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sam harris A paisagem moral Como a ciência pode determinar os valores humanos Tradução Claudio Angelo

Paisagem Moral

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paisagem moral

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  • sam harris

    A paisagem moralComo a cincia pode determinar os valores humanos

    Traduo

    Claudio Angelo

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  • Copyright 2010 by Sam HarrisTodos os direitos reservados

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Ttulo originalThe Moral Landscape: How Science Can Determine Human Values

    CapaMariana Newlands

    Foto de capaThe Brett Weston Archive/ Corbis (DC)/ LatinStock

    PreparaoJacob Lebensztayn

    ndice remissivoLuciano Marchiori

    RevisoCarmen T. S. CostaAna Maria Barbosa

    [2013]Todos os direitos desta edio reservados editora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 So Paulo spTelefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Harris, Sam.A paisagem moral: Como a cincia pode determinar os va

    lores humanos / Sam Harris; traduo Claudio Angelo. 1a ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2013.

    Ttulo original: The Moral Landscape: How Science Can Determine Human Values.

    isbn 978-85-359-2329-2

    1. Cincia Aspectos morais e ticos 2. tica 3. Valores i. Ttulo.

    13-08825 cdd171.2

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. tica: Aspectos morais: Filosofia 171.2

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  • Sumrio

    Introduo A paisagem moral ................................................................. 9

    1. Verdade moral ......................................................................................... 33

    2. O bem e o mal ......................................................................................... 59

    3. Crena ..................................................................................................... 115

    4. Religio .................................................................................................... 146

    5. O futuro da felicidade ............................................................................. 176

    Posfcio .......................................................................................................... 191

    Agradecimentos ............................................................................................. 207

    Notas .............................................................................................................. 211

    Bibliografia .................................................................................................... 257

    ndice remissivo ............................................................................................ 295

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  • 33

    1. Verdade moral

    Muitas pessoas acham que alguma coisa no ltimo punhado de sculos

    de progresso intelectual nos impede de falar em termos de verdade moral, e,

    portanto, de fazer juzos de valor morais sobre outras culturas ou qualquer

    tipo de julgamento moral. Ao discutir esse assunto em diversos fruns, ouvi de

    milhares de homens e mulheres instrudos que a moralidade um mito, que

    afirmaes sobre valores humanos no tm embasamento real (e, dessa forma,

    so desprovidas de qualquer sentido) e que conceitos como bemestar e infelici

    dade so to mal definidos ou suscetveis a interpretaes pessoais e influn

    cias culturais que impossvel ter certeza do que quer que seja sobre eles.1

    Muitas dessas pessoas tambm acham que um fundamento cientfico

    para a moralidade no serviria para nada. Pensam que somos capazes de

    combater o mal mesmo sabendo que nossa noo de bem e mal incerta.

    sempre divertido quando essas mesmas pessoas hesitam em condenar

    exemplos patentes de comportamento abominvel. Acredito que ningum

    ter vivido plenamente sua vida intelectual at ter visto um respeitado acad

    mico defender a legitimidade contextual da burca ou a mutilao genital

    feminina meio minuto depois de anunciar que o relativismo moral no dimi

    nui de forma alguma o compromisso de uma pessoa de fazer deste mundo

    um lugar melhor.2

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  • 34

    Ento bvio que, antes que possamos alcanar qualquer progresso rumo a uma cincia da moral, precisamos limpar o terreno filosfico. Neste captulo, tento fazer isso dentro dos limites do que imagino ser a tolerncia da maioria dos leitores a tais projetos. queles que o conclurem sem ter esclarecido suas dvidas, peo que consultem as notas no final do livro.

    Primeiramente, quero ser muito claro sobre minha tese geral: no estou

    sugerindo que a cincia possa nos dar um relato evolutivo ou neurobiolgico

    daquilo que as pessoas fazem em nome da moral. Nem estou simplesmente

    dizendo que a cincia pode nos ajudar a conseguir o que quisermos na vida.

