Os desafios èticos nas Organizações

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  • Organizao, Recursos Humanos e Planejamento

    OS DESAFIOS TICOS NAS-ORGANIZAOES MODERNAS

    Eugne EnriquezProfessor e Diretor do DEA e do Curso de Doutorado em

    Sociologia da Universidade de Paris VII, Diretor Adjunto doLaboratrio de Mudana Social da Universidade Paris VII.Conferencista na EAESP/FGV no 2 semestre de 1996.

    RESUMO: O reaparecimento das preocupaes ticas traduz o profundo mal-estar de nossas sociedades emconseqncia do triunfo da racionalidade instrumental, que tende a fazer dos seres humanos objetos manipulveis.Esta perverso da racionalidade manifesta-se particularmente nas empresas que atualmente procuram integrar apreocupao tica dentro de seu funcionamento. Pode-se constatar que, agindo desta forma, elas tm comoobjetivo, na maior parte das vezes, desenvolver um forte consenso em torno de seus prprios ideais tanto da partede seus membros quanto do conjunto do corpo social. Devemos nos perguntar quais so os verdadeiros desafiosticos com os quais as organizaes modernas se confrontam. Com este objetivo, so revistos os conceitos detica da convico, da responsabilidade e da discusso. Uma quarta forma de tica, a tica da finitude, vislum-brada. As organizaes podem lhe dar um lugar? A questo merece, em todo caso, ser formulada.

    ABSTRACT: The reappearance of ethical concems reflects the profound disquiet in our societies in the wake of thetriumph of instrumental rationality, with its tendency of making human beings into manipulatable objects. Thisperversion of rationality finds its expression particularly in companies, in spite of the fact that they are attempting tointegrate a concem for ethics into their functioning at this time. It can be observed that, in doing this, their goal ismost frequently to develop a strong consensus around the ideais from which they take their inspiration, both fromtheir members and from the social body as a whole. We must ask what are the real ethical issues that confrontmodem organizations. To this end, the ethics of conviction, of responsability and of discussion are reviewed here.A fourth form of ethics, the ethics of finitude are considered. Can organizations make a place for this ethics? Thequestion is in any case worth asking.

    KEY WORDS: ethical issues, rationality, modem organizations, responsabilities.

    PALAVRAS-CHAVE: desafios ticos, racionalidade, organizaes modernas, responsabilidades.

    6 RAE - Revista de Administrao de Empresas So Paulo, v. 37, n. 2, p, 6-17 Abr./Jun. 1997

  • OS DESAFIOS TICOS NAS ORGANIZAES MODERNAS

    social em seu conjunto. Claro que este proces-so de depreciao no significa que todas es-sas formas sociais sejam totalmente rejeitadas;simplesmente, elas no parecem ser capazesde cumprir sua misso, que dir de defini-lade maneira precisa.

    O mal-estar generalizado; sendo refora-do pela ascenso do individualismo e, portan-to, por um voltar-se sobre si mesmo e sobre osvalores privados, pela impossibilidade de se re-presentar o futuro e pelo desejo correlato de seviver intensamente o presente (culto do efme-

    ro), pela formao de "nichosA partir do momento ecolgicos'" ou de "tribos" 2

    nas quais os indivduos ten-tam reconstituir modos de so-ciabilidade intensa at o ins-tante em que esses lugares noestejam mais em condies deatender seus desejos, seja pelaperda do sentido da transcen-dncia ou pela clivagem en-tre as esferas tecno-econmi-ca, poltica e cultural ...3

    De nossa parte, pensamosque o estudo da racionalida-de ocidental e seu impacto capaz de esclarecer a dinmi-ca social atual. Afirmamos,de imediato, que a racionali-dade ocidental triunfou nomundo moderno em sua for-ma perversa atravs da racio-nalidade instrumental.' O de-senvolvimento da razo foiacompanhado no sculoXVIII pelo renascimento da

    paixo e do valor a ela atribudo.A razo triunfante no pode se instalar sem

    efeitos perversos seno respeitando a seguintecondio: admitir que ela capaz de se colocara servio das paixes mais aberrantes ou ento,para no cair nesse reverso, ser contrabalanadapela fora do fluxo emocional. Com efeito, arazo essencialmente universalista. O indiv-duo pensante , portanto, uma entidade abstra-ta e nenhuma distino observvel entre eles.Cada ser humano, enquanto indivduo dotadode razo, - ou deveria ser - estritamentesemelhante aos outros. A interioridade de cadasujeito, a alteridade irredutvel ao outro, a cul-tura especfica na qual vivem e agem no de-vem ser levadas em considerao. somente oreconhecimento do poder das paixes e de inte-

    A tica no um fiacre que se pode man-dar parar para subir ou descer vontade emfuno da situao.

    Max Weber

    O homem das civilizaes tardias e de lu-cidez declinante ser, a grosso modo, um in-divduo mais frgil.

    Nietzsche

    O termo tica, anteriormente reservado aomais rduo labor filosfico e praticamente des-conhecido do grande pblico,apareceu com fora na lingua-gem e na prtica das organi-zaes e instituies modernas.A inflacionada utilizao des-ta noo pode ser considerada, primeira vista, como resul-tante dos efeitos da moda. Noentanto, quando se examinacom ateno o movimento dopensamento e da ao, que d tica um valor essencial, nose pode deixar de considerar deque se trata, por um lado, deum sinal de mal-estar profun-do que afeta a sociedade oci-dental e, de outro, uma tenta-tiva de tratar desse mal, querprocurando transformar o sin-toma em sinal de cura, querbuscando descobrir suas razese seus significados. Este textotem por objetivo mostrar quesomente a segunda abordagempermite compreender as razespelas quais a questo tica tomou-se uma ques-to central em nosso tempo e a que ponto elacondiciona o futuro.

    em que o indivduo reconhecido como

    um sujeito dedireitos, ele entra,ao mesmo tempo,em competio

    com os outros quepodem fazerprevalecer sua

    eficcia econmicasobre o mercado debens e de serviosou sua vontadepoltica sobre o

    mercado dos votos.

    o MAL-ESTAR EM NOSSASOCIEDADE E A TICA

    1. DUVIGNAUD, J. UI solidarit. Paris:Fayard, 1986.Iniciamos o assunto afirmando que nossas

    sociedades, assim como as instituies e as or-ganizaes que as compem, no mais se apre-sentam, individual ou coletivamente, como le-

    2. MAFFESOLl, M. t temps des tribus.Paris: Mridiens Klincksieck, 1988.

    3. BELL, D. Les contradictionsculturelles du capitalisme. Paris:P.U.F.,1979.gtimas. A mesma desconfiana colocada

    tambm com relao ao Estado, consideradoincapaz de propor um grande projeto e de ga-rantir o desenvolvimento econmico e socialdas principais instituies educativas, terapu-ticas e carcerrias que asseguram a regulao

    4. Em um texto anterior, L' identificationcomme processus d'intgration/exclusionIn: MAPPA, S. L' Europe des douze et lesoutres, Paris: Karthala, 1992, analisamosmais completamente as conseqncias daracionalidade ocidental.

