Tony, o teumarido! É o que restou de Boris Alexandrovitch Bubrov, daquelebonito, louro e alegre indivíduo com os olhos brilhantese contudo cheios de um enorme mistério. ."E é o aspecto que vai ter. Para sempre. Um rosto quedeixou que fizessem para ti, Irininka, para ti e para tuasegurança, para que possa viver ao teu lado até ao fim davida. ." Este é Anthony Jefferson. " Afastou-se da porta do terraço e dirigiu-se-lhe de braçosabertos e ele recebeu-a da mesma maneira, ao mesmo tempoque um som surdo lhe saía da boca ainda por cicatrizar. Emseguida beijaram-se, sentiram o estremecimento dos corpos deambos e não encontraram palavras - apenas sons que lhesbrotavam do mais íntimo, sons incontroláveis e sem fim.E voltaram a beijar-se cuidadosamente. Ela pôs-lhe a mão aode leve nos lábios inchados, nos pontos do queixo e dos cantosda boca, apalpou-lhe o rosto e pousou os lábios na peleescarificada, fechou-lhe os olhos castanhos e desconhecidos combeijos, acariciou-lhe a nuca, os cabelos encaracolados, opescoço e novamente o novo rosto, acabando por dizer num

tom de voz firme: - Como a vida será maravilhosa para nós, meu querido! Ele rodeou-a com os dois braços, apertou-a novamente deencontro a si e roçou-lhe as faces pelo cabelo. O coração delebatia com tanta força que o sentia nos seios. - Oh! Irininka! Irininka... Ainda tinha dificuldade em falar. O queixo não se moviao suficiente. o céu-da-boca estava repuxado e os lábiosinchados. - É a obra-prima do professor Tucker - disse Irene

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corajosamente. Deu o braço a Boris e conduziu-o até ao sol queinundava o terraço. Custou-lhe todas as suas forças sorrir comuma expressão de felicidade para aquele rosto desconhecido.- Deus do Céu! Como estás bonito! - O espelho... - baixou a cabeça. - Não me mostresespelhos! Na sala de operaçÕes eu... eu parti-o. Oh, Irininka.É tão horrível... - Será melhor de dia para dia, querido. Acredita que tudoirá cicatrizar! Dentro de semanas vais ficar com o rosto tãobonito e liso como o do esboço. Não se verão cicatrizes e aindaque isso aconteça podem eliminar-se mais tarde. - Quando me vi ao espelho disse ao Tucker: ??Ela vaiafastar-se de mim! Ficará horrorizada! Sou um monstro!?? Mastu beijaste-me... - Continuas a ser o Boris! - Sou Anthony Jefferson! - Por fora! Os meus olhos permitem-me que veja o que seencontra por detrás da máscara. E vejo-te, vejo através da tuanova pele e sei: ??Este é Boris Alexandrovitch, o meu mundo.?? Ele esboçou um aceno afirmativo, olhou para o parque atravésda vidraça e em seguida virou-se lentamente. - Agora podemos finalmente casar, Irininka? - Amanhã, se for conveniente. No passaporte já somosmarido e mulher. - Gostaria de casar contigo como Bubrov. - Isso tem de ser tratado por Cohagen. Talvez seja possível noReno ou em Las Vegas. Ainda falaremos hoje com ele. Aproximaram-se novamente, abraçaram-se e beijaram-se eapesar do horror pertencente ao passado, aqueles foram dosmomentos mais felizes da sua vida. Quando Irene tocou à campainha, o Prof. Tucker apareceuimediatamente como se estivesse à espera atrás da porta.Irrompeu pelo quarto com um tabuleiro onde se viam três coposcheios e com espuma. - Mantenho a promessa feita. Tony! - exclamou. - A cerveja! Bubrov-Jefferson estava sentado num maple junto da janela,gozando o calor do sol e de olhos fechados. A luz era impiedosa.Tucker sentou-se junto dele, meteu-lhe o copo de cervejana mão e apalpou-lhe ao de leve as faces cobertas de silicone.

Devido às medidas tomadas, o rosto de Bubrov tornara-se maisredondo e mais cheio. Irene retirou o copo da bandeja e sentou-seno braço do maple. - É melhor beber lentamente, Tony! - disse Tucker. - Tomar opaladar e ter cautela com os lábios. Brindemos, pois! Tucker bebeu um gole enorme, limpou a espuma da boca eafastou-se discretamente. Bubrov levou o copo à boca comcuidado, deixou escorrer um pouco de líquido por entre oslábios e engoliu. Algumas gotas escorreram pelo canto da bocae molharam o colarinho. Ainda se tornava difícil aquele tipo deexercício. - Maravilhoso, Tony! Daqui a dois dias já é capaz debeber um gole a sério! Você é um fenómeno de cicatrização! - Dantes ignorava que a cerveja é um produto dos deuses! -retorquiu Bubrov, enquanto voltava a beber. Olhoupara Irene, que o brindou com um sorriso. "É estranho, mas já me habituei ao rosto novo.,, pensou."Sei! É ele. Amo-o. As pessoas estão ligadas por algo mais doque um rosto. Difícil de acreditar, mas é a realidade... - Peço-lhe desculpa, senhor professor - disse Bubrovdelicadamente.

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- Porquê? Por ter pingado a sua camisa? - Arranquei-lhe o espelho da mão e parti-o. - E então? Já tinha comprado o mais barato por precaução. Umdólar. Meto na sua conta. Bubrov queria rir, mas ao fazê-lo ainda sentia dores que lheiam do queixo às faces. Esboçou um esgar cansado, o que lhedeu uma aparência horrível. - Se me rebentarem os pontos, a culpa é sua - disse. - O quevão fazer ainda comigo? - Vamos tirar-lhe todas as cicatrizes do corpo, mesmo as quepertencem aos seus tempos da juventude. Também assim ninguémpoderá reconhecê-lo por essa via. Os seus dentes estão bons,apenas três estão chumbados. Também nos ocuparemos desseaspecto. Iremos pôr-lhe três chumbos e duas magníficas coroas.Assim, o seu dentista na Rússia não terá hipótese deidentificá-lo. - Sabe quem eu sou? - perguntou Bubrov, fitando JeffTucker de olhos muito abertos. - Não. Mister Cohagen não revelou nada. Contudo, nãome considero um idiota. Ouvi chamarem-lhe Boria. E vocêchama Irininka a Irene. - Tucker ergueu o copo. - Não énada comigo! Sinto-me contente por ter conhecido Mistere Mistress Jefferson. à tarde apareceu Cohagen. Bubrov estava sentado no terraço sob o sol quente datarde e deixando que a brisa do mar lhe refrescasse o rosto.Há dez dias que lera um jornal pela primeira vez, mas nãodurante muito tempo. Os olhos choravam-lhe devido às

lentes de contacto coloridas de castanho. Tinha de se verificarum período de habituação da pupila e da íris aos corposestranhos. - Está com um aspecto fantástico, Tony! - disse Cohagen. Nãofez qualquer esforço em aceitar o rosto novo e desconhecido. Paraele era Bubrov com o nome de Jefferson. - Mais dois ou trêsmeses e as raparigas vão fazer bicha diantede um homem assim! Mexa as sobrancelhas! Fenomenal! Imagine comoas mulheres ficariam histéricas se soubessem averdade! - Ronny! - exclamou Irene num tom de aviso. - O Tonynão pode rir-se. - E também ainda não pode beber vodca, segundo dizo Tucker. Queima muito. Por conseguinte. vamos conservar asgarrafas geladas, a partir de agora. A doce Vanessa trouxe o jantar: para Irene galinha fria euma salada mista, para Bubrov uma sopa grossa de legumescom pedaços de carne. A cozinha também se ocupou de Cohagem: umsteak de um tamanho enorme. A acompanhar, umagarrafa de vinho californiano, um Chardonnav. - O que faz Moscovo? - perguntou subitamente Bubroventre duas colheres de sopa. - As águas continuam calmas. O que lhe convém. - Não me parece atitude de Sulfi Ivanovitch. - Quem é Sulti? - Ussatiuk. - O que há-de fazer? O seu rasto desapareceu! - retorquiuCohagen agitando o garfo no ar. - Desapareceu semdeixar vestígio. Onde poderá procurá-lo na vasta América?E como? Está em segurança. Tony. - Podia servir-se da CIA. Através de si. - Ele não me conhece. Sempre que tive de contactar

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indirectamente com ele iludi a sua gente, o meu nome era outro. - Nesse caso também não se chama Cohagen? - perguntou Irene. - Juro-lhe que me chamo Ronny! - respondeu Cohagencom um esboço de sorriso. - Agora, está a ver o pouco que osnomes significam. Aqui está sentado Boria e chama-se Tony eali está sentada Irene que se chama Mabel. Só entre nós sabemosquem é quem: eu sou Ronny. - Nunca perde os sentimentos de desconfiança, poisnão? - perguntou Bubrov. - Por princípio. São outras as normas que regem a KGB?A nossa profissão exige que tenhamos olhos à frente e nascostas. E tem de se poder cheirar, cheirar é o termo, quem sesenta diante de nós. - E eu cheiro mal, Cohagen? - Ainda não afirmou que se tenha liberto totalmente deMoscovo. - Deus do Céu! Estou aqui em Nova Iorque e sacrifiquei

o meu visual. O que quer mais? - Isso foi autodefesa, Tony! - A caça a que Ussatiuk me submete não basta comoargumentação? - Há que tomar o facto em consideração. Contudo, pensebem. Você desviou um avião soviético, o seu país levantaveementes protestos, toda a gente passa a chamar-lhe o "piratado amor"... e de que se tratava realmente? Uma operaçãoengenhosamente esquematizada por Moscovo! Quem pode saber seUssatiuk pretende de facto liquidá-lo? Se não se trata deum segundo truque: na pele de alguém que passou para a CIA... - Está a ir longe de mais, Ronny! - interrompeu-o Irenenum tom acalorado. - Ninguém neste mundo conhece melhoro pensamento de Boris. - Foi o que se disse em Munique quando o elevaram àposição de herói. E, no entanto, ele ainda era cem por centoBoris Alexandrovitch Bubrov, o capitão da KGB. - Você acha realmente, Ronny, que sujeitei o meu rosto auma operação para me infiltrar junto de si? - No que diz respeito aos russos não existem impossibilidades. - Obrigado! - agradeceu Bubrov, sem desfitar os olhosde Cohagen. - Contudo, sou Anthony Jefferson. Para sempre.Não posso dizer mais e não tenho outras provas para além domeu rosto novo. - Pode ser útil para a "Informação Leste.". - Já suspeitava - retorquiu Bubrov, afastando o prato.Irene fitou-o assustada e foi a primeira vez que amaldiçoouCohagen. - Pela última vez, Ronny: rompi definitivamentecom o passado. Definitivamente. Não posso obrigá-lo a acreditarem mim. Contudo, também não pode obrigar-me a queatraiçoe a minha pátria. Existe o bolchevismo, existem homenscomo Ussatiuk e Butaiev, existem políticos armadilhados nasua ideologia (o que igualmente acontece convosco!), mastambém existem milhÕes de homens sem voz nem vontadeprópria. São meus irmãos! - Uma coisa assim devia ser publicada no Pravda! - declarouCohagen, sarcástico. - O novo Paulo surgido deSotschi. - Fez um gesto largo traçado no ar e acenou váriasvezes com a cabeça. - Esqueçamos esta conversa, Tony. Paraa semana que vem, já pode sair daqui. Tucker dará autorizaçãopara a nossa ida até ao Hudson. Vou mostrar-lhes as casas queprocurámos para vocês. E a Mabel - virou-se na direcção deIrene - tem de apresentar-se ao seu novo director da clínica.

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Está tudo preparado. Quando saírem daqui vão dar um saltopara a vida. - Ignoro o que tenho a esperar de si, Ronny - disseBubrov num tom tenso. - Dá uma no cravo outra na ferradura. - Faz parte da minha profissão. De resto, faz parte regrageral da vida. - Cohagen serviu-se de vinho. - Se fosse tudo

mel, em breve surgiria a monotonia.

