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JEFFERSON LUCENA DOS SANTOS OLHARES SOBRE SÃO VICENTE: UM ESTUDO DA HISTORIOGRAFIA LINGÜÍSTICA CONFRONTANDO AS OBRAS DE PERO LOPES DE SOUSA E BENEDITO CALIXTO PUC/SP 2007

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JEFFERSON LUCENA DOS SANTOS

OLHARES SOBRE SÃO VICENTE:UM ESTUDO DA HISTORIOGRAFIA LINGÜÍSTICA CONFRONTANDO

AS OBRAS DE PERO LOPES DE SOUSA E BENEDITO CALIXTO

PUC/SP2007

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JEFFERSON LUCENA DOS SANTOS

OLHARES SOBRE SÃO VICENTE:UM ESTUDO DA HISTORIOGRAFIA LINGÜÍSTICA CONFRONTANDO

AS OBRAS DE PERO LOPES DE SOUSA E BENEDITO CALIXTO

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora daPontifícia Universidade Católica de São Paulo,como exigência parcial para obtenção do título deMestre em Língua Portuguesa, sob orientação daProfa. Dra. Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos

PUC/SP2007

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, João Lucena dos Santos e Célia Regina Rodrigues dos Santos, pelossentimentos de bondade, compaixão, amor e aspiração às coisassublimes, que estão arraigados em minha alma, cravados em meucoração e gravados em minha mente.

À minha irmã, Joice Lucena dos Santos, ao meu cunhado, Avenir Jorge Cordeiro Filho, e aomeu sobrinho, Eduardo Lucena Cordeiro, pelo companheirismo, peloincentivo e pelos momentos alegres que passamos juntos.

Aos amigos, Fernando de Souza Carvalho, Heloisa Helena Cecchi C. Gomes, José OliveiraPereira e Patrícia M. Carvalho, por me ensinarem que a verdadeira beleza daalma se revela quando a pessoa transcende o apego a si e se dedicasinceramente para o bem de todos.

Aos mestres, Drª. Dieli Vesaro Palma e Drª. Vera Lucia Harabagi Hanna, por meacrescentarem conhecimentos valiosos e inestimáveis, pela precisão de suasintervenções durante o processo de qualificação.

À minha orientadora, Drª Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos, os meus mais sincerosagradecimentos, pela paciência com que me ensinou, pela dedicação quedeu à minha causa, pelas sugestões úteis, pela orientação segura ecompetente e por me ensinar que a capacidade de enfrentar e resolverproblemas de qualquer natureza é conseguida por meio da atitude positiva decumprir com boa vontade as difíceis tarefas que nos cabem.

A Deus, por me conceder força, coragem e por permitir o convívio com essas pessoas tãoespeciais.

À Prefeitura Municipal de São Vicente, pelo material cedido.

À Capes, pela bolsa de estudos concedida.

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RESUMO

Esta dissertação trata do desafio de confrontar palavra e pintura, a partir de umdocumento verbal e outro não-verbal, numa abordagem da Historiografia Lingüística,seguindo os princípios da contextualização, imanência e adequação. Assim, é umestudo comparativo da organização lingüística do século XVI, mais especificamentedos adjetivos e orações correspondentes desse período, no Diário da Navegação dePero Lopes de Sousa, à luz da gramática de João de Barros e da gramática deEvanildo Bechara, e da organização pictórica do período de transição dos séculosXIX-XX, no que concerne às tonalidades das cores e às estratégias de pintura nosquadros históricos de Benedito Calixto. No caso, os princípios da imanência e daadequação são aplicados juntos, pois, à medida que colocamos as mãos no corpusverbal, atinamos a aproximação com a linguagem atual. O espírito de época de cadaautor é reconstruído, portanto o princípio da contextualização é respeitado. Apesquisa tem como objetivo realizar um estudo historiográfico, descrever e explicarcomo se adquiriu, produziu e desenvolveu o conhecimento lingüístico e visual,inserido em um contexto histórico-científico por meio de documentos dos séculosXVI e XIX-XX. Levando em consideração os resultados obtidos, podemos afirmarque, no corpus selecionado, a linguagem verbal e a imagética apresentam umasintonia capaz de permitir a visualização das influências de cada época. A distinçãoentre Diário da Navegação e os Quadros Históricos ocorre nas influências políticas elingüísticas de cada século. Pero Lopes vivenciou e descreveu fatos por meio dapena e do papel, ainda num período em que a sistematização da língua estava poracontecer. Benedito Calixto estudou e descreveu os fatos por meio da tela e dopincel, num período em que se buscava uma autonomia política.

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ABSTRACT

This dissertation discusses the challenge of confronting word and painting, from averbal and a non-verbal document, in a linguistic historiography approach, followingthe principles of contextualization, immanence and adequacy. This way, it is acomparative study of linguistic organization of the 16th century, more specifically ofthe adjectives and sentences according to this period, in the “Diary of Navigation” ofPero Lopes de Sousa, guiding to the grammar of João de Barros and the grammar ofEvanildo Bechara, and of the organization of the transition period of the 19th and 20th

centuries, concerning the tones of the colors and the strategies of painting historicalpictures of Benedito Calixto. In this case, the principle of the immanence and theadequacy are applied together, because as we put our hands on verbal corpus weremember the proximity with the present language. The spirit of the time of eachauthor is reconstructed, therefore the principle of the contextualization is respected.The research has the objective of making a historiography study, describing andexplaining how the linguistic and visual knowledge was acquired, produced anddeveloped, inserted in a scientific-historical context by means of documents of the16th and 19th-20th centuries. Taking into consideration the results obtained, we caninfer that in the selected corpus, the verbal and image languages show a tunecapable of visualizing the influences of each time. The distinction between the “Diaryof Navigation” and the “Historical Paintings” occurs in the political and linguisticinfluences of each century. Pero Lopes lived and described facts by means of featherand paper, still in a period when the systematization of the language was about tohappen. Benedito Calixto studied and described the facts by means of canvas andbrush, in a period when political autonomy was searched.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1. Porto das Naus: Benedito Calixto, óleo sobre tela, 1881, 50x75cm.Acervo da Prefeitura Municipal de São Vicente .................................136

Ilustração 2. Desembarque de Martim Affonso de Sousa: Benedito Calixto, óleosobre tela, 1881, 47x73cm. Acervo da Prefeitura Municipal de SãoVicente ...............................................................................................139

Ilustração 3. Fundação de São Vicente. Benedito Calixto, óleo sobre tela, 1900,390x190 cm. Acervo do Museu Paulista. ..........................................142

Ilustração 4. Mapa das baías de Santos e São Vicente. ........................................146Ilustração 5. Retrato de Martim Affonso de Souza. Tela de Benedito Calixto. Acervo

da Prefeitura Municipal de São Vicente .............................................150

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Adjetivos pinçados do Diário da Navegação ........................................118Quadro 2 – Grau dos adjetivos retirados do Diário de Pero Lopes de Souza .........120Quadro 3 – Descrição do mar no Diário de Pero Lopes de Souza..........................122Quadro 4 – Expressões extraídas do Diário de Pero Lopes de Souza ...................131Quadro 5 – Excertos do Diário de Pero Lopes de Souza........................................132Quadro 6 – Obras de Benedito Calixto selecionadas para análise (*).....................135

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS......................................................................................9

1 A HISTÓRIA EM CONVULSÕES...................................................................191.1 A História e o Homem ....................................................................................201.2 Nascimento da Historiografia .........................................................................23

1.2.1 Historiografia na França........................................................................251.2.2 Historiografia no Brasil..........................................................................30

1.3 Estudo Historiográfico: limitações, métodos e perspectivas...........................342 O MAPEAR FONTES HISTÓRICAS..............................................................42

2.1 Estudo das Fontes .........................................................................................432.2 Princípios Metodológicos ...............................................................................452.3 Palavras: Contorno de Pinturas .....................................................................48

3 O PANORAMA PORTUGAL E BRASIL da Colonização ao Modernismo..523.1 A Vila de São Vicente .....................................................................................68

3.1.1 Século XVI ............................................................................................773.1.2 Séculos XIX e XX..................................................................................89

3.2 Pero Lopes de Sousa e o Século XVI .............................................................963.3 Benedito Calixto e os Séculos XIX e XX .........................................................973.4 Um diálogo possível: Pero Lopes de Sousa e Benedito Calixto..................100

4 O SUBSTITUIR PALAVRAS POR PINCELADAS.......................................1064.1 Análise das Fontes........................................................................................108

4.1.1 Grammatica da Lingoagem Portuguesa – Fernão de Oliveira .............1084.1.2 Grammatica da Língua Portuguesa – João de Barros .........................112

4.2 Diário de Navegação – Pero Lopes de Sousa ..............................................1164.3 Quadros Históricos – Benedito Calixto..........................................................1344.4 Pena e Papel versus Tela e Pincel ...............................................................154

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................159

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................164

ANEXO ...................................................................................................................171

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

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A leitura é um processo que permite ao leitor realizar um trabalho dinâmico e

ao mesmo tempo interativo, construindo assim um sentido a partir do texto1. Este,

por sua vez, fornece índices capazes de proporcionar ao leitor vantagens na leitura.

Nesse sentido, um leitor utiliza seus conhecimentos lingüísticos e prévios para

compreender um determinado texto.

No caso deste estudo, a compreensão acontece por meio de um texto que se

apropria da linguagem verbal e outro da imagética. Trata-se de examinar textos

escritos pela via da pena e papel e da tela e pincel, buscando a interpretação entre

os códigos verbal e pictoresco.

Na Idade das cavernas, o homem já tinha a necessidade de transmitir e

registrar seus acontecimentos. Por isso, criou instrumentos e meios a fim de

satisfazer suas necessidades, como a arte. Ela procura registrar as idéias e os ideais

das culturas e etnias, importantes para a compreensão da história do Homem e do

Mundo.

Lidando com o desafio de confrontar palavra e pintura, resguardando suas

especificidades como código, esta dissertação compreende um estudo que, situado

na linha de pesquisa História e Descrição da Língua Portuguesa da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, está delimitado à disciplina Historiografia

Lingüística. Sendo assim, aproximaremos os meios usados pelos dois autores ao

contarem a história da Vila de São Vicente, numa perspectiva historiográfica.

A busca pelo passado é uma característica do ser humano, pois o homem é

um ser histórico e ao mesmo tempo progressista, abarcando as descobertas

intelectuais e espirituais.

Nessa perspectiva, ao voltarmos a atenção para o início da colonização

brasileira, essa atitude conduziu-nos à observação de documentos produzidos na

Vila de São Vicente / São Paulo, considerando fatores lingüísticos e extralingüísticos

que são a indicação de que assumimos o modelo centrado no progresso por

acumulação e de que nos direcionamos para os princípios teórico-metodológicos da

Historiografia Lingüística, a saber: o descrever e o explicar os conteúdos de doutrina,

1 Neste estudo usamos a palavra texto em sentido amplo, abarcando o texto verbal e o não-verbal.

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inserida em um contexto histórico-científico, sendo testemunhas exteriores sobre

uma realidade social, marcada pelas concepções e práticas lingüísticas.

Dessa maneira, o presente estudo tem por objetivo proceder a uma reflexão

sobre o Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa (de 1530 a 1532) e os

Quadros Históricos pintados por Benedito Calixto, ambos alusivos à Vila de São

Vicente, buscando a história da primeira vila nos séculos XVI, XIX e XX. Acreditamos

que, por meio dessas produções oficiais colhidas na Vila de São Vicente, se tem um

enfoque dos comportamentos lingüísticos e as implicações socioculturais referentes

às políticas de língua adotadas em momentos históricos ocorridos na época da

colonização brasileira.

Sendo assim, é mister ressaltar que este estudo debruçar-se-á no embrião do

país – São Vicente – pois a cidade foi geradora da brasilidade. Foi desenvolvida pela

nobreza lusa, trazida por Martim Afonso, a qual deu início à formação das famílias

brasileiras. Em sua história, ostenta as mais expressivas glórias que uma cidade

pode almejar: a) cidade monumento da história da pátria; b) primeiro porto da

América do Sul; c) célula mater da nacionalidade; d) primeira vila legalmente

implantada nas Américas; e) berço da democracia nas Américas; f) berço da cultura

brasileira; g) berço da justiça brasileira.

Nesta explanação, já é possível mencionarmos que a fundação da Vila

significou muito mais que uma preocupação de Portugal em tornar o país colonizado.

Na verdade, por trás dessa “simples” colonização, há um caráter extremamente

político adormecido em nossa história. A história da Vila apresenta fatos ainda

desconhecidos, pois nosso país reluta em desvendar nossas origens.

Não obstante, é essencial entendermos a importância do estudo da língua

portuguesa em documentos da Vila de São Vicente, uma vez que o homem pode ser

conhecido pelos documentos/textos que produz, assim como por sua história. Na

escrita, o homem demonstra suas ações lingüísticas, cognitivas, culturais e sociais;

ações por meio das quais distingue o documento/texto de uma simples combinação

de códigos. Na arte, o homem utiliza-se de suas experiências, de seus

conhecimentos, a fim de dialogar com a obra de arte, e assim poder entender as

mudanças do mundo.

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As marcas deixadas pelo homem, verbais ou não-verbais, são fontes

históricas que despertam o interesse dos historiadores ao longo dos anos. Os

primeiros relatos da vida humana foram “desenhados” em rochas, pedras,

constituindo assim um vestígio para os primeiros historiadores. Após milênios, o

interesse pelos relatos nas rochas continua presente na vida desses pesquisadores.

A história se afirma como disciplina nos meados do século XIX e, a partir

desse momento, são estabelecidos parâmetros metodológicos orientadores na

crítica interna e externa das fontes. Nessa mesma perspectiva, os filósofos procuram

dar sentido ao desenvolvimento histórico das sociedades ocidentais e, com seus

estudos, chegam à concepção de que o progresso presidia o destino do homem.

Em fins do século XIX, a historiografia francesa apresenta trabalhos oriundos

da área da história política advinda do pensamento cientificista da escola metódica,

que contrapunha Filosofia da História por suas generalizações.

Alguns anos mais tarde, alguns historiadores salientaram a necessidade da

explicação histórica recorrer ao conhecimento de outras áreas como, por exemplo, a

Geografia, buscando nela os modos de vida e as inter-relações com a História. Essa

metodologia foi chamada por Heri Berr (apud JANOTTI, 2005) de síntese histórica,

cuja intenção era construir uma História das totalidades.

Em 1929, a revista Annales d’histoire économique et sociale retoma em vários

aspectos os pensamentos de síntese histórica. Os fundadores da revista não

aceitaram os pressupostos da historiografia política tradicional, por isso propuseram

uma história-problema em que as fontes deveriam ser buscadas e interpretadas

segundo hipóteses que serviriam de partida para o historiador. Com o passar dos

tempos, essa concepção foi usada pelo grupo dos Annales. A partir dessas

mudanças no fazer história, o movimento histórico não se limitou apenas à França,

expandindo suas raízes pela Europa e América (JANOTTI, 2005).

Essa referência sintética às transformações do fazer história se justifica por

ser o referencial teórico-metodológico mais abrangente deste estudo, uma vez que,

por se tratar de um trabalho que visa a discorrer sobre a organização lingüística na

composição da obra de Pero Lopes de Sousa e a organização imagética nos

quadros históricos de Benedito Calixto, é primordial conhecer o contexto das

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produções verbal e imagética; descobrir os seus sentidos próprios; localizar seus

modos de transmissão, sua destinação e suas sucessivas interpretações.

Assim, seguimos os princípios metodológicos da Historiografia Lingüística,

visando a reconstruir o passado para compreender com clareza o presente,

apontando as semelhanças e diferenças entre as maneiras como foi contada a

história da Vila de São Vicente e, além disso, em que medida a organização

lingüística e a organização pictórica interferem na composição das obras.

Entendemos que, ao estudarmos a língua, a partir de uma perspectiva

histórica, é mister levar em consideração suas modificações no tempo, resultantes

de fatores internos e externos. Certamente, esses fatores, lentos e descontínuos,

que acabam sendo gerados por influências históricas e socioculturais, são os

responsáveis pelas mudanças lingüísticas. E, é a partir dessa concepção de que

fatores extralingüísticos são os responsáveis pelo progresso da língua, que

lançaremos mão da Gramática de Fernão de Oliveira (1975) e João de Barros

(1971), intituladas respectivamente de Grammatica da Lingoagem Portuguesa e

Grammatica da Língua Portuguesa, a fim de verificar a sua contribuição para a

construção do Diário da Navegação no que concerne aos elementos pertinentes

para a construção descritiva da Vila de São Vicente. Além disso, por estarmos

tratando, também, de uma aproximação com a linguagem imagética - Benedito

Calixto, ao descrever a história da Vila de São Vicente -, buscaremos respaldo no

movimento literário pré-modernista, com a finalidade de encontrar nos quadros

históricos do pintor caiçara resquícios desse movimento.

Frisamos, portanto, que, por nosso trabalho seguir uma linha historiográfica,

são observados os princípios metodológicos, assim como as etapas e os

procedimentos específicos da Historiografia Lingüística. Sendo assim, é relevante o

estudo do clima de opinião para a compreensão dos fatos históricos analisados, pois

pertencem a séculos diferentes. Em Diário da Navegação, de Pero Lopes de Sousa,

temos a descrição da História da Vila pela ótica do português; e nas pinturas de

Benedito Calixto, brasileiro, imagens que se reportam a fatos históricos da Vila.

Assim, adotamos o princípio da contextualização para reconstruir o espírito de

época em que viveram esses dois autores, Pero Lopes de Sousa e Benedito Calixto.

Dentro desse contexto, são analisadas as fontes primárias Diário da Navegação de

Pero Lopes de Sousa (1530 a 1532) e as Pinturas históricas de Benedito Calixto.

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Selecionamos somente as pinturas que descrevem acontecimentos na Vila de São

Vicente e, para a interpretação dessas pinturas de Calixto, nos apropriaremos do

estudo de Caleb Faria Alves (2003), fonte secundária, intitulada Benedito Calixto e a

construção do imaginário republicano, uma vez que o autor, em seu livro, descreve

os quadros do pintor caiçara.

Levando em consideração, então, a obra Diário da Navegação e as pinturas

de Benedito Calixto, questiona-se: Há divergências entre essas fontes históricas ao

noticiarem a história da Vila, já que ambas se situam em períodos diferentes e, além

disso, contam a história por métodos diferenciados? E em que medida a organização

lingüística e pictórica contribuem na composição das obras?

A partir dessas questões, apresentamos os objetivos geral e específicos deste

estudo:

A) Geral

• Descrever e explicar como se adquiriu, produziu e desenvolveu o

conhecimento lingüístico e visual, inserido em um contexto histórico-científico

por meio dos documentos dos séculos XVI e XIX-XX.

B) Específicos

• Traçar o clima de opinião, por meio da observação da época em que os

documentos foram escritos e/ou pintados;

• Buscar a reatualização dos documentos com a finalidade de realçar os fatos

do passado, mediado pelas preocupações do presente;

• Desenvolver um estudo historiográfico das fontes históricas de Pero Lopes de

Sousa e Benedito Calixto;

• Verificar as organizações lingüísticas e pictóricas que contribuíram para a

composição das obras;

• Comparar os recursos usados pelos dois autores, a fim de identificar os

processos orientadores do discurso e suas condições de produção textual;

• Verificar até que ponto uma pintura pode retratar fielmente um fato histórico;

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• Identificar as similitudes e divergências das fontes ao re-contarem a história

da Vila, contribuindo por meio de reflexões metodológicas com os estudos

historiográficos.

Dessa forma, para a realização de nossa pesquisa, buscaremos subsídios

teóricos na historiografia, fazendo alusão à História e à Historiografia Lingüística.

O âmbito da disciplina Historiografia Lingüística não apresenta, ainda, uma

metodologia rígida a ser seguida. Dessa forma, o historiógrafo possui autonomia

para buscar a metodologia que se adequa ao seu corpus. Para nossa análise dos

documentos, neste estudo, consideraremos os passos metodológicos propostos por

Bastos e Palma (2004).

Sendo assim, adotaremos uma postura de historiógrafo diante das produções

oficiais colhidas na Vila de São Vicente, utilizando os princípios científicos vinculados

a determinados contextos espaço-temporais expostos por Bastos e Palma (2004,

p.11). Observemos os pontos fundamentais vistos como procedimentos

metodológicos:

• Primeiro Ponto: Princípios básicos – tratando-se de uma pesquisa

historiográfica, trabalhamos com os seguintes princípios: a) contextualização; b)

imanência e c) adequação:

a) princípio de contextualização – traça-se o clima de opinião, observando a

época em que o documento foi escrito (dados contextuais);

b) princípio de imanência - levantamento de informações (produz efeito

restaurador do passado e possibilita a compreensão do documento);

c) princípio de adequação – possibilidade de o historiógrafo da lingüística

reatualizar o documento. Realce dos fatos do passado, mediado pelas

preocupações do presente.

Ao analisarmos o corpus verbal, Diário da Navegação, buscamos o clima de

opinião e levantamos informações necessárias para a compreensão do documento,

visando à sua reatualização. Trabalhamos os princípios da imanência e da

adequação juntos, acreditando facilitar a análise deste estudo.

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• Segundo Ponto: Passos Investigativos – abrangem quatro momentos: seleção,

ordenação, reconstrução e interpretação.

No primeiro passo, selecionamos os documentos a serem estudados dentre

todos que havia, elegendo o mais representativo para a história do país. Dentre os

documentos verbais, podemos citar: Memórias para a História da Capitania de São

Vicente de Frei Gaspar da Madre de Deus (1975); Na Capitania de São Vicente de

Washington Luís (1980) e Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa (1964).

Quanto aos não-verbais, citamos as pinturas: Porto das Naus (1881); Desembarque

de Martim Affonso de Souza (1881); Porto de Santos com trem cargueiro (1888);

Inundação da várzea do Carmo (1892); Fundação de São Vicente (1900); O

venerável José de Anchieta (1903); A Fundação da Vila de Santos em 1546 (1922);

entre outras.

Em segundo lugar, enumeramos os documentos selecionados (Diário da

Navegação e Quadros Históricos: Porto das Naus, Desembarque de Martim Affonso

de Souza, Fundação de São Vicente e Retrato de Martim Affonso de Souza)

seguindo uma ordem cronológica, uma vez que pretendemos traçar uma analogia

entre um texto verbal e um visual, numa perspectiva historiográfica.

Em seguida, buscamos reconstruir os acontecimentos históricos, baseando-

nos na interpretação crítica do processo dessas produções contextualizadas a partir

do clima de opinião delineado.

• Terceiro Ponto: Além dos princípios básicos e dos passos investigativos, há um

terceiro ponto de extrema relevância para a credibilidade da pesquisa: as fontes

primárias e secundárias.

Inicialmente, buscamos as fontes primárias visando à extração de elementos

que pudessem fornecer base para os passos investigativos. Posteriormente,

lançamos mão das fontes secundárias, uma vez que elas permitem verificar os

estudos já realizados sobre os documentos que temos em mãos.

• Quarto Ponto: As dimensões cognitiva e social também exploradas por Bastos e

Palma (2004, p. 12) são consideradas neste estudo. A dimensão cognitiva vista

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como “interna” inclui-se nos recortes espaço-temporais determinados, buscando

amplamente as linhas teóricas e/ou metodológicas que a orientaram. A segunda,

vista como “externa”, busca alcançar aspectos sociais com relação ao documento

em questão.

Entretanto, temos em mente que essas etapas metodológicas não são

“estagnadas”, visto que “[...] a análise das fontes supõe, de certa forma, a

consideração dos passos investigativos, e que todo esse conjunto, além das

dimensões cognitiva e social, se subordina aos princípios básicos.” (BASTOS;

PALMA, 2004, p. 12).

• Quinto Ponto: Critérios de Análise – Pretendemos estabelecer na análise do

corpus duas categorias: a) apresentação-organização do documento e b)

intenção dos produtores que, ao se utilizarem da língua portuguesa e de métodos

diferenciados em suas produções alusivas a São Vicente, estavam

explicitamente ou não criando uma nova maneira de se contar a história.

A partir dos critérios de análise, percebemos a necessidade de levar em conta

o conjunto dos passos metodológicos, uma vez que se faz fundamental para a

credibilidade deste estudo.

Contudo, deve ficar claro que, por ser um embrião da Pátria, São Vicente é o

referente deste estudo, pois por meio da Vila tomamos conhecimento do português

implantado no Brasil no século XVI. A língua portuguesa, por sua vez, transportada

de ultramar, deve ser vista como uma herança do povo português impregnada de

emoções, desejos, necessidades, visões de mundo, pontos de vista e questões

políticas.

Para darmos conta deste estudo, vale considerarmos alguns aspectos da

língua, podendo ser vista como o fio condutor entre o homem e a sociedade. Por

meio da língua, temos a compreensão do mundo e do homem que está vinculado a

um contexto histórico-político-social.

Nessa perspectiva, estruturamos esta pesquisa em quatro capítulos:

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Capítulo I – expomos os dados teóricos acerca da palavra História, demonstrando as

“convulsões” apresentadas ao longo dos séculos, resultando, por exemplo, na

disciplina Historiografia. Posteriormente, abordamos discussões sobre um possível

método para o fazer historiográfico, e o estabelecimento da HL2 como uma

disciplina.

Capítulo II – esboçamos um panorama das Fontes Históricas, visando a apresentar

os diversos métodos e técnicas utilizados pelos pesquisadores em contato com

vestígios e testemunhos do passado. Em seguida, apresentamos a metodologia a

ser seguida no estudo comparativo entre a linguagem verbal e a imagética.

Capítulo III – procedemos à organização das ocorrências relevantes do contexto

histórico-social-político-cultural do período enfocado; destacamos fatos importantes

(como a colonização do Brasil e a sua independência) verificando no corpus em

estudo resquícios do contexto de sua produção. Ao esboçarmos o panorama dos

principais acontecimentos em Portugal e Brasil, estamos observando os princípios

da contextualização.

Capítulo IV – fazemos a análise do corpus, com base nas categorias elencadas no

capítulo II. O Diário de Pero Lopes e as Pinturas Históricas de Benedito Calixto são

consideradas fontes primárias e serviram-nos de corpus para a verificação dos

possíveis meios de se contar a história da Vila de São Vicente. Como fontes

secundárias utilizamos obras que tratam desses autores.

Considerações Finais – apresentamos e discutimos os resultados obtidos no capítulo

quarto, além de retomarmos a pesquisa de modo geral.

Ao final, apresentamos a bibliografia, bem como o anexo no qual consta o Diário de

Pero Lopes de Sousa que compõe um dos elementos do corpus deste estudo.

2 Historiografia Lingüística: HL, daqui por diante.

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1 A HISTÓRIA EM CONVULSÕES

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O milagre do historiador consiste no fato de quetodas as pessoas que tocamos estão vivas. Trata-se de uma vitória sobre a morte.

F. Braudel

1.1 A História e o Homem

O ser humano não passa pela vida sem deixar marcas. Um livro, um texto, um

diário, um poema, uma gravura, um quadro, um objeto são traços da passagem do

homem. Todo vestígio do passado, seja de qualquer natureza, é um documento

histórico. Por isso, existe a história3.

O homem é um ser racional que se questiona sobre o passado na tentativa de

compreender o presente e fazer projeções para o futuro. Essa necessidade inerente

ao ser humano permite uma visão e compreensão da vida. Assim sendo, podemos

tomar a história como uma ciência que estuda a ação humana ao longo dos tempos.

Nessa perspectiva, convém expor brevemente uma retrospectiva dos diferentes

conceitos dados à História, a fim de proporcionar uma pluralidade de visões dessa

ciência desenvolvida ao longo dos séculos.

Primeiramente, vale lembrar dos nomes de alguns historiadores desde os

primeiros sinais do registro da palavra História: na Antiguidade - Heródoto,

Tucídides, Tito Lívio e Tácito; na Idade Média - Froissart, Fernão Lopes; na

Renascença - Machiavelli, João de Barros; nos séculos XVIII e XIX - Gibbon, Guizot,

Macauly, Alexandre Herculano, entre outros.

Posteriormente, pensando na palavra, temos sua origem na Grécia, usada

para nomear o “[...] desejo desinteressado de saber que ainda hoje em dia constitui

um dos elementos mais característicos da nossa civilização” (BESSELAAR, 1974, p.

3). Já na Antiguidade greco-romana, a “[...] história é moral por glorificar o homem,

tornando-o um herói, e pragmático, por projetar a utilidade que se poderá tirar dos

conhecimentos acerca dos fatos passados” (BESSELAAR, 1974, p. 4). Para os

3 A raiz da palavra grega “história” é weid- ou wid-, que se encontra também em videre (latim, = ‘ver’),wit (inglês, = ‘espírito’), wissen (alemão, = ‘saber’), idea (grego, = ‘aspecto, idéia’), etc. Cf. tambémem sânscrito (Rig) Veda (= ‘o saber dos hinos’) e (talvez) em celta, druida. (BESSELAAR, 1974, p. 3).

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romanos, a história apresenta-se não só com intenções morais, mas também com

intenções patrióticas, por fornecer bons exemplos da condução da pátria a serem

seguidos e maus exemplos a serem evitados. Na Idade Média, tem-se a história

como uma dimensão filosófica baseada na nova visão de mundo imposta pelo

cristianismo. No século XIX, a História é vista como pesquisa de documentos de

toda natureza como manuscritos, inscrições, monumentos, tudo o que é útil para a

história. No século XX, afloram também diferenças em relação às formas de se fazer

história. Temos a chamada Nova História, passando a vigorar uma tendência

historiográfica que se volta para a recuperação da historicidade sem deixar de lado a

dinâmica social que impulsiona os movimentos humanos. É nesse século que a

história passa por um período de convulsões, pois inúmeros estudiosos começam a

se questionar sobre o fazer histórico.

A partir dessa breve exposição da palavra História, não podemos deixar de

mencionar que, na verdade, os seus significados estão em constante mudança,

demonstrando assim a sua complexidade ao definirmos essa ciência. Cada corrente

de pensamento procura dar sua própria definição de História. Observe:

Desde os iluministas, com sua visão da História como progresso dahumanidade, passando pelos “positivistas”, ou historiadores da escolametódica, que visam a História como a tradução objetiva da verdade, dofato, até a Nova História, que prefere não oferecer uma explicação únicapara a questão, todo historiador se defronta com o problema inicial dedefinir seu próprio ofício. Essa questão passa muitas vezes pela definiçãoou não da História como ciência, o que oferece dificuldades, pois desde oséculo XIX, até hoje, a própria definição de ciência está em constantemutação. (SILVA; SILVA, 2005, p.182)

Muitos historiadores procuraram definir história, dentre eles podemos

destacar o inglês E.H. Carr em O que é História?. Para Carr, a definição de História

depende da visão que cada um tem da sua própria sociedade e do tempo em que

vive. Paul Veyne em sua obra Como se escreve a História questiona O que é

história?. Não apresenta uma definição, mas afirma que a História é narrativa, só

que com personagens reais (apud SILVA; SILVA, 2005).

Além de procurarem definir História, os historiadores se preocupam também

com conceitos atrelados a ela, como fato histórico, tempo e historicidade. Essa

preocupação se faz presente na Nova História, em pensadores como Jacques Le

Goff. Conforme Silva e Silva,

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Ele questiona, por exemplo, a historicidade, termo que diz respeito a umaqualidade que os homens de determinado período compartilham uns comos outros, uma função comum a todos que pertencem ao mesmo tempo.(SILVA; SILVA, 2005, p.183).

Podemos dizer que o conceito de historicidade existe para cada indivíduo a

seu tempo, pois não há sociedades sem história e a própria história tem uma

História, uma vez que o ato de contar, descrever e analisar o passado depende da

sociedade e do período de cada contador.

Nesse sentido, entendemos que a função da História é fornecer explicações

para as sociedades humanas, sobre suas origens e transformações pelas quais

estas passam. Evidentemente, essas explicações são feitas sempre sobre uma base

comum, o tempo.

Ao pensarmos na questão do tempo na História, é preciso mencionar o

pensamento de Marc Bloch, para quem a História é a ciência dos Homens no tempo.

Segundo Silva e Silva,

A concepção de História de Marc Bloch é uma das mais influentes doséculo XX. Ele foi fundador da Escola de Annales e valorizavaintensamente a interdisciplinaridade e a aproximação da História das outrasciências humanas, como a Economia e a Sociologia. Acreditava que aHistória não era uma ciência qualquer, pois tratava de narração edescrição, enquanto a maioria das ciências tratava de classificação eanálise. Mas isso não o impediu de defender a validade científica daHistória e de defini-la como a ciência do Homem no tempo. (SILVA; SILVA,2005, p.184)

A partir do pensamento de Bloch, entendemos que a História situa a

humanidade no tempo, dando referências às ações dos indivíduos. De acordo com

essa visão, entendemos que o próprio conceito de História é histórico, pois muda

com o passar do tempo, e como tal precisa ser constantemente revisto.

Posteriormente, temos como finalidade explicitar e aprofundar o conceito de

Historiografia. Para tanto, pretendemos focalizar o nascimento e a distinção entre a

História e a Historiografia.

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1.2 Nascimento da Historiografia

A história durante muito tempo foi vista como uma narração de ações fictícias

ou não. Essa história-relato vai reinar durante muito tempo; somente no século XX,

com a criação dos Annales, ela sofre mutações.

No século XX, surge uma nova maneira de se fazer história, vinculada à

recuperação da historicidade e da criticidade. Essa inovação, manifestada por meio

da intelectualidade, corresponde a três tendências na França: a história vista como

história-problema; a história em sua totalidade e a contribuição de outras ciências.

Sendo assim, surge, em 1920, o Movimento dos Annales, com uma nova

forma de se fazer história, correspondendo aos anseios da humanidade e

satisfazendo as exigências do homem. Esse movimento renova, portanto,

radicalmente o discurso histórico, uma vez que vai ao encontro do homem e da sua

complexidade em seu modo de sentir, pensar e agir.

A nova forma de se fazer história consiste na despreocupação com a

periodização, pois não se limita a um período histórico convencional. Na verdade, o

período era escolhido e localizava-se o problema; destinava-se assim a escrever

uma história buscando solucionar o problema e explicando o fenômeno histórico em

função do seu tempo. Nessa perspectiva, a HL institui-se como uma disciplina que

visa à interdisciplinaridade, visto que leva em consideração a colaboração de outras

disciplinas, por exemplo a Geografia, a Economia, a Sociologia, entre outras.

Porém, visando a discorrer, posteriormente, sobre a Historiografia Lingüística,

é preciso explicitar o Movimento dos Annales e a sua contribuição para a nova

perspectiva da ciência História.

Os fundadores do Movimento dos Annales foram Lucien Febvre e Marc Bloch,

considerados a primeira geração dos Annales. O primeiro, um especialista no século

XVI, apresentava um grande interesse pela geografia histórica. O segundo,

medievalista, tinha um compromisso menor que Febvre, embora sua dedicação à

Sociologia fosse maior.

Ao término da Primeira Guerra Mundial, Febvre idealizou uma revista

internacional dedicada à História Econômica. Tendo encontrado dificuldades, o

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projeto fora abandonado. Sendo assim, em 1928, Bloch projetou uma revista

francesa, originalmente intitulada Annales d´Histoire Économique et Sociale, tendo

Febvre e Bloch como editores. A revista foi planejada para ir além de uma simples

revista histórica, pois tinha como pretensão exercer uma liderança intelectual nos

campos da história social e econômica.

Conforme Bastos (2004), a segunda geração é representada por Braudel, que

tinha como meta articular o social, o político, o econômico e o cultural na maneira de

ver os fenômenos e de escrever a história. A terceira geração, na visão de Burke

(1997), foi a pioneira em incluir mulheres, após o ano de 1968. Essa geração foi a

mais aberta a idéias oriundas do exterior, provavelmente pelo fato de muitos dos

seus membros terem vivido em outros países, por exemplo, nos Estados Unidos da

América. De certa forma, a experiência de viver em outro país proporcionou a

tentativa de uma síntese entre a tradição dos Annales e as tendências intelectuais

americanas, como a psico-história, a nova história econômica, a história da cultura

popular, antropologia simbólica etc.

Após a breve exposição das três gerações dos Annales, é preciso discorrer

sobre a historiografia e a sua proximidade com a ciência História.

A historiografia permite, por meio do estudo daqueles que escreveram a

História antes de nós e do processo de como escreveram essas histórias, entender

os elementos comuns aos intelectuais de um mesmo período. Para Bourdé e Martin,

[...] a maior utilidade dessa disciplina é demonstrar, pela observação doshistoriadores passados, que todo historiador sofre pressões ideológicas,políticas e institucionais, comete erros e tem preconceitos. Além disso, aúnica forma de um historiador ser objetivo e isento é conhecendo otrabalho e os erros dos que vieram antes. (apud SILVA; SILVA, 2005,p.189)

Sendo assim, a historiografia é uma forma de analisar os mecanismos que

envolvem a produção do discurso dos historiadores, percebendo esses discursos em

relação ao tempo e à sociedade em que cada historiador está inserido.

Diante dessa visão, entendemos que o pesquisador da historiografia precisa

[...] interrogar as obras que consulta não apenas do ponto de vista doconteúdo, sobre o que elas dizem, mas também sobre quem as escreveu epor que foram escritas. Para aprender como pesquisar, a melhor forma é

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se perguntar como os outros pesquisaram, o que constitui umapreocupação historiográfica. (SILVA; SILVA, 2005, p.192)

Interessante destacar que muito antes dos Annales já era possível perceber

uma preocupação historiográfica, pois desde a Antiguidade, e durante a Idade

Média, diversos cronistas, historiadores e escritores de História em geral tinham a

preocupação de situar sua obra entre outras produções do gênero e compará-la com

a produção de seu tempo. Ou seja, já possuíam uma preocupação de cunho

historiográfico (cf. SILVA; SILVA, 2005).

Entretanto, se os estudos historiográficos são os estudos dos escritos, dos

métodos e das interpretações produzidas pela História, conforme exposto

anteriormente, então tal disciplina só existe mesmo a partir do século XX.

Segundo Silva e Silva (2005), o pioneiro nesses estudos foi o historiador

suíço Eduard Fueter em 1911. Desde então a disciplina tem evoluído bastante,

deixando de ser simplesmente uma lista bibliográfica e incorporando análises e

interpretações próprias.

Após as menções acima, percebemos que a concepção de história mudou

com os séculos, pois procurou atender às necessidades do homem de cada século.

Portanto, esta disciplina intitulada historiografia, vinculada à ciência História, pode

ser interpretada, num primeiro momento, como uma disciplina que visa a refletir

sobre a produção e a escrita da História.

Posteriormente à explanação da Historiografia em geral, é necessário

explicitarmos a Historiografia na França e a Historiografia no Brasil, a fim de

buscarmos as semelhanças e as diferenças desta nova disciplina nos diferentes

países.

1.2.1 Historiografia na França

No campo historiográfico, no século XX, a França foi o berço das grandes

produções intelectuais. A Nova História, como é conhecida, está associada à Revista

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dos Annales, pois o resultado das discussões, das idéias que permeavam o grupo

pertence à revista.

No início do século XX, mais precisamente nas décadas de 10 e 20, Lucien

Febvre e Marc Bloch mostraram-se descontentes com a forma de se fazer História.

Para os estudiosos, era necessária uma História que focalizasse o homem

amplamente e não fosse simplesmente uma mera descrição da sua maneira de

pensar, agir e sentir. Sendo assim, há uma amplitude nas possibilidades do fazer

historiográfico, da mesma maneira que se impõe a esse fazer a necessidade de ir

buscar junto a outras ciências os conceitos e os instrumentos que permitiriam ao

historiador ampliar sua visão do homem.

Burke (1997) coloca que Febvre e Bloch foram, também, os fundadores da

revista Annales, com o claro objetivo de fazer dela um instrumento para o

enriquecimento da história, por aproximação com ciências vizinhas. Nesse sentido,

notamos que a revista criada serviu como uma propagação da nova forma de se

fazer história. Certamente, a revista e suas obras pessoais demonstram

intencionalmente a diversidade do fazer historiográfico.

Podemos mencionar os objetivos traçados pela revista: a) substituição da

tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema; b) a história vista

em todas as atividades humanas; c) colaboração com outras disciplinas, como:

geografia, sociologia, psicologia, economia, lingüística, antropologia social. Notamos,

dessa forma, a busca da interdisciplinaridade, uma vez que a contribuição de outras

ciências, outras áreas, possibilita um conhecimento amplo sobre o documento em

estudo.

Reunidos em torno da revista, os historiadores Febvre e Bloch produziram

uma mudança no conhecimento histórico. Eles criaram uma Nouvelle Histoire, que

conseqüentemente rompeu com o que se denominava história tradicional.