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  • 5. Tentamos analisar a emergncia daperverso em nossos estudos Le pouvoiret la mor! (1973) e Le gardien des cls(1979), reproduzidos em Les figures dumaitre. Paris: Arcantre, 1991, comotambm em nossa obra De la horde I 'Etat. Paris: Gallimard, 1983.

    6. ENRIQUEZ, E. L'entreprise comme lieusocial: un colosse aux pieds d'argile 1fT.SAINSAULlEU,R. L'entreprise, une affairede socit, Paris: fondation Nationale desSciences Politiques, 1991.

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    resses divergentes que assinala a existncia deum eu e de um ele, de uma histria particular,de uma cultura que possui traos singulares.

    Assim, se a paixo esquecida ou reprimi-da, o problema da alteridade dos homens e dasculturas aniquilado. Ora, durante todo o s-culo XIX e ainda mais no sculo XX, operou-se uma dissociao muito clara entre razo eemoo. O resultado no se fez esperar: o mun-do criado foi aquele que, em nome da razo (esomente em seu nome), manifestava as paixes,passando a assumir um aspecto ainda maisatuante, visto que o silncio no qual elas operam(porque elas no tm mais o direito de aparecerpublicamente) deixa intacto o seu poder arcaico.

    Poderamos fazer o mesmo diagnstico noque se refere paixo dissociada da razo. Apaixo termina em parania, assim como arazo em perverso. Mas deixemos de lado aprimeira. O fato marcante do sculo XX foi aobrigao, no s para as sociedades ociden-tais mas tambm para todas aquelas que a ado-taram em seu modo de vida, de se identifica-rem para poderem continuar seu desenvolvi-mento ou simplesmente sobreviverem com estaracionalidade dissociada da paixo e negadorade toda subjetividade. necessrio, entretan-to, lembrar que o triunfo da razo um ele-mento indispensvel tanto para a instauraodo mercado .quanto para a construo demo-crtica. Com efeito, a partir do momento emque o indivduo reconhecido como um sujei-to de direitos entra, ao mesmo tempo, em com-petio com os outros que podem fazer preva-lecer sua eficcia econmica sobre o mercadode bens e de servios ou sua vontade polticasobre o mercado dos votos. A democracia in-troduz uma ordem instvel que resulta sem-pre - na teoria - no estabelecimento de umregime harmonioso. Para que tal projeto serealize necessrio que a racionalidade instru-mental seja subordinada racionalidade dosfms. Colocando de um outro modo, os cida-dos podem se perguntar por que e no so-mente como. Assim, a supremacia da racio-nalidade traduziu-se pela racionalidade domercado (e do capitalismo) sobre os valoresdemocrticos.

    Atualmente, esse modelo de desempenho,que esteve durante um tempo em concorrn-cia com outros, como o da honra, o do prest-gio e o da fidelidade, mas que caracterizou aexpanso do capitalismo ocidental, reina ab-soluto. Pede-se a cada indivduo que ele se tor-

    ne um combatente, um heri, um "radar" ca-paz de se adaptar a todas as circunstncias, ea populaes inteiras que no tenham nadaalm do xito econmico e pessoal como pa-lavra de ordem. A concluso bvia: aquelesque podem se adaptar a uma sociedade guia-da por estes valores esto seguros de seremreconhecidos como sujeitos e participaremcomo cidados no funcionamento da socieda-de. Os outros devero se contentar (nas socie-dades ocidentais) com formas de trabalho su-balternas, ou ento acabaro por pertencer categoria dos desqualificados sociais (os cha-mados assistidos ou marginais).

    Claro que no uma nica determinaoque est em curso. Seria tambm necessrioperguntar por que razes a perverso tornou-se a forma privilegiada das relaes humanasnas nossas sociedades." Seria igualmente ne-cessrio examinar em que as dinmicas pr-prias das instituies tendem a acelerar entreseus membros a ascenso de um processo dedesidealizao. Entretanto, o essencial foi dito.Somente um elemento falta ainda: para que arazo instrumental esteja sozinha no coman-do indispensvel que ela aparea como umanova forma do sagrado ou, pelo menos, comoum novo modelo na instituio onde a razoinstrumental fala com mais fora, isto , naempresa. Todos os pensadores esto de acor-do que, atualmente, a empresa (mesmo queela empreste a noo de perfomance do mun-do esportivo) tenta impor sua viso tecnicistado futuro humano. Certo que ela no alcanatotalmente seu intuito e comea a ser conside-rada como um "gigante de ps de barro'" qualse conferiu um papel mais central na vida soci-al do que aquele que ela pode, dentro dos fatos,assumir.

    A empresa, por ter como princial objetivo oalcance de resultados contbeis, introduziu amedida como o nico elemento de diferencia-o dos seres. S importam as condutas com-parveis. A cifra toma-se o sinal da exceln-cia dentro da empresa e, progressivamente, noconjunto das organizaes.

    As conseqncias desta situao so para-doxais:1. A empresa, trazendo ao seu apogeu os "va-

    lores" do capitalismo racional e instrumen-tal, contribuiu enormente para a primaziada tcnica sobre o humano e tentou fazerde cada ser um manipulador perverso queno se interessa pelo outro, a no ser que

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    Para construir estenovo homem, aempresa deve setornar cidad, ouseja, conduziraes que

    favoream ainscrio dosindivduos no

    interior do corpo

    favorea a satisfao de seus desejos. Pode-se compreender, ento, porque so aban-donadas as instituies que valorizam asolidariedade, a sociabililidade, quandoestas no so mais libido positiva. Sejaporque elas parecem remeter a "idias" ul-trapassadas, como por exemplo, o bem co-mum, o amor comunitrio; seja por noproduzirem efeitos, j que o resultado desua aplicao, na realidade, no pode serobjeto de um exame contbil; seja por pare-cerem incapazes de suscitar paixes arrasa-doras e quebrar a muralha da razo instru-mental, como a impossibi-lidade de definir um gran-de projeto; seja, enfim, porestarem to contaminadaspelo modelo da empresacom sua dimenso inclu-so/excluso que no con-seguem mais provocar oamor e a adeso. Nesse mo-mento, a empresa (e o mo-delo que ela institui) pare-ce ter alcanado a vitria,porque ela transformou osseres "humanos" em seres"tcnicos" ou, dito de ou-tro modo, em puros produ-tores e consumidores,transformando as relaessociais em relaes entre mercadorias.

