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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE LETRAS

MARCO ANTNIO BARBOSA DE LELLIS

O ESTRANHO PARA SI MESMO:Os desdobramentos do eu nO Duplo (1846), de Fidor Mikhilovitch Dostoivski

Belo Horizonte 2008

MARCO ANTNIO BARBOSA DE LELLIS

O ESTRANHO PARA SI MESMO: Os desdobramentos do eu nO Duplo (1846), de Fidor Mikhilovitch Dostoivski

Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Letras Estudos Literrios da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos para a obteno do grau de Mestre em Estudos Literrios Teoria da Literatura, elaborada sob orientao da Prof. Dr. Maria Zilda Ferreira Cury.

Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG 2008

Dissertao intitulada O estranho para si mesmo: os desdobramentos do eu nO Duplo (1846), de Fidor Mikhilovitch Dostoivski, de autoria do Mestrando MARCO ANTNIO BARBOSA DE LELLIS, aprovada pela banca examinadora constituda pelos seguintes professores:

_______________________________________________________ Prof. Dr. Maria Zilda Ferreira Cury FALE/UFMG Orientadora

_______________________________________________________ Prof. Dr. lcio Loureiro Cornelsen FALE/UFMG

_____________________________________________________ Prof. Dr. Maria Luiza Scher Pereira UFJF

Prof. Dr. Julio Cesar Jeha Coordenador do Programa de Ps-Graduo em Letras Estudos Literrios UFMG Belo Horizonte, 27 de Junho de 2008

AGRADECIMENTOS Prof. Dr. Maria Zilda Ferreira Cury, pela pacincia, pelo apoio nos momentos de desespero e pelo auxlio nas dificuldades em escrever, nesta dissertao, aquilo que meus pensamentos almejaram. Para no incorrer em erro ou injustia pelo esquecimento de algum importante nome, agradeo a todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, contriburam para a realizao desta dissertao e me fizeram compreender que, frente s minhas inquietaes intelectuais e s crises existenciais, ou meu corao se esfacelaria e apodreceria ou, ento, ele se fortificaria e se instauraria. Ele enrijeceu, voou alto e este trabalho foi concludo.

RESUMOOs desdobramentos do eu na modernidade, considerada esta no contexto do aparecimento das grandes metrpoles e da crise do racionalismo em meados do sculo XIX, sero trabalhados a partir da anlise de O Duplo (1846), de Fidor Mikhilovitch Dostoivski. Na novela do escritor russo, o protagonista principal duplicado no seu outro suscita a percepo do eu como um estranho para si mesmo e a sensao de estranheza frente realidade objetiva. O conceito de unheimlich (o estranho), desenvolvido por Freud em ensaio de mesmo nome, servir de ferramenta para a leitura da novela, uma vez que lana luzes sobre a curiosa ambigidade do texto de Dostoivski, ao mesmo tempo em que texto tambm emblemtico da modernidade. O tema do desdobramento do eu se relaciona com a dicotomia entre a razo e a sensao, entre um eu e um no-eu, ambguos porque simultaneamente diferentes e idnticos a si mesmos. Todo este contexto onde se inclui O Duplo revela o carter polifnico da modernidade e de suas produes. Palavras-chave: Desdobramento do eu, duplicao, unheimlich, racionalismo, romantismo, modernidade, polifonia, dialogismo.

ABSTRACT

The unfolding self in the modernity, taking it into account in the context of the rise of the great cities and the crises of the reasoning in the midst of the 19th century, are examined taking into consideration the analysis of the The Double (1846), by Fidor Mikhilovitch Dostoivski. In the novel by the russian writer, the chief protagonist unfolded to his double self brings out an awareness of the self as a stranger to himself and the feeling of strangeness face to face with the objective reality. The concept of the unheimlich (the stranger) developed by Freud in his essay, which bears the same name, serves as a tool to read the novel, as it throws light upon the curious ambiguity of the text by Dostoivski, which at the time stands for an emblematic text of the modernity. The theme of the unfolding self relates to the dichotomy between reason and feeling, between the self and the negation of the self, ambiguous owing to the fact that they are simultaneously different and identical to themselves. All this context in which The Double is included reveals a polyphonic feature of the modernity and its production. Key-words: The unfolding self, unheimlich, reasoning, romanticism, modernity, polyphony, dialogue.

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SUMRIO

INTRODUO ......................................................................................................... 09 CAPTULO 1 Das Unheimliche e o desdobramento do eu....................................... 28 1.1 O unheimlich freudiano: um conceito ambivalente ........................................ 28 1.2 A duplicao do indivduo como fenmeno denominado desdobramento da personalidade................................................................ 38 1.3 A experincia do estranho ......................................................................... 43 CAPTULO 2 A estranha conduta e a duplicao como rompimento do racionalismo ............................................................................... 61 CAPTULO 3 A modernidade: a cidade, seus espaos, os sujeitos annimos ........... 80 CAPTULO 4 O dialogismo polifnico nO Duplo................................................. 99 CONCLUSO ......................................................................................................... 116 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................... 123

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Certa vez, olhei-me no espelho e perguntei para aquele reflexo: Quem sois vs? E, ento, respondeu-me: No h necessidade dessa formalidade, homem comum. Eu sou tu. Tu s meu prprio ser, s que desdobrado. Marco Antnio B. de Lellis

O desconhecido sentou-se diante dele, na sua cama; []. Sorriu ao de leve, piscou os olhos e baixou um pouco a cabea em sinal de cumprimento. O senhor Golidkin quis gritar, protestar []. E tinha razo para isso. O senhor Golidkin acabava de reconhecer o seu amigo noturno. Este no era outro seno ele prprio, senhor Golidkin, um outro senhor Golidkin, absolutamente igual a ele e em tudo seu ssia. Fidor Mikhilovitch Dostoivski

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INTRODUOTrataremos, nesta dissertao, do tema do desdobramento do eu na modernidade. Para essa empresa, a novela O Duplo,1 de 1846, do autor russo Fidor Mikhilovitch Dostoivski, ser o nosso principal objeto e, atravs do conceito freudiano do Unheimlich (O Estranho), verificaremos que o tema anunciado se relaciona com a dicotomia entre a razo e a sensao, entre um eu e um no-eu, ambguos porque simultaneamente diferentes e idnticos a si mesmos. Lanaremos mo de outros textos que contextualizam e refletem sobre a modernidade, tomando-se aqui este termo como tendo seu marco temporal no sculo XIX. Na literatura desse sculo, principalmente no gnero denominado novela fantstica, os temas do duplo, da ambigidade e do desdobramento subjetivos, dos gmeos especulares, da dicotomia entre o eterno e o efmero, entre o sagrado e o profano, entre o racional e o sensitivo so dos mais emblemticos e significativos. Tal gnero literrio permitiu representar o duplo por meio de uma segunda e mesma personagem, sobretudo no perodo a destacado, embora se possa marcar sua presena ao longo de diferentes sries literrias e filosficas. No alvorecer da cincia ocidental, ainda na Grcia arcaica, j encontramos as noes de desdobramento, de imagem e de duplicidade, tanto na mitologia e nas tragdias como nas filosofias pr e ps-socrtica. Por esse motivo, -nos imprescindvel identificar tais noes para que possamos delimitar cronologicamente nossa reflexo. Vale lembrar que essas noes referentes questo do duplo divergiram em suas formas atravs dos tempos. Otto Rank (1884-1939), na obra Beyond psychology, ao relacionar os diferentes aspectos do duplo na literatura com o estudo da personalidade dos prprios autores, precisa que o tema se inicia na mitologia e no drama gregos: More than twenty-five years ago, I happened to see a moving-picture which revived the theme of the Double famous since the days of Greek mythology and drama [].21

Ttulo original: ; Dvoink. Tem-se como subttulo , Pietierbrgskaia poema, Poema petersburguense. As tradues do original e as transliteraes do alfabeto cirlico so de nossa responsabilidade. Almejamos, ao mximo, aproxim-las do nosso vocabulrio.2

RANK, Otto. The Double as immortal self. In: __________. Beyond psychology. New York: Dover Publications, 1914, p. 67.

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Acreditamos que o mito de Andrgino e a narrativa de Narciso representam, adequadamente, a afirmativa do estudioso alemo. O ser andrgino possui, simultaneamente, as formas masculina e feminina, ou seja, o que comum aos dois sexos e o que faz parte da diferena entre eles. O termo vem dos vocbulos gregos anr, andrs (viril, o macho, aquele que fecunda) e guin, guinaiks (a fmea, a mulher).3 NO Banquete, Plato, atravs do discurso de Aristfanes, disserta:Mas preciso primeiro aprenderdes a natureza humana e as suas vicissitudes. Com efeito, nossa natureza outrora no era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, trs eram os gneros da humanidade, no dois como agora, o masculino e o feminino, mas tambm havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrgino era ento um gnero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois. [] quatro mos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mos, dois rostos sobre um pescoo torneado, semelhantes em tudo; mas a cabea sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma s, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu andar, era tambm ereto como agora, em qualquer das duas direes que quisesse [].4

Em face de um iminente perigo, Zeus decide cortar e bipartir esse ser. Essa bipartio metaforiza a fraqueza e a carncia humanas. O andrgino, que era outrora um ser uno, torna-se duplo. Se os gneros masculino e feminino coexistiam, simblica e virtualmente na natureza humana, a perfeio espiritual consistiria, ento, no reencontro de cada parte andrgina, ou seja, no reencontro das duplas partes para que resultasse na unicidade e na totalidade do ser. ento de h tanto tempo que o amor de um pelo outro est implantado nos homens, restaurador de nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um s de dois e de curar a natureza humana. Cada um de ns, portanto, uma tssera complementar de um homem, porque cortado como os linguados, de um s em dois; e procura ento cada um o seu prprio complemento []. O motivo disso que nossa antiga natureza era assim e ns ramos um todo; , portanto, ao desejo e procura do3

BRANDO, Junito de Souza. Dicionrio mtico-etimolgico da mitologia grega. Petrpolis: Vozes, 1991. v. 1, p. 64.4

PLATO. O Banquete. In: __________. Dilogos. Trad. Jos Cavalcanti de Souza. So Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 28. (Os Pensadores).