Segundo Reis,

A Nouvelle Histoire, isto é, a história sob influência das ciências sociaisrealizou uma “revolução epistemológica”, quanto ao conceito de tempohistórico. Uma revolução no sentido amplo do termo, ou seja, umamudança substancial na forma de compreensão do tempo histórico. (REIS,1994, p. 9)

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Fica claro que a História Nova nasceu de uma revolta contra a história

positivista do século XIX. Com ela, temos o alargamento do campo do documento

histórico e uma nova concepção de tempo histórico.

A Nouvelle Histoire tem como fontes uma multiplicidade de documentos,

como textos escritos de toda espécie, documentos figurados, produtos de pesquisas

arqueológicas, documentos orais, entre outros.

A história vista como narrativa de povos e indivíduos livres, produtores de

eventos grandiosos, deixa de ser valorizada, passando a focar a análise, a pesquisa,

a teoria e o cálculo. Essa mudança de perspectiva, proposta pelas ciências sociais,

“obrigou” a história a ser outra e não aquela tradicional, por uma visão radical de sua

concepção de tempo histórico. Foi o que empreendeu a Nouvelle Histoire: a

construção de uma outra concepção da história e de seu tempo.

Na visão de Burke (1997), o movimento dos Annales por ser dividido em três

fases. A primeira, de 1920 a 1945, caracterizando-se como um movimento pequeno,

radical e subversivo, conduzindo uma guerra de guerrilhas contra a história

tradicional, a história política e a história dos eventos. Daí, convém compreendermos

a Historiografia como uma substituta da história tradicional. Essa primeira fase tem

como principais nomes Febvre e Bloch. Na segunda fase, surgida após a Segunda

Guerra Mundial, os rebeldes apoderaram-se do establishment histórico. Dominada

por Fernand Braudel, essa fase é a que mais se aproxima de uma “escola”, com

conceitos diferentes e novos métodos. A terceira fase, iniciada por volta de 1968, é

marcada pela fragmentação. Essa fase, intitulada de Nova História ou História das

Mentalidades, sofre considerável mudança de rumo. Nos estudos franceses há uma

abordagem quantitativa ou serial e, logo após, há um interesse em favor da micro-

história e da antropologia.

A partir das três fases expostas, faz-se necessário discorrer sobre as obras

dos seus principais representantes, esmiuçando a nova concepção de tempo

histórico introduzida pelos Annales.

Conforme Reis (1994), na obra de Febvre é perceptível a rejeição ríspida do

conceito de tempo histórico da história dominante em sua época, que ele chamou de

positivista, e a defesa, também agressiva, de uma nova compreensão desse

conceito. A história, para os positivistas, focava reis, datas e batalhas

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minuciosamente reconstituídos em uma narrativa exata e precisa. Percebemos que

o tempo histórico era visto como uma sucessão dos fatos, sendo preciso apenas

seguir o tempo cronológico. Essa visão positivista vai ser rejeitada por Febvre, uma

vez que a História deve ir além da simples descrição dos fatos. Febvre propõe

[...] um tempo reconstruído; contra a narrativa exata e precisa dos eventos,defenderá uma história-problema, que integra o evento único em umaordem conceitual, sem perder de vista a ordem cronológica. Datar comprecisão continua sendo primordial. Mas não basta: faltam o conceito, oproblema, as hipóteses, a interpretação, o sujeito do conhecimento. (apudREIS, 1994, p. 33)

Para Febvre (apud REIS, 1994), o tempo do historiador difere do tempo da

experiência histórica, ou seja, o historiador não realiza a constituição do fato que se

passou, mas reconstrói. Evidentemente, os fatos que o historiador representa não

são apreendidos diretamente, mas fabricados a partir de observações, fontes

numéricas, documentos, hipóteses etc.

Sendo assim, entendemos que o historiador deve partir do presente e, por

meio deste, conhecer o passado. Esse diálogo temporal, estabelecido pelo

historiador, entre presente e passado, permite a reconstrução dos acontecimentos,

deixando assim de se fazer como antes, isto é, partir do passado para legitimar o

presente e não para conhecer o passado.

Notamos, na relação presente e passado, a possibilidade de reconstrução do

acontecimento. Portanto, essa reconstrução distancia-se do objetivo dos

historiadores positivistas, pois eles se preocupavam com o resgate, a recuperação e

a reconstituição da narração do fato do passado. O historiador não tinha a pretensão

de problematizar, de construir hipóteses, de reabertura do passado e da releitura e

reexame de seus processos. Ele, simplesmente, reconstituía minuciosamente

produzindo assim uma descrição do fato.

Contra essa descrição minuciosa dos fatos, Febvre apresentou o seu projeto

de uma história-problema. Em seu projeto, evidenciou que o tempo da história-

problema tem um duplo sentido: teórico, que corresponde à problematização do

passado, ao invés da recuperação; e prático, conhecimento que permite a reabertura

do passado pretendendo informar a ação presente não pela sua legitimação, mas

pelo exercício da crítica do presente. Nesse caso, o tempo da história-problema

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nada mais é do que a aproximação e o distanciamento do tempo passado,

reconstruído, quando do tempo presente, vivido.

Em relação a Bloch, é preciso mencionar que, enquanto Febvre foi o último

dos historiadores tradicionais, Bloch foi o primeiro dos novos historiadores. Bloch

rompeu com o tempo histórico tradicional e acabou sendo influenciado pelas

ciências sociais.

A distinção entre Febvre e Bloch faz-se por meio da compreensão de tempo

histórico, pois, segundo Reis (1994), sob influência da sociologia durkheimiana,

Bloch tenderá a apagar da sua obra a presença do evento e pensar estruturalmente

o tempo vivido. Ao contrário de Febvre, que não foi do grande evento intelectual à

sua estrutura, mas analisou estruturas onde os eventos foram tratados como sinais

reveladores. Nesse sentido, Bloch fez um estudo objetivo dos homens em grupo,

retirando a ênfase das iniciativas individuais, da consciência de sujeitos atuantes.

Seu tempo, portanto, foi o do inconsciente de coletividades.

Ulterior às menções dos grandes nomes da primeira fase dos Annales, é

preciso discorrer sobre a segunda. Nesse caso, a figura de Fernand Braudel é a de

maior relevância para este estudo.

Ao darmos continuidade à concepção de tempo histórico, convém mencionar

que Fernand Braudel ocupa um lugar central, pois pode ser considerado o “fio

condutor”, por estabelecer a conexão entre as duas correntes anteriores – Febvre e

Bloch - e outras que o seguirão, sendo: história serial, história estrutural e história

factual.

A concepção de tempo histórico de Braudel é mais blochiana, pois

representa, para a história, uma adesão mais radical ao ponto de vista das ciências

sociais. Braudel radicalizará ainda mais essa adesão, mas sempre evitando cair na

redução do tempo histórico.

Conforme Burke (1997, p. 46), Braudel, em sua obra intitulada O

Mediterrâneo, dividiu-a em três partes e para cada uma delas apresentou e

exemplificou uma abordagem diferente do passado. Na primeira, expôs a história

“quase sem tempo” da relação entre o “homem” e o ambiente; a segunda, a história

mutante da estrutura econômica, social e política; e a terceira, a história dos

acontecimentos.

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Nesse sentido, detectamos que as contribuições de Braudel são valorosas,

pois foram responsáveis pela transformação das noções de tempo e espaço. Sendo

assim, o tempo para ele é dividido em tempo geográfico, tempo social e tempo

individual, não deixando de valorizar a necessidade da longa duração.

Tendo mencionado a segunda geração, é imprescindível tratarmos do terceiro

período do Annales, uma vez que os três contribuíram para a mudança no fazer

História, podendo ser interpretados como as convulsões da ciência História.

A terceira geração foi marcada pela redescoberta da história das

mentalidades, a tentativa de empregar métodos quantitativos na história cultural e o

retorno à política ou o ressurgimento da narrativa. Essa geração apresentou

diversidades na direção da história, como a história serial, a história estrutural e a

história factual.

Mendes (2004) evidencia que a história serial enfatiza a abordagem e a

exploração de conjunturas e ciclos econômicos e sociais. A história estrutural, por

sua vez, radicaliza a linguagem da longa duração, voltando-se para uma história

mais imóvel e sem os homens, desvalorizando o evento. Já a história factual

privilegia o grande evento intelectual, psicológico, político e biográfico, dando

abertura à estrutura da sociedade.

Enfim, notamos que as três principais gerações dos Annales, explicitadas

acima, delineiam o perfil e a consistência da “História Nova”. Evidentemente, o

Movimento dos Annales foi responsável por ampliar a ciência História.

Nessa perspectiva, é de nosso interesse focalizar a Historiografia no Brasil,

verificando os encontros e desencontros com a Historiografia Francesa.

1.2.2 Historiografia no Brasil

Ao tratarmos da historiografia no Brasil, não podemos deixar de mencionar

que durante um largo espaço de tempo, isto é, do século XVI ao XIX, não houve

praticamente nenhuma obra de história. Nesse período, as obras que poderiam ser

vistas como de história eram analisadas sempre nos capítulos das histórias de

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literatura, as quais tinham, no fundo, um pouco de tudo, de obra literária, de história,

de antropologia, de filosofia etc. Arruda e Tengarrinha (1999) afirmam que

[...] é impensável o surgimento de obras historiográficas sem a anteriorrealização de obras históricas por historiadores de profissão, ou não.Nestes termos, num largo espaço de tempo que vai do século XVI ao XIX,identificado à condição colonial do Brasil, praticamente não há obras dehistória que atendam aos requisitos mínimos para merecerem estacatalogação. Por isso mesmo, as obras que poderiam ser entendidas comode história, e que também são obras literárias como soe acontecer comtoda produção histórica, foram analisadas sempre nos capítulos dashistórias da literatura [...] (ARRUDA; TENGARRINHA, 1999, p.17)

Segundo Lapa (1981), até a década de 20 do século XX, o conhecimento

histórico e a historiografia brasileira eram os mesmos do século XIX, ou seja,

guardavam as mesmas limitações tradicionais, não levando em consideração sequer

o conhecimento do progresso das Ciências Humanas, nem mesmo os estudos

históricos em outros países. Podemos citar a figura de Capistrano de Abreu, autor

que se preocupava em estar sincronizado com o pensamento histórico estrangeiro;

no entanto, toda sua leitura e assimilação de teorias não fizeram com que ele as

conseguisse aplicar da maneira desejada em seus trabalhos.

Ainda na visão de Lapa (1981), nesse período, as duas primeiras décadas

assistiram à continuidade de um conhecimento histórico caracterizado por: a) revisão

fatual descritiva, numa concepção epistemológica que procurava o fato histórico do

passado, tal como ele se deu (história de acontecimento); b) ausência de uma

contribuição por parte das demais Ciências Sociais que ainda não se haviam

desenvolvido no Brasil; c) em decorrência da limitação anterior, a história que

predominava tradicionalmente atingia as áreas política e administrativa, a biografia

(genealogia) direcionava-se aos heróis e estadistas chefes de governo e de modo

artesanal, geralmente, era reacionária; d) os temas que recebiam melhor tratamento

científico continuavam sendo os de período colonial, cujos estudos eram, de modo

geral, sobre o Império e a República.

Segundo Lapa (1981, p. 80), a partir de então, percebe-se que não havia

obras que renovassem as técnicas de investigação. As fontes e os temas eram

sempre os mesmos. O autodidatismo imperava, ficando o trabalho mais sistemático

a cargo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e dos diferentes Institutos

Históricos dos Estados.

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A historiografia brasileira surgiu no momento da Independência do Brasil e,

comprometida com a questão nacional, chegou à sua primeira construção ideológica

abrangente com a idealização do Império brasileiro como forma política da

integração nacional.

Parte da geração que viveu entre a tradição do Império e o advento incerto da

República não se contentou mais com as antigas fórmulas políticas nem com as

anteriores versões da historiografia. Com o advento da República, ao mesmo tempo

em que se davam as lutas entre os interesses de várias agremiações na criação do

Estado Novo, surgiu a necessidade de se compreender o que estava acontecendo.

Sendo assim, artigos de jornais, revistas, depoimentos, manifestos, livros de

história, biografias e autobiografias tentaram explicar de imediato os novos rumos do

país. Constituíram-se correntes de opiniões diferentes: dos militantes, dos

republicanos, dos monarquistas, dos católicos etc. Toda essa produção atestou o

forte vínculo político dos escritores historiográficos. Dessa forma, podemos dizer que

o surgimento da historiografia brasileira foi determinado pelos vários elementos

ocorridos na queda do Império.

A Historiografia teve como país de origem a França, instituída como método

interdisciplinar. O grande desafio para sua consolidação consistiu na interação de

outras áreas de conhecimento que tratam diretamente do homem, entre elas:

Sociologia, Antropologia etc.

No Brasil, seu credenciamento como disciplina é datado de 1994,

distinguindo-se assim da França, que tem seu campo definido como ciência há mais

de duas décadas, 1970.

Arruda diz:

A segunda metade dos anos 80 e, especialmente os anos 90, assistem aorejuvenescimento dos estudos historiográficos no Brasil. Não apenas pelareformulação da abordagem historiográfica, por uma nova conceituação dosentido da análise das obras históricas, mas pela entrada em cena de umanova geração de estudiosos formados nos anos 70 e que começam aatingir a maturidade intelectual. (ARRUDA; TENGARRINHA, 1999, p. 27)

Segundo Arruda e Tengarrinha (1999), o livro mais emblemático da

historiografia lingüística no Brasil foi escrito por José Roberto do Amaral Lapa, a

Historiografia Brasileira Contemporânea: a História em Questão. Em 1964, é

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publicado História e Historiografia: Brasil Pós-64, consolidando as análises iniciadas

no volume anterior de Amaral e abrindo um novo leque de possibilidades,

relacionadas com o intenso desenvolvimento da pesquisa histórica no Brasil.

A Historiografia Lingüística é uma disciplina emergente no âmbito da

Lingüística. Porém, é mister ressaltar que há uma relação intrínseca entre História e

Lingüística4, sendo a primeira compreendida como uma ciência que vai além da

listagem de datas e fatos; e a segunda, como uma ciência destinada ao estudo da

linguagem.

Lapa (1981, p. 18) afirma, em sua obra Historiografia Brasileira

Contemporânea: a História em Questão, que

[...] a História aparece aqui não só como a própria realidade em si, mastambém como o registro dentro dessa mesma realidade, isto é, a suamemorização [...] Assim, para irmos desde já nos aproximando das nossaspropostas, podemos reconhecer, por outro lado, na realidade histórica,constituída como um movimento histórico, o objeto do conhecimentohistórico. Podemos dizer, portanto, que a sua existência – a do objeto –independem, na sua “pureza existencial”, do historiador o conhecimentoque ele produz sobre aquele objeto. Não é o conhecimento histórico queproduz o objeto, mas apenas consegue dar-lhe uma certa representaçãodentro de regras, métodos e leis teóricas assumidas pelo historiador,agente produtor do conhecimento e, é claro, dentro da própria realidade. Oconhecimento é o registro inteligente que o historiador procura fazer paracompreender aquela realidade. A Historiografia é justamente oconhecimento crítico dessa representação e do processo que adeterminou.

Para, ainda mais, explicitarmos a distinção entre História e Historiografia,

podemos afirmar, conforme Lapa (1981), que uma obra de História em si não se

configura em Historiografia, mas sim como um objeto da Historiografia, enquanto

que o estudo dessa obra já se insere como historiográfico.

Convém mencionarmos que a Historiografia Lingüística não deve ser

confundida com a História da Lingüística e nem com a História das Idéias

Lingüísticas. Na verdade, distinguem-se pelo tratamento que é dado ao objeto

língua. O historiógrafo possui autonomia, optando por diversas linhas de pesquisa

para desenvolver seu estudo.

4 A Lingüística “[...] auxiliada pelo cientificismo que iluminava os grandes estudiosos do século XIX –especialmente Franz Bopp, Irmãos Grimm e Max Müller – passou a ser compreendida como ciência,já que seus fatos poderiam ser descritos, analisáveis e comprovados.” (FÁVERO; MOLINA, 2004, p.132).

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Na visão de Lapa (1981), a Historiografia deve arrogar a si o próprio

pensamento histórico, que é o seu objeto, isto é, não simplesmente o estudo da

maneira de escrever o que costumamos chamar de História, mas sua própria

recriação, com toda a carga de responsabilidades que essa tarefa implica.

A HL não pode ser vista como uma “crônica”, ou seja, listas de datas, nomes,

títulos e eventos ligados às línguas e à linguagem. A atividade historiográfica requer

seleção, ordenação, reconstrução e interpretação dos dados relevantes para o

quadro de reflexão que o historiógrafo constrói. Não se deve, portanto, fazer a

inclusão de quaisquer fatos passados, só por serem passados, ou, ainda, fixar-se

nos acontecimentos relevantes de um passado coalhado de grandes

personalidades, mas deve-se colocar a observação sobre os acontecimentos do

cotidiano, dos seres humanos sem qualquer proeminência, das mentalidades, dos

grandes movimentos sem sujeito – movimentos de massa, classes sociais, clima de

opinião em que se insere o documento a ser analisado (Cf. BASTOS, 2004).

Sendo assim, podemos dizer que a HL se apresenta, conforme as

perspectivas apontadas por Konrad Koerner (1996), como uma maneira de

reescritura de fatos da história da língua, por meio de princípios.

No Brasil, podemos citar os estudos historiográficos realizados pelas Profª Drª

Dieli Vesaro Palma e Profª Drª Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos, líderes do

Grupo de Pesquisa de Historiografia da Língua Portuguesa (GPeHLP – IP-PUC/SP);

o Prof.Dr. José Marcelo Luna de Freitas, da UNIVALI; a Profª Drª Maria Cristina

Salles Altman, da USP; a Profª Drª Nancy dos Santos Casagrande (NEHL – IP-

PUC/SP).

Apresentados os cânones da historiografia brasileira, daremos atenção ao

conceito de Historiografia Lingüística, buscando explicitar suas limitações, métodos e

perspectivas.

1.3 Estudo Historiográfico: limitações, métodos e perspectivas

Conforme explicitado em linhas anteriores, a Historiografia diferencia-se da

História, justamente por questionar, problematizar a narrativa dos acontecimentos e,

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além disso, relacioná-los ao clima de opinião visando à reconstrução dos

acontecimentos. Essa evidente distinção leva-nos a expor alguns pesquisadores da

HL e como se processa uma atividade historiográfica.

Segundo Koerner (1996), nos últimos anos, inúmeros pesquisadores

começaram a se interessar pelas questões de método e de epistemologia da HL.

Nos anos 70, vários pesquisadores esforçaram-se em propor diretrizes para

uma pesquisa historiográfica (Hymes 1974, Simone 1975, Koerner 1976, entre

outros). A primeira discussão a esse respeito ocorreu no final da década de 70, com

a obra de Kuhn, intitulada The Structure of Scientific Revolutions (1962), pois

iniciara-se o impacto da ciência em geral. Nas ciências sociais, o livro de Kuhn

ganhou êxito por apresentar o conceito de “paradigma” das chamadas disciplinas

“intelectuais”. Segundo Casagrande (2005), Kuhn, ao tratar da questão relativa à

mudança de paradigmas na ciência, acabou por suscitar a comunidade científica

ligada à lingüística a buscar seus paradigmas.

Nos anos 80, muitos estudiosos ofereceram linhas de condutas

historiográficas, levando o debate para o domínio específico da abordagem histórica

em lingüística (ex. Bahner 1981, Bokadorova 1986, Christmann 1987). Entretanto,

nenhuma base comum foi estabelecida de como proceder na HL.

Segundo Koerner, o historiógrafo deve procurar

[...] diretrizes e modelos a imitar para além do seu próprio campo. Éimportante compreender, entretanto, que devido à natureza particular doassunto sob investigação, nomeadamente, teorias da linguagem (e teoriasda lingüística), sua aplicação e sua evolução através do tempo, oshistoriadores da lingüística devem insistir em buscar seu próprio quadro detrabalho, sua própria metodologia e epistemologia, e não esperar quemétodos e insights de outros campos sejam diretamente aplicados ao seuobjetivo de investigação [...] (KOERNER, 1996, p. 46)

Notamos uma autonomia do historiógrafo a partir do momento em que

necessita buscar meios para realizar um estudo no âmbito historiográfico. Para a

análise de um documento, é necessário um conhecimento enciclopédico para que a

compreensão não ocorra erroneamente. Sendo assim, ainda na visão de Koerner

(1996), o historiógrafo lingüista deve familiarizar-se com mais de um tipo de

transmissão das teorias e da prática lingüística e de uma mudança através do

tempo.

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Na concepção de Altman (1998, p. 25), a Historiografia Lingüística deve ser

entendida como uma disciplina que tem como principais objetivos descrever e

explicar como se produziu e se desenvolveu o conhecimento lingüístico em um

determinado contexto social e cultural, através do tempo. Evitando-se, assim,

interpretar fatos passados com interesses e olhares atuais.

Para Altman,

A atividade historiográfica que ambiciona compreender os movimentos emhistória da ciência, presume, inevitavelmente, uma atividade de seleção,ordenação, reconstrução e interpretação dos fatos relevantes [...] para oquadro que reconstrói o historiógrafo. (ALTMAN, 1998, p. 24)

Nesse sentido, o fazer historiográfico deve ser visto como uma atividade

crítica que visa à recuperação e à reconstrução de determinado acontecimento à luz

do clima de opinião.

Quanto ao clima de opinião, ressalta-se a sua importância para o estudo do

historiógrafo, por estar conectado ao movimento social e intelectual de um

determinado período a ser analisado. No que compete ao clima de opinião, temos

que

[...] se argumentos são aceitos ou não, depende menos da lógica queveiculam do que do clima de opinião em que são estudados. O que torna aargumentação de Dante, ou a definição de São Tomás sem sentido paranós – não é a má lógica ou a falta de inteligência, mas o clima de opiniãomedieval [...] (BECKER, 1971[1932]:5, apud KOERNER, 1996, p. 51).

Sob esse prisma, notamos a sua relevância para o estudo do documento. Em

suma, a busca pelo clima de opinião possibilita ao historiógrafo inserir seu olhar no

clima intelectual do período e, conseqüentemente, compreender o porquê do

paradigma de um determinado campo científico.

O clima de opinião é uma das “ferramentas” para a análise verbal de

documentos, e também não-verbal. A inserção do olhar do estudioso nas fontes

deve corresponder ao clima intelectual do período em que o documento foi criado. A

partir dessa visão, atemo-nos ao diário e às telas levando em consideração o

contexto de cada época.

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Swiggers (1922) relata que a Historiografia Lingüística é uma disciplina cujos

objetivos principais constituem em descrever e explicar como o conhecimento

lingüístico se produziu e se desenvolveu, através do tempo, num determinado

contexto.

Ademais, é imprescindível, para dar credibilidade à pesquisa no campo da HL

e evitar o uso exorbitante de terminologias, que conduz a uma variedade de

problemas para a compreensão de teorias do passado, adotar os princípios traçados

por Koerner: contextualização, imanência e adequação.

O “princípio da contextualização” trata do clima intelectual da época e do

contexto de produção dos documentos.

Koerner afirma que

O primeiro princípio para a apresentação de teorias lingüísticas propostasem períodos mais antigos diz respeito ao estabelecimento do “clima deopinião” geral do período em que as teorias se desenvolveram. As idéiaslingüísticas nunca se desenvolveram independentemente de outrascorrentes intelectuais do período; o ‘espírito da época’ [Zeitgeist] sempredeixou suas marcas no pensamento lingüístico. Às vezes, a influência dasituação sócio-econômica, e mesmo política, deve igualmente ser levadaem conta. (KOERNER, 1996, p. 60)

O “princípio da imanência” consiste no esforço em estabelecer um

entendimento completo tanto histórico quanto crítico, talvez até filológico, do texto

lingüístico em questão, estabelecendo um quadro geral da teoria e da terminologia

usada no texto que devem ser definidos internamente, e não em referência à

doutrina lingüística atual.

Ainda, para Koerner,

O próximo passo consiste no esforço de estabelecer um entendimentocompleto, tanto histórico quanto crítico, possivelmente mesmo filológico, dotexto lingüístico em questão. É desnecessário dizer que o historiógrafodeve afastar-se tanto quanto possível de sua formação lingüística individuale dos comprometimentos da Lingüística que lhes são contemporâneos. Oquadro geral da teoria sob investigação, assim como a terminologia usadano texto, devem ser definidos internamente, e não em referência à doutrinalingüística moderna. (KOERNER, 1996, p. 60)

Quanto ao “princípio de adequação” pode-se dizer que somente depois que

os dois primeiros, contextualização e imanência, foram concisamente seguidos é

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que o historiógrafo pode aventurar-se a introduzir aproximações entre o vocabulário

técnico e o quadro de pesquisa apresentado no trabalho em questão.

Koerner expõe que

[...] pode o historiógrafo aventurar-se a introduzir, ainda que muitocuidadosamente e colocando seu procedimento de forma explícita,aproximações modernas do vocabulário técnico e um quadro conceptual detrabalho que permita uma melhor apreciação de um determinado trabalho,conceito, ou teoria. (KOERNER, 1996, p. 60)

Evidentemente, como já exposto, o cumprimento desses três princípios

resulta na solução de problemas, como o uso abusivo de uma terminologia técnica e

possíveis distorções.

E, quanto a isso, acrescenta-nos Bastos (2004, p. 80):

Considerando esses princípios arrolados como fios condutores do trabalhohistoriográfico, resta-nos afirmar que o historiógrafo deve detectar, analisare explicar as mudanças que houve, durante o percurso a ser investigado,sem que se deixe envolver pela novidade, pela originalidade e pelacriatividade, usualmente feitas pelas gerações posteriores que lhe sãoimediatamente subseqüentes.

É sem dúvida basilar a concepção de que a HL ainda não apresenta um

método plenamente instituído. Levando em conta essa acepção, em outro momento,

Koerner (1996) apresenta alguns modelos para o historiador da lingüística,

objetivando clarear os pontos nos quais houve mudanças significativas no

desenvolvimento da ciência da linguagem e, acima de tudo, poder identificar os

vários aspectos de que o historiógrafo deve estar avisado e que deve tentar inserir

em seu estudo analítico.

O primeiro modelo é visto como uma descrição tradicional da história da

ciência. Para Koerner (1996), esse modelo, intitulado progressão-por-acumulação,

consiste em uma progressão não linear, cuja linha é reforçada com o tempo.

O segundo modelo, popular x incomum, mantém-se “[...] estritamente

monodimensional na visão do desenvolvimento da ciência” (CASAGRANDE, 2005,

p. 34); em oposição ao primeiro modelo. No popular X incomum, temos a idéia de

que mais de uma linha de pensamento pode prevalecer em qualquer período da

lingüística e de outras disciplinas.

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Conforme Casagrande (2005, p. 34), a oposição entre os modelos

[...] não dá conta de contabilizar a mudança das tendências periféricas paraas do “foco de atração”, havendo necessidade, então, de se projetar umterceiro modelo, cuja denominação é pêndulo-balanço.

O modelo pêndulo-balanço, terceiro modelo, na visão de Koerner (1996),

parece ser o mais adequado uma vez observado que, no desenvolvimento da

lingüística, por exemplo, há uma alternância contínua entre abordagens

contrastantes ao assunto (por exemplo, empirismo em oposição ao racionalismo).

O quarto modelo, descontinuidade vs. continuidade, corresponde às

tendências que permanecem mais tempo do que outras, e parece que, às vezes,

uma mudança geral de perspectivas e direções pode difamar uma determinada

tradição.

O modelo de progresso, quinto, pode ser usado para levar em consideração o

tipo de desenvolvimento do modelo balanço do pêndulo, enquanto sugere, ao

mesmo tempo, o retorno a uma ênfase em particular numa abordagem que

evidentemente não será igual, pois terá mudado devido aos avanços no campo.

Como se demonstrou, os modelos apresentados não levam em consideração

fatores além dos intralingüísticos. No caso, o historiógrafo lingüista tem de analisar

os fatores extralingüísticos. Esses são necessários, pois correspondem aos fatores

políticos, sociais, econômicos e ideológicos.

Apesar da aparente complexidade, podemos dizer que a HL não possui ainda

um método plenamente instituído, restando ao historiógrafo buscar seus próprios

caminhos levando sempre em consideração a contribuição de outras disciplinas.

Conforme De Clerq e Swiggers (1991, apud CASAGRANDE, 2005, p. 36),

essa busca de caminhos requer motivações que, ao longo da história da HL, seriam

fundamentadas em cinco tipos:

• como sujeito enciclopédico, como “ramo” de uma enciclopédia do saber;

• como ilustração do progresso de conhecimento;

• com o objetivo de defender, difundir ou promover um modelo lingüístico

particular em detrimento de outros;

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• como descrição e explicação de conteúdos de doutrina, inserida em um

contexto histórico e científico;

• como testemunha exterior sobre uma realidade social, “colorida” pelas

concepções e práticas lingüísticas.

A partir das motivações, o estudioso da historiografia deve buscar um método

que possibilite a ele exercer a prática historiográfica. Diante disso, este estudo

buscará o confronto do diário de Pero Lopes de Sousa e os quadros históricos de

Benedito Calixto, levando em consideração: o conhecimento do contexto das

produções, a descoberta dos seus sentidos próprios, a localização dos modos de

transmissão, suas destinações e suas sucessivas interpretações. Segundo o estágio

do conhecimento do campo historiográfico do século XXI, essa metodologia passa a

ser considerada relevante para este estudo, a partir do momento em que o

historiógrafo tem livre arbítrio para buscar os métodos condizentes com o seu corpus

em análise.

No caso de nossa pesquisa, os fatores de motivação estão relacionados à

descrição dos recursos utilizados para se contar a história da Vila de São Vicente -

primeira do Brasil - e à análise comparativa desses recursos. Sendo assim,

pretendemos contribuir com a HL, ampliando as possibilidades de estudos

historiográficos realizados no Brasil. Para tanto, buscaremos reconstruir o clima de

opinião do século XVI, XIX-XX em Portugal e no Brasil. Posteriormente, buscaremos

nas fontes primárias os recursos usados pelos autores (Pero Lopes de Sousa e

Benedito Calixto) e lançaremos mão das fontes secundárias, procurando

compreender as diversas maneiras e o valor ao se contar a história da Vila de São

Vicente.

Para a análise dos textos não-verbais, seguiremos uma metodologia

diferenciada do documento escrito. Na tentativa de buscar uma aproximação entre

ambos – diário e quadros históricos – daremos atenção, na linguagem verbal, aos

adjetivos e, na linguagem não-verbal, às cores. Para isso, faz-se necessário buscar

uma metodologia para os documentos visuais, buscando a sua compreensão no

âmbito historiográfico.

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Apresentados os conceitos de História e Historiografia, passaremos à

explanação das fontes históricas e da metodologia a ser seguida no estudo

comparativo entre a linguagem verbal e a imagética.

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2 O MAPEAR FONTES HISTÓRICAS

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Fontes têm Historicidade: documentos que“falavam” com os historiadores positivistas talvezhoje apenas murmurem, enquanto outros quedormiam silenciosos querem se fazer ouvir

C. B. Pinsky

2.1 Estudo das Fontes

A História, conforme capítulo anterior, tem sua origem na Grécia. Vista como

o estudo do passado, deriva, portanto, de uma busca da compreensão do presente e

projeções do futuro. Porém, vista como uma disciplina acadêmica, é herdeira indireta

do gênero literário narrativo.

No século XIX, ao surgir como disciplina, a História continuava a ser um

gênero literário, mas apresentava “[...] um cunho moralista e teleológico que a

distanciava dos modelos originais greco-romanos.” (FUNARI, 2005, p. 82).

É nesse contexto que surge a História moderna, como parte da Filologia, o

estudo da língua. Durante muitos séculos, a língua culta foi o latim e o estudo da

gramática latina constituía a base do conhecimento. Línguas faladas, por exemplo, o

português e o espanhol, foram submetidas aos conceitos da gramática latina.

Segundo Funari (2005), a Filologia surgiu como parte do movimento iluminista

e racionalista, representando uma mudança de paradigma, ao deslocar a gramática

latina do centro do conhecimento. Diversas línguas passaram a ser estudadas,

relacionavam-nas, de modo a buscar as inter-relações e suas possíveis origens

comuns.

Os primeiros historiadores foram filólogos, buscavam conhecer o que

realmente aconteceu e para isso precisavam conhecer as fontes, ou melhor, os

documentos escritos em sua língua original. A busca por esse conhecimento

resultou em uma verdadeira “revolução epistemológica”. Evidentemente, a distinção

de um documento falso de um documento verdadeiro se dá por meio de um

conhecimento aprofundado da língua utilizada. Sendo assim, os documentos

escritos passaram a ser vistos como sinônimos de História, daí a ligação entre a

História e a Filologia.

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Funari afirma que, se voltarmos aos historiadores antigos, Heródoto,

Tucídides ou Salústio, notaremos que, para eles,

[...] a História se faz com testemunhos, com objetos, com paisagens, nãonecessariamente com documentos escritos, consultados apenasmarginalmente e citados de forma indireta, reportada. (FUNARI, 2005,p.84)

Nesse caso, os antigos faziam uso das fontes materiais, chamadas hoje de

fontes arqueológicas. Partindo da concepção de que a História se faz com

documentos escritos, explicitado em linhas anteriores, documentos antigos

começaram a ser publicados. Ao mesmo tempo, deu-se início à preservação de

documentos de arquivos e à criação de instituições arquivistas públicas.

Ainda no século XIX, como resultado da Filologia e da História, a cultura

material deixa de ter uma visão apenas artística para tornar-se uma fonte histórica.

Tudo que era coletado como objeto de colecionador tornou-se uma fonte de

informação, capaz de trazer novos dados, indisponíveis nos documentos escritos.

Dessa forma, as fontes arqueológicas passaram a integrar a pesquisa

histórica e os historiadores não as deixaram de considerar. Para Funari (2005, p.93),

essas fontes encontraram um terreno fértil em diversas correntes historiográficas,

preocupadas com a multiplicidade de cotidianos.

Funari evidencia:

Brinquedos de crianças, artefatos femininos, edifícios escolares, tudopermite ampliar o olhar do historiador sobre o passado. O estudo dascamadas subalternas muito tem se ampliado e, para isso, as fontesarqueológicas contribuem de forma notável, com seu caráter anônimo einvoluntário. Cultura espiritual e material revelam-se parte de um mesmotodo, como discursos a serem interpretados pelo historiador. (FUNARI,2005, p. 93)

Para o uso das fontes arqueológicas, os historiadores devem buscar

ferramentas interpretativas, como uma pesquisa histórica. É preciso estar a par das

teorias sociais e buscar o contexto, uma vez que as fontes tornam-se fatos históricos

a partir do momento em que são contextualizadas.

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Em seguida, é necessário estudar as informações já registradas. No caso de

uma sociedade sem escrita, o historiador deve buscar o que se já estudou sobre

aquela sociedade. Por exemplo: os índios do período do descobrimento do Brasil

foram descritos pelos portugueses; as poucas tribos indígenas atuais foram descritas

por etnólogos de nossa época.

Sendo assim, as fontes históricas devem ser estudadas detalhadamente para

permitir ao historiador a formulação de hipóteses tanto sobre a época em que

determinado documento foi produzido quanto sobre a época posterior de sua

produção.

Depois dessa explanação a respeito da importância das fontes arqueológicas

nos estudos hodiernos, passaremos a focalizar as fontes visuais e a metodologia a

ser seguida.

2.2 Princípios Metodológicos

Atualmente, o homem vive num mundo repleto de imagens e sons, seja pela

encenação ficcional ou pelo registro documental, por meio de aparatos tecnológicos

cada vez mais sofisticados.

Sendo assim, iremos discorrer sobre as fontes visuais, a fim de buscarmos

uma metodologia para analisarmos o corpus não-verbal deste estudo, isto é, as

pinturas de Benedito Calixto. Sabemos, a princípio, que metodologicamente essas

fontes são vistas como fontes primárias novas e desafiadoras para o estudioso.

A partir dessa visão, Napolitano (2005) afirma que, por um lado, as fontes

visuais são consideradas por alguns testemunhos quase diretos e objetivos da

história, de alto poder ilustrativo, sobretudo quando possuem um caráter

estritamente documental, qual seja, o registro direto de eventos e personagens

históricos. Por outro lado, as fontes audiovisuais são percebidas muitas vezes sob o

estigma da subjetividade absoluta, impressões estéticas de fatos sociais objetivos

que lhes são exteriores.

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Diante dessa complexidade, no que tange à valorização das fontes visuais,

nossa perspectiva aponta para a necessidade de articular a linguagem técnico-

estética das fontes visuais e as representações da realidade histórica ou social nelas

contidas (ou seja, o conteúdo narrativo). Tal abordagem deve ser cuidadosa, pois os

códigos de funcionamento da linguagem visual não são tão acessíveis ao leigo

quanto parecem. Muitas vezes, exigem certa formação técnica.

Sendo assim, convém considerar a especificidade técnica da linguagem, os

suportes tecnológicos e os gêneros narrativos que se insinuam nos documentos

visuais (no nosso caso, nas imagens de Benedito Calixto), sob pena de enviesar a

análise.

A História visa a buscar o passado por meio de pistas e testemunhos

fornecidos pelos documentos de época, aqueles produzidos dentro da periodização

estudada pelo pesquisador, o qual se debruça nas fontes dotado de uma técnica de

crítica documental.

Burguiere expõe:

Mediante a crítica externa [...] os historiadores conseguiram expor asfalsificações, datar os documentos verídicos. Pela crítica interna, o exameda coerência interna e a comparação com documentos contemporâneos, odocumento adquire um sentido para o historiador [...] Esta concepção émuito restrita porque privilegia os documentos escritos de caráter narrativotomado em sua singularidade. Com a história serial e com a incorporaçãode outras linguagens documentais (imagem, filme, fotografia, estatísticas,etc.) este tipo de concepção documental foi questionada. Por outro lado,com o tempo o historiador tomou consciência que o documento é ummonumento, dotado de seu próprio sentido, a que não pode recorrer semprecaução. Cumpre então restituí-lo ao contexto, aprender o propósitoconsciente ou inconsciente mediante o qual foi produzido diante de outrostextos e localizar seus modos de transmissão, seu destino, suassucessivas interpretações. (O. Dumolin, “Documento”, em BURGUIERE,1993, p. 244, apud NAPOLITANO, 2005, p. 239)

Nesse sentido, entendemos que o conceito de documento rejeita a concepção

de que o documento fala por si. Portanto, as armadilhas de um texto de linguagem

imagética podem ser os mesmos de um texto de linguagem verbal. Mas, não

devemos negar que a maior armadilha está na ilusão da objetividade do documento

ou da subjetividade do documento artístico-cultural.

Roger Chartier afirma:

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A imagem é, para o historiador, ao mesmo tempo, transmissora demensagens enunciadas claramente, que visam seduzir e convencer, etradutora, a despeito de si mesma, de convenções partilhadas quepermitem que ela seja compreendida, recebida e decifrável. (CHARTIER,em BURGUIERE, 1993, p. 407 apud NAPOLITANO, 2005, p. 238)

Dessa forma, o observador de um determinado quadro histórico parece ter

acesso imediato à cena histórica, mas deixa de pensar sobre as convenções e

linguagens da “pintura histórica”, gênero específico que floresceu no século XIX e

que possuía regras próprias de composição, para além da representação

“verdadeira” dos fatos históricos retratados.

Segundo Napolitano (2005), na perspectiva da moderna prática

historiográfica, nenhum documento fala por si só, ainda que as fontes primárias

constituam a alma do oficio do historiador. Assim, as fontes audiovisuais e musicais

são, como qualquer outro tipo de documento histórico, portadoras de uma tensão

entre evidência e representação.

As fontes, sem deixar de ser uma representação de uma construção social,

são evidências de um evento ocorrido, sendo o estabelecimento de um determinado

dado apenas o começo de um processo de interpretação com muitas variáveis.

Na visão de Napolitano:

Ao contrário da tradição metódica e positivista, que acreditava naneutralidade e na transparência das fontes escritas, desde que“verdadeiras”, estabelecidas sua autoria e datação, a Nova História e seusherdeiros apontam para o caráter representacional das fontes, mesmo astradicionais fontes escritas, que são documentos e monumentoscarregados de intencionalidade e parcialidade. (NAPOLITANO, 2005, p.240)

Evidentemente, cada tipo de fonte possui características peculiares, conforme

a sua linguagem constituinte.

Portanto, ao analisarmos uma fonte, acreditamos que todo o documento deva

ser examinado a partir de uma crítica sistemática, independente de ser um

documento de natureza audiovisual ou não, que possa dar conta de seu

estabelecimento como fonte histórica (datação, autoria, condições de elaboração,

coerência histórica, do seu “testemunho”) e do seu conteúdo (potencial informativo

sobre um evento ou um processo histórico). Novas técnicas lingüísticas e novas

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técnicas quantitativas e seriais permitiram a ampliação do potencial informativo das

fontes históricas e, conseqüentemente, a ampliação da tipologia das fontes.

