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9 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 25 a 31 de agosto de 2008 EUSTÁQUIO GOMES ue teria acontecido a Machado de Assis no ano da graça de 1880? Entrava no undécimo ano de seu inalterável casamento e levava existência igualmente serena no serviço público, onde era es- timado e gozava de alta reputação. Chegara aos 40 anos e, para os padrões intelectuais da época, granjeara já su- ficiente prestígio com os quatro roman- ces que publicara até então. A França já havia produzido Balzac e Stendhal, a Inglaterra Sterne e Fielding, a América Poe e Melville, mas o romance brasileiro mal acabara de completar 20 anos e parecia lastrea- do, não no vigor dos melhores realis- tas, mas na moral romântica do sécu- lo. Estavam já plantadas as sementes do marxismo, Paris era agitada pelos impressionistas e no ano seguinte nas- ceria Picasso, mas essas eram vibra- ções que chegavam amortecidas pelo riso ou silenciavam na atmosfera aba- fadiça da sociedade escravocrata. As idéias que aqui circulavam eram as que resultariam, um pouco mais tarde, no positivismo militar. Na aparência, o que tal sociedade desejava era o romance de caracteres, em que as instituições fossem enal- tecidas e a moral preservada. Entre os valores a serem perpetuados incluíam- se, naturalmente, as tranqüilas conven- ções da forma e do estilo. Na introdu- ção de seu primeiro romance (Ressur- reição, 1872), Machado admite com placidez: “Tentei o esboço de uma si- tuação e o contraste de dois caracteres; a crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito”. Tratava-se de comprovar o bom uso de certas fórmulas e de sub- meter o resultado ao veredito dos juízes: “Convém dizer que o desenho de tais caracteres (...) foi o meu objeti- vo principal, servindo-me a ação ape- nas de tela em que lancei o contorno dos perfis”, diz no prefácio do roman- ce seguinte (A mão e a luva, 1874). Os caracteres, contudo, definiam- se pelo genérico e as convenções que regulavam suas relações deviam ser consideradas não apenas parte da esté- tica, mas decorrência da própria natu- reza humana. Isso deixava Machado muito próximo do gosto da época e “a dois passos da mediocridade consoli- dada e satisfeita” (Gladstone Chaves de Melo). Nos quatro anos seguintes Machado publicaria dois outros roman- ces na mesma linha – Helena, em 1876, e Iaiá Garcia, em 1878 –, encerrando aquela que ficou conhecida como sua fase romântica. A transformação sofrida por Ma- chado em 1880 resultou por certo da constatação das limitações dessa prá- tica, e quiçá da percepção (súbita? maturada?) das alterações no ritmo do andamento histórico e dos equivalen- tes formais a ele inerentes. Levando- se em conta que “a lógica do tempo guarda estreita relação com a lógica do espaço” (Spengler), é possível que a concepção formal de Memórias pós- tuma de Brás Cubas – a obra que assi- nala a chegada da maturidade do autor e o separa qualitativamente de seus contemporâneos – tenha sido uma res- posta premonitória à idéia moderna de velocidade, que tão profunda alteração traria à relação entre os conceitos de distância e tempo. É certo que o quarentão, já curtido na madurez da crônica política (em curiosa contradição com certa juveni- lidade de sua ficção até então), perce- bera que, sendo o romance uma arte temporal – o tempo determinando es- trutura, linguagem e tom –, cabia re- considerar tais valores temporais. Tra- tava-se de vê-los sob uma outra luz, clarificando o uso de instrumentos como andamento, continuidade e suspense, e adotando, de resto, uma atitude mais aberta em relação a pro- blemas como seleção, seqüenciamento, causalidade e pontos de visualização. Apreender as novas concepções de tempo implicava, antes de mais nada, rever a noção de espaço. Disso resul- taram as mudanças de perspectiva e a deformação do senso das proporções. O romance estava claramente diante de novas possibilidades técnicas. Machado não esperava contar com a aprovação irrestrita para as trans- gressões que essas possibilidades in- cluíam. “A gente grave achará no livro umas aparências de puro romance”, escreve na introdução ao Brás Cubas, “ao passo que a gente frívola não acha- da maturidade machadiana está longe de consistir exclusivamente