    2. No entanto, somos obrigados a constatar quea empresa, ao se esforar para vir a ser ainstituio divina, obrigada a se responsa-bilizar pelo "religioso", que o prprio fun-damento de toda vida social. Ela, ento, mo-bilizar os afetos para poder aparecer comoum plo idealizado que tenta satisfazer onarcisismo de cada um convidando-o a par-ticipar da tarefa grandiosa que representa oseu desenvolvimento ininterrupto.Uma talevoluo tem uma explicao muito preci-sa: se a empresa abrigasse em seu seio so-mente indivduos cnicos, com a perversi-dade maliciosa dos histricos (portanto, ca-pazes de seduo) ela se arriscaria a cadadia, que cada um, em lugar de se conformarao ideal da organizao, comeasse a se opors suas regras de funcionamento e a colo-car, assim, a organizao em perigo de mor-te. O triunfo da tcnica se voltaria contraela mesma. Torna-se, portanto, urgente res-tabelecer a potncia das paixes e das pul-

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    ses somente em benefcio da empresa, ago-ra o lugar da socializao e do amor comu-nitrio (edificao de uma cultura de em-presa).

    3. Entretanto, o movimento da sociedade emdireo racionalidade integral deixa de-sejos insatisfeitos. Ningum pode ser felizcom a idia do destino que aguarda o joga-dor de xadrez. No somente porque ele estameaado de perder tudo (como em todosos jogos onde no h ganhadores), mas por-que ele sabe que, mesmo vencendo uma oumais vezes, ser continuamente obrigado

    a superar novas provas e, sefor ganhador em um dia, podeser perdedor em outro. Eletambm sabe muito bem queseus antigos desempenhosno sero contabilizados aoseu ativo, mas ao seu passi-vo, sendo a opinio comum"como ele estava bem. antiga-mente". Neste tipo de jogo,todo mundo , um dia ou ou-tro, um perdedor. Somente aempresa permanece segura desua perenidade. Enquantoisso, os homens resistem instrumentalizao. O que fazde cada indivduo um ser hu-social.mano e social a sua capaci-

    dade de viver em estado de abstinncia, deformular novos desejos, de se deixar levarpela imaginao criadora, que a origemde toda reflexo e de todo projeto, e de es-tabelecer com outros relaes que intui, ecom razo, como sendo essenciais sua in-tegridade e mesmo sua vida. Uma lei so-ciolgica bem estabelecida, ainda que con-tinuamente ocultada, sugere que toda aotem eventualmente como conseqncia oefeito esperado e sempre o efeito inverso.O capitalismo engendra um imaginrio so-cial e condutas capitalistas, mas ele pro-duz igualmente as utopias socialistas e osocialismo real. A economia de mercado necessria democracia, todavia pode seinstaurar num regime ditatorial; o "poderaos soviets" a origem de um regime quese pretendia igualitrio, mas que institui ototalitarismo etc. ento natural que umasociedade fundada sobre a funcionalidadee sobre a racionalidade desperte entre seusmembros desejos de espontaneidade, de

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  • 7. GANEm, E.Masse et puissanee. Paris:Gallimard, 1960.

    8. MONGIN, O. La peur du vide. Paris:Seuil, 1991.

    9. LE GUYADER, A. thique et autorit.Texto mimeografado.

    10. FABER, E. Main bass sur la cit. Paris:Seuil, 1991.

    11. Idem, ibidem. O autor ampliou a noode empresa para "responsabilidadeilimitada".

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    atos gratuitos, de tempo perdido, de pai-xes fortes e de conviviabilidade. neces-srio, pois, que uma sociedade baseada nalei do lucro e da eliminao dos mais fra-cos faa surgir as exigncias ticas.Assim, uma sociedade perversa pode, ao

    mesmo tempo, manter condutas perversas, ge-neralizar a instrumentalizao dos indivduose tentar transform-los em uma "massaestagnante" ,7 na qual ningum realiza seu pr-prio desejo, mas o desejo presumido dos ou-tros, vivendo seno pelo mimetismo e, ao mes-mo tempo, por seu carter excessivo. Esta so-ciedade pode suscitar entre seus membros avontade de instituir certas condies de vida,onde a alteridade de cada um seria plenamen-te reconhecida e onde, segundo a expressode O'Mongin, se passar "do medo do outroao medo pelo outro"?

    A TICA A SERViO DASORGANIZAES

    interessante notar que os dirigentes dasorganizaes, e em especial das empresas, com-preenderam bem esta evoluo. Eles tambmmanifestam preocupaes ticas. Mas, comoeles tinham o desejo de no mudar nada de es-sencial no funcionamento social que lhes des-sem satisfao mantendo-os em funes de po-der - nova astcia da razo instrumental -,fizeram da tica um meio mais sutil a serviode um desempenho jamais questionado. Comodiz o filsofo Alain Le Guyader, trata-se menosde tica do que de uma etologia que" emprestaseus cnones cincia do comportamento ani-mal para colocar em ao os dispositivos daservido voluntria assegurando a adeso aosobjetivos exclusivos da empresa" (acrescenta-mos: das organizaes e das instituies),"

    Visto que se trata de uma tica travestida,seria normal que ela passasse em silncio. Po-rm, como praticamente a nica que tem odireito de ser mencionada, pois difundidanos livros, artigos e entrevistas, somos obri-gados a lev-la em considerao. Ela funcio-na segundo um duplo registro: o primeiro,"societal"; o segundo, empresarial. Ambos tmentre si ligaes profundas.

    O registro "societal"

    A empresa prottipo da organizao mo-derna, novo sagrado (temporrio), tenta dar

    um sentido sociedade para suprir as defi-cincias das outras instituies. Para isso elapromove, de acordo com a declarao do gru-po de trabalho do CNPF (Confederao Naci-onal do Patronato Francs) "uma certa ima-gem de homem firme, ator, criador, respons-vel",1O tanto na empresa como na sociedade.Para construir este novo homem, a empresadeve se tornar cidad, ou seja, conduzir aesque favoream a inscrio dos indivduos nointerior do corpo social.

    Dentro deste objetivo, vrios meios sopostos em ao: desenvolvimento do mecenato;elaborao de produtos que possibilitem a pro-teo do meio ambiente (a empresa se coloca aservio da natureza que est em vias de se tor-nar o novo sagrado criando unanimidade); es-foro educativo pela integrao dos imigran-tes; ajuda ao funcionamento das universida-des e das grandes escolas; ao em favor dosbairros; direo de grupos esportivos que tmpor objetivo no s o aprimoramento dos de-sempenhos da equipe mas tambm a aquisi-o de um novo prestgio para a cidade, comopor exemplo, a equipe de futebol olmpico deMarselha ... intil continuar a lista de ativi-dades custeadas pelas empresas e s vezes poroutras organizaes que alonga a cada dia. Noentanto, o ponto essencial a ser assinalado que a empresa difunde uma viso do futurosocial (esttica, convival e dinmica), utilizaos meios para realiz-lo e, como conseqn-cia, cria os heris positivos tais como os conce-be. Ela se encarrega no somente do desen-volvimento econmico da nao, mas tambmdo seu desenvolvimento social, psicolgico ecvico. Nenhum dos domnios da vida lhe ,a priori, proibido, pois ela se considera com"responsabilidade ilimitada". 11 por isso quecertos autores no hesitam em dizer que elase faz "onipotente sobre a cidade" e certosdirigentes de empresa imaginam ter "um des-tino nacional".