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todo que se d o nome de amor. Anteriormente, como estou dizendo, ns ramos um s, e agora que, por causa de nossa injustia, fomos separados pelo deus [].5

J o mito de Narciso representa a duplicao especular relaciona-se identificao imaginria com o semelhante. Essa fase especular constituiria naquilo que, posteriormente, Freud denominaria ego. Narciso foi aquele que se entorpeceu, aquele que se consumiu de amor por si mesmo. Sob o prisma etimolgico, a palavra Narciso tem nrque como raiz, que, em grego, significa entorpecimento, torpor. Tal qual o perfume soporfero da flor, Narciso, estril e carente de virtudes masculinas, fenece.6 Beleza e orgulho em demasia geravam a hybris (desmedida humana) e a ira divina. Porm, ele no soobraria desde que no se visse jamais. No obstante, deparando-se com a sua imago espelhada, seu outro Self, enamora-se to perdidamente de si que, na solido, no mais comeu, sequer bebeu e acabou consumindo-se pela fome e sede.7 Esse mito representa o descomedimento humano frente perfeio divina. A relao dialtica entre Narciso e Eco smbolo das dicotomias amorosas entre o homem e a mulher: ciso das partes andrginas, condenaes do inconsciente e do egosmo absoluto que causam a autodestruio, e representaes psicolgicas da vaidade, da auto-admirao e da imagem amada que surge no reflexo, a qual no possui equivalncia com o mundo real e objetivo. Pensamos, ainda, que a imagem refletida de Narciso sobre as lmpidas guas da fonte de Tspias um no-eu, pois [] o espelho enganador e constitui uma falsa evidncia, quer dizer, a iluso de uma viso: ele me mostra no eu, mas um inverso, um outro; no meu corpo, mas uma superfcie, um reflexo.8 Por mais que o jovem Narciso apreenda a sua imagem, o seu reflexo na fonte somente uma correspondncia superficial. Assim, ao se olhar, ele e no ao mesmo tempo. Ele se desdobra. Como nas perturbaes de desdobramentos de personalidade, h em Narciso uma ligao com o objeto de retorno obstinado: o objeto recalcado. O espelho reflete o avesso do eu, a sua projeo dupla.

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PLATO, 1972, p. 130-131. BRANDO, Junito de Souza. Mitologia grega. 12. ed. Petrpolis: Vozes, 2002. v. 2, p. 173ss. BRANDO, 2002, p. 176. ROSSET, Clment. O real e seu duplo. Trad. Jos Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM, 1998, p. 79.

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Priorizaremos, nesta Introduo, o tratamento dado ao tema por Sfocles (491406 a.C.) e Plato (427-347 a.C.), para adentrarmos nos nossos posteriores objetivos, isto , analisar os desdobramentos do eu na obra O Duplo, de Dostoivski. Reportarnos-emos tragdia dipo rei9 e aos dilogos filosficos A Repblica e Fdon como exemplos claros dos temas da duplicao e da imagem na Antigidade, que, analisados em tenso, podem entabular um dilogo interessante com a mesma temtica na modernidade. Sfocles nos fez observar a conduta ambgua de sua personagem principal, dipo, por meio da tragdia expresso mais acabada da experincia humana, sempre com vrios sentidos interpretativos, o que a fez distinguir-se, por exemplo, das epopias de Homero. A tragdia representa a esfera humana. Os contraditrios comportamentos do indivduo, os aspectos das instituies polticas, os rumos legais que a polis tomaria e as categorias mentais definiriam seu esprito, pois nela predominou o problema antropolgico. O centro do debate passa a ser ocupado pelo cidado, pela comunidade, suas leis, regras e prticas, donde se d a primeira noo de unio entre poltica e tica. Dessa forma, a tragdia faz deslocar o centro das reflexes da natureza do Cosmo para o problema da natureza do homem. No seria o homem trgico, de fato, um ser [...] incompreensvel e desnorteante, agente e paciente ao mesmo tempo, culpado e inocente, lcido e cego, senhor de toda a natureza atravs de seu esprito industrioso, mas incapaz de governar a si mesmo?.10 Em dipo rei, o coro, personagem coletiva e annima, ser o principal motivador para que o trgico rei descubra a sua identidade dbia. O duplo carter manifesta-se em seu pensar e agir: dipo delibera consigo mesmo, analisa os prs e os contras de suas aes, tenta prever as circunstncias e as possveis contingncias. No entanto, tambm se aventura no terreno do desconhecido, do obscuro. Proclamado decifrador de enigmas, ao decodificar aquele proposto pela esfinge, descobrir o contrrio do que imaginava ser: no o rei salvador da polis, mas a poluo abominvel. O que dipo diz sem querer, sem compreender, constitui a nica9

Cf. alm de VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. Trad. Rosa Freire dAguiar. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 162-179; tambm SCHWAB, Gustav. As mais belas histrias da Antigidade clssica. Trad. Lus Krausz. 5. ed. Rio Janeiro: Paz e Terra, 1997. v. 1, p. 270-287 e ROSSET, 1998, p. 27-31.10

VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragdia na Grcia antiga. Trad. Anna Lia A. de Almeida Prado, Filomena Yoshie Hirata Garcia, Maria da Conceio M. Cavalcante. So Paulo: Duas Cidades, 1976, p. 19.

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verdade autntica de suas palavras.11 Segundo Nicole Fernandez Bravo, ele o paradigma do homem desdobrado.12 Ao enviar seu cunhado Creonte para consultar o Orculo em Delfos, no templo de Apolo, a fim de libertar a cidade da reprovao divina, descobre o seu destino. Segundo Schwab,13 o vaticnio indicaria a ambigidade: o homem trgico, assim como o homem moderno, , simultaneamente, culpado e inocente; o agente e o paciente; o senhor que analisa os fatos, mas que incapaz de governar a si mesmo. Mediante as informaes do parente, dipo envia dois mensageiros para que lhe trouxessem o cego/vidente Tirsias e este lhe desvelasse as enigmticas palavras do deus. Ao explicar-lhe suas preocupaes, Tirsias no lhe revela o enigma por prever o seu duplo destino. Nas palavras adaptadas por Schwab: Terrvel o conhecimento que s traz desgraas a quem conhece! Deixai-me voltar para minha casa, rei. Carregai vosso prprio fardo e deixai-me carregar o meu!.14 O rei de Tebas o insulta, acusando-o de ser cmplice do assassinato a que Tirsias replica:dipo [] acabais de pronunciar vossa prpria condenao. No me culpeis, no culpeis ningum do povo, pois vs mesmo (sic) sois a causa do horror que infesta a nossa cidade! Sois o assassino do rei, sois aquele que vive com sua me numa relao maldita.15

dipo, que enxergava, estava cego. Tirsias, o cego, ao contrrio, enxergava tudo. Quem seria, finalmente, dipo? Simultaneamente, salvador e criminoso. Quanto mais buscava suas razes genealgicas, tanto mais caminhava trgica e inexoravelmente para seu destino. Quando o futuro rei de Tebas fala, acontece-lhe dizer exatamente o inverso daquilo que queria dizer: o estado ambguo entre sua fala e sua ao se concretiza levando-o a um duplo ltego. dipo , pois, duplo:Como seu prprio discurso, como a palavra do Orculo, dipo duplo, enigmtico. Do princpio ao fim do drama ele permanece moralmente o mesmo: um homem de ao e deciso, coragem que nada pode abater,11 12

VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1976, p. 86.

BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionrio de mitos literrios. Trad. Carlos Sussekind et al. 3. ed. Braslia: UNB; Rio de Janeiro: J. Olympio, 2000, p. 261.13 14 15

SCHWAB, 1997, p. 274-276. SCHWAB, 1997, p. 275. SCHWAB, 1997, p. 275-276.

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inteligncia conquistadora, e qual no se pode imputar nenhum erro moral, nenhuma falta deliberada justia. Mas, sem que saiba, sem tlo querido, nem merecido, essa personagem edipiana revela-se, em todas suas dimenses social, religiosa, humana, inversa que aparece no governo da cidade.16

Por mais que fosse considerado o decifrador de enigmas e o salvador de Tebas, foi incapaz de decifrar o maior deles: sua genealogia, seu parentesco e o assassnio do rei.17 Sem suspeitar, ele lana, contra si mesmo, estranhas maldies. E conclui: Ah! Melhor partir e desaparecer do mundo dos humanos antes que tal infortnio venha manchar minha fronte!18 Torna-se, posteriormente, um estranho, um estrangeiro, um exilado dentro de seu prprio pas, j que ele mesmo vtima de sua imprecao. Entendemos que o discurso edipiano tropolgico. Por mais que haja uma organizao linear, lgica e racional em suas questes, ele dissimulado e figurativo por anteceder a ao desmesurada. Esquivar-se do destino , ao mesmo tempo, ir ao encontro dele. O caminho duplo e, no entanto, o mesmo. dipo encontra seu destino por ter desejado evit-lo. Tal qual muitas personagens da literatura moderna, dipo no um ser que se possa descrever ou definir rigorosamente. Antes, um problema, um enigma cujos duplos sentidos jamais se chegou a decifrar.19 Fazendo uma passagem brusca, poderamos dizer que o homem moderno est tambm dividido entre o eu e o outro, entre o eu e a sua prpria conscincia. Essas divises, dialeticamente, sero instauradas atravs das relaes do sujeito com o mundo exterior. Essa tentativa de adequao do indivduo com o mundo objetivo instaurar sua condio de ser dilacerado e ambguo. Adiantando algumas poucas consideraes sobre o tema desta dissertao, diramos que o enigma do senhor Ikov Pietrvitch Golidkin, personagem central da16 17

VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1976, p. 87.

Adicionamos, para maiores esclarecimentos, que o antepassado dos pais biolgicos de dipo j tinha caractersticas genealgicas ambguas, divididas entre a descendncia soberana e prudente de Cadmo e a personificao da violncia guerreira dos Semeadores e seus sucessores: Ctnio um dos Semeadores, homens da terra pai de Nicteida (a noite, a noturna) que se casou com Polidoro. Este filho de Cadmo e Harmonia; pai de Lbdaco e av de Laio, que esposo de Jocasta, filha de Meneceu, que, finalmente, so pais de dipo. Jocasta bisneta de Ctnio e se liga a quion, cuja raiz se associa com equidna: metade mulher, metade serpente, irm das Grgonas. Laio tem um passado deturpado em que contracena uma violncia sexual com Crisipo, filho do rei Plope, de Corinto. O prncipe se suicida e, por esse motivo, os labdcidas sofreriam trgicas conseqncias (Cf. VERNANT, 2000, p. 164-165).18 19

SFOCLES. dipo rei. Trad. Paulo Neves. So Paulo: L&PM, 2002, p. 57. (L&PM Pocket, 129). VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1976, p. 89.