na inver- são cronológica, que sequer podia ser considerada novidade técnica em si, mas é certo que esse recurso, muito útil na desmontagem da lógica realista, in- flui decisivamente na formatação do Brás Cubas e em toda a sua obra ulte- rior. A bem dizer, a transgressão não está exatamente em que as memórias comecem pelo fim, mas no fato de que o narrador, ao iniciá-las, se declara morto. Se se trata ou não de uma morte puramente analógica, importa pouco: o certo é que essa escolha define o tom e a dicotomia temporal da narrativa – um passado composto de fragmentos não explicitamente convergentes e um pre- sente ficcional contínuo, organizador. notonia ou suspense. O uso reiterativo do presente ficcional (que, morto o memorialista, é uma espécie de tempo suspenso na história) e a freqüente imobilização da ação terminam por rechear o romance de digressões que, mais que narrar ou comentar os fatos em si, desviam o foco de interesse para o modo como são narrados. Essas longueurs (remi- niscências, exortações, presenti- ficações) perfazem a maior parte da narrativa. Como Sterne, Machado faz assim meta-romance, não apenas recu- sando o estatuto de ficção ilusionista mas, indo além, insistindo em chamar a atenção do leitor para a materialidade do livro. À parte isto, a digressão machadiana bem pode ser situada en- tre a narrativa de ação causal e o ro- mance sem enredo, ou, mais adiante, o fluxo de consciência. Mas aqui já é bastante evidente que o ritmo superou o enredo e que não estamos longe das técnicas de ação transversal (Dos Pas- sos, Huxley) e dos artifícios de focali- zação múltipla (Joyce, Faulkner). Convertida em exceção a progres- são linear e em regra o processo frag- mentário de montagem, a narrativa re- sulta permeada de lacunas que Macha- do preenche a seu modo, poten- cializando o silêncio e fazendo crer numa escritura subjacente à do texto visível. Pois a força de um autor freqüentemente se revela também (e às vezes principalmente) no que ele dei- xa de escrever. Se isto parece banal, é bom que se diga que, mesmo em nos- sos dias, nem todos os romancistas es- tão aptos a trabalhar com a inserção de grandes lacunas entre as unidades dra- máticas, e muitos há sequer prepara- dos para aceitá-las. Se tais lacunas facilitam a flexibi- lidade do texto, deveriam dificultar, em princípio, as transições entre os inci- dentes. Machado, contudo, ou se vale habilmente do artifício do sofisma ou não raro faz delas – as transições – o seu próprio assunto antes de passar adiante. “E vejam agora com que des- treza, com que arte faço eu a maior transição deste livro”, assim começa o capítulo IX, instrutivamente intitu- lado... “Transição”. E depois de uma breve recensão dos elementos do capí- tulo VIII, e a pretexto de recuar da sua morte a seu nascimento, faz o percur- so retroativo delírio-Virgília-juventu- de-meninice-nascimento”, e conclui: Viram? Nenhuma juntura aparen- te, nada que divirta a atenção do lei- tor: nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do mé- todo, sem a rigidez do método. Na ver- dade, era tempo. Que isto de método, sendo, como é, uma coisa indispensá- vel, todavia é melhor tê-lo sem grava- ta nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta. Se era tempo de mudar o método, de suas uma: ou os leitores pediam um novo romance ou o romance pedia um novo leitor. É minha opinião que Ma- chado, como Stendhal, e não obstante a devoção que lhe tributavam seus con- temporâneos, escrevia com os pés fin- cados no presente e os olhos postos no futuro. “O maior defeito deste livro és tu, leitor”, diz ele no capítulo LXXI. E acrescenta: Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narra- ção direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem. Que espécie de convicção movia Machado numa quadra em que Zola estabelecia o triunfo do romance de inventário e Tolstoi o fastígio dos gran- des painéis históricos? Pois numa épo- ca de certezas formais e de estilos “re- gulares e fluentes”, ele ousava aplicar ao romance as leis irregulares da poé- tica, que, como se sabe, viriam a reger as vertentes mais fecundas do roman- ce do século seguinte. Não é à toa que, lá pelo capítulo LXXII, depois de re- ferir-se à “crítica do futuro”, ele avan- ça exatos 70 anos (isto é, até 1950) e entrevê “um sujeito magro, amarelo, grisalho” (um bibliômano) inclinado sobre o seu livro. A descrição desse es- pécime não é muito lisonjeira (afinal é alguém preocupado apenas com o va- lor comercial da brochura), mas, exclu- indo este particular, quem duvida que não foi a um de nós que ele descreveu? 