    O registro empresarial

    No interior da empresa procura-se fazercom que seus membros, na sua totalidade (eno somente alguns, como h pouco tempo),sintam-se parte integrante da organizao aju-dando na construo de um projeto da empre-sa, aderindo cultura que lhes proposta, subs-tituindo seus prprios ideais pelo ideal comumdefinido pela empresa e se submetendo aos .

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    poder manifestar alguma virtude. Estas virtu-des podem ser divulgadas no mundo das apa-rncias. "Nada falta para melhorar o climainterno da empresa (SAS - Estocolmo): pisci-na, clube de esportes e mesmo uma pequenaorquestra de cmara. / .. ./ Nada falta(Challenger- Versalhes) para assegurar o con-forto dos 2500 colaboradores do grupo quetrabalham nos 40.000m2 de escritrio. Salasde conferncias modulares, salo de beleza,agncias de seguro e de viagens, bancas dejornais, TV a cabo, sem esquecer o ginsiocom sauna, sala de bronzeamento etc" .15 Efe-

    tivamente, as organizaesatuais cuidam de seu look no

    processos de recalque e de represso criadospela organizao." A tica parece, no incio,fora das preocupaes dos dirigentes que de-sejam essencialmente mobilizar as energias.Mas tal interpretao enganosa. Para que osindivduos sejam suscetveis de exercer seuspapis de heris positivos necessrio que elessejam homens de convico, que tenham sen-so de responsabilidade, em resumo, como dizo texto do CNPF j citado, que eles provem teruma "tica da convico e uma tica da res-ponsabilidade". Se, portanto, os homens "fir-mes, criativos" no acreditassem profunda-mente em suas idias e nose sentissem responsveispela sua ao frente a si mes-mos, organizao (e igual-mente ao meio ambiente),eles seriam capazes de jogarum jogo individual fatal sobrevivncia da mesma.

    Ser responsvel , s para melhorar sua imagemexterior mas tambm para daraos seus membros o sentimen-to de serem nutridos, protegi-dos na plenitude de todos, obem-estar pela empresa. En-tretanto, este no o aspectomais importante, mesmo queele seja o mais espetacular. Osdois elementos centrais so agesto dos recursos humanose a diviso de responsabilida-des. Por estes meios, os diri-

    gentes querem manifestar sua confiana noser humano. Eles no se do conta de que seutilizam de um slogan de Stalin de sinistramemria: "O homem, o capital mais precio-so" .16 Eles no percebem o aspecto diretamen-te instrumental de seu discurso: os homens so

    ento, ser o alvo detoda sano,

    vendo-se ao mesmotempo afastadode qualquerOra, as organizaes "negama realidade do tempo e da

    morte" .13 Elas se queremimortais, mesmo sabendo quepodem desaparecer. Funcio-nam sob a gide da denegao(eu sei, mas apesar disso ...)que as protege de tomar conscincia de suasdificuldades, da finitude necessariamente liga-da s suas aes e de seu enfrentamento aoreal. 14 Elas tm, portanto, uma necessidade vi-tal de possuir em seu interior indivduos capa-zes de se sacrificarem por elas, homens de de-ver, de virtude e de virtus (a virtus, paraMaquiavel, no nada mais do que a disposi-o coragem). Estes devem, assim, investir atotalidade de sua libido na organizao, noobrigatoriamente, porque eles estimam poderreceber dela satisfaes altura pela rennciaque aceitaram, mas sobretudo porque acredi-tam que a organizao merece a dedicao queela reivindica.

    possibilidade deavaliar sua

    prpria ao.

    administrados, tratados - s vezes melhor,s vezes no to bem - como estoques dosquais se deve garantir a rentabilidade, comomercadoria (s vezes de pssima qualidade: aexpresso "cortar as gorduras" o sintomamais evidente) que deve ser utilizada conve-nientemente ou da qual se deve ser capaz dese desvencilhar. Alm disso, se os homens soconsiderados recursos, no se v por que mi-lagre eles seriam igualmente reconhecidoscomo personalidades autnomas, sujeitos dedireitos e sujeitos psquicos que tm palavrasa dizer tanto sobre a evoluo da organizaocomo da sociedade. Mas possvel ocultar aconotao desagradvel dos termos gesto erecursos reforando que a demanda feita aohomem de ser responsvel. Ora, somentepode ser responsvel um sujeito psquico, umsujeito de direito. A insistncia sobre a res-ponsabilidade seria a prova da considerao

    12. ENRIQUEZ, E. Imaginaire social,refoulement et rpression dans lesorganisations In: Connexions 3, Paris:EPI, 1972. A partir deste texto,numerosos autores tentaram analisar osprocessos de integrao e de submissoao poder da empresa.Estes "seres-pela-organizao" no vislum-

    bram outra vida seno aquela proporcionadapela organizao e desde ento no buscammais outros plos de identificao. Para poderprovocar tal amor ou pelo menos suscitar umfluxo de afetividade positiva a empresa devepoder aparecer como um objeto maravilhososuscetvel de provocar entre os indivduos pro-cessos de idealizao. Ora, um objeto no jamais maravilhoso por definio. Para que setome um cone ou um dolo ele ainda deve

    13. Idem, ibidem.

    14. ENRIQUEZ, E. Le pouvoir et la mor!In: Les figures du maitre. Paris:L'Arcantre, 1973.

    15. BLOCH & HABABOU, citados porFABER, E. Op. cil.

    16. Quanto mais idealizamos o homemcom palavras, mais o rebaixamos comatos. Este aforismo, mil vezes verificado,deveria ser reconhecido como uma leisociolgica.

    11RAE v, 37 n. 2 Abr./Jun. 1997

  • 17. Se no est em questo hipostasiar anatureza porque, deixando de lado (ainda)a floresta amaznica, toda a natureza produto das aes humanas. evidenteque o problema "natural" , enfim,colocado, e torna-se uma preocupao detodos os dirigentes polticos e nosomente de alguns marginais (cf. aConferncia do Rio, 1992).

    18. ENRIQUEZ, E. Op. ct. 1991.

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    com o homem em todas as suas dimenses,pela organizao. esquecido nesta afirma-o o fato de que a responsabilidade em ques-to somente uma responsabilidade organi-zacional (de modo que a tarefa efetuada favo-rea o desenvolvimento da organizao; ou,dito de outro modo, que os objetivos alcana-dos sejam transitivos em relao a um objeti-vo ltimo) e uma responsabilidade tcnica(acionar os meios mais adequados e a compe-tncia mais firme para realizar o trabalho como menor custo possvel e de uma maneira ex-celente). A responsabilidade poltica (quais soas conseqncias da ao conduzida para aorientao da organizao considerando opapel que ela desempenha na dinmica social?);a responsabilidade social (as decises toma-das favorecem a autonomia ou a heteronomiados outros membros da organizao?); a res-ponsabilidade cvica (que influncia umaao - ou uma inao - tem sobre apossilibilidade de vida ou de sobrevida dos ou-tros cidados?); a responsabilidade ecolgica(quais so as incidncias das condutas huma-nas sobre o meio natural,'? a fauna, sobre a flo-ra e igualmente sobre as populaes prximasou longnqas?); a responsabilidade psquica(que opinio, ou que sentimento, cada sujeitopode formular ou ressentir sobre o valor de seusatos, quaisquer que sejam as sanes positivasou negativas em que ele possa incorrer?) noso levadas em considerao, na maior partedo tempo, quando as responsabilidades soatribudas a fatores sociais.