Atualmente, os historiadores passaram a enfatizar a análise das representações

simbólicas contidas nas fontes, sendo assim a linguagem deve ser, em si mesma,

objeto da reflexão.

No caso de um documento audiovisual, sua linguagem não-escrita foi vista,

inicialmente, como “objetiva” e “neutra”. Nesse sentido, a fonte é percebida como um

registro quase mecânico da realidade externa, testemunho fiel dos fatos e processos

históricos, conjunto de significados que iam direto ao referente (a “realidade”),

parecendo prescindir de análise de significantes e de códigos de linguagem. Sendo

assim, o historiador contemporâneo precisa levar em consideração, ao analisar a

fonte, que a linguagem não-escrita é uma linguagem como outra qualquer, que

precisa ser analisada, decodificada, interpretada e criticada.

Em outras palavras, no caso das fontes audiovisuais, os “conteúdos”, as

linguagens e as tecnologias de registro interferirão no potencial informativo do

documento. Portanto, ao abordarmos uma fonte, devemos levar em consideração

essas características, uma vez que não são limites para o historiador, mas o ponto

de partida para o trabalho de crítica historiográfica.

Em nosso trabalho não se trata, na verdade, de decidir qual a fonte mais

“verdadeira”, mas ampliar a abordagem dos processos e fenômenos sociais

estudados pelo historiador.

Tendo abordado os princípios metodológicos, em geral, é importante que

façamos, então, um estudo a respeito da relação linguagem verbal e não-verbal.

2.3 Palavras: Contorno de Pinturas

A busca da relação entre palavra e pintura possibilitou o nascimento deste

estudo que visa a discorrer sobre as proximidades destas linguagens, imagética e

verbal, no campo historiográfico.

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A palavra arte vem do latim ars, está na raiz do verbo articular, que denota a

ação de juntar, unir, ligar as partes de um todo. Conforme Bosi (2004, p. 13),

A arte é uma produção; logo, supõe trabalho. Movimento que arranca o serdo não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o cosmos do caos.Techné chamavam-na os gregos: modo exato de perfazer uma tarefa,antecedente de todas as técnicas dos nossos dias.

Convém mencionarmos que recebiam o nome de arte não só a música, a

poesia e o teatro, mas também os ofícios de artesanato, a cerâmica, a tecelagem

etc. A distinção entre a arte ligada à comoção da alma e aos ofícios tinha sentido

econômico-social.

Ainda, segundo Bosi (2004, p.14),

As artes liberales eram exercidas por homens livres; já os ofícios, artesserviles, relegavam-se a gente de condição humilde. E os termos artista eartífice (de artifex: o que faz a arte) mantêm hoje a milenar oposição declasse entre o trabalho intelectual e o trabalho manual.

Após discorrermos sobre a origem da palavra arte, é preciso expor sobre a

intencionalidade do artista ao criar uma obra de arte. A intencionalidade faz-se

presente nas produções artísticas e vai se modelando à medida que o criador

consegue, devido ao domínio das técnicas apreendidas, o seu próprio modo de

formar que pode alcançar o nível de estilo pessoal.

Na visão de Bosi,

A escolha de uma palavra, e não de outra, de um traço, e não de outro,responde ora a determinações do estilo da época (a face cultural do gosto),da ideologia, da moda, ora as necessidades profundas de raiz afetiva ou auma percepção original da realidade. (BOSI, 2004, p. 25)

Conforme Bourdieu (2005, p. 259),

[...] a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor se éconhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de artepor espectadores dotados da disposição e da competência estéticasnecessárias para a conhecer e reconhecer como tal, a ciência das obrastem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também aprodução do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor daobra.

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A produção de um texto literário permite ao leitor, intuitivamente, saber que na

sua criação se deu um ato de percepção ou de memória de um determinado

momento importante para o escritor. Porém, para a formalização verbal desse

momento, ocorrem imagens, sentimentos, idéias. Em relação à produção artística,

notamos que há um conhecimento peculiar: a representação.

Bosi afirma que

Uma das mais antigas tradições teóricas filia-se à representação. É oconceito de arte como mímesis. O termo comparece em vários textos dafilosofia grega. O seu significado preciso depende, naturalmente, doscontextos. Pode aludir à mera imitação de traços e gestos humanos, talcomo ocorria nos mimos e na pantomima, representações de caráterjocoso e satírico. Pode também significar a reprodução seletiva do queparece mais característico em uma pessoa ou coisa, e ser, portanto, umaoperação que revele aspectos típicos da vida social; neste sentido, o artistaescolheria os perfis relevantes do “original” antes de figurá-los [...] (BOSI,2004, p. 28)

Segundo Teixeira (1996), o discurso sobre o objeto estético só ganha

prestígio no século XX, quando a arte se distancia do conceito de imitação da

realidade. Torna-se necessário convencer o público do valor estético de uma obra, e

isso se faz seja por meio de teorizações formuladas pelos próprios artistas, seja por

meio da profissionalização da crítica, que conquista espaço e é investida da

autoridade do especialista, com jargão próprio e colunas fixas nos meios

jornalísticos.

No caso desta pesquisa, trabalharemos com as pinturas históricas de

Benedito Calixto, a fim de aproximar a linguagem imagética da linguagem verbal do

diário de Pero Lopes de Sousa. Evidentemente, as obras de Calixto, assim como

qualquer obra de arte, só ganham sentido para aquele que conhece o código.

Bordieu diz:

A obra de arte só ganha sentido e interesse para o conhecedor do códigosegundo o qual a obra é codificada. [...] O espectador desprovido do códigoespecífico sente-se submergir, ‘afogado’ diante do que lhe aparece comoum caos de sons e ritmos, de cores e de linhas, sem rima nem razão.(BOURDIEU, 1979, p. II, apud TEIXEIRA, 1996, p. 20)

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Na relação palavra e pintura, é possível dizer que assim como no texto o

estudioso deve encontrar, nas orações encadeadas em textos, as marcas e o

verdadeiro valor das palavras, na pintura o espectador de um quadro precisa saber

que as tonalidades e nuances provocam um efeito diferenciado na sensibilidade do

olhar.

Hoje em dia, há modernas técnicas de restauração que descobrem o material

utilizado em um determinado quadro, assim como a sua idade e etapas de sua

criação. Porém, a leitura é ainda um olhar humano que busca um significado para

cada pincelada.

A análise de um texto assemelha-se à análise de um quadro, a partir do

momento em que consideramos o texto como um todo de sentido. Para analisar um

texto, precisamos desconstruí-lo, a fim de construir um percurso interpretativo. A

análise de um quadro requer a divisão em partes do todo que o compõe. Analisar

um quadro, considerando suas qualidades internas em correlação com o seu

contexto histórico, social e econômico, é essencial para uma análise eficaz.

Conforme Teixeira (1996, p. 49),

[...] a limitação da análise estética a algumas fórmulas reiterativas (“massasde tintas”, “gestualidade vigorosa”, “diluição de formas” etc.), que nãovalem pela interpretação de seu efeito de ruptura ou de continuidade emconfronto com a produção passada e contemporânea, associada a umaincorporação de certos parâmetros sociais que reduzem o termo valor aoseu significado de valor de troca, isso sim – repetindo: a redução da análiseinterna e da análise externa – é que impõe limites as categoriasdepreendidas.

Essa observação leva-nos ao encontro dos princípios metodológicos traçados

por Napolitano (2005) ao expor que é mister levar em consideração os “conteúdos”,

as linguagens e as tecnologias de registro, uma vez que interferem no potencial

informativo do documento. Sendo assim, a análise deve restituir o contexto,

aprender o propósito consciente ou inconsciente mediante o qual foi produzido

diante de outros textos e localizar seus modos de transmissão, seu destino, suas

sucessivas interpretações.

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3 O PANORAMA PORTUGAL E BRASIL da Colonização ao Modernismo

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Este será Martinho que de MarteO nome tem com as obras derivado,Tanto em armas ilustre em toda parteQuanto em conselho sábio e bem cuidado.

Camões

Levando em consideração o princípio da contextualização de Koerner (1996),

ou seja, a apresentação do clima de opinião ou espírito da época, apresentaremos o

panorama histórico-sócio-cultural do século XVI em Portugal e no Brasil.

A Europa foi berço de inúmeras modificações da metade do século XV até o

fim do século XVI. As mudanças presentes no século anterior se solidificaram e,

conseqüentemente, provocaram uma reorganização da sociedade intitulada de

Renascimento.

No século XV, temos ares de um novo olhar do homem medieval, o

Humanismo preparava o mundo ocidental para o Renascimento, introduzindo

mudanças no modo de ver o mundo do homem medieval. Esse homem que até

então estava ligado ao Espiritual passou a se preocupar com o Terreno. Para o

Humanismo, o ser humano era responsável pelo seu destino, sua vida presente e

suas escolhas diante da vida.

Os eruditos começaram a se interessar pela cultura da Antiguidade que até

então não tivera relevância na Idade Média. Desse modo, o homem quinhentista

tomou consciência do processo de evolução do qual fazia parte, projetando uma

nova realidade a partir dos ensinamentos deixados.

A mudança de perspectiva do homem quinhentista, teocentrismo para

antropocentrismo, desencadeada pelo Renascimento se deu em consonância com a

abertura do espaço geográfico, marcado pela descoberta de diferentes rotas para a

Ásia e a imensidão das Américas.

As grandes navegações se tornaram possíveis graças ao aperfeiçoamento da

bússola e à invenção da caravela. Esse espírito de progresso e de liberdade foi

disseminado por muitas outras descobertas científicas, dentre elas, os tipos móveis

metálicos que possuíam durabilidade e agilizavam a impressão de textos com que

Johannes Gutenberg (1400-1468) imprimiu a Bíblia, dando início à civilização do

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livro5; a noção de heliocentrismo – teoria segundo a qual o Sol era o centro do nosso

sistema planetário –, desenvolvida por Nicolau Copérnico (1473-1543); a

contestação da escolástica medieval, feita por Giordano Bruno (1548-1600); a

Reforma Protestante, na qual Martinho Lutero (1483-1546) recomendou que a

religião se mantivesse fiel à fé individual baseada nas normas da Bíblia, desafiando

a teoria e a prática das indulgências papais, defendidas pela Igreja de Roma.

Não podemos deixar de mencionar que, no século XVI, ocorreu também a

emergência das línguas vernáculas, recebendo formalização gramatical.

Interessante notar que, no século XV, as gramáticas eram vistas como

sistematização das línguas clássicas. Anos depois, temos a gramatização de várias

línguas, ampliando o leque de línguas sistematizadas6.

A gramatização das línguas vernáculas tem como base as gramáticas das

línguas clássicas, uma vez que já eram existentes desde a Antiguidade. Desse

modo, a herança clássica foi basilar para a construção das inúmeras línguas que

estavam sendo gramaticalizadas.

Para Auroux,

A gramatização7 dos vernáculos europeus é contemporânea da exploraçãodo planeta (África, América, Ásia) e da colonização progressiva de territóriosimensos pelo Ocidente. Isto explica a gramatização simultânea das línguasdo mundo, cujo resultado é particularmente impressionante para a Américado Sul e Central. (AUROUX, 2001, p. 52)

Sendo assim, percebemos que a Europa, no século XVI, foi o berço da

eclosão das gramáticas, fato importante para o papel que exerceriam nas gramáticas

posteriores.

Paiva (1988, p. 10) afirma que

5 A invenção da imprensa no século XV facilitou a reprodução das obras, em maior quantidade e commais rapidez, tornando-as acessíveis a um maior número de leitores.6 Nos século XVI e XVII, temos o surgimento de dicionários: “[...] o de Jerônimo Cardoso, DictionariumLatino-Lusitanicum et vice-versa Lusitanico-Latino, em 1570; o de Agostinho Barbosa, DictionariumLusitanico-Latinum, aparecido em Braga em 1611; e o Thesouro da Língua Portuguesa, do jesuítaBento Pereira, saído em Lisboa em 1647.” (SPINA, 1987, p.14).7 “Por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever e a instrumentar umalíngua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalingüístico: agramática e o dicionário.” (AUROUX, 2001, p. 65)

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A iniciação aos conhecimentos elementares da Gramática, nos EstudosGerais, consistia em aprender a ler e a escrever em latim; quanto à línguaportuguesa, embora convertida em língua oficial desde o reinado deD.Dinis, continuava a ser aprendida espontânea e naturalmente, fora dosbancos escolares, através da comunicação usual do dia-a-dia, assimpermanecendo até o século XVI.

Mais adiante,

A Gramática era, pois, elemento imprescindível no elenco das sete artesliberais que compunham, nos cursos universitários, o Trivium – Gramática,Dialética e Retórica – e o Quadrivium – Música, Aritmética, Geometria eAstronomia. Sua importância, porém, cresceu tanto, que ela acabou porassumir prioridade nos cursos escolares conventuais da Idade Média,convertendo-se praticamente em “arte por excelência” [...] (PAIVA, 1988, p.10)

Segundo Fávero (2001, p. 61), a Gramática, a Retórica, a Poética, a Lógica, a

Geometria, a Aritmética e a Astronomia são artes. Essas sete artes (as Artes

Liberales = dignas dos homens livres) constituíram, durante séculos, o currículo

escolar. Nas escolas medievais eram ensinadas especialmente a gramática, a

retórica e a dialética, o trivium.

O Renascimento foi um período em que pintores, escultores, arquitetos e

navegadores sentiam o mesmo anseio de aventura, o desejo de ampliar

conhecimentos e obter novas soluções. As figuras de Cristóvão Colombo e Pedro

Álvares Cabral comprovam o desejo pela aventura, resultando na descoberta de

mundos novos e surpreendentes.

Houve também a consolidação das potências, provocando disputas territoriais

e a consciência da identidade nacional. O homem enfim se livrava das correntes do

clero e da opressão do feudalismo medieval. Sendo assim, foi à América buscar

prata, ouro, pedras preciosas etc., trazendo riqueza e glória. Indubitavelmente, essa

busca ocasionou a expansão marítima incentivando os avanços técnicos e

científicos, contribuindo para o alargamento dos horizontes geográficos e culturais.

Situado de frente para o Atlântico, entre o oceano e o território espanhol,

Portugal foi obrigado a buscar seu desenvolvimento maior por meio da navegação

marítima como infra-estrutura do seu comércio.

Numa breve digressão, no século XIII, encontravam-se bem desenvolvidas as

atividades pesqueiras no norte do país. Ao romper o século XIV, D.Dinis incentivou

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decididamente a atividade comercial e marítima, chegando a estabelecer um acordo

com Manuel Pessagno, no sentido de ampliar as ligações com o mar do Norte e

iniciar a exploração do litoral africano.

Ressalta-se que, afinal, para Portugal não havia alternativa para o

desenvolvimento do seu comércio a não ser o grande oceano. Isso porque o

mediterrâneo estava inteiramente dominado pelos italianos, que monopolizavam o

comércio das especiarias com os árabes. Sendo assim, qualquer tentativa de

penetração nessa área estaria evidentemente condenada ao fracasso.

A saída para o avanço do comércio marítimo lusitano era o Atlântico, a

começar pela exploração da costa africana mais próxima. Exatamente em frente de

Gibraltar se encontravam várias cidadelas árabes de alguma importância comercial,

entre as quais se sobressaía a cidade de Ceuta, alvo da primeira expedição

portuguesa em 1415. Ela teve a composição de uma verdadeira “cruzada”, pois dela

participaram a monarquia, a nobreza, o clero e os comerciantes. Todos à busca de

interesses e objetivos particulares. Na verdade, esse início da expansão ultramarina

transcorreu como simples desdobramento da “guerra de conquista” anterior em

território peninsular. Dessa forma, sendo a expedição fruto de uma conjugação de

interesses cruzadistas e mercantilistas, interesses opostos evidentemente do ponto

de vista comercial, resultou em completo fracasso.

Em 1417, um dos filhos de D.João I, que participara da conquista de Ceuta,

fundou a Escola de Sagres, para funcionar como centro coordenador e executor das

futuras expedições. Esse acontecimento acabou mudando radicalmente o rumo da

expansão ultramarina, pois as expedições marítimas orientaram-se cada vez mais

para o Atlântico, avançando, ao longo da costa ocidental africana, a nova área de

exploração comercial.

Antes de Portugal, o continente americano foi descoberto por Cristóvão

Colombo, navegador genovês contratado pela Espanha, que chegou à ilha de

Guanaani, em 1492, e regressou, afirmando ter atingido as Índias.

O rei de Portugal, D.João II, não se deixou perturbar pela descoberta de

Colombo. Afinal, o povo português tinha experiência acumulada durante quase um

século, ao passo que a Espanha tentava seus primeiros passos no oceano. Com

uma boa assessoria, o rei de Portugal pôde avaliar a conquista de Colombo e pôde

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fazer deduções para a estruturação de um plano estratégico destinado a resguardar

as posições portuguesas e assegurar a vitória final da expansão ultramarina lusitana

nos fins do século XV.

Ao reino de Portugal interessava que a Espanha, sua concorrente,

permanecesse voltada para o Atlântico norte-ocidental, deixando livre a passagem

portuguesa para o Oriente, através do Atlântico sul-oriental, ao longo da costa

africana. Nessa perspectiva, D. João II propôs à Espanha um acordo bilateral para

uma divisão antecipada das terras descobertas ou a descobrir no Atlântico, a fim de

se evitarem possíveis problemas futuros.

O papa Alexandre VI, mediador do acordo, propôs, pela Bula Inter Coetera,

de 1493, como linha divisória dos domínios americanos dos reinos ibéricos, um

meridiano traçado a 100 léguas a oeste da última das ilhas de Cabo Verde. A

proposta papal, contudo, foi recusada por D.João II, que propôs aos reis católicos

um acordo direto. Sendo assim, em 1494 foi assinado o tratado definitivo, em

Tordesilhas, determinando que fosse feita a divisão das terras americanas entre as

partes por um meridiano traçado a 370 léguas a oeste de Cabo Verde.

No ano de 1498, o esforço quase secular de expansão ultramarina por parte

de Portugal atingiu seu clímax. A esquadra de Vasco da Gama chegou a Calecute

na Índia. Esse acontecimento iria traçar definitivamente a nova rota marítima para o

Oriente, via Cabo da Esperança, e ao mesmo tempo estava resolvido o grave

problema do abastecimento dos mercados europeus.

Após o êxito da viagem de Vasco da Gama, em 1500 uma nova frota foi

organizada e enviada às Índias, objetivando iniciar a montagem do comércio

português em Calecute. No caminho para o Oriente, na altura de Cabo Verde, a

esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral desviou-se de sua rota normal, para

ocidente, e veio “descobrir”, política e oficialmente, as terras do Brasil, em 22 de abril

de 1500.

Sendo assim, tem-se a posse do Atlântico Sul, demonstrando o sucesso da

estratégia política e marítima de D.João II. Com esse sucesso, o grande movimento

ultramarino lusitano encontrou seu pleno coroamento, pois Portugal passou a triunfar

no Oriente e consolidar suas posições no Atlântico Sul, dentro das perspectivas

definidas pelo Tratado de 1494. Notadamente, podemos dizer que a expansão

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marítima portuguesa rasgou os antigos horizontes, uma vez que, pelas novas

aberturas, toda a Europa iria projetar-se para o Atlântico. Essa projeção, a partir do

século XVI, veio substituir o velho Mediterrâneo por um novo espaço, que seria o

palco da construção e do desenvolvimento do mundo moderno.

Ao tratarmos do descobrimento do Brasil, é preciso descartar a hipótese do

“acaso”, pois, conforme apresentado em linhas anteriores, é evidente que a

expansão ultramarina portuguesa resultou de um processo sistematizado por metas

e interesses definidos.

Sem sombra de dúvida, o desvio da rota de Cabral, portanto, o

descobrimento, foi intencional. Basta situarmos o acontecimento na estratégia

política e marítima portuguesa do fim do século XV, definida desde o Tratado de

Tordesilhas, no qual o Atlântico Sul surgia como espaço para o comércio luso no

Oriente. Mas, podemos também comprovar essa tese mediante a consulta aos

documentos, como a Carta de Pero Vaz de Caminha a D.Manuel, na qual muito

pouca surpresa manifestou pelo “achamento” da nova terra; a Carta do Mestre João

ao Rei de Portugal, e a deste aos reis católicos; o “Esmeraldo de Situ Orbis” de

Duarte Pacheco Pereira, publicado só em 1506, e que relatava a possível viagem

que ele teria feito à América em 1498.

Não obstante, não podemos deixar de mencionar a existência de instruções

secretas de D.Manuel a Cabral, no sentido de estender sua viagem ao Ocidente,

instruções que permaneceram desconhecidas pelo fato da “política dos arcanos”, a

política tradicional de segredo dos reis portugueses.

No que toca à prioridade, no seu sentido cronológico restrito, coube aos

espanhóis Alonso de Ojeda e Vicente Yañez Pinzón, que passaram beirando o litoral

norte do Brasil em janeiro de 1500, já de volta à Europa. Entretanto, o momento

cronológico da chegada quase nada importa, visto que as terras americanas já

estavam repartidas legalmente desde 1494. Nessa altura, e por essa mesma razão,

descobrir significa tomar posse. Sendo assim, em relação ao Brasil, foi feita por

Cabral a descoberta, em abril de 1500. Podemos dizer que o sentido da questão

prioridade repousa não sobre o valor cronológico, mas sobre o aspecto de

verdadeira disputa do Atlântico que a expansão marítima luso-espanhola assumiu

nos fins do século XV.

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Dentro do quadro de interesses comerciais que orientaram o movimento

ultramarino português, o Oriente ocupou o primeiro lugar nesse período, sendo o

Brasil, inicialmente, relegado a uma posição absolutamente secundária, o que

explica o abandono quase completo em que foi deixada a “colônia” brasileira durante

trinta anos.

Para um Estado acima de tudo voltado para o máximo desenvolvimento

mercantilista, o Brasil nada oferecia de imediato, em confronto com rico mercado das

especiarias. Assim, por não atender aos interesses imediatos dos portugueses,

dentro das exigências de sua prática mercantilista, conduzida ainda apenas pela

distribuição de mercadorias, o Brasil permaneceu ligado ao Reino de Portugal por

meio de poucas expedições ocasionais, que tinham como objetivo reconhecer

amplamente o litoral, ou de explorar o pau-brasil, madeira com possibilidade de

comercialização, ou ainda para afugentar os franceses, atraídos também pela

mesma mercadoria.

Nesse sentido, faz-se necessário comentar sobre as expedições de Gaspar

de Lemos, em 1501, e Gonçalo Coelho, em 1503, comandantes respectivamente

das primeiras expedições de reconhecimento e exploração. Desta última, organizada

pelo comerciante Fernão de Noronha a quem o rei arrendara a “colônia” para a

exploração do pau-brasil em troca da defesa da costa, participou Américo Vespúcio.

Com o crescimento da presença estrangeira, de franceses principalmente, no

litoral brasileiro, exigiu-se um esquema de policiamento mais ostensivo e eficiente.

Foram enviadas, portanto, duas expedições de Cristóvão Jacques, em 1516 e 1526,

para combater os corsários franceses. Entretanto, esse recurso não chegou a bons

resultados. O litoral continuava ameaçado, impondo-se um esforço muito maior para

garantir a sua posse. Nesse caso, impunha-se sua ocupação, ou seja, sua

colonização, exigindo assim uma mudança radical na política oficial do Estado, bem

como no montante dos investimentos por parte da burguesia lusitana.

Nesse sentido, tem-se efetivamente a “colonização” do território brasileiro

com a expedição de Martim Afonso de Souza, em 1530, com o princípio de sua

ocupação e povoamento, em São Vicente, em 1532.

Por volta do ano de 1530, as condições da economia portuguesa estavam

longe de ser favoráveis, visto que a crescente concorrência no Oriente levava ao

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declínio do comércio lusitano e à queda sensível dos lucros de suas frotas e feitorias

indianas. A situação tendia ao agravamento por força de pressões políticas que

Portugal e Espanha sofriam na Europa da parte dos demais Estados, especialmente

Inglaterra e França, descontentes com a partilha exclusiva do continente americano

entre as duas potências ibéricas.

Com o temor de perder as terras americanas, ou parte delas pelo menos,

diante da má situação do reino, Portugal decidiu colonizar o Brasil, na perspectiva

direta de uma exploração mais eficiente.

As relações da monarquia com a nobreza tradicional, com a Igreja e com o

povo, representado superiormente pela burguesia mercantil, evidenciaram um

controle rígido burocrático, jurídico, fiscal e militar, que o rei exercia sobre toda a

nação.

Podemos dizer que essa organização política, fortemente centralizada em

torno de um Estado absoluto, seria transferida para a Colônia na montagem da

administração colonial. Delegando poderes, titulando seus funcionários, a monarquia

portuguesa tentaria organizar um aparelho administrativo na Colônia, depositário do

poder do Estado metropolitano e servidor eficiente dos seus interesses. Seu

funcionamento, porém, foi bastante influenciado pelas condições geofísicas da

Colônia, especialmente a extraordinária extensão e dispersão de seu território Brasil.

Sendo assim, a opção do governo português pelo regime das donatarias,

como uma fórmula de solução para o problema do emparelhamento político-

administrativo da colônia americana, foi determinada por um conjunto de fatores.

Primeiramente, Portugal já tinha experimentado o sistema nas suas ilhas do

Atlântico, com relativo sucesso. Em segundo lugar, por volta de 1530, o Estado

português não se achava em boa situação financeira, ao contrário, estava

absolutamente incapacitado para atender ao investimento demandado pela

colonização do Brasil.

D. João III, o “Colonizador”, mostrava-se desejoso de “recompensar” seus

fidalgos pelos serviços prestados em África ou nas Índias, titulando-os de “Capitães-

mores” e “Governadores”, concedendo-lhes altos privilégios, poderes e as terras do

Brasil, para que pudessem aproveitar da melhor forma possível.

Fávero (2000, p. 87) afirma que,

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Com o objetivo de tornar possível o povoamento, a defesa e a propagaçãoda fé e diante das dificuldades de arcar com as despesas da colonização,D.João III criou, em 1532, o regime de capitanias hereditárias e, em 1548,o Governo Geral, para apoiá-las.

De conformidade com as leis portuguesas, as capitanias foram construídas

com base em dois estatutos jurídicos tradicionais: a Carta de Doação e o Foral. A

primeira assinalou a doação efetiva por parte do governo. Segundo Merea (1921),

Nas cartas de doação diz-se que el-rei faz mercê de um certo número deléguas da terra e da sua jurisdição civil e criminal. Acrescenta-se que pelamesma carta é dado poder ao donatário para tomar posse da terra, dassuas rendas e de todas as coisas compreendidas na doação. O objeto dadoação é geralmente designado pelos nomes de ‘capitania’ e ‘governança’e o donatário, pelo título de ‘governador’ ou ‘capitão’ (apud TEIXEIRA;DANTAS, 1979, p. 63)

Em relação aos Forais, neles vinham minuciosamente registrados os direitos

e obrigações dos donatários, que recebiam as capitanias não como “proprietários” e

sim como “administradores”:

Holanda afirma que

O governador hereditário não podia lesar os interesses e direitos dapopulação. Os impostos eram pagos em espécie. À Coroa pertencia oquinto do ouro e das pedras preciosas, o monopólio das drogas eespeciarias. Ao governador cabiam, além da redízima das rendas daCoroa, a vintena das pescarias e do pau-brasil, a propriedade dasmarinhas e moendas d’água e os direitos da barcagem. Os direitospolíticos dos colonos estavam salvaguardados, equiparados aos que osportugueses possuíam na metrópole, embora as represálias municipaisfossem restringidas pela intervenção da autoridade do donatário.(HOLANDA, 1968, p. 93)

Entre 1534 e 1536, D.João III dividiu o território brasileiro em quatorze

grandes faixas de terra, desde o litoral até a linha de Tordesilhas, lotes de largura

variável entre 10 e 100 léguas, doando-as para 12 capitães-donatários, para que as

administrassem, distribuindo as terras em sesmarias aos colonos, erigindo vilas e

povoações, aplicando a justiça honestamente, providenciando tudo para o melhor e

mais rápido desenvolvimento da capitania, e nunca se esquecendo das obrigações

religiosas.

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Na distribuição primitiva das terras, ocorreram notáveis desigualdades no que

concerne ao número de léguas.

Conforme a apuração realizada por Varnhagen8 (1975, p. 147): Duarte

Coelho, doze milhares; Pero Lopes, sete milhares e meio; Francisco Pereira, sete

milhares; Figueiredo, quase o mesmo; Tourinho, seis milhares e meio; Barros e

Cunha, quase o mesmo cada um; Vasco Fernandes, cinco milhares e meio; Martim

Afonso, pouco mais de dois e meio; Pero de Góis, menos de dois; Fernando Álvares,

menos de milhar e meio; Antonio Cardoso, pouco mais de seiscentas léguas.

A partir da apuração, percebemos que a capitania de Martim Afonso, à qual

provavelmente o doador pensou fazer parte maior que as outras, foi uma das

menores.

Dessa forma, as donatarias constituíram um regime politicamente

descentralizado, fundado em unidades autônomas, desligadas e estanques,

responsáveis diretas, na origem, pelo forte caráter compartimental da colonização

portuguesa do Brasil. Numa perspectiva econômica, as capitanias funcionavam nos

quadros da colonização como grandes empresas tendo à frente o donatário como

primeiro empresário, diretamente responsável pelo investimento inicial, pela direção

e incentivo à produção dos colonos em suas terras.

Percebemos que os resultados gerais obtidos pelas capitanias hereditárias

não chegaram a ser animadores, pois, devido aos encargos que eram altíssimos e a

dificuldades variadas que se faziam presentes, os donatários não conseguiam êxito.

Um a um foram sendo tragados pelo infortúnio e pelo desânimo. Com pouquíssimas

exceções, duas capitanias obtiveram êxito: Pernambuco e São Vicente.

A escassez de recursos financeiros, os problemas de defesa interna e

externa, as imensas dificuldades de comunicação, acabaram por liquidar a maioria

das donatarias, que, aos poucos, foram sendo assumidas pela Coroa, compradas

aos herdeiros, ou simplesmente confiscadas por abandono. Até que, finalmente, foi

8 Segundo Varnhagen (1975, p. 146), as maiores e mais caprichosas desigualdades se encontram,quando hoje vamos sobre o terreno apurar até onde chegavam, pelo sertão a dentro, os direitossenhoriais concedidos; e medimos aproximadamente os milhares de léguas quadradas que, segundoa correspondente carta de doação, tocava a cada um destes Estados, geralmente com maiorextensão de território do que a mãe-pátria; extremando de loeste, pela meridiana da raia queestabelecemos, na suposição de se contarem as léguas como de dezesseis graus e dois terços.

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decretada a extinção do regime das capitanias hereditárias pelo governo de Pombal,

em 1759.

Convém mencionarmos que, numa visão mais aprofundada, o que abalou o

regime das donatarias não foi a “má sorte” de seus capitães, ou mesmo sua

incapacidade, mas a própria incompatibilidade do regime, excessivamente

descentralizado, em relação ao quadro de interesses gerais da colonização, tomada

como empresa mercantilista de exploração colonial. Assim, era inevitável a exigência

e a participação direta do Estado para apoiar a iniciativa particular. Sendo assim,

impôs-se um centro de unidade política, administrativa e militar na Colônia.

Logo após a chegada dos portugueses à Ilha de São Vicente, Martim Afonso

adotou medidas necessárias para que fosse possível formar um sistema político no

povoado, criando o Pelourinho, a Casa de Câmara e Cadeia.

Tanto os governadores das capitanias, como os simples colonos foram

obrigados a lutar contra a hostilidade do meio físico e contra a agressividade dos

gentios, luta de que dependia sua própria sobrevivência, derivando perigosamente

para um comportamento francamente contrário à autoridade real.

Não podemos esquecer, também, que, por volta de 1545, são descobertas as

minas da rica região do Potosi (na atual Bolívia), aumentando assim a cobiça

européia pelas terras da América, exigindo um sistema de defesa mais eficaz.

Coincidência ou não, quando se confirmaram as notícias, alguns anos mais

tarde, da opulência das minas bolivianas, em Portugal, já se encontrava em fase

final de elaboração o Regimento que instituía o Governo Geral no Brasil.

Em dezembro de 1548, D. João III entregou a Tomé de Souza o Regimento e,

em março do ano seguinte, Tomé de Souza chegou à capitania da Bahia de Todos

os Santos, já adquirida pela Coroa para nela ser edificada a sede central do novo

Governo. Além da construção da cidade, havia outras tarefas a cumprir: a) tratar da

pacificação indígena na região; b) estabelecer os devidos contatos com donatários e

colonos; c) prestar o auxílio necessário à lavoura; d) instituir os órgãos auxiliares da

administração central: a Ouvidoria, responsável pela aplicação da justiça em toda a

Colônia, e a Provedoria, responsável por todos os negócios da Fazenda Real.

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Tomé de Souza deu início à tarefa centralizadora da Colônia, encontrando

resistências, como, por exemplo, a de Duarte Coelho na sua Capitania de

Pernambuco, irrequieta da perspectiva da intromissão do novo Governo Geral.

Em relação à educação, não podemos deixar de mencionar que, no governo

de Tomé de Souza, seis religiosos chefiados por Nóbrega chegaram às terras

brasileiras, em 1549.

Segundo Fávero (2000, p. 88),

A educação na colônia estava vinculada à política colonizadora de Portugalcujo objetivo era a obtenção do lucro e, se nas diretrizes básicas estavacitada expressamente a população indígena (para catequese e instrução),a vinda de pessoas da pequena nobreza para organizar a “empresa” exigiaque se incluíssem, na empreitada a que se propuseram os jesuítas, osfilhos dos colonos, já que recebiam subsídios para fundar os colégios.

Os problemas e dificuldades cresciam, particularmente durante a

administração do segundo governador, Duarte da Costa (1553-1558), devido ao

desentendimento entre seu filho Álvaro da Costa e o Bispo D. Pero Fernandes

Sardinha; aos primeiros conflitos entre os colonos e jesuítas, chegados já com o

primeiro governador, conflitos criados em torno do problema da escravização

indígena. A tudo isto vem juntar-se ainda a grave situação criada com a invasão

francesa da Guanabara em 1555. Com Mem de Sá (1558-1572), o Governo Geral

consolidou-se definitivamente. Homem enérgico e inteligente, hábil administrador, o

terceiro governador geral venceu as últimas resistências autonomistas, encontrou a

solução do problema de mão-de-obra para a agricultura no recurso à importação de

escravos negros e eliminou a ameaça francesa no Sul, entre 1565 e 1567.

Em relação à estruturação jurídica, notamos a semelhança entre o Brasil

Colonial e a Metrópole.

Viana diz:

Em nosso povo, a organização política dos núcleos locais, feitoria ouarraial, não é posterior ou mesmo concomitante à sua organização social.É-lhes anterior. Nasce-lhes a população já debaixo das prescriçõesadministrativas. É o caso de S. Vicente e Stº. André da Borda do Campo.Funda-os Martim Afonso de Souza, logo ao lançar os germes primeiros dacolonização Sul. Neles constrói, desde o seu início, o pelourinho, aalfândega, todos os elementos essenciais da aparelhagem administrativa.(VIANA, 1925 apud TEIXEIRA; DANTAS, 1979, p. 68)

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A preocupação metropolitana em fundar e organizar os municípios, na

Colônia, inseria-se no contexto geral das necessidades de povoamento e defesa da

terra, de sua exploração e, acima de tudo, das necessidades de tributação e

arrecadação fazendária. Entretanto, pelo menos nos dois primeiros séculos, as

relações entre os conselhos municipais e o poder central, colonial e metropolitano,

não foram nada pacíficas. A imensidão do território, gerando o isolamento e o

autonomismo das povoações, deu-lhes condições de uma certa “independência”, a

qual buscavam sempre resguardar, defendendo em todas as ocasiões seus

interesses locais. Tal força e prestígio vieram a adquirir as Câmaras Municipais

como representantes do poder local da Colônia que se defrontavam freqüentemente

com a administração central. Podemos dizer que as Câmaras Municipais foram os

primeiros centros geradores do nativismo brasileiro, responsável pelos primeiros

movimentos em busca da libertação colonial.

Zenha afirma que,

[...] Muito cedo, no Brasil, as Câmaras tiveram consciência de suas funçõese principalmente do papel relevante que deviam desempenhar no processode colonização que aqui se iniciava. Organização eminentemente popular,dotada de aptidões variadas e provida de uma capacidade de adaptaçãoadmirável, logo relacionou-se com o meio, pondo-se em contato íntimo comas necessidades locais. (ZENHA, 1948, p. 104-105)

Saindo do Brasil, no decorrer do século XVI, a Europa entrava numa profunda

crise no tocante à sua religiosidade, crise resultante do mesmo processo de

transformações que desintegraram a velha sociedade feudal. Convém explicitarmos

que a expressão mais viva dessa crise foram as Reformas protestantes, a começar

com a de Lutero.

Portugal alcançou sua posição mais alta durante o governo de D.João III

(1521-1556), o iniciador da colonização portuguesa na América. Nessa altura, a

Sociedade de Jesus9 já se encontrava plenamente constituída e enraizada em

9 Inácio de Loyola, espanhol, encontrando-se em convalescência em um hospital, ocupando o tempocom a meditação de livros piedosos, sentia-se atraído por um forte interesse religioso, sendo levadoalgum tempo depois a aprofundar os estudos teológicos em Salamanca e na Sorbonne. Em 1534,após publicar seus “Exercícios Espirituais”, fundou a Sociedade de Jesus, com o apoio de algunscompanheiros, como Francisco Xavier e Simão Rodrigues. A Sociedade veio a ser reconhecidaoficialmente pela Igreja em 1540, através de Paulo III, na Bula Regimini Militantis Ecclesiae. Estanova ordem religiosa propôs-se, acima de tudo, a servir à Igreja, como verdadeiros “soldados” deCristo.

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Portugal, controlando firmemente o setor da educação, dirigindo o Tribunal do Santo

Ofício e enviando as primeiras “missões” para o ultramar.

Com a comitiva do primeiro governador, Tomé de Souza, chegaram ao Brasil,

em 1549, os primeiros inacianos, Manuel da Nóbrega, Leonardo Nunes, Antonio

Pires, Aspicuelta Navarro e Vicente Rodrigues. Detendo o controle do Santo Ofício,

que possuía o direito de visitação periódica nos domínios coloniais, e ainda, com a

direção da Mesa da Consciência e Ordem encarregada da administração dos bens

das ordens militares de Cristo, Avis e São Tiago, a Sociedade jesuítica pôde ampliar

enormemente seu poder de atuação na América portuguesa, chegando até a intervir

por vezes nos organismos administrativos metropolitanos, como o Conselho da Índia

(1604) e o Conselho Ultramarino (1642).

De um modo geral, ao vir para a Colônia, a Sociedade de Jesus trouxe o

desejo de assumir as tarefas da educação cristã da população colonial, branca

européia e indígena nativa.

Segundo Fávero (2000, p. 90),

O conhecimento do tupi era exigido dos aspirantes à Companhia de Jesus,o desconhecimento do latim passou a ser considerado de menorimportância se o candidato fosse versado na “língua brasílica”, que noBrasil substitui o grego, estudado nos cursos de humanidades nos colégiosjesuíticos da Europa.

Em pouco tempo, uma ampla rede missionária espalhou-se pelo Brasil:

colégios e missões seriam os centros de irradiação do ensino e da catequese.

Os primeiros colégios foram fundados em Salvador e São Vicente. O currículo

era dividido em duas secções, ou classes, uma inferior e outra superior. Enquanto na

primeira eram ensinadas Retórica, Gramática e Humanidades, com a duração de

seis anos, na segunda ensinava-se a Filosofia, durante três anos. Podemos notar, a

partir do currículo, a orientação teórica e tradicionalista do ensino, decorrente da

própria orientação da Sociedade, fundamentalmente preocupada com a ação

missionária e com o recrutamento de novos membros para os seus quadros.

Enquanto os colégios eram construídos nos pequenos núcleos urbanos,

atingindo muito mais a população branca, as missões eram edificadas no interior,

como verdadeiros centros de captação da população nativa para o serviço da

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“catequese”. Porém, a montagem dessas “aldeias”, que chegavam a ser enormes,

exigia uma organização mais ampla em vista da sua própria sobrevivência.

Organização econômica e social, sob controle direto dos padres da Sociedade.

Espalhadas por todo o vale amazônico e pela região do Paraguai, as missões

tornaram-se, assim, grandes núcleos populacionais, centros de produção, áreas

enormes sob o domínio da Igreja através da Sociedade jesuítica.

Com isso, fica claro não ser apenas a simples catequese doutrinária o real

objetivo da ação missionária dos jesuítas na Colônia portuguesa, ou mesmo nas

colônias espanholas. O imenso patrimônio acumulado, em gente, terra e rendas,

atesta que a Sociedade veio para a América com perspectivas bem mais amplas: a

montagem de um grande império temporal no interior do continente americano, que

permitiria a realização do movimento de expansão religiosa e da reconstituição da

cristandade, perdida definitivamente na Europa depois das Reformas.