1880 , o ano em que Machado se reinventa Eustáquio Gomes, jornalista, escreveu, entre outros livros, os romances A febre amorosa, Jonas Blau e O mapa da Austrália. O presente texto, que sofreu apenas ligeiras alterações, é de 1988. Quem é Quem é É dessa argamassa – o passado his- tórico e o presente do narrador – que o romance extrai alguns de seus recur- sos mais exuberantes e (agora sim) tec- nicamente inovadores, como o uso de lacunas ativas entre as unidades dra- máticas, as transições pelo sofisma, o retardamento por meio de digressões e o baralhamento cronológico mediante trocas de tempo. O tempo cronológico dura apenas enquanto for útil ao fato psicológico, que é de natureza subjeti- va e varia de extensão segundo a eco- nomia do espírito, não a do relógio. Operando com os valores e as diferen- ças entre ambos níveis de tempo, Ma- chado pôde regular à vontade o anda- mento da narrativa conforme suas ne- cessidades de pressa ou lentidão, mo- rá nele o romance usual”. Não faz re- ferência aos críticos de seu tempo, o que bem pode significar que já não es- crevia para eles, mas, ao contrário, à revelia deles e de suas convenções. Na verdade, devia estar impregnado não só da liberdade formal de Sterne (in- fluência já largamente estudada), mas também da rebelião espiritual de Fielding quando declara em Tom Jones: “Não me considero obrigado a prestar contas a quem quer que seja, pois sen- do eu o fundador de uma nova provín- cia do escrever, acho-me em liberdade para fazer as leis que me satisfaçam”. Ainda que muitas das novas leis machadianas tenham vindo de 120 anos atrás (Tristram Shandy, de Sterne, foi escrito entre 1760 e 1767), incidiam todavia no final de um século carrega- do de magistrais reiterações no enredo progressivo e na tradição causal. Se Goethe foi responsabilizado de, com a resistência galvânica de sua obra, ter imobilizado a língua alemã por dois séculos inteiros, que não dizer do po- der de petrificação das formas quando se tem, não um, mas toda uma legião de escritores excepcionais trabalhando sob o rigor da causalidade e a simetria do tempo cronológico. Era natural que, rebelando-se con- tra convenções tão bem estatuídas e claras, Machado se defrontasse com problemas lingüísticos e literários no- vos. No centro desses problemas estão o tempo e sua corporificação no plano do texto. Recusar a primazia do tempo cronológico, que é o mesmo para to- dos e se mede pela continuidade, equi- vale a realçar o tempo psicológico, que é particular e se mede pela intensida- de. Daí que, rompido o princípio de duração sucessiva e linear – e subver- tida a espacialidade –, o romance dei- xaria de ser o conduto simétrico de imagens para se converter em constru- ção angulosa com refrações, desvãos e jogos de sombras. Que isto veio a espelhar mais verdadeiramente os pro- cessos da experiência contemporânea pode ser comprovado no fato de que, quatro décadas mais tarde, em pleno século 20, tais técnicas tenham sido levadas a extremos por experimentalis- tas como Joyce, Dos Passos e Faulkner. Num fragmento inédito de Sterne dado a público em 1870 por Paul Stapfer, lê-se o seguinte: “Os óculos podem fazer uma polegada parecer uma milha; deixo para época futuras inventarem um sistema que faça um minuto parecer um ano”. No célebre capítulo VII do Brás Cubas, intitulado “O delírio”, Machado tenta não só compactar alguns bilhões de anos em uns poucos instantes como ainda, dan- do-nos talvez a chave de seu método, faz o relógio andar para trás. A estética Q Foto: Fundação Casa de Rui Barbosa Foto: Marc Ferrez/ Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles Carolina Augusta, mulher de Machado, em foto de 1869 Real Gabinete Português de Leitura (foto de 1895), cuja diretoria organizou em 1880 a apresentação da comédia Tu só, tu, puro amor..., de Machado de Assis, em comemoração do tricentenário de Camões; o escritor passaria a ser sócio honorário da entidade em 1881