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novela O Duplo, ser seu prprio senhor e sua prpria vtima; juiz e ru; agente e paciente de suas aes; o senhor vigilante e o visionrio desnorteante; um abismo para si mesmo; enfim, o paranico homem. Brunel, no Dicionrio de mitos literrios, argumenta que essa[...] condio de abismo, que se materializa no discurso febril das pessoas procurando a si mesmas, procurando construir teorias e definir processos morais e ticos aparece como agonia fisiolgica nos personagens, pois, para Dostoivski, o ser humano um doente, essencialmente disfuncional no regime unicamente natural.20

Poderamos dizer que Sfocles recorre ambigidade e ao duplo sentido para narrar a sua tragdia. A partir desses parmetros, o paradigma do homem duplo e invertido, que age simultaneamente conforme e desconforme a razo, ilumina a compreenso de dipo, rei divino e bode expiatrio. J Plato, ao teorizar uma verdadeira realidade, idntica a si mesma,21 imutvel e incorruptvel, incorprea, imperceptvel e invisvel aos olhos sensveis, porm visvel aos olhos do logos e do intelecto, antecipa, para a modernidade, uma realidade que se desdobra e que se torna a imagem de uma outra. No Fdon, Scrates discute com Cebes, um estrangeiro de Tebas, sobre a distino metafsica entre a alma imortal invisvel e a matria corprea visvel: Ora v, no homem h duas coisas distintas a considerar: por um lado, o corpo, por outro, a alma? Nem mais respondeu. E com qual das espcies dizemos ns que o corpo mais se assemelha e se aparenta? Salta aos olhos de qualquer um disse. com a espcie visvel. E o que dizer da alma? Ser uma realidade visvel ou invisvel? Aos olhos dos homens, pelo menos, no visvel, Scrates respondeu. Decerto! Nem preciso dizer que se trata de coisas visveis ou invisveis natureza humana! Ou ests a pensar em qualquer outra? No, na dos homens.

20 21

BRUNEL, 2000, p. 128.

PLATO, Fdon. Trad. Maria Teresa Schiappa de Azevedo. 8. ed. Lisboa: Lisboa Editora, 2000, p. 64-66. No Resumo da obra e na Anlise temtica sobre Fdon, p. 17-31, os prefaciadores relacionam a natureza imortal da alma humana teoria das Idias (formas iguais e perfeitas) e s coisas sensveis e visveis.

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Ora bem, em que ficamos quanto alma? coisa que possa ver-se ou no? No. Invisvel, portanto? Sim. Por conseguinte, a alma representa maior similitude com a espcie invisvel e o corpo, com a visvel? Nem pode deixar de assim ser, Scrates!22

Por meio das palavras de Scrates, Plato explica que o mundo da experincia sensvel s poderia ser mutvel e contraditrio, pois nos mostra a aparncia de todas as coisas mediante a pstis (crena) e a doxa (opinio). por esse motivo que h opinies aparentes, relativas, ambguas e mltiplas sobre determinados assuntos, sobre a verdadeira realidade etc. O mundo sensvel s existiria na medida em que participasse do mundo inteligvel, ideal e essencial, princpio mesmo do pensamento racional, da Ousa (o Ser, a Substncia). Portanto, ele um desdobramento, uma correspondncia superficial ou uma imagem especular do outro mundo, sendo as idias concebidas pelo esprito as formas puras e os modelos universais. A funo reveladora do real, em Plato, atemporal, pois a encontramos transposta na reminiscncia. Esta permite conhecer as verdades eternas que a alma pde contemplar numa viagem em que ela estava liberta do corpo.23 Lanaremos mo de mais uma citao para enfatizar que as noes de duplo, de cpia, de imagem, tiveram seu incio na Antigidade. Na introduo escrita para o Fdon, Marcello Fernandes e Nazar Barros afirmam que a ontologia a raiz fundadora do sistema platnico, j que o filsofo grego[...] estabelece uma hierarquia de dependncia entre o mundo das cpias e das aparncias do mundo inteligvel. Assim, esses dois planos no surgem absolutamente separados, como por vezes afirmado por aqueles que defendem a tese de um dualismo platnico. Se verdade que o plano inteligvel possui independncia e anterioridade ontolgica, verdade tambm que o mundo sensvel s existe na medida em que participa das idias. [] Em Plato no h lugar para a distino, que a ontologia contempornea estabelece, entre o plano do universal lgico22 23

PLATO, 2000, p. 71-72.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histrica. Trad. Haiganuch Sarian. So Paulo: EDUSP, 1973, p. 306. Cf. tambm REALE, Giovanni. Histria da filosofia antiga. Trad. Henrique Cludio de Lima Vaz, Marcel Perine. So Paulo: Loyola, 1994. v. 2, p. 293-299 passim.

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e o plano ontolgico real. Idia o ser e, por isso mesmo, tambm princpio de verdadeiro conhecimento.24

Na metafsica platnica, exposta na Repblica, Livros VI e VII,25 o filsofo narra a sua teoria das Idias e afirma que h a existncia de dois mundos: o mundo inteligvel e o mundo sensvel, isto , o mundo das essncias puras (que corresponde natureza ontolgica do verdadeiro Ser) e o das experincias sensveis (que corresponde s coisas corpreas, aparentes e plida imitao das Idias). A distino platnica entre esses mundos , em grande parte, a distino entre o racionalismo e o empirismo. A experincia, para Plato, a realidade em que a parte intelectual deve formular conceitos e postulados cada vez mais perfeitos para que se alcance o plano das formas essenciais e necessrias. A verdadeira realidade platnica no poderia se encontrar aqui, nessa realidade da percepo dos sentidos, mas, em outro lugar. Essa espcie de desdobramento, de duplicao do real, constitui a estrutura fundamental de sua dialtica metafsica.Segundo esta estrutura metafsica, o real imediato s admitido e compreendido na medida em que pode ser considerado a expresso de um outro real, o nico que lhe confere o seu sentido e a sua realidade. Este mundo aqui, que em si mesmo no tem nenhum sentido, recebe a sua significao e o seu ser de um outro mundo que o duplica, ou melhor, do qual este mundo aqui apenas um sucedneo enganador.26

Este mundo aqui a aparncia do mundo de l, isto , o inverso do mundo real, sua sombra, seu duplo. E todos os acontecimentos deste mundo aqui so apenas rplicas dos acontecimentos reais do mundo de l.

24

FERNANDES, Marcello; BARROS, Nazar. Prefcio. In: PLATO. Fdon. Trad. Maria Tereza Schiappa de Azevedo. 8. ed. Lisboa: Lisboa Editora, 2000, p. 30ss.25 26

PLATO. A Repblica. So Paulo: Nova Cultural, 1997. (Os Pensadores).

ROSSET, 1998, p. 49. Para Scrates, alguns objetos do conhecimento nos instigam duas sensaes opostas porque deixamos que os nossos sentidos interfiram no nosso correto entendimento sobre a verdadeira realidade imutvel e incorprea, impedindo-nos, sobretudo, de atingir, pela alma racional, as Idias originais. por esse motivo que Scrates anuncia que as sensaes, alm de serem defeituosas e no incitarem a compreenso dos objetos do mundo inteligvel, tambm so incapazes de contemplar a verdadeira realidade gerada pela Idia de Bem. Com efeito, a crtica socrtica frente s sensaes indica uma inadequao sobre os autnticos objetos do conhecimento. E estes s sero alcanados quando refugiados na razo, isto , no local onde se pode abarcar a essncia de todas as coisas. A Idia, ou forma real, operada pela inteligncia e gravada na alma, vale dizer, no eu racional, reflexivo e moral. Portanto, a alma a nica faculdade que contempla a Idia em si e extrai os verdadeiros conceitos essenciais e definitivos. (PLATO, 1997, p. 236-237).

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Como nos mostram as anlises desenvolvidas acima sobre o mito de dipo e algumas passagens dos dilogos de Plato, as reflexes sobre o desdobramento do ser humano so antigas. Por essa rpida introduo ao tema do duplo na Antigidade grega, podemos pensar que a literatura consolidada no sculo XIX deve alguma coisa ao romanesco e ao maravilhoso, ao fantstico, ao grotesco e ao sobrenatural, ao contexto histrico e social da modernidade, mas tambm ao mito e tragdia, anlise racional e irrupo das percepes sensveis, dramatizao do eu e conscincia de sua ambivalncia. Assim, tal literatura guardaria uma memria do gnero, uma linha da tradio, sem, claro, estar desligada dos condicionamentos e contingncias de seu momento histrico. Vamos, agora, anlise de desdobramentos do eu no contexto moderno do sculo XIX. Partiremos, para essa reflexo, da novela publicada em 1846, O Duplo, do autor russo Fidor Mikhilovitch Dostoivski (1821-1881) e do conceito freudiano do Unheimlich. Como nos mostra Freud, no ensaio de mesmo nome, a etimologia da palavra unheimlich guarda em si o familiar (heim) e o seu contrrio, a sua negao (un). Refletindo sobre a origem, sobre a formao do vocbulo, o pensador austraco conclui que aquilo que nos causa estranheza ou repulsa , paradoxalmente, o que nos mais conhecido, embora da ordem do recalcado. Da origem etimolgica da palavra, ento, desdobra o conceito to importante para a compreenso dos mecanismos de duplicao, para a compreenso da estrutura da repulsa ou do medo e, principalmente, da sensao de estranheza. Propomos, ento, para o tratamento do tema dos desdobramentos do eu, relacionar a questo do estranho e textos que contextualizam a modernidade. Essas pesquisas serviro como fundamento para se tentar compreender em que medida as reflexes sobre as duplicaes e as estranhas condutas subjetivas desenvolvidas por Dostoivski e, paralelamente, por outros tericos e por outros escritores, como Hoffmann, Goethe, Chamisso, Poe, Baudelaire, Balzac, Ggol podem significar uma ruptura com uma das linhas de fora do racionalismo, ou seja, com a doutrina que afirma, plenamente, que a razo humana a nica faculdade para se chegar verdade. Partiremos, para tal anlise, dos textos de Ren Descartes (1596-1650), Discurso do mtodo e Meditaes.2727

DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo e Meditaes. Trad. Enrico Corvisieri. So Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores).