    Seriam proposies demasiado banais a menos que voc calhe de duvidar

    da verdade da evoluo, ou da ligao entre mente e crebro, ou da utilidade

    geral da cincia. O que estou argumentando que a cincia pode, em princpio,

    ajudarnos a entender o que deveramos fazer e deveramos querer e, portan

    to, o que outras pessoas deveriam fazer e querer para viver a melhor vida poss

    vel. Minha alegao que existem respostas certas e erradas para questes mo

    rais, assim como existem respostas certas e erradas para questes de fsica, e

    que tais respostas podero um dia estar ao alcance das cincias da mente.Uma vez que entendamos que a preocupao com o bemestar (definido

    nos termos mais amplos possveis) a nica base inteligvel para a moralidade e os valores, veremos que deve haver uma cincia da moralidade, quer ns tenhamos sucesso em desenvolvla, quer no: isso porque o bemestar de criaturas conscientes depende de como o universo est estruturado. J que possvel entender as mudanas no universo fsico e na maneira como o experimentamos, a cincia deveria, cada vez mais, nos permitir responder a certas questes de cunho moral. Por exemplo, seria melhor gastar nosso prximo bilho de dlares erradicando o racismo ou a malria? O que mais nocivo aos nossos relacionamentos pessoais: mentiras brancas ou fofoca? Essas perguntas parecem impossveis de responder neste momento, mas talvez no permaneam assim para sempre. medida que comecemos a entender o melhor modo pelo qual os seres humanos podem colaborar e prosperar neste mundo, a cincia poder nos ajudar a encontrar um caminho que v da mais profunda misria maior felicidade para o maior nmero possvel de pessoas. claro que, na prtica, haver empecilhos avaliao das consequncias de determinadas aes, e diferentes trilhas na vida podero ser moralmente equivalentes (ou seja, pode ser que haja vrios picos na paisagem moral), mas o que estou dizendo que, em princpio, nada nos impede de falar em verdade moral.

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  • 35

    * * *

    Pareceme, porm, que a maioria das pessoas instrudas e no religiosas (e

    isso inclui cientistas, acadmicos e jornalistas) acredita que tal coisa no existe

    apenas preferncias e opes morais e reaes emocionais que confundi

    mos com conhecimento genuno de certo e errado. Embora possamos enten

    der como os seres humanos pensam e agem em nome da moralidade, imagi

    nase que no existam respostas certas que a cincia possa encontrar para

    questes de cunho moral.

    Alguns sustentam essa viso ao definir a cincia em termos estreitos de

    mais, como se cincia fosse sinnimo de modelagem matemtica ou de acesso

    imediato a dados experimentais. No entanto, no se deve confundir a cincia

    em si com algumas de suas ferramentas. A cincia simplesmente representa

    nosso melhor esforo para entender o que se passa neste universo, e a fronteira

    entre ela e o restante do pensamento racional nem sempre pode ser claramen

    te traada. preciso ter muitas ferramentas mo para pensar de forma cien

    tfica noes de causa e efeito, respeito pelas evidncias e pela coerncia

    lgica, uma boa pitada de curiosidade e honestidade intelectual, inclinao a

    fazer previses falseveis etc. , e tais ferramentas precisam ser postas em uso

    muito antes que o cientista comece a se preocupar com modelos matemticos

    ou dados especficos.

    Muita gente tambm no entende direito o que significa falar da condio

    humana com objetividade cientfica. Como o filsofo John Searle uma vez

    afirmou, h dois sentidos muito diferentes para os termos objetivo e subje

    tivo.3 O primeiro se relaciona a como sabemos (epistemologia) e o segundo,

    ao que h para saber (ontologia). Quando dizemos que estamos raciocinando

    ou falando objetivamente, em geral queremos dizer que estamos livres de

    qualquer vis bvio, abertos a contraargumentos, conscientes dos fatos rele

    vantes e assim por diante. Tratase de uma afirmao sobre como estamos pen

    sando. Nesse sentido, no h nada que nos impea de estudar fatos subjetivos

    (ou seja, em primeira pessoa) de maneira objetiva.

    Por exemplo, verdadeiro dizer que estou com tinido (zumbido no ouvi

    do) neste momento. Esse um fato subjetivo sobre minha pessoa, mas, ao de

    clarlo, estou sendo totalmente objetivo: no estou mentindo, no estou exa

    gerando o efeito e no estou expressando mera preferncia ou um vis pessoal.

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  • 3

    Estou simplesmente atestando um fato sobre o que estou escutando neste mo

    mento. Fui a um otorrino, que confirmou a perda de audio em meu ouvido

    direito. Sem dvida, minha experincia de tinido deve ter uma causa objetiva

    (em terceira pessoa) que poderia ser descoberta (provavelmente, dano minha

    cclea). Claro est que posso falar de meu tinido dentro do esprito da objeti

    vidade cientfica e, de fato, as cincias da mente se baseiam em grande parte

    na nossa capacidade de correlacionar experincias subjetivas de primeira pes

    soa com estados cerebrais de terceira pessoa. Esta a nica maneira de estudar

    um fenmeno como a depresso: os estados cerebrais subjacentes devem ser

    mapeados tendo como referncia a experincia subjetiva da pessoa.