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  • 9JORNAL DA UNICAMPCampinas, 25 a 31 de agosto de 2008

    EUSTÁQUIO GOMES

    ue teria acontecido aMachado de Assis noano da graça de 1880?Entrava no undécimoano de seu inalterávelcasamento e levavaexistência igualmente

    serena no serviço público, onde era es-timado e gozava de alta reputação.Chegara aos 40 anos e, para os padrõesintelectuais da época, granjeara já su-ficiente prestígio com os quatro roman-ces que publicara até então.

    A França já havia produzido Balzace Stendhal, a Inglaterra Sterne eFielding, a América Poe e Melville,mas o romance brasileiro mal acabarade completar 20 anos e parecia lastrea-do, não no vigor dos melhores realis-tas, mas na moral romântica do sécu-lo. Estavam já plantadas as sementesdo marxismo, Paris era agitada pelosimpressionistas e no ano seguinte nas-ceria Picasso, mas essas eram vibra-ções que chegavam amortecidas peloriso ou silenciavam na atmosfera aba-fadiça da sociedade escravocrata. Asidéias que aqui circulavam eram as queresultariam, um pouco mais tarde, nopositivismo militar.

    Na aparência, o que tal sociedadedesejava era o romance de caracteres,em que as instituições fossem enal-tecidas e a moral preservada. Entre osvalores a serem perpetuados incluíam-se, naturalmente, as tranqüilas conven-ções da forma e do estilo. Na introdu-ção de seu primeiro romance (Ressur-reição, 1872), Machado admite complacidez: “Tentei o esboço de uma si-tuação e o contraste de dois caracteres;a crítica decidirá se a obra correspondeao intuito”. Tratava-se de comprovaro bom uso de certas fórmulas e de sub-meter o resultado ao veredito dosjuízes: “Convém dizer que o desenhode tais caracteres (...) foi o meu objeti-vo principal, servindo-me a ação ape-nas de tela em que lancei o contornodos perfis”, diz no prefácio do roman-ce seguinte (A mão e a luva, 1874).

    Os caracteres, contudo, definiam-se pelo genérico e as convenções queregulavam suas relações deviam serconsideradas não apenas parte da esté-tica, mas decorrência da própria natu-reza humana. Isso deixava Machadomuito próximo do gosto da época e “adois passos da mediocridade consoli-dada e satisfeita” (Gladstone Chavesde Melo). Nos quatro anos seguintesMachado publicaria dois outros roman-ces na mesma linha – Helena, em 1876,e Iaiá Garcia, em 1878 –, encerrandoaquela que ficou conhecida como suafase romântica.

    A transformação sofrida por Ma-chado em 1880 resultou por certo daconstatação das limitações dessa prá-tica, e quiçá da percepção (súbita?maturada?) das alterações no ritmo doandamento histórico e dos equivalen-tes formais a ele inerentes. Levando-se em conta que “a lógica do tempoguarda estreita relação com a lógica doespaço” (Spengler), é possível que aconcepção formal de Memórias pós-tuma de Brás Cubas – a obra que assi-nala a chegada da maturidade do autore o separa qualitativamente de seuscontemporâneos – tenha sido uma res-posta premonitória à idéia moderna develocidade, que tão profunda alteraçãotraria à relação entre os conceitos dedistância e tempo.

    É certo que o quarentão, já curtidona madurez da crônica política (emcuriosa contradição com certa juveni-lidade de sua ficção até então), perce-bera que, sendo o romance uma artetemporal – o tempo determinando es-trutura, linguagem e tom –, cabia re-considerar tais valores temporais. Tra-tava-se de vê-los sob uma outra luz,clarificando o uso de instrumentoscomo andamento, continuidade esuspense, e adotando, de resto, umaatitude mais aberta em relação a pro-blemas como seleção, seqüenciamento,causalidade e pontos de visualização.Apreender as novas concepções detempo implicava, antes de mais nada,rever a noção de espaço. Disso resul-taram as mudanças de perspectiva e adeformação do senso das proporções.O romance estava claramente diante denovas possibilidades técnicas.

    Machado não esperava contarcom a aprovação irrestrita para as trans-gressões que essas possibilidades in-cluíam. “A gente grave achará no livroumas aparências de puro romance”,escreve na introdução ao Brás Cubas,“ao passo que a gente frívola não acha-

    da maturidade machadiana está longede consistir exclusivamente na inver-são cronológica, que sequer podia serconsiderada novidade técnica em si,mas é certo que esse recurso, muito útilna desmontagem da lógica realista, in-flui decisivamente na formatação doBrás Cubas e em toda a sua obra ulte-rior. A bem dizer, a transgressão nãoestá exatamente em que as memóriascomecem pelo fim, mas no fato de queo narrador, ao iniciá-las, se declaramorto. Se se trata ou não de uma mortepuramente analógica, importa pouco: ocerto é que essa escolha define o tom ea dicotomia temporal da narrativa – umpassado composto de fragmentos nãoexplicitamente convergentes e um pre-sente ficcional contínuo, organizador.