A morte de Huben Milton não gerou desconfianças. As circunstâncias em que ocorreu a sua morte foram naturalmenteinvestigadas, dado que era um homem da CIA. Noentanto, tudo se processou dentro da formalidade. O diagnósticomédico foi claro, a percentagem de álcool no sangue erainacreditavelmente elevada, mas havia testemunhas que tinhamouvido a afirmação de Hubert de que tencionava encher-se deaguardente e suar. - Estava tão engripado que quase poderia contagiar-nospelo telefone - declarou o director de Pessoal da CIA, emNova Iorque. - Pobre tipo! Bebeu a mais não poder. O coração,debilitado pela gripe, não aguentou. Milton foi enterrado sem que a informação do seu falecimentotivesse chegado às cúpulas a que pertenciam o coronelBoone ou Cohagen. Ele pertencia ao pessoal menor, que eramuitas vezes totalmente desconhecido pelas estrelas da CIA.Se Cohagen tivesse recebido a indicação da morte de Miltonresultante de excesso de álcool, o seu sismógrafo teria reagidode imediato; talvez o seu cérebro permanentemente dado aassociaçÕes tivesse até estabelecido uma ligação com a mortede Hanns Heroldt, em Munique. Contudo, ninguém prestou atenção ao facto, precisamentecomo Strelenko esperara. No dia-a-dia dos serviços secretos não existem milagres. Hámeramente grandes surpresas, algumas vezes incompreensíveis. Estefacto também era do conhecimento de Ussatiuk, emMoscovo. No âmbito das surpresas tinha-se enquadrado o êxitode Gunter Guillaume. Era o caso do homem da República Democrática da Alemanhaque conseguira infiltrar-se nas cúpulas governamentais da República Democráticada Alemanha, ido passear com o chanceler Brandt na Noruega e obtido acesso atelegramas e informaçÕes altamente secretas. Ele fora uma estrelaaté mesmo para a rígida KGB de Moscovo e que tãodepressa não se repetiria. Pelo menos Strelenko não era visto por Ussatiuk sob essaperspectiva. Esse continuava instalado no seu escritório emNova Iorque, sabia que Bubrov e Irene Walther tinham habitado sobo telhado da CIA, mas a partir daí não havia qualqueroutra pista. Tão-pouco Vassili, o guarda do parque, ou Igor e Grischa,que tinham vindo de Inglaterra, e feito conquistas junto de duassecretárias da CIA, haviam descoberto o paradeiro de Bubrov eIrene Walther. à semelhança de Ussatiuk, também Strelenko aguentavapacientemente o falhanço. Bem apoiado a nível financeiro,gozava a vida em Nova Iorque, frequentava discotecas e bares,participava nas festas da gente importante e, graças à sua boaaparência, conseguiu insinuar-se nos círculos de facto influentes

e por conseguinte quase automaticamente junto da lendáriaDonna Villagran. Donna Villagran possuía uma grande casa em Baside, CrocheronPark. Tinha sempre a porta aberta, era invulgarmente

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hospitaleira e estava sempre rodeada de amigas extremamentebonitas que prestavam todas as atençÕes aos convidados da donadaquela casa enorme e mobilada com extraordinário bom gosto. As más-línguas diziam que Donna Villagran dirigia umbordel - mas tal não correspondia à realidade. A casa deCrocheron Park era apenas frequentada por cavalheiros dignosdesse nome. Se Donna tivesse uma lista de convidados, osnomes principais também estariam incluídos na lista de membrosdos mais privados clubes de golfe. Todos se conheciamuns aos outros, trocavam experiências e quem conseguia visitara dona da casa no seu quarto, forrado a seda cor-de-rosa,passava a usufruir de um prestígio muito especial. Foi então que surgiu o belo Strelenko. E onde os restantescavalheiros pagavam com jóias ou dólares, para ele tudo era degraça. Logo após a primeira noite, Donna Villagran disse-lhe:" Tu és um anjo com o diabo no corpo! " Para Strelenko nada disto era novidade. O que em compensaçãoo fascinava residia no seleccionado círculo de amizadesde Donna, onde não faltavam desde procuradores da Repúblicaa elevadas entidades oficiais, grandes industriais e políticosinfluentes. E dado que a esperta Donna tinha instalado emtodos os quartos, por detrás de espelhos e poltronas, por baixodas camas e atrás de esculturas, alguns microfones, Strelenkosentia-se por assim dizer num ambiente de confiança. É surpreendente, mas do conhecimento geral, que há algumassituaçÕes em que até os homens mais silenciosos iniciamas conversas mais abertas: no psiquiatra, no cabeleireiro, notáxi e na cama de uma prostituta. Trata-se de um enigmapsicológico a respeito do qual muita coisa se escreveu já. DonnaVillagran teria explicado através de Freud: nós somos assubstitutas da mãe sem qualquer compromisso. Strelenko estava muito longe de se enquadrar nessa linhade raciocínio. A seu ver, Donna era um instrumento agradável eútil. Logo no terceiro dia após o seu conhecimento da"hetera divina de Baside", como um político efusivamente adesignou, escutou uma conversa de cama no quarto 12, durante aqual um director de departamento dos Altos Comandos de Segurançade Nova Iorque divulgou que os Japonesestinham descoberto um tipo de aço que era impossível de localizaratravés dos radares. Tratou-se de uma informação que Strelenko colheu depassagem. Em Moscovo, foi transmitida ao Departamento dosAssuntos Japoneses a fim de ser examinada. A perseverança de Strelenko junto de Donna Villagran tinhauma base concreta de realidade. Durante uma conversa meiga,

Donna, a fim de entusiasmar o seu doce anjo, mencionaraalguns membros que faziam parte do seu grupo de visitantes eque indubitavelmente pertenciam também à CIA. Strelenko agradeceu com um aumento de ritmo - e aguardou. Tinhaa sensação de ter ido ao encontro do destino. Informou Moscovo: "Encontrei uma pista. Não sei se é acerta. Há que ter paciência. " Ussatiuk entendeu. .,Temos tempo.., pensou. ,"Algures naCIA tem de haver uma fenda. Alguém irá atraiçoar-se e pronunciaro nome de Bubrov. Nessa altura Strelenko transformar-se-á numlobo que fareja sangue. Se ao menos se soubessequem dirige Bubrov. Ele deve ter alguém ao lado em quemconfie. E este desconhecido tem um mundo seu: um superior,alguns subordinados, um secretariado. Ninguém vive só nestemundo. ,.

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Ussatiuk resolveu, independentemente da acção de Strelenko,proceder a investigaçÕes no lugar mais quente:na Alemanha. E tal significava na primeira linha: IreneWalther. O resultado foi magro, mas mesmo assim deu uma certaajuda. A conta bancária da Dra. Irene Walther em Munique estavafechada. Todo o dinheiro tinha sido transferido para os EstadosUnidos, para o Chase Manhattan Bank, de Nova Iorque. Algunsmóveis valiosos de que Irene não quisera separar-se iam acaminho de Nova Iorque a bordo de um cargueiro. A casa deSteinebach estava vazia. Um corretor encarregara-se da questão.Informou o agente de Ussatiuk que se apresentou comorepresentante da Segurança de que o seu cliente fora umamericano. O que não fora transportado no cargueiro para aAmérica havia sido vendido pelo corretor e o produto entregue a umainstituição de caridade. Mais nada se descobriu. Contudo, para Ussatiuk bastava. Strelenko recebeu indicação para vigiar as caixas delevantamento do Chase Manhattan Bank, estabelecer contactocom os funcionários e descobrir quem procedia aos levantamentosda conta, para onde seguiam as informaçÕes, quemrecebia os extractos de conta, com quem se estabeleciacorrespondência por carta ou contacto telefónico. Seria evidenteum golpe de sorte se algum dia Irene Walther se dirigissepessoalmente ao banco. Ninguém conseguiria deter Strelenko apartir de então. A segunda pista residia no cargueiro. Ussatiuk indicou oporto de descarga exacto do cargueiro em Nova Iorque. Atéessa altura, Strelenko ficaria com tempo bastante para colocarum dos homens da vigilância a assistir à descarga do navio. Osmóveis valiosos seriam enviados para qualquer lugar. E ondese procedesse à descarga corresponderia ao local onde Bubrovestava.

- Agora, estendamos uma rede! - declarou Ussatiuk satisfeitoao general Butaiev, que o visitava quase diariamente,tomava chá na sua companhia e o consolava. - Ele vai serapanhado, tenho a certeza. Pode ser que o recebamos debandeja através de uma cómoda antiga. Os pequenos pormenores sãopor vezes os mais importantes. - E que história é essa da cómoda antiga? - Pode levar-nos até Bubrov. Sem rodeios - respondeuUssatiuk, soltando uma forte gargalhada ante a expressãosurpreendida de Butaiev. - Vai ficar admirado, camaradageneral. Também Strelenko se viu obrigado a dar razão a Ussatiuk.A conta bancária e o cargueiro com os móveis eram maisvaliosos do que toda a espionagem na CIA e na casa de DonnaVillagran. Tratava-se de duas pistas com interesse e Strelenkosoube que Bubrov não iria escapar-lhe. Onde quer que o naviofosse descarregado - Ruslan Micheievitch estaria presente eem seguida enfrentaria Bubrov.

Bubrov sentiu como se fosse um regresso à vida o passeiode automóvel perto do Hudson, através de uma paisagem florida esob os raios quentes do sol. De vez em quando parava o automóvel, descia, deixava-seficar na margem do rio a contemplar os navios, pisava os pradoscom flores e amachucava folhas de roseira entre os dedos. Quando regressava ao automóvel, abraçava Irene e não se

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cansava de repetir: - Como tudo isto é belo. Agora, consigo entender: tivemedo. Um medo louco de já não poder ver nada, não podercheirar nada. nem sentir nada. Sei que é estúpido, que nadadisto podia acontecer, mas passa tanta coisa pela cabeça daspessoas quando se está deitado e abandonado com uma vendanos olhos, tubos entre os lábios e metidos no nariz. O seu rosto cicatrizou perfeitamente. O nariz adquiriulentamente a forma desejada, a boca ficou exactamente como noesboço após desaparecer o inchaço e o queixo deixou de lhe doer. De todas as casas que visitaram, a escolha recaiu sobre umavivenda pintada de branco. Situava-se no meio de uma paisagemverde entre Ardsley do Hudson e Irvington, nas proximidades docampo de golfe. Era uma casa de madeira com persianas pintadasde verde e cornijas denteadas e o alpendre dianteda porta era sustentado por duas grossas colunas. Nas traseirashavia um belo jardim com piscina; havia ainda um terraço comuma marquise florida e quatro cubas de madeira cheias deflores. - E esta! - exclamou imediatamente Irene. - Que achas,querido? - A mim agrada-me o que te agrada. - Virou-se na direcçãode Cohagen, que ia a sair da sala de estar para o terraço. - A

pergunta é só uma: teremos dinheiro para pagar?

- E assim despistamo-lo. Mais tarde, ao terceiro comprador demóveis, ele desiste. Em seguida, procedemos à compraatravés deste e daquele para disfarçar. - Cohagen beijou Irenena face. - Prometo-lhe que irá receber a cómoda da avozinha.Mas pode demorar um ano. Agora, precisamos de ter aindamais paciência do que Ussatiuk. Tem uma nova e longa vida.na frente e que importância faz se esperar um ano pelos móveis?De resto, também pode alugar móveis em Nova Iorque.Há firmas que lhe mobilam a casa ao seu gosto. - E quem paga isso? - perguntou Bubrov. - Ainda não conhece a América, meu caro Tony. A primeira coisaque agora lhe iremos fornecer é uma pilha decartÕes de crédito. Com eles pode fornecer-se para toda a vidaà medida das suas necessidades e ir pagando sempre mensalmenteapenas o que puder. É esse o circuito económico daAmérica. Aqui todos vivem de crédito. Se repentinamente todostivessem de pagar as dívidas de uma vez seria uma catástrofe!Afundar-nos-íamos em dinheiro e abriríamos muito simplesmentebancarrota. Na economia o importante é a circulaçãodo dinheiro e não a acumulação de capital a um canto. - Cohagendeu uma palmada nas costas do irritado Bubrov. - Aprenderádepressa, Tony. Nada é mais fácil do que viver decrédito. Entra numa loja e diz: ".Aquele jogo de maplesagrada-me!" Em seguida, apresenta despreocupadamente o seucartão de crédito e a camioneta dos móveis fica pronta para a entrega.Ai dos que pagam a pronto! Tornam-se imediatamente suspeitos.Quem paga a pronto não é digno de crédito, o que naAmérica se classifica logo atrás do crime! Cohagen soltou uma gargalhada ante o esgar de dúvida deBubrov, deu novamente o braço a Irene e conduziu-a até aoautomóvel através do perfumado jardim diante da casa. Irene virou-se uma vez mais para contemplar a bonitacasa branca de madeira. Era de facto um primor. Só nessemomento reparou na pequena placa que se encontrava ao lado:For sale.

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- Pode mesmo comprar-se? - exclamou. - Sim. Pode falar-se sobre isso. - E o que leva o dono a querer vendê-la? - Comprou uma casa maior em Rockland, no RocklandLake. A crédito, naturalmente. Contudo, fiquem a viver primeiroalguns meses com o sistema de aluguer. Se depois lhesagradar definitivamente, compramo-la. A crédito. Regressaram à clínica do Prof. Tucker. Era de tarde e abola flamejante do pôr do Sol reflectia-se no Hudson. A silhuetade Manhattan, uma floresta de colunas de cimento,recortava-se em tons violeta no céu. Uma nuvem com o brilhocinzento-prata de uma pérola pairava entre as duas torres doWorld Trade Center. - A própria Nova Iorque pode ser bela - disse Bubrov,

admirado. - Acho que depressa nos aclimataremos. Só ficaram mais dez dias na clínica. Jeff Trucker declarouque ao longo da sua longa carreira jamais assistira a um processode cicatrização tão rápido. - De qualquer maneira, só gostaria que saísse quando tivera certeza de que o seu queixo não levantará problemas - disseele. - As orelhas, o nariz, as sobrancelhas, as faces, tudo oque em si se modificou está perfeito. Em relação ao queixo,ainda quero esperar. De resto, preciso dizer-lhe uma. coisa,Tony: jamais poderá ser pugilista. Tem o chamado "queixo devidro",. Um soco e dificilmente ele voltará à sua forma. É algocom que tem de viver! Se, por conseguinte, praticar esqui ecair, vire sempre a cabeça para cima. Gostaria, aliás, de lhedesaconselhar muita prática de desporto. Pelo menos, umaabstinência radical de esqui e de montar durante um ano. Joguegolfe: tem um campo quase diante da porta. Irene aproveitou estes dez dias para mobilar a casa emArdsley. Cohagen tinha-se encarregado de lhe arranjar ummonte de cartÕes de crédito. Foi ao gigantesco armazémnova-iorquino Bloomingdale's, um paraíso das compras, e procuroumóveis e reposteiros, a mobília de quarto, bem comolouça e talheres, dando provas de uma alegria tão infantil queCohagen, sempre ao seu lado, comentou: - Diante de uma mulher como você, Irene, podiam sentir-seciúmes de Tony. Ou seja: ao presenciar o seu dia-a-dia,acho que perdi muita coisa por me ter afastado até hoje docasamento. Deve ser maravilhoso viver com uma mulherassim! Irene comprou naturalmente tudo no Bloomingdale's comcartÕes de crédito. As facturas eram enviadas para o ChaseManhattan Bank e ali contabilizadas na conta. Basil Victorovitch Kaschneiev, um colaborador da firmacorretora de Mr. McDunne, e que sob o nome de Harry Pierceestabeleceu relaçÕes de amizade com um caixa do ChaseManhattan Bank e durante a noite bebia com ele na GreenwichVillage, foi portador da nova pista a Strelenko. - A conta está a ser movimentada - informou, ao mesmotempo que apresentava fotocópias a Strelenko. - A contaWalther foi transferida para uma conta Jefferson. E de M.Jefferson: a assinatura lê-se claramente; estão agora a chegaros talÕesde compras no Bloomingsdale's. M. significa Mabel. A contapertence a uma tal Mabel Jefferson. Foram comprados noBloomingsdale's uma mobília de quarto, pequenas peças demobiliário, reposteiros, louça, talheres, panelas, tachos, umtrem de cozinha e roupa branca. Tudo o que se precisa quando