Como frisado, em linhas anteriores, a colonização foi a solução natural para a

defesa e exploração dos imensos territórios. A princípio, no Brasil, a colonização

assumiu dimensões bem limitadas, restringindo-se à estreita faixa litorânea onde se

organizava a produção açucareira em torno de uns poucos núcleos de povoamento.

Entretanto, a necessidade de colonizar, isto é, de ocupar toda a terra continuava

presente, na medida em que se mantinham igualmente as ameaças externas. Além

disso, todo o espaço interior da Colônia estava ainda vazio, desde o extremo sul até

o extremo norte e, por isso, improdutivo, apesar de não ter desaparecido a

esperança do encontro de pedrarias.

Sendo assim, ao longo dos séculos XVII e XVIII, a colonização foi

“empurrada” para o interior da Colônia, determinando sua ocupação e o alargamento

do território colonial brasileiro.

Durante meio século, a partir de sua fundação em 1532, São Vicente

representou importante núcleo de defesa do litoral, da região Sul especialmente.

Entretanto, essa região diferenciava-se do desenvolvimento da região tropical

nordestina, onde a montagem da produção açucareira destinada à exportação

encontrava sucesso.

Na segunda metade do século XVI, Pernambuco atraiu todos os capitais de

investidores portugueses e flamengos, determinando a inevitável regressão

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econômica vicentina. Paradoxalmente, é a partir desse fato que ocorrem os

primeiros movimentos mais firmes da população da baixada vicentina em direção ao

planalto paulista, movimentos que assinalaram o princípio da interiorização da

colonização.

Evidentemente, a longa distância entre o Sul da Colônia e a Metrópole, a

inviabilidade da plantação açucareira na baixada, provocando a marginalização do

núcleo vicentino, tornaram-se fatores diretos da ocupação “precoce” do planalto de

Piratininga. A fundação de São Paulo em 1554 foi o marco inicial de toda a

interiorização posterior.

Diante da importância da Colonização da Vila de São Vicente, faz-se

necessário discorrer sobre o seu apogeu e perigeu para compreendermos assim a

magnitude dessa cidade para a história do povo brasileiro.

3.1 A Vila de São Vicente

Ao expormos o contexto histórico-cultural vicentino, explicitaremos,

primeiramente, a origem do nome da Vila e, posteriormente, o processo de

colonização de São Vicente10.

A história da origem do nome da Vila de São Vicente começa por volta de

325, na cidade da Espanha chamada Huesca, província de Saragoza. Nessa cidade

nasceu Vicente, padre dedicado que se destacava por seu grandioso trabalho. Seu

destaque foi tão grande que o bispo de Saragoza, Valério, lhe confiou a missão de

pregador cristão e doutrinador catequético.

Nessa época, Valério e Vicente enfrentavam o imperador Diocleciano, que

perseguia os cristãos na Espanha. Ambos acabaram sendo presos por um dos

homens de confiança do imperador, Daciano, que baniu o bispo e condenou Vicente

à tortura. O martírio sofrido por Vicente foi tão brutal, a ponto de surpreender todos

os carrascos. Eles relataram a impressionante resistência do rapaz que, mesmo com

10 A Lei n. 4.603, de 20 de março de 1965, promulgada pelo Presidente Humberto de Alencar CasteloBranco, elevou São Vicente a “Cidade Monumento da História da Pátria”.

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gravetos de ferro entre as unhas e colocado sobre uma grelha de ferro para ser

queimado aos poucos, não negou a fé cristã. Vicente diante de toda a dor

continuava acreditando nos dogmas cristãos.

No dia 22 de janeiro, os carrascos do imperador decidiram matar Vicente com

garfos de ferros, dilacerando-o completamente. Após o dilacerarem, o corpo de

Vicente foi jogado às aves de rapina. Os relatos dão conta de que uma delas, um

corvo, espantava as outras aves, evitando a aproximação das demais. Diante disso,

os carrascos decidiram, então, jogá-lo ao mar.

O corpo de Vicente foi resgatado por cristãos, que o sepultaram em uma

capela perto de Valência. Depois, seus restos mortais foram levados à Abadia de

Castes, na França, onde foram registrados milagres. Em seguida, foram levados

para Lisboa, na Catedral da Sé, onde estão até hoje. Vicente foi canonizado e

recebeu o nome de São Vicente Mártir, hoje santo padroeiro de São Vicente e

Lisboa. Desde então, o dia 22 de janeiro é dedicado a ele.

Por isso, quando a expedição portuguesa comandada por Gaspar de Lemos

chegou aqui, em 22 de janeiro de 150211, deu à ilha o nome de São Vicente, pois o

local era conhecido, até então, como Ilha de Gohayó12.

Em 1530, D. João III organizou e enviou uma esquadra à costa do Brasil,

composta de cinco navios (a Nau Capitânea, os galeões São Miguel e São Vicente,

e as caravelas Princesa e Rosa), com cerca de quatrocentos homens, inclusive

capitães, alguns fidalgos, equipagem, pilotos, mestres de guarnição militar, pessoal

de intendência, intérpretes, alguns degradados, cujo comando foi confiado a Martim

Afonso de Souza. Um dos capitães de navio nessa esquadra foi Pero Lopes de

Souza, irmão de Martim Afonso. As embarcações partiram de Lisboa em 03 de

dezembro de 1530, de posse de um alvará assinado pelo Rei D. João III, com

instruções acerca da posse de todo o território abrangido pelo Meridiano de

11 Gohayó é um nome de origem Tupi para o particular acidente geográfico que é a Ilha de SãoVicente. Esse nome foi transmitido por Martim Afonso de Sousa, por meio de uma carta de sesmariapassada em favor de Pêro Góis, em Piratininga, em 10 de outubro de 1532, confirmando asdesignações cartográficas anteriores, de Kunstmann e dos Reinel, datada do início do século XVI,que assinalam a Ilha de Goianos, Guaianos e Guanás (GOHAYÓ, 2000, p. 6).12 Francisco Martins dos Santos, no Volume I do “História de Santos”, faz referência ao nome desde1502, como ilha, porto e povoado, sob a denominação de San Vicentio, Sambicente ou Sam Vicente.As lendas de São Vicente começaram já aí, pois sabe-se que a Martim Afonso cabia, apenas, acolonização regular, pois a elevação à categoria de Vila nada mais representa do que sua novaexpansão, ou refundação de São Vicente, já existente comprovadamente desde 1510.

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Tordesilhas, doação de Sesmarias por uma vida, organização da Justiça e fundação

de Feitorias.

Após percorrer a costa brasileira e navegar até à região do Prata, Martim

Afonso finalmente aportou na ilha de São Vicente.

Quando Martim Afonso desembarcou na praia que os nativos chamavam de

Tumiaru (“lugar dos mantimentos”, em Tupi), lá estavam, à sua espera, João

Ramalho e Antônio Rodrigues13. Os dois náufragos estavam casados com as filhas

dos principais chefes indígenas da região: Ramalho vivia com Bartira, filha de

Tibiriçá, o grande líder local dos Tupiniquins; Rodrigues se amancebara com a filha

de Piquerobí, irmão de Tibiriçá. Piquerobí e Tibiriçá também se encontravam na

praia – sinal evidente de que a chegada de Martim Afonso era um desembarque

anunciado.

Todas as evidências permitem supor que João Ramalho, Antônio Rodrigues,

Tibiriçá e Piquerobí estavam plenamente cientes da existência do Rei Branco, da

Serra da Prata e da trilha que conduzia até lá (mesmo porque uma das vertentes

desse caminho – chamado Peabiru – se iniciava dentro de seu território tribal).

Assim sendo, em algum momento entre 22 de janeiro e março de 1532,

Martim Afonso decidiu conceder foro de vila ao lugarejo no qual náufragos e

degredados portugueses viviam havia mais de 20 anos. Não há dúvidas de que o

núcleo inicial desse povoado já existia. E, embora Martim Afonso tenha erguido um

pelourinho, uma capela e uma câmara de vereadores, disposto a implantar a lei e a

ordem em um território que até então sobrevivera à margem delas, esse fato parece

menos importante do que a extraordinária visão estratégica e geopolítica que o

capitão fundador demonstrou naquele instante.

Foi em 22 de agosto de 1532 que se realizou a primeira eleição para a

instalação da primeira Câmara das Américas, tornando-se São Vicente o berço da

civilização brasileira e da Democracia do Continente Americano.

Alguns críticos chegam a dizer que há controvérsias ao denominar São

Vicente a primeira Vila fundada pelos portugueses, porém descrevemos que o

13 A presença de portugueses e espanhóis na Região de São Vicente era muito antiga, em 1503 jáhavia europeus nessa área: João Ramalho que, provavelmente, era um degredado lançado nessasterras por volta de 1508; Antônio Rodrigues que, segundo alguns autores, era um náufrago; e outrostantos que a história não registrou.

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pioneirismo na Ilha foi grande: o primeiro homem branco a viver nas Américas – ao

Sul do Equador – instalou-se em São Vicente; teve o primeiro engenho de açúcar

erguido no Brasil; as primeiras minas de ouro foram descobertas a partir de São

Vicente e por colonos vicentinos; a expansão do território brasileiro estipulado pelo

Tratado de Tordesilhas deflagrou-se a partir de São Vicente.

É de se notar que, quando Martim Afonso chegou em São Vicente, já existia

ali um povoado com fortificações, casas, estaleiros, portos, plantações e criações, o

que constituía uma infra-estrutura bastante desenvolvida para sediar a primeira vila e

servir como ponto de partida para a colonização portuguesa nas terras do Brasil.

Aceitando-se a data de fundação da Vila de São Vicente como 22 de janeiro

de 1532, e sabendo-se que as cartas dadas a Martim Afonso de Sousa pelo Rei de

Portugal lhe davam poderes para “fazer vilas”, como se dizia na época, é provável

que os primeiros Oficiais para a formação da administração pública, justiça e outras

funções, tenham sido nomeados pelo Capitão-mor.

Ainda antes da Companhia de Jesus ser reconhecida pelo Papa III, já D. João

III, Rei de Portugal, pedia à Sua Santidade, em 1537, dois jesuítas para

estabelecerem o ensino público e gratuito nas terras portuguesas. O Papa manda

então os padres Francisco Xavier, espanhol, e Simão Rodrigues de Azevedo,

português, para ficarem sob obediência do Rei português. Simão Rodrigues de

Azevedo ficou em Lisboa, onde fundou a Província Portuguesa dos Jesuítas.

Martim Afonso de fato parece ter percebido de imediato as estupendas

vantagens naturais oferecidas pelo lagamar vicentino, de onde se sabia que seria

possível chegar ao Peru. Por isso, ele resolveu fundar a primeira vila européia na

América, ao sul do Equador. O irmão de Pero Lopes fez mais, ele subiu a serra de

Paranapiacaba, pela chamada trilha dos Tupiniquins, e, no topo do planalto, no

mesmo local ocupado pela aldeia de Tibiriçá, fundou a Vila de Piratininga que, 22

anos depois, daria origem a São Paulo.

Mas, é preciso descrever que houve uma seqüência de circunstâncias

desafortunadas, entre as quais a descoberta e a conquista do território de Rei

Branco pelo espanhol Francisco Pizarro, a nomeação de Martim Afonso para um

novo e importante cargo na Índia, a eclosão da guerra de Iguape (que contrapôs o

Bacharel de Cananéia aos colonos vicentinos ali deixados por Martim Afonso) e até

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mesmo um maremoto, que devastou São Vicente. Em 1542, o mar avançou pouco a

pouco e inundou a Vila, ficando submersos a casa do conselho, a cadeia, os

estaleiros, o pelourinho e inúmeras casas. A Vila, então, é reconstruída e a matriz

edificada sobre uma pequena elevação.

Em 1548, D. João III criou o Estado do Brasil e nomeou Tomé de Sousa seu

primeiro Governador Geral, e o Padre Manuel da Nóbrega, primeiro Secretário de

Educação da América Portuguesa. Ambos chegaram à Bahia em 29 de março de

1549. Tomé de Sousa instalou, na Bahia, o Governo da Capital do Estado do Brasil

e Manuel da Nóbrega criou, por ordem do Rei, a primeira escola pública da América

Lusitana na mesma capital. O jesuíta Manuel da Nóbrega foi o responsável pela

instalação do ensino e da catequese nas terras do Brasil.

A segunda escola do Brasil foi fundada na Vila de São Vicente pelo padre

Leonardo Nunes, em 1549, batizado com o nome de Colégio dos Meninos de Jesus

de São Vicente, e inaugurado oficialmente pelo Padre Manuel da Nóbrega em 02 de

fevereiro de 1553.

O Padre Leonardo Nunes14 era conhecido como “Abarebebê” (padre voador),

nome dado pelos índios, e que se referia à possibilidade de o padre estar em

lugares diferentes, não importando a distância. Para os indígenas, essa capacidade

estava ligada à possibilidade de voar.

Devemos lembrar que o ensino era gratuito e que praticamente os únicos

estabelecimentos de ensino público eram mantidos pela Coroa Portuguesa e dados

ao encargo e responsabilidade dos jesuítas. O julgamento qualitativo do ensino

ministrado nesses estabelecimentos variava de bom a muito bom, segundo a opinião

do historiador Tito Lívio.

Outro fator que torna importante a vinda dos jesuítas para o Brasil é que,

desde os primeiros povoadores portugueses até o século XVIII, com sua atuação na

catequese e ensino, eles definiriam a situação duvidosa em que viviam os primeiros

povoadores: a convivência dos colonos com o indígena fez com que absorvessem

os costumes, a língua e a cultura dos índios, chegando-se, em algumas regiões, a

se falar o idioma nativo e não o português. A ação dos jesuítas assegurou a

14 Nasceu na vila de São Vicente da Beira (Portugal), em 21 de setembro de 1509. Integrou-se naCompanhia de Jesus em 06 de fevereiro de 1546, aos 37 anos. Veio para o Brasil na primeira missãochefiada por Manoel da Nóbrega.

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supremacia da cultura portuguesa conseguindo a unificação cultural do Brasil. Os

jesuítas eram pagos pela Coroa Portuguesa, tanto aqueles que atuavam como

professores quanto aqueles que atuavam em outras funções. Aqueles que eram

professores nos Reais Colégios, pois os Colégios eram do Rei, ganhavam seu

ordenado pago pela Coroa.

Da Bahia escreveu Nóbrega a Simão Rodrigues, em 10 de julho de 1552:

O Governador ordenou de dar a dês (jesuítas) que viemos de Portugal umcruzado de ferro cada mês, para mantença de cada um e cinco mil eseiscentos reis para vestir cada ano. (Cartas do Brasil. Opera Omnia, 1965,apud GOHAYÓ, 2000, p. 5115)

A 1º de janeiro de 1551, D. João III, Rei de Portugal, escreveu a Tomé de

Sousa:

Nessa Capitania do Brasil andam alguns Padres e Irmãos da Companhiade Jesus, os quais folgarei, que sejam providos do que lhes for necessário,assim para seu mantimento, como para seu vestido; encomendo-vos, emando-vos, que lhes façais dar tudo o que para ditas cousas houveremmister. (Cartas do Brasil. Opera Omnia, 1965, apud GOHAYÓ, 2000, v.I, p.211)

O trabalho dos jesuítas não ficou apenas na Bahia. O Padre Leonardo Nunes,

chegando a São Vicente, se empenhou logo em construir e fundar um colégio para a

educação das crianças. E, breve, o Colégio dos Meninos de Jesus de São Vicente

se tornou uma das grandes esperanças das obras educacionais dos jesuítas no

Brasil, sendo este o segundo Colégio fundado no país.

Nessa obra de catequese e instrução, a figura do Padre José de Anchieta se

destacou juntamente com a do Padre Manuel da Nóbrega, vivendo juntos páginas

memoráveis da história brasileira.

Em se tratando de catequização dos indígenas, vale mencionar que ambos,

Nóbrega e Anchieta, tinham o mesmo intuito: cristianizar.

Segundo Casagrande (2005, p. 172), a preocupação do padre Manoel da

Nóbrega girava em torno da conversão dos infiéis, usando assim todos os artifícios

15 A ordem referida por Nóbrega tem a data de 25 de fevereiro de 1550 (Monumentae Brasiliae.Serafim Leite, Roma, 1956, p.176 apud GOHAYÓ, 2000).

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para tornar a “gentilidade” cristãos verdadeiros. Adepto dessa preocupação, temos a

figura de José de Anchieta, continuador das idéias de Nóbrega.

Para os biógrafos de Anchieta, ele sofria de grandes dores e deformações na

coluna causados pelas suas orações e outros sacrifícios, em que se esforçava

fisicamente por longos períodos, resultando numa saúde muito fragilizada.

Chegando à Bahia, na esquadra que trouxe o Governador D. Duarte da

Costa, Anchieta não encontrou Nóbrega. Deste modo, começou ali mesmo sua obra

de catequese e professorado, ensinando latim no Colégio da Bahia.

Passados cinco meses, Leonardo Nunes foi buscá-lo, levando-o para São

Vicente, onde chegou em fins de 1553. O Padre Manuel da Nóbrega recebeu-o com

muito carinho e logo ficaram ligados por laços de grande amizade. Logo depois,

Anchieta subiu para Piratininga junto com mais doze jesuítas e, no pequeno Colégio

de São Paulo de Piratininga, continuou as suas funções de professor e catequista.

Um dos feitos mais notáveis de Anchieta e Nóbrega foi, sem dúvida, o Tratado de

Paz com os Tamoyos.

Em relação ao Colégio dos Meninos de Jesus de São Vicente, podemos dizer

que D. João III confiou à Companhia de Jesus, instituição organizada na Europa em

1540 para ministrar a educação à mocidade européia, a obrigação de dar ensino

público e gratuito no Estado do Brasil aos filhos de portugueses e aos filhos dos

brasilíndios. Para isso, as Escolas e os Colégios eram da Coroa Portuguesa. Assim,

em maio de 1556, de São Vicente, Padre Manuel da Nóbrega escrevia ao Padre

Miguel de Torres, em Lisboa:

Na Bahia, se El-Rei ordena (Nóbrega diz ordena) fazer colégio daCompanhia deve-lhe dar cousa certa e dotar-lhe para sempre, que sejamantença (manutenção); para certos estudantes da Companhia, e nãodeve aceitar V.P. dada de terras com escravos, que façam mantimentospara o colégio, senão cousa certa ou dos dízimos, ou tanto cada ano doseu tesouro (tesouro real), salvo se lá acharem maneira com que nós emnada nos ocupemos nisso, o qual eu não sei como possa ser. E ordeneV.P. que nos dêem cá nada aos padres, que entendemos com ospróximos, porque parece que é dar-nos renda como salário de nossostrabalhos; mas o que sua Alteza havia de dar devia repartir por estes douscolégios, o da Bahia e este de São Paulo de Piratininga, que estáprincipiado (Nóbrega “Cartas”, 1955, p. 214-215, apud GOHAYÓ, 2000, p.53)

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Em 7 de novembro de 1564, Dom Sebastião, rei de Portugal, fixou

definitivamente a renda para a manutenção da Companhia de Jesus no Brasil e dos

jesuítas professores dos Reais Colégios de Sua Majestade. Portugal assumia,

portanto, o encargo oficial de sustentar os padres da Companhia de Jesus no Brasil.

Os padres da Companhia de Jesus erguiam casas que eram os colégios onde

ensinavam as primeiras letras do alfabeto e a religião. O colégio da Bahia foi

construído em um lugar que não agradou ao Padre Manuel da Nóbrega e que tinha

muitos inconvenientes, alegava: ficava muito junto da Sé e duas igrejas juntas não

era bom, e ainda porque o lugar era pequeno, muito íngreme e com muita sujeira

produzida pela cidade.

Outros colégios foram fundados. O Colégio dos Meninos de Jesus de São

Vicente foi transferido para o Planalto em 1554, onde surgiria a cidade de São

Paulo. “Assim”, conta Anchieta,

[...] alguns irmãos mandados para esta aldeia que se chama Piratininga,celebramos em paupérrima e estreitíssima casinha, a primeira missa, nomesmo dia da conversão do apóstolo São Paulo e, por isso, a elededicamos a nossa casa (GOHAYÓ, 2000, p. 53)

Nas tribos, as camas eram redes que os índios costuravam; os cobertores, o

fogo que os aquecia (para o qual os irmãos, ao fim da tarde, iam juntar lenha do

mato e a traziam às costas para passar a noite); as vestimentas eram poucas e

pobres, de algodão, sem calças e sapatos. Para a mesa usavam folhas de

bananeira no lugar de guardanapos, isso quando tinham o que comer. Os índios

sempre lhes forneciam alguma ajuda em forma de farinha e peixes. Faziam

alparcatas “de cardos bravos”; aprendiam o ofício de sangrias, barbeiros e todos os

ofícios que poderiam ser úteis nas terras, que segundo eles eram “desterro do

mundo”.

Sendo a religião católica oficial e os jesuítas incumbidos da conversão do

gentio, do ensino e da assistência religiosa, é certo que recebiam alimentos e outras

provisões da Coroa Portuguesa, mas o que ganhavam era pouco e mal dava para o

sustento dos alunos.

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Amante da terra e seus habitantes, José de Anchieta aprendeu logo a língua

dos índios e escreveu a primeira gramática Tupi, que mereceu aprovação dos

melhores conhecedores do idioma do Brasil colônia. Essa gramática foi publicada e

adotada nos colégios da Companhia. Arte de Gramática da língua mais usada na

costa do Brasil foi escrita provavelmente entre 1554 e 1556, em latim, traduzida

posteriormente para o português por seu autor e publicada em 1595.

Com sua gramática, Anchieta sistematiza a língua Tupi, considerando-a como

uma língua de pouco interesse para os manuais de ensino. Sua gramática não era

para uso dos índios, mas para os jesuítas.

De acordo com Casagrande (2005, p. 183), Anchieta diz:

Quanto à língua eu estou adiantado, ainda que é mui pouco, pera o quesoubera se me ocupara em ler gramática; todavia tenho coligido toda amaneira dela por arte, e pera mim tenho entendido quasi todo seu modo;não o ponho em arte porque não há cá a que aproveite; só eu me aproveitodela e aproveitar-se-ão os que de lá vierem e souberem gramatica.

Nesse fragmento, Anchieta refere-se a sua gramática: Arte de Gramática da

Língua mais usada na Costa do Brasil. Essa gramática mesmo antes de ser

publicada correu por todo o litoral brasileiro, em forma de manuscritos.

A língua Tupi16 ainda hoje falada no Paraguai, era aglutinativa, mas com

flexões verbais.

Segundo Varnhagen:

As articulações não eram em grande número. Faltavam as seguintes: fê, lê,rê, vê e zê fortes; de tal modo que os índios tupis, ao aprenderem amúsica, em lugar de ré, fá e lá, pronunciavam rê (brando), pá e rá (tambémbrando). – As labiais b e p soavam nasalmente: de modo que os mesmosíndios mboricá, em vez de burrica, e M pero, em vez de Pedro; de sorteque as mesmas duas labiais podiam ser escritas com um til em cima.(VARNHAGEN, 1975, p. 31)

O número de consoantes não era grande, diferenciando dos sons vogais,

podendo-se reduzir nada menos que a quarenta e dois; considerando seis vogais

(contando nesse número o y), cada uma com sete sons diferentes, que se

distinguem por meio de acentos. Porém, as letras do nosso alfabeto eram

insuficientes para representar todas as articulações guaranis.

16 Os tupis do Amazonas chamavam a própria língua nheengatu, isto é, língua boa.

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Anchieta escreveu, ainda, um vocabulário em Tupi-Guarani, traduzindo para

essa língua os ensinamentos religiosos, compôs poesias e autos para mais

facilmente educar e catequizar os índios.

Em 1591, o pirata Thomas Cavendish assaltou a Vila, colocando fogo e

causando enormes estragos. Em 1560, São Vicente sofreu um ataque dos tamoios,

que destruíram as fazendas e levaram quatro mulheres. Em 1615, o almirante

holandês Jonis van Spilbergen atacou Santos e São Vicente na tentativa de obter

alimentos.

Esses acontecimentos, além de extirparem muitos dos documentos da Vila,

fizeram com que a Ilha mergulhasse num período obscuro e quase se desintegrasse

por inteiro.

Apresentado o contexto histórico-social da Ilha de São Vicente, passaremos à

explanação do clima de opinião do século XVI.

3.1.1 Século XVI

No século XVI, os novos conhecimentos, aliados à nova visão de mundo e do

homem, preconizada pelo Renascimento, ampliaram os horizontes europeus,

facilitando o pleno desenvolvimento da expansão marítima. Esta, por sua vez, foi a

responsável pelo aparecimento de um mercado mundial, baseado no capital gerado

pelas atividades comerciais, que afetou todo o sistema produtivo e favoreceu a

consolidação do Estado nacional.

No século XVI, as nações pioneiras (Portugal e Espanha) prosseguiram suas

viagens, conquistando territórios na América, África e Ásia. Inglaterra e França

procuravam romper tal domínio na tentativa de conseguir mercados e áreas de

exploração.

Podemos citar as principais conquistas de Portugal no século XVI: a) 1505-

1509 – Dom Francisco de Almeida, primeiro vice-rei de Portugal nas Índias,

estabeleceu o domínio luso na costa oriental africana; b) 1509-1515 – Afonso de

Albuquerque, segundo vice-rei das Índias, consolidou o domínio português no

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Oriente, ocupando territórios estratégicos: Goa (1510), Malaca (1511) e Ormuz

(1514); c) 1514 – os portugueses chegaram ao rio Cantão, na China; d) 1516 – A

expedição comandada por Cristóvão Jacques fundou uma feitoria em Itamaracá

(atual Estado de Pernambuco) e fez o reconhecimento do litoral brasileiro, até o rio

da Prata; d) 1530-1532 – Em 1530, Dom João III enviou a primeira expedição

colonizadora ao Brasil, comandada por Martim Afonso de Sousa, que fundou em

1532 a Vila de São Vicente.

A questão lingüística também foi uma conquista de Portugal. No século XIV, o

galego-português cedeu lugar à língua portuguesa. O galego-português aparecia

não apenas na literatura, mas também em documentos, bem como na fala. Sendo

assim, do início do século XV até os meados do século XVI, a língua portuguesa se

afirma como representativa de nova nacionalidade.

Conforme Paiva,

Após a independência, a primeira dinastia dos reis de Portugal tendeu alocalizar-se na região entre o Mondego e o Tejo; o mecenatismo, quefavorecia os trovadores, tornava-se cada vez menos intenso; aUniversidade ora se estabelecia em Coimbra, ora em Lisboa; a Corte,transferindo-se constantemente para as cidades de Coimbra, Santarém,Évora, Lisboa, fixou-se nesta última; vários outros eventos históricoslevaram, assim, o eixo político da nação a deslocar-se do Norte para o Suldo país e, aos poucos, foi-se formando uma língua de livre trânsito entre ascamadas sociais, denominada comum (coiné) [...] (PAIVA, 1988, p. 9)

Esse português comum contribuiu para o desenvolvimento da prosa de

caráter informativo e para o aparecimento da prosa literária. Várias fontes

colaboraram para o desenvolvimento da prosa, entre as quais as mais importantes

foram as que resultaram de traduções latinas, feitas por religiosos.

Em relação ao léxico português, devemos mencionar que o estudo da

Gramática não se restringia apenas às Universidades e às escolas religiosas. D.

Duarte expunha, no final do século XV, que os jovens fossem ensinados “[...] a ler,escrever, e a falar latim, com a finalidade de adquirirem, em bons livros, não só

escritos em língua latina, mas também em linguagem (língua portuguesa), os

conhecimentos formadores de uma vida virtuosa.” (Cf. PAIVA, 1988, p. 12).

Na obra o Leal Conselheiro, D. Duarte fez referências a vários autores

clássicos como Aristóteles, Cícero, Sêneca, entre outros. Ao introduzir latinismos,

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aportuguesa as formas latinas, acomodando-as à pronúncia e à ortografia da época.

No século XVI, esse processo vai se repetir:

[...] este processo repetiu-se de novo, em grande escala, mas de modointeiramente diverso: os neologismos latinos incorporavam-se à língua,conservando a ortografia original, com adaptação mínima à fonéticaportuguesa.

Freqüentemente os escritores reintroduziram termos que já faziam parte doléxico, porém haviam sofrido modificações através da evolução fonética.Ex.: chama (evolução de) flama, alegre (evolução de) álacre e muitasoutras que constituíram as chamadas formas divergentes. (PAIVA, 1988, p.14)

O infante D. Pedro, ao escrever a Virtuosa benfeitoria, deparou-se, como seu

irmão D.Duarte, com as mesmas dificuldades, sobretudo lexicais, incorporou à prosa

inúmeros latinismos, reforçando assim esse processo que, no século XVI, passa a

ter destaque.

A necessidade de criar termos, devido à ausência de textos em língua

portuguesa, tornava-se necessária. Sendo assim, não só a criação de termos, mas a

introdução de neologismos, e a construção sintática foram necessárias para

expressar as relações lógicas do pensamento racional.

D. Duarte e D. Pedro acostumados com os padrões das frases escritas da

língua latina de períodos longos e com muitas inversões se reportaram, muitas

vezes, e acabaram optando por períodos extensos e com muitas orações

subordinadas, verbos no final dos períodos e orações infinitivas e gerúndios.

Chegaram também a recorrer à coordenação, abusando da conjunção e.

Pensando na questão lingüística do século XV e XVI, não podemos deixar de

mencionar que na prosa havia uma variedade rica no léxico. Porém, se a

associarmos ao léxico da poesia, é possível notar algumas distinções.

Segundo Paiva (1988, p.23),

No acervo vocabular destacam-se preponderantemente os nomes emmento e os terminados em anca, ença. As palavras do primeiro tipoformavam-se de temas verbais do infinitivo e davam idéia de ação, sendosumamente comuns nos autores do século XV e até alguns do século XVI;porém, a partir da época quinhentista, começam a cair em desuso e, sob oinfluxo do latim, passam a ser substituídas por outras de diferentesterminações.

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No século XVI,

[...] houve a introdução de adjetivos eruditos em il: ágil, fácil, fértil, quemantêm a mesma terminação, e outros como affabil, implacabil, incansabil ,terribil, volubil etc. que, posteriormente, passaram a afável, implacável,incansável etc. A terminação ável continua muito produtiva na formação deadjetivos, ora exprimindo possibilidade de ação, em sentido ativo – durável,inflamável -, ora, com mais freqüência, no sentido passivo – vulnerável,desejável, remediável, suportável etc. (PAIVA, 1988, p. 25)

Nesse período, existiam muitos adjetivos terminados em –oso que caíram em

desuso:

[...] omyldoso ou humildoso (humilde – D.Duarte); sobervoso (soberbo –Idem); empachoso (que põe embaraço, que estorva – Idem); querençoso(afetuoso – Fernão Lopes); trigoso (apressado – Fernão Lopes). O sufixooso ainda é muito fecundo na formação de adjetivos. Outros nomes comocamanho (tamanho); hétego, étigo ou ético (tísico) foram substituídos.(PAIVA, 1988, p.25)

Com o surgimento das gramáticas no século XVI, começou-se a apontar os

arcaísmos que integravam o léxico do século XV e XVI. Em 1536, temos a obra de

Fernão de Oliveira denominada pelo próprio autor de primeira anotação da língua:

“[...] há citação de algumas palavras em desuso (“dicções velhas”); ajuso (cá em

baixo); suso (acima); algorrem (alguma coisa); ogano (este ano).” (cf. PAIVA, 1988,

p. 27).

Na poesia, além do vocabulário básico, havia o emprego de certos termos

típicos da linguagem poética. Segundo Paiva (1988, p. 30), o vocabulário poético foi

dividido em dois campos: o da poesia amorosa e os restantes. O primeiro é bem

mais pobre, aparecem com muita freqüência “verbos de sentir” e substantivos

abstratos da área semântica da dor, do sofrimento. Já no segundo campo,

composições poéticas não-amorosas, o número de vocábulos aumenta e há um

grande número de recursos estilísticos, muitas metáforas de origem náutica,

provavelmente por influência das conquistas ultramarinas.

Os estudos gramaticais da primeira metade do século XVI registram algumas

formas ortográficas. Fernão de Oliveira, primeiro gramático da língua portuguesa,

diz:O s singelo diz quitiliano e letra mimosa e quando a pronunciamosalevatamos a põta da língua pera o çeo da boca e o espírito assovia pellasilhargas da língua.

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A pronunciação do z zine antros dentes cerrados com a língua chegada aelles e os beyços apartados hu do outro: e e nossa própria esta letra.(1975, p. 46)

Fernão faz toda uma descrição pitoresca, em sua gramática, ao descrever a

pronúncia de determinadas letras.

Morfologicamente, nos séculos XV e XVI, a língua foi se organizando e se

regulamentando conforme o uso. As primeiras gramáticas, Fernão de Oliveira e João

de Barros, procederam à sistematização de algumas normas que, enriquecidas pelo

trabalho dos escritores renascentistas, acabaram por eliminar parte das variantes.

Paiva (1998, p. 42) afirma que

A morfologia passou por inúmeras modificações e alguns autores já aconsideram “moderna”, nos fins do século XV, embora excetuando asformas verbais e uma série de partículas ainda tidas como bastantearcaicas.

Acrescenta,

Sem chegar a tanto, não se pode negar haver um ritmo gradual e crescentede regularização, apesar de perdurarem muitas formas antigas até mesmono século XVI, antes e após a aceleração violenta do processorenascentista “modernizador”. (PAIVA, 1988, p.42)

Evidentemente, discorremos sobre alguns traços apontados no século XV e

que prosseguiram com pequenas modificações no século posterior. No período de

1530 a 1540, aconteceram fatos que proporcionaram uma revolução no âmbito

lingüístico, por exemplo: o surgimento das gramáticas e da figura de Gil Vicente.

Segundo Paul Teyssier, Gil Vicente

[...] apresenta o quadro lingüístico de Portugal, na primeira metade doséculo XVI, quando a língua portuguesa, em plena evolução, ainda nãohavia encontrado seu ponto de equilíbrio; deste modo, Gil Vicente está naencruzilhada dos caminhos: o velho, já palmilhado, e o novo que imperariana metade seguinte do mesmo século. (PAIVA, 1988, p. 87)

Gil Vicente empregou em suas obras a língua portuguesa, retratando-a por

meio de personagens cultas, literárias, populares, regionais etc. Além disso,

apresentou o latim eclesiástico, às vezes de modo correto, outras de modo incorreto

– para fins cômicos. Enfim, seus trabalhos indicam sensibilidade para fatos

lingüísticos.

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Após as menções anteriores, observamos que no século XVI, da primeira

para a segunda metade, a língua portuguesa:

[...] passa por grandes transformações, enriquecendo o seu acervo lexical,disciplinando as suas estruturas, competindo com a língua irmã, oespanhol, e expandindo-se para fora do seu domínio continental.Enriquecimento, disciplina gramatical, emulação com o castelhano eexpansão da língua, principalmente a falada, para os povos conquistados –eis a fisionomia do português nessa época. (SPINA, 1987, p. 8)

Evidentemente, a língua portuguesa passou por inúmeras transformações no

século XVI e essas estão ligadas à grande revolução social, econômica, artística e

literária.

Segundo Spina (1987), o deslumbramento da cultura clássica, suscitado pelo

movimento humanístico da segunda metade do século XV, propiciou o aparecimento

de gramáticas portuguesas:

[...] debruçados na leitura dos modelos clássicos, sobretudo latinos, osescritores portugueses foram naturalmente levados a introduzir na línguainúmeros latinismos, aportuguesando as formas importadas e refazendo asformas arcaicas. (SPINA, 1987, p. 10)

Houve também a imitação do latim no âmbito sintático da língua, sobretudo na

regência das palavras, na colocação dos termos da oração e na colocação de

verbos no final do período. As orações subordinadas são uma característica da

língua nesse período, como se poderá observar no capítulo destinado a essa análise

neste estudo, em Diário da Navegação.

Em relação às artes e literatura, temos, no século XVI, uma literatura

produzida durante a vigência do Renascimento, intitulada de Classicismo ou

Quinhentismo.

O Renascimento foi a expressão artística cultural de uma época marcada por

fatos decisivos, que acentuaram o declínio da Idade Média e deram origem à Era

Moderna. Entre eles, destacam-se: as navegações e os descobrimentos, no final do

século XV; a formação dos Estados modernos; a Reforma (1517); a Revolução

Comercial, iniciada no século XV; o fortalecimento da burguesia comercial e a teoria

heliocêntrica de Copérnico.

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O interesse pela cultura clássica já vinha ocorrendo desde o final do século

XIII, na Itália, onde escritores e intelectuais, chamados humanistas, liam e traduziam

autores latinos e gregos. Desse grupo, destacaram-se Dante Alighieri, Petrarca e

Boccaccio.

No século XVI, o Classicismo, em consonância com um contexto histórico de

profundas transformações sociais, econômicas, culturais e religiosas, substituiu a fé

pela razão, o cristianismo pela mitologia greco-latina e pôs, acima de tudo, o homem

como centro de todas as coisas (antropocentrismo).

Diferentemente do homem medieval, que se voltava essencialmente para as

coisas do espírito, o homem do século XVI se voltou para a realidade concreta e

acreditou em sua capacidade de dominar e transformar o mundo.

As influências da cultura greco-latina e dos humanistas italianos, bem como a

imitação de seus modelos, não se limitaram ao século XVI. Estenderam-se até o

final do século XVIII, formando uma verdadeira Era Clássica.

Entre os séculos XV e XVI, Portugal tornou-se um dos países mais

importantes da Europa, em virtude de seu papel de destaque no processo de

expansão marítima e comercial. O país amadurecia como Estado, povo, língua e

cultura; contudo, faltava aos portugueses uma grande obra no âmbito literário que

fosse capaz de registrar e traduzir o sentimento de euforia e nacionalidade que

vinham experimentando.

Quanto ao ensino de língua portuguesa, Portugal passou a ser visto como

uma nação soberana, pois as conquistas ultramarinas permitiram esse título. Nessa

concepção, fez-se necessária a conquista lingüística.

Para compreender o ensino de língua portuguesa em Portugal, no século XVI,

é imprescindível retrocedermos um pouco no tempo e expormos a história da origem

da língua à sua instauração como língua oficial.

Conforme Casagrande (2005), a primeira tentativa de estabelecer uma língua

nacional parte de D.Diniz, no século XII, ao escrever as Cantigas de Santa Maria em

língua portuguesa, mas não deu conta dessa instauração, pois apresentava muitos

vocábulos latinos ou galaicos. No século XV, D. Duarte, em sua obra O Leal

Conselheiro, demonstrou preocupação em estabelecer uma língua nacional. No

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século XVI, Portugal passou a ser visto como uma nação poderosa, mas suas

conquistas ultramarinas exigiam, também, conquistas lingüísticas.

Enquanto Portugal tentava buscar a sua sistematização lingüística, a Espanha

já tinha sua primeira gramática, escrita por Antonio Nebrija, em 1492. Somente em

1536, Fernão de Oliveira publicou a “primeira” gramática da língua portuguesa.

Casagrande (2005, p. 67) expõe:

Somente em 1536 é que Fernão de Oliveira, a título de sugestão do fidalgoSr. D. Fernando Almada, publica a primeira gramática da línguaportuguesa. O contexto de produção dessa obra remonta à necessidadepolítica de Portugal em impor-se como reino diante da Espanha, uma vezque o processo de expansão de seu território instaurava-se e era precisoimpingir a língua do dominador ao dominado.

Nessa visão, é mister, numa breve regressão, expor o percurso da gramática

ao longo dos séculos, uma vez que, no século XVI, temos em Portugal a “primeira”

gramática portuguesa, cujo objetivo central era a sistematização da língua. A

denominada Gramática Tradicional hodierna tem os seus pés fincados na Gramática

Grega e, com o passar do tempo, foi absorvida e adaptada pelos romanos,

permanecendo durante a Idade Média sem muitas alterações.

Conforme Leroy (1967), os latinos desejavam mostrar-se bons discípulos dos

gregos, seguiram-lhes no tocante às línguas estrangeiras, exceto o grego. Os

gramáticos e filósofos gregos

[...] não tiveram consciência do interesse que poderia apresentar, para oestudo de sua própria língua, o exame dos falares vizinhos. Mesmo aconfrontação constante do grego e do latim (em Roma, a sociedade cultaera, em grande parte, bilíngüe) foi estéril, esforçando-se os latinos emadaptar servilmente o estudo de sua língua às “regras” formuladas pelosteóricos gregos, cujas idéias nada mais faziam senão retomar e propagar;é justo, entretanto, destacar o nome de Varrão, que fez grande esforçopara definir a Gramática ao mesmo tempo como ciência e como arte, e quevislumbrou, com mais lucidez que os gregos, o valor da oposição deaspectos no sistema do verbo. (LEROY, 1967, p. 18)

A transcrição deixa claro que, embora os latinos tenham seguido os gregos,

há uma distinção entre eles.