    De fato, muitas vezes, quando os homensna organizao so designados como respon-sveis, isto significa somente que eles so obri-gados a prestarem conta de suas decises dobom andamento dos servios a seus superiorese de aceitar o julgamento dos mesmos. Ser res-ponsvel , ento, ser o alvo de toda sano,vendo-se ao mesmo tempo afastado de qual-quer possibilidade de avaliar sua prpria ao.Compreende-se muito bem por que certas pes-soas no assumem ou mesmo fujam das res-ponsabilidades que lhes so confiadas pois elascaptaram bem a lgica da organizao: todo res-ponsvel um constante suspeito e um provvelculpado.

    No entanto, em vrios casos a empresaconsegue fazer crer a seus membros que ela virtuosa, que considera os homens, suas opi-nies e sua vida e que pode ser, ento, o ploidealizado por excelncia. Ela atinge o obje-

    tivo jogando com a dupla referncia dos gru-pos e do indivduo:a) pela transformao da organizao - so-

    ciedade em organizao - comunidade;b) pela difuso do culto da excelncia que d

    satisfao aos desejos narcsicos.

    A EMPRESA COMO COMUNIDADE

    Desde o aparecimento da teoria da direoparticipativa por objetivos imposta a idia deque a empresa no mais um sistema de regrashierarquizadas edificada para obter um certo tra-balho e um certo proveito, mas um lugar de co-operao entre membros que formam uma equi-pe empenhada em atingir um objetivo comume movidos pelo mesmo ideal. Deste modo, arepresentao de uma organizao como so-ciedade onde as condutas humanas so defi-nidas por regras imperativas e que se produ-zem num mundo de relaes formalizadas atenuada para dar lugar representao de umacomunidade de seres fraternais que estabele-cem relaes convivas, que so responsveispor seus atos e desejam o bem comum.

    Que as organizaes no tenham sido ja-mais lugares unicamente formais, funcionaise impessoais os tericos bem o sabem e mos-tram que mesmo nas burocracias mais rgidasexistiam relaes "informais", reagrupamen-tos que se estabelecem baseados em afinida-des eletivas, sobre a necessidade do trabalho,sobre o contorno de regras ou sobre a defesacoletiva. Toda organizao guarda em seu in-terior comunidades variadas, micro-culturasse constituindo como um lugar de vida e nocomo um simples lugar de trabalho. Mas, pas-sar desta constatao afirmao segundo aqual a organizao tornou-se uma comunida-de funcionando sem um aparato de poder se-parado, instituindo uma certa orientao e umestilo de vida determinado, desdenhar daexistncia de estratos diferentes preenchendofunes mais ou menos prestigiosas dentro derelaes de consenso e de conflito. No entan-to, justamente esta ideologia que o funda-mento da administrao participativa. E se osmembros da organizao muitas vezes a acei-tam por que ela anuncia que a organizaono pode existir "sem que indivduos se situemenquanto sujeitos humanos, isto , enquantoatores que devem se exprimir, mestres de seusdesejos trabalhando afirmativamente para osucesso do conjunto" .18 Como difcil resistir

    RAE v.37 n.2 Abr./Jun.1997

  • OS DESAFIOS TICOS NAS ORGANIZAES MODERNAS

    se pela metade": so as ltimas palavras es-critas por Vincent Van Gogh a seu irmo Tho)procurando o conflito e no o compromisso,mostrando consistncia" e sabendo que nodevia esperar dos outros, que lhe seguiriamum dia, nem amor nem reconhecimento. Es-tamos bem longe destes "heris portteis" que,segundo o bem-humorado Andy Warhol, se-ro clebres "quinze minutos em sua vida", poisse deve deixar seu lugar aos outros, heris "fr-geis", como j havia percebido Nietzsche. En-fim, no se pode esquecer que o verdadeiroheri, aquele que se tomar um pai simblico,

    que provocar a identifica-o e criar sujeitos que bus-quem a autonomia marca-do, um dia, pelo fracasso oupela morte. Moiss no viu aterra prometida, Cristo foicrucificado, Maom teve queemigrar para Medina. Emnossos dias, mais prosaica-mente, Churchill foi desde-nhado pelos seus, enquantoDe Gaulle teve que se retirare, tanto Gandhi quanto MartinLuther King foram assassina-dos. Os falsos heris que mor-reram de suas belas mortes(Stalin, Mao) so pessoas queconstruram seus imprios esuas empreitadas sobre o san-gue de seus concidados.

    Pode-se agora considerara que ponto o imaginrio dacomunidade e da excelncia um imaginrio ilusrio,onde o objetivo fazer indi-vduos conformes que respei-tem o ideal da organizao.Neste jogo, os indivduos per-dem cada vez que eles pensamganhar. O nico vencedor aorganizao que recebe, as-sim, um acrscimo de legiti-

    midade, que continua a se acalentar de sonhosde imortalidade e que cr, desta maneira, noser atingida pela crise que afeta o conjunto dasinstituies.

    Assim sendo, conforme j foi indicado, asorganizaes, apesar de seu desejo de ascen-der ao estatuto de instituio divina, so afeta-das, tambm, pela crise da legitimidade e pelaascenso do individualismo perverso que pa-

    a tal apelo, ainda mais sabendo, que o imagi-nrio social igualitrio da comunidade cria ummundo de plenitude que permite a cada umcrer que sua necessidade de segurana pessoalestar satisfeita!

    o CULTO DA EXCELNCIA

    Essa necessidade de segurana pessoal seintensifica ainda mais quando se instaura oculto da excelncia. Excelncia, certamente,dos lderes carismticos ou estratgicos quefavorecem a identificao com sua prpria pes-soa. Mas excelncia igualmen-te de cada um, j que no im-porta qual "homem sem qua-lidades"" pode, condio dequerer ser brilhante a qualquerpreo e, portanto, de se devo-tar de corpo e alma, tomar-seum dia um ser to excelenteque os outros o admiraro eimitaro. Aqui alcanamos oherosmo para todos! Admirar-se- o brio deste novo culto,que sabe prender com uma ha-bilidade sem igual os indiv-duos nas armadilhas de seusdesejos narcsicos. Como re-cusar-se a ser um heri, umhomem capaz de "sair da for-mao coletiv'i" j que talfuturo est ao alcance de qual-quer um?