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se vai habitar uma casa pela primeira vez. Strelenko, que não era habitualmente um homem de grandesefusÕes, beijou Basil Victorovitch na face e disse alegremente:

- São as frases mais belas que escuto de há uma semanapara cá! Agora, temos uma pista, camaradas! Já vejo Bubrovdiante de mim! O seu nome actual é Jefferson. Mabel é Irene.É fácil de descobrir o local de entrega dos móveis daBloomingsdale's. Eu próprio me encarrego disso. Que belo dia,camaradas! Em Moscovo, o coronel Ussatiuk telefonou imediatamenteao general Butaiev: - Pode pôr a gelar o seu Krimsekt, meu caro VictorBorissovitch. Strelenko acaba de informar de Nova Iorque:descobriu Bubrov! Dentro em pouco, o problema fica resolvido! - Esse Ruslan Micheievitch! Um tipo diabólico! Como éque conseguiu desenterrar isso? - Ainda não sei pormenores. Contudo, se Strelenko comunica queo tem, acredito! A melhor informação é que agora jálhe conhecemos o nome: Jefferson. Irene Walther chama-seMabel Jefferson. - Parabéns, Sulfi Ivanovitch - felicitou o general Butaiev, quese ouvia mascar através do telefone. - Foi umgolpe de mestre, meu caro. Daqui a pouco poderemos cumprimentargostosamente o brigadeiro Ussatiuk com mais umaestrela... Decorridas umas horas mais, verificou-se que Strelenkotelefonara um pouco precipitadamente. Absteve-se de passar ainformação a Moscovo. Contudo, a pista estava descoberta,conhecia-se o nome, o tempo de espera por um acaso passaradefinitivamente. Quando Strelenko se apresentou no departamento de entregado Bloomingdale's como empregado da firma Electric Shops ese lamentou de que uma tal Mrs. Mabel Jefferson lhe comprarauns candeeiros e ele perdera a morada, mas sabia que elatambém fizera encomendas no Bloomingsdale's e pediu a direcção,disseram-lhe: - A morada de entrega ainda nos vai ser indicada. Até láfica tudo no armazém. - E não têm ideia de quando se fará a entrega? - Não. - Entra em contacto comigo, quando a souber? - Strelenkodeu a morada do escritório de corretagem de McDunnes. - Assim,poderia fazer a entrega dos meus candeeiros. - Nós telefonamos, senhor - disse delicadamente o representantedo departamento de entregas. - É, de facto, lamentávelperder a morada de um cliente. Quatro dias mais tarde, Strelenko atendeu o telefone eolhou para os camaradas que o rodeavam: - Já se sabe a morada! - exclamou Strelenko num tomcheio de raiva. - O edifício da CIA! - Fez uma pausa eengoliu em seco algumas vezes. Em seguida, explodiu: - Masnão lhe servirá de nada! Absolutamente de nada! Um dia os

móveis serão tirados de lá. E Vassili estará à espreita! A sorte não esteve, porém, do lado de Strelenko. Tal como Vassili informou, os móveis e caixotes foramempilhados numa divisão junto da garagem do fundo. No entanto,três dias mais tarde tinham subitamente desaparecido.Levados durante a noite, provavelmente numa viatura do Exércitoamericano.

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Strelenko também não comunicou esta informação paraMoscovo. Contudo, o seu ódio a Bubrov tornou-se desmedido.

Mabel Jefferson passara a ocupar o posto de médica auxiliarno Departamento II no Sprain Ridge Hospital. O seu chefe, o Prof. Harold Rogers, um especialista emhematologia de renome mundial, veio saudá-la calorosamenteao seu gabinete de trabalho, e apresentou-a em seguida a outroscolegas do departamento, principalmente as mais importantesnum serviço hospitalar: a enfermeira-chefe e a segunda-enfermeirado posto. Mais importante do que o director daclínica pensa sobre cada um, é a simpatia das enfermeiras deserviço. Quem, na qualidade de médico, não as conquista,vê-se obrigado a enfrentar rostos fechados diariamente. Irene-Mabel ficou encarregada de uma enfermaria demulheres: tratava-se na sua maioria de úlceras no estômago einfecçÕes intestinais e também lhe foram parar dois casos deenfisema e problemas de vesícula. Dispunha de um belo gabinetecom vista para o jardim até ao Grassy Sprain Reservoire,um mar de amplas dimensÕes, que tinha como delimitaçÕes oenorme Salvation Army Camp e o local maravilhoso do St.Andrews Golf Club.

Aos olhos de Cohagen o facto significava uma segurançaabsoluta. Tudo o que Bubrov adquirisse a partir dessa data, emparticular mobiliário, objectos decorativos e tudo o queestivesse sujeito ao regime de entrega deveria ser trazido parao edifício militar. Aqui teria de terminar qualquer pista seguidapelos engenhosos soviéticos. As viaturas do Exército, sempreem movimento dia e noite e em todas as direcçÕes, eramimpossíveis de controlar por mais requintado que fosse o método. Cohagen só tivera esta ideia ao medir na planta da cidade otrajecto que Irene fazia de Ardsley a Yonkers, a fim de descobriro melhor caminho. Ocorreu-lhe o armazém do Exército etelefonou imediatamente ao comandante. Após um breve diálogo, o desejo de Cohagen estava satisfeito.Quem pode recusar qualquer coisa à CIA? Uma viaturado Exército ia buscar as coisas à garagem da CIA, levava-asaté Sprain e dali eram transportadas, dois dias mais tarde, paraa bonita e branca casa em Ardsley. Cohagen também pretendiaque se perdesse o rasto de uma forma idêntica ao cargueiro queainda não chegara ao porto. Tal era mais rápido e mais simples

do que o plano da troca de proprietários. Bubrov parecia sentir-se feliz. Pendurou reposteiros, trabalhava no jardim, pintou as janelase os corrimÕes da escada, plantou flores e isolou umaságuas-furtadas. Cohagen ainda não o chamara para o Departamentode TraduçÕes, mas começara a pagar-lhe o ordenadodesde o princípio do mês. - Quero esperar até o seu rosto estar completamentecicatrizado - disse ele. - Nada de marcas visíveis, inchaços oumanchas de pele. O seu rosto tem de estar tão lisocomo o de uma criança. Quero evitar que os seus colegasperguntem: "O que te aconteceu, Tony? Foste apanhado pelamáquina de picar?" Primeiro tem de ser o Jefferson de purosangue. A primeira noite na nova casa e no quarto novo foi umapequena festa. Cohagen tinha trazido uma garrafa de champanhe, Ireneserviu um assado e Bubrov arranjou pepinos com natas à maneira

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russa, o saboroso ogurz w smetanie, como se come naUcrânia. Para sobremesa havia morangos com gelado de baunilha evodca gelado. - Isto não foi uma refeição, mas uma orgia - queixou-seCohagen, quando abriu a garrafa de champanhe e deixou que arolha saltasse e batesse no tecto. - Agora podiam aparecer-metodas as raparigas do Ziegfield, que eu estaria de mãos atadas.Céus! É espantoso o que vocês russos são capazes de devorar. Cohagen despediu-se por volta das vinte e três horas.Bubrov foi acompanhá-lo até à porta da rua e deu-lhe um forteaperto de mão. Como posso agradecer-lhe, Ronny? Deixando de fazer perguntas desse género a partir de agora. - O que você fez por nós é inaudito. Nunca deixei de meinterrogar ao longo destas semanas: porque é que ele faz tudoisto? Para a CIA já não tenho valor. De mim, nada mais há alucrar. - Não podemos ser amigos desinteressadamente? - Seria um facto sem precedentes na nossa profissão. - Você não é assim tão insignificante para nós, Tony. -Cohagen ficara muito a sério. - Não diga nada a Mabel, masacho que Moscovo não vai ficar parada. - Também é essa a minha opinião. - Teoricamente, não há hipótese de o descobrirem. Umnovo rosto, um novo nome e a pista vai dar a zero. Apesardisso os seus camaradas não vão estar quietos. E estou à esperados acontecimentos. - Por outras palavras: para vocês sou uma espécie de chamariz.Quando bate as asas, querem ver quem lança a rede. - Bubrovesperou que Cohagen entrasse no automóvel. Em seguida,

debruçou-se na janela. - Você é um sacana de sangue-frio, Ronny,e também o melhor amigo! É doido ou quê? - Exactamente como a nossa profissão, Tony! Até amanhã! Apareçopara ver como passou a noite e se não deu cabodo queixo... Bubrov ficou até os faróis traseiros do automóvel de Cohagendesaparecerem na esquina. Em seguida, voltou para dentrode casa, e fechou cuidadosamente a porta à chave. Irene estavana cozinha a meter a louça dentro da máquina. - O que é que o Ronny te queria ainda? - perguntou. - Nada. Contou uma anedota que não era própria parasenhoras. Mais tarde, na cama, ela disse-lhe ante o contacto doscorpos: - Não tens outro rosto. Sempre foste assim. Não consigolembrar-me de alguma vez te ter visto de outra maneira... Cohagen também satisfez este desejo de Bubrov: podia casar-se com Irene. Há muito que ele tinha desistidodesta ideia como irrealizável, quando um dia Cohagen lhe comunicoudurante uma das suas visitas, à tarde: - Amanhã é sábado. Apanhamos o avião para Las Vegas. Está tudo preparado: Boris Alexandrovitch pode casar coma doutora Irene Walther. E depois festejamos até domingo! Irene lançou os braços em redor do pescoço de Cohagen e beijou-o. Brubov deu-lhe um soco amigável no ombro e manteve-se uns instantes sem palavras. - Como conseguiu isso também? - acabou por perguntar. O seu rosto resplandeceu de alegria, uma provade que a sua nova pele estava a ser bem irrigada.

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- A CIA consegue tudo! - disse Cohagen. - Desde o incitamento à revolução até ao fornecimento de um padre conseguimos tudo. A nossa firma responsabiliza-se peloseu nome de Bubrov. Que perguntas irão fazer o registo civilou a igreja? Portanto, meus caros, amanhã às sete da manhã,parti mos para Las Vegas! A segunda notícia importante foi a de que o cargueirochegara a Nova Iorque. Tudo estava a postos para que seprocedesse ao transporte dos móveis. Cohagen ainda queria esperar uns dias com a esperança de descobrir qualquer pista queinteressasse os Soviéticos.

De facto, Strelenko já dera as suas voltas. Tinhaconseguido infiltrar um dos seus homens como trabalhador do porto, furtando-se ao controlo do poderoso Sindicato deTrabalhadores do Porto. Contudo, o chefe de desembarcadouro ondeestava ancorado o cargueiro não disse "não," quando lhe foram passados cem dólares num maço de cigarros e arranjoulugar para o desempregado Harry Ford. Este não foi incluídona lista dos salários. O chefe do desembarcadouro não lhe

perguntou o que fazia naquele sítio. Cem dólares são uma realidade.As perguntas são pura idiotice. - O cargueiro está sob o nosso controlo - informouStre lenko para Moscovo. Contudo, Ussatiuk não lhe deu resposta. O facto de Strelenkoter deixado arrefecer a pista do Bloomingsdale's aindalhe pesava. A acrescer havia a troça do general Butaiev. - O seu rapazinho Strelenko não passa de um rebuçadinho! Ussatiuk ficara branco de raiva. - Vou apanhar Bubrov! - dissera Ussatiuk. - Errar éhumano.

No sábado apanharam o avião para Las Vegas, hospedaram-se noGolden Nugget e seguiram rumo ao casamento. A Igreja da Sagrada Congregação ficava numa travessa, erade madeira pintada, tinha uma torre minúscula no estilo davelha Espanha e assemelhava-se a um local de filmagensabandonado. O pastor, o Dr. Archibald Ramsey, avançou ao encontrodeles vestido de toga, o que levava a pressupor que Cohagen ocontactara telefonicamente do hotel, apertou a mão aIrene e a Bubrov e disse: "Deus fica sempre feliz quando doisseres reconhecem o seu amor diante Dele!", após o que osencaminhou para dentro da igreja. Carregou num dos botÕesjunto da porta, um órgão eléctrico começou a tocar e ouviu-seum coro que o pastor Ramsey acompanhava com voz forte. Asluzes das velas emitiam um brilho intenso e sobre o altar estavapendurado um quadro que representava o cálice sagrado. Umacólito, que também servia de segunda testemunha, balançavao turíbulo. A cerimónia decorreu com a máxima simplicidade. ArchibaldRamsey leu um texto bíblico, fez as perguntas usuais,Bubrov e Irene responderam afirmativamente, Ramseyabençoou-os e considerou-os marido e mulher diante de Deus.Em seguida procedeu-se à assinatura dos documentos. Bubrovverificou, surpreendido, que Cohagen assinava com o nome deBill Gilman. O pastor Ramsey felicitou o jovem casal, empurrou parajunto deles uma pequena caixa com uma ranhura e abandonoua sacristia. O órgão eléctrico silenciou-se. Cohagen esboçou um sorriso, meteu dez dólares na caixa e

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esperou até Bubrov ter dado cinquenta dólares. O acólito recebeutrês dólares. - Peço-lhe o favor de sair, sir - disse delicadamente. - Temoso próximo casamento daqui a dez minutos. Obrigado,sir. Muitas felicidades. Viram-se novamente na rua e assistiram à aproximação docasamento seguinte, muito festivo, com a noiva vestida debranco, o noivo de fraque, as convidadas de fatos tufados e osconvidados de escuro na sua maioria, à excepção de um com

um chapéu texano e que era aparentemente o tio rico. Irene fitou Cohagen com um olhar duvidoso. - E é válido? - perguntou. - O quê? - Este casamento. - E de que maneira! Uma festa de se lhe tirar o chapéu.Com validade na própria Alemanha. Ficam com uma certidãode casamento em ordem. Três ruas à frente fica o Registo Civilque também se encontra informado e confirma oficialmente ocasamento. - Cohagen soltou uma gargalhada: - Agora, jádeu o passo, Tony! Está perdido. - Porque assinou com o nome de Bill Gilman? - quissaber Bubrov. - Era o meu nome em Beirute. - E é válido em qualquer documento? - Tenho um passaporte para esse efeito. E agora vamos aoRegisto Civil e seguidamente para a mesa. E hoje à noitedaremos uma volta pelos casinos de jogo. Você, com a suasorte, deve sair-se bem, Tony!