    No entanto, muita gente parece pensar que, como os fatos morais esto

    relacionados nossa experincia (e so, portanto, ontologicamente subjeti

    vos), qualquer conversa sobre a moralidade deve ser subjetiva no sentido

    epistemolgico (ou seja, enviesada, meramente pessoal etc.), o que simples

    mente no verdade. Espero estar claro que, quando falo de verdades morais

    objetivas, ou das causas objetivas do bemestar humano, no estou negando

    o componente necessariamente subjetivo (ou seja, de experincia pessoal) dos

    fatos em discusso. Sem dvida no estou alegando que verdades morais exis

    tam independentemente da experincia das criaturas conscientes como a

    Verdade platnica4 nem que certas aes sejam intrinsecamente erradas.5

    Simplesmente estou dizendo que, uma vez que existem fatos fatos reais a

    serem descobertos sobre como criaturas conscientes podem viver na pior infe

    licidade possvel ou com o maior bemestar possvel, objetivamente verda

    deiro afirmar que h respostas certas e erradas para questes de cunho moral,

    quer consigamos formullas na prtica, quer no.

    E, como eu j disse, as pessoas no costumam ser capazes de fazer a dis

    tino entre haver respostas na prtica e respostas em princpio para questes

    especficas sobre a natureza da realidade. Quando pensamos na aplicao da

    cincia a questes que envolvem o bemestar humano, crucial que no per

    camos de vista essa distino. Afinal, existem incontveis fenmenos que so

    subjetivamente reais, que podemos discutir objetivamente (ou seja, de ma

    neira honesta e racional), mas que permanecem impossveis de descrever

    com preciso. Considere por exemplo o conjunto de desejos corresponden

    tes a todas as esperanas nutridas em silncio pelas pessoas quando elas so

    pram as velas em seus bolos de aniversrio. Ser que um dia seremos capazes

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    de recuperar esses pensamentos? claro que no. A maioria de ns passaria aperto para se lembrar de um desejo de aniversrio que fosse. Ser que isso significa que tais desejos nunca existiram ou que no podemos fazer afirmaes falsas ou verdadeiras sobre eles? E se eu dissesse que todos eles so formulados em latim, focados no aprimoramento da tecnologia dos painis solares e produzidos pela atividade de exatos 10 mil neurnios no crebro de cada pessoa? Ser uma afirmao vazia? No, ela bastante precisa e certamente est errada. Mas s um luntico poderia pensar algo assim dos outros seres humanos. Claramente ns podemos fazer asseres falsas ou verdadeiras sobre a subjetividade humana (e animal) e com frequncia podemos avaliar essas asseres sem termos acesso aos fatos em questo. uma coisa perfeitamente razovel, cientfica e muitas vezes necessria a fazer. No entanto, diversos cientistas diro que verdades morais no existem simplesmente porque certos fatos relacionados experincia humana no podem ser conhecidos de imediato, ou podem no chegar a ser conhecidos nunca. Como eu espero poder mostrar, esse malentendido criou uma confuso tremenda na discusso das relaes entre conhecimento e valores humanos.

    Outra coisa que torna difcil discutir a ideia de uma verdade moral o fato de que as pessoas muitas vezes aplicam dois pesos e duas medidas definio de consenso: a maioria delas considera que consenso cientfico significa que verdades cientficas existem e que as controvrsias cientficas so apenas um sinal de que ainda h mais trabalho a fazer naquela rea; porm, vrias dessas mesmas pessoas acreditam que as controvrsias morais provam que no existe verdade moral, enquanto o consenso moral simplesmente mostra que seres humanos muitas vezes possuem os mesmos vieses. Claramente esse duplo padro conspira contra um conceito universal de moralidade.6

    A questo principal, entretanto, que, em princpio, verdade no tem nada a ver com consenso: uma pessoa pode estar certa e todas as outras, erradas. O consenso um guia para descobrir o que est acontecendo no mundo, mas no passa disso. Sua presena ou ausncia no limitam de forma alguma o que pode e o que no pode ser verdade.7 Certamente existem fatos fsicos, qumicos e biolgicos que ignoramos ou sobre os quais podemos estar errados. Ao falar de verdade moral, estou dizendo que existem fatos sobre o bemestar humano e animal que talvez tambm ignoremos, ou sobre os quais possamos estar errados. Em ambos os casos, a cincia e o pensamento racional em geral a ferramenta que podemos usar para descobrir esses fatos.