Na Idade Média, a gramática latina não sofreu alteração na sua estrutura, pois

os documentos escritos eram todos em Latim. A língua utilizada nos atos públicos

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era o latim, mas apresentava expressões do romanço. Somente no Renascimento,

as línguas vernáculas passaram a substituir o Latim e é neste período que vamos ter

as primeiras gramáticas.

Segundo Bastos (1981), a primeira gramática

[...] extensa e sistemática no mundo ocidental foi a de Dionísio da Trácia,na segunda metade do século II a.C. Mas, é com Apolônio Díscolo, séculoII d.C., que se elabora a primeira sintaxe da língua grega, e é uma sintaxeque se apresenta como um estudo mais filosófico que lingüístico.(BASTOS, 1981, p. 50)

Transportando-nos para Roma, vamos ter os gramáticos: a) Varrão, no século

I a.C., que foi discípulo de gramáticos da escola Alexandrina, aplicou a gramática

grega ao latim. A gramática que propôs foi a do latim clássico, pois para ele a

gramática era a arte de escrever e falar corretamente e de compreender os poetas;

b) Quintiliano, século I a.C., em sua obra De Institutione oratória, demonstrou

atenção ao escrever de maneira correta; c) Donato, século IV d.C, foi o gramático

que fez descrição das “letras”, demonstrou os erros de seus alunos e estabeleceu as

diferenças entre o grego e o latim. Além disso, evidenciou a diversidade da língua

latina; d) Prisciano, século VI d.C., nele encontramos a primeira sintaxe da língua

latina.

Cabe lembrar que Donato e Prisciano foram os dois gramáticos mais

estudados do “período das trevas”. A Idade Média foi compreendida por muitos

estudiosos como um período de trevas, porém esse período foi produtivo em termos

históricos e culturais.

Diante dessa concepção, é de extrema magnitude explicitar que, na Idade

Média, há a “origem” do pensamento educacional, desenrolando-se no século

ulterior. É também nesse período que a gramática greco-romana é “conservada e

transmitida”, pois o Latim começa a ficar enfraquecido devido à defesa da língua

nacional.

A partir do desprestígio da Língua Latina, as línguas vernáculas começaram a

ficar fortalecidas e, em 1492, deu-se a publicação da primeira Gramática

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Castellana17 de Antonio de Nebrija18. Cada vez mais se solidificando como língua de

prestígio, os renascentistas acabaram tendo que rever a gramática latina, para

verificar a estrutura da gramática que seria o modelo para as gramáticas modernas.

Desse modo, percebe-se a preocupação de ensinar a língua, e é exatamente com

essa preocupação que Fernão de Oliveira publicou, em 1536, a Grammatica da

Lingoagem Portuguesa e João de Barros, em 1540, a Grammatica da Língua

Portuguesa.

Por fim, temos de reconhecer que as gramáticas de Fernão de Oliveira e João

de Barros são importantes, pois, além de valorizarem a língua portuguesa como

língua materna, suas gramáticas apresentam uma identidade política e cultural de

Portugal, do século XVI.

No campo literário, temos a figura de Luís de Camões (1525-1580) que, com

o poema épico Os Lusíadas, além da lírica, deu a resposta concreta a esse desejo,

projetando a literatura portuguesa entre as mais significativas do cenário europeu

nesse momento histórico.

Quanto à arte renascentista, estava voltada para a vida presente, terrena, ao

contrário do período medieval, com a especulação e representação de como seria a

vida após a morte.

A pintura de retratos passou a ser muito valorizada e a rivalidade entre

aristocratas, alimentada pela insegurança social, fez com que artistas como Ticiano

fossem disputados entre grandes mercadores, desejosos de garantir para si a

função de mecenas dos grandes pintores do Renascimento.

Extremamente valorizados pela sociedade em que viviam, os artistas e

cientistas dessa época acreditavam que a grandeza da civilização antiga havia

desaparecido durante o período medieval e propunham justamente a sua

recuperação. Referiam-se à Idade Média como “Idade das Trevas”, por acreditarem

que durante essa fase a humanidade teria regredido. Na verdade, essa era uma

17 Elio Antônio de Nebrija publicou sua gramática em 1492, sendo considerada a primeirasistematização de uma língua românica. Conforme Bastos (1991, p. 68), a gramática de Nebrija éinfluenciada pela gramática latina e segue a divisão da gramática de Quintiliano.18 Conforme Auroux (2001), Nebrija dava três finalidades à sua gramática: fixar a língua (senãoencontrar-se-ão, ao fim de cinqüenta anos, tantas diferenças quanto entre duas línguas), a fim deque durem os relatos de exploração da monarquia, facilitar a aprendizagem do latim para as crianças,permitir aos estrangeiros aprender o castelhano (trata-se igualmente de converter e de dar leis aospovos conquistados).

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visão distorcida, pois esse período testemunhou uma intensa atividade cultural, por

exemplo, o desenvolvimento das literaturas em língua vernácula, que viabilizou, em

grande parte, a explosão artística ocorrida no Renascimento.

No Brasil, a literatura brasileira nasceu no período colonial, sendo difícil de

precisar o momento em que passou a se configurar como produção cultural

independente dos vínculos lusitanos.

É preciso lembrar que, durante o século XVI, ainda não eram sólidas as

condições para o florescimento da literatura, tais como existência de um público

leitor ativo, grupos de escritores atuantes, vida cultural rica, sentimento de

nacionalidade, liberdade de expressão, imprensa e gráficas.

No século XVI, a metrópole procurou garantir o domínio sobre a terra

descoberta, organizando-a em capitanias hereditárias e enviando negros da África

para povoá-la e jesuítas da Europa para catequizar os índios.

As principais produções literárias no Brasil-Colônia do século XVI são: a) a

Carta, de Pero Vaz de Caminha; b) o Diário de Navegação, de Pero Lopes de Sousa

(1530); c) as Duas Viagens ao Brasil, de Hans Staden (1557); d) o Tratado da terra

do Brasil e a História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de

Brasil, de Pero de Magalhães Gândavo (1576); e) a Viagem à Terra do Brasil, de

Jean de Léry (1578); f) o Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa

(1587); g) Prosopopéia, de Bento Teixeira (1601); h) os Diálogos das grandezas do

Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão (1618); i) as Cartas dos missionários

jesuítas escritas nos dois primeiros séculos de catequese; j) a História do Brasil, de

Frei Vicente de Salvador (1627);

As produções explicitadas acima são documentos que formam a chamada

literatura de informação ou de viagens, cultivada em Portugal à época das grandes

navegações.

Embora guardem pouco valor literário, esses escritos explanam o testemunho

do espírito aventureiro da expansão marítima e comercial nos séculos XV e XVI, e o

registro do choque cultural entre os colonizadores e colonizados.

Quanto à educação no Brasil, os jesuítas, ao chegarem na nova terra com a

missão de catequizar os índios, deixaram inúmeras cartas, tratados descritivos,

crônicas históricas e poemas. Naturalmente, toda essa produção estava diretamente

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relacionada à intenção catequética de seus autores, entre os quais se destacaram

os padres Manuel da Nóbrega, Fernão Cardim e principalmente, pelas qualidades

literárias, José de Anchieta.

Tendo em vista a catequese, Anchieta escreveu vários tipos de texto com

finalidade pedagógica, como poemas, hinos, canções e autos (gênero teatral

originado na Idade Média), além de cartas que informavam sobre o andamento da

catequese no Brasil e de uma gramática da língua tupi.

Ao lado dessa produção, houve aquelas de interesse puramente pessoal, que

satisfaziam o espírito devoto de Anchieta, como sermões e poemas em latim.

Foi, porém, com o teatro que Anchieta cumpriu plenamente sua missão

catequética. Para as comemorações de datas religiosas, escrevia e levava ao

público autos que, diferentemente da prática discursiva e cansativa dos sermões,

veiculavam de forma amena e agradável a fé e os mandamentos religiosos.

O objetivo de suas peças teatrais era converter à religião católica. Cenas

bíblicas, passagens do Antigo Testamento e do Novo Testamento, vidas de santos

eram dramatizadas.

Pelo fato de seu público ser constituído de indígenas, soldados, colonos,

marujos e comerciantes, Anchieta escreveu autos polilíngües, o que lhes conferia

maior alcance. O alvo central do religioso era, porém, o índio. Tendo observado o

gosto do silvícola por festas, danças, músicas e representações, Anchieta soube unir

a essa tendência natural a moral e os dogmas católicos, fazendo uso de pequenos

jogos dramáticos. Assim, ao mesmo tempo em que divertia a platéia, alcançava os

seus objetivos.

A literatura de informação e catequética produzida no Brasil no início da

colonização, por sua vez, tornou-se um celeiro inesgotável de inspiração para

escritores e artistas de diferentes épocas.

Exposto o clima de opinião do século XVI, focalizaremos o contexto do final

do século XIX e início do século XX – período de transição, uma vez que, seguindo a

metodologia apresentada no início deste estudo, se faz necessário focar os períodos

em que viveram nossos autores.

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3.1.2 Séculos XIX e XX

Ressaltamos a necessidade de contextualizar a transição do século XIX ao

XX, uma vez que Benedito Calixto viveu entre 1853 e 1927, sofrendo influências da

virada de século. Faremos este recorte temporal, visando a compreender o período

vivido pelo pintor. Sendo assim, partiremos de uma breve explanação do contexto

político-social da Europa e, posteriormente, do Brasil.

A partir do momento em que a ação repressora da Santa Aliança foi posta em

prática para garantir as determinações do Congresso de Viena (1815), as forças de

oposição reagiram, retomando os ideais da Revolução Francesa e articulando-os

aos princípios do liberalismo e do nacionalismo19.

A essas duas correntes que estão na origem das principais revoluções de

1830, juntou-se, a partir de 1848, o socialismo. Os socialistas propunham a redução

das horas de trabalho, a melhoria das condições de vida dos operários e a garantia

do direito de greve aos trabalhadores; queriam, na verdade, a real transformação da

estrutura social e do regime político vigente.

A esses fatores políticos, somaram-se outros de ordem econômica, como:

más colheitas, preços elevados, desemprego, salários baixos, que abalaram toda a

Europa, gerando numerosas revoluções no ano de 1848. Apesar de violentamente

esmagados, os movimentos de 1848 tornaram-se um marco histórico, tanto pela

participação de grandes massas populares, como por terem assegurado o domínio

do poder político para a burguesia liberal, ao final de cada confronto com o poder da

aristocracia.

Entre 1846 e 1847, a Europa foi atingida por uma grave crise agrícola-

industrial, particularmente desastrosa na França. As más colheitas e a praga da

batata (um dos alimentos básicos da população) trouxeram a fome. Isso fez crescer

o descontentamento geral, uma vez que o preço dos produtos agrícolas subiu

19 O liberalismo político defendia o regime constitucional para assegurar a liberdade de pensamento,de culto e de imprensa, bem como a escolha dos representantes da Câmara através de voto e nãopor indicação. Já o nacionalismo defendia a idéia de que cada nação deveria ser um Estadoindependente, livre de qualquer domínio estrangeiro. O conceito de nacionalidade estava associado àidentidade de língua, religião, origem étnica, cultura, passado comum ou mesmo aspirações comunsem relação ao futuro.

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vertiginosamente e grande número de camponeses ficou arruinado. A indústria

começou a sofrer os reflexos da crise, pois, à medida que diminuía o poder aquisitivo

da população, também baixava a procura de bens industrializados, o que gerou

desemprego e queda significativa dos salários.

Valendo-se desse movimento crítico, a burguesia industrial francesa, com

franca minoria na Câmara, insuflou a pequena burguesia, os operários e os

camponeses a atacarem abertamente o governo, desencadeando uma revolução

que poria fim à monarquia de julho.

A crise econômica afetava todas as classes produtivas. Além disso, a

miserável situação dos trabalhadores, a distribuição desigual de riquezas e a

limitação de direitos políticos, tanto da burguesia como do proletariado, geravam

descontentamento. Todos esses fatores criaram as condições para os burgueses,

apoiados pela massa, organizarem o movimento revolucionário de 1848 na França.

Nesse mesmo ano, explodiram revoluções em grande parte da Europa. Em

outras regiões, as revoluções de 1848 foram marcadas por um nacionalismo tão

forte que se tornou às vezes um verdadeiro culto.

Os ideais liberais e antimonárquicos da revolução em 1848 na França

repercutiram no Brasil, influenciando a eclosão de um movimento revolucionário de

caráter liberal em Pernambuco: a Revolução Praieira.

O ministério conservador que assumiu o poder no Brasil em 1848 nomeou

para Pernambuco um presidente também conservador, desgostando os liberais

dessa província, que se revoltaram. Além do presidente conservador, dois outros

fatores levaram os pernambucanos à rebelião: a revolta generalizada contra a

família Cavalcanti, que era proprietária da maior parte das terras cultiváveis de

Pernambuco e controlava toda a administração da província; e a forte tradição em

defesa de idéias republicanas existentes entre os pernambucanos.

Os praieiros, nome derivado da Rua da Praia, em Recife, onde funcionava o

jornal liberal dos revoltosos, o Diário Novo, defendiam um programa bastante

avançado: voto livre e universal, liberdade de imprensa, garantia de trabalho,

nacionalização do comércio, que estava nas mãos dos portugueses, abolição do

trabalho escravo, regime republicano, reformas econômicas e sociais.

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A Revolução Praieira foi um movimento de intensa participação popular, que

reuniu pessoas das camadas mais humildes da população livre, como camponeses

sem terra, boiadeiros, mascates, negros libertos etc.

Desde os movimentos pernambucanos, a República parece ter sido, se não

uma aspiração nacional, pelo menos o ideal político de alguns grupos sociais. Se a

República não foi instituída no momento da independência política do país, isto se

deveu basicamente às opções político-ideológicas dos grupos que a proclamaram

em 1822. Mas, ainda depois de tornado independente o país sob regime

monárquico-constitucional, outras tentativas republicanas se realizaram, como a

Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, entre 1835 e 1845, a Sabinada, na

Bahia, entre 1837 e 1838.

No século XIX, a forma de governo foi alterada de Monarquia para República,

embora se continuasse a importar costumes de outras nações, como: Portugal,

França e Inglaterra. Assim, na época,

[...] diversas foram as correntes filosóficas que iluminaram os pensadoresdesse século: liberalismo, positivismo, darwinismo [...] Muitas foram astendências literárias de nossos intelectuais: num primeiro momento, víamosos ideais classicistas, revisitados no século XVIII pelos estudiosos deentão, continuarem; depois, influenciados por aqueles países europeus, osbrasileiros procuraram pintar o Romantismo como nossas cores; mais parao final do século, contaminados pelo cientificismo vieram o Realismo e oParnasianismo e, para finalizar, as críticas aos ideais não conquistados daRepública auxiliaram no que se convencionou chamar de Pré-modernismo.(FÁVERO, 2006, p. 30)

Ao longo do Segundo Reinado, o republicanismo sofreu sensível

enfraquecimento, tanto em razão dos fracassos do período regencial, como também

em razão da própria estabilidade do Império. Somente depois de 1870, por força das

novas condições abertas nos quadros das transformações econômico-sociais do

país, foi que o republicanismo encontrou possibilidades de ação.

O “Manifesto Republicano”, publicado no Rio de Janeiro a 3 de dezembro de

1870, no jornal A República, redigido por Quintino Bocaiúva, Saldanha Marinho e

Salvador de Mendonça, e assinado por cinqüenta e oito cidadãos, entre políticos,

fazendeiros, advogados, jornalistas, médicos e engenheiros, professores e

funcionários públicos, tornou-se sem dúvida o sinal de revitalização do

republicanismo brasileiro na segunda metade do século XIX, no momento em que o

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país apresentava um conjunto significativo de mudanças sociais e econômicas, e a

Monarquia mostrava claros indícios de estagnação e decadência.

Deve-se procurar, no processo de transformações das estruturas econômicas

e sociais do país, o sentido e a explicação não apenas do novo surto de

republicanismo, mas do próprio movimento republicano que teve seu desfecho em

novembro de 1889.

Na segunda metade do século XIX, o país acelerou seu desenvolvimento

econômico com a expansão cafeeira, com as estradas de ferro, com a navegação a

vapor, com os bancos e com os milhares de imigrantes substituindo os escravos.

No fim do século, o número de estabelecimentos industriais chegara a mais

de seiscentos. Ocorreram, conseqüentemente, mudanças sociais significativas:

urbanização, diversificação e crescimento dos grupos sociais urbanos ligados a

atividades econômicas mercantis, ou liberais, ou à administração pública;

emancipação dos escravos, resultante do colapso da agricultura escravista;

diversificação da própria classe proprietária, com o crescimento de novo setor mais

progressista no interior de São Paulo, responsável pela maior parcela das

exportações de café.

O “Manifesto” de 1870 continha, em grande parte, as aspirações políticas dos

novos grupos sociais ligados a novos interesses econômicos, insatisfeitos com o

estreitismo e imobilismo do regime monárquico, e partidários de amplas reformas

político-administrativas que, porém, só seriam viáveis com a própria mudança

institucional do modelo de regime.

Em relação à literatura, conforme exposto em parágrafos anteriores, na

segunda metade do século XIX, a literatura européia buscou novas formas de

expressão, sintonizadas com as mudanças que ocorriam em diferentes setores:

filosófico, científico, político, econômico e cultural. A renovação da literatura

manifestou-se na forma de três movimentos literários distintos na França: o

Realismo, o Naturalismo e o Parnasianismo. O Realismo teve início com a

publicação de Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert; o Naturalismo, com a

publicação de Thérèse Raquin, de Émile Zola; e o Parnasianismo, com a publicação

das antologias parnasianas intituladas Parnasse contemporain (a partir de 1866).

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A sociedade européia da segunda metade do século XIX vivia os efeitos da

Revolução Industrial e do amplo progresso científico e tecnológico que os

acompanhavam. Podemos dizer que era um momento de vitória do liberalismo e de

prosperidade para a burguesia industrial, mas também o momento em que surgiam

os primeiros levantes de um operariado miserável e o florescimento de idéias

socialistas. No Brasil do Segundo Reinado, as condições socioeconômicas eram

diferentes: o país modernizava sua economia e vivia um processo de mudanças que

levaria ao fim da escravidão e à República.

Em 1859, Charles Darwin publicou A origem das espécies, gerando enorme

polêmica. Pela primeira vez, um cientista desenvolvia uma teoria explicativa da

evolução humana que não era inteiramente compatível com a visão religiosa,

segundo a qual o ser humano fora criado por Deus à sua imagem e semelhança.

A sociedade estava mudando, e os artistas passaram a adotar a nova visão

de mundo que privilegiava a objetividade, em lugar do subjetivismo romântico. Viam

na razão a melhor forma de percepção da realidade, abandonando a valorização

desmedida da emoção. Focalizavam a sociedade como centro de seus interesses,

em lugar de adotar uma perspectiva exclusivamente individualista.

O brasileiro no século XIX era formado em universidades fora do país,

sobretudo em Portugal, possuindo assim uma mentalidade racionalista, de fé nos

conhecimentos científicos (SILVA DIAS, 2005, p. 67, apud FÁVERO, 2006, p. 32).

Em relação à cultura, os livros eram importados de Portugal, pois no Brasil

havia apenas a impressão de periódicos e tradução de manuais e compêndios que

auxiliassem na escola;

[...] nas artes plásticas, pintores vindos para o Brasil com D. João, comoDebret e Taunay, começavam a ser seguidos, e os padres, muitas vezes,somavam à sua função a de fazendeiro, difundindo idéias liberais e, emvirtude de suas constantes leituras, auxiliando na renovação das técnicasrurais. (FÁVERO, 2006, p. 32)

Podemos dizer que, em seu primeiro momento, a República apresentou

poucas mudanças em relação ao período imperial, pois as disparidades sociais

continuaram e a escola ainda era apenas para poucos. Conforme Fávero (2006,

p.39), a modernidade era um objetivo a ser alcançado e somente por meio da

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educação seria possível. Por isso, o número de escolas aumentou em todo o lugar;

assim como o modelo pedagógico advindo da Europa; reformas sucessivas ocorriam

nos programas de ensino, oscilando entre a influência humanista clássica e a

cientificista, sobretudo no que se refere à Língua Portuguesa, já que várias

gramáticas alicerçadas em ambas as vertentes eram lançadas, havendo seguidores

para ambos os gostos.

O século aproximava-se de seu fim e, como costuma acontecer em

momentos assim, uma sensação difusa de que as coisas estavam para se acabar

impulsionava o ser humano em direção a uma postura pessimista, em tudo

justificada pelo agravamento dos problemas sociais desencadeados pela Revolução

Industrial. As pessoas, durante cerca de 50 anos, conviveram com diferentes

tendências de ver e interpretar o mundo em termos estéticos (Romantismo,

Realismo, Naturalismo, Parnasianismo) sem que nenhuma delas tivesse sido capaz

de apresentar respostas satisfatórias para angústias de cunho individual ou para

problemas de natureza coletiva.

Uma visão decadentista espalhava-se pela Europa e correspondia à

sensação de estar vivenciando a fase final de um processo que, embora promissor

em seu início, trouxera graves conseqüências para a organização social. O artista,

testemunha dessa tendência, distanciava-se da sociedade que o envolvia em seus

problemas, voltava-se para si mesmo, para impressões e intuições que refletiam o

tédio provocado pelo mundo que o rodeava.

As angústias do indivíduo perdido em meio à multidão também apareceram

na lírica baudelairiana, traduzindo a impossibilidade de relações humanas sólidas e

duradouras. Tudo passava a ser visto como símbolo de uma essência distante e

praticamente inacessível para o ser humano que, confuso, vagava à procura de

sentido para sua existência.

Florescendo na obra de mestres como Auguste Renoir, Edgard Degas,

Claude Monet, Édouard Manet, Paul Cézanne e Vincent van Gogh, o

Impressionismo apresentou ao mundo uma pintura em que as impressões eram

produzidas pelos jogos de luz e sombra. A utilização magistral da gradação das

tonalidades procurava capturar o momento, o elemento fugaz, ocasional, um

procedimento coerente com a visão que tinham os artistas da civilização finissecular

em que viviam.

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A Europa encontrava-se em intensa turbulência quando o século XX

começou. Problemas de natureza política e conflitos entre países vizinhos

contribuíram para um acirramento de ânimos que culminou, em 1914, com a eclosão

da Primeira Guerra Mundial.

O final da guerra, em 1918, não traria, contudo, o encerramento dos conflitos.

A Europa já não exercia a mesma influência sobre o mundo e mergulhava em uma

crise que alteraria as relações de poder em todo o planeta. As contradições do

capitalismo tornavam-se cada vez mais evidentes e provocaram o aparecimento do

Socialismo.

O período compreendido entre os acontecimentos que levaram à Primeira

Guerra Mundial e o final da Segunda Guerra viu surgir, na Europa, uma série de

movimentos artísticos intitulados de vanguardas.

Esses movimentos, apesar de diferentes entre si, apresentaram em comum o

questionamento da herança cultural legada pelo século XIX. Havia um consenso de

que os padrões acadêmicos e envelhecidos da arte, que se tornara conservadora e

cristalizada, eram coisa do passado. O novo século precisava construir para si novos

padrões estéticos que fizessem frente a um sistema já falido de representação da

realidade. Nesse contexto histórico-social, nasceram Expressionismo, Cubismo,

Futurismo, Dadaísmo e Surrealismo.

O Expressionismo tratava da pintura dramática, subjetiva, evidenciando

sentimentos humanos. Esse movimento não se confundia com o Realismo por não

estar interessado na idealização da realidade, mas em sua apreensão pelo sujeito.

O Cubismo (1907-1914) rompeu com o conceito de arte como imitação da

natureza (que tinha desde a Renascença), bem como com as noções da pintura

tradicional, como a perspectiva. Nesse movimento, temos a geometrização das

figuras que resultava numa arte intuitiva e abstrata, derivada da experiência visual.

Já o Futurismo foi um movimento fundado pelo poeta italiano Fillipo Tomasso

Marinetti, que redigiu um manifesto e tentou espalhá-lo, em 1909. Nesse manifesto,

proclamava o fim da arte passada e a ode à arte do futuro (daí o nome do

movimento, futurismo). As principais metas do futurismo eram a velocidade, a vida

moderna, a violência, as máquinas e a quebra com a arte do passado.

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O Dadaísmo foi um movimento originado em 1915, em plena Primeira Guerra

Mundial. Esse movimento negava todas as tradições sociais e artísticas, tinha como

base um anarquismo niilista. O pessimismo desse movimento vinha de uma

desilusão causada pela guerra.

O Surrealismo foi fundado pelo poeta André Breton. O ponto mais forte desse

movimento foi a poesia, devido ao forte apelo das imagens na descrição de aspectos

subconscientes. O surrealismo foi profundamente ligado a uma filosofia de

pensamento e ação, em que a liberdade era extremamente valorizada.

Não nos estenderemos nesses movimentos (Expressionismo, Cubismo,

Futurismo, Dadaísmo e Surrealismo), porque Calixto não os seguiu.

Sendo assim, para finalizar este capítulo, apresentamos as figuras de Pero

Lopes de Sousa e Benedito Calixto e suas respectivas épocas.

3.2 Pero Lopes de Sousa e o Século XVI

Pero Lopes de Sousa nasceu em Lisboa (1497-1539), foi um militar

português. Filho de família nobre, viveu na corte a infância e a juventude. Ainda

jovem, tornou-se um navegador português.

Martim Afonso de Sousa e Pero Lopes de Sousa foram fidalgos de alta

linhagem. Seus ascendentes eram Pedro de Sousa, seu avô, e Lopo de Sousa, seu

pai, - senhor do Prado, Pavia e Baltar, alcaide-mor de Bragança e do Castelo do

Outeiro.

Em dezembro de 1530, Pero Lopes partiu, com o irmão Martim Afonso de

Sousa, em missão ordenada pelo rei Dom João III de Portugal para explorar terras

brasileiras.

Em 1532 decidiu voltar a Portugal. Na viagem de volta enfrentou e aprisionou

dois navios franceses em Pernambuco. Essa aventura acabou rendendo cinqüenta

léguas de terras no litoral do Brasil, oferecidas pela Coroa.

Provavelmente, em seguida, tenha realizado alguma viagem ao Brasil,

quando a coroa lhe deu terras a capitanear e colonizar. De certo, porém, só se sabe

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que a 24 de março de 1539 partia para a Índia como capitão-mor de uma esquadra

de seis navios em que iam por capitães dos navios: Simão Sodré, D.Roque ou

D.Rodrigo Tello, Álvaro Barradas, Antonio de Abreu e Henrique de Sousa. (cf.

VARNHAGEN, 1975).

Em 1539, ocupando o posto de capitão-mor de uma esquadra de seis navios,

partiu de Lisboa para a Índia. E desta expedição em regresso dos mares indianos,

capitaneando a nau “Gallega” ou “Esperança Gallega”, junto à ilha de “S.Lourenço”

ou de Madagascar, seu corpo desapareceu no mar.

Em contraste, Martim Afonso só depois de capitanear e governar o Brasil; de

lutar e vencer as naus corsárias; depois de ver desmerecidas até suas próprias

glórias, é que partiu, aos 71 anos de idade.

Segundo Varnhagen (1975), “[...] teve Pero Lopes por túmulo o mar em que

ambos luctaram e venceram; e Martim Affonso, as terras da Pátria a que ambos tão

valorosamente serviram.”

No ano de 1839, o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen20 descobriu o

diário de Pero Lopes, Diário da Navegação. Nesse, Lopes de Sousa narra, além de

sua biografia e a de seu irmão, episódios como a fundação da Vila de São Vicente e

Piratininga e os descobrimentos do Rio de Janeiro, do Rio da Prata e da ilha de

Fernando de Noronha.

3.3 Benedito Calixto e os Séculos XIX e XX

Benedito Calixto de Jesus nasceu na cidade de Conceição de Itanhaém, São

Paulo, em 1853. Iniciou sua carreira artística em Brotas, interior do estado, como

autodidata. Ainda que poucos o conheçam pelo nome, é muito improvável que

nunca tenham visto suas telas, reproduzidas em manuais didáticos, enciclopédias, e

publicações comemorativas de datas históricas. Muitos dos acontecimentos

20 Varnhagen nasceu em São João do Ipanema (Sorocaba), aos 17 de fevereiro de 1816, descendiatanto do lado paterno quanto do lado materno de estrangeiros, cuja permanência no Brasil nãoultrapassava quinze anos. Interessante destacar que o historiador Varnhagen, considerado pormuitos o verdadeiro fundador da História do Brasil, seja um brasileiro por “nascimento e adoção”.

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históricos de nosso país remetem a Calixto, como: a pintura da Fundação de São

Vicente, de Brás Cubas, de Martim Afonso de Souza, de Anchieta etc.

Inicialmente, o artista seguiu a orientação profissional do pai. Filho de ferreiro,

Calixto aprendeu marcenaria. A família do pintor tinha uma inserção profissional

variada. A cidade de Itanhaém contava com as atividades variadas alusivas ao

artesanato e à pintura. Calixto realizou estudos na escola do Mestre João do Espírito

Santo. Acompanhava o padre da Igreja Matriz de Sant’Ana em suas atividades e em

sua obra missionária nas regiões vizinhas e nessas atividades desenhava ex-votos

que os “[...] fiéis seus amigos penduravam, em cumprimento de promessas, ao lado

dos altares dos Santos de suas devoções, na velha igreja Matriz.” (CALIXTO NETO,

1925, p. 3 apud ALVES, 2003, p. 51).

Esses votos foram os primeiros contatos de Calixto com a pintura, pois a

tradição portuguesa desses pequenos quadros destinados a agradecimentos estava

ligada certamente à pintura histórica. Por tratar-se de uma vila de pescadores, local

onde nasceu, Itanhaém, a paisagem da costa era constante nos desenhos de ex-

votos.

Aos vinte anos de idade, Calixto aprendeu a pintar na cidade de Brotas e nela

recebeu suas primeiras encomendas. Sua vocação foi despertada a partir do auxílio

prestado ao seu tio, Joaquim Pedro, na recuperação das imagens das igrejas da

cidade de Brotas. Ele começou, então, a desenvolver interesse e conhecimento de

pintura sob a orientação do tio, Joaquim Pedro. Foi também nessa cidade que

Antônio Pedro, maestro, outro tio, forneceu ao pintor conhecimentos musicais.

Nesse período, 1877, Calixto voltou a Itanhaém para casar-se com Antonia

Leopoldina de Araújo.

Em 1881, expôs no saguão do Jornal Correio Paulistano em São Paulo, sem

muita repercussão. Em Brotas nasceram e morreram os três primeiros filhos do

casal Calixto e Leopoldina. Na espera do quarto filho, partiram para Itanhaém e foi

nessa cidade que nasceu Fantina.

Posteriormente, mudou-se para Santos e fez a decoração do teto do Teatro

Guarani. Com uma bolsa do governo estadual, seguiu para a Europa, mais

precisamente Paris, em janeiro de 1883, a fim de estudar desenho e pintura.

Freqüenta a Academie Julien, estudando com Gustave Bonlanger, Robert Fleury e

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Jules Lefebvre e Bouguereau. Calixto seguiu para Paris por volta dos 30 anos de

idade. Interessante destacar que o pintor não passou pela Academia Imperial de

Belas–Artes do Rio de Janeiro, não freqüentou ateliês de ensino, quase não realizou

exposições e não possuía recursos financeiros próprios.

Calixto não era o único pintor atuante em Santos, havia concorrentes; porém,

suas telas se destacaram diante dos outros artistas, fazendo com que ganhasse a

simpatia do público e apoio para estudos.

No final do século XIX, as companhias Docas de Santos e a São Paulo

Railway se instalaram na cidade. Ambas encomendaram do artista santista quadros

de paisagens. Alves (2003, p. 47) afirma que Jaime Caldas, colecionador santista,

possui um raro recibo de pagamento a Calixto por duas pinturas de bondes de

passageiros para a The City of Santos Improvements, números 8 e 9, com valores

respectivos de 75$000 e 150$000.

Em 1875, o artista pintou sua primeira paisagem litorânea: Porto de Santos.

Outras duas telas, Porto das Naus e Desembarque de Martim Affonso de Souza,

pintadas em 1881, revelam um pintor desde cedo empenhado na paisagem

histórica.

Em 1885, voltou ao Brasil fixando-se em Santos e depois na cidade de São

Vicente. Calixto dedicou-se também ao magistério e publicou uma série de livros

relacionados à história do litoral paulista. A partir de 1909 realizou decorações e

murais para igrejas e conventos do interior paulista. Participou da 1ª Exposição de

Arte Brasileira, promovida pelo Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, em 1911.

O pintor caiçara, Benedito Calixto21, foi um artista apaixonado pelas

paisagens, assim como por temas históricos e religiosos, características que

nortearam toda a temática de sua obra, que tem um valor até mesmo iconográfico,

retratando paisagens com precisão. Também compôs obras de temas relacionados

à história do Estado de São Paulo, buscando a reconstituição mais fiel da cena

histórica.

Há controvérsias em torno de suas pinturas, pois, para uns, Calixto expressou

como poucos a natureza tropical; para outros, não foi mais do que um plagiador

decadente de mestres acadêmicos brasileiros e franceses.

21 Fez também o brasão das cidades de São Vicente, Santos e Itanhaém.

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3.4 Um diálogo possível: Pero Lopes de Sousa e Benedito Calixto

Os estudos descobertos por Francisco Adolfo Varnhagen, em 1839, na

Biblioteca de Ajuda, deram a luz para os estudiosos conhecerem a viagem de

Martim Afonso de Sousa. Essa expedição que narra a chegada de Martim Afonso de

Sousa ao Brasil foi descrita por Pero Lopes de Sousa em um estilo técnico e

pitoresco.

Para a realização da 1ª edição a ser publicada desse diário, Varnhagen teve

três cópias do documento original que acabaram desaparecendo. A primeira tinha 72

páginas e foi rejeitada porque era em papel sem marca d’água, com formato in-folio

pequeno. A segunda tinha a letra moderna e apresentava o seguinte título: Diário de

Pero Lopes de Sousa.

Antes de conhecer o códice da Biblioteca da Ajuda, Varnhagen tinha

preferência pela segunda cópia, tendo intenção de publicá-la. Porém, antes mesmo

da publicação, o historiador encontrou o códice da Biblioteca Real do Paço da Ajuda.

Nessa época, Alexandre Herculano – escritor português – era o bibliotecário

da Real Livraria, sob cuja guarda estava o citado documento.

Varnhagen afirma (1975, p. II) que

Trazia “folha de tamanho regular de papel florete ordinário” e era“encadernado com uma pasta forrada de coiros a modo de moscovia, comflorões e bustos na guarnição de redor e nas tarjas” que as atravessavam;“porém estas tão roçadas”, que mal se davam a conhecer. Mostrava “papelcoetaneo, escuro e encorpado, naturalmente fabricado em Genova”, commarca d’água, guardas interiores do mesmo papel e pequena tira com odístico da catalogação: T. N.º 30, Volume I.

Com base nesse manuscrito, o historiador brasileiro pôde rever a segunda

cópia pertencente ao Bispo Conde D.Francisco de São Luiz. A partir dessa revista,

que consistia em estudar a rota e a narrativa da expedição de Martim Afonso de

Sousa até sua chegada e a permanência de Pero Lopes no porto de São Vicente,

Varnhagen completou a segunda cópia e assim apresentou, na 1ª edição, o relato da

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viagem após realizada por Pero Lopes, em regresso a Portugal. O manuscrito da

Biblioteca Real foi encontrado pelo historiador, mutilado em duas partes:

[...] entre a chegada de Pero Lopes à ilha de Santo Aleixo, em 4 de agostode 1532, e a sua partida do Porto de Pernambuco em 4 de novembrodesse mesmo ano; entre o dia 24 de novembro de 1532, quando estecapitão já em pleno Atlântico Septentrional, e o da sua tornada às praiaslusitanas [...] (VARNHAGEN, 1975, p.II).

Esse manuscrito continha o seguinte título:

Naveguaçam q fez p.º lopes de sousa no descobrimento da costa do brasilmilitando na capitania de marti a.º de sousa, seu irmão: na era daemcarnaçam de 1530. (VARNHAGEN, 1975, p. II)

Após um século de estudo do diário, o escritor Jordão de Freitas (apud

VARNHAGEN, 1975) averiguou que esse documento, antes de pertencer à

Biblioteca, fez parte da “[...] excelente livraria organizada pelo 2º Conde de Redondo

– Tomé de Sousa Coutinho de Castelo Branco e Menezes”, parente de Martim

Affonso e de Pero Lopes de Sousa; e, após a morte desse fidalgo, em 6 de março

de 1717, ter passado por compra à Biblioteca “[...] estabelecida por el-rei D.José,

junto ao Paço Real edificado no sítio da Ajuda após o terremoto de 1755.” Dessa

forma, o diário de Pero Lopes foi incorporado à Seção de Manuscritos da Coroa

participando do exílio e do regresso da família real portuguesa.

Varnhagen, ao encontrar o Diário em 1839, não o teve de princípio. A 3ª

edição apresentou “mistérios” no que se refere à autoria do diário, Varnhagen

proclamou-a como do punho de Pero de Góes da Silveira e Martim Afonso; porém,

eruditos paleógrafos atestam que essa edição não foi escrita por Pero de Góes e

Martim. Essa 3ª edição surgiu 14 anos depois da 2ª edição custeada em 1847 pela

Assembléia Provincial de São Paulo; porém, a 3ª edição é considerada pelo

historiador a mais correta edição do diário. Diz ele que

Na “Advertência Preliminar” da 1ª, já Varnhagen achava que, tendo-se de arenovar, deveria o editor “cingir-se mais no texto ao códice original (sic) daBibliotheca de S.M.F. de Lisbôa”, - ou melhor, ao códice da “Biblioteca daajuda” – e supprimir da mesma muitas notas, confrontações preteridas poroutros estudos e peças de menor merecimento. (apud VARNHAGEN, 1975,p. V)

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Mais adiante,

Tal veiu a realizar próprio Varnhagen em 1861 – menos na graphia rude – aodar publicidade a este aprographo como manuscripto original e a consagra-losob o título – “Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa – (de 1530 a1532)” – no tomo XXIV da Revista do Instituto Histórico, Geographico eEthnographico do Brazil. (VARNHAGEN, 1975, p.V)

Seis anos depois surgiu a 4ª edição, cópia fiel da 3ª, publicada por Visconde

de Porto-Seguro. Anos depois, quando os estudiosos aceitaram a autenticidade do

Diário, João Mendes da Almeida negou-a por meio de “[...] desacertos que põem em

cheque as suas qualidades de arguto historiador.” (VARNHAGEN, 1975, p. V).

Todavia, sessenta anos após a publicação da 4ª edição surge a 5ª edição. A

quinta edição foi idealizada por Afrânio Peixoto, publicada na série Eduardo Prado,

anotada pelo Sr. Eugênio de Castro, prefaciada por Capistrano Abreu, data de 1927,

do Rio de Janeiro, em dois volumes, e teve tiragem de 500 exemplares (CASTRO,

Eugenio de, In: SOUZA, 1964, p. 9).

Houve também a sexta e a sétima edições. A sexta foi uma homenagem a

Portugal, levada a efeito pela Comissão Brasileira dos Centenários Portugueses, em

1940, trazendo o mais erudito crítico e explicativo sobre o Diário da Navegação,

estudo levado a efeito pelo Comandante Eugênio de Castro. A sétima edição, objeto

de análise deste estudo, apresenta notas do Comandante Eugênio de Castro e

algumas informações sobre o Brasil.

Partindo para a segunda metade do século XIX, encontramos a figura do

pintor caiçara: Benedito Calixto. Tinha mais ou menos trinta anos quando conseguiu

passar um ano na Academia Julian em Paris. A pintura do teto e do pano de boca do

Teatro Guarani, na cidade de Santos, em 1882, foi responsável pela ida do pintor à

França.

Provavelmente a formação de Calixto adquirida antes de ir para França entrou

em confronto ao tomar contato com as academias de pintura. O público que

apreciava sua pintura era o santista. As expectativas desse público estavam ligadas

aos elementos apreciados em seu trabalho.

Alves afirma (2003, p.81) que

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Esses elementos todos estavam marcados por uma característicaessencial das artes plásticas brasileiras nessa época: uma tensão entre aformação acadêmica e a formação obtida nas oficinas diretamente ligadasàs artes aplicadas. Por um lado, o modelo acadêmico francês tinha fortepresença no Brasil; por outro, sua lenta implantação deixava muitasbrechas preenchidas pelas práticas ligadas às antigas corporações.