Nada aconteceu do que poderia ter agradado a Ussatiuk. Strelenko continuava em Nova Iorque sem quaisquer resultados.Tinha perdido dois quilos e meio de peso - não nosbraços de Donna Villagran, mas devido a um misto de preocupaçãoe medo por pensar que teria de regressar a Moscovode mãos a abanar. O navio fora descarregado. E Harry tivera de ficar a assistir,sem nada poder fazer, a como os elementos do Exércitoamericano transportavam os caixotes, os metiam num pesadocamião e se afastavam. Harry perseguiu-os realmente dentro deum vulgar Chevrolet, mas em Yonkers a pista chegou ao fim.O camião do Exército saiu da estrada e entrou no SalvationCamp, não restando outra escolha a Harry para além de prosseguirdespreocupadamente e sem chamar as atençÕes pelaJackson Avenue. Strelenko ficou enraivecido, mas de que lhe servia? Elepróprio foi de automóvel até Yonkers, deu a volta ao terrenodo acampamento do Exército e, em seguida, regressou cabisbaixo,através do New York State Thruway, rumo aManhattan. No acampamento era-lhe vedada a entrada. Proceder à suavigilância não fazia sentido. Tinha outras saídas, havia centenasde camiÕes que entravam e saíam diariamente e não existiaqualquer hipótese de se espreitar por debaixo das lonas. A últimae importante pista estava perdida. Strelenko ficou a saberatravés de onde se processara a entrega do Bloomingsdale's:engenhosamente por intermédio da CIA. Strelenko voltou cansado e desmoralizado ao escritório dafirma McDunne, mandou preparar um chá forte e fechou-se no

quarto. Nunca fora um homem que se consolasse com ilusÕes.

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Ainda que o seu rosto de expressão frequentemente sonhadorafornecesse uma ideia contrária, sempre se comportara como umrealista. Quando lhe era confiada uma missão, podia estar-seconfiante de que ele a levaria até ao final. A lista de mortosque Strelenko poderia apresentar era imponente. Ainda nãoexistira alguém que constasse do livro de missÕes de Strelenkoe tivesse conseguido sobreviver, tão-pouco aquele político afegãque se rodeara de guarda-costas dia e noite e nem sequer àcasa de banho ia sozinho. Foi pelos ares juntamente com oautomóvel, quando um foguete magnético o atingiu nos arredoresde Cabul. Em Nova Iorque, Strelenko sentia-se pela primeira vez metidonum beco sem saída, dado que a CIA aparentemente brincava com elecomo se fosse um fantoche. Via Bubrov na suafrente, sabia que agora se chamava Jefferson e sabia tambémque Irene se transformara em Mabel. Fora também diante dosseus olhos que ela fizera compras, a entrega fora feita e osartigos deixados no armazém do Exército americano. Tratava-se deum golpe de uma genialidade tão simples que Strelenko teve de sedominar para não uivar de raiva. Telefonou por duas vezes a Ussatiuk cheio de medo deescutar a frase: ,"Interrompa! Regresse a Moscovo.," No entanto,Ussatiuk continuava a deixá-lo manter-se por NovaIorque. - Aprenda a esperar, Ruslan Micheievitch - dizia-lhepaternalmente. - Bubrov ainda vai aparecer. Tudo indicaque ele quer ficar em Nova Iorque. Continue a vigiar oaquartelamento da CIA. Alguma coisa tem de chegar! Maspeço-lhe que não se esqueça da sua missão em benefício dasprostitutas! - Mas eu não consigo pensar em mais nada, camaradacoronel! - exclamou Strelenko. - O facto de serem os militares a ocuparem-se de Bubrovsignifica que Bubrov continua nas mãos da CIA. Ussatiuk sempre se orgulhara de ser um homem que pensavalogicamente. - Tem de continuar, Strelenko. Cada organismo público é uma central de alcoviteirice. Tente descobrir se nos últimostempos se efectuaram novas admissÕes. Uma delas pode tersido Bubrov. ' - Não! Nenhumas notícias de um Jefferson. - A fonte de informação é segura? - Completamente. - Strelenko viu-se obrigado a esboçarum arremedo de sorriso. - Arrancada na cama. - Gostaria de gastar o meu dinheiro como você, RuslanMicheievitch - retorquiu Ussatiuk novamente com uma expressãoséria. - Contudo, mantenha o edifício da CIA debaixode olho, camarada. Quase podia jurar que Bubrov-Jefferson

aparecerá por ali, talvez quando todos pensarem: "Agora,Moscovo arquivou o caso Bubrov.," O sábio conselho vindo de Moscovo de pouco serviua Strelenko. Concretizou, no entanto, mais uma ideia: Harry,o trabalhador do porto, passou a ser lavador de automóveis deocasião. Vassili, o guarda do parque da CIA, afugentou-o portrês vezes, até que finalmente sentiu compaixão e o deixoulavar os automóveis dos funcionários. Strelenko dispunha assim de quatro espias junto da CIA:dois no parque de estacionamento e na garagem e duas secretáriasna cama. Se surgissem novidades no edifício iriam semdúvida parar a Strelenko.

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Bubrov, Irene e Cohagen voltaram de Las Vegas a Ardsleycomo amigos íntimos, tratando-se por tu. Em casa esperava-os uma surpresa: um genuíno samovar delatão na mesa da sala de estar. O presente de casamento deCohagen. - Ainda me fazes gritar! - exclamou Bubrov, comovido. - Estásdoido de todo, Ronny. É um modelo de Novgorod. - Exacto! Garantiram-me que data de mil oitocentos e sessentae três. Uma peça histórica, mas perfeitamente funcional. - Custou uma fortuna! - Como solteiro que sou, posso dar-me a esse luxo! - retorquiuCohagen, esfregando as mãos. - Além disso, agoravem o mais difícil, é também o meu presente de despedida. - Não é verdade, Ronny! - exclamou Irene, fitando-o,surpreendida. - O que quer dizer despedida neste caso? - Aguardo uma nova missão. - Cohagen sentou-se eaceitou o uísqui que Bubrov tinha ido buscar à cozinha. - Tenho departir para o Egipto. Sadat está a causar-nos grandespreocupaçÕes. Na Líbia, Kadaffi está a agir à louca e anunciapublicamente que quer dar cabo dele. Desde que o xá recebeuasilo político no Egipto, todo o mundo muçulmano está louco.Komeini também faz discursos violentos. Talvez tenha depermanecer algum tempo no Cairo. Aliás, lá passo a chamar-me RikHolland. - Quando tens de partir? - perguntou Irene. - Ainda não recebi instruçÕes. Na última conferênciafalou-se casualmente em me colocarem no Egipto. O ambienteferve por lá. Sadat quer expulsar os russos. - Isso é perigoso, Ronny! - observou Bubrov com umaexpressão grave. - A quem o dizes! Caso Sadat resolva dar o pontapé nosrussos, Moscovo irá reagir a curto ou longo prazo. Sem olhar ameios para atingir os fins. Sadat entra na linha de fogo. - Como a vida podia ser bela - retorquiu Bubrov - senão existissem as malditas ideologias, nem ânsias de poderio,esferas de interesses ou blocos militares. Se todos fôssemos como

irmãos... - Deixaríamos de ser humanos! - Cohagen acabou debeber o seu uísqui. - Não tenhamos ilusÕes: o homem é maisfeliz quando destrói.

Alguns dias mais tarde, quando Cohagen ainda não tinhapartido, chegaram os móveis do cargueiro trazidos por doiscamiÕes do Exército. Os vizinhos ficaram, na verdade, surpreendidos por os novoslocatários receberem o mobiliário por intermédio do Exército edurante dois dias o caso foi motivo de conversas emArdsley, mas depressa tudo caiu no esquecimento. Havia-seentabulado conhecimento com os Jefferson, que foram convidadospara a próxima festa de caridade. Pelo seu donativo natômbola ficaria a saber-se se existiria hipótese de relaçÕes maischegadas. Mr. Anthony Jefferson devia ser especialista emliteratura e Mrs. Mabel Jefferson médica. Eram profissÕes dignas:enquadravam-se no pequeno e selectivo círculo de Ardsley.O Golf Club esperava que Mr. Jefferson descobrisse o caminho atélá e se inscrevesse como sócio. Tanto quanto sepodia observar, era o que se dizia, tratava-se de gentesimpática. O novo rosto de Bubrov voltara praticamente à normalidade. Era

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muito viril com um queixo pronunciado, um narizexpressivo, faces cheias e sobrancelhas espessas. As pregasjunto dos cantos da boca davam um toque ligeiramente sarcástico.Uma coisa deixara de estar em causa: qualquer ligeirasemelhança com Boris Alexandrovitch Bubrov. Este homem perdera-se definitivamente. - Podes começar a trabalhar no princípio do mês - disseCohagen. - Arranjámos forma de o trabalho de tradução te sertrazido a casa. Vêm buscá-lo depois. A vida normalizou-se. Os Jefferson passaram à qualidadede vulgares cidadãos de Ardsley, que se cumprimentava na ruaou com quem se trocavam umas palavras amáveis no supermercadoentre as filas de expositores ou junto da caixa de pagamento.Seguindo o conselho de Cohagen, passaram mesmo aassistir às cerimónias religiosas dominicais e ofereceramduzentos dólares para as crianças deficientes, o que foi notadocom grande simpatia. Quando a bonita e branca casa em madeira ficou toda mobilada,Irene e Boris ofereceram uma pequena festa, para travarem umconhecimento mais próximo com os vizinhos. A festaprolongou-se até de manhã, foi um êxito total e os Jeffersonpassaram a pertencer integralmente à comunidade de Ardsley.Soube-se com uma certa admiração que Mrs. Mabel, a médica,era natural da Suécia, segundo o que ela dizia. Notava-se peloseu inglês com sotaque nórdico. Anthony Jefferson falava deuma forma muito cuidada, o que se atribuiu à sua profissão de

especialista em literatura; a acrescer havia o facto da suaproveniência do estado de Oregão, onde se falava evidentementede uma forma diversa do Hudson. No fim do Verão, Jeff Tucker fez desaparecer as últimascicatrizes do corpo de Bubrov. - Agora está perfeito, Tony! - exclamou, orgulhoso dasua obra-prima. Até a própria dentadura se tinha modificado:dois belos dentes de ouro brilhavam, quando Bubrov ria commais gosto. - Posso libertá-lo das minhas garras de médico.Muitas felicidades para a sua longa vida. Cohagen acabou realmente por ser enviado para o Egipto afim de ter Sadat sob vigilância. Escreveu alguns postais comvistas do Nilo, das Pirâmides e de Abu Simbel, mas todas ascartas que Bubrov lhe mandou foram devolvidas ao remetente.Não existia qualquer Cohagen ou Rik Hollman, como deveriachamar-se no Egipto. Tinha desaparecido na clandestinidade.Apenas os seus postais coloridos provavam a Mabel e Tonyque continuava vivo. - Uma profissão horrível! - comentara Irene uma vez. - Uma pessoa pode habituar-se - retorquiu Bubrov comum aceno de cabeça cheio de recordaçÕes. - Eu era assim.Que sorte ter deixado tudo isso atrás das costas!

A um Inverno duro e gelado seguiu-se uma Primaveraesplendorosa. Os jardins e parques ao longo do Hudsonfloresceram, Bubrov retirou a protecção das roseiras e atapetouo acesso com relva nova. Foram dias felizes, tanto mais que Cohagentinha anunciado o seu regresso do Egipto. Aparentemente, Sadatjá não corria perigo. Bubrov, aliás, jamais deixara de seinterrogar sobre a missão que Cohagen fora encarregado dedesempenhar naquelas paragens. Os Jefferson tinham agora ingressado definitivamente na vidasocial do seu novo mundo. Havia festas nas casas dos médicos daclínica, idas ao Broadway Theater, ao Metropolitan-Opera, a

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Camegie Hall ou ao Radio City Music Hall; faziam-se excursÕesem conjunto e Anthony Jefferson tornara-se naturalmente membrodo Golf Club, ainda que nada entendesse do jogo. A situaçãodeveria mudar-se na Primavera e o treinador já estava informado. Nessa altura o grupo pensou em assistir à estreia no GlobeTheater de um espectáculo musical sobre o qual há semanasque se vinham a escutar os mais variados comentários. Irene comprou para esta gala um maravilhoso vestido denoite de um tecido brilhante azul-prateado, um modeloextraordinariamente caro adquirido numa loja de modas da ParkAvenue. Experimentou também um novo penteado com o cabeloapanhado ao alto e ao vê-la assim pela primeira vez Bubrovcomentou: - Estás perigosamente bonita, Irininka. Não devias andarassim no meio das pessoas. Sinto-me cheio de orgulho.