    O nico problema que impossvel que todos sejamvencedores. Em toda a bata-lha existem vencedores e ven-cidos. Ningum acreditar quenas organizaes somente sepratiquem jogos somatriano-nula nos quais todos de-vem ganhar. Os cadveres,reais ou simblicos, acumuladosh geraes atestam a realida-de muitas vezes violenta da vida organizacio-nal. Alm do mais, a concepo proposta doheri fundamentalmente falsa. O homem he-rico foi, em todos os tempos, um ser apto apensar de modo solitrio (ou com alguns), aser contra o pensamento (ou mais exatamentea doxa) gregrio da "maioria compacta"," ca-paz de assumir riscos ("No meu trabalho euarrisco a minha vida e a minha razo perde"

    A emergncia deuma exigncia tica

    na organizaofaz precisamente

    com que asresponsabilidadespoltica. cvica.

    ecolgica e psquicasejam cada vez

    mais asseguradas,no porque odinamismo da

    organizao exige,mas porque

    impossvel, a quemquer que seja.

    ignor-las. sob orisco de ver triunfar

    unicamente ocinismo perverso.

    19. Ttulo do livro de MUSIL, R. Ohomemsem qualidades. Lisboa: Livros do Brasil,1952.

    20. FREUD, S. L'homme Morse et lareligion monothiste. Traduo recente.Paris: Gallimard, 1986.

    21. Expresso de H. Ibsen,freqentemente citada por Freud,particularmente em Moiss e omonotesmo, Dp. cil.

    22. Cfr. MOSCOVICI, S. Psychologie desminorits aclives. Paris: P.U.F., 1971.

    13RAE v. 37 n. 2 Abr./Jun. 1997

  • 23. WEBER, M. Le savant et le politique10/18. l' ed., 1919, p. 173.

    24. FREUD, S. & BULlTT. Le prsidentWilson. Traduo francesa. Paris: Payot,1990.

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    rece ter, a princpio, prestado socorro e contri-budo ao seu sucesso. As organizaes, cadavez que se nutrem de vitrias, esto prximasdo fracasso. H verdades que devem ser repe-tidas incansavelmente, pois a verdade provo-ca uma ferida narcsica e continua com difi-culdades para se fazer ouvir.

    OS VERDADEIROS DESAFIOSTICOS

    Se a tica no pode se colocar a serviodas organizaes, isto no impede que as or-ganizaes modernas possam ocultar o pro-blema da tica sob pena de serem abandona-das ou tradas por seus membros, tornados maisperversos que elas prprias e deixando-se le-var ao no-senso, uma vez que mais nada (ne-nhuma organizao, nenhuma doutrina) ca-paz de dar um sentido suas vidas.

    Costuma-se, quando se evoca a questo datica, a partir de Weber, distinguir tica da con-vico ( qual Kant deu a formulao mais cla-ra) de tica da responsabilidade. Deve-se acres-centar s duas, ao se considerar a obra de J.Habermas, a tica da discusso. Estes trs tiposde tica serviro de fio condutor ao propsitoque segue. Questionaremos se a elaborao deuma quarta categoria no seria necessria paracercar verdadeiramente os desafios atuais.

    A tica da convico uma tica do tudoou nada. No se trata de introduzir nuances.Se a injuno "oferecer a outra face", dever-se- oferec-la em todas as circunstncias. Seo outro no deve ser jamais tratado como ummeio mas como um fim, isto significa a recu-sa geral e definitiva de toda tentativa deinstrumentalizao dos seres humanos. Assim,uma convico no se negocia. Alm do mais,esta tica no se preocupa com as conseqn-cias dos atos. Se "oferecer a outra face" daro poder s foras do mal, que importa! Estatica se interessa somente pelo fim ltimo. To-dos os meios so bons quando permitem al-canar o fim desejado.

    Tal tica coloca um problema evocado porMax Weber: "Para atingir fins 'bons' somos,na maior parte do tempo, obrigados a contarpor um lado, com os meios moralmente deso-nestos ou, pelo menos, perigosos; de outro,com a possibilidade ou mesmo a eventualida-de das conseqncias deplorveis. Nenhumatica no mundo pode dizer em que momentoou em que medida um fim moralmente bom

    justifica os meios e as conseqncias moral-mente perigosas"," No entanto, tais preocu-paes esto ausentes dos homens de convic-o. De fato, eles so muitas vezes, como disseFreud, "iluminados, visionrios, homens quesofrem de iluso, neurticos e loucos. Em to-dos os tempos [eles] desempenharam um gran-de papel na histria da humanidade. Tais pes-soas exerceram uma influncia profunda so-bre seu tempo e sobre os tempos ulteriores,dando um grande impulso a importantes mo-vimentos culturais e fazendo grandes desco-bertas. Eles puderam executar tais faanhas,de um lado, graas parte intacta de suapersonalidade, quer dizer, apesar de sua ano-malia; mas, de outro lado, foram os traospatolgicos de seu carter, seu desenvolvimen-to unilateral, o reforo anormal de certos de-sejos, o abandono sem crtica ou sem freio aum nico objetivo que lhes deram o poder dearrastar os outros no seu rastro e de vencer aresistncia do mundo". 24 Tais indivduos deexceo escolhem seus caminhos e no mu-dam. De fato, eles no percebem que:

    a) ao utilizar meios discutveis ou empregaros mesmos meios dos adversrios que com-batem no podem atingir o fim vislum-brado, estando este definitivamente con-taminado pelos meios. Eles no queremver que o que importa no social no ainteno, ainda que ela seja to louvvel,mas os meios que impem, sempre e emqualquer lugar, sua ditadura. por estarazo que as revolues, quando bem su-cedidas (a Revoluo Francesa, no esque-amos, no foi bem-sucedida e por essemotivo que ela constitui ainda uma refe-rncia), no so portadoras de "um ama-nh que canta", mas de escravido gene-ralizada e genocdio. Os benfeitores da hu-manidade, quando no se questionam so-bre os meios, so coveiros;

    b) ao no desejar colocar a questo das conse-qncias de uma ao, os sujeitos de exce-o no podem tomar conscincia de seuserros de apreciao, ficando obrigados a im-putar os resultados no previstos a culpa-dos que eles escolhem. O homem de con-vico um ser que cria, sem dificuldades,vtimas tipo bodes expiatrios.E, portanto, sem homens de convico, sem

    esses seres movidos por uma "idia fixa", lu-

    RAE v. 37 n. 2 Abr./Jun. 1997

  • OS DESAFIOS TICOS NAS ORGANIZAES MODERNAS

    ponsabilidade" dever, ento, arbitrar entre asresponsabilidades que ele assume e aquelas queele recusa. Ele ter, s vezes, tendncia a con-siderar as responsabilidades tais como elas sodefinidas pela organizao. Poder, a partir dis-so, saber exatamente quais sanes positivasou negativas ir receber colocando-se numasituao de segurana mxima. No entanto, istono to simples. Em todos os tempos, certos

    homens fizeram prevalecer,por exemplo, sua responsabi-lidade social ou psquica so-bre sua responsabilidade or-ganizacional. O problema bem mais srio em nossosdias, j que as organizaesso mais complexas e formu-lam exigncias variadas aseus colaboradores. A emer-gncia de uma exigncia ti-ca na organizao faz preci-samente com que as respon-sabilidades poltica, cvica,ecolgica e psquica sejamcada vez mais asseguradas,no porque o dinamismo daorganizao exige, mas por-que impossvel, a quem querque seja, ignor-las, sob o ris-co de ver triunfar unicamen-te o cinismo perverso. cla-ro que a tentao do cinis-mo, da instalao do no-sen-

    so e do individualismo egosta existe, comomostrou o incio deste texto. Mas se eles in-vadissem todo o campo, a organizao e a so-ciedade no teriam qualquer legitimidade.Toda autoridade seria contestada, a angstialigada perda dos referenciais predominariasem conteno e o reconhecimento do eu edos outros se tornaria impossvel. por issoque as responsabilidades se multiplicam. Noh mais empresas que possam, legitimamen-te, desembaraar-se de toda preocupao eco-lgica. No h organizao onde a preocupa-o social - principalmente as empresas ja-ponesas - esteja ausente etc.