Mais adiante,

Se compararmos a situação de Calixto e a dos pintores franceses,verificaremos que não faz o menor sentido cobrar dele, ou de qualquerpintor nas suas condições, a absorção das novas escolas francesas. E issonão pelas deficiências que porventura apresentasse no período em queestudou fora, mas por causa das determinações a que estava sujeito oBrasil. As instituições, como as oficinas e academias, condicionam, emambos os lugares, de maneira distinta, as carreiras dos pintores. A relaçãoexistente entre os ocupantes das posições ligadas à Academia e aquelesligados às oficinas é distinta nos dois países, formando uma situaçãocompletamente diferente no campo artístico e fazendo com que sejaimpossível subsumir a realidade local ao que se passava na Europa.(ALVES, 2003, p.81)

A Academia Imperial das Belas Artes apresentava a seguinte estrutura, na

segunda metade do século XIX: professor, salas, cursos regulares, exposições,

concursos e premiações. Porém, não havia ainda um sistema de ensino que

permitisse aos talentos a evidência necessária.

Conforme artigo publicado pela revista Panóplia de 1917,

Em São Paulo, os pintores quando precisavam vender os seus quadroseram forçados à tarefa insana de collecionar todos os seus trabalhos,catálogal-os e expôl-os ao público, em dois ou três salões do centro dacidade, mediante um aluguel tão elevado, que, por vêzes, lhes absorviatodos os lucros, e, não raro, os obrigava a penosos desenbolsos. (AGALERIA ARTÍSTICA, 1917, p.179)

Confrontando França e Brasil no que concerne aos mecanismos de controle

de aprendizado, produção e comercialização dos quadros, temos um distanciamento

entre os dois países. Na França, os trabalhos artísticos exercidos pelas antigas

oficinas foram suplantados pelo sistema acadêmico. No Brasil, o mesmo não

ocorreu, ou seja, as oficinas foram abolidas e implantada a academia, mas não

houve a instalação de um “sistema” acadêmico em nível nacional, seu alcance era

limitado.

Quanto às elites políticas da época,

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[...] estavam articuladas nos clubes dramáticos e foram estes queforneceram a base material e social para que Calixto vislumbrasse apossibilidade de vir a ocupar a posição de pintor. A existência destesclubes foi a base do mercado no qual a fama de Calixto se consolidou. Arelevância dos mesmos, porém, vai bem mais além: o vínculo estabelecidoentre o teatro e o prestígio político fez com que as artes em geraladquirissem uma importância inédita. Os clubes elevaram uma novaposição social as pessoas envolvidas na produção artística: naadministração do teatro e dos clubes, na organização dos espetáculos e naprodução de textos. (ALVES, 2003, p.85)

Nesse contexto, Calixto lançou-se na carreira por meio da mobilização do

conhecimento da história local, na tela, de momentos fundadores da região, num

período em que São Paulo procurava se destacar na história e na política do país; o

gênero, pintura de paisagem (convém lembrar que, nesse período, esse gênero era

visto como moderno e desafiador da Academia), cuja produção enaltecia o poder

imperial ao qual os paulistas buscavam se opor; estabelecimento de vínculos com

políticos e membros da baixada santista (ALVES, 2003, p. 85).

Conforme Tarasantchi (2002), na última década do século XIX, os artistas que

expunham eram Almeida Junior, Pedro Alexandrinho, Benedito Calixto, a francesa

Bertha Worms (que tinha fixado residência na cidade) e Oscar Pereira da Silva que,

na volta de seus estudos na Europa, abriu seu ateliê na capital.

Acrescenta que, para o entendimento das pinturas paisagistas,

[...] temos de lembrar a influência que nossos artistas receberam dospintores realistas, do tardo impressionismo francês e também da escolaitaliana de paisagem, da Escola de Nápoles e dos macchiaioli, todos elespreocupados com a luz, a hora do dia e a estação do ano.(TARASANTCHI, 2002, p. 100)

Os pintores mais consagrados utilizavam um registro realista preocupados em

reproduzir exatamente o que viam. Ainda, segundo Tarasantchi, os quadros em

grande parte eram executados ao ar livre,

[...] transparecendo espontaneidade, pois o artista, diante da natureza, ficasubjugado por ela. Como os efeitos provocados pela incidência da luzmudam rápido, em geral a tinta era preparada, tanto o tom certo como acor na paleta, que depois o artista aplicava diretamente na tela semtitubear.

[...]

O realismo de suas obras em geral é cheio de poesias. Com o passar dosanos, depois de estudar paisagens paulistas, a luz e as cores, vários

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artistas adquiriram uma pintura personalizada. Assim, as paisagens dePaulo do Valle Jr., Campos Ayres, Clodomiro Amazonas, Benedito Calixto,Torquato Bassi, Túlio Mugnaini, José Perissinoto e Enrico Vio são logoreconhecidas por suas qualidades e sua originalidade. (TARASANTCHI,2002, p. 98)

Quando citamos a figura de Calixto, vale lembrar que o pintor chegou a

hospedar indígenas no quintal de sua residência, para melhor “desenhá-los”, sendo

assim o mais fiel possível. Em relação a sua técnica, João Calixto afirma que

A sua técnica é simples, com ligeiras variantes. Quase sempre era a dapintura direta, isto é, sem sobrepor-se capas de tinta. Nos quadros pintadosem época imediatamente posterior à sua volta da Europa, aindapercebemos um alisamento e muitas vezes o uso de velaturas e tintastransparentes também colocadas diretamente sobre a tela. Já no fim dasua vida a pintura empasta-se e torna-se mais opaca. Ele não buscavamuito efeito, mas sim a sinceridade da narração pictórica. Das cores nãoabusava. Sua palheta era sóbria, embora o colorido fosse vibrante e cheiode luz. (Catálogo Dan Galeria, 1984:II, apud PETRELLA, 1999, p. 26)

Contudo, não podemos deixar de dizer que os pintores do final do século XIX

foram de certa forma ofuscados pelo brilho dos modernistas. Porém, é preciso

termos em mente que muitos dos temas das telas, sobretudo as de Calixto, abordam

o legado dos antepassados.

Assim, apresentadas as figuras de Pero Lopes de Sousa e Benedito Calixto,

acreditamos na possibilidade de um diálogo entre ambos, uma vez que nas pinturas

históricas é perceptível, na sua opção pela escola da natureza e nos recursos do

aprendizado acadêmico, referências ao diário quinhentista.

A distância entre Benedito Calixto e Pero Lopes de Sousa é secular, mas o

interessante é destacar que a Vila de São Vicente pode ser conhecida pelos relatos

de dois indivíduos em épocas diferentes e com nacionalidades diferentes.

Depois de apresentar o clima de opinião dos séculos XVI e XIX-XX, e a

exposição dos “historiadores” português e brasileiro, iremos analisar o Diário de

Navegação, a fim de buscar elementos lingüísticos capazes de estar em

consonância com os quadros históricos.

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4 O SUBSTITUIR PALAVRAS POR PINCELADAS

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[...] as diferenças não são muitas entre palavrasque às vezes são tintas, e as tintas que nãoconseguem resistir ao desejo de quererem serpalavras.

José Saramago

Diante dos dois momentos recortados: séculos XVI e XIX-XX, passamos,

então, a dialogar com a linguagem verbal e com a linguagem imagética, levando em

consideração o clima de opinião, o propósito consciente ou inconsciente mediante o

qual foram produzidas as obras e a localização dos modos de transmissão e suas

sucessivas interpretações.

Benedito Calixto decodificou o passado vicentino em termos pictóricos,

representando em suas telas a memória de São Vicente, criando assim um precioso

resgate da história colonial brasileira. Para isso, utilizou conhecimentos que vão

além de técnicas de pintura e inspiração. Na verdade, utilizou conhecimentos da

ciência História. Diante dessa pressuposição, acreditamos que esses conhecimentos

foram pinçados de documentos representativos para a história de nosso país.

Sendo assim, o confronto entre Calixto e Pero Lopes de Souza visa a

constatar se realmente o pintor caiçara beneficiou-se do Diário perolopolino. Em

termos lingüísticos, iremos esmiuçar – neste capítulo – o documento escrito de

Lopes pinçando os adjetivos e as orações correspondentes, buscando, dessa forma,

uma aproximação com os quadros no que concerne à tonalidade de cores,

estratégias de pintura etc.

A substituição de palavras por pinceladas é o foco desse estudo que tem por

suposição os estudos prévios do Diário da Navegação feito por Calixto. Nesse

sentido, por se tratar de um estudo que une à linguagem verbal do século XVI a

linguagem não-verbal dos séculos XIX-XX, iremos buscar elementos lingüísticos e

imagéticos visando um possível confronto.

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4.1 Análise das Fontes

Para análise do Diário da Navegação, destacaremos os adjetivos e as

orações correspondentes, a fim de encontrar possibilidades maiores para o

confronto dos quadros pintados que se reportam à Vila de São Vicente.

Os gramáticos Celso Cunha e Evanildo Bechara apresentam a seguinte

definição de adjetivo:

O ADJETIVO é essencialmente um modificador do substantivo. Serve: 1º)para caracterizar os seres, os objetos ou as noções nomeadas pelosubstantivo, indicando-lhes: a) uma quantidade (ou defeito); b) o modo deser; c) o aspecto ou aparência; d) o estado. 2º) para estabelecer com osubstantivo uma relação de tempo, de espaço, de matéria, de finalidade, depropriedade; de procedência, etc. (CUNHA; CINTRA, 2001, p.245)

Bechara diz que

Adjetivo – é a classe de lexema que se caracteriza por constituir adelimitação, isto é, por caracterizar as possibilidades designativas dosubstantivo, orientando delimitativamente a referência a uma parte ou aum aspecto do denotado. (BECHARA, 2004, p.142)

Porém, retomando os capítulos anteriores deste estudo, constatamos em

Koerner (1996), ao expor os princípios metodológicos, a preocupação em olhar o

passado com criticidade, buscando a compreensão e a restauração do documento.

Diante disso, é imprescindível atentar para os gramáticos do século XVI, Fernão de

Oliveira e João de Barros, período em que o Diário de Navegação foi composto.

4.1.1 Grammatica da Lingoagem Portuguesa – Fernão de Oliveira

Ao tratarmos da Grammatica da Lingoagem Portuguesa, publicada em 1536,

é mister esboçarmos sobre a figura de Fernão de Oliveira, a fim de

contextualizarmos melhor a obra.

Fernão de Oliveira nasceu em Aveiro, em 1507. Desde os nove ou dez anos

foi educado pelos dominicanos em Évora. Aos vinte e cinco anos fugiu do convento

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e refugiou-se na Espanha. Tinha formação clássica, provavelmente adquirida pelas

inúmeras leituras que a convivência com os religiosos de S.Domingos teriam lhe

proporcionado.

Em relação à sua obra, podemos afirmar que o gramático baseou-se em

gramáticas latinas, enfatizando seus estudos à palavra, de modo que se preocupou

com a formação de palavras e com descrições fonéticas. Vale destacar que o

gramático tinha consciência de que seu trabalho era a primeira anotação da língua,

pois admite

[...] quero q minhas obras se pubriquem e o titolo de seu nome: e dellasseja a primeyra esta como prólogo das outras a notação em alghuascousas do falar: Portugues: na qual: ou nas quaes eu não presumo ensinaraos q mays sabem: mas notarey o seu bo costume [...] (OLIVEIRA, 1975,p.34)

Percebemos, a partir da leitura de sua obra, os seguintes objetivos: a

preocupação em enaltecer a língua portuguesa, aproximando-a das línguas de

prestígio, como o latim e o grego e a tentativa em descrevê-la.

Em sua obra, cita autores para dar credibilidade às suas explicações sobre a

língua. Recorre a autores latinos e gregos indicando semelhança entre sua obra e as

gramáticas clássicas. Nesse sentido, a aproximação da língua portuguesa às línguas

clássicas demonstra soberania ante as demais. Acreditamos que a base latina e

grega das citações corresponde à necessidade de sistematização da língua e à

credibilidade dos conceitos gramaticais explícitos.

A Grammatica da Lingoagem Portuguesa é dividida em capítulos e esses não

apresentam títulos, apenas algarismos romanos. Os cinco primeiros capítulos são

introdutórios, enaltecem a história de Portugal. A exaltação explícita pelo autor

reflete o momento histórico em que a Gramática foi publicada. Com a sistematização

da língua seria possível a imposição dela, levando-a adiante das fronteiras

territoriais, uma vez que se tratava de uma época de grandes descobertas

marítimas.

A partir do sexto capítulo, tem-se a organização da gramática. Fernão

apresenta o conceito de letra, dividindo-a em consoantes e vogais. Além disso,

evidencia concepções advindas da Língua Grega:

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As figuras destas letras chamão os Gregos caracteres e os latinos notas enos lhe podemos chamar sinaes. Os quaes hão de ser tantos como aspronunciações a q os latinos chamão elementos e nos a podemosinterpretar fundametos das vozes e escritura. (OLIVEIRA, 1975, p. 40)

Para o autor, a exposição dos conceitos gramaticais e a origem da

nomenclatura utilizada contribuem para a aprendizagem do aprendiz. A referência às

línguas clássicas é proposital, pois, assim como os gregos, os latinos também são

referências no processo de implantação e sistematização da língua.

Em sua gramática, Oliveira afirma que

[...] se mudão as vozes e com ellas e também necessário q se mude asletras: mas não com tão pouco respeito como agora alghus faze os qescomo chegão a Toledo logo se não lebrão de sua terra a q muito devem.(OLIVEIRA, 1975, p.40)

Podemos dizer, a partir do excerto acima, que para Fernão é de extrema

magnitude cada povo valorizar sua língua. Desse modo, temos em sua obra a

defesa da língua portuguesa, e esta, por sua vez, espelha uma maneira de não se

tornar submisso aos demais povos. Sendo assim, a manutenção e a preservação da

língua nacional é um dever dos portugueses. Evidentemente, tem-se toda uma

questão política infiltrada em sua gramática.

A partir do sétimo capítulo, o gramático trabalha com a melodia da língua,

descrevendo os movimentos da boca para a realização de determinados fonemas.

Além disso, descreve a diversidade do som como característica de determinadas

línguas. Ainda na esteira dos sons, Fernão apresenta as vogais e divide-as em

grandes e pequenas. Confessa que temos oito vogais, mas apenas “cinco figuras”

que as representam. Por este motivo, diz

[...] se he verdade que se não teveremos certa ley no pronunciar das letrasnão pode aver certeza de preceitos: nem arte na língua e cada diaacharemos nella mudança não somente no som da melodia mas tabe nossignificados a vozes porq so mudar hua letra hu acento ou som e mudarhua quantidade de vogal grande a pequena ou de pequena a grande eassim tabem de hua cosoante dobrada em singela ou ao cotrairo de singelaem dobrada faz ou desfaz muito no significado da língua não menos dasfiguras [...] (OLIVEIRA, 1975, p.44, grifos nossos)

Fica claro, no excerto, a importância do conhecimento das letras. Mais do que

isso, a necessidade de sistematização da língua. A questão temporal é, também,

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marcada em sua obra, levando-nos a ter ciência de que a língua é viva, por isso

sofre transformações com o passar do tempo: cada dia acharemos nella mudança.

Posteriormente, Fernão de Oliveira descreve as consoantes tendo a

preocupação em demonstrar ao aprendiz o modo como articular cada fonema.

Percebemos, no decorrer da obra, que grande parte da gramática é centrada nas

letras. Após a descrição das letras, tem-se a descrição das sílabas e acentuação.

Oliveira diz:

Pronuçiasse a letra .b. antros beyços aptados lançado para fora o bafo comímpeto e quasi com baba. (OLIVEIRA, 1975, p.45)[...]Pronuçiasse o .r. singelo co a lingoa pegada nos dêtes qyxaes de cima esae o bafo tremendo na põta da língua [...] (OLIVEIRA, 1975, p.46)

Na descrição das letras do alfabeto, o autor procura oferecer ao estudante,

através de sua escrita, informações da pronúncia de modo que este possa visualizá-

la. Fica evidente, na gramática, a analogia que o gramático faz entre o português e o

grego, pois, à medida que descreve os sons e a acentuação, aproxima o falar

português do grego.

Sendo assim, notamos uma descrição morfológica na primeira gramática da

língua. Assim como Dionísio, Fernão não trabalha com a sintaxe, apenas faz

descrições fonéticas e morfológicas. A obra de Dionísio

[...] não abriga a sintaxe, apenas a fonética e a morfologia, sempre vistas alíngua grega. Ao examinar sua composição, outra observação se impõe:ela não trata propriamente de filologia, como fazia esperar a divisão emseis partes que o autor apresentara no início. (NEVES, 1987, p.116)

Fernão, ao expor em sua gramática sobre o “Nome”, trabalha com a idéia de

gênero e número:

Os nomes se decliuão em generos e numeros: em generos como moçomoça e em numeros como moço e moços. moça e moças: as declinaçõesdos generos são muitas e menos pa cõpreder porq posto q os nomesacabaados em hua letra qualquer sejão mais dhu gênero q doutro não porisso se pode dar regra vniversal como nestas duas letras .a. e. .o...(OLIVEIRA, 1975, p. 85)

A distinção apresentada em suas “anotações” alusivas ao gênero e número

não engloba o adjetivo. Sendo assim, percebemos que o adjetivo em sua gramática

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é parte integrante do nome, isto é, o adjetivo é dado como nome não havendo

dissociação entre ambos.

Na finalização de sua gramática, temos a referência aos verbos e o confronto

com as línguas latim e grego.

Interessante notar a preocupação de Fernão com o português, pois em sua

obra procura sempre associar as línguas clássicas à língua portuguesa. Certamente,

a aproximação é um indício de que temos no latim as bases da nossa língua. Nesse

sentido, o latim foi usado pelo autor como alicerce, atitude típica do homem

quinhentista, uma vez que a retomada dos valores greco-latinos era característica do

Renascimento.

Detectamos, no decorrer da análise, o caráter político e normativo presente

na Gramática de Fernão de Oliveira. Evidentemente, a ênfase dada ao aspecto

político-lingüístico está ligada ao fato de o autor ter sido o primeiro a sistematizar a

língua. Além disso, nas suas “anotações”, está impregnado da cultura greco-latina e

da nossa identidade lingüística.

4.1.2 Grammatica da Língua Portuguesa – João de Barros

A Grammatica da Língua Portuguesa foi publicada, em 1540, por João de

Barros. Esse gramático português nasceu provavelmente em Viseu, por volta de

1496, trabalhou para o futuro rei D.João III. Ao tornar-se rei, D. João III nomeia-o

governador do castelo de São Jorge da Mina. Em 1525, foi nomeado tesoureiro da

Casa da Índia. Por causa da peste que assolava Portugal, retirou-se de Lisboa. Em

1535, foi-lhe concedida uma capitania no Brasil, porém a expedição fracassou.

João de Barros apresenta uma gramática normativa, criando seus próprios

exemplos. Num desses, declara ser o primeiro gramático da língua portuguesa.

Observe:

Temos mais regras para os artigos: todo nome próprio se rege sem artigo eo caso genitivo muitas vezes se rege desta proposição de, por semelhanteexemplo: João de Barros foi o primeiro autor que pôs a nossa língua emarte [...] (BARROS, 1957, p.17)

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Conforme Bastos (1981), ele é realmente o primeiro, se considerarmos o

sentido que é dado à arte, tem como finalidade mostrar como falar e escrever bem;

distinguindo-se de Fernão de Oliveira, preocupando-se em “anotar a língua”.

Em sua obra, há alusão aos gregos. Logo no início, temos a definição de

Gramática dada por Barros, comprovando a importância da referência à língua

clássica, pois evidencia: gramática é um vocábulo grego.

Sua obra é dividida em capítulos, apresentando títulos e subtítulos para

melhor situar o aprendiz. Ao caracterizar cada um dos trechos que desenvolve, o

autor deixa claro que a gramática para ele é para a elite. No decorrer da obra, Barros

também faz referência à língua latina. Cabe lembrar que a gramática latina passa a

ser um modelo, mas

[...] há preocupação em individualizar a Língua Portuguesa, como éverificado nas principais inovações românticas que foram discernindo ou,pelo menos, pressentidas por João de Barros. (BASTOS, 1981, p.25)

Barros utiliza, em sua obra, o falar da época, considerando a língua

portuguesa independente da língua latina. Apresenta, no decorrer de sua gramática,

um sentimento patriótico em relação às demais línguas.

Além das fontes gregas e latinas, baseia-se na gramática de Antonio Nebrija,

do qual não faz nenhuma citação...

[...] talvez pela validade da imitação vigente no classicismo. Cremos noapoio em Nebrija pois, em vários momentos, há definições como essas emambos autores: “Nome é aquele que se declina...” (BASTOS, 1981, p.108)

João de Barros expõe que a linguagem é composta de nove partes, sendo:

artigo, nome, pronome, verbo, advérbio, particípio, conjunção, preposição e

interjeição. Posteriormente, evidencia que a sua gramática segue a estrutura dos

latinos, os quais fazem a divisão em quatro partes: ortografia – trata das letras,

prosódia – trata da sílaba, etimologia – trata da dicção e sintaxe – trata da

construção.

A divisão de sua gramática é feita de acordo com os latinos. Em relação à

estrutura da gramática tem-se: um segmento, às letras; um, à sílaba; cinqüenta e

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oito, à dicção; onze, construção das partes; e nove capítulos relacionados à

ortografia.

Sendo assim, inicia a descrição da língua portuguesa pelas letras, fazendo

alusões aos gregos e latinos. Observe:

Lêtera, segundo os Gramáticos, é a mais pequena parte de qualquerdicção que se pode escrever, a que os Latinos chamaram nota e os Gregoscara[c] ter, per cuja valia e poder formamos as palavras;e a esta formaçãochamam eles primeiros elementos da linguagem [...] (BARROS, 1957, p. 2)

Notamos, no excerto acima, a referência que o gramático faz às línguas

clássicas. Para Barros, o latim é o ponto de partida para a criação de sua gramática

e a justificativa para os conceitos explícitos.

A gramática de João de Barros é uma gramática normativa, demonstra

preocupação com o falar corretamente. Percebemos, a partir da leitura de sua obra,

que o autor tinha como objetivo a preocupação com o ensino do bem falar e do bem

escrever; por isso, não faz descrições minuciosas. Nessa perspectiva, fica clara a

preocupação com o ensino da língua portuguesa. Em sua obra, tem-se um

português próximo do povo, porém, em relação às normas, há uma aproximação das

normas da língua culta.

Segundo Silva (2000), João de Barros segue a tradição greco-latina ao

construir sua obra desenvolvendo, sobretudo, a parte lexicológica. Em relação à

sintaxe, percebe-se que tem um peso pequeno no conjunto da obra.

Interessante destacar que Apolônio Díscolo considera a sintaxe parte da

gramática. Observe:

Apolônio classifica sistematicamente toda a matéria lingüística sobre umabase filosófica, afastando-se do exame do aspecto exterior, característicada gramática Alexandrina. Pela primeira vez vem tratada especificamente asintaxe. (NEVES, 1987, p.117)

João de Barros expõe:

Té qui tratámos das primeiras três partes da Gramática. s. lêtera, sílaba,dição; fica agora vermos a quarta que é da construição.Esta, segundo difinção dos gramáticos, é ua conveniência antre partespostas em seus naturais lugares, per as quais vimos em conhecimento dosnossos conceitos. (BARROS, 1957, p.42)

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Ao tratar das palavras em sua gramática, Barros faz a distinção entre

substantivo e adjetivo destacando-se de Fernão de Oliveira. Em Grammatica da

Língua Portuguesa, temos a apresentação dos adjetivos e das orações adjetivas:

DA DIÇÃODO NOME SUBSTANTIVO E ADJETIVOSerá também calidade em o nome a distinção per que apartamos osubstantivo do adjetivo.Nome substantivo chamamos àquele que per si pode estar e não recebeesta palavra cousa.Nome adjetivo ao que não tem per si, mas que está encostado aosubstantivo e pode receber em si esta palavra cousa, como quando digo;Oh! Que fermoso cavalo! Que bravo touro!Este nome fermoso e bravo são adjetivos, porque não podemos dizerfermoso e bravo sem lhe darmos nome substantivo a que se encostem. Ediremos cousa fermosa, cousa brava, por serem substantivos que nãorecebem em si outros. [...] (BARROS, 1957, p. 6)

DA CONSTRUIÇÃODA CONCORDÂNCIA DO NOME SUBSTANTIVO COM O ADJETIVOAs dições que convém em número, gênero e caso são os nomessubstantivos com os seus adjetivos; per semelhante exemplo: Os homensbons.Aqui estão os homens por nome substantivo em número plurar e são dogénero masculino; e estão no caso nominativo, como se pode ver per suasregras.A todas estas cousas corresponde o nome adjetivo bons, com queperfeitamente recebemos aquela notícia, os homens bons. E não diremoshomem boa, ca desfalece a natural ordem da construição per que noshavemos de entender e parecerá mais fala de negros, que de bomportuguês. (BARROS, 1957, p. 43)

Ainda, na parte sintática de sua obra, o gramático português apresenta os

seguintes itens: da concordância do nome substantivo com o adjetivo, do regimento

dos verbos, dos verbos impessoais, do regimento dos nomes, do regimento do

advérbio, da preposição, da conjunção.

Finaliza as pouquíssimas páginas sobre sintaxe enunciando os casos em que

cada preposição pede, como ocorre na organização das gramáticas do latim. Trata

das conjunções expondo que há a “copulativa” (“ajunta as partes entre si”) e a

“disjuntiva” (“divide as partes”).

A sintaxe presente na obra de João de Barros se resume a observações

sobre a concordância e a regência. Esses elementos são trabalhados até hoje nas

gramáticas tradicionais.

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4.2 Diário de Navegação – Pero Lopes de Sousa

A partir do objetivo exposto, selecionamos trechos do Diário de Pero Lopes de

Sousa que demonstram a descrição dos fatos ocorridos no século XVI alusivos ao

Brasil, tendo como categoria de análise os adjetivos em todas as suas

manifestações na linguagem.

Conforme exposto no primeiro capítulo deste estudo, é importante, no âmbito

historiográfico, adotar os princípios da contextualização, imanência e adequação;

traçados por Koerner. Ressaltamos que, na análise do texto verbal, Diário da

Navegação, trabalharemos com a imanência e a adequação juntas, pois, à medida

que colocamos as mãos no corpus verbal, atinamos a aproximação com a linguagem

atual. Nessa perspectiva, olhamos a obra de Pero Lopes de Sousa com a visão do

gramático do século XVI, João de Barros, e a do gramático do século XXI, Evanildo

Bechara22.

A título de contextualização, em Moderna Gramática Portuguesa, Evanildo

Bechara (2004, p. 20) propõe fazer uma gramática científica normativa. Para isso,

alia preocupação científica a uma preocupação gramatical, afirmando que sua

gramática “[...] alia a preocupação de uma científica descrição sincrônica a uma

visão sadia da gramática normativa, libertada do ranço do antigo magister dixit e

sem baralhar os objetivos das duas disciplinas.”

Quanto à estrutura da gramática, Bechara apresenta a seguinte divisão: I –

Fonética e Fonologia; II – Gramática Descritiva e Normativa; III – Pontuação; IV –

Noções Elementares de Estilística e V – Noções Elementares de Versificação.

Na exemplificação dos conteúdos expostos, no decorrer de sua gramática, o

autor utiliza a literatura, trazendo assim a gramática tradicional como gramática

moderna.

Retornando ao Diário da Navegação (1964), Pero Lopes de Sousa, irmão de

Martim Afonso, narra a fundação da Vila de São Vicente e Piratininga e os

22 Evanildo Cavalcante Bechara é professor, gramático, filólogo e um dos imortais da AcademiaBrasileira de Letras (ABL). Atua nos cursos de pós-graduação e de aperfeiçoamento para professoresuniversitários e de ensino fundamental e médio.

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descobrimentos do Rio de Janeiro, do Rio da Prata e da Ilha de Fernando de

Noronha. Observe as seguintes transcrições:

Na era de 1530, sabado 3 dias do mês de dezembro, parti desta cidadeLixboa, debaixo da capitania de Martim Afonso de Sousa, meo irmão, queia por capitam de hûa armada e governador da terra do Brasil: com ventoleste saí fóra da barra, fazendo caminho do sudoeste. (1964, p.13, grifosnossos)

[...]

Quinta-feira 15 de dezembro ao meo dia tomei o sol em vinte e quatrograos e meo: o vento soltou a lesnordeste brando. (1964, p. 14, grifosnossos)

[...]

Domingo 18 do dito mes, dia de Nossa Senhora ante Natal, andamos emcalma sem ventar bafo de vento; senam grande vaga de mar, que vinha dosudoeste; e os ceos corriam muito tesos do mesmo rumo. (1964, p.14,grifos nossos)

[...]

Segunda-feira 19 do dito mes ao meo dia tomei o sol em vinte e hum grãose tres quartos: demorava-me o cabo das Barbas a leste, e por fazer grandeabatimento com o mar mui grosso, que me rolava para a terra, me fazia dodito cabo vinte leguas. (1964, p.14, grifos nossos)

Terça-feira 20 dias de dezembro ao meo dia tomei o sol em vinte e humgraos e hum quarto; e o vento começou a refrescar do norte, e com ellefazíamos o caminho a sudoeste e quarta do sul. Demorava-me o caboBranco a lessueste: fazia-me delle vinte cinco leguas. Huma hora de solhouvemos vista de duas velas e as fomos demandar: e era hûa caravela ehum navio que vinham de pescaria, e por elles escrevemos a Portugal.(1964, p.15, grifos nossos)

Numa primeira leitura da obra, detectamos que o autor – Pero Lopes de

Sousa – faz uma descrição minuciosa dos fatos. Nos fragmentos é perceptível o uso

de adjetivos, locuções adjetivas, orações adjetivas, adjuntos adverbiais e figuras de

linguagem, possibilitando assim ao leitor uma visualização dos acontecimentos

diários.

No século XVI,

[...] houve a introdução de adjetivos eruditos em il: ágil, fácil, fértil, quemantêm a mesma terminação, e outros como affabil, implacabil, incansabil,terribil, volubil etc. (PAIVA, 1988, p. 24)

[...]

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Existiam também muitos adjetivos em oso que caíram em desuso:omyldoso ou humildoso (humilde – D. Duarte); sobervoso (soberbo –Idem); empachoso (que põe embaraço, que estorva – Idem); [...] (PAIVA,1988, p. 24)

Quanto aos adjetivos, encontramos no decorrer da obra os seguintes: forçoso,

brando, calmo, grosso, grossa, rijo, vermelhas, cheia, tesa, sujo, fundo, grande,

perigosa, dispostos, baxos, feo, entre outros.

Quanto aos adjetivos terminados em –oso, na obra de Pero Lopes de Sousa,

detectamos as seguintes ocorrências:

Quadro 1 – Adjetivos pinçados do Diário da Navegação

... perigosa... (p.27) ...saboroso... (p.51)

... forçoso... (p.30, 60 e 75) ...saborosas... (p.52)

...furioso... (p.34) ...fermosura... (p.58 e 64)

...fermosa... (pp.35, 51, 56, 58 e 59) ...saborosa... (p.59)

...fermoso... (p.51) ...perigosos... (p.61 e 68)

No Diário da Navegação, encontramos algumas ocorrências de adjetivos

terminados em –oso. Segundo Paiva, no século XVI o uso desses adjetivos era

bastante comum, porém eles caíram em desuso com o passar dos anos.

Refletindo sobre os adjetivos terminados em –oso, numa visão do homem do

século XVI, Barros diz:

Este nome fermoso e bravo são ajetivos, porque não podemos dizerfermoso e bravo sem lhe darmos nome substantivo a que se encostem. Ediremos cousa fermosa, cousa brava, por serem substantivos que nãorecebem em si outros. (BARROS, 1957, p. 6)

Na gramática de João de Barros não há referência quanto ao processo de

formação de palavras, por meio de prefixo e sufixo; porém notamos que, ao fazer

alusão aos adjetivos, Barros procura demonstrar a relação existente entre o

substantivo – designado de nome, em sua obra, e o adjetivo.

Para o gramático, os adjetivos necessitam de um substantivo. Levando-nos,

assim, a crer na relação sintagmática entre ambos, pois “[...] fermoso e bravo são

ajetivos, porque não podemos dizer fermoso e bravo sem lhe darmos nome

substantivo a que se encostem.” (BARROS, 1957, p.6).

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Na visão do homem do século XXI, Bechara expõe:

Derivação – Derivação consiste em formar palavras de outra primitiva pormeio de afixos. (BECHARA, 2004, p.357)

[...]

Os afixos se dividem, em português, em prefixos (se vêm antes do radical)ou sufixos (se vêm depois). (BECHARA, 2004, p.357)

Mais adiante,

Sufixos – Os sufixos dificilmente aparecem com uma só aplicação; emregra, revestem-se de múltiplas acepções e empregá-los com exatidão,adequando-os às situações variadas, requer e revela completoconhecimento do idioma. (BECHARA, 2004, p. 357)

Sendo assim, percebemos que os adjetivos terminados em –oso são

formados com o acréscimo do sufixo –oso. Semanticamente, esse sufixo apresenta-

nos a idéia de qualidade em abundância, intensidade. Dessa forma, ao dizer furioso,

saboroso, etc., Lopes estava demonstrando ao seu leitor a intensidade da força do

vento, o gosto do pescado, pois furioso e saboroso diferem, enquanto significado, de

a fúria do vento e o sabor do peixe. Evidentemente, o uso desse sufixo intensifica as

descrições do autor do diário e promove ao leitor uma visualização pitoresca.

A partir das discussões em torno dos adjetivos formados com o sufixo –oso

retirados do Diário da Navegação, convém lembrarmos que tanto os prefixos

quantos os sufixos geram palavras novas aduzindo um novo significado ao lexema,

enriquecendo-o ou transformando-o. O sufixo diferencia-se do prefixo pelo fato de ter

consigo uma gramaticalidade que falta ao prefixo, obviamente, esta é uma atenuante

que distingue estes dois morfemas. Entretanto, percebe-se, apesar da diferenciação,

que há uma grande valia para ambos, uma vez que propiciam uma extensão com

um novo significado, como no caso das expressões furioso e saboroso.

Ao montar uma palavra deve-se escolher a forma que corresponde à intenção

daquele que faz a escolha ou que é imposta pelas regras da língua. Por meio desse

jogo de montar, percebe-se a construção de palavras com vários significados, eles

ficam a critério do falante. Sendo assim, Lopes formou adjetivos para intensificar os

fatos narrados em seu diário de bordo.

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Posteriormente, Paiva acrescenta, ao tratar da gradação dos adjetivos:

O grau superlativo dos adjetivos forma-se com a antecipação de mui oumuito ao grau positivo do adjetivo. Ex.: “...a muyto excellente Reynha donaLeonor sua molher...” (Leal conselheiro); em Rui de Pina encontramos “...tynha o acatamento (aspecto, aparência) de sua presença muygracioso...”;”...foy muy piadoso...”

[...]

Os superlativos sintéticos ainda são raros mesmo na primeira metade doséculo XVI e, quando aparecem, de modo geral são empregados para reis,príncipes, grandes personagens.

[...]

O advérbio muito formava o superlativo à semelhança do adjetivo:“...chorareys por my muy muyto...” (Cancioneiro Geral, II, p.161). (PAIVA,1988, p. 44)

Analisando o Diário da Navegação (1964), detectamos o uso do mui:

Quadro 2 – Grau dos adjetivos retirados do Diário de Pero Lopes de Souza

... mui grosso... (p.14) ...mui grandes... (p.31)

... mui contrário... (p.16) ...mui grosso... (p.32)

...mui escasso... (p.19) ...mui bom... (p.33)

...mui largo... (p.24) ...mui alta... (p.34)

...mui perigosa... (p.27) ...mui chãa... (p.35)

...mui grande... (p.27) ...mui altas... (p.35)

...mui fermosas... (p.28) ...mui grande... (p.41)

...mui alta... (p.29) ...mui baxos... (p.41)

...mui feo... (p.30) ...mui mole... (p.45)

Ao selecionarmos as expressões acima, retiradas do corpus verbal,

observamos o uso demasiado do grau superlativo dos adjetivos, característica do

século XVI. Evidentemente, o superlativo demonstra a exaltação da terra por parte

do autor do diário e ao mesmo tempo a sua preocupação em relatar a grandiosidade

e a beleza da terra para o rei de Portugal. Quanto aos superlativos sintéticos, não

encontramos nenhuma ocorrência, ratificando assim as palavras de Paiva (1988, p.

44) ao afirmar que: “Os superlativos sintéticos ainda são raros mesmo na primeira

metade do século XVI [...]”.

Em Grammatica da Língua Portuguesa, o gramático explica que

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[...] pera falarmos pelo modo superlativo, que é o mais alto grau depriminência e ventagem que se pode dar a algua cousa, ajuntámos estaparte mui ou muito ao comparativo e dizermos: Heitor foi muito milhorcavaleiro que Aquiles. E assi fica Heitor louvado de cavaleiro em grausuperlativo. (BARROS, 1957, p.10)

[...]

Verdade é que [em] alguns nomes que recebemos do Latim, vai asignificação superlativa já formada, assim como doutíssimo, sapientíssimoe outros que o uso nos fez próprios. (BARROS, 1957, p.10)

As palavras de Barros evidenciam a distinção entre o grau superlativo

analítico e superlativo sintético, assim como Paiva ao expor o uso demasiado do

superlativo analítico no século XVI.

Conforme João de Barros (1957, p. 10), o modo superlativo é o grau mais alto

“[...] que se pode dar a algua cousa [...]” Sendo assim, ao utilizar o grau dos

adjetivos, Lopes estava promovendo uma descrição dos lugares, dos gentios, da

fauna, da flora etc., superior aos conhecimentos dos portugueses.

Ao tratar da classe dos adjetivos em Moderna Gramática Portuguesa,

Bechara também faz referência à gradação dos adjetivos:

Gradação do adjetivo – Há três tipos de gradação na qualidade expressapelo adjetivo: positivo, comparativo e superlativo, quando se procede aestabelecer relações entre o que são ou se mostram duas ou maispessoas. (BECHARA, 2004, p.148)

Posteriormente,

O sintético é obtido por meio do sufixo derivacional –íssimo (ou outro devalor intensivo) acrescido ao adjetivo na forma positiva, com a supressãoda vogal temática, quando o exigirem regras morfofonêmicas:cuidadosíssimo. (BECHARA, 2004, p.149)

Nessa perspectiva, notamos que o grau dos adjetivos utilizado pelo autor do

Diário da Navegação é peculiar do século XVI como expressa Paiva em seus

estudos. Ao tratar da gradação, Bechara evidencia a existência de três tipos dessa

gradação (positivo, comparativo e superlativo); porém detectamos no nosso corpus

verbal – diário – apenas a existência do grau superlativo analítico. Provavelmente, a

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inexistência do grau superlativo sintético, no diário, seja devido ao fato de o sufixo –

íssimo ser recente no século XVI.

Paiva afirma que

Os superlativos sintéticos ainda são raros mesmo na primeira metade doséculo XVI e, quando aparecem, de modo geral são empregados para reis,príncipes, grandes personagens. (PAIVA, 1988, p. 44)

Bechara diz:

O sufixo –íssimo é recente na longa história do português e se deve a umempréstimo do latim, durante o Renascimento, com o auxílio do italiano,responsável pela recuperação do sufixo. (BECHARA, 2004, p.149)

Quanto ao aspecto semântico, o superlativo sintético é mais enfático do que o

superlativo analítico, distinguindo-se, assim, da linguagem coloquial em que muitas

vezes utilizamos os advérbios para reforçar o grau superlativo analítico. Bechara

exemplifica: “Ele é muito mais cuidadoso” (2004, p.149). Nesse caso, utilizou-se a

repetição da palavra intensiva para enfatizar o superlativo absoluto.

Ainda no âmbito analítico da língua, notamos, na descrição do mar, a

utilização dos seguintes termos:

Quadro 3 – Descrição do mar no Diário de Pero Lopes de Souza

...grande mar... (p.13) ...grande vaga de mar... (p.14)

... mar mui grosso... (pp.15 e 74) ...mar andava tão grosso... (p.16)

...gram mar... (p.17) ...mar ser cousa mui perigosa... (p.27)

...mar tam grosso... (p.30 e 75) ...mui gram mar... (p. 30, 32, 38, 39 e 48)

...mar grande e mui cruzado... (p.34) ...mar tam grande... (p.34)

...mar mui grande... (pp.41 e 44) ...tam gram mar... (p.42)

...mar mui groso... (p.74) ...mar era tam grande... (p.51)

Nas expressões acima, o autor usou os adjetivos grande, grosso e perigoso

para demonstrar ao leitor as suas impressões do mar.

Segundo o dicionário,

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Grande – 1 de tamanho avantajado; vasto. 1.1 corpulento ou alto. 1.2 delonga extensão; comprido, longo. (HOUAISS, 2001, p.1476)

[...]