A estreia do espectáculo musical era um dos grandesacontecimentos da Primavera em Nova Iorque. A TV não se poupoua esforços para dar a maior relevância à entrada dascelebridades. A gente que encheu o Globe Theater, após terdescido de Rolls-Royce, Mercedes e Bentley, cheia de jóias,envolta em valiosas peles ou em smokings de brocado, rindo eacenando para todos os lados, pesava alguns milhÕes e eramsempre notícia para uma primeira página. Cohagen não dera ainda notícias, embora já devesse entretantoter regressado do Egipto. Por conseguinte, Irene eBubrov foram à estreia na companhia de uns vizinhos que eramdonos de uma pequena fábrica de cartonagens, até NovaIorque, a fim de viverem aquela grande noite. Irene conseguiraobter os desejados bilhetes de ingresso através do director daclínica, que adorava Mozart e detestava revistas musicais. Também Strelenko assistiu à estreia no seu quarto e diantedo televisor. Tinha ligado o vídeo, a fim de gravar a primeiraparte do espectáculo; os dois actos restantes não seriamtransmitidos. A esses deveria assistir-se no Globe Theater. Umaóptima propaganda.

Os meses que Strelenko deixara atrás de si em Nova Iorquequase se assemelhavam a um martírio sofrido. Afastara-se deDonna Villagran no verdadeiro sentido da palavra, visto que asconversas de cama dos ilustres convidados nada lhe traziam denovo, como inicialmente supusera. Donna ficou enraivecidaquando Strelenko, o seu anjo, a informou friamente que já nãoviria ter com ela; ameaçou atirar-lhe com ácido sulfúrico àcara, cortar os pulsos ou lançar-se da Washington-Bridge, masStrelenko não era homem que deixasse comover-se com taisprocessos. Acabou por esbofetear a bonita Donna até a pôr semsentidos - o que finalmente a convenceu de que o seu ternoanjo estava perdido para sempre. Strelenko, que esperava diariamente a ordem de regresso aMoscovo, tentou ao longo destes meses acalmar Ussatiuk como fornecimento de outras notícias. Os seus quatro homenscolocados na CIA punham-no a par de tudo, desde indiscriçÕes dasautoridades até à informação de que a CIA tinha instalado oschamados observadores na fronteira paquistanesa-iraniana e queno Egipto se encontrava igualmente de vigia uma forte equipa. De vez em quando Ussatiuk agradecia a Strelenko, deixava-oestar em Nova Iorque e não voltou a mencionar o nome deBubrov. Contudo, não o esquecia - não era tanto a derrotasofrida como o facto de ter sido precisamente Bubrov, o seualuno, a ter-lhe valido o ridículo, o que lhe torturava o

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espírito. Strelenko tinha-se instalado confortavelmente diante dotelevisor. Um prato com umas tapas, duas garrafas de cervejageladas, um maço de cigarros na mesinha de fumo e as pernas

esticadas num banquinho. Era desta maneira que aguardava anoite de gala no Globe Theater. Mr. McDunne, o "corretor", fora de automóvel para casa.Os outros camaradas andavam a divertir-se pela cidade. Strelenkoestava só e usufruía daquela agradável noite. No écran surgiu naquele momento a indicação de " Estreiano Globe". Em seguida, a câmara focou a entrada ricamentedecorada do teatro e o desfilar das celebridades: umdeslumbramento de sedas, ouro e brilhantes, cabelos pintados edentes alvos. Strelenko conhecia algumas das celebridades de vê-las nasrevistas. Mordiscou um dos aperitivos e o aparelho de vídeo foiefectuando silenciosamente a gravação. Strelenko sentia-seirritado ante aquele luxo insensato que aqui lhe era mostrado edesejou que a América tivesse um sensato modo de vida comunista."Que decadência", pensou. "Que soberba! Na Bronx háos que revolvem os caixotes do lixo em busca de comida e notelevisor pavoneiam-se estes milhÕes. Só com um desses brincospoderia alimentar-se uma família de cinco pessoas duranteum ano... De súbito, Strelenko teve a sensação de que um raio ofulminava. Deixou cair o aperitivo que tinha na boca, as pernasdescaíram do banquinho, ficou de joelhos a fim de conseguir amaior proximidade do écran, o coração começou a bater-lhedoidamente e pareceu-lhe que o estômago se lhe colava àscostas, tal a excitação. - É ela! - exclamou Strelenko. - É ela... - E de súbitogritou, embora estivesse sozinho: - É ela, camaradas! Continuava ajoelhado diante do televisor, ainda que a câmarahá muito se tivesse desviado do seu ponto de mira.Contudo, Strelenko nada mais via do que as pessoas a entraremno teatro e no meio delas a cabeça de mulher, aquele rosto quegravara no interior como nenhuma outra imagem: um rosto quese virou para a câmara e esboçou um sorriso um tantoenvergonhado. Strelenko carregou nos botÕes e procurou um outro canal.Havia quatro estaçÕes que faziam a transmissão directa doacontecimento teatral. As câmaras estavam assestadas para oGlobe Theater. O segundo canal: imagens do desfile. O terceiro canal: na sala de espectáculos. Very importantpersons ocupam os seus lugares. Um locutor procede àapresentação. O quarto canal: imagens do bengaleiro. Focagem das peles.As jóias brilham, estrelas de cinema sorriem para as câmaras eacenam. Um apinhar de gente. E lá estava ela de novo: emfrente do espelho! Compôs o cabelo apanhado ao alto, e demorouuns instantes recortada no écran, como se o operador setivesse apaixonado por ela. Nesse instante, um homem

aproximou-se dela, falou-lhe e com ele vinha uma mulher umtanto pesada (era o casal dos donos da fábrica de cartonagem),enquanto Brubov se conservava no meio da multidão junto aobengaleiro e queria deixar os casacos (contudo, esta partepertenceu às suposiçÕes de Strelenko). A câmara prosseguiu asua viagem e deteve-se em Fred Astaire, Ginger Rogers e

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outras estrelas. Strelenko abandonou a posição de joelhos em que permanecera,voltou ao maple, esvaziou uma garrafa de cervejae quase sentiu tonturas de felicidade. Em seguida, telefonou aVassili, que sabia que estaria em casa depois de uma longaguarda de dia, e ordenou-lhe que fosse vigiar a entrada doGlobe Theater. - Eu próprio irei aí ter! - informou Strelenko com umavoz trémula de excitação. - Agora, já nada pode interpor-se.Se perdermos esta pista, só nos resta o suicídio. Sim. Ela estáno teatro. Irene Walther. O camarada Ussatiuk tinha razão:"O caminho para Bubrov passa por ela!,? Sabes onde estão osoutros, Vassili? - Não, camarada tenente. Andam por aí... - Agora que precisamos desses filhos da puta, onde é queeles estão?... - Quem iria adivinhar uma coisa destas? Depois de tantosmeses! Strelenko ainda fez outra chamada para McDunne, mastambém ele não estava em casa. Estava num restaurante dobairro italiano, a comer uns gostosos canneloni. Strelenko gravou o primeiro acto do espectáculo, achou-oaborrecido e estúpido, mas perfeitamente adequado à mentalidadeamericana, e depois do primeiro acto romperam aplausoscomo raras vezes lhe fora dado assistir. Em seguida, vestiu-se. Escolheu um casaco de cabedal provido com bolsos para apistola automática, as granadas de mão, duas navalhas e doisexplosivos. Depois colocou o capacete a tapar-lhe a bonitacabeça e ficou tão irreconhecível como um marciano. Tambémnão foi de automóvel - não lhe proporcionaria o manejo desejado-, mas montou numa pesada moto Yamaha, cuja velocidade lhepermitia as mais loucas ultrapassagens. Apareceu, por conseguinte, diante do Globe Theater no decorrerdo segundo acto e logo avistou Vassili, que estava a falar comalguns motoristas. Strelenko passou por ele e Vassili levantoua mão como sinal de que o tinha reconhecido. Após ter dado duasvoltas, estacionou a moto em Times Squam e sentou-se num banco. O lobo tinha descoberto a sua presa.

No teatro ecoavam as ovaçÕes dirigidas à actuação de umcómico que imitava Bob Hope. Este encontrava-se sentado nasegunda fila e torcia-se de riso. No intervalo do segundo acto, Irene disse a Bubrov:

- Nota-se alguma coisa em mim? Ele olhou-a, assustado, e sacudiu a cabeça. - Não. O que se passa, céus? Estás deslumbrante. - Sinto-me mal... - Irininka! - Estou com tonturas e uma súbita agorofobia... - Deu-lhe obraço e encostou a cabeça ao ombro dele. - Amanhãvou à consulta. Acho que vamos ter um filho... Foi como se Bubrov tivesse tido uma inspiração divina. Beijou Irene diante de todas as pessoas, que lhe sorriramdespreocupadamente, dirigiu-se a correr ao bengaleiro, recolheuo casaco de Irene, desculpou-a perante os vizinhos, osdonos da fábrica de cartonagem, e não demorou muito antesque se retirasse com Irene pela porta das traseiras do GlobeTheater que dava para a 43 Street West. - Para Ardsley - indicou ao motorista de táxi. - Ficapor detrás de Hastings, em frente de Irvington. E guie com

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cuidado, amigo. A minha mulher está grávida. Disse a frase tão orgulhosamente que o motorista de táxi sevirou para trás, riu para Irene e decidiu: - Se o tiver no táxi, quero ser o padrinho. Insisto. - Nasce daqui a sete meses. - Ah! - exclamou ele, fitando Bubrov com um olharsurpreendido. - Porque é que os homens ficam tão doidosquando sabem que vão ter um filho? Mas eu também fiqueiassim, senhor. Esteja descansado que guiarei até Ardsley comose fôssemos nas nuvens. Por volta das vinte e três horas, quando os últimosespectadores da estreia tinham abandonado o Globe Theater e secomeçavam a apagar as luzes da entrada, Strelenko soube quevoltara a perder. Montou na sua Yamaha, ocultou o rosto sob aviseira colorida e chorou de raiva. Vassili agiu bem em não seaproximar; manteve-se de lado a morder as unhas e a pensar noque Strelenko lhe dissera antes: "Se perdermos esta pista, sónos resta o suicídio." Vassili não estava preparado para o fazer. Não era umsamurai. Sem se preocupar com Vassili, Strelenko partiu na moto atoda a velocidade. Tomou a direcção do porto, pagou cemdólares num bordel, entrou num quarto que era à prova desom, despiu-se todo e fitou a prostituta com olhos inexpressivos.Nas paredes estavam penduradas vergastas, correntes,correias de cabedal. A prostituta estava vestida com um fato decabedal que se lhe colava ao corpo. Strelenko estendeu-se no sofá. - Apressa-te! - gritou. - De que estás à espera? Quando a primeira vergastada o atingiu, fechou os olhos esoluçou. Strelenko autopunia-se.

O pacotinho que chegara de Washington pelo correio à Embaixadasoviética foi desembrulhado por Ussatiuk com mãosimpacientes. Strelenko apenas o informara por telefone quetinha recebido finalmente a visita da tia e que ela estava bem.Mandava cumprimentos e acrescentava que brevemente enviaria umpostal ilustrado. Ussatiuk entendera a mensagem de Strelenko, à excepçãodo significado do postal ilustrado. Pôs-se assim em contactocodificado pela rádio com a Embaixada soviética em Washington eficou a saber que o tenente Strelenko lhe enviara umacassette-vídeo. Ainda se sentiu mais irritado, visto que não erade supor que Bubrov aparecesse na televisão. Agora chegara a encomenda. Ussatiuk examinou a cassetteescura com um olhar crítico, dirigiu-se com ela à sala deprojecçÕes de filmes onde existiam todos os sistemas pensáveise também se podiam passar imagens televisivas num écran gigantescoespecial montado numa das paredes. - Preciso do sistema Betamax - indicou Ussatiuk aocamarada técnico. Em seguida, acendeu a lâmpada vermelha colocadana entrada e sabia que ninguém iria incomodá-lo. Passada meia hora, Ussatiuk saiu da sala de projecçÕes,dirigiu-se ao seu gabinete, bebeu um vodca e telefonou aogeneral Butaiev. - Gostaria de convidá-lo, Victor Borissovitch - dissenum tom jovial. - Não, não é para um chá e uns bolinhos,mas para uma noite no teatro. Um novo espectáculo musical daBroadway. Estreia no Globe Theater. Acabei de receber umavídeo-cassette. Altamente interessante, prometo-lhe. Entre nós

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não assistimos a este género de espectáculo. Uma pena. Estarsempre a ver O Principe Igor torna-se um tanto cansativo.Vem imediatamente? O general Butaiev, que estava habituado aos inúmeroscaprichos de Ussatiuk, respondeu afirmativamente. "Uma novaloucura", pensou. "Sulfi Ivanovitch mantém-se sentado na suatoca a ver raparigas de pernas ao léu. E nós, os da GRU,estamos presentes em meio mundo e temos de velar para queele crepite e arda em todos os cantos... Meteu-se no seu automóvel preto e dispôs-se a troçar umavez mais de Ussatiuk. O coronel já o aguardava impaciente, engoliu o comentário de:"Já sei. Já sei. Quando se trata de umas pernas nuas..." semresponder e conduziu Butaiev à sala de projecçÕes. Ali,sentaram-se no meio, onde se viam as imagens com mais nitidez. Ussatiuk pegou no controlo de televisão à distância que lhepermitia comandar o aparelho e apagou as luzes. Ficaram sentados ao lado um do outro na mais completaescuridão. Butaiev tossicou. - Tenho de dar-lhe uma explicação prévia - disse Ussatiuk. -Strelenko fez esta gravação absolutamente por acaso,

dado que Nova Iorque em peso falava desta estreia. Já lhe disseuma vez: "Na nossa profissão há dois elementos indissociáveis:o descuido e o acaso." Nesta gravação vídeo existem ambos. E maisuma coisa: insisto no Kiste Krimsekt que me prometeu... O écran iluminou-se. Butaiev virou-se para o lado e fitouUssatiuk: - Está por acaso a convencer-me de que Bubrov entrou noespectáculo do Globe Theater como bailarino ou cantor? Sintoa pele toda arrepiada, Sulfi Ivanovitch. - Preste atenção. Assim entenderá porque lhe falei nochampanhe. . . Ussatiuk carregou no botão de transmissão. O écraniluminou-se. Apareceram os dizeres: "Estreia no Globe Theater",.Em seguida, assistiu-se ao desfile das celebridades, àexibição de riqueza e esplendor. - Comparativamente não passamos de nada - comentouButaiev num tom rouco. - Olhe só essas jóias. Céus. Os seiosdaquela mulher. E porque é que os homens fazem esses sorrisos deparvos? Ah! Conheço esse. É Fred Astaire. Aquele comas pernas de borracha! - Preste a maior atenção, Victor Borissovitch - retorquiuUssatiuk, erguendo a mão. - Faltam apenas alguns segundos.É realmente um golpe de sorte... O écran voltou a mostrar a entrada iluminada do GlobeTheater. Os curiosos faziam filas dos dois lados e aclamavamcada estrela famosa. As imagens eram extraordinariamente nítidase sob os intensos holofotes descortinavam-se todos osrostos em pormenor. A câmara aproximou-se e focou pequenosgrupos. - Atenção! - gritou Ussatiuk. - É agora! A câmara deteve-se num aglomerado junto da entrada.Smoking após smoking, vestido de noite atrás de vestido denoite... E nesse momento surgiu uma mulher com um vestidoazul-prateado e o cabelo apanhado ao alto. Virou a cabeça, eesboçou um sorriso tímido para a câmara, um tanto cega pelaluz. Ussatiuk carregou no botão. A imagem parou: um rostogrande e nítido. O general Butaiev respirou fundo e pousou amão no braço de Ussatiuk.