    notonia ou suspense.O uso reiterativo do presente

    ficcional (que, morto o memorialista,é uma espécie de tempo suspenso nahistória) e a freqüente imobilização daação terminam por rechear o romancede digressões que, mais que narrar oucomentar os fatos em si, desviam ofoco de interesse para o modo comosão narrados. Essas longueurs (remi-niscências, exortações, presenti-ficações) perfazem a maior parte danarrativa. Como Sterne, Machado fazassim meta-romance, não apenas recu-sando o estatuto de ficção ilusionistamas, indo além, insistindo em chamara atenção do leitor para a materialidadedo livro. À parte isto, a digressãomachadiana bem pode ser situada en-tre a narrativa de ação causal e o ro-mance sem enredo, ou, mais adiante, ofluxo de consciência. Mas aqui já ébastante evidente que o ritmo superouo enredo e que não estamos longe dastécnicas de ação transversal (Dos Pas-sos, Huxley) e dos artifícios de focali-zação múltipla (Joyce, Faulkner).

    Convertida em exceção a progres-são linear e em regra o processo frag-mentário de montagem, a narrativa re-sulta permeada de lacunas que Macha-do preenche a seu modo, poten-cializando o silêncio e fazendo crernuma escritura subjacente à do textovisível. Pois a força de um autorfreqüentemente se revela também (e àsvezes principalmente) no que ele dei-xa de escrever. Se isto parece banal, ébom que se diga que, mesmo em nos-sos dias, nem todos os romancistas es-tão aptos a trabalhar com a inserção degrandes lacunas entre as unidades dra-máticas, e muitos há sequer prepara-dos para aceitá-las.

    Se tais lacunas facilitam a flexibi-lidade do texto, deveriam dificultar, emprincípio, as transições entre os inci-dentes. Machado, contudo, ou se valehabilmente do artifício do sofisma ounão raro faz delas – as transições – oseu próprio assunto antes de passaradiante. “E vejam agora com que des-treza, com que arte faço eu a maiortransição deste livro”, assim começa ocapítulo IX, instrutivamente intitu-lado... “Transição”. E depois de umabreve recensão dos elementos do capí-tulo VIII, e a pretexto de recuar da suamorte a seu nascimento, faz o percur-so retroativo delírio-Virgília-juventu-de-meninice-nascimento”, e conclui:

    Viram? Nenhuma juntura aparen-te, nada que divirta a atenção do lei-tor: nada. De modo que o livro ficaassim com todas as vantagens do mé-todo, sem a rigidez do método. Na ver-dade, era tempo. Que isto de método,sendo, como é, uma coisa indispensá-vel, todavia é melhor tê-lo sem grava-ta nem suspensórios, mas um pouco àfresca e à solta.

    Se era tempo de mudar o método,de suas uma: ou os leitores pediam umnovo romance ou o romance pedia umnovo leitor. É minha opinião que Ma-chado, como Stendhal, e não obstantea devoção que lhe tributavam seus con-temporâneos, escrevia com os pés fin-cados no presente e os olhos postos nofuturo. “O maior defeito deste livro éstu, leitor”, diz ele no capítulo LXXI. Eacrescenta:

    Tu tens pressa de envelhecer, e olivro anda devagar; tu amas a narra-ção direta e nutrida, o estilo regular efluente, e este livro e meu estilo sãocomo os ébrios, guinam à direita e àesquerda, andam e param, resmungam,urram, gargalham, ameaçam o céu,escorregam e caem.

    Que espécie de convicção moviaMachado numa quadra em que Zolaestabelecia o triunfo do romance deinventário e Tolstoi o fastígio dos gran-des painéis históricos? Pois numa épo-ca de certezas formais e de estilos “re-gulares e fluentes”, ele ousava aplicarao romance as leis irregulares da poé-tica, que, como se sabe, viriam a regeras vertentes mais fecundas do roman-ce do século seguinte. Não é à toa que,lá pelo capítulo LXXII, depois de re-ferir-se à “crítica do futuro”, ele avan-ça exatos 70 anos (isto é, até 1950) eentrevê “um sujeito magro, amarelo,grisalho” (um bibliômano) inclinadosobre o seu livro. A descrição desse es-pécime não é muito lisonjeira (afinal éalguém preocupado apenas com o va-lor comercial da brochura), mas, exclu-indo este particular, quem duvida quenão foi a um de nós que ele descreveu?