Grosso – 1 de maior diâmetro, em comparação com congêneres;volumoso, corpulente. 2 em que há consistência; espesso, denso.(HOUAISS, 2001, p.1485)

[...]

Perigoso – 1 em que ocorre perigo; arriscado. 2 aquilo ou aquele querepresenta, que causa perigo. (HOUAISS, 2001, p.2189)

Sendo assim, percebemos que, ao descrever o mar como grande, grosso e

perigoso, Lopes estava expondo a sua visão do mar no diário, tendo como objetivo

descrevê-lo como um local de grande extensão, com águas grossas e extremamente

perigoso para navegação.

Buscando a simbologia do mar, encontramos:

Símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retorna a ele: lugardos nascimentos, das transformações e dos renascimentos. Águas emmovimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidadesainda informes as realidades configuradas, uma situação de ambivalência,que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão, e que pode se concluir bemou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e aimagem da morte. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2000, p.592)

Na visão de Chevalier e Gheerbrant (2000), o mar simboliza a imagem da

vida e da morte. Relacionando essa simbologia com os adjetivos (grande, grosso e

perigoso), podemos dizer que a incerteza, a indecisão e o medo estavam presentes

na expedição de Martim Afonso de Sousa. Essa pressuposição é ratificada a partir

do léxico utilizado na descrição do mar, pois Lopes no decorrer do seu diário de

bordo demonstra surpresa ao navegar em um mar com águas grossas e perigosas.

Além disso, é possível dizer, também, que a incerteza e a indecisão correspondiam

à terra “achada” e aos gentios que nela viviam, uma vez que o contato entre homem

branco e indígena estava por acontecer.

Em relação ao tempo, Lopes (1964) descreve:

Quarta-feira 11 do dito mês nos deram muitas trovoadas; e de noite aoquarto da prima nos deu hûa trovoada do sueste, e outra do nordeste, commuito vento e água e relampados. (p.18)

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Sesta feira 13 do dito mês todo dia nos choveu. Com o vento nortefazíamos o caminho do sul. (p.18)

Domingo 3 dias de março fazíamos o caminho do sul e a quarta dosudoeste; e ao meo dia tomei o sol em des graos e hum quarto. Á tardenos deram duas trovoadas, hûa do norte e outra de lessueste, com muitaágua e vento: e toda a noite andamos amainados, com muitas trovoadas: ecom os mores pés de vento, que eu até entam tinha visto. (p.26)

Segunda-feira quatro dias de março pela menhãa nos tornou a ventar ovento leste até o meo dia, que nos deu hûa trovoada com muito vento epedra [...] (p.26)

Quarta-feira seis (dias) do dito mês andamos em calma até á noite, quetoda a passamos com muitas trovoadas de vento e relampagos. (p.26)

Domingo 10 do mês de março se fez o vento sueste, e tomava do sul; ecom todalas velas faziamos o caminho do sudoeste. De noite, no quarto daprima, nos deu hûa trovoada com tanta força de vento, que amainados,metia a nao o portaló por debaxo do mal: eram tantos os relâmpagos que otodos nos punha temor [...] (p.27)

Segunda-feira começou o vento sueste a ventar com muita força e com muigram mar: de noite cresceu o temporal tanto e tam forte, que quizeramosarribar e nam nos atrevemos, por ser o mar mui grosso [...] (p.32)

Quinta-feira pela menhãa nos fizemos á vela. [...] Era a cerraçam tamanhaque fazia pouca diferença da noite ao dia [...] (p.38)

Quinta-feira 17 dias do mês de agosto [...] Aqui nesta ilha estivemos 44dias: nelles nunca vimos o sol; de dia e de noite nos choveo sempre commuitas trovoadas e relâmpagos: e nestes dias nos nam ventaram outrosventos, senam desd’o sudoeste até o sul. (p.40)

O tempo no diário é descrito constantemente como ruim, repleto de chuvas e

trovoadas; porém, ao chegar ao Porto das Naus, temos a descrição de um bom

tempo. Observe:

Sesta-feira 27 de dezembro [...] Aqui estivemos nesta ilha 4 dias fazendo-nos prestes para nos irmos ao rio de Sam Vicente. (p.68)

Terça-feira 1º dia de janeiro partimos desta ilha com o vento lesnordeste:fizemos o caminho do (sudoeste). Á noite se fez norte, e fizemos o caminhoa leste toda a noite, com bom vento. (p.68, grifos nossos)

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Quarta-feira 2 de janeiro pela menhãa saltou o vento a sudoeste; fizemos ocaminho ao nordeste e a quarta de leste; e á noite acalmou o vento [...](p.68, grifos nossos)

Sábado 5 dias de janeiro abonançou mais o tempo e o mar; ao meo diatomei o sol em 27 graos. (p.69, grifos nossos)

Interessante destacar que o tempo só é descrito como bom a partir do

momento em que a esquadra de Martim Afonso se aproxima de São Vicente.

Pensando na Língua Portuguesa do século XVI, ou melhor, na sua

sistematização, nos deparamos com as gramáticas de Fernão de Oliveira,

Grammatica da Lingoagem Portuguesa, e João de Barros, Grammatica da Língua

Portuguesa. Sendo assim, entendemos que o uso de adjetivos explícitos no Diário

na visão de Oliveira distingue da visão de Barros, uma vez que, para o primeiro, a

classe dos adjetivos se enquadra na categoria de nome. Na verdade, ao tratar do

Nome em suas “anotações” tem-se a classe de adjetivos subentendida, pois Oliveira

procura situar o leitor dando exemplos que demonstram não haver uma distinção

entre ambos. Entretanto, o gramático João de Barros, em sua gramática, estabelece

uma divisão entre o substantivo e o adjetivo. Expõe também, na parte sintática, a

concordância do substantivo com o adjetivo.

No Diário de Pero Lopes, é perceptível a riqueza de orações adjetivas,

levando-nos a pressupor ser uma característica da época. O número de orações

adjetivas é maior que o de adjetivos. Certamente, o raríssimo uso de adjetivos seja

uma característica, como dito em linhas anteriores, ou uma forma de o escritor

demonstrar um grau de objetividade superior à subjetividade. Observe as

transcrições abaixo (SOUSA, 1964):

[...] andamos em calma sem ventar bafo de vento, senam grande vaga demar, que vinha do sudoeste [...] (p.14)

[...], e por fazer grande abatimento com o mar mui grosso, que me rolavapara a terra [...] (p.14)

[...] e era hûa caravela e hum navio que vinham de pescaria [...] (p.15)

[...] nos morreu hum homem, que trazíamos da ilha de Santiago [...] (p.18)

[...] vimos terra, que nos demorava a loeste [...] (p.20)

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[...] achamos outra nao de França, que tomamos carregada de brasil [...](p.21)

[...] o vento nordeste, que nos era mui largo [...] (p.24)

[...] e a nao de França que tomamos no arrecife do cabo de SantoAgostinho [...] (p.24)

[...] d’antes viram hûa vela ao mar, que ia no bordo do sul [...] (p.24)

[...] h’hûa caravela, que ia para Çofala [...] (p.24)

[...] E achei sete homês da nao Capitaina, que se affogaram na barra doarrecife [...] (p.25)

[...] nao de França, que tomamos [...] (p.25)

[...] Em se pondo o sol demos n’hûa aguagem do rio de Sam Francisco quefazia mui grande escárceo. (p.27)

[...] e fomo na volta do sul até à tarde, que carregou muito o vento [...](p.29)

[...] e mandou soltar o piloto, que o capitam trazia preso [...] (p.31)

[...] o quarto da prima, que se fez o vento lessueste [...] (p.33)

[...] o grande vento, que de noite ventara [...] (p.33)

[...] a nao capitaina, que vinha no bordo do sudoeste [...] (p.39)

Por este rio arriba mandou o capitam I hum bargantim; e a Pedre AnnesPiloto, que era lingua da terra, que fosse haver fala dos Índios [...] (p.40)

Com o vento nordeste fazia o caminho ao longo da costa, que se correaloeste [...] (p.44)

[...] e mandei cortar o cabo ao batel, que tinhamos por popa [...] (p.45)

[...] o batel da caravela, que vinha mui destroçado [...] (p.47)

[...] e mandou a caravela que se fosse a hûa ilha, que estava d’ahi 4 leguasaloeste [...] (p.49)

[...] tendas, que pareciam em hûa praia defronte donde estava [...] (p.52)

[...] achei outro braço, que vinha do noroeste [...] (p.55)

[...] e encheu o rio muito com este vento que retinha a água [...] (p.56)

[...] atravessava a nao o vento que era mui grande [...] (p.70)

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Nos fragmentos acima, notamos a presença das orações subordinadas

adjetivas, equivalentes às idéias da classe de palavras dos adjetivos. Essas orações

acabam por qualificar o “sujeito” das sentenças, proporcionando ao leitor uma

visualização do fato descrito.

Ao usar as orações subordinadas adjetivas, em seu documento de bordo,

Pero Lopes de Sousa estava mostrando ao seu leitor, no caso o rei de Portugal, a

riqueza da terra e o seu deslumbramento diante dela. Nessa perspectiva, os relatos

narrados apresentam, por meio de orações subordinadas, a descrição de um lugar

visto como um paraíso único.

Spina (1987, p. 12), em relação à língua portuguesa do século XVI, diz:

A riqueza de subordinadas (integrantes, explicativas, relativas,entremeadas de orações reduzidas) tornou entretanto o período empolado,fatigante, às vezes confuso, atropelado pelos quês (conjunção e pronomerelativo). A prosa narrativa, sobretudo, torna muito evidente esse tipo deorganização do período.

Na visão de Spina, as orações subordinadas adjetivas tendem a tornar o texto

confuso devido ao excesso de “quês”. Todavia, o uso dessas orações era bastante

comum na escrita do século XVI. Sendo assim, percebemos que o uso de orações

subordinadas no Diário da Navegação vai ao encontro dos estudos realizados por

Spina (1987) ao declarar que na língua portuguesa do século XVI havia a riqueza de

subordinadas.

Gramaticalmente, detectamos em Grammatica da Língua Portuguesa alusão

aos adjetivos nas orações, pois, por ser o primeiro gramático a tratar da sintaxe,

João de Barros apresenta, em “Da construição”, a “concordância do nome

substantivo com o adjetivo”.

Conforme Barros,

A dições que convém em número, gênero e caso são os nomes substantivoscom seus ajectivos; per semelhante exemplo: Os homens bons.[...]Quando o nome é relativo, há de convir com seu antecedente em gênero,número e pessoa, como eu amo os moços, os quais folgam de aprender. Este nome moços é do gênero masculino e do número plurar e da terceirapessoa.

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A todas estas cousas corresponde o seu relativo os quais, por seremmasculinos perante o seu artigo, os, e do número plurar.E não responde em casos, porque os moços estão em acusativo onde overbo faz operação e os quais estão no caso nominativo, por serem autoresdaquela obra aprender. (BARROS, 1957, p. 43)

Mais adiante, afirma que

[...] chamamos relativo àquela parte que faz lembrança de algum nome quefica atrás. E este tal se chama antecedente, per semelhante exemplos: Oshomens que amam a verdade folgam de a tratar em seus negócios. Oshomens estão aqui por antecedente deste que, o qual é relativo dos homenspor fazer deles lembrança e relação. E assim a verdade também éantecedente deste relativo a, que faz dela relação, porque, em dizer de atratar, digo de tratar a dita verdade. (BARROS, 1957, p. 7)

Ao tratar da “concordância do nome substantivo com o adjetivo” e do “nome

relativo e antecedente”, em Grammatica da Língua Portuguesa, percebemos que

João de Barros demonstra uma relação entre o substantivo e o adjetivo, pois afirma

a existência da concordância entre essas classes quanto à flexão em gênero,

número e grau. Diante dessa concordância, o gramático expõe que o relativo, por

exemplo “que”, tende a concordar com o seu antecedente, no caso o substantivo.

Nos fragmentos extraídos do corpus verbal, Diário da Navegação, é possível

visualizar o uso do relativo que e a sua correspondência com o nome. Observe:

[...] tendas, que pareciam em hûa praia defronte donde estava [...] (p.52)

[...] achei outro braço, que vinha do noroeste [...] (p.55)

[...] e encheu o rio muito com este vento que retinha a água [...] (p.56)

[...] atravessava a nao o vento que era mui grande [...] (p.70)

Na concepção de Evanildo Bechara, as orações adjetivas são explicitadas

como orações complexas de transposição adjetiva, pois a oração adjetiva pode ser

representada por um adjunto adnominal, havendo uma equivalência semântica.

Segundo Bechara,

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Subordinação: oração complexa – Uma oração independente do pontode vista sintático, que sozinha, considerado como unidade material,constitui um texto, se este nela se resumir, como em A noite chegou, pode,pelo fenômeno de estruturação das camadas gramaticais conhecido porhipotaxe ou subordinação, passar a uma camada inferior e aí funcionarcomo pertença, como membro sintático de outra unidade; O caçadorpercebeu que a noite chegou. (BECHARA, 2004, p.462)

Quanto ao uso do que, o gramático expõe:

O transpositor relativo que, na oração subordinada reintroduz oantecedente a que se refere, acumula também uma função de acordo coma estrutura sintática da oração transposta. No exemplo acima: O aluno queestuda vence na vida, a oração que estuda, vale por o aluno estuda, já queo pronome relativo é aí o representante do antecedente aluno. Analisandoo aluno estuda, o sujeito explícito é o aluno, o que nos leva a verificar que opronome em que estuda funciona como sujeito explícito do núcleo verbalestuda. (BECHARA, 2004, p. 466)

Para Bechara, as orações subordinadas adjetivas têm o valor e a função

próprios do adjetivo. Exemplificando:

I) Atravessa a nau o vento grande

grandioso

O adjunto adnominal representado pelos adjetivos grandioso e grande pode,

também, ser representado por uma oração que, pela equivalência semântica e

sintática com grandioso, se chama adjetiva:

II) [...] atravessava a nao o vento que era mui grande [...] (SOUSA, 1964, p.70) ↓ ↓

subst. or.subordinada

Semanticamente, de acordo com o enunciado II, extraído do corpus verbal, o

vento que atravessava a nau era grande demais, não sendo um vento qualquer, mas

sim de grande extensão e força.

Evidentemente, a descrição das orações na gramática de João de Barros é

mais “superficial”, ou seja, o gramático não faz alusão às relações existentes entre o

adjunto adnominal e as orações adjetivas, como acontece em Moderna Gramática

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Portuguesa de Evanildo Bechara. Porém, ao discorrer sobre a concordância das

partes e ao relativo nas orações, João de Barros percebe e descreve a equivalência

semântica, implicitamente, entre os adjetivos e as orações adjetivas.

Ainda em sua gramática, João de Barros expõe:

DO REGIMENTO DOS NOMESComo os verbos têm natureza pera depois de si regerem alguns casos,muitos nomes têm preminência de regerem outros, quando se ajuntam aeles, dos quais uns regem genitivo, outros dativo e outros genitivo e dativo.Todo nome substantivo apelativo, em qualquer caso que estiver, pode regergenitivo, cujo súbdito fica, como, quando dizemos: A lei de Deus, naordenação de el-rei, ao filho do conde, amo a verdade dos homens, óvergonha de moço, no paço de el-rei, dizemos mais: cavalo de cemcruzados e trigo de quarenta reais.Temos também alguns nomes ajetivos que têm força de reger nomessubstantivos, que é ao contrairo destes atrás. Uns regem genitivos, como:cubiçoso de honra, pródigo de dinheiro, avaro de privança, limpo de malícia,zeloso de justiça. (BARROS, 1957, p. 45)

No excerto, percebemos que João de Barros tem consciência das regras

gramaticais de outras línguas, pois ao utilizar a nomenclatura genitivo e dativo fica

evidente a alusão à Língua Latina.

Ao tratar do “Regimento dos Nomes”, João de Barros apresenta a

possibilidade de uma palavra mudar de classe gramatical, por exemplo A lei de

Deus. Conforme sua gramática, a palavra lei é um substantivo assim como Deus,

porém, na expressão lei de Deus, temos uma alteração de classe gramatical, pois o

substantivo lei, nesse caso, rege genitivo. Sendo assim, ...de Deus caracteriza lei,

qualificando-a e demonstrando não se tratar de uma lei qualquer e sim de uma lei

divina.

Analisando o Diário de Pero Lopes de Sousa (1964), detectamos as seguintes

expressões:

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Quadro 4 – Expressões extraídas do Diário de Pero Lopes de Souza

... ilha de Santiago. (p.18) ... ilhas de pedras... (p.43)

... abarrotada de brasil. (p.21) (*) ... batel da caravela... (p.47)

... rio de Sam Francisco... (p.27) ... morreo de pasmo... (p.48)

... caminho de sudoeste... (p.35) ...banda do sul... (p.55)

... vento do mar... (p.36) ...sinaes de gente... (p.57)

... pé de vento... (p.38) ... rasto de gente... (p.57)

... quarto da modorra... (p.38) ... ilhas dos corvos... (p.59)

...ilha de Cananea... (p.39) ...ilha das Palmas... (p.67)

... caminho do sul... (p.41) ...caminho ao nordeste... (p.68)

* brasil refere-se ao pau-brasil.

Ao pinçarmos as expressões acima do diário perolopolino, notamos que,

confrontadas com a gramática de Barros, são identificadas como substantivo

apelativo, pois regem o genitivo. Transportando essas expressões para o século

XXI, temos em Moderna Gramática Portuguesa a denominação de Locução Adjetiva.

Locução Adjetiva – é a expressão formada de preposição + substantivo ouequivalente com função de adjetivo:Homem de coragem = homem corajosoLivro sem capa = livro desencapado. (BECHARA, 2004, p.144)

Apresenta também

Substantivação do adjetivo – Certos adjetivos são empregados semqualquer referência a nomes expressos como verdadeiros substantivos. Aesta passagem de adjetivos a substantivos chama-se substantivação.(BECHARA, 2004, p. 145)

Ambos os gramáticos expõem a “troca de papéis” entre o adjetivo e o

substantivo, evidenciando que, de acordo com a estrutura sintática, uma

determinada palavra pode sofrer alteração de classe gramatical.

Semanticamente, notamos que, ao usar a preposição de, Lopes estaria

qualificando o substantivo. Essa qualificação, na gramática de Evanildo Bechara, é

designada de locução adjetiva. Pensando no Diário, temos as expressões Ilha de

Palmas, Ilha de Santiago, Ilha de Cananea, Ilha dos Cornos, Ilha de Pedras etc.,

demonstrando não se tratar de uma ilha qualquer, pois o autor do Diário procurou

caracterizar as ilhas descritas em seu documento de bordo.

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Segundo Bechara (2004, p.313), a preposição de liga “[...] dois substantivos,

imediatamente ou por intermédio de certos verbos, serve para caracterizar e definir

uma pessoa ou coisa.”

Nesse sentido, entendemos que, ao usar a preposição de, Lopes estava

caracterizando as ilhas. Para isso, ligou dois substantivos, por exemplo ilha e

Palmas, por intermédio do de, demonstrando ao leitor não se tratar de uma simples

ilha, mas de uma ilha repleta de palmas (folha da palmeira).

No decorrer do diário, percebemos que Pero Lopes de Sousa constantemente

descreve o vento e o sol dos locais por onde passa. Vale citar algumas passagens:

Quadro 5 – Excertos do Diário de Pero Lopes de Souza

...vento norte mui forçoso... (p.13) ...tomei o sol em trinta e cinco graos e humquarto... (p.13)

...ventou com muita força... (p.13) ...tomei o sol em vinte e hum graos e tresquartos... (p.14)

...vento em calma... (p.14) ...tomei o sol em oito graos e meo... p.17)

... o vento sueste,... (p.30) ...tomei o sol em 19 graos menos 1 terço... (p.33)

... o vento leste,... (p.31) ...tomei o sol em 22 graos e 1 quarto... (p.35)

...o vento leste... (p.32) ...tomei o sol em 32 graos e 1 terço... (p.41)

...o vento lessueste... (p.32) ...tomei o sol em 33 graos e 1 terço... (p.42)

...o vento sueste... (p.33) ...tomei o sol em 27 graos... (p.69)

...vento noroeste... (p.34) ...estando o sol em 21 g. e 3 meudos de leo e alua... (p.77)

... vento noroeste... (p.60) ...ao meo dia tomei o sol em 2.g. e um terço...(p.78)

...vento sudoeste... (p.68) Ao meo dia tomei o sol em 4.g... (p.78)

Ao descrever o sol e o vento dos locais em que esteve, detectamos que o

autor do Diário procura ser o mais objetivo possível deixando evidências de sua

opinião a respeito do clima. A precisão com que descreve o grau relativo ao sol e à

origem do vento leva o leitor, numa leitura superficial, a crer na existência de uma

objetividade pura. Porém, acreditamos estar implícita a subjetividade ao tentar

proporcionar ao leitor um fiel retrato do clima.

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Gramaticalmente, podemos dizer que as expressões, retiradas do Diário,

sueste, noroeste, sudoeste, leste e lessueste, embora sejam consideradas

substantivos, acabam exercendo a função de adjetivo, pois qualificam a expressão

vento. Característica explicitada já na obra de João de Barros:

Como os verbos têm natureza pera depois de si regerem alguns casos,muitos nomes têm preminência de regerem outros, quando se ajuntam aeles, dos quais uns regem genitivo, outros dativo e outros genitivo e dativo.(BARROS, 1957, p.45)

Bechara diz que

Qualquer palavra, grupo de palavras, oração ou texto pode substantivar-se,isto é, passar a substantivo, que, tomadas materialmente, isto é, comodesignação de sua própria forma externa, valem por um substantivomasculino e singular. (BECHARA, 2004, p.128)

Tanto Barros quanto Bechara explicitam a alteração de classe gramatical de

determinadas palavras da língua portuguesa. Essa alteração gramatical trata-se, na

verdade, de um enriquecimento vocabular. Sendo assim, ratificamos a concepção de

que a língua é viva e por isso sofre alterações.

Pero Lopes de Sousa (1964), em seu diário de bordo, chega a fazer

comparações entre Portugal e Brasil. Observe:

Sábado no quarto d’alva acalmou o vento e fui á terra firme por nosfazerem muitos fumos. A terra he mui fermosa, muitos ribeiros d’agua, emuitas ervas e frores, como as de Portugal. (p.43, grifos nossos)

[...] Aqui estive toda a noite; onde matei muito pescado de muitas maneiras:nenhum era de maneira como o de Portugal: tomávamos peixes d’alturade hum homem, amarelos e outros pretos com pintas vermelhas, os maissaborosos do mundo. (p.54, grifos nossos)

Terça-feira 3 de dezembro corria a água aqui tanto, q unam podia ir avanteaos remos. Á tarde nos ventou muito vento sudoeste: com elle fomos pelorio arriba: achava 1 braço, que ia ao norte; outro, que ia ao loeste; e namsabia por onde fosse. Já aqui começa a achar as ilhas, com muitosarboredos e frechos e outras mui fermosas arbores; muitas arvas e florescomo as de Portugal [...] (p.56, grifos nossos)

Segunda-feira 23 de dezembro saí fóra do esteiro:... Nam se pode escrevera fermosura desta terra: os veados e gazelas sam tantos, e emas, e outras

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alimárias, tamanhas como potros novos e do parecer delles, que he ocampo todo coberto desta caça – que nunca vi em Portugal tantasovelhas, nem cabras, como há nesta terra de veados [...] (p.64, grifosnossos)

Partindo da concepção de que o Diário foi escrito com a intenção de informar

ao rei de Portugal a terra “nova”, notamos que, ao utilizar comparações entre

Portugal e Brasil, Lopes está estabelecendo uma descrição comparativa, permitindo

assim que o leitor faça aproximações entre os dois países, sendo o conhecido

Portugal e o “desconhecido” Brasil, e tire suas próprias conclusões.

Posterior à análise do Diário de Pero Lopes de Sousa, convém relacionarmos

a descrição dos fatos expressos na obra com as figuras históricas de Benedito

Calixto.

4.3 Quadros Históricos – Benedito Calixto

Pretendemos, por meio das cores, nos quadros históricos de Benedito Calixto,

aproximar sua produção pictórica da obra perolopolina.

Conforme exposto, em linhas anteriores, o pintor caiçara teve seu período

áureo a partir de 1884, quando voltou de uma temporada de um ano em Paris,

continuando até sua morte em 192723. Estando, assim, localizado entre a extinção

da Academia Imperial de Belas-Artes do Rio de Janeiro em 1889 (sendo reaberta

após com o nome de Escola Nacional de Belas-Artes) e a Semana de Arte Moderna

de 1922, lembrando que ele não freqüentou nem a primeira nem a segunda.

A realização deste trabalho deparou-se com alguns empecilhos, como a

catalogação das obras de Benedito Calixto, pois ele não datava suas telas. Além

disso, os nomes de muitas de suas telas foram repetidos, muitas desapareceram.

Em virtude disso, selecionamos apenas quatro telas de Calixto que retratam pinturas

históricas. Essa seleção foi feita com objetivo de confrontá-las com o Diário de Pero

Lopes de Sousa. É indispensável mencionar que seguimos como categoria de

análise as cores e o foco das telas do pintor caiçara.

23 O pintor morreu intoxicado pelas tintas que usava em seu trabalho, aos 73 anos de idade, em 31 demaio de 1927.

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Selecionamos os seguintes:

Fundação de São Vicente, pintada em 1900, é considerada a maior tela

histórica do pintor caiçara, de 390 cm por 190 cm, pertencente ao Museu Paulista.

Como o próprio nome da tela diz, trata-se de uma pintura da fundação da cidade de

São Vicente por Martim Afonso de Sousa.

Porto das Naus, de 50 cm por 75 cm, foi pintada em 1881 no mesmo ano de

Desembarque de Martim Affonso de Souza, de 47 cm por 73 cm. Ambas estão na

Prefeitura Municipal de São Vicente.

A primeira tela, com paisagem do litoral, intitula-se Porto de Santos, de 1875;

porém Porto das Naus e Desembarque de Martim Affonso de Sousa demonstram um

artista empenhado na paisagem histórica.

Retrato de Martim Affonso de Souza se encontra na Prefeitura Municipal de

São Vicente. Além de pintar Martim Afonso em Fundação de São Vicente, Benedito

Calixto destinou uma de suas telas ao capitão português.

Quadro 6 – Obras de Benedito Calixto selecionadas para análise (*)

LOCAL MEDIDA (cm) DATA

Prefeitura Municipal de São Vicente-Porto das Naus (*)

-Desembarque de Martim Affonso de Souza (*)

50 X 75

47 X 73

1881

1881

Museu Paulista-Fundação de São Vicente (*) 390 X 190 1900

Diário da Navegação-Mapa das baías de Santos e São Vicente.

Prefeitura Municipal de São Vicente- Retrato de Martim Affonso de Souza (*)

A tela intitulada Porto das Naus, pintada no final do século XIX, composta

com base nos relatos existentes de historiadores, demonstra a crença de que Martim

Afonso de Sousa aportou com suas caravelas diretamente no território atual do

município de São Vicente, especificamente no local conhecido como Porto das

Naus. Pesquisadores posteriores descobriram um erro de interpretação nos mapas

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quinhentistas e chegaram à conclusão de que o Capitão da Nau desembarcou em

Santos. Porém, este quadro retrata como teria sido a ancoragem dos portugueses

no Porto das Naus.

Ilustração 1. Porto das Naus: Benedito Calixto, óleo sobre tela, 1881, 50x75cm.Acervo da Prefeitura Municipal de São Vicente

Ao observarmos o quadro, notamos o foco nas naus portuguesas. O

tratamento dado aos barcos é cuidadoso, retratando as grandes e pequenas

embarcações. Sendo assim, acreditamos que a riqueza desses detalhes explícitos

nos barcos acaba justificando o foco da pintura, isto é, as naus portuguesas.

A utilização de nuances da cor verde vai ao encontro das descrições

presentes no Diário de Pero Lopes de Sousa. Podemos dizer que Calixto procurou,

nesta tela, retratar o mar com cores claras e vários tons de azul esverdeado. No

decorrer do diário, Lopes (1964) descreve o mar como grande, grosso e perigoso.

Segunda-feira começou o vento sueste a ventar com muita força e commui gram mar: de noite cresceu o temporal tanto e tam forte, quequizeramos arribar e nam nos estrevemos [...] (p. 32, grifos nossos)

Domingo 24 dias do mês d’abril se fez o vento sueste; e nos fizemos á velacom o mar grande e mui cruzado [...] (p.34, grifos nossos)

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Segunda-feira com o vento, e mar mui grande fazia o caminho do sul,com os papafigos mui baxos. (p. 41, grifos nossos)

Nas transcrições, o uso do superlativo intensifica a descrição dos ventos e do

mau tempo, levando-nos a buscar uma aproximação com a tela Porto das Naus, que

pode ser relacionada com a opacidade da cores utilizadas pelo pintor caiçara.

Conforme explicitado, anteriormente, os adjetivos grande, grosso e perigoso

utilizados na descrição do mar, por Pero Lopes de Sousa, em seu diário de bordo,

descrevem-no como um local de grande extensão, com águas grossas e

extremamente perigoso para navegação.

Ainda, na leitura da tela Porto das Naus, notamos a divisão de três faixas: o

mar, a terra e o céu; porém, o foco está no aportar dos portugueses na baía. A cor

verde é predominante, é a cor utilizada para “pintar” a natureza: o céu, o mar e as

montanhas. Temos, na verdade, nuances dessa cor para caracterizar cada uma

dessas faixas expostas no quadro. Podemos supor que a predominância da cor

verde esteja ligada à visão dos portugueses em relação ao Brasil, terra tropical,

repleta de delícias e riquezas.

Em relação às cores,

O primeiro caráter do simbolismo das cores é a universalidade, não sógeográfica mas também em todos os níveis do ser e do conhecimento,cosmológico, psicológico, místico etc. As interpretações podem variar. Overmelho, por exemplo, recebe diversas significações conforme as culturas.As cores permanecem, no entanto, sempre e sobretudo como fundamentosdo pensamento simbólico. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2000, p. 275)

As cores exprimem as principais funções psíquicas do homem, pensamento,

sentimento, intuição, sensação.

O azul é a cor do céu, do espírito; no plano psíquico, é a cor dopensamento.O vermelho é a cor do sangue, da paixão, do sentimento.O amarelo é a cor da luz, do ouro, da intuição.O verde é a cor da natureza, do crescimento. Do ponto de vistapsicológico, indica a função de sensação (função do real), a relação entre osonhador e a realidade. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2000, p. 280)

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Conforme Chevalier e Gheerbrant (2000), a cor verde estabelece a relação

entre o sonho e o real; pensando no quadro Porto das Naus e Desembarque de

Martim Affonso de Sousa, temos a cor verde em destaque. Partindo do diálogo

sonho e realidade, podemos dizer que o uso da cor foi intencional nessas telas.

Sendo assim, Calixto procurou retratar o sonho dos portugueses no que se refere à

Terra “achada”, eldorado do paraíso, lugar em que se conseguiria e se consegue o

ouro; a realidade por eles vivida, fora da terra e dentro da terra descoberta.

Embora exprimam essas sensações, as paisagens em Calixto não conduzem

a emoções, como alegria ou tristeza. De acordo com Petrella (1999), temos imagens

estáticas, sem movimentos; mas em um forte sentimento de brasilidade.

Há também na tela a figura de pássaros, enfatizando assim, como todos os

elementos do quadro, um clima plácido. Esse clima remete-nos à descrição do

tempo no diário perolopolino, conforme citações já transcritas anteriormente (ver

página 124).

Entretanto, ao buscarmos a simbologia dos pássaros, Chevalier e Gheerbrant

(2000) afirmam que

O vôo dos pássaros os predispõe, é claro, a servir de símbolos às relaçõesentre o céu e a terra. Em grego, a própria palavra foi sinônimo de presságioe de mensagem do céu. (p.687)

[...]

Os documentos mais antigos entre os textos védicos mostram que opássaro ou ave (em geral, sem especificações particulares) era tido comoum símbolo da amizade dos deuses para com os homens. (p.687, grifosnossos)

Na visão de Chevalier e Gheerbrant (2000), os pássaros são vistos como

mensageiros do céu e como um símbolo de amizade entre os deuses e os seres

humanos. Diante dessa perspectiva, os pássaros demonstram a visão do homem do

século XVI, pois é nesse período em que o renascimento revive a antiga cultura dos

gregos e romanos; como se esta ressuscitasse nos séculos XV e XVI. Sendo assim,

os pássaros, na obra de Calixto, além de simbolizarem a visão do homem e

mensagens celestes, simbolizam a relação existente entre o céu e a terra.

Lopes descreve as aves em seu diário:

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[...] quando estais de barlavento vereis muitas aves as mais rebiforcados eAlcatrazes pretos; e de julavento vereis mui poucas aves, e as que virdesserão alvatrazes brancos. E o mar he mui chão. (1964, p.20)

Em outra perspectiva, temos a tela designada de Desembarque de Martim

Affonso de Souza, mostrando como teria sido o desembarque da frota de Martim no

Porto das Naus, em 1532, momentos antes de fundar a Vila.

Ilustração 2. Desembarque de Martim Affonso de Sousa: Benedito Calixto, óleo sobre tela, 1881, 47x73cm.Acervo da Prefeitura Municipal de São Vicente

Nesta pintura, temos a divisão: mar, terra e céu. O ponto de vista escolhido é

o desembarque, diferenciando-se, assim, da tela Porto das Naus que retrata a

chegada dos portugueses. Parece que Calixto estava querendo mostrar uma

sucessão dos fatos históricos: o chegar a terra e o desembarcar.

Ao fundo da tela, temos uma nau. Próximas à terra, pequenas embarcações

com homens brancos, demonstrando o “pisar” dos portugueses nas terras brasileiras

que lhes pertenciam.

Nessa tela, notamos a gradação das cores verde, azul e marrom. As cores

verde e azul são cores agradáveis que procuram descrever o mar, o céu e a

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vegetação. Evidentemente, a nuance dessas cores é intencional, pois promove

passividade.

As telas Porto das Naus e Desembarque de Martim Affonso de Souza

apresentam aproximações no que se refere à tonalidade das cores, pois ambas

apresentam um tom verde fosco predominante. A distinção entre ambas acontece

devido ao foco das pinturas, pois na primeira Calixto enfatiza as naus, detalhando-

as; na segunda tela, o foco é o desembarcar, ou seja, a chegada dos portugueses

na terra. Para focalizar, o que pretendia em cada tela, o pintor deu uma atenção

especial nas naus e nos portugueses, utilizando assim cores variadas, mas opacas.

Os homens saindo das embarcações, em Desembarque de Martim Affonso de

Souza, e pisando na terra foram pintados de outras cores, prevalecendo a cor

amarela. A cor amarela destaca-se na passividade da natureza. É como se Calixto

oferecesse uma nova perspectiva para os leitores de seu quadro. Temos nessa tela

como foco a chegada dos portugueses, a busca pelo “desconhecido”.

Segundo Tarasantchi (2002), em 1892, Calixto expôs novamente em São

Paulo e Odorico Glória, do Diário Popular (em 21/03/1892, 27/04/1892 e 30/07/1892)

comentou os seguintes quadros:

Ao cair da tarde (cópia), N’aldeia, Um idílio e um esboço para um quadrohistórico: Chegada de Martim Afonso a São Vicente. Nesse último, ojornalista elogia a unidade do quadro, mas não concorda com a execuçãoque deu às pessoas, sem vida; parecem comparsas colocados num palco,imóveis. (TARASANTCHI, 2002, p. 103)

Segundo Alves (2003, p. 50), Porto das Naus chega a exibir uma divisão

clássica bastante simples em paisagens aquáticas: três faixas horizontais, uma de

mar, outra de terra e uma última de céu. Já a tela Desembarque de Martim Afonso é

mais complexa, pois a disposição dos vários barcos e das várias porções de terra

(São Vicente insular e continental, a Ilha Porchat e os vários bergantins e naus em

diferentes planos) mostra um trabalho de perspectiva mais elaborado.

As telas Porto das Naus e Desembarque de Martim Afonso de Sousa deram

início ao seu trabalho pictórico-histórico. Essas telas diferenciam-se da Fundação de

São Vicente, pois a narrativa de Calixto procura reforçar o descobrimento, a ênfase

está na chegada em terras estranhas.

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Na visão de Alves,

As duas primeiras telas históricas que ele realizou transmitem um extremocuidado com a exatidão geográfica. As paisagens de fundo não são apenasdecorativas, ou portadoras de algum elemento característico do local. Ospontos de vista escolhidos pelo pintor são precisos e dali se vislumbramexatamente os morros por ele pintados. (ALVES, 2003, p. 75)

Em 1900, Calixto pinta a Fundação de São Vicente. Essa tela está nos planos

do pintor santista desde 1890. Em 1892, Calixto enviou o croqui da tela para Victor

Meirelles24, que acabou devolvendo-o com algumas observações.

Segundo Alves, Victor Meirelles fez as seguintes observações:

Dê mais importância às figuras do primeiro plano, podendo conservar asfiguras como estão; faz-se necessário ainda um grupo de 3 a 5 figuras, asquais, mais próximas do espectador, darão mais importância a todo oconjunto. O grupo dos portugueses está longe demais, precisa sercolocado em segundo plano, e não em terceiro, como está, a fim de que asfiguras fiquem um pouco maiores, podendo também ficar tudo como está,tudo por diante (?), que não o encobrindo senao em parte, (?) mais,ganhando importância e, por isso, distinguindo da (?) que se nota. Aslinhas das árvores do primeiro plano – convém que sejam mais oblíquastornando-se, por isso, mais graciosas. (ALVES, 2003, p.223)

Mais adiante, Alves afirma que

Aparentemente, Calixto seguiu em parte seus conselhos. Incluiu um grupode soldados no primeiro plano, mas manteve o grupo dos portugueseslonge. Parece que Victor tinha expectativas de que Calixto seguisse a suafórmula de composição [...] (ALVES, 2003, p.223)

[...]

Calixto aproveitou alguns conselhos mas aprofundou a falta de destaquepara o grupo de portugueses: atribuindo mais importância ao primeiroplano, mas não trouxe Martim Afonso para um plano mais próximo.(ALVES, 2003, p.223)

Convém lembrarmos que Victor Meirelles pintou a Primeira Missa do Brasil,

obra que ilustrou muitos livros de história no Brasil na década de 1960. Aos 29 anos

de idade, o pintor foi condecorado, por D.Pedro II, com o Grau de Cavaleiro da

24 Victor Meirelles de Lima nasceu em Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis, 18 de agostode 1832. Era filho do casal de imigrantes portugueses Antonio Meirelles de Lima e Maria daConceição. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1847, onde se formou na Academia Imperial deBelas-Artes. Pintou várias obras históricas entre 1852 e 1900, tendo sido um artista que experimentouo reconhecimento e o esquecimento. Faleceu no Rio de Janeiro, em 22 de fevereiro de 1903.

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Ordem de Cristo e Imperial Ordem da Rosa. No ano seguinte, assumiu a cátedra de

Pintura Histórica. Provavelmente, além da amizade, Benedito Calixto tenha enviado

os croquis de sua tela para Meirelles, devido ao conhecimento deste sobre pinturas

históricas.

Os fundos para a execução da tela Fundação de São Vicente vieram com a

comemoração do IV Centenário da Descoberta do Brasil.

Como o próprio nome expressa, essa tela trata da fundação da cidade de São

Vicente por Martim Afonso de Sousa. A tela é um percurso das pinturas: Porto das

Naus e Desembarque de Martim Affonso de Sousa, ambas de 1881.

Segundo Alves (2003, p. 214), na tela intitulada Fundação de São Vicente25, o

pintor incorpora a idéia de “transformação” e da natureza, conseguindo um efeito

profundo ao sintetizar vários momentos em uma mesma tela, e não em uma

seqüência.

Ilustração 3. Fundação de São Vicente. Benedito Calixto, óleo sobre tela, 1900, 390x190 cm.Acervo do Museu Paulista.

A quantidade e a gradação das cores nesta tela, Fundação de São Vicente, é

bem maior que as anteriores que foram compostas praticamente com nuances de

uma mesma cor.

25 Essa tela retrata como teria sido a fundação de São Vicente, em 1532, na interpretação deBenedito Calixto.

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A variedade das cores vivas em Fundação de São Vicente produz no leitor

emoções e sensações diferentes. Atentando-nos para as cores na Fundação de São

Vicente, destacamos duas: a) O vermelho é forte, violento. Está presente nos trajes

dos portugueses como se estes trouxessem a força, a violência e,

conseqüentemente, o sangue. Essa cor acaba despertando a idéia de perigo e

horror. Além disso, o vermelho é a cor da paixão, do sentimento. Sentimento esse

presente no deslumbramento dos portugueses diante das índias e das riquezas da

terra, não nos esquecendo de que a Terra “achada” para o homem branco era como

um paraíso tropical, local de realização de sonhos e conquistas; b) O marrom é a cor

dos índios, remetendo-nos a terra. Podemos dizer que Calixto procura passar a idéia

de que o índio e a terra estão em consonância o tempo todo.