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- É ela - exclamou, abalado. - É ela, sem dúvida.Inconfundível. É Irene Walther. O acaso do século! - Butaievnão desviava os olhos da imagem. - Mas está só. Onde estáBubrov? - Parece realmente que está só. Contudo, meditemos umpouco. Ussatiuk continuou a deixar passar o filme. Irene Waltherainda foi seguida uns instantes pela câmara até que desapareceuna entrada do teatro. Em seguida, voltaram a aparecer imagensdescontínuas "- nestes segundos, Strelenko dedicara-se à busca

nos outros canais. O cenário mudou, viu-se o bengaleiro e denovo Ussatiuk chamou a atenção. Irene Walther compunha o cabelo diante do espelho. - É, de facto, uma mulher bonita! - observou Butaiev,entusiasmado. - Como homem, pode compreender-se que eletenha perdido a cabeça. Mas ela está só. - Agora vou passar em câmara lenta - disse Ussatiuk,carregando no botão. Vindo do bengaleiro aproximou-se um homem mais velhoavançando como se voasse, que começou a falar com Irene.Seguia-o uma mulher um tanto forte - era delicioso como pareciaigualmente mover-se sem gravidade devido à câmara lenta. Ussatiuk accionou o botão de paragem. .- Onde está Bubrov? - perguntou o general Butaiev,sacudindo a cabeça. - Foi a pergunta que fizemos - disse Ussatiuk, recostando-seno assento. - Mas também nos interrogámos: será queBoris Alexandrovitch deixa ir a mulher sozinha a uma estreiaassim? Porque havia de o fazer? Sente-se seguro. E porque sesente tão seguro? Porque ninguém o conhece. Porque jáninguém o reconhece! - Ussatiuk respirou fundo. - Quandovi o filme, ocorreu-me uma ideia. Uma ideia louca, confesso. - Estou habituado a essas ideias da sua parte, Sulfi Ivanovitch- comentou Butaiev secamente. - É uma das poucas hipóteses que restavam a Bubrov paradesaparecer do nosso campo de visão: já não parece Bubrov.Tem um outro rosto. Modificaram-no por completo. Tevetempo bastante. Parece outra pessoa. E só Irene Walther sabeque o homem com o outro rosto é Bubrov. - Quer dizer que Bubrov se submeteu a uma operação? - replicouButaiev sem desfitar os olhos do écran. Ussatiuk rebobinou acassette e passou novamente a cena desde o princípio. - Issoseria uma loucura. - Repare nos homens. Qualquer deles podia ser ele. - Ussatiukparou a imagem: Irene abria caminho para a entradano meio da multidão. - Ali, o de cabelos brancos! Ou ohomem com os óculos escuros. Ou aquele com o rosto de luacheia. No campo da cirurgia é tudo possível. Ou será aquelecom as sobrancelhas grossas e o cabelo escuro encaracolado...? Ussatiuk continuou a deixar correr o filme. - Vamos aumentar a imagem de cada um destes homens eexaminar-lhes os rostos, milímetro a milímetro. Algures porperto de Irene Walther também está Bubrov. Ele não a deixasó. - Ussatiuk olhou para Butaiev. - Falei de mais? - Deixou-se operar ao rosto? - retorquiu Butaiev,limpando o suor da testa. - Em comparação com o que eu esperava, não é nada. - disseUssatiuk friamente. - Mas foi inútil. Descobri-lo-emos! -Desligou o aparelho e acendeu a luz. - Strelenko

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vai passar revista a todas as clínicas especializadasnova-iorquinas. Todos os doentes têm uma ficha de informaçÕes.Quando a tivermos, poderemos abrir o champanhe, camaradageneral. A fase final será apenas uma questão de técnica. Butaiev não conseguia impedir-se de sentir admiração porUssatiuk.

Era de prever que a uma rapariga tão bonita, alegre eatraente como Vanessa Wildie não faltassem homens e que osmanejasse como fantoches. Quem caía no agrado da enfermeiraVanessa não precisava de muito para chegar à cama de VanessaWildie, Mas também era afastado com a mesma facilidade. A louraplatinada não se sentia atraída por ligaçÕes duradouras. Duassemanas já constituíam, a seu ver, uma eternidade e sempre quealguns dos rapazes não se mostrava deacordo, alertava Ben. Ben era enfermeiro e um antigo campeão de Nova Jérsia empesos médios e cinturão de karate. Wildie ainda não fora comele para a cama; era uma espécie de relação de pai e filha queos ligava. Quando Ben surgia em cena, acabavam-se os problemas:a cama de Vanessa ficava desocupada. - Ela é uma óptima enfermeira, mas uma ninfomaníaca - disse umavez o Prof. Tucker a Irene. - Todavia,não se interessa pelos pacientes a nível amoroso. O que ésurpreendente, dado que por esta clínica passam os homensmais importantes. Os pacientes são sagrados para ela eenquanto a situação se mantiver Vanessa continuará a trabalharcomigo. É-me impossível pensar numa enfermeira maiscompetente. Strelenko e os seus homens estavam agora em acçãoe colhiam informaçÕes nas clínicas da especialidade. Tinhamrecebido do Departamento de Saúde uma lista de todas as clínicasque pudessem estar em causa. Strelenko ficara surpreendido ante.a quantidade de clínicas onde as pessoas podiamcompor o rosto e o físico. As investigaçÕes da busca de Bubrov obedeciam a umasimples regra: havia sempre alguém do pessoal, quer umamulher da limpeza ou estudante de enfermagem, que se deixavaprender pelos encantos dos rapazes do grupo de Strelenko,aceitava um convite para jantar, uma ida ao cinema ouuma noite numa discoteca. Passados três dias, a gente deStrelenko mostrava "fotografias de recordação", e entre elasmetia uma foto de Bubrov. Tudo se passava como na lotaria: quando cairá a bola dasorte? Quando diria uma das jovens: "Este eu conheço. Estevena nossa clínica!" Contudo, nada aconteceu ao longo de seis semanas e Strelenkoia riscando, mal-humorado, uma clínica atrás de outra nasua lista. Através deste trabalho sistemático também um dia foi

a vez da clínica do Prof. Jeff Tucker. - É um lugar de sacos de dinheiro! - observou StepanMikolaievitch, que se apresentava com o nome de SpencerHolmes. - Bubrov não esteve lá de certeza. A eliminação deuma simples verruga custa cem dólares. - Perguntar não custa - disse Strelenko. - Mete láo nariz. Spencer Holmes abordou, por conseguinte, Vanessa Wildie.Viu-a sair da clínica, soltou um assobio entre dentes e este tomera bem conhecido de Vanessa. Voltou-se, avaliou Spencercom um olhar crítico, achou-o simpático e perguntou num tom

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insolente: - Tem alguma falta de dente? Assobia de uma forma tãocómica! - Por tua causa mandava pôr os dentes que quisesses. - disseSpencer Holmes. Vanessa achou a resposta pronta. Dirigiu um sorriso ternoa Spencer, puxou o vestido de forma a ressaltar mais a rachae não opôs qualquer resistência a que ele lhe fizesse um poucode companhia. à noite, Spencer telefonou a Strelenko. Parecia um tantoperturbado. - Que se passa, Stepan Mikolaievitch? - perguntou Strelenko.- Estás constipado? - Consegui aproximar-me de uma rapariga da clínicaTucker. Acho que não vou aguentar, camarada tenente! Hoje éa folga dela e está lá em cima na cama. Estou a telefonar deuma cabina, porque o hotel é muito pequeno... Sabe como é,quando um arrepio nos percorre a espinha? - Não - respondeu Strelenko irritado, e desligou. A meio da noite Strelenko acordou sobressaltado. O telefoneestava a tocar. Spencer Holmes tinha ligado novamente. - Temos o homem, camarada tenente - anunciou numtom vitorioso. - A doçura reconheceu Bubrov. Disse-me:"É Anthony Jefferson. Arranjou um rosto novo na clínica.Sim, senhor: Anthony Jefferson, não me esqueci do nome!"Acertámos no alvo, camarada tenente. - Onde está a rapariga? - Lá em cima. Finalmente adormeceu. - Tens de aguentar firme, Stepan! - exclamou Strelenko,cheio de uma felicidade indescritível. - Tens de arrancar-lheonde estão as fichas dos doentes, as informaçÕes sobre aoperação, os processos. A miúda sabe a morada de Jefferson? - Não. Foi coisa que não a preocupou. Disse-lhe queconheço Jefferson da tropa. Éramos amigos e perdemo-nos devista. - Isso é bom, Stepan! Muito bom! Pergunta pelosficheiros. - Vou regressar de gatas, camarada tenente. Não pode

existir outra mulher assim. - E se te trouxerem de ambulância preciso de saber ondeestão os processos. Strelenko desligou, cruzou as mãos em cima do peito epercebeu que é possível morrer-se de felicidade com umasíncope.

Na noite seguinte a clínica do Prof. Tucker foi assaltada. Foi um trabalho executado por profissionais. Entraram pelosistema de aquecimento, arrombaram algumas portas e chegaram àsala de arquivo, onde se encontravam os processos dosdoentes, dispostos por anos e segundo uma ordem alfabética.Os assaltantes deviam ter uma pressa enorme, dado que apenastinham remexido nos elementos do último ano e atirado osprocessos para o chão, pondo-se imediatamente em fuga. O maior e decisivo erro de Strelenko consistiu em não terconsultado o processo de Jefferson calmamente, retirando-osem dar nas vistas. E como tantas vezes acontece, também foiobra do acaso o facto de ser o Dr. Haddix o médico de serviçonessa noite. O assistente costumava ocupar as últimas horas danoite a escrever um trabalho especializado sobre operaçÕesplásticas com o qual pretendia candidatar-se a professor

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universitário. Para esse efeito o Dr. Haddix precisava de material relativoaos pacientes, que tratava naturalmente com a maior discrição.E, por conseguinte, também naquela noite desceu à sala doarquivo, a fim de investigar três casos interessantes. As portasarrombadas e o caos que reinava no arquivo levaram-no aregressar por onde viera e pouco depois estava com o Prof.Tucker, que nem sequer despira o pijama, na sala do arquivoa ordenar os processos. O professor não demorou a obter aconfirmação das suas suspeitas: nada faltava à excepção doprocesso Jefferson. - Era o que eu suspeitava! - gritou ele para Haddix. - Sim,quase o sabia: por detrás deste russo há uma grandesujeira! Sabe que ele é russo? Chama-se Boris e trata-a a elapor Irininka! E porque é que a CIA paga todas as contas semprotestar? Porquê? Estamos metidos na merda até ao pescoço,Haddix! Jeff Tucker telefonou à CIA do seu gabinete, onde setinham dirigido a toda a pressa. De noite, até na CIA avigilância diminui. Tucker gritou com o guarda, exigiu um oficialsuperior e informaram-no de que a essa hora os oficiaissuperiores estavam deitados. Contudo, havia um tenente. - Escute - arquejou Tucker, quando o oficial de serviçoveio finalmente ao telefone. - Nem os russos estão junto aoReno nem Fidel Castro conquistou Manhattan. No entanto,aqui roubaram o processo de um tal Jefferson e este Jeffersondeve ser muito importante para vocês. Naturalmente que você

não o conhece e ao que parece ninguém mais é supostoconhecê-lo, mas garanto-lhe que vai haver uma catástrofe se eunão conseguir contactar com nenhum dos seus superiores. Tenho defalar com o coronel Boone ou com o major Cohagen.Foi sempre com eles que tratei dos assuntos. Arranque-os dacama aos dois e diga-lhes: roubaram o processo de Jefferson daclínica de Tucker. Hoje de noite. No máximo há uma meiahora, e no que me diz respeito, ponho ponto final. Tucker pousou o auscultador, olhou para Haddix como se fosse ele oladrão e seguidamente foi buscar uma garrafa de conhaque aoarmário. - Beba, Bret! - ofereceu num tom de voz mais suavizado. - Quesorte que você teve, homem! Se se lembrassede descer meia hora antes ao arquivo, quem quer que otenha arrombado, não hesitaria em mandá-lo para o outromundo...