    Ainda muito cedo para dizer qual hierar-quia de responsabilidades ser aceita por nos-sa sociedade. Porm, pode-se adiantar que oestabelecimento de tal hierarquia justamen-te o desafio fundamental das lutas constitu-das por diversos grupos sociais e dos conflitosinternos que devem travar todo ser humano.

    tando contra ventos e mars, crendo noinacreditvel, pensando que as montanhas po-dem se deslocar, batendo a cabea contra asparedes com a certeza de as derrubar," habita-dos por um um fervor sagrado, o mundo noseria nada alm de "um longo rio tranqilo" ea vida, uma sucesso de instantes montonos.Os grandes homens, para se tornarem criadoresde histria 26 devem abalro-la, ainda que fra-cassem ou que sejam repudia-dos. Moiss, Cristo e Maomno eram criaturas ternas, dis-postas a compromissos, masjustamente o contrrio. Guar-dadas as propores, os gran-des chefes de empresa so fru-tos da mesma rvore. O pro-blema que se pode esperar dohomem de convico tanto omelhor como o pior.

    A tica da responsabilida-de se apresenta de outro modo.No que os homens deconvio no tenham o sensoda responsabilidade. Pelo con-trrio, eles se encarregam datransformao do mundo e sa-bem que seus atos sero umdia julgados. Mas eles no es-colhem suas condutas em fun-o de sua probabilidade desucesso. Por outro lado, o ho-

    Com efeito, osseres humanos esociais no so

    somenteresponsveis frentes geraes futuraspelo peso de suasaes presentesmas tambm pelamaneira como elestratamo passado,

    como elesregistram a

    histria, aceitam-na e a deformam.

    mem movido por uma tica deresponsabilidade estimar que conseqnciasso imputveis a sua prpria ao, condioque ele as poder prever" e, portanto, colocar-se- na condio de antecipar os resultados pro-vveis. O homem "de responsabilidade" , pois,fundamentalmente um "poltico" que sabe queo melhor o inimigo do bem e ainda, aqueleque considera o contexto ao tomar as decisesaceitveis para a maioria. A tica da responsa-bilidade exigente. Com efeito, como j ditoanteriormente, o homem tem sempre respon-sabilidades diversas, organizacional, tcnica,poltica, social, cvica, ecolgica, psquica esendo difcil para ele assumi-las em conjunto,pois algumas podem apresentar aspectos con-traditrios, como por exemplo, um funcion-rio do departamento pessoal dever conside-rar sua responsabilidade tcnica e organiza-cional na aplicao do fluxo de demisso dopessoal "excedente" em detrimento de sua res-ponsabilidade social e cvica. O homem de "res-

    25. Um autor como M. Crozier,particularmente reservado em relao aaes desmesuradas, nota, com humor,que, s vezes, a cabea no fracassa e asparedes se quebram. Cfr. CROIZIER &FRIEDBERG. L'acteuret te systeme. Paris:Seuil, 1986.

    26. ENRIQUEZ, E. Individu, cration ethistoire. Connexions 44, EPI.

    27. WEBER, M. Op. cit., p. 192.

    15RAE v.37 n.2 Abr./Jun.1997

  • 28. HABERMAS, J. Raison et lgilimil.Paris: Payot, 1978, p. 150.

    29. . Morale etcommunication. Paris: Gerf, 1987, p. 87.

    30. FERRY, L. Les puissances de/'exprience. Paris: Gerf, 1991, p. 172.

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    por esta razo que o tema da responsabilidade,fora de toda pesquisa de culpabilidade, tomou-se o termo (modelo) central de nossas socieda-des, ainda que elas no saibam muito bem comotrat-lo. De toda maneira, qualquer que seja alista, evidente que um dos problemas essen-ciais que a sociedade dever enfrentar concer-ne no somente ao futuro mas igualmente aopassado. Com efeito, os seres humanos e so-ciais no so somente responsveis frente s ge-raes futuras pelo peso de suas aes presen-tes mas tambm pela maneira como eles tra-tam o passado, como eles registram a histria,a aceitam e a deformam. Por exemplo, aocultao durante quase 50 anos do perodo deVichy, na Frana, favoreceu a ecloso do fen-meno Le Pen e os sucessos da Frente Nacionalda mesma maneira que a ignorncia dos cri-mes nazistas na R.D.A.- Repblica Democr-tica Alem (os dirigentes afirmavam que osnazistas vinham todos da R.F.A.- RepblicaFederal Alem) facilitou a implantao de umneo-nazismo na Alemanha do Leste. O repri-mido retoma sempre (Freud j havia expostoesta idia com fora) e com mais virulnciaquanto mais intensa tenha sido a represso.No possvel, desse modo, responsabilizar-se pelo presente e pelo futuro se ou quando sequer esquecer o passado. Ser responsvel en-carregar-se das dvidas (e dos crditos) das ge-raes passadas para no cair num mecanis-mo de repetio do qual as geraes futuras steriam a sofrer.

    Com J. Habermas desenvolveu-se uma ti-ca da discusso. Ele coloca a posio daintersubjetividade. essencial que os homenspossam trocar argumentos racionais referen-tes a seus interesses dentro de um espao p-blico de livre discusso. Assim, cada um con-siderado como um ser autnomo, dotado derazo, que pode dar sua opinio. Da discus-so, onde somente as propriedades formais sodefinidas, surgiro novas normas e interessesuniversalizveis. Habermas resume seu pen-samento nestas linhas: "A vontade formada demodo discursivo pode ser dita 'racional' por-que as propriedades formais da discusso eda situao de deliberao garantem sufi-cientemente que um consenso no pode nas-cer seno sobre interesses universalizveis, in-terpretados de modo apropriado, o que enten-do como necessidades que so compartilhadasde modo comunicacional. A barreira, represen-tada um tratamento decisionista( autoritrio)

    das questes prticas, ultrapassada desdeque se solicite argumentao examinar ocarter universalizvel de interesses em vezde se resignar diante do pluralismo, em apa-rncia impenetrvel, dos valores ltimos (oudos atos de f ou das atitudes)".28