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Para os racionalistas, o homem no seria seno o seu pensamento, a sua razo, e a matria corprea, nada mais que uma extenso do eu pensante. Portanto, tudo se subordinaria a ela a razo. Gerd Bornheim explica que, no sculo anterior ao XIX, a cincia, a liberdade, a tolerncia, a dignidade humana, a idia de progresso e o prprio discurso religioso haviam sido desenvolvidos em nome da razo. Segundo o autor, a res cogitans, tal como Descartes a pensava, exerce um papel fundamental. A razo seria o ponto arquimdico que permitiria dominar o mundo.28 O rompimento com o racionalismo, por sua vez, partir da noo da vida moderna como contingente. Os problemas existenciais, psicolgicos e transcendentes do homem s poderiam ser desvelados atravs do entendimento de que o ser humano no era somente a sua alma racional, mas, tambm, a sua conscincia desdobrada, que coexistia e se misturava to intimamente e com tal simbiose com a outra, que o homem no saberia dizer, corretamente, quem ele era. Essa crtica ao racionalismo dir respeito, pois, coexistncia da razo e dos sentidos. A filosofia que derivou de Descartes se esgotava na interioridade dogmtica do cogito e no conhecimento puramente racional. Em relao arte, compartilhamos a afirmativa de Paulo Vizzioli: Nenhuma arte exclusivamente baseada no sentimento, assim como nenhuma depende unicamente da razo. Como se sabe, esses dois ingredientes so igualmente essenciais a toda e qualquer manifestao artstica [].29 Assim, relacionam-se os elementos imutvel, inteligvel, relativo, limitado e sensvel. Ulteriormente, para alguns pensadores da modernidade, o racionalismo cientificista dos sculos XVII e XVIII seria insuficiente e a razo se lhes apresentava como limitada. Blaise Pascal (1623-1662), contemporneo de Descartes, considerava que quem quisesse seguir apenas a razo seria louco e que a natureza do homem toda natureza, omne animal.30 Pascal definiria que a condio do homem a inconstncia, o tdio, a inquietao, a agitao e o temor.31 Nietzsche (1844-1900), por28

BORNHEIM, Gerd. Filosofia do romantismo. In: GUINSBURG, Jac. (Org.). O Romantismo. So Paulo: 4. ed. Perspectiva, 2005, p. 79.29

VIZZIOLI, Paulo. O sentimento e a razo nas poticas e na poesia do romantismo. In: GUINSBURG, Jac. (Org.). O Romantismo. 4. ed. So Paulo: Perspectiva, 2005, p. 138.30

PASCAL, Blaise. Pensamentos. Trad. Olvia Bauduh. So Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 53-58 passim (Os Pensadores). O homem traz em si o seu animal como nos diz Franz Kafka (1883-1924) em Die Verwandlung (A metamorfose).31

PASCAL, 1999, p. 53-58 passim.

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sua vez, reflete que [...] em sua natureza selvagem que o indivduo se refaz melhor de sua desnatureza, de sua espiritualidade [],32 enquanto que o escritor irlands Oscar Wilde (1854-1900), atravs da personagem Lorde Henry Wotton, indaga sobre quem definiu o homem como animal racional: a mais primitiva das definies. O homem uma infinidade de coisas, mas no racional. Em ltima anlise, encanta-me que no o seja [].33 Uma das mais severas crticas ao imprio da razo foi feita por Dostoivski. Sua postura se relaciona, entre outras coisas, com a complexa estrutura psicolgica e econmica que percebe no sujeito moderno; percepo gerada tanto no ambiente familiar a includo aquele do prprio Dostoivski como na atmosfera e no contexto social em que viveu.Para Dostoivski, a vida em famlia nunca seria calma e serena, nunca uma coisa bvia, simplesmente aceita como um dado; seria sempre um campo de batalha, um confronto de vontades []. E para um menino e adolescente destinado a tornar-se famoso por sua compreenso das complexidades da psicologia humana, foi uma excelente escola ter sido criado numa famlia que resguardava da viso alheia o significado dos comportamentos e em que sua curiosidade foi estimulada a intuir e decifrar esses significados ocultos. Talvez possa descobrir a a origem do profundo interesse de Dostoivski pelos mistrios da personalidade, da sua tendncia a explor-los, por assim dizer, de fora para dentro, penetrando sempre do exterior para camadas cada vez mais profundas que gradualmente so trazidas tona. possvel que sua preferncia por personagens que se revelam em sbitas exploses de autoconfisso tenha se originado da forte impresso que lhe causaram os acessos temperamentais do pai, os quais deviam parecer-lhe uma revelao inesperada de tudo o que fervilhava e cozinhava em fogo lento nas profundidades da alma.34

Quem seria, ento, o homem da modernidade? Seria o coeficiente das duas conscincias? Seria um indivduo com o crebro saturado de tabaco e sangue a

32

NIETZSCHE, Friedrich. Crepsculo dos dolos. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 10. WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. In: __________. Obra completa. Trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Jos Aguilar, 1961, p. 76.34 33

FRANK, Joseph. Dostoivski: as sementes da revolta, 1821-1849. Trad. Vera Pereira. So Paulo: EDUSP, 1999a, p. 48 (grifo do autor).

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queimar pelo lcool?.35 Seria um indivduo, simultaneamente, idntico e estranho a si mesmo, que rompe com os valores que caracterizavam a vida burguesa moderna? Seria esse ser solitrio, rasgado por dentro, que vagabundeia, que flana pelas ruas observando todos os aspectos da multido mas que tambm observado para que, em seguida, coletasse, registrasse e contasse o que observou? Seria o Asfaltliterat (literato de asfalto), isto , criaturas essencialmente urbanas, que vivem como plantas algo emurchecidas e lnguidas na atmosfera assaz sufocante da grande cidade? 36. Seria este animal louco, cuja loucura inventou a razo? 37 Para o filsofo Edgar Morin, uma vida totalmente racional poderia ser considerada pura loucura, porm, levar a razo a seus limites mximos, tambm, poderia conduzir ao delrio.38 Em seu livro O enigma do homem, atravs da anlise do processo de hominizao,39 Morin mostra outra face do homem camuflada pelo conceito apaziguador de homo sapiens. Diz ele com propriedade:Trata-se de um ser de uma afetividade imensa e instvel, que sorri, ri, chora, um ser ansioso e angustiado, um ser gozador, embriagado, exttico, violento, furioso, amante, um ser invadido pelo imaginrio, um ser que conhece a morte e no pode acreditar nela, [] um ser que se alimenta de iluses e de quimeras, um ser subjetivo cujas relaes com o mundo objetivo so sempre incertas, um ser submetido ao erro, ao devaneio, um ser hbrido que produz a desordem. E como chamamos loucura conjuno da iluso, do descomedimento, da instabilidade, da incerteza entre o real e imaginrio, da confuso entre o subjetivo e o objetivo, do erro, da desordem, somos obrigados a ver o homo sapiens como homo demens.40

O homem no seria, pois, seno um miservel desviado, com uma duplicidade que lhe prpria: ser sapiente e ser demente.35

VERLAINE apud BERMANN, Marshall. Tudo que slido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moiss, Ana Maria L. Ioriatti. So Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 130.36

ROSENFELD apud ROSENFELD, Anatol; GUINSBURG, Jac. Um encerramento. In: GUINSBURG, Jac. (Org.). O Romantismo. 4. ed. So Paulo: Perspectiva, 2005, p. 283.37

CASTORADIS apud MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Trad. Edgard de Assis Carvalho. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 54.38 39

MORIN, 1997, p. 27.

Metodologicamente, o filsofo distinguiu as evolues biolgica, social e cultural do homem (homo sapiens, homo faber, homo habilis, homo socius, homo erectus e homo demens). Cf. MORIN, Edgar. O enigma do homem. Trad. Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975, p. 116-117.40

MORIN, 1975, p. 116-117 (grifos do autor).

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Mikhail Bakhtin, por fim, comenta que a conscincia muito mais terrvel do que quaisquer complexos inconscientes.41 Os fenmenos do desdobramento da personalidade (que a psicologia denomina esquizofrenia ou parania), nO Duplo, associam-se novela fantstica, ao romantismo e crtica socioeconmica da modernidade, pois a se encontram os mltiplos ecos do eu. Segundo Rank,42 no obstante o tema de duplos se iniciar na mitologia e drama gregos, a interpretao dos romnticos se relaciona com o problema do Eu (Self) atravs do ponto de vista psicolgico. Afirma o terico que esse problema de personalidade e de desdobramento repercusso da Revoluo Francesa e da glria napolenica. Ademais, o tema do duplo na novela de Dostoivski foi identificado, por ele mesmo (mais tarde, Joseph Frank e Henri Troyat confirmam tal identificao), como problema e confisso pessoais: Le Double est la premire confession dramatise dans loeuvre de Dostoievski.43 Os fatores sociais, polticos, econmicos e culturais de seu tempo impulsionaram e contriburam para que Dostoivski criasse as suas personagens. A questo do duplo , pois, passvel de contextualizao na modernidade. A necessidade de ascenso social foi uma conseqncia proporcionada pela Revoluo Industrial (1750), e a classe burguesa se tornou instrumento importante para a conscincia do desmantelar-se subjetivo. Aps essa revoluo, os espaos pblicos, culturais e urbanos, a metrpole, enfim, passam a ser locais em que so contrastados flanadores eruditos e populares, comerciantes, prostitutas, vagabundos e trapeiros, poetas, capitalistas industriais e dndis, sendo imperiosa a convivncia de todos no espao da grande cidade, cruzando-se na cena urbana, trocando de papis favorecidos que so pelo anonimato e pela reificao. O triunfo da burguesia produziu a ciso entre o artista e o industrial burgus, entre o poeta/escritor e o progresso capitalista. O movimento romntico, por exemplo, pode ser considerado como um produto tpico da vida e cultura urbanas de uma

41

SCHNAIDERMAN, Boris. Turbilho e semente: ensaios sobre Dostoivski e Bakhtin. So Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 43.42 43

RANK, 1914, p. 68.

BOURMEYSTER, Alexandre. Le Double de Dostoievski. In: PROUSE, Gabriel-A. Doubles et ddoublement en littrature. France: Publications de lUniversit de Saint-tienne, 1995, p. 121-132 passim.