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  • 38

    E aqui que a controvrsia comea de verdade, porque muitas pessoas se

    opem fortemente minha afirmao de que a moral e os valores se reportam

    a fatos sobre o bemestar dos seres conscientes. Meus crticos parecem pensar

    que a conscincia no merece nenhum lugar de destaque no que diz respeito a

    valores, ou que qualquer estado de conscincia tem a mesma chance de ser

    valorizado do que qualquer outro. A objeo mais comum ao meu argumento

    mais ou menos a seguinte: Mas voc no disse por que o bemestar dos se

    res conscientes deveria nos importar. Se algum quiser torturar todos os seres

    conscientes at eles ficarem loucos, quem poder depois julgar que ele no

    to moral quanto voc?. No acho que ningum acredita sinceramente que

    esse tipo de ceticismo moral faa sentido, no faltam pessoas que tentaro im

    por esse argumento com uma ferocidade to grande a ponto de dar a impres

    so de que esto sendo sinceras.

    Vamos comear pelo fato da conscincia: acho que ns podemos saber,

    por mera lgica, que a conscincia o nico domnio de valores inteligvel.

    Qual a alternativa? Eu o convido a tentar imaginar uma fonte de valores que

    no tenha absolutamente nada a ver com a experincia (real ou potencial) dos

    seres conscientes. Pare por um momento e pense no que isso implicaria. Qual

    quer que seja a alternativa, ela no pode afetar a experincia de nenhuma

    criatura (nesta vida ou em qualquer outra). Ponha essa coisa numa caixa, e o

    que voc ter nessa caixa quase por definio a coisa menos interessan

    te do universo.

    Ento quanto tempo deveramos passar nos preocupando com tal fonte

    transcendental de valores? Eu acho que o tempo que levei para digitar esta

    frase j foi demais. Todas as outras noes de valores tero, necessariamente,

    alguma relao com a experincia real ou potencial dos seres conscientes. En

    to, minha afirmao de que a conscincia a base dos valores humanos e da

    moral no um ponto de partida arbitrrio.8

    Agora que j tratamos da conscincia, minha prxima afirmao que o

    conceito de bemestar abarca tudo o que podemos valorizar. E a moralida

    de como quer que as pessoas venham a entender esse termo realmente

    se reporta s intenes e aes que afetam o bemestar dos seres conscientes.

    Nesse aspecto, os conceitos religiosos de lei moral muitas vezes so colo

    cados como contraexemplos: afinal, quando questionadas sobre por que im

    portante seguir a lei de Deus, muitas pessoas candidamente diro porque ela

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    existe. claro que possvel dizer isso, mas no parece uma alegao honesta

    ou coerente. E se outro Deus, ainda mais poderoso, fosse nos punir pela eter

    nidade por seguirmos a lei de Jav? Faria sentido seguir a lei de Jav porque ela

    existe? O fato inescapvel que os religiosos buscam encontrar a felicidade e

    afastar a tristeza tanto quanto quaisquer outras pessoas; s que muitos deles

    calham de acreditar que as mudanas mais importantes na experincia cons

    ciente acontecem aps a morte (ou seja, no cu ou no inferno). E, embora o

    judasmo seja s vezes tomado como uma exceo porque tende a no focar

    na vida aps a morte , a Bblia hebraica deixa clarssimo que os judeus de

    vem seguir a lei de Jav por preocupao com as consequncias negativas de no

    segui-la. Quem no acredita em Deus ou numa vida aps a morte e ainda assim

    acha importante filiarse a uma tradio religiosa s faz isso por acreditar que

    viver dessa forma parece contribuir com seu bemestar e com o dos outros.9

    As noes religiosas de moralidade, portanto, no constituem excees

    nossa preocupao comum com o bemestar. E todos os demais esforos filo

    sficos para descrever a moralidade em termos de obrigao, justia ou outros

    princpios que no esto imediatamente amarrados ao bemestar dos seres

    conscientes derivam, no fim das contas, de algum conceito de bemestar.10

    As dvidas que irrompem de imediato sobre esse ponto invariavelmente se

    baseiam em noes bizarras e limitadas do significado do termo bemestar.11

    Acho que no resta dvida de que a maioria das coisas que importam ao ser

    humano mdio como justia, equidade, compaixo e uma conscincia geral

    da realidade terrena essencial criao de uma civilizao global prspera

    e, portanto, ao maior bemestar da humanidade.12 E, como eu disse, pode haver

    diversas maneiras diferentes de indivduos e comunidades prosperarem mui

    tos picos possveis na paisagem moral , ento, se existe uma diversidade real

    na forma como as pessoas podem se realizar na vida, tal diversidade pode ser

    considerada e honrada no contexto da cincia. O conceito de bemestar, assim

    como o de sade, verdadeiramente aberto reviso e a novas descobertas.