    O que pressupe esta posio que a ticada convico (onde cada um defende suas posi-es e no muda) ceder lugar tica da discus-so, cada um podendo fazer concesses e ondeas normas criadas sero aceitveis por todos.Com efeito, para Habermas, toda norma uni-versalmente observada ter, de maneira previ-svel, conseqncias e efeitos secundrios quepodero ser aceitos sem exigncias por todasas pessoas envolvidas dentro do projeto de sa-tisfazer os interesses de cada um".29

    Pode-se reconhecer no pensamento deHabermas uma forte semelhana com o pensa-mento psicossociolgico, em particular comaquele de Lewin; a diferena essencial que oconsenso obtido no ser sobre a base "doscontedos axiolgicos que remetem s convic-es antropolgicas das partes envolvidas,mas sobre os termos processuais de um com-promisso entre estas convicesP No entan-to, alm das diferenas, a idia central quese os indivduos ao comunicarem-se entre sirespeitando as exigncias de validade de umdiscurso que tem um sentido, que exprime abusca da verdade, que sincero e demonstrajustia normativa, esto em condies de che-gar a um acordo e de encontrar solues justase eficazes. Claro que Habermas no cai na uto-pia (Lewin tambm no) segundo a qual osindivduos chegaro sempre a formular inte-resses universalizveis. O que lhe parece es-sencial definir as condies que permitem atodos os seres humanos utilizar suaracionalidade consensual e comunicativa e as-sim existir enquanto tais.

    Mesmo se uma tal perspectiva parece re-fletir tendncias evidentemente consensuais denossa. sociedade aparecendo como pouco sus-peita, da mesma forma que a racionalidade sempaixo pode tomar-se perversa, deve-se admi-tir seu interesse, visto que ela evoca a eminen-te dignidade do homem como indivduo capazde reflexo, de expresso e confronto comoutros. Se esta perspectiva menos originaldo que parece (Merleau-Ponty j tinha expos-to h bastante tempo que a objetividade vinhada subjetividade) ela nos faz, pelo menos, sen-tir a impossibilidade da formulao de uma

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  • OS DESAFIOS TICOS NAS ORGANIZAES MODERNAS

    sobretudo que capaz de mudar, se na trocaconseguir se transformar, a saber, portanto,pensar sozinho e com os outros, a se concebercomo responsvel sem ser bloqueado pelomedo das responsabilidades, a fazer passar suasidias (ou aquelas de outro que ele aceitou)interrogando-se sobre sua deformao poss-vel pela escolha de certos meios, sabendo queas conseqncias imprevistas sero mais fa-cilmente encontradas que as conseqnciasprevistas. Tal sujeito capaz de sublimao,isto , de procurar-se a si mesmo nos outros eaos outros em si mesmo" numa busca perma-nente da verdade.

    Assim, a tica da finitude pode integrar astrs primeiras formas de tica. Claro, cada umaapresenta caractersticas no redutveis s ou-tras. Mas a tica da finitude opera precisamen-te um trabalho de transformao destas carac-tersticas para torn-las pragmaticamente com-patveis. pelo fato de ter uma idia dos seusprprios limites que o homem pode ser um "ho-mem de convico" aceitando entrar em comu-nicao com os outros; tambm, por conheceras capacidades mortferas das discusses ele asaceita at o momento em que compreende quea negociao conduzida ininterruptamente fazcom que perca sua alma; e, finalmente, por quepersegue objetivos que quer verdadeiramenterealizar (e no se contenta em proclam-los),estando atento escolha dos mtodos para atin-gi-los. Portanto, autonomia e heteronomia nose oporo mas se completaro, assim como co-municao e solido, fora de vontade e per-cepo das exigncias. Tal tica, que dever umdia ser formulada mais claramente, particu-larmente exigente. Ela requer homens dotadosde paixo, sem a qual a imaginao no podeemergir; de julgamento, sem o qual nenhumarealizao possvel; de referncia a um ideal,sem o qual o desejo no abandona sua formaarcaica; de aceitao do real e de suas obriga-es, sem as quais os sonhos mais ambiciososse transformam em pesadelo coletivo. Ela tam-bm requer que as organizaes sejam um lu-gar onde a manipulao banida e os esforosde todos na construo da organizao e naedificao do social sejam reconhecidos. Nsainda estamos longe da meta. Mas, enquantoas organizaes preferirem homens que asidealizem a homens "de sublimao" elas con-tinuaro a serem construdas na areia e desapa-recero lentamente, sem chegarem a perceberas razes de seu infortnio. O

    tica que no esteja fundada sobre a reciproci-dade. Nisto nos permite compreender melhorque a participao tanto nas organizaes comona sociedade implica considerar as idias doconjunto dos indivduos situados num planode igualdade. Ela dispensa todos os tipos demanipulao, mas no poder ser plenamentesatisfatria, pois no visualiza os homens emseu aspecto passional nem to pouco seus in-teresses totalmente contraditrios, eliminan-do os efeitos da pulso de morte nas organiza-es e nas instituies. possvel, ento, ex-por uma quarta forma de tica que, proviso-riamente, ser nomeada tica da finitude. Se-gundo tal concepo, as condutas humanassero definidas:

    a) pelo seu papel na rigidez, na homogeini-zao e na destruio possvel das estrutu-ras e dos homens, ou, ao contrrio, por suaespontaneidade e capacidade de favorecero processo de autonomizao;

    b) por sua capacidade de considerar no so-mente a atividade do pensar e do prazer aela vinculado mas igualmente a das pai-xes, a dos medos, a dos sofrimentos, a daslimitaes que afetam toda vida;

    c) por sua atitude e sua coragem de aceitar asferidas narcsicas, a finitude e a mortali-dade, de se submeter ao trabalho de luto ede se confrontar continuamente com apulso de morte em seus aspectos auto ealter destruidores.

    Outros termos poderiam ter sido utiliza-dos, mas o que eles evocam esto contidos nastrs primeiras formas de tica: a coragem natica da convico, o futuro das estruturas edos homens na tica da responsabilidade, a au-tonomia e o reconhecimento da alteridade natica da discusso. Por outro lado, nenhumadas trs primeiras formas de tica visualiza aaceitao da impotncia, a tomada de consci-ncia dos limites, o questionamento da identi-dade e do narcisismo da morte, a considera-o das conseqncias nefastas sobre o futurodo gnero humano, a convivncia de cada umcom a morte que carrega em si e que podeprojetar sobre os outros. ento que o sujeitose situa tanto como portador de vida e de mor-te, como egosta e altrusta, como ser de razoe de paixo que pode ter convices fortes, mas

    31. ENRIQUEZ, E. Chemins vers I'autre,chemins vers soi. In: MAPPA, S.Ambitionset iIIusions de la cooprationNard-Sud. Paris: L'Harmattan, 1990.

    Artigo originalmente publicado na revistaSociologie et Socits, v. XXV, n. 1, p.25 - 38, printemps 1993, sob o Utulo Lesenjeux thiques dans les organizationsmodernes. Traduo de Maria JosTonelli, Professora do Departamento deFundamentos Sociais e Jurldicos daAdministrao da EAESP/FGV.

    17RAE v. 37 n. 2 Abr./Jun. 1997