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Europa sob o impacto da revoluo burguesa.44 H historiadores literrios, inclusive, que aproximaram a Revoluo Industrial do movimento romntico, considerando-o resultado daquela. Muitos romnticos aderiram idia do progresso das mquinas e da ascenso burguesa como fatores determinantes para novos acontecimentos econmicos e polticos. Contudo, relacionar diretamente, fora de engenho, a irrupo do romantismo com a revoluo tarefa arriscada. Explica Henri Peyre que tudo isso, porm, equivale a dizer que a atmosfera mudara depois do primeiro tero do sculo XIX e j ningum podia ignorar o movimento econmico e social que enriquecia uma parte da sociedade e desenraizava outra.45 Antecipando, mais uma vez, algumas consideraes sobre O Duplo, verifica-se que, em determinados momentos da obra, a rua e os espaos pblicos de So Petersburgo parecem se tornar, para a personagem principal, locais de refgio. No obstante, essa personagem no nem um flneur propriamente dito, nem um badaud.46 Deixando-se consumir pela multido, o badaud se anula, esquece de si por sofrer a influncia do espetculo que a metrpole lhe oferece, tornando-se, apenas, mais um curioso. Diferente do detetive amador ou do simples curioso,47 Golidkin parece ser mais um transeunte egosta, preocupado com sua ascenso social e cuja mania de perseguio se incorporaria ao seu carter. Walter Benjamin, ao analisar algumas passagens de uma novela de Edgar Allan Poe (1809-1849), O homem da multido, traduzida justamente por Baudelaire (18211867), conclui: [] O homem da multido no um flneur. Nele, o hbito tranqilo foi substitudo por outro, manaco; e dele se pode inferir melhor o que aconteceria ao flneur, quando lhe fosse tirado seu ambiente natural [].48 O que distingue o flneur do badaud e do homem da multido que o primeiro um homem na multido cujo telos dar alma, vida, atravs de seu olhar atento, s pessoas que o rodeiam e prpria metrpole. Enquanto os transeuntes lanam olhares indiferentes sobre a metrpole, o flneur deles se diferencia pela qualidade de um olhar44 45 46 47

ROSENFELD; GUINSBURG, 2005, p. 282. PEYRE, Henri. Introduo ao romantismo. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, [s.d.], p. 56. Basbaque, nscio, boca-aberta.

BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Trad. Heindrun Krieger Mendes da Silva, Arlete de Brito, Tania Jatob. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000, p. 8. Na nota da p. 32, Benjamin cita Victor Fournel para distinguir o flneur do badaud.48

BENJAMIN, 2000, p. 52.

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perscrutador, como o de um detetive, mas limitado espacialmente na sua busca. Benjamin que adensa essa reflexo:Havia tambm o transeunte que se infiltrava entre a multido, mas havia tambm o flneur que necessitava de espao e no queria renunciar sua vida privada. A massa deve ocupar-se de suas tarefas: o homem privado, na verdade, pode flanar somente, quando, como tal, j sai do quadro. Onde o tom dado pela vida privada, h to pouco espao para o flneur como no trnsito febril da city.49

Desse modo, se a temtica sobre duplos antecede a modernidade, com incio na cultura ocidental, como vimos anteriormente nas reflexes sobre a narrativa mitolgica e a filosofia, no contexto do sculo XIX ela adquire maior complexidade, tornando-se objeto de uma reflexo mais explcita na produo cultural, sobretudo na produo literria. Finalmente, como mencionamos, lanaremos mo da reflexo de Freud expressa no conceito do unheimlich, fundamental para a construo de nossa hiptese. Sabemos, de antemo, que esse vocbulo de difcil traduo, pois traz consigo, como se disse, o seu antnimo, responsvel por sua extrema ambigidade. Seu equivalente aproximado em portugus seria o estranho, o no-familiar. Sabemos, ainda, que o problema da modernidade e do prprio homem moderno demasiadamente complexo. Contudo, acreditamos que algumas das linhas gerais para a sua compreenso podem ser encontradas na temtica dos desdobramentos do carter humano, na fragmentao do sujeito e na conscincia que este adquire da dificuldade de apreenso absoluta do eu. Eis porque O Duplo, segunda obra escrita por Dostoivski, se torna o objeto principal desta dissertao, j que a sua personagem/protagonista emblemtica no interior da srie de personagens de larga repercusso na literatura moderna. Para o desenvolvimento deste trabalho seguiremos a seguinte estrutura: No primeiro captulo, subdividido em trs sees, analisaremos o conceito freudiano do unheimlich e como esse conceito pode ser associado sensao de estranheza e ao processo de desconstruo do sujeito da modernidade, ao mesmo tempo

49

BENJAMIN, 2000, p. 52. Curiosamente, Aristteles (384-322 a.C.), na Metafsica, Livro A, j havia comentado que a sensao da viso mais prefervel aos homens porque, indiferentemente de ela nos instigar a agir ou no, ela nos proporciona mais conhecimentos do que todas as outras sensaes e nos torna manifestas numerosas diferenas entre as coisas. (ARISTTELES. Metafsica. Trad. Marcelo Perine. So Paulo: Edies Loyola, 2002, p. 3).

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em que dele constituidor. Aproximaremos esse conceito da novela O Duplo, citando algumas de suas passagens para exemplificarmos a temtica freudiana. Por fim, refletiremos sobre a novela fantstica enquanto gnero literrio. Em seguida, no segundo captulo, analisaremos como o perodo moderno do sculo XIX, atravs do romantismo e da percepo da conduta humana como controversa, rompe com a doutrina racionalista, ou seja, examinaremos como a viso que se passa a ter da ao humana diverge de explicaes ancoradas na razo absoluta. Aqui daremos maior ateno ao movimento romntico por ser o perodo em que Dostoivski escreveu O Duplo.50 Consideramos pertinente escrever algumas rpidas linhas sobre trs grandes autores da literatura universal dessa poca Hoffmann, Goethe e Chamisso , que exemplarmente expem o desacordo entre o homem e sua conscincia. A conscincia romntica foi uma tempestade de idias e intuies que produziu aes exaltadas e impetuosas. De acordo com Anatol Rosenfeld,[] se a expresso da dissociao universal que caracteriza o ser humano, particularmente em nossa civilizao, h de ser o signo da arte verdadeiramente inspirada, compreende-se que a simbologia romntica esteja povoada de figuras desse esfacelamento e fragmentao: ssias, duplos, homens-espelhos, homens-mscaras, personagens duplicadas em contrafaes e alienadas em sua humanidade.51

Toda a simbologia romntica referida por Rosenfeld est contida nas obras dos trs autores supracitados. Em Hoffmann, no conto O homem de areia, vem-se os temas do estranho, do autmato e da alucinao, que culminam na demncia da personagem principal, Natanael. Em Goethe, trata-se da irrupo romntica do jovem Werther, que culmina no suicdio da personagem;52 e, finalmente, em Chamisso, a

50

Natlia Nunes, na introduo geral das obras completas de Dostoivski, diz do escritor russo: Dostoivski ainda um romntico. Tambm na literatura essa corrente ideolgica se caracterizou pela glorificao dos instintos e das comoes, desvalorizando a razo e a cincia. Alm da venerao pela natureza, o romantismo inclua tambm um desprezo pelo formalismo, uma inclinao sentimental pelos humildes e um grande interesse pela reforma da sociedade, proclamando a dignidade do homem comum. (DOSTOIVSKI, Fidor Mikhilovitch. Obra completa. Trad. Natlia Nunes. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar, 1963, v.1, p. 67).51

ROSENFELD, Anatol; GUINSBURG, Jac. Romantismo e classicismo. In: GUINSBURG, Jac. (Org.). O Romantismo. So Paulo: Perspectiva, 2005, p. 274.

52 Walter Benjamin disse que o suicdio aparece como a passion particulire de la vie moderne. Na modernidade, o suicdio no se relaciona com a renncia, mas com a paixo herica (BENJAMIN, 2000, p. 13). Ademais, as mudanas socioeconmicas da modernidade no forneceram valores universais

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personagem Peter Schlemihl vende a sua sombra, o que simboliza a perda de sua alma racional, seu reflexo, enfim, a perda de sua identidade, fazendo-o isolar-se socialmente. No captulo terceiro, discutiremos o contexto social e histrico da modernidade, refletindo sobre o espao pblico do sculo XIX como local emblemtico da fragmentao do sujeito, considerando-se que nesse especfico lugar que se d origem ao flneur, isto , ao cidado annimo na multido. Esta, que ocupa as ruas, seria um outro fenmeno importante e caracterstico da modernidade. E, finalmente, no quarto captulo, faremos a reflexo sobre em que medida a obra de Dostoivski pde ser considerada polifnica e dialgica, ou seja, em que medida h nO Duplo a construo de um efeito de sentido em que vrias vozes isoladas, eqipolentes e imiscveis so sobrepostas, muitas vezes numa mesma personagem.53 Para tanto, a obra de Mikhail Bakhtin, Problemas da potica de Dostoivski, ser muito importante. Bakhtin afirma que a crtica literria interpretou os heris dostoievskianos ideolgica e psicologicamente. Para ele, tais anlises foram incapazes de penetrar na arquitetnica propriamente artstica das obras de Dostoivski.54 Procurar-se-, com este estudo, reiterar a importncia dos textos literrios russos, textos que romperam com as formas literrias tradicionais e foram determinantes para a compreenso das teorias da modernidade. Na verdade, textos que foram determinantes para a prpria configurao da cultura moderna. A literatura russa do sculo XIX representou um marco para a literatura ocidental, transformando-se em referncia obrigatria para os que se voltam para o mundo social e cultural da modernidade. Dessa literatura, a obra de Dostoivski erige-se como fundamental. Otto Kaus, citado por Mikhail Bakhtin, destaca ainda a influncia do escritor para a configurao de nosso mundo atual:A poderosa influncia de Dostoivski em nossa poca e tudo o que h de vago e definido nessa influncia encontra a sua explicao e a sua nica justificao na peculiaridade fundamental da sua natureza: Dostoivski o bardo mais decidido, coerente e implacvel do homem da era capitalista. Sua obra no um canto fnebre mas uma cano deque pudessem preencher o vazio de significados caracterstico do mundo capitalista. Essas mudanas geraram, na vida moderna, os comportamentos suicidas.53

Devemos ressaltar que estas vozes imiscveis, recuperadas nos estudos de Bakhtin sobre o autor russo, tm sua culminncia expressiva em romances posteriores de Dostoivski. No entanto, j se encontram esboadas nO Duplo (Cf. BAKHTIN, Mikhail Mikhilovitch. Problemas da potica de Dostoivski. Trad. Paulo Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense universitria, 1997, p. 222).54

BAKHTIN, 1997, p. 7.

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bero do nosso mundo atual, gerado pelo bafejo de fogo do capitalismo.55

J Otto Maria Carpeaux exalta Dostoivski ao dizer que, se o autor russo no for o maior escritor dos sculos XIX e XX, , ento, o mais poderoso.56

55 56

KAUS apud BAKHTIN, 1997, p. 19. CARPEAUX apud SCHNAIDERMAN, 1983, p. 21.