Phil Boone tomou consciência imediata da posição daCIA quando o tenente de serviço o acordou pelo telefone.Também Cohagen, que tinha regressado mais tarde do que oplaneado do Egipto e só se encontrava de volta a Nova Iorquehá uma semana, deu um salto da cama como se o tivessemcatapultado. O processo Jefferson roubado! Todo o material! As fotografias,os esboços, o relatório da operação, as fotografias com onovo rosto em todas as fases. Mas principalmente a morada!Para isso apenas havia uma explicação. Enquanto Cohagem marcava o número do Exército deSalvação admirou pelo espaço de três segundos o trabalho dosadversários soviéticos. Em seguida, mandou chamar o oficialde guarda do campo, que quase deixou cair o auscultador quandoCohagen deu o alarme em nome do director da CIA. - Vou pô-lo em contacto com o comandante - disse o

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jovem tenente. - Não posso tomar essa decisão pessoalmente. - Seu asno! - retorquiu Cohagen. - É uma luta contra otempo. Uma brigada de homicídio soviética vai a caminho.Está a compreender? - Não. Vou pô-lo em contacto com o comandante. O coronel Boone tinha entretanto alertado a polícia deDobbs Ferry e de Irvington. Dos dois lados já iam dois automóveisa caminho de Ardsley. Também o FBI de Nova Iorquefoi contactado. Boone explicou que se tratava de uma excepçãoem que todos deveriam tomar parte. - Um grupo de exterminação soviético vai a caminho! Pretendematar um fugitivo que é muito importante para a nossanação. Esperemos que não seja tarde de mais. Cohagen passou à acção seguinte, após se certificar de quedois carros blindados do Exército tinham sido enviados paraArdsley. Telefonou a Bubrov. Demorou um tempo imenso até.

que Irene atendesse. Foram segundos que quase deram cabo deCohagen. `?Eles já chegaram!?`, gritava uma voz dentro dele. ?.Já osliquidaram. Chegámos tarde de mais. Tudo aconteceu. Desde achamada de Tucker até agora passou uma hora. Esta burocracia!Esta lentidão. Um dia ainda pagaremos bem caro. Antesque saibamos o que se passa, já o primeiro míssil soviético foilançado. - Mabel - gritou ao telefone. ?- Arranca o Tony dacama. Vistam os coletes de protecção contra as balas. Não seaproximem das janelas, não espreitem lá para fora e barriquemas portas. Aguardem a chegada do Exército. Já vão dois carrosblindados a caminho. Eu também vou. Mesmo que deitem fogoà casa, deixem-se ficar lá dentro até o Exército chegar! Irene não conseguiu responder. Bubrov tinha-lhe arrancadoo auscultador da mão ao vê-la empalidecer. - Quem fala? - rosnou. - Tony! - Ronny? Tu? Que aconteceu? - Moscovo está diante da porta. Podem aparecer de ummomento para o outro. Vistam os coletes de protecção. Emantenham-se encobertos. O Exército vai a caminho. E a Políciatambém. Bubrov desligou. Fitou silenciosamente Irene, em seguidapegou-lhe na mão e atraiu-a a si. - Já sabia! - exclamou num tom excitado. - ConheçoUssatiuk. Só me sinto curioso em saber quem agora é maisrápido: ele ou Cohagen? - Curioso? - quase gritou Irene. - É tudo o que tens adizer? - Não posso fazer mais nada, Irininka. - Querem matar-te, Boris. - E eu tenho de esperar - retorquiu Bubrov, erguendo asduas mãos e mostrando as palmas vazias. - É tudo o que tenho.Não posso responder com tiros, mas apenas esperar quem será omais rápido. - Ainda podemos fugir - gritou ela. - O automóvel estáno acesso do jardim. - Tarde de mais. Já podem estar lá fora. Agora, escutavam ao longe as sirenes dos carros da polícia,que se aproximavam rapidamente. Irene abraçou Bubrov eencostou-lhe o rosto ao seu peito. - As coisas não estão muito feias - disse ele calmamente. - APolícia já está aí. E com ela a corrida ficou

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ganha. Mesmo que os camaradas ainda se decidissem a atacar,seria uma carnificina. Mas quem se atreve a tal idiotice? Diante da casa ouviu-se o guinchar dos travÕes. Os políciassaltaram dos automóveis e cercaram a casa. Iluminaram o jardimcom fortes holofotes. Um altifalante cortou o silêncio da noite.

- A todos os moradores desta rua e arredores: mantenham-sedentro de casa! Afastem-se das janelas! Concentrem-se nomeio das casas. Fechem todas as portas e janelas. Perigo devida! Mantenham-se dentro de casa! - Temos de nos vestir - disse Bubrov calmamente. - E amanhã,quando tudo tiver passado, faremos as malas. É evidente que nãopodemos continuar em Ardsley. Seríamos iguais aleprosos. - Como pode acontecer uma coisa destas? - balbuciouIrene, que vestiu uns jeans e uma camisola e por cima o coletede nylon de protecção contra as balas. - O Ronny sempredisse: não existe uma única pista. Estamos seguros. Ninguém àexcepção de Tucker, o doutor Haddix e o Boone conhece onovo Jefferson. E apesar disso... há uma fuga de informaçÕes! - Jamais a descobriremos, Irininka. Agora começa tudo denovo quanto ao apagar das nossas pegadas. - Olhou-a epassou-lhe a mão pelo cabelo. - Amo-te infindamente. - Porque dizes isso agora? - perguntou ela num tom devoz entrecortado. - É algo que tem de se dizer quando se precisa de forçapara esta vida.

Na rua voltou a trovejar o altifalante da polícia. Bubrovapertou o seu colete de protecção e desceu a escada de madeiraaté ao hall de entrada e à porta da rua. Irene seguiu-o. Era-lhe clara a maneira como o comando soviético aindapodia aproximar-se dele. E enquanto ia descendo degrau adegrau pensava em como actuaria se a ordem lhe tivesse sidodada... E de súbito soube como o podiam matar e ansiou pelachegada dos canos blindados do Exército.

Também Strelenko sabia que tinha de agir numa corridacontra o tempo. Contudo, havia o obstáculo de um longo caminhoa percorrer. A clínica do Prof. Tucker situava-se em Staten Island e acasa de Bubrov-Jefferson junto ao Hudson, em Ardsley. Entreambos estendia-se a Grande Nova Iorque, desde Brooklyn aYonkers. Strelenko tinha elevado o seu grupo para dez homens.Também Vassili foi chamado, embora não pertencesse aoscomandos mas ao pessoal do quadro, e tão-pouco o "conetor"McDunne pôde recusar-se quando Strelenko disse: - Trago de Moscovo plenos poderes para arriscar tudo oque considerar necessário. Há aqui algum camarada que queirafurtar-se? Vassili e McDunne agarraram nas suas armas. Seguirampara o local em três grandes limusinas. Com pistolas automáticas,granadas de mão, explosivos, uma metralhadora ligeira e

três lança-foguetes portáteis. As muniçÕes foram colocadas emcaixas metálicas e junto dos cartuchos igualmente doze granadascontra blindados. Estavam preparados tal como Bubrov tinha pensado.Conhecia esse tipo de ataques. Era tão simples matá-lo, ainda

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que a casa estivesse cercada de polícias e de militares. Enquanto seguissem por ruas apertadas tinham de conduzirdevagar. Nova Iorque é uma grande cidade que nunca dorme.Durante a noite o tráfego não pára nas avenidas e as ruastransversais estão cheias de automóveis estacionados. Só naBroadway, onde começa a Rua 9, que se estende ao longo detodo o Hudson até Ossining, é que Strelenko pisou o aceleradore ultrapassou o limite de velocidade. McDunne, que ia sentadoao seu lado e levava entre as pernas a sua Kalashnikov, tocou-lhelevemente com o cotovelo. - A próxima patrulha manda-nos parar. E depois somoscaçados antes de tudo ter começado. - Não há patrulha - retorquiu Strelenko num tom duro. - Há de certeza uma, quando sairmos de Nova Iorque.É uma fonte segura e garantida de receita. - Vê-nos e depressa se esquece. Porque não lhes restaoutra solução. Eles são dois homens e nós somos dez! McDunne fitou Strelenko com um olhar surpreendido, meteu acabeça entre os ombros e soube a partir desse momentoque este homem de rosto de anjo era um louco. Até essa alturaainda ninguém se apercebera do facto. Recostou-se no assento,agarrou firmemente a metralhadora e decidiu correr noutradirecção, quando irrompesse o ataque a casa de Bubrov. Nãotinha qualquer interesse em vir a ser condecorado mais tardeem Moscovo. Agradava-lhe mais a vida livre que levava emNova Iorque. Atravessaram Yonkers a toda a velocidade semterem sido detectados por qualquer patrulha da polícia, passarampelo feudal Hudson River Country Club, chegaram aotroço de estrada de Hastings junto ao Hudson e atravessaram acalma e adormecida cidadezinha com os motores roncando. Paralelamente à sua efectuava-se ao longo da larga auto-estradade Saw Mill River a corrida dos dois carros blindadosdo Exército rumo a Ardsley junto ao Hudson. Dois jipes, como capitão Richard Swanton no comando do primeiro carro, iamna frente afastando o tráfego com as sirenas uivantes. Umhelicóptero que levava Boone e Cohagen a bordo partiu docampo do Man State Hospital, na pequena Insel Ward deManhattan, em East River. O FBI ia a caminho com trêsautomóveis. . - Acha que os conseguimos apanhar? - perguntou Boone,enquanto sobrevoavam Manhattan e lá em baixo se recortavamas cadeias de luzes coloridas das avenidas e as colunas decimento e vidro dos arranha-céus. - De qualquer maneira Bubrov está avisado e irá

comportar-se como aprendeu. Ele conhece perfeitamente ostruques dos seus camaradas. Cohagen consultou o relógio. O tempo escasseava. - Como foi possível uma coisa destas, Ronny? nãoexistia hipótese de permeabilidade entre nós. Como souberam ossoviéticos que Bubrov esteve entregue nas mãos deTucker? - Não sei - respondeu Cohagen com um encolher deombros interrogativo. - Esclarecemos o assunto se o Bubrovsobreviver a tudo isto. O helicóptero descreveu uma curva e sobrevoou o Bronx.Boone prescrutou o horizonte - estava uma clara e quentenoite de Verão e ao longe recordava-se nitidamente a grandemancha escura do enorme Cortlandt Park com o seu lago e oigualmente gigantesco Woodland Cemetery, uma imponentecidade dos mortos.

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- O que acha, Ronny? Irá um único a caminho? Vocêconhece melhor os russos do que muitos de nós. - Temo que assim seja. Um único dá menos nas vistas.Pode introduzir-se furtivamente em qualquer lado. Pode atéfurar o bloqueio disfarçado com um uniforme de polícia e ficasubitamente com Bubrov diante de si. Pouco lhe interessa que,em seguida, o apanhem ou matem a tiro: cumpriu a sua missãoe é de todas as maneiras um herói. Trata-se da mentalidadekamikaze. Autodestruição pela pátria. Para nós é difícil seguirtal linha de pensamento. A coluna do Exército tinha chegado nesse momento à bifurcaçãode Ardsley-City e descia, com um roncar de motores, aolongo da Ashford Avenue rumo a Dobbs Ferry. Na Broadwayforam ultrapassados a toda a velocidade pelos três automóveisde Strelenko. Ainda se encontravam a três quilómetros de casade Bubrov. Quando saíram de Dobbs Ferry, avistaram ao longeos sinais luminosos dos carros da Polícia. Strelenko reduziu a velocidade, virou para a direita e parounum desvio em frente de um pequeno parque. McDunne respiravaarquejante. - Merda! - explodiu em voz alta. Strelenko desceu do automóvel. Soube nesse momento quetinha perdido a corrida, mas só aquela. Não ia desistir deBubrov. - E se o cercarem de chapas de blindagem, apanhamo-lo. - disseStrelenko. Passou os olhos pelos seus homens, que orodeavam com uma expressão de dúvida. Nesse momento teveconsciência de que cometera um erro ao trazê-los consigo. - Devíamos retirar-nos com toda a calma e voltar em qualqueraltura - replicou McDunne. - Em qualquer altura! Vão levar o Bubrov nesta mesmanoite. Então perdê-lo-emos para sempre. Tanta sorte ecoincidência só acontecem uma vez na vida.

Escutaram sobre as suas cabeças o ruído do motor de umhelicóptero, que aparentemente começou a descer com a intenção.de aterrar no campo de golfe próximo. O rosto de Strelenko,aquele belo rosto que parecia saído de um dos quadros deBoticelli, contorceu-se. - Vou actuar sozinho! - decidiu. - Vocês só têm comomissão desviar as atençÕes de mim. A acção deve surgir de trêslados com tal ímpeto que o quarto lado fique por vigiar. O efeitoda surpresa é importante. Strelenko virou a cabeça. Os dois jipes e os carros blindadospassaram por eles. McDunne limpou o suor que lhe cobriao rosto. - Devemos atacar? - gaguejou. - Nós podemos fazê-lo! - disse Strelenko fitando o círculo doshomens que tinha sob as suas ordens. - Só há cobardes aqui? -gritou subitamente. - Imbecis de olhos arregalados? De que têmmedo? Das armas? Dos carros blindados? Doaproximar das sirenas? Vocês representam todo o povo soviéticoque foi atraiçoado por Bubrov. Os vossos pais, as vossasmães, os vossos irmãos e irmãs aguardam que ele seja punido.Querem que eles vos cuspam como a inimigos e se envergonhem deque tenham saído do seu seio? Os homens calaram-se. Descarregaram as armas do automóvel,pegaram-lhes e em seguida escutaram o plano táctico deStrelenko. Minutos depois marchavam através da noite, chegaramao campo de golfe e ali separaram-se. Strelenko deixou-seficar sozinho para trás. Transportava ao ombro o seu