Contudo, percebemos nos quadros históricos imagens estáticas, sem

movimento, enfatizando a ação do homem e não o homem em si. O recorte dado

pelo pintor acaba tornando perene o momento narrado pela pintura.

Nessa tela, detectamos diferença no que concerne à claridade das cores, pois

em Porto das Naus e Desembarque de Martim Afonso de Sousa temos um tom

esverdeado fosco predominante. Já em Fundação de São Vicente a pluralidade de

cores e a vivacidade delas permitem ao leitor uma visualização de transformação e

não de passividade e de um clima plácido. Podemos dizer, também, que essas três

telas juntas procuram demonstrar três momentos, resultando num grande quadro

geral. Nessa perspectiva, o grande texto são os três quadros juntos, em que as

ações aportar, desembarcar e fundar se fazem presentes.

Nessas telas, Porto das Naus, Desembarque de Martim Afonso e Fundação

de São Vicente, temos:

[...] o mar, com as embarcações dispostas nas mais diversas posições,deixando seus reflexos na água calma. O céu, de um azul claro, quasesempre é povoado de pequenas nuvens. Quanto ao tom da água, também éclaro e de vários tons de azul esverdeado. Escuros são somente os cascosdos navios [...] (TARASANTCHI, 2002, p. 107)

Posteriormente, afirma:

O tratamento que encontramos nesses quadros é de grande realismo; apincelada é pequena, não chega a ser fundida. O céu, o mar e as montanhastêm um tratamento mais livre. (TARASANTCHI, 2002, p. 107)

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Além disso, concernente às cores, podemos dizer que a opacidade das cores

em Porto das Naus e Desembarque de Martim Afonso destoam da vivacidade das

cores em Fundação de São Vicente por estarem ligadas às descrições do tempo

explícitas no diário.

A descrição de um tempo bom somente é evidenciada no diário de bordo no

momento em que a esquadra portuguesa, comandada por Martim Afonso, chega ao

Porto das Naus. Anterior à chegada, Lopes descreve o tempo – constantemente –

cheio de chuvas, ventanias e trovoadas.

Em Fundação de São Vicente, o “diálogo” entre os dois povos é retratado por

Calixto. Os pássaros, as naus, o mar, a terra e as montanhas pintadas na tela

servem como palco do encontro: homem branco e homem indígena.

Em Diário da Navegação, também, temos a descrição do encontro dos

portugueses com os indígenas. Observe os excertos:

[...] Este dia vieram de terra, a nado, ás naos indios a perguntar-nos sequeriamos brasil. (SOUSA, 1964, p.23)

Os principaes homês da terra vieram fazer obediencia ao capitam I.; e nostrouxeram muito mantimento, e fizeram grandes festas e bailos;amostrando muito prazer por sermos aqui vindos. O capitam I lhes deumuitas dádivas. A gente desta terra he toda alva; os homês mui bemdispostos, e as molheres mui fermosas, que nam ham nenhûa inveja ás daRua Nova de Lixboa. Nam tem os homês outras armas senam arcos efrechas; a cada duas léguas tem guerra hûs com os outros. (SOUSA, 1964,p.28)

[...] achei a gente que á ida topára nas tendas; e saíram-me 6 almadias, etodos sem armas, senam vinham com muito prazer abraçar-nos: e o ventoera muito; e fazia gram mar; e elles acenavam-me que entrasse para humrio, que junto das suas tendas estava. (SOUSA, 1964, p.61)

Os fragmentos extraídos do diário de bordo apresentam um índio receptivo à

chegada dos portugueses. Evidentemente, essa descrição demonstra a visão do

homem branco e não a dos indígenas, porém essa visão é destorcida na tela de

Benedito Calixto.

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Em Fundação de São Vicente, os índios são pintados seminus e a forma

como foram “colocados” na tela possibilita ao leitor a pressuposição de estarem

espantados devido às expressões e às poses. Próxima aos índios, temos a

vegetação: árvores, plantas e flores. A vegetação recebe um tratamento

diferenciado, pinceladas pequenas e verdes estudados.

Tarasantchi evidencia que

A vegetação recebe um tratamento de pinceladas pequenas e os verdessão estudados. Como sempre, há preocupação com a cor local, com otema, mas encontramos maior liberdade em qualquer outro grupo. Algumasvezes Calixto coloca pequenas figuras à distância, vestidas à moda daépoca; [...] (TARASANTCHI, 2002, p. 108).

No espaço entre as cabanas, Alves (2003, p.217) mostra como

[...] acontece o encontro entre Martim Afonso de Souza e João Ramalho. Oprimeiro está no centro da pequena aglomeração e o segundo, vestindouma roupa branca e rústica. À direita de Martim Afonso (esquerda de quemolha a tela), e do lado esquerdo de João Ramalho, estão os chefes Tibiriçáe Caiuby e, mais atrás de João Ramalho, a sua família. Do outro lado deMartim Afonso estão: Antônio Rodrigues, genro de Tibiriçá, logo atrás deleo pároco Gonçalo Monteiro, que substituiu o donatário no governo dacapitania, e Pero Lopes, escrivão da expedição e irmão do donatário. Oestandarte, imediatamente atrás do pároco, é o da Ordem de Cristo, e abandeira que aparece sobre a cabana da direita é a antiga bandeira dasquinas.

A composição da Fundação de São Vicente por Benedito Calixto permite ao

“leitor” pressupor o contato com documentos da época, pois é evidente um certo

cuidado com a paisagem e um extremo cuidado de precisão geográfica, segundo a

disposição das personagens na tela. Essa tela distingue-se das duas anteriores

devido à forma como as personagens são apresentadas e à riqueza dos detalhes

explicitados, não presente nas anteriores. Além disso, detectamos que nos quadros

que serviram de base para essa tela não há sucessão de personagens no espaço e

a perspectiva aponta para o oceano, enfocando um único evento.

Podemos dizer que a tela Fundação de São Vicente contém duas narrativas

que se entrecruzam, sendo a primeira alusiva ao percurso do navegante e a

segunda, aos índios. As duas, na verdade, têm como ponto de encontro a mistura

dos povos e posteriormente o desenvolvimento paulista. Os índios se opõem aos

portugueses devido à desconfiança, assim como os portugueses desconfiam dos

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índios pela distância das naus. Além disso, no centro da figura, temos as etapas

sucessivas do encontro: os acordos, a mistura e a posse do território. Sendo assim,

percebemos que a ênfase é colocada no encontro entre os povos.

Pensando na descrição geográfica da cidade objetivando compreender

melhor a tela, faz-se necessária uma descrição detalhada da região.

Ilustração 4. Mapa das baías de Santos e São Vicente.Pero Lopes de Sousa. Diário da Navegação.

São Vicente localiza-se em uma ilha cercada por águas pluviais a oeste, sul e

norte, e por águas salgadas a leste. Ao norte, temos a ilha de Santo Amaro e no sul

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terras continentais. Na baía de São Vicente, temos à esquerda a ilha Porchat e à

direita o morro dos Barbosas. Depois da ilha Porchat, estão a praia do Itararé e a

baía de Santos, cujo extremo é a Ponta da Praia, local que dá acesso ao porto de

Santos. O morro dos Barbosas é a elevação vista na paisagem; ele é apenas

sugerido com a elevação que se inicia à direita da tela, no qual um grupo de

indígenas insinua entrar.

Alves (2003, p. 215) expõe que esse local é também o início do caminho que

conduzia ao porto de Tumiaru, que ficava no sopé do morro dos Barbosas, no lado

voltado para o canal dos Barreiros, onde está hoje a ponte Pênsil. O morro mais à

esquerda é a Ilha do Sol, ou Ilha do Mudo, atual Ilha Porchat, e o mais à direita é o

morro de Paranapuã, que fica do outro lado do Mar Pequeno, próximo à praia da

Fortalezinha. O curso d’água que aparece logo à direita de Martim Afonso, um pouco

acima da cabana indígena central, é o ribeiro formado pelas águas do Voturuá,

conhecido na cidade como Córrego dos Sapateiros, hoje canalizado, mas que

deságua ainda nesse mesmo local. Há ainda um outro morro, mais difícil de

perceber, bem à esquerda da tela. É a Ilha Urubuqueçaba, que fica na face da praia

de Itararé e que hoje marca a divisa entre Santos e São Vicente.

Segundo o Diário de Pero Lopes de Sousa (1964),

Quinta-feira 17 do dito mes a água corria ao nordeste, e sem ventoandamos este dia 10 leguas. (p.70)

Sesta-feira 18 do mes de janeiro andamos em calma até sabado do quartod’alva, que se fez o vento sueste, e fazia o caminho ao longo da costa hûalegua de terra, por duno de 35 braças d’area, e ao meo dia tomei o sol em24 graos e 35 meudos. (p.70)

Domingo 20 do dito mes pela manhãa 4 leguas de mim vi a abra do portode Sam Vicente: demorava a nornordeste; e com o vento lesnordestesurgimos em fundo de 15 braças d’areas, meã legua de terra; e ao meodia tomei o sol em 24 graos e 17 meudos; e 2 horas antes que o sol sepuzesse nos deu hûa trovoada do noroeste: pela corrente ser mui grandeao longo da costa atravessava a nao vento que era mui grande; e metia anao todo o portaló por debaxo do mar; se nos nam quebrára a anchorapela unha fôramos soçobrados, segundo o vento era desigual. Como se fezo vento oesudoeste demos á vela; e esta noite no quarto da modorrafomos surgir dentro n’abra, em fundo de 6 braças d’area grossa. (p.70)

Segunda-feira 21 de janeiro demos á vela, e fomos surgir n’hûa praia dailha do Sol; pelo porto ser abrigado de todolos ventos. Ao meo dia veo ogaleam Sam Vicente surgir junto comnosco, e nos disse como fóra nam sepodia amostrar vela, com o vento sudoeste. (p.70)

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O Diário expõe dias anteriores da fundação da Vila de São Vicente, Pero

Lopes faz uma descrição detalhista, assim como Benedito Calixto em sua tela.

Lopes evidencia o calor do sol, a direção do vento e a localização geográfica.

Interessante destacar que Benedito Calixto se preocupa também com posição

geográfica na sua tela.

Segundo Alves (2003, p. 215), Benedito Calixto supõe

[...] que Martim Afonso de Sousa teria adentrado a baía de Santos a partirdo mar aberto, atravessando o pequeno canal entre a ilha do Mudo e SãoVicente insular, cruzado a baía de São Vicente e fundeado a esquadrajunto ao morro de Paranapuã. Depois teria atravessado de batel o MarPequeno até a praia de São Vicente, próximo ao morro dos Barbosas,caminhando ao longo do curso das águas do Voturuá e, finalmente,encontrado com João Ramalho, Tibiriçá, Caiuby, Antônio Rodrigues e suasrespectivas famílias.

Notamos que a suposição de Calixto vai ao encontro das descrições explícitas

no Diário de Pero Lopes de Sousa, pois, conforme apontado nos dias anteriores da

fundação da Vila, a nau portuguesa no dia 20 de janeiro estava no porto de São

Vicente atual baía de Santos. No dia seguinte, passava pela Ilha do Sol, hoje

conhecida como praia do Góes. Isto é, no canal entre a ilha de São Vicente e a ilha

de Santo Amaro. Certamente, o pintor caiçara, ao retratar a fundação da Vila de São

Vicente em sua tela, escolheu cuidadosamente a paisagem, a fim de situar o seu

público. A localização geográfica na tela de Calixto é fiel ao Diário de Pero Lopes,

levando-nos a crer que o pintor teve contato com a obra perolopolina. A paisagem

pintada por Calixto é um retrato do local em que houve a colonização da Vila de São

Vicente.

Ainda na visão de Alves (2003, p. 216), na figura pintada por Calixto,

A baía é salientada ainda por vários recursos. O primeiro é a luminosidade,que está acentuada acima dela pelas nuvens ao fundo e, abaixo, peloúnico ponto de praia deserta, onde as águas encontram a areia clara. Osegundo recurso é o enquadramento em forma de losango por quatroelementos: três naus (acima, à direita, e à esquerda) e a ponta do porta-troféus da tribo de Piqueroby, com uma caveira animal, que aparece logoatrás do grupo de três índios no primeiro plano à direita. Outros recursostambém concorrem para o destaque à baía, emoldurando-a; a porção demata verde à esquerda, logo atrás da árvore seca, que forma uma ponta deflecha, ou um “V” deitado, apontando para esse ponto; e o curso doCórrego dos Sapateiros, que deságua no mesmo local.

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[...]

Ao longe podemos distinguir vários grupos de indígenas e portuguesesespalhados por todo território. Destacam-se dois deles: o primeiro,localizado logo à direita do grupo integrado por Martim Afonso, é formadopor frades, franciscanos e indígenas da tribo Tibiriçá e Caiuby; e o segundoestá em torno do altar onde foi celebrada a primeira missa em São Vicentee local onde foi levantada a povoação que em breve foi destruída pelo mar.(ALVES, 2003, p. 217)

Pero Lopes de Sousa faz alusão aos indígenas e às naus portuguesas em

seu diário português. Observe:

[...] A gente desta terra sam homês mui nervudos e grandes; de rosto sammui feos: trazam o cabelo comprido; alguns delles furam os narizes, e nosburacos trazem medidos pedaços de cobre mui lucente: todos andamcobertos com pelles: dormem no campo onde lhes anoitece: não trazemoutra cousa comsigo se nam pelles e reides para caçar: trazem por armashum pilouro de pedra do tamanho d’hum falcão [...] (p.67)

[...] O falar delles he do papo como mouros. Quando nos vinham ver namtraziam nenhûa molher comsigo; nem vi mais que hûa velha, e comochegou a nós lançou-se no chão de bruços; e nunca alevantou o rosto: comnenhuma cousa nossa folgavam, nem amostravam contentamento comnada. (p. 67)

Segunda-feira 21 de janeiro demos á vela, e fomos surgir n’hûa praia dailha do Sol; pelo porto ser abrigado de todolos ventos. Ao meo dia veo ogaleam Sam Vicente surgir junto comnosco, e nos disse como fóra nam sepodia amostrar vela, com o vento sudoeste. (p.70)

Temos, então, mais um elemento que permite relacionar as pinturas de

Benedito Calixto ao Diário de Pero Lopes de Sousa. No quadro Fundação de São

Vicente, temos dois planos:

[...] no primeiro plano os índios arredios: alguns misturados na mata, sendoque apenas as suas cabeças aparecem; outros espiando, desconfiados, oencontro dos portugueses degredados e índios com Martim Afonso e osnobres que o acompanhavam... [...] Neste segundo plano, já ocorre umrelacionamento amistoso: o encontro dos degredados e suas famíliasindígenas com Martim Afonso e os nobres [...] (ALVES, 2003, p. 218)

Percebemos ao visualizarmos o quadro que retrata a fundação da Vila de São

Vicente várias cenas pintadas por Calixto, comprovando assim o estudo do Diário de

Pero Lopes por parte do pintor santista. Devido às várias cenas pintadas,

detectamos que a baía é a personagem principal da tela, pois é ela responsável pela

ligação dos eventos.

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Na tela a Fundação de São Vicente, o pintor caiçara pinta a figura de Martim

Afonso de Sousa.

Alves afirma que

A razão de Calixto apresentar Martim Afonso daquela maneira em AFundação de São Vicente, portanto, não está ligada à suposição deausência de poder ou importância do navegador. Isolado, sua relevância éincontestável, mas inserido no contexto dos acontecimentos, o seu papelhistórico ganha significância a partir da análise de outros momentoshistóricos, ou seja, a partir da inserção desse acontecimento em umaseqüência de acontecimentos. Martim Afonso mereceria ser veneradoporque seus atos deflagraram “transformações”. Porque ele foi decisivopara uma determinada “fase”, cuja avaliação deveria ser entendida a partirda avaliação das “fases” que lhe sucederam. (ALVES, 2003, p. 226)

Além de pintar Martim Afonso na tela Fundação de São Vicente, Calixto

pintou uma tela intitulada Retrato de Martim Affonso de Souza. Certamente, para a

composição desse retrato foi preciso buscar informações a respeito da figura de

Martim. Sendo assim, acreditamos que o pintor lançou mão novamente da história

escrita para compor a história pintada. O foco do quadro é Martim Afonso de Sousa.

Ilustração 5. Retrato de Martim Affonso de Souza. Tela de Benedito Calixto.Acervo da Prefeitura Municipal de São Vicente

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Segundo o Diário da Navegação (1964), Martim Afonso de Sousa, em missão

ordenada pelo Rei Dom João III de Portugal, veio para o Brasil com a intenção de

explorar e colonizar as “terras brasileiras”. Observe as transcrições:

[...] parti desta cidade de Lixboa, debaixo da capitania de Martim Afonsode Sousa, meo irmão, que ia por capitam de hûa armada [...] (p.13, grifosnossos)

[...] e como foi noite mandou o capitão I26 a Baltazar Gonçalves, capitãoda caravela Princeza que fosse diante, e levasse o farol; e assim fomos atépela manhã [...] (p.16, grifos nossos)

[...] e mandou o Capitam I dous navios na volta do norte, e – na volta emque a nao ia, e outros dous na volta do sul [...] (p.20, grifos nossos)

[...] Estando assim com a nao tomada chegou o capitam I com os outrosnavios; logo abalroei com a não e entrei dentro; e o capitam I, abalrooucom o seu navio [...] (p.22, grifos nossos)

[...] Os principaes homês da terra vieram fazer obediencia ao capitam I[...] (p.28, grifos nossos)

[...] E o capitam I mandou lançar o se esquife fóra; e mandou nelle o pilotoque fosse sondar por o rumo do sul [...] (p. 35, grifos nossos)

[...] pela menhãa abonançou o tempo; mas era contrário a partirmos: emandei hum homem por terra á ilha das Palmas, donde Martim Afonsoestava, a lhe dizer que, se o tempo durasse, nos mandasse mantimento,que estava em grande necessidade delle. (p.66, grifos nossos)

[...] E mandou Martim Afonso a caravela ao Porto dos Patos, para ver seachava bargantim ou a gente delle, [...] (p.68, grifos nossos)

[...] e estes castelhanos deram novas ao capitam I de muito ouro e prata,que dentro no sartam havia; e traziam mostras do que diziam e afirmavamser mui longe [...] (p.71, grifos nossos)

Os termos grifados, nos excertos, permitem, juntamente com os fatos

históricos, visualizar a imagem de Martim Afonso, isto é, um capitão corajoso e fiel

às ordens do rei. O uso dos verbos explícitos no diário e as descrições das ações de

Martim e de outros homens levam-nos a pressupor o respeito e o status dessa

26 No diário aparece, muitas vezes, Capitam I quando se refere a seu irmão, Martim Afonso de Sousa.

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personagem. É possível dizer, também, que a autoridade de Martim foi mostrada por

meio dos símbolos espada, cruz e documentos.

Em Retrato de Martim Affonso de Souza, as cores vermelha e verde têm

maior destaque.

O vermelho vivo, diurno, solar, centrífugo, incita à ação; ele é a imagem deardor e de beleza, de força impulsiva e generosa, de juventude, de saúde,de riqueza [...] (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2000, p. 945)

O verde é cor de água como o vermelho é cor de fogo, e é por essa razãoque o homem sempre sentiu, instintivamente, que as relações entre essasduas cores são análogas às de sua essência e existência. (CHEVALIER;GHEERBRANT, 2000, p. 939)

Na visão de Chevalier e Gheerbrant (2000), o vermelho e o verde são cores

opostas, retratam o fogo e a água. O vermelho é a imagem da beleza sendo

utilizado para a pintura de Martim Afonso de Sousa, incitando à ação. Já o verde,

alusivo à água, enfatiza ao “leitor” a importância do mar para o homem do século

XVI. Nessa perspectiva, entendemos que Martim Afonso, representando o fogo, por

meio da cor vermelha, superou os mistérios do mar, ao percorrê-lo até as terras

“portuguesas”.

Além disso, essas cores permitem ao leitor buscar uma associação com as

cores da bandeira de Portugal, caracterizando assim Martim Afonso como um

patriota. Acreditamos que, para a composição dessa personagem, Calixto utilizou

conhecimentos históricos.

Segundo o diário, a colonização da Vila de São Vicente aconteceu por ordem

de Martim. Observe:

Terça-feira pela menhãa fui n’hum batel da banda d’aloeste da Bahia eachei hum rio estreito, em que as naos se podiam correger, por ser muiabrigado de todolos ventos e á tarde metemos as naos dentro com o ventosul. Como fomos dentro mandou o capitam I fazer hûa casa em terra parameter as velas a emxarcia. Aqui neste porto de Sam Vicente, varamos hûanao em terra. A todos nos pareceu tam bem esta terra, que o capitam Ideterminou de a povoar, e deu a todolos homês terra para fazeremfazendas: e fez hûa villa na ilha de Sam Vicente e outra 9 leguas dentropelo sartam, á bordo d’hum rio que se chama Piratinimga e repartiu a gentenestas 2 villas e fez nellas oficiaes: e pôz tudo em boa obra de justiça, deque a gente toda tomou muita consolaçam, com verem povoar villas e terleis e sacrefícios, e celebrar matrimônios, e viverem em comunicaçam dasartes; e ser cada um senhor do seu; e vestir as enjurias particulares; e tertodolos outros bens da vida sigura e conversável. (1964, p.71)

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O excerto descreve como ocorreu a colonização da Vila de São Vicente

remetendo-nos assim, mais uma vez, para a tela Fundação de São Vicente.

Evidentemente, não só a composição dessa tela, como nas demais alusivas à Vila,

foram utilizados documentos históricos. A riqueza de detalhes e as cenas que

Benedito Calixto pinta são cenas descritas por Pero Lopes de Sousa.

Nesse sentido, podemos dizer que os adjetivos e orações correspondentes

peculiares da língua escrita contribuem e muito para as pinturas, pois, por meio da

linguagem verbal, Calixto construiu a linguagem imagética dos fatos narrados.

A suposição, explícita, no decorrer deste estudo, de que Calixto teria se

apropriado de documentos da época para compor suas figuras históricas pode ser

ratificada com a seguinte transcrição:

Calixto não é um pintor que trabalha com o velho sistema de reprodução detelas dos grandes mestres europeus. A sua opção pela pintura ao ar livredeve ter-se desenvolvido a partir da leitura de revista e do conselho decolegas de ofício. Assim, Calixto teria não só se informado das novidadescomo conseguido adquirir material necessário à realização de suaspinturas no estado de São Paulo. (ALVES, 2003, p. 74)

Alves, ainda, acrescenta:

O diário da navegação de Pero Lopes funcionou, para São Paulo, comouma espécie de certidão de batismo local. A partir dela é que se tornoupossível traçar a localização dos primeiros sítios em plagas paulistas, seusocupantes, nomes de família, extensão de propriedades e comparar aimportância desses personagens com outros significados para a históriapátria, cuja consagração estava consolidada pelo Instituto HistóricoBrasileiro e pela História até então escrita sobre o Brasil.Um dos grandes problemas para a definição desses elementos todos é quepoucos conheciam os detalhes e marcos citados na carta. Calixto, desdecedo, pesquisava nos arquivos locais, com o intuito de recuperar asinformações orais sobre esses eventos que ainda estivessem presentesnas memórias dos habitantes do litoral, e que provavelmente revelavamdados que podiam ser esclarecedores das dúvidas presentes na leituradesse documento. (ALVES, 2003, p. 74)

Sendo assim, entendemos que o pintor caiçara foi um grande intérprete

pictórico do Diário da navegação de Lopes.

Através de suas telas, participa ativamente do momento de nascimento deuma nova abordagem histórica, que recolocava em outras bases apresença e a importância do estado de São Paulo para a história da Pátria.(ALVES, 2003, p. 74)

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Muitas de suas telas são fragmentos do passado de Santos, São Vicente ede Itanhaém. Produziu êle, ainda, numerosos quadros religiosos oupainéis. Eram-lhe todos êsses trabalhos objeto de longas e solitáriasvigílias. Êles o obrigavam a fazer demoradas pesquisas nas fontesdocumentárias. (TRIBUNA DE SANTOS, 14/10/1962)

Convém lembrarmos que Calixto foi membro do Instituto Histórico e

Geográfico de São Paulo - IHGSP e também um dos fundadores do Instituto

Histórico e Geográfico de Santos, contribuindo com vários textos alusivos às cidades

litorâneas e aos primeiros colonizadores vindos ao Brasil. Evidentemente, essa

tendência está impressa em suas telas, pois investigava a histórica local para

fundamentar suas pinturas históricas.

Segundo Alves,

Calixto participou ativa e decididamente no debate historiográfico a respeitoda veracidade do diário perolopolino e da interpretação do seu conteúdo,ocorrido, principalmente, no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, doqual seria sócio. Procurava-se identificar o local exato onde Martim Afonsoteria fundeado sua armada, que lugares teria visitado, quais os seuspercursos, quais os marcos geográficos citados na carta, quem seriam oshomens que o acompanhavam, quais teriam ficado quando ele partiu, qual alocalização exata do estabelecimento de suas propriedades e o seu postohierárquico etc. (ALVES, 2003, p. 25)

Após as menções, entendemos que Calixto se tornou o decodificador do

passado em termos pictóricos, evidenciando em suas telas a memória paulista,

criando assim um registro da história colonial da nação.

4.4 Pena e Papel versus Tela e Pincel

Estabelecida a análise do corpus, Diário da Navegação de Pero Lopes de

Sousa e os Quadros Históricos de Benedito Calixto, faz-se necessário discorrer

sobre o dialogismo presente nesses documentos.

Para o confronto, destacamos no diário perolopolino os adjetivos e as orações

correspondentes. Já nos quadros do pintor caiçara, observamos as cores, a fim de

buscarmos um diálogo entre os corpus verbal e não-verbal.

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No Diário da Navegação, Lopes, numa riqueza de detalhes, narra fatos como

a Fundação da Vila de São Vicente e Piratininga, Descobrimentos do Rio de Janeiro,

do Rio da Prata e da Ilha de Fernando de Noronha.

Benedito Calixto pintou retratos, São Paulo antigo, Santos antigo, panoramas

da cidade de Santos, cenas de Santos e São Vicente, pinturas religiosas, marinhas,

cenas de São Paulo, ruínas e conventos e quadros históricos.

Entretanto, em nosso trabalho, pinçamos apenas os quadros do pintor

caiçara, Benedito Calixto, alusivos à cidade de São Vicente; porém, não podemos

deixar de mencionar que o pintor também retratou a fundação do Rio de Janeiro,

permitindo-nos crer no contato com o documento de Pero Lopes, pois o escritor

narrou o descobrimento do Rio de Janeiro.

No documento Diário da Navegação, a riqueza de detalhes é carregada de

locuções adjetivas, orações adjetivas, adjuntos adverbiais e figuras de linguagem.

Lingüisticamente, as palavras correspondentes a essas classes gramaticais

demonstram a intenção do autor ao relatar para o rei de Portugal as suas

impressões da terra, que lhe pertencia. Sendo assim, acreditamos que, ao ler o

diário, Calixto projetou para suas telas, por meio do pincel, as impressões de Lopes

expressas no papel por meio da pena. Com base nessa visão, poderíamos

questionar: Em que momento a leitura do rei se aproxima da leitura de Calixto?

Porém, partindo para nosso confronto, Pero Lopes versus Benedito Calixto,

detectamos nas pinturas históricas, referentes à Vila de São Vicente, o uso de cores

vivas e opacas, assim como nuances de diversas cores numa mesma tela.

Provavelmente, essa diferença entre tonalidades de cores seja intencional, sendo

uma maneira de aproximação com a linguagem de Lopes, já que o escritor

português utilizou a língua para apresentar o deslumbramento com a terra.

Restringindo-nos às telas de Calixto, notamos que em Porto das Naus, 1881,

o pintor compôs a tela baseando-se nos relatos de historiadores ao descreverem

que Martim Afonso de Sousa aportou onde hoje é a cidade de São Vicente. Já em

Desembarque de Martim Affonso de Souza, composta também em 1881, temos o

desembarcar da esquadra portuguesa. Sendo assim, nessas duas telas, temos dois

momentos: o aportar e o desembarcar.

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A aproximação das cores opacas nas telas Porto das Naus e Desembarque

de Martim Affonso de Souza é proposital, denotando, supostamente, um ar de

mistério, de desconhecido. Ainda, tratando das cores, a tela Fundação de São

Vicente apresenta uma “explosão” de cores vivas, distinguindo-se das duas

anteriores. Nessa tela, temos a questão da colonização presente, o fundar a Vila.

Diante dessa perspectiva, podemos crer na existência de uma seqüência narrativa

entre os três quadros, o aportar, o desembarcar e o fundar. Evidentemente, essa

interpretação assemelha-se à interpretação de um texto de linguagem verbal em que

o leitor necessita desconstruir o texto e reconstruí-lo, a fim de buscar a compreensão

do texto.

Com base nessa relação das três pinturas de Calixto, percebemos mais de

um contato com o Diário da Navegação, pois no documento perolopolino temos os

fatos narrados em seqüência: aportar, desembarcar e fundar. Ações que se integram

e compõem a história da fundação da Vila de São Vicente, seja por meio da escrita,

seja por meio da pintura.

Além disso, detectamos nas descrições de Pero Lopes um pintar realizado

por meio dos adjetivos e orações correspondentes, permitindo uma visualização dos

fatos narrados.

No Diário da Navegação, o uso do grau superlativo dos adjetivos é riquíssimo.

Interessante destacar que o número de adjetivos é inferior ao número de expressões

que representam o grau superlativo. Sendo assim, percebemos que Pero Lopes

utilizou a expressão “mui”, característica da época, século XVI, para dar ênfase as

suas descrições, uma vez que o grau superlativo – como o próprio nome diz – é

superior. Evidentemente, o caráter subjetivo do autor é presente por meio dessas

expressões: “mui grosso”, “mui bom”, “mui grande”, “mui largo”, “mui fermosas” etc.

Dizer “mui grosso” ao invés de “grosso” ou “mui largo” o invés de “largo” etc.,

é intensificar semanticamente o conceito de “grosso’ e “largo”. O uso do superlativo

no documento verbal é proposital a partir do momento em que entendemos a

necessidade de o autor “pintar” por meio da Pena e do Papel os acontecimentos ao

rei de Portugal.

As orações subordinadas adjetivas são presentes em grande número no

Diário da Navegação. Segundo Spina (1987, p. 12), o uso dessas orações é peculiar

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na narrativa do século XVI. Como o próprio estudioso expõe, a riqueza dessas

orações acaba por tornar, muitas vezes, os períodos confusos, dificultando a

compreensão “[...] devido ao número de excessivos ‘quês’ (conjunção e pronome)”.

Ao transmitir, por meio do seu diário de bordo, as impressões do “paraíso”

para o rei de Portugal, Pero Lopes de Sousa lançou mão de orações subordinadas e

assim compôs cenas que permitiram e permitem aos portugueses e a todos que

lerem o diário a composição imagética mental dos fatos narrados.

Benedito Calixto foi além dessa composição mental, adquirida por meio do

Diário da Navegação, pois usou a tela e o pincel para projetar suas imagens

mentais. Sendo assim, é interessante notar o percurso dos fatos narrados no corpus

verbal.

Ao analisarmos os corpus foi possível identificar algumas semelhanças e

diferenças nas fontes ao contarem a história da Vila de São Vicente.

Quanto às semelhanças, destacamos que Pero Lopes de Sousa e Benedito

Calixto procuram descrever a vegetação, o clima, as terras e o encontro do homem

branco com o homem indígena.

Detendo-nos nas particularidades dessas semelhanças entre os corpus,

como, por exemplo, o encontro entre os dois povos, notamos que Lopes descreve

como amistoso o encontro entre os portugueses e as famílias indígenas. Já no

quadro do pintor caiçara, Benedito Calixto, mais precisamente na tela Fundação de

São Vicente, os índios foram pintados com expressões de espanto, destoando assim

das descrições feitas no diário.

As descrições das naus, dos pássaros, da natureza e da terra são explícitas

no Diário da Navegação e, conseqüentemente, representadas nas pinturas do artista

caiçara por meio de vários recursos, como a luminosidade das nuvens, das águas,

da areia da praia; e o enquadramento das naus e do encontro entre os dois povos.

Os indígenas também apresentam algumas divergências ao compararmos os

dois corpus, pois Lopes (1964, p. 67) descreve os índios como “[...] homês mui

nervudos e grandes; de rosto sam mui feos: trazam o cabelo comprido; [...]”,

destoando assim de Calixto que os pintou de cabelos curtos.

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Além disso, a narrativa de Lopes procura descrever a Fundação de São

Vicente para os portugueses. Os quadros históricos do pintor apresentam, também,

a história da Fundação da Vila de São Vicente, mas pela ótica de um brasileiro.

A relação pena e papel versus tela e pincel torna-se possível a partir do

momento em que encaramos a leitura de ambas as linguagens, verbal e imagética,

um processo dinâmico e interativo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Esta dissertação expôs uma aproximação entre as linguagens verbal e

imagética, visando compreender os possíveis meios de se contar a história do país,

sobretudo a história da Vila de São Vicente, numa perspectiva historiográfica.

A Historiografia Lingüística não apresenta, ainda, uma metodologia rígida a

ser seguida proporcionando assim autonomia ao historiógrafo. Para análise dos

documentos, neste estudo, consideramos os seguintes passos metodológicos

propostos por Bastos e Palma (2004, p. 11): primeiro ponto – princípios básicos

(contextualização, imanência e adequação). Por termos duas modalidades de

corpus, verbal e imagética, trabalhamos com a imanência e a adequação juntas ao

analisarmos o diário, visando facilitar a compreensão desse corpus; segundo ponto –

passos investigativos (seleção, ordenação, reconstrução e interpretação); terceiro

ponto – fontes primárias e secundárias (buscamos as fontes secundárias, verificando

assim os estudos realizados sobre os documentos); quarto ponto – dimensões

cognitiva e social; e quinto ponto – critérios de análise. Para a análise,

estabelecemos duas categorias: apresentação-organização do documento e a

intenção dos produtores.

Nessa perspectiva, promovemos uma reflexão sobre o Diário da Navegação

de Pero Lopes de Sousa (1530 a 1532) e os Quadros Históricos, pintados por

Benedito Calixto, alusivos a São Vicente. Ao iniciarmos esta pesquisa lançamos os

seguintes questionamentos: Há divergências entre as fontes históricas ao noticiarem

a história da Vila, já que ambas – Diário da Navegação e os Quadros Históricos –

situam-se em períodos diferentes e, além disso, contam a história por métodos

diferenciados? E em que medida a organização lingüística e pictórica contribuem na

composição das obras?

Tendo como foco, no decorrer de todo o estudo, os questionamentos

lançados, procuramos elementos no corpus que, além de proporcionar um “diálogo

possível”, permitissem resgatar a história da Vila. A intersecção da linguagem verbal

e imagética obrigou-nos a buscar categorias peculiares de cada código. Na verbal,

trabalhamos a categoria dos adjetivos e as questões sócio-ideológicas culturais. Na

imagética, trabalhamos as categorias de imagens e cores, e as questões sócio-

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ideológicas culturais. Posteriormente, estabelecemos o confronto entre os corpus

buscando o sentido por meio da palavra no Diário e o sentido por meio das imagens

nas telas.

O Diário da Navegação, de Pero Lopes, refere-se à expedição de 1530,

relatando assim as glórias de Martim Afonso de Sousa. Ao analisarmos esse

documento, foi preciso ter em mente as mudanças sócio-ideológicas culturais do

homem quinhentista, pois nesse período os novos conhecimentos, aliados à nova

visão de mundo do homem (teocentrismo - antropocentrismo), ampliaram os

horizontes europeus e, conseqüentemente, desenvolveram a expansão marítima. No

século XVI, Portugal e Espanha conquistaram territórios na América, África e Ásia.

Devido a essas conquistas ultramarinas foram necessárias conquistas lingüísticas,

porém, só em 1536, Fernão de Oliveira publica a “primeira” gramática da Língua

Portuguesa.

Contudo, convém ressaltarmos que o Diário da Navegação é datado de 1530

– 1532, ou seja, anterior à data da publicação das anotações do gramático

português, 1536, e a gramática de João de Barros, 1540. Sendo assim, poderíamos

traçar uma outra análise a fim de verificar a importância de uma normatização.

Entretanto, nosso foco foi o dialogismo entre as fontes: verbal e não-verbal.

Ao voltarmos a atenção para o Diário da Navegação, percebemos a sua

importância como fonte documental. Sinteticamente, esse documento narra a

viagem da frota de Martim Afonso, descrevendo ainda a luta entre os franceses e os

portugueses pela disputa da terra. Indispensável para a história do país, sobretudo

São Vicente, nele (diário) encontramos a descrição dos fatos num estilo direto.

Lopes faz a exposição dos acontecimentos de forma direta e a mais objetiva

possível, havendo apenas breves alusões às índias e ao êxtase dos portugueses

diante da beleza da terra.

Concernente à análise do corpus, ativemo-nos aos adjetivos e às orações

adjetivas, pois foi por meio delas que Pero Lopes expôs suas impressões diante dos

fatos. Ao tomar contato com o diário, acreditamos que Calixto compôs suas telas a

partir das descrições, qualidades – por meio dos adjetivos - evidenciadas pelo autor

português. Por se tratar de uma linguagem não-verbal, acreditamos que o pintor

usou as cores para apresentar ao seu público suas impressões do fato, a partir da

leitura de Lopes.

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No âmbito lingüístico, Lopes carregou, em sua narrativa, nas orações

subordinadas adjetivas; porém, quanto aos adjetivos, notamos que são usados no

grau superlativo, intensificando ainda mais as descrições explícitas no diário. A

presença de comparações entre Portugal e Brasil possibilita, além da visualização

dos fatos narrados, algumas conclusões. Ao estudarmos a língua portuguesa do

século XVI e correlacionarmos com os estudos do século XXI, verificamos as

influências de cada época e as mudanças da língua.

Ao analisarmos os quadros históricos de Calixto, foi preciso estarmos atentos

às mudanças sócio-ideológicas culturais da época. A distinção entre República e

Império acaba sendo presente no campo das artes. Enquanto a Academia Imperial

de Belas-Artes funcionou sob os olhos do imperador, produziu uma arte afinada com

a afirmação do seu governo. Cabe lembrar que D.Pedro II financiava pintores e

concursos. Na República, política e arte estavam dissociadas, pois, com a

República, houve transferência de poder na Academia de Belas-Artes.

Com a chegada da República, a abolição da escravatura, o fim do

apadrinhamento do Imperador à Academia Imperial de Belas-Artes, o surgimento do

café em São Paulo e, conseqüentemente, a emergência de uma política cafeeira, o

Estado de São Paulo passou a ter uma nova importância para o país. Em

conseqüência dessas mudanças, a novidade na pintura estava nos traços

naturalistas, pois, nos primeiros anos da República, a arquitetura (“afrancesamento

da cidade”) ganhava seu espaço, prejudicando o nosso patrimônio histórico.

Como exposto neste estudo, Calixto participa da discussão a respeito da rota

de Martim Afonso. Evidentemente, o esclarecimento da rota possibilitou a celebração

da história do país e um novo olhar para a cidade de São Paulo. Essas

investigações estavam presentes no final do século XIX. Sendo assim, o homem

desse período de transição XIX – XX sofreu influências dessas efervescentes

investigações. Dessa forma, entendemos que os quadros históricos, alusivos à Vila,

sofreram influências da sociedade da época e, devido a isso, a busca pelos fatos em

documentos do passado contribuiu fortemente para a composição das telas. Ao criar

suas telas, Calixto estava, mais do que “pintando”, colocando-se a serviço de uma

determinada versão e, conseqüentemente, de interesses políticos.

Entendemos, nas telas, uma aproximação entre pintura e sociedade. Essa

aproximação acaba sendo mais bem interpretada na análise da pintura de Calixto,

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pois, assim como os escritores, poetas lançam mão dos seus dons para, na arte,

expor questões políticas, Calixto criou seus quadros dando sua contribuição à

política do país, da época.

Sendo assim, percebemos que o Diário de Pero Lopes e os Quadros de

Calixto são linguagens diferentes que procuram descrever a história da Vila de São

Vicente. Porém, a distinção ocorre nas influências políticas, lingüísticas e artísticas

de cada século. Pero Lopes de Sousa vivenciou e descreveu os fatos por meio das

palavras, ainda num período em que a sistematização da língua portuguesa estava

por acontecer. Já Benedito Calixto estudou e descreveu os fatos por meio das

imagens, num período em que se buscava uma autonomia na política.

Nesse sentido, o corpus selecionado permite considerarmos que as

linguagens verbal e imagética apresentam uma sintonia capaz de permitir visualizar

as influências de cada época. Tanto o diário quanto os quadros são produções de

um espírito de época entremeado de desejos e conquistas.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXO

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