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CAPTULO 1 Das Unheimliche e o desdobramento do eu1.1 O Unheimlich freudiano: um conceito ambivalente Para uma melhor compreenso do conceito chamado unheimlich, propomo-nos seguir, passo a passo, as prprias idias de Freud (1856-1939), relacionando-as ao tema do desdobramento. Freud inicia seu artigo fazendo uma associao entre a pesquisa sobre o estranho e o estudo da esttica. Esta ltima no seria definida, apenas, como uma teoria da beleza, mas, igualmente, como uma teoria das qualidades do sentir.57 De fato, as impresses e percepes sensveis que se tm sobre uma determinada obra de arte esto vinculadas ao que Freud conceituou como unheimlich. A sensao subjetiva diante de uma obra de arte no universal, pois as qualidades do sentir so mltiplas. Alm disso, os sentimentos nem sempre so de natureza positiva, j que uma obra de arte poder causar estranheza, repulsa, averso, aflio e, at mesmo, angstia, ou seja, poder estimular tudo aquilo que misterioso, fantstico, absurdo e no-familiar.58 Essa associao entre os temas do estranho e da esttica se baseia numa interferncia crtica de Freud sobre um estudo, do mesmo assunto, feito por Jentsch. O estranho enquanto sentir, para Freud, partilha de uma dupla natureza: positiva (idntica a si mesma, domstica, heimlich, familiar) e negativa (nodomstica, unheimlich, no-familiar, geradora de averso, aflio, repulsa). Sendo assim, o unheimlich, como j se disse, aquela categoria do assustador que remete ao que conhecido, de velho, e h muito familiar,59 relacionando-se indubitavelmente com o que assustador, com o que provoca medo e horror.60 Contudo, Freud nos adverte que essa palavra nem sempre usada no sentido claramente definvel, de modo que tende a coincidir com aquilo que desperta o medo em geral.61 Por se tratar57

FREUD, Sigmund. O estranho. In: __________. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XVII, p. 237.58 59 60 61

FREUD, 1996, p. 237. FREUD, 1996, p. 238. FREUD, 1996, p. 237. FREUD, 1996, p. 237.

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de um conceito ambivalente, o estranho se relaciona tanto com algo que particular (coisa, pessoa) como com a qualidade ou sentimento de estranheza.A palavra alem unheimlich obviamente o oposto de heimlich [domstica], heimisch [nativo] oposto do que familiar; e somos tentados a concluir que aquilo que estranho assustador precisamente porque no conhecido e familiar. Naturalmente, contudo, nem tudo que novo e no familiar assustador; a relao no pode ser invertida. S podemos dizer que aquilo que novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho; algumas novidades so assustadoras, mas de modo algum todas elas. Algo tem que ser acrescentado ao que novo e no familiar, para torn-lo estranho.62

Como mencionamos na Introduo, o adjetivo unheimlich de difcil compreenso. Dicionrios indicados por Freud em seu ensaio traduziram-no como unhomely, uncanny, mysterious, unfamiliar etc. A opo por traduzir o vocbulo para o portugus como estranho justifica-se uma vez que essa palavra abarca, na nossa lngua, o misterioso, o fantstico, o sinistro.63 Segundo Luiz Alfredo Hanns, o artigo deFreud aponta para o fato de que a palavra alem teria certa ambigidade, oscilando entre o familiar e o desconhecido. Relaciona-se tal ambigidade com a sensao de inquietude do sujeito pelo retorno do material recalcado [portanto conhecido], o qual volta sob a forma de algo desconhecido e assustador.64

Por isso, a combinao dos vocbulos implica que aquilo que estranho para o sujeito o por ter sido algo que fora h muito familiar, h muito tempo estabelecido na mente mas reprimido por um impulso racional (o consciente). Em certo perodo existencial, esse material recalcado aflora. Assim, esse novo impulso se manifesta sem que esteja na alada da psiqu.65 E por isso que ele assusta, causa medo e totalmente sinistro. O unheimlich freudiano um termo cujo significado implica uma62 63

FREUD, 1996, p. 239 (grifo do autor).

FREUD, 1996, p. 239ss. Na p. 243, l-se: Da idia de familiar, pertencente casa, desenvolve-se outra idia de algo afastado dos olhos de estranhos, algo escondido, secreto [].64

HANNS, Luiz Alfredo. Dicionrio comentado do alemo de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 231.65

FREUD, 1996, p. 262. Diz ele: Pode ser verdade que o estranho [unheimlich] seja algo que secretamente familiar [heimlich], que foi submetido represso e depois voltou [].

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ambivalncia, at que finalmente coincide com o seu oposto, sendo, pois, uma subespcie de seu antnimo. O unheimlich tudo o que deveria permanecer secreto e oculto, mas que veio luz. Conforme Laplanche e Pontalis, a ambivalncia seria uma presena simultnea, na relao com o mesmo objeto, de tendncias, de atitudes e sentimentos opostos, fundamentalmente o amor e dio.66 Essa presena, na obra de Dostoivski, configura-se na apario do duplo como o recalcado que retorna, que se torna visvel, que impe sua presena revelia do sujeito consciente que o supunha enterrado.67 NO Duplo, trava-se uma batalha entre o protagonista e seu outro. Essa batalha serviu para designar a ambgua conduta da personagem quanto aos sentimentos resultantes de seu conflito defensivo, pois o dualismo conflitante entre o original e a cpia indissolvel. A conscincia tem a funo de observar e criticar o eu (self) e de exercer uma censura dentro da mente,68 isto , a conscincia tem como tarefa suprimir as circunstncias e as aes adversas e aniquil-las para que se apazigue. Esse agente especial e observador, Freud denomina-o superego.69 No entanto, atravs dos estudos de hipnose,70 Freud precisa:Pelo estudo dos fenmenos hipnticos tornou-se habitual a concepo, a princpio estranhvel, de que num mesmo indivduo so possveis vrios agrupamentos mentais que podem ficar mais ou menos independentes entre si, sem que um nada saiba do outro, e que podem se alternar entre si em sua emerso conscincia. Casos destes, tambm ocasionalmente, aparecem de forma espontnea, sendo ento descritos como exemplos de doubl conscience. Quando nessa diviso da personalidade a conscincia fica constantemente ligada a um desses

66

LAPLANCHE J.; J-B. PONTALIS. Vocabulrio de psicanlise. So Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 17. importante salientar que o retorno do recalcado, em alemo, Die Heimkehr e possui a mesma raiz que familiar (heimlich). A presena do duplo, ao lado do senhor Golidkin, proporciona-lhe Heimweh (nostalgia).68 69 67

FREUD, 1996, p. 253.

FREUD, Sigmund. Cinco lies de psicanlise. So Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 136, 236. (Os Pensadores).70

No aprofundaremos esse tema, j que nos desviaramos do que pretendemos nesta dissertao. Porm, -nos preciosa esta informao que Freud nos d sobre a doubl conscience.

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dois estados, chama-se esse estado mental conscience e o que dela permanece separado o inconsciente.71

Ora, aquilo que mau, perverso, lgubre, inquietante e estranho ao eu, e aquilo que externo so, por excelncia, idnticos. O prprio eu (Self) idntico a um outroeu. O unheimlich a estranheza diante da intimidade com o supostamente diferente.72 NO duplo, por exemplo, descreve-se o momento exato do encontro entre o senhor Golidkin e seu duplo. A partir da, concretizam-se seus pressentimentos de inquietude e estranheza. Mesmo antes desse encontro, na manh do mesmo dia, Golidkin tivera a impresso de que um terrvel caos estaria por vir. Isto apesar de que se tratava de um dia solene era aniversrio de Klara Olsfievna, filha nica de Olsf Ivanovitch Bieriendiiev, conselheiro de Estado e seu antigo protetor. Objetivamente, no havia razo para o seu estado de esprito, mas o fato que sentira algo de no-familiar, de estranho. Entrou de penetra, mesmo no querendo, na festa de aniversrio de Klara, por quem se apaixonara, e l dera vexame. O resultado dos acontecimentos lhe causou a sensao de que aquilo que sentira antes como estranho, como um prenncio, de fato lhe tinha sido, de alguma forma, outrora familiar. Ele [] no tem noo do que est fazendo. Sai do coche, plido, alheado, sobe os degraus do patamar, tira o chapu, compe a roupa maquinalmente e, com uma leve tremura nos joelhos, comea a subir as escadas.73 No sendo bem-vindo e nem tendo sido convidado, retira-se o mais depressa que pode. O senhor Golidkin resolve no regressar casa e segue para um Caf, onde pede um jantar. Sua cabea era um turbilho de pensamentos, mas, em seguida, como se tivesse sido levado de volta casa de Olsf. Entra no baile e, por fim, avana e, [] sem dar conta de nada, ou antes, dando muito bem conta de tudo, encontra-se diante de Klara Olsfievna. Ah, no h dvida, o que lhe apetecia era meter-se num buraco! Mas o que est feito, feito est. [].74 Esse encontro refletir no futuro processo de desconstruo racional da personagem e na percepo de que o seu duplo o seu eu idntico, familiar, o eu que71 72

FREUD, 2005, p. 22 (grifo nosso).

KON, Noeme Moritz. Freud e seu duplo: reflexes entre psicanlise e arte. So Paulo: EDUSP, 1996, p. 155.73 74

DOSTOIVSKI, 1963, p. 302. DOSTOIVSKI, 1963, p. 308.