    Quo realizados ns podemos ser, pessoal e coletivamente? Quais so as condi

    es desde mudanas no genoma at mudanas nos sistemas econmicos

    que produziro tal felicidade? Simplesmente no sabemos.

    Mas e se algumas pessoas insistirem que seus valores ou sua moral no

    tm nada a ver com o bemestar? Ou, de forma mais realista, e se o conceito de

    bemestar dessas pessoas for idiossincrtico a ponto de ser hostil, em princpio,

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    ao bemestar dos outros? Por exemplo, e se um homem como Jeffrey Dahmer

    disser que para mim, os nicos picos na paisagem moral ocorrem quando eu

    mato rapazes e fao sexo com seus corpos? Essa possibilidade a perspectiva

    de que existam compromissos morais radicalmente diferentes est no cora

    o da dvida de muitas pessoas a respeito de uma verdade moral.

    De novo, devemos observar aqui os dois pesos e as duas medidas na defini

    o de consenso: aqueles que no compartilham nossos objetivos cientficos no

    tm influncia alguma no discurso cientfico; mas, por alguma razo, pessoas

    que no compartilham nossos objetivos morais nos tornam incapazes de sequer

    falar sobre uma verdade moral. Talvez seja vlido lembrar que h cientistas de

    formao que so criacionistas bblicos, e que seu pensamento cientfico

    se dedica a interpretar os dados da cincia para encaixlos no Livro do Gne

    sis. Essas pessoas alegam estar produzindo cincia, claro, mas cientistas de

    verdade tm toda a liberdade na verdade, a obrigao de dizer que elas

    esto fazendo um mau uso do termo. Da mesma forma, existem pessoas que

    dizem estar extremamente preocupadas com a moral e com os valores hu

    manos, mas, quando vemos que suas crenas causam uma infelicidade pro

    funda, no podemos sair dizendo que elas esto fazendo um mau uso do termo

    moral ou que seus valores so distorcidos. Como foi que nos convencemos

    de que, nas questes mais importantes da vida, todas as vises devem ter o

    mesmo peso?

    Considere a Igreja Catlica: uma organizao que se anuncia como a

    maior fora do bem e o nico baluarte verdadeiro contra o mal no universo.

    Mesmo entre no catlicos, suas doutrinas so amplamente associadas aos

    termos moral e valores humanos. No entanto, o Vaticano uma organiza

    o que excomunga mulheres que tentam se tornar sacerdotisas,13 mas no

    excomunga sacerdotes que estupram crianas.14 Essa organizao excomunga

    inclusive mdicos que fazem abortos para salvar a vida de uma me mesmo

    quando a me uma menina de nove anos de idade que foi estuprada pelo pa-

    drasto e est grvida de gmeos15 , mas nunca excomungou um membro

    sequer do Terceiro Reich por cometer genocdio. Ser que somos mesmo

    obrigados a considerar uma inverso de prioridades diablica como essa evi

    dncia de um esquema moral alternativo? No. Parece evidente que a Igreja

    Catlica est to errada ao falar dos perigos morais da contracepo quanto

    ao falar da fsica da transubstanciao. Em ambos os domnios, certo afir

    a_paisagem_moralmiolo.indd 40 8/26/13 1:21 PM

  • 41

    mar que a Igreja faz uma confuso atroz sobre o que realmente deveria im

    portar neste mundo.

    Porm, muita gente continuar a insistir que no podemos falar em ver

    dade moral, ou ancorar a moralidade em alguma preocupao mais profunda

    com o bemestar, porque conceitos como moral e bemestar precisam ser

    definidos em referncia a objetivos e critrios especficos e nada impede as

    pessoas de discordar dessas definies. Eu poderia alegar que a moral realmen

    te a maximizao do bemestar, e que o bemestar implica uma srie de virtudes

    psicolgicas e prazeres, mas algum poderia replicar que a moral depen de de

    adorar o deus dos astecas e que o bemestar, se que isso tem alguma impor

    tncia, implica ter sempre uma pessoa aterrorizada trancafiada num poro e

    esperando ser sacrificada.

    claro, objetivos e definies conceituais importam. Mas isso vale para

    todos os fenmenos e para todos os mtodos que possamos usar para estud

    los. Meu pai, por exemplo, est morto h 25 anos. O que quero dizer com

    morto? Que ele est morto com relao a objetivos especficos? Bem, se

    voc insiste, sim objetivos como respirao, metabolismo de energia, res

    posta a estmulos etc. A definio de vida permanece difcil de cercar at

    hoje. Ser que isso quer dizer que no podemos estudar cientificamente a vida?