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lança-foguetes, arrastava o saco de linho com as duas granadase apalpou os bolsos onde guardara as granadas de mão, o detonadorde explosivos e a pistola. Em seguida, tomou igualmente a direcção do campo degolfe, desviou-se porém para se encobrir atrás de uns arbustose subiu um pequeno declive de onde podia avistar-se toda aextensão de terreno. A casa de Bubrov tinha uma localizaçãofavorável. Por todo o lado brilhavam os holofotes, o jardimestava completamente iluminado e o helicóptero tinha aterradona orla do campo de golfe. Segundo a lógica humana, seriauma loucura correr na direcção da casa. Contudo, também não era esse o objectivo de Strelenko.Avaliou calmamente o que o rodeava e verificou que o melhorlocal para se colocar era uma pequena elevação a cerca deduzentos metros da casa. A minúscula colina era ainda pertençado campo de golfe e estava perfeitamente encoberta comarbustos. O helicóptero encontrava-se de permeio entre ele e acasa. Nesse momento, também avançou um dos carros blindados doExército. A ninguém passava pela cabeça que por detrásde toda esta protecção a morte espreitava. Strelenko explorou o terreno, subiu a pequena colina pordetrás e verificou que a sua previsão estava certa: a casa

situava-se na melhor posição de ser atingida. Lançado desteponto um foguete iria acertar mesmo no meio. Montou sem pressas uma espécie de tripé, colocou em seguida omecanismo de disparo, pôs o foguete em posição delançamento e aguardou. Dentro de uns minutos o seu grupodaria início às manobras destinadas a desviar as atençÕes.Apontou o foguete para o meio da casa, dentro da suposiçãocorrecta de que Bubrov se encontraria naquele sítio. ."Uma casade madeira",, pensou, quase feliz. "Este foguete penetra umblindado. Devastará a casa como se fosse um simples pudim enada restará dela. Nem de ti, Boris Alexandrovitch Bubrov...," Strelenko encolheu-se quando subitamente começou o fogoda esquerda e da direita, o fogo desencadeado pelo seu grupo acoberto de um grupo de árvores. Seguindo as indicaçÕes,accionaram primeiro os explosivos dirigidos à polícia e aosmilitares. Nesse instante o FBI também reagiu e sentiuimediatamente o efeito deste ataque. Um cano virou-se e o outroavançou descontrolado de encontro a um automóvel da políciaonde se enfeixou. As detonaçÕes rebentavam dos dois ladoscom um ruído infernal e tingindo de chamas o céu nocturno. Ao primeiro ataque seguiu-se uma espécie de fogo-de-artifício.Projécteis incendiários atingiram as fileiras de polícias e desoldados, um jipe incendiou-se logo e explodiu segundos depois.O cerco em redor da casa desfez-se. A polícia eos militares procuraram abrigo. O capitão Swanton, atingido natesta por um estilhaço de ferro do seu jipe destruído, correucurvado para a frente na direcção da casa e deu ordens. Oshomens do FBI tinham saído dos automóveis para se estenderde barriga para baixo no solo e dispararam de onde tinham sidolançados os explosivos. A polícia e os militares abriramigualmente fogo. O tiroteio fazia-se sentir agora em cinco locais, imponente,mas sem constituir qualquer perigo para Bubrov. O explosivoseguinte rebentou na parte do jardim em frente da casa. Vassilie dois homens correram daquele lado da rua através do jardimde uma casa vizinha, disparando com as suas Kalaschnikovspor cima da cabeça dos soldados e feriram quatro homens.Dois indivíduos do FBI, que procuravam uma melhor posição

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de tiro, rodaram sobre si próprios como se fossem dois fantochese tiveram morte imediata.

Boone e Cohagen tinham saído do helicóptero e aproximaram-seda casa. Bubrov abriu a porta após ter reconhecido a voz deCohagen. Irene mantinha-se ao seu lado quasecolada a ele. O que quer que atingisse Bubrov, também aatingiria. - Saiam! - rosnou Cohagen com voz de trovão e afastando Irenede Brubov. - Lá fora está um cano blindado! Corre, Boris! Bubrov fitou Irene. Cohagen deu-lhe um empurrão. Não

havia outra possibilidade, dado que cada segundo assumia umaimportância vital. Bubrov saiu cambaleante da casa. Nesse mesmo instanteecoou o primeiro tiroteio e as detonaçÕes cegaram-no. Alguémo empurrou e meteu no cano blindado sob a protecção daschapas de aço. - Irina! - gritou Bubrov. - Onde está Irina? Larguem-me! Irina! Cohagen apareceu, empurrou Irene na sua frente e fechou aporta do blindado atrás de si. à sua volta estoiravam osexplosivos, propagavam-se as chamas e os projécteis embatiam deencontro à chapa, sempre que as metralhadoras disparavam. Láfora, o capitão Swanton rastejava tentando organizar os homens,totalmente enlouquecidos. De todos os lados surgiamreforços e quatro helicópteros do Exército sobrevoavam o local.Iriam chegar tarde de mais. Antes da sua intervenção aconteciao drama. - Devem ser loucos! - ofegou Cohagen e rodeou o ombro de Irenecom o braço. Ela tremia e não era capaz depensar. - Doidos de todo. Provocarem uma carnificina destas!Tinhas esperado que fosse assim, Boris? - Não! Nunca tinha acontecido uma coisa assim... - respondeuBubrov, ao mesmo tempo que segurava a cabeça deIrene entre as mãos e a beijava. - Estou vivo - disse numtom consolado. - Estou vivo, Irininka. Acalma-te. Estamosem segurança. Ao seu lado ecoou uma forte explosão. O chão debaixodeles estremeceu, o cano blindado deu a sensação de seerguer no ar e tombar. Irene soltou um grito e agarrou-se aBubrov. - Foi a casa! - exclamou Cohagen. - Fizeram explodira casa por qualquer meio. - Foguetes! - exclamou Bubrov, rodeando a chorosaIrene com os braços. - Já estava à espera. Era a única hipótesede me apanharem. A casa de madeira estava a arder e formava um bizarromontão de destroços. Os helicópteros do Exército aterraram nocampo de golfe. Quarenta soldados correram na direcção docaos. Meteram-se no fogo disparado pelos comandos de Strelenkoe começaram a ripostar. Vassili foi atingido quando procurava abrigo entre as árvores.McDunne caiu de joelhos junto da sua MG, a deitar sanguepela boca, e teve consciência de que chegara o fim. Receberadois tiros nos pulmÕes. Pousou o olhar no céu quente da noitee começou a chorar. O último pensamento foi o de amaldiçoarStrelenko. Do lado esquerdo a Polícia, o FBI e o Exército combatiamum grupo emboscado. Ali se encontravam quatro russos quedisparavam contra tudo o que se mexia. Eram atiradores exímiose os soldados perderam quatro dos seus homens. Quando

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os russos verificaram que se encontravam cercados,entreolharam-se, trocaram um aceno de concordância,levantaram-se e saíram do esconderijo com os braços erguidos.Strelenko, no seu posto da pequena colina, fechou os olhos.Espumava de raiva. O mecanismo de disparo do seu lança-foguetestinha emperrado. Quando o foguete por fim partiu emdirecção ao alvo, verificou-se um precioso minuto de atraso.Bubrov e Irene já estavam a salvo no carro blindado. Nesse minuto Strelenko apercebeu-se de que chegara a suahora. Não havia retorno. Aqui acontecera uma carnificina, eletinha perdido e era um oficial. Meteu a mão no bolso, retirou o mecanismo de retardamento dacarga explosiva, despiu o casaco de couro e do outrobolso das calças tirou o seu boné militar, a naveta. Pô-lo nacabeça, ajeitou-o e abandonou o local. Debaixo do casaco decabedal tinha vestida a camisa do Exército Vermelho e pareciaagora um oficial que atravessa o campo de manobras iluminadopelo fogo, depois de findado o exercício. O capitão Swanton, irreconhecível devido ao sangue quelhe escorria pelo rosto, correu na companhia de seis soldadosna direcção do campo de golfe, donde o foguete devia ter sidolançado. Parou surpreendido ao avistar o oficial do ExércitoVermelho que caminhava para ele e fitou Strelenko como seeste fosse um fantasma. - Não é possível - arquejou. - Não pode ser verdade... Strelenko avançou calmamente. à direita, os dois últimoselementos do seu comando tinham sido abatidos, a casa destruídatransformara-se num enorme braseiro. Soltou uma gargalhada, levoua mão ao barrete, saudou o capitão Swanton que ficara sem fala e dirigiu-se sem que fosse impedido até aocarro blindado onde se encontrava Bubrov e Irene. Ali ergueu o braço direito, enquanto da mão esquerda, sem que ninguém reparasse, lhe caía o mecanismo explosivo junto ao carro. "Moscovo saúda-te, Boris Alexandrovitch"., pensou Strelenkocom uma expressão triunfante. "Ainda te restam sete minutos para acreditares que és vencedor. Ofereço-te mais sete minutos, camarada.," Deu meia volta, afastou-se do carro, avançou na direcçãodo capitão Swanton e arrancou subitamente a pistola docinturão. Estendeu-a a Swanton e com a arma estendida na sua frente,a cabeça orgulhosamente erguida e um sorriso triste nos cantosda boca, foi trespassado pelas balas de nove metralhadoras. Cohagen desceu do carro blindado e examinou o que orodeava. A casa era uma única coluna chamejante. O coronel Boone,que se tinha abrigado junto do helicóptero, encontrava-se agorajunto dos quatro russos aprisionados e ergueu o braço para

Cohagen como indicação de que tudo acabara. Swanton deumeia volta, fitou Cohagen com o rosto ensanguentado e dissecom uma voz excitada: - Devem ser loucos! Viu o que se passou? Este oficialsoviético? Faz guerra no meio de Nova Iorque, com uniforme! Cohagen encolheu os ombros, inclinou-se sobre o carroblindado e deu a mão a Irene. - Saiam! - disse secamente. - Infelizmente perderam-seos belos móveis da avó. Com a pressa não foi possível trazê-loscá para fora. Mas se estiverdes de acordo, mando a conta a

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Ussatiuk. - Soltou uma risada amarga. - Saída para a vidanova. É a tua terceira, Boris. Podes realmente fazer desesperara tua parteira. Ajudou Irene a descer. Ela fitou o mar de fogo que tinhasido uma bonita e branca casa e se consumia lentamente pelaschamas. Cohagen seguiu-a, colocou-lhe o braço em redor dacintura e disse: - A madeira de boa qualidade arde facilmente. Fazem-mepena os bichos da madeira, porque sou um grande amigo dosanimais. Nesse preciso instante explodiu a bomba de relógio de Strelenkocom um estrondo seco. Cohagen atirou-se para diante deIrene com os braços estendidos. Também Bubrov se encontrava de braços estendidos nafrente do carro blindado. Uma vaga de terra e relva ergueu-sesob os seus pés, procurou Irene com o olhar, mas não a viu.Também não lhe escutou o grito, que era um uivo arrancado aomais fundo no momento em que tombou.

Decorridos cinco meses, Bubrov teve alta de uma clínicaespecializada em Tulsa, Oclaoma. Irene e Cohagen empurravam acadeira de rodas onde ele agora iria passar o resto da vida. A sentença dos médicos não deixava lugar a dúvidas: nãoexistia cirurgião no mundo que pudesse curar a paralisia, porcausa da coluna afectada. Um estilhaço da bomba entrara-lhena espinha. Já era um milagre que Bubrov tivesse sobrevivido.E Deus não previra dois milagres. Bubrov ficara paralisado dacintura para baixo e as pernas tinham-se transformado em doisacréscimos inúteis do tronco. A CIA tentara tudo o que erapossível, mandara recolher pareceres da Europa e da ásia, maso diagnóstico era sempre o mesmo. - Estou vivo! - dissera Bubrov quando por fim Irene setinha visto obrigada a pô-lo a par da verdade. - Estou vivo,Irininka! E ao teu lado. Posso ver-te, ouvir-te, sinto-te e omundo oferece-nos toda a sua beleza aos nossos olhos. Nãoachas uma dádiva? Devíamos sentir-nos gratos. Nunca falaram da outra perda: três semanas após Bubrov tersido operado pela nona vez e quando ninguém sabia ainda seele sobreviveria, Irene perdeu o filho. Mantiveram o aborto em

segredo, dado que Bubrov já tinha preocupaçÕes que chegassem. Só quando se soubeque continuaria vivo é que se lhe deua notícia. Bubrov observou: - Talvez para a próxima, Irininka. Já adquirimos o hábitode viver com a esperança... Irene beijou-o, agarrou-lhe nas mãos e escondeu o rostonelas. "É um homem único", pensou. "Como sou mesquinhaem comparação com ele. Perdeu o rosto e agora também aspernas! Por mim. Como pode conceber-se um tal amor?", Em Moscovo seguiu-se com interesse o combate de vida emorte de Bubrov. O nome do tenente Strelenko ficara citado nomuro do Kremlin, ainda que o general Butaiev dissesse que asua morte com um uniforme soviético, em Nova Iorque, nãotinha passado de teatro barato. Quando se soube que Bubrovficaria paralisado para sempre, Ussatiuk riscou-o da lista. - Morrerá lentamente - comentou para Butaiev, que apesar domeio êxito tinha aberto a prometida garrafa de champanhe em honrade Ussatiuk. - Morrerá um pouco mais em cadadia. Quem conhece Boris Alexandrovitch, sabe que a ideia deser um aleijado acabará por destruí-lo. Contudo, não foi isso o que aconteceu a Bubrov, que continuou

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a chamar-se Anthony Jefferson. Compraram uma herdadezinha em Oclaoma, em Pawhuska,junto ao lago Azul. Criaram bezerros, ovelhas e uma certaespécie de porcos negros que lhes davam uns bifes tenros equase sem gordura. Bubrov percorria a herdade numa cadeira de rodas eléctricae sentia-se contente sempre que usufruía a companhia de Irenenesses momentos. Andava por todo o lado, cantava na companhia dos trabalhadores,era padrinho dos filhos deles, assistia às festas e era opatrão aceite por todos. Nas longas noites de Inverno, Irene e Boris sentavam-semuitas vezes diante do écran de parede e passavam os filmesque Irene rodara em Sotschi. De novo se estendia ante os seusolhos o mar inacreditavelmente azul, a costa brilhante, osparques verdes, a plantação de chá dos Dagomys, a estalagemde caça de Krasnaia Poliana no alto das montanhas caucasianas,o maravilhoso Rizasse, e Boris Alexandrovitch sentadono barco a motor com o vento despenteando-lhe o cabelolouro, a nadar, a tocar guitarra, a cantar e no momento em quetrouxe o primeiro ramo de rosas e disse quase timidamente:"Amo-te, Irinuschka...

FIM