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se lhe ope, mesmo sendo seu eu. Tal eu aparecer na forma de maldade que representa a parte perecvel e mortal da personalidade repudiada pelo eu social.75 Justificam-se, a seguir, os longos extratos da novela, porque o encontro com o duplo deve ser observado acuradamente, sobretudo em algumas passagens que exibem as manifestaes contraditrias e as da ordem do fantstico da personagem principal. Esse encontro se deu aps Golidkin ser posto para fora da festa de Klara de forma constrangedora. Ressalte-se, ainda, como o espao urbano de So Petersburgo o locus por excelncia de todos os males e doenas.Estava uma noite medonha, uma noite de novembro mida e brumosa, toda de chuva e de neve, uma noite portadora de pneumonias, de gripes, de febres, de tifos, de todos os males de novembro em So Petersburgo. [] Chovia e nevava ao mesmo tempo. Empurrada pelo vento, a gua caa em jorros quase horizontais, tal como sai das mangueiras dos bombeiros. Batia e chicoteava o rosto do infeliz senhor Golidkin, como se fossem agulhas e alfinetes aos milhares.76

Soou, ento, a meia-noite. Golidkin, aps o seu infortnio, dirige-se ao cais de Fontanka para fugir das afrontas de seus perseguidores, de seus inimigos. Queria desaparecer, esconder-se de si mesmo.Olha sua volta numa grande inquietao, mas no v ningum. Nem vivalma. Nada avista de extraordinrio e, contudo contudo pareceu-lhe que algum estava ali, naquele momento, ao seu lado, apoiando-se tal como ele amurada do cais e, coisa estranha! que esse algum se lhe dirigiu e lhe falou com uma voz rpida e sacudida, no muito clara. E as palavras que proferiu diziam-lhe intimamente respeito. [] De repente, parou assombrado como se um raio lhe tivesse cado em cima []. O transeunte tinha desaparecido rapidamente na espessura da neve []. Mas, de sbito []. Na sua frente, a uns vinte passos a silhueta negra dum homem avanava rapidamente. O homem apressava-se cada vez mais. A distncia diminua. O senhor Golidkin podia j examinar sua vontade o seu novo companheiro daquela hora tardia. Soltou ento um grito de espanto e terror. As pernas vergaram-se-lhe. Era o mesmo transeunte que tinha passado por ele dois minutos antes e que, bruscamente, de improviso, voltava a aparecer na sua frente. [] O desconhecido parou a dez passos do senhor Golidkin, sob a luz do candeeiro mais prximo, que o iluminava completamente. [] O desconhecido75 76

RANK, 1914, p. 81-82. DOSTOIVSKI, 1963, p. 312.

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parecia-lhe agora muito seu conhecido, podia at descrev-lo da cabea aos ps. Vira j muitas vezes aquele homem. Tinha-o visto h tempos e ainda muito recentemente. [] Nada nele chamava a ateno primeira vista. Era um homem como outro qualquer, de uma certa distino, talvez at com grandes qualidades. Em suma, era um homem igual aos outros e o senhor Golidkin no lhe tinha dio nem sentia sequer contra ele qualquer animosidade. [] o senhor Golidkin conhecia-o perfeitamente, sabia at o seu nome e, apesar disto, no queria de forma alguma falar nele, nem mesmo pronunciar o seu apelido. [] O senhor Golidkin sabia agora, sentia, estava absolutamente convencido de que uma nova desgraa o esperava e que ele ia, sem dvida alguma, encontrar de novo o desconhecido. O mais estranho, porm, que ele quase desejava esse encontro. Considerava-o inevitvel. [] Vai agora j na rua Chestilavtchnaia. O senhor Golidkin deixou de respirar. O desconhecido parou diante da casa onde ele morava. Ouviu-se o som da campainha e logo a seguir o rudo da lingeta do ferro. A porta da entrada abriu-se, o desconhecido curvou-se e desapareceu sob o teto abobado. [] O desconhecido estava j no fundo da escada que levava ao andar do senhor Golidkin. Este seguiu-o correndo. [] Ora, o companheiro do senhor Golidkin era sem dvida familiar da casa. Subia com ligeireza, sem dificuldades, com um conhecimento perfeito dos lugares. [] O homem misterioso parou mesmo em frente porta do senhor Golidkin. Bateu. Pietruchka (em qualquer outra altura isto teria espantado o patro) parecia esperar, pois no se tinha deitado. Abriu logo a porta e, de vela na mo, seguiu o homem que entrava. Fora de si, o senhor Golidkin precipitou-se para os seus aposentos sem tirar o chapu nem o casaco, atravessou o pequeno corredor e parou no meio do quarto como se um raio o tivesse fulminado. Todos os seus pressentimentos se tornavam realidade; os seus pressentimentos e os seus receios. Deixou de respirar, a cabea andava-lhe roda. O desconhecido sentou-se diante dele, na sua cama; tambm ele continuava de chapu e de casaco. Sorriu ao de leve, piscou os olhos e baixou um pouco a cabea em sinal de cumprimento. O senhor Golidkin quis gritar, protestar, mas no pde, no teve foras. Os cabelos puseram-se-lhe em p. Sentou-se apavorado, perdeu os sentidos. E tinha razo para isso. O senhor Golidkin acabava de reconhecer o seu amigo noturno. Este no era outro seno ele prprio, senhor Golidkin, um outro senhor Golidkin, absolutamente igual a ele e em tudo seu ssia.77

DOSTOIVSKI, 1963, p 313-317 (grifo nosso). No original: Gospodn Golidkin sovierchino uznl svoieg notchnog priatieli. Notchni pritel eg bil nie quit ini, cac on sam, sam gospodn Golidkin, drugi gospodn Golidkin, no sovierchino taci ji, cac i on sam, odnm slovom, tcht nazivietcia, dvoink eg vo vcikh otnochiniakh. . , , , , , , , , . O senhor Golidkin reconheceu perfeitamente seu companheiro noturno. O companheiro da noite no era seno como ele prprio. O prprio senhor Golidkin, o outro senhor Golidkin, porm, perfeitamente igual a ele prprio numa palavra, como se

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No foi por acaso que quisemos ressaltar este ltimo pargrafo do texto de Dostoivski. O trecho em negrito, como se pode facilmente verificar, evidencia uma caracterstica da linguagem do escritor russo nesta novela em particular, ou seja, o uso sistemtico de repeties de palavras, sobretudo a repetio do nome da personagem. Diga-se de passagem que muitas das tradues, feitas a partir do francs, limparam o estilo repetitivo referido, segundo a nossa compreenso prejudicando o projeto de construo da significao textual. Eis o motivo de, em alguns momentos, termos colocado em notas a nossa prpria traduo diretamente do russo. Pensamos, ainda, que o ato de repetir seja proposital na novela. A repetio dostoievskiana mostrar a noo do desdobramento especular, a interseo de duas conscincias e a duplicidade da fala da personagem. quase desnecessrio, pois, explicar o porqu de a repetio ser to importante para a expresso literria do duplo. A partir desse primeiro encontro com seu duplo, a percepo que tem a personagem da realidade passa a se desdobrar efetivamente; ela tem a impresso de que vive duas vezes, uma vez que as coisas que lhe acontecem se desdobram imageticamente. A sensao do Golidkin original frente s circunstncias, como num sonho, tornam-se estranhas para si mesmo. Desdobrando-se, Golidkin assiste, mental e fisicamente, a seu prprio desdobramento como um espectador angustiado. Ao dizer para si mesmo que no ir fazer determinada coisa, ao mesmo tempo tem conscincia de que a far. Veja-se como a descrio elaborada por Freud para o efeito do estranho se aproxima da sensao sentida pela personagem. Diz Freud:[] quando se extingue a distino entre a imaginao e a realidade, como quando algo que at ento considervamos imaginrio surge diante de ns na realidade, ou quando um smbolo assume as plenas funes da coisa que simboliza, e assim por diante [].78

A apario de um drugi gospodn Golidkin79 provocou na personagem reaes emocionais divergentes: repulsa e atrao. Essa tenso acontece no momento de vulnerabilidade do eu racional. Veja-se, tambm, como a personagem condensa em si os traos marcantes do homem moderno, cuja dinmica no seria compreendidadiz disto, seu duplo em todos os aspectos. (DOSTOIVSKI, Fidor Mikhilovitch. Sobrnie Sotchinnie, 1. Moskv: Khudojestvinoi literatri, 1956, p. 257).78 79

FREUD, 1996, p. 260. ; um outro senhor Golidkin.

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apenas atravs da razo. Apresenta-se a personagem como esse ser da contingncia, essa personalidade em eterno abismo: homo sapiens, homo demens. A resposta dada por Otto Rank para a questo What is the double really? completa o que vimos discutindo acima: He is [] nothing but the first stage of insanity which may end in disaster, a dualism between feeling and willing [].80 Retornemos, agora, questo posta por Freud em seu artigo. O estranho aquilo que procede particularmente, isto , que diz respeito a uma pessoa estranha ou a uma coisa estranha? Ou se trata das impresses sensrias estranhas, das experincias e situaes estranhas frente a uma determinada coisa ou realidade? Ao experimentar a sensao de estranheza frente realidade, Golidkin torna-se um estranho para si mesmo. Talvez um estrangeiro dentro de sua ptria81 e dentro de si mesmo. Neste caso, tambm um estrangeiro por passar a ser mais um na multido, por sofrer a no individuao no espao pblico, sofrendo agudamente essa conseqncia da modernidade. Sendo mais um, passa a no ser reconhecido e, portanto, assume o trao de estrangeiridade. Eis o percurso da sensao de estranheza: de familiar e conhecido embora secreto, oculto e recalcado pelo consciente para inquietante e estranho.82 Para Luiz Alfredo Garcia-Roza,[...] o que caracteriza o estranho pois essa proximidade e essa familiaridade aliadas ao oculto. Mas, o absolutamente novo, o que jamais se deu na experincia, no pode ser temido. S h unheimlich se houver repetio. O estranho algo que retorna, algo que se repete, mas que ao mesmo tempo se apresenta como diferente. O unheimlich uma repetio diferente e no uma repetio do mesmo. Freud refere essa repetio prpria natureza das pulses, uma compulso poderosa o bastante para precaver sobre o princpio do prazer.83

A re-viso das coisas externas eterna recorrncia do mesmo , dos eventos, fatos e situaes nos desperta a sensao de estranhamento. Nessa perspectiva, Freud80

O que o duplo realmente? Ele pergunta. Ele no [] nada mais que o primeiro estgio da insanidade que pode terminar em desastre, um dualismo entre sentimento e vontade [] (RANK, 1914, p. 82-83).81

H, no artigo de Freud, um momento em que o psicanalista consulta, por intermdio do Dr. Theodor Reik, dicionrios de outras lnguas para fazer associaes ao termo unheimlich. Em grego, por exemplo, estranho, estrangeiro no residente, significa ksenos (FREUD, 1996, p. 239).82 83

HANNS, 1996, p. 231.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Acaso e repetio em psicanlise: uma introduo teoria das pulses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p. 24-25.