    No. A cincia da biologia prossegue apesar dessas ambiguidades. De novo, o

    conceito de sade ainda mais frouxo: ela tambm precisa ser definida em

    relao a objetivos especficos no sofrer dor crnica, no vomitar o tempo

    todo etc. , e esses objetivos mudam o tempo todo. Nossa noo de sade

    pode um dia ser definida por objetivos que nem sempre podemos alcanar

    (como o de regenerar espontaneamente um membro perdido). Isso quer dizer

    que no podemos estudar a sade cientificamente?

    Eu me pergunto se existe algum na Terra tentado a atacar os fundamen

    tos da medicina com perguntas do tipo: Mas e as pessoas que no comparti

    lham o seu objetivo de evitar doenas e morte prematura? Quem pode dizer

    que viver uma vida longa e sem dor nem doenas debilitantes saudvel?

    O que o faz pensar que poderia convencer um sujeito que sofre de gangrena

    terminal de que ele no to saudvel quanto voc?. So esses os tipos de obje

    o que enfrento quando falo sobre a moral em termos de bemestar humano

    e animal. A linguagem humana permite expressar essas dvidas? Sim. Mas isso

    no significa que ns precisemos levlas a srio.

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  • 42

    Um dos meus crticos colocou as coisas da seguinte maneira: Cdigos morais so relativos poca e ao local em que aparecem. Se voc j no aceita o bemestar como um valor, parece no haver nenhum motivo pelo qual algum devesse promovlo. Como prova dessa afirmao, ele observou que eu seria incapaz de convencer o Talib de que eles valorizam as coisas erradas. Por esse critrio, porm, as verdades da cincia tambm so relativas poca e ao local em que elas aparecem, e no h maneira de convencer algum que no valoriza evidncias empricas de que ele ou ela deveria valorizlas.16 Ns ainda no conseguimos convencer a maioria dos americanos de que a evoluo um fato, apesar de estarmos trabalhando nisso h 150 anos. Ser que isso quer dizer que a biologia no uma cincia de verdade?

    Todo mundo tem uma fsica intuitiva, mas boa parte dela est errada

    (no que tange ao objetivo de descrever o comportamento da matria). Somen

    te os fsicos possuem um entendimento profundo das leis que governam o

    comportamento da matria no universo. Meu argumento o de que todo

    mundo tem tambm uma moral intuitiva, mas grande parte dela tambm

    est errada (no que tange ao objetivo de maximizar o bemestar pessoal e co

    letivo). E somente especialistas genunos em moralidade teriam uma compreen

    so profunda das causas e das condies do bemestar humano e animal.17

    Sim, precisamos de um parmetro que defina o que certo e errado ao fa

    larmos de fsica ou de moral, mas esse critrio vale para ambos os domnios. E,

    sim, eu acho que est bem claro que os membros do Talib esto buscando

    bemestar neste mundo (e no prximo). Mas suas crenas religiosas os leva

    ram a criar uma cultura quase perfeitamente hostil ao florescimento humano.

    O que quer que eles achem que querem da vida como manter todas as mu

    lheres e meninas subjugadas e analfabetas , eles simplesmente no entendem

    quo melhor seria sua vida se tivessem prioridades diferentes.

    A cincia no capaz de nos dizer por que, cientificamente, deveramos valorizar a sade. Mas, uma vez que admitimos que a sade uma preocupao legtima da medicina, podemos estudla e promovla por meio da cincia. A medicina pode resolver questes especficas sobre a sade humana mesmo quando a prpria definio de sade est em constante mudana. De fato, a cincia da medicina pode fazer progressos incrveis mesmo sem saber o quanto tal progresso alterar nosso conceito de sade no futuro.