    1880,o ano em que Machadose reinventaEustáquio Gomes,jornalista, escreveu, entre outroslivros, os romances A febreamorosa, Jonas Blau e O mapa daAustrália. O presente texto, quesofreu apenas ligeiras alterações, éde 1988.

    Quem éQuem é

    É dessa argamassa – o passado his-tórico e o presente do narrador – que oromance extrai alguns de seus recur-sos mais exuberantes e (agora sim) tec-nicamente inovadores, como o uso delacunas ativas entre as unidades dra-máticas, as transições pelo sofisma, oretardamento por meio de digressões eo baralhamento cronológico mediantetrocas de tempo. O tempo cronológicodura apenas enquanto for útil ao fatopsicológico, que é de natureza subjeti-va e varia de extensão segundo a eco-nomia do espírito, não a do relógio.Operando com os valores e as diferen-ças entre ambos níveis de tempo, Ma-chado pôde regular à vontade o anda-mento da narrativa conforme suas ne-cessidades de pressa ou lentidão, mo-

    rá nele o romance usual”. Não faz re-ferência aos críticos de seu tempo, oque bem pode significar que já não es-crevia para eles, mas, ao contrário, àrevelia deles e de suas convenções. Naverdade, devia estar impregnado nãosó da liberdade formal de Sterne (in-fluência já largamente estudada), mastambém da rebelião espiritual deFielding quando declara em Tom Jones:“Não me considero obrigado a prestarcontas a quem quer que seja, pois sen-do eu o fundador de uma nova provín-cia do escrever, acho-me em liberdadepara fazer as leis que me satisfaçam”.

    Ainda que muitas das novas leismachadianas tenham vindo de 120anos atrás (Tristram Shandy, de Sterne,foi escrito entre 1760 e 1767), incidiamtodavia no final de um século carrega-do de magistrais reiterações no enredoprogressivo e na tradição causal. SeGoethe foi responsabilizado de, com aresistência galvânica de sua obra, terimobilizado a língua alemã por doisséculos inteiros, que não dizer do po-der de petrificação das formas quandose tem, não um, mas toda uma legiãode escritores excepcionais trabalhandosob o rigor da causalidade e a simetriado tempo cronológico.

    Era natural que, rebelando-se con-tra convenções tão bem estatuídas eclaras, Machado se defrontasse comproblemas lingüísticos e literários no-vos. No centro desses problemas estãoo tempo e sua corporificação no planodo texto. Recusar a primazia do tempocronológico, que é o mesmo para to-dos e se mede pela continuidade, equi-vale a realçar o tempo psicológico, queé particular e se mede pela intensida-de. Daí que, rompido o princípio deduração sucessiva e linear – e subver-tida a espacialidade –, o romance dei-xaria de ser o conduto simétrico deimagens para se converter em constru-ção angulosa com refrações, desvãose jogos de sombras. Que isto veio aespelhar mais verdadeiramente os pro-cessos da experiência contemporâneapode ser comprovado no fato de que,quatro décadas mais tarde, em plenoséculo 20, tais técnicas tenham sidolevadas a extremos por experimentalis-tas como Joyce, Dos Passos e Faulkner.

    Num fragmento inédito de Sternedado a público em 1870 por PaulStapfer, lê-se o seguinte: “Os óculospodem fazer uma polegada pareceruma milha; deixo para época futurasinventarem um sistema que faça umminuto parecer um ano”. No célebrecapítulo VII do Brás Cubas, intitulado“O delírio”, Machado tenta não sócompactar alguns bilhões de anos emuns poucos instantes como ainda, dan-do-nos talvez a chave de seu método,faz o relógio andar para trás. A estética

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    Foto: Fundação Casa de Rui Barbosa

    Foto: Marc Ferrez/ Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles

    Carolina Augusta, mulher de Machado, em foto de 1869

    Real GabinetePortuguês deLeitura (foto de1895), cujadiretoriaorganizou em1880 aapresentaçãoda comédia Tusó, tu, puroamor..., deMachado deAssis, emcomemoraçãodo tricentenáriode Camões; oescritorpassaria a sersócio honorárioda entidade em1881