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examina as idias de Jentsch sobre as percepes frente vivacidade dos seres inanimados no caso, os autmatos, figuras de cera e bonecos. Jentsch recorreu novela fantstica de E. T. A. Hoffmann (1766-1822), Der Sandmann (O homem de areia),84 para compreender os efeitos estranhos causados no espectador. Por sua vez, Freud, ao fazer sua busca conceitual, defronta-se com as repeties involuntrias (a compulso repetio), relatando alguns casos com pacientes e especulando sobre a morte. Para ele, por mais que o estranho seja algo secreto e obscuramente familiar, pois submetido represso e ao retornado, nem tudo que a est (na mente) causa para sentimento de estranheza. Acompanhemos mais uma vez Freud: evidente, portanto, que devemos estar preparados para admitir existirem outros elementos, alm daqueles que estabelecemos at aqui, que determinam a criao de sensaes estranhas. Poderamos dizer que esses resultados preliminares satisfizeram o interesse psicanaltico pelo problema do estranho, e que aquilo que resta pede provavelmente uma investigao esttica.85

A referncia a uma investigao esttica relacionada diretamente ao estranho como seu objeto de pesquisa nos faz refletir sobre a criao do artista e o que essa criao poder provocar no leitor. Como j dissemos, a sensao subjetiva diante de uma obra de arte no universal, pois as qualidades do sentir so mltiplas. Veremos, no captulo 2, que no romantismo acreditava-se que a origem criativa da obra de arte vinha da inspirao que tocava o gnio criador. A arte no existe para mostrar a realidade como ela , mas como pode ser.86 Essa representao da realidade por meio da criao artstica implica a ruptura da arte como mmesis (do verbo grego mneonai: imitar, arremedar) platnica, isto , imitao, cpia exata. A arte seria uma espcie de representao simulada, atravs da identificao fantstica e metafrica da realidade, com a qual guarda, apenas, uma similaridade. Aristteles, distintamente de Plato, j refletia sobre a investigao esttica nessa direo:

84

Como dissemos, faremos uma pequena anlise desse conto no captulo 2, para compreendermos o rompimento entre o racionalismo e o romantismo. Cumpre-nos ressaltar, todavia, que essa anlise ser breve e no nos aventuraremos a um exame mais acurado e crtico.85 86

FREUD, 1996, p. 264 (grifo do autor).

ARANHA, Maria Lcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de filosofia. So Paulo: Moderna, 1992, p. 188.

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Nas artes, explica Aristteles, imitar simular. Assim como o caador simula ser um arbusto ou uma rocha para apanhar uma presa, assim tambm o ator simula gestos e aes das personagens para narrar fatos, expor sentimentos que podem ser compreendidos e experimentados pelo pblico. Mas a simulao s artstica se for sentida e percebida como representando algo real.87

A arte simblica, pois ela nos mostra uma inteno intuitiva, orgnica e sensitiva do artista criador na apreenso da realidade dita objetiva. A inspirao aponta para a imagem da obra como ao subjetiva autnoma e espontnea, vinda da percepo sensvel e da fantasia do artista criador. Este visto como portador de inspirao e iluminao espirituais. Elucidamos que a palavra esttica vem do grego aisthetik que significa conhecimento sensorial, experincia sensvel, sensibilidade88 e asthesis, sensao, faculdade de sentir, compreenso pelos sentidos.89 O termo foi proferido, inicialmente, por Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), na modernidade, ou seja, em pleno racionalismo e autonomia do sujeito do conhecimento.90Em seu uso inicial, a esttica se referia ao estudo das obras de arte enquanto criaes da sensibilidade [isto , das experincias dos cinco sentidos e dos sentimentos causados por elas], tendo como finalidade o belo. Pouco a pouco, substituiu a noo de arte potica e passou a designar toda investigao filosfica que tinha por objeto as artes ou uma arte. Do lado do artista e da obra, a esttica busca compreender como se d a realizao da beleza; do lado do espectador e do receptor, busca interpretar a reao obra sob a forma do juzo do gosto ou do bom gosto.91

A chamada concepo subjetiva da esttica se relaciona com a esttica axiolgica, esta considerada cincia de um grupo de valores, o que remete descrio destes valores: o que o belo, o feio, o organizado, o ordenado, o alusivo, o expressivo?92 Dessas consideraes, tm-se, ento, os seguintes problemas: os valores87 88 89 90 91 92

CHAU, Marilena. Filosofia: ensino mdio. So Paulo: tica, 2005, p. 161. CHAU, 2005, p. 160. ARANHA; MARTINS, 1992, p. 200. CHAU, 2005, 160. CHAU, 2005, p. 160.

MORA, Jos Ferrater. Dicionrio de filosofia. Trad. Maria Stela Gonalves et al. So Paulo: Loyola, 2001. tomo II, p. 910.

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so absolutos ou relativos? Eles dependem do juzo individual ou do coletivo? Eles dependem do sujeito ou do objeto? Portanto, enquanto um ramo da filosofia, a esttica estuda a natureza do belo e dos fundamentos da arte a partir da percepo sensvel, da sensao do sujeito. Por isso, o julgamento sobre uma obra de arte no ser universal, j que as percepes que se tm sobre a obra de arte so diversas e as produes de emoes e sensaes causadas por ela podem provocar estranhamento no espectador e no receptor. O conceito freudiano do unheimlich se adequa, pois, ao processo de desconstruo da personalidade humana, j que o constituidor deste mesmo processo. Tal conceito se relaciona, ainda, com a duplicao patolgica que se reconhece atravs da perda da identidade, que motiva a conduta ambgua do retorno do objeto recalcado. No h inteno, evidentemente, de psicanalisar a personagem de Dostoivski. No entanto, o texto fundamental de Freud ilumina a ficcionalizao desse homem moderno, redimensionando a mania de perseguio e a duplicao identitria do heri. O interesse em trazer mesma cena da escrita os textos de Dostoivski e de Freud mostrar como uma mesma poca produz um solo discursivo que permite a proliferao de bens culturais que estabelecem relaes de dilogo entre si.

1.2 A duplicao do indivduo como fenmeno denominado desdobramento da personalidade

Antes de adentrarmos o tema do estranho para si mesmo, faremos algumas consideraes sobre a duplicao, pertinentes para a anlise. Nicole Bravo nos diz que falar sobre a questo do duplo e do desdobramento falar sobre o alter ego, sobre a personificao da alma imortal; associar o termo ao ssia, situao em que duas pessoas se impressionam pela semelhana de uma em relao outra, a ponto de serem confundidas;93 falar sobre almas gmeas, isto , gmeos que se confundem com heri e anti-heri; falar de identificao e apreenso do outro e de usurpao de identidade, que ocorre quando um indivduo se identifica de tal forma com outro que nele se transforma, total ou parcialmente, segundo o padro

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BRAVO, 2000, p. 261-262.

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deste outro. , por fim, deparar-se com o Doppelgnger, consagrado termo romntico, cunhado por Jean-Paul Richter em 1796, traduzido por duplo, por segundo eu. Veja-se que, literalmente, Doppelgnger significa aquele que caminha do lado, companheiro de estrada.94 O duplo, com esses sentidos, usado para designar aquelas personagens que se vem a si mesmas especularmente, como se dispusessem de um outro si mesmo caminhando na mesma estrada, lado a lado. No exemplo citado anteriormente, tirado do Captulo V, identificamos que a sensao da estranha presena de um mesmo eu, gmeo familiar e obscuro, ao lado e no mesmo caminho do senhor Golidkin, tem o seguinte efeito de duplicao: a personagem senhora de si e sua prpria vtima, juza e r, agente e paciente de suas aes, senhor vigilante e visionrio desnorteado, em suma, um abismo para si mesmo. O meticuloso funcionrio que vive para o trabalho e tende a projetar-se na sociedade , simultaneamente, o frustrado com a convivncia social da boa sociedade, com um empreendimento que no se concretiza levando-o a criar, imaginariamente, um Doppelgnger. A palavra duplicao, para cotejar os desdobramentos do eu, talvez seja a mais apropriada uma vez que contempla o retorno do objeto recalcado, com a repetio das mesmas aes e com a iluso da estrutura visionria. A repetio acompanha a impresso de algo sobrenatural e fantstico, gerando a angstia. [] aquela coisa angustiante algo recalcado que est de volta.95 Por isso, o uso lingstico unheimlich colige bem aquela situao que para a vida psquica, sempre foi familiar e que somente se tornou estranho para ela pelo processo de recalcamento.96 Essa relao a prpria estrutura do duplo. O duplo, para a personagem, faz reverberarem os aspectos reprimidos de sua personalidade que ele no quer enfrentar,97 o que gera a ciso interna da imagem que tinha de si mesmo. No caso isolado na literatura europia. H, num conto de Thophile Gautier (1811-1872), La morte amoureuse, uma passagem em que o padre Romualdo, a personagem principal, se questiona por se encontrar duplicado. Trata-se da histria de94 95

BRAVO, 2000, p. 261-262.

FREUD apud KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para ns mesmos. Trad. Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 193. Na nota 67 salientamos que o retorno do recalcado, em alemo, Die Heimkehr e possui a mesma raiz que familiar (heimlich). A presena do duplo ao lado do senhor Golidkin lhe proporciona heimweh (nostalgia). FREUD apud KRISTEVA, 1994, p. 193. FRANK, 1999a, p. 400.

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uma mulher-vampiro e de suas luxrias o tema de duplo tambm se relaciona ao vampirismo e ao romance gtico. A dupla existncia aponta, a, para o desdobramento da personalidade. Romualdo se pergunta como, em sendo um, poderia duplicar-se em dois homens to diferentes?Dessa noite em diante, de certa forma minha natureza se desdobrou; e dentro de mim passou a haver dois homens que no se conheciam. Ora eu me considerava um padre que sonhava toda noite que era um nobre, ora um nobre que sonhava que era um padre. No conseguia separar o sonho da viglia, e no sabia onde comeava a realidade e onde terminava a iluso. O jovem senhor enfatuado e libertino zombava do padre, o padre detestava as libertinagens do jovem senhor .98

Veja-se como o tema do desdobramento se relaciona com a questo da compulso repetio. Esta se situa no nvel da psicopatologia concreta, que um processo de origem inconsciente, pelo qual o sujeito se coloca ativamente em situaes penosas, repetindo assim experincias antigas sem se recordar do prottipo e tendo, pelo contrrio, a impresso muito viva de que se trata de algo plenamente motivado na atualidade.99 Para Freud, a compulso autnoma e irredutvel. O senhor Golidkin sente esse conflito quando atormentado por exigncias internas e contrrias ditas pela sua segunda voz, o que culmina na desordem do comportamento, na dissociao do carter e, principalmente, na manifestao do seu outro eu. A imaginao desse outro tangencia a manifestao inconsciente e elabora um jogo dialgico com o leitor, que entra na burla, no jogo, assumindo como seu o ponto de vista perturbador da personagem.A tcnica geral da iluso , na verdade, transformar uma coisa em duas, exatamente como a tcnica do ilusionista que conta com o mesmo efeito de desdobramento e de duplicao da parte do espectador: enquanto se ocupa com a coisa, dirige o seu olhar para outro lugar, para l onde nada acontece.100