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  • 43

    Acho que nossa preocupao com o bemestar precisa menos ainda de

    justificativas do que nossa preocupao com a sade j que esta apenas

    uma faceta daquele. E, uma vez que comecemos a pensar seriamente no bem

    estar humano, descobriremos que a cincia pode resolver questes especficas

    sobre moral e valores humanos, mesmo que nosso conceito de bemestar

    continue evoluindo.

    essencial notar que a demanda por justificativas radicais dos cticos

    morais no pode ser atendida por nenhum ramo da cincia. A cincia defini

    da com referncia ao objetivo de entender os processos que acontecem no uni

    verso. D para justificar esse objetivo cientificamente? claro que no. Isso

    torna a cincia no cientfica? Se fosse assim, estaramos dando um tiro no p.

    Seria impossvel provar que nossa definio de cincia est correta, porque

    nossos padres de prova estariam obrigatoriamente embutidos em qualquer

    prova que pudssemos oferecer. Quais evidncias poderiam comprovar que

    preciso valorizar as evidncias? Qual lgica poderia demonstrar a importncia

    da lgica?18 Poderamos observar que a cinciapadro melhor em prever o

    comportamento da matria do que a cincia criacionista. Mas o que dizer a

    um cientista cujo nico objetivo autenticar a palavra de Deus? Aqui, parece

    mos atingir um impasse. E, no entanto, ningum acha que o fracasso da cin

    ciapadro em silenciar todo o dissenso possvel tem qualquer significado; por

    que deveramos exigir mais de uma cincia da moralidade?19

    Muitos cticos morais citam a distino de Hume entre o que e o que

    deveria ser como se fosse a ltima palavra sobre o tema da moral at o fim dos

    tempos.20 Eles insistem em que noes daquilo que ns deveramos fazer (va

    lores) somente podem ser justificadas em termos de outras coisas que devera

    mos fazer, nunca em termos de fatos sobre como o mundo na realidade . Afinal,

    em um mundo de fsica e de qumica, como poderiam existir coisas como

    obrigaes morais ou valores? Como poderia ser objetivamente verdade, por

    exemplo, que deveramos ser gentis com as crianas?

    Mas tal noo de deveria uma maneira artificial e desnecessariamente

    confusa de pensar as escolhas morais. Ela mais parece um produto sombrio

    das religies abramicas que, estranhamente, agora limita at mesmo o

    pensamento de ateus. Se essa noo de deveria engloba qualquer coisa que

    possa ter alguma importncia para ns, ento ela deve se traduzir em uma

    preocupao com uma experincia real ou potencial de criaturas conscientes

    a_paisagem_moralmiolo.indd 43 8/26/13 1:21 PM

  • 44

    (nesta vida ou em alguma outra). Por exemplo, dizer que ns deveramos tratar

    as crianas com gentileza parece a mesma coisa que dizer que todos estaro

    melhores se fizermos isso. A pessoa que alega que no quer estar melhor ou

    est errada sobre o que de fato quer (ou seja, no sabe o que est perdendo),

    ou est mentindo, ou no est dizendo coisa com coisa. A pessoa que afirma

    estar comprometida a tratar bem as crianas por razes que no tm nada a ver

    com o bemestar das pessoas tambm no est dizendo coisa com coisa. O

    Deus de Abrao nunca nos disse para tratar as crianas com gentileza, mas nos

    disse para matar crianas insolentes (xodo 21,15; Levtico 20,9; Deuteron

    mio 21,1821; Marcos 7,913; e Mateus 15,47). Mesmo assim, todo mundo

    acha esse imperativo moral uma sandice, o que significa que ningum

    nem mesmo cristos fundamentalistas e judeus ortodoxos pode estar to

    amarrado lei de Deus a ponto de ignorar to completamente o elo entre

    moralidade e bemestar humano.21

    a pior infelicidade possvel para todos

    J argumentei que fatos e valores s existem em relao a mudanas reais

    e potenciais no bemestar de criaturas conscientes. Porm, como eu disse, mui

    tas pessoas parecem ter um entendimento estranho do conceito de bemestar

    imaginando que ele deve estar em conflito com princpios como justia,

    autonomia, curiosidade cientfica etc., quando simplesmente no est. Elas

    tambm se preocupam com o fato de o conceito de bemestar ter uma defini

    o precria. De novo, j mostrei por que no acho que isso seja um problema

    (como no problema no caso de conceitos igualmente precrios como vida

    e sade). No entanto, tambm vale notar que uma moral universal pode ser

    definida com referncia extremidade negativa do espectro da experincia

    consciente: chamo esse extremo de a pior infelicidade possvel para todos.

    Mesmo que cada criatura consciente tenha um nadir prprio na paisagem

    moral, ainda podemos conceber um estado do universo no qual todas as pessoas

    sofram tanto quanto podem sofrer. Se voc acha que no podemos dizer que

    isso seria ruim, ento no sei o que a palavra ruim significa para voc (e acho

    que voc tambm no sabe). Depois de concebermos a pior infelicidade poss

    vel para todos, poderemos falar sobre como caminhar na direo desse abismo:

    a_paisagem_moralmiolo.indd 44 8/26/13 1:21 PM

  • 45

    o que poderia significar a vida na Terra ficar pior para todos os seres humanos ao

    mesmo tempo? Perceba que isso no precisa ter nada a ver com as pessoas refor

    arem seus preceitos morais culturalmente condicionados. Talvez uma poei ra

    neurotxica do espao pudesse cair na Terra e deixar todo mundo extrema

    mente desconfortvel. Tudo o que precisamos imaginar um cenrio no qual

    todas as pessoas perdem um pouco, ou muito, sem nenhum ganho compensat

    rio (ningum aprende lies importantes, ningum se beneficia das perdas do

    outro etc.). No me parece polmico dizer que uma mudana que deixa to

    do mundo numa situao pior pode ser chamada de ruim por qualquer par

    metro razovel, se quisermos que essa palavra tenha algum sentido.

    Simplesmente precisamos tomar uma posio. Estou argumentando que,

    na esfera moral, seguro comear com a premissa de que bom evitar com

    portarse de maneira que produza a pior infelicidade possvel para todos. No

    estou alegando que a maioria de ns se importa pessoalmente com a experin

    cia de todas as criaturas conscientes; o que estou dizendo que um universo no

    qual todas as criaturas conscientes sofram a pior infelicidade possvel pior do

    que um universo no qual elas gozem de bemestar. Isso tudo de que precisa

    mos para falar de verdade moral no contexto da cincia. Uma vez que admi

    tamos que os extremos da infelicidade absoluta e da felicidade absoluta o

    que quer que esses estados representem para cada pessoa no fim das contas

    so diferentes e dependentes de fatos relativos ao universo, teremos admiti

    do que existem respostas certas e erradas para questes de cunho moral.22

    claro, dificuldades ticas genunas surgem quando nos fazemos per

    guntas como: Quanto eu deveria me importar com os filhos dos outros?

    Quanto eu deveria estar disposto a sacrificar, ou exigir que meus filhos sacri

    fiquem, para ajudar outras pessoas necessitadas?. No somos imparciais por

    natureza e grande parte do nosso raciocnio moral deve ser aplicada a si

    tuaes nas quais existe uma tenso entre nossa preocupao conosco, ou

    com as pessoas prximas de ns, e nossa noo de que seria melhor que esti

    vssemos mais comprometidos a ajudar os outros. Ainda assim, melhor

    tem de se referir, neste contexto, a mudanas positivas na experincia de

    criaturas sencientes.

    Imagine que houvesse apenas duas pessoas no mundo: podemos cham

    las de Ado e Eva. Questionemos como essas duas pessoas podem maximizar

    seu bemestar. Existem respostas erradas para essa questo? Sim, claro. (Res

    a_paisagem_moralmiolo.indd 45 8/26/13 1:21 PM

  • 4

    posta errada nmero 1: esmagar a cabea um do outro com uma pedra.) E,

    embora os interesses pessoais dos dois possam conflitar de vrias formas, a

    maioria das solues para o problema de como duas pessoas podem prosperar

    neste mundo ser de soma no zero. Certamente as melhores solues no sero

    soma zero. Sim, essas duas pessoas podem ser cegas s possibilidades de cola

    borao mais profunda: cada uma delas pode tentar matar e comer a outra,

    por exemplo. Ser que elas estariam erradas se agissem assim? Sim, se por er

    rado quisermos dizer que estariam abrindo mo de fontes muito mais pro

    fundas e durveis de satisfao. Parece incontroverso dizer que um homem

    e uma mulher sozinhos no mundo estariam melhor se reconhecessem seus

    interesses comuns como obter comida, construir um abrigo e se defender

    de predadores. Se Ado e Eva fossem industriosos o bastante, poderiam perce

    ber os benefcios de explorar o mundo, produzir novas geraes de seres hu

    manos, criar tecnologia, arte e medicina. Existem caminhos bons e ruins a se

    guir nessa montanha de possibilidades? claro. De fato, existem, por definio,

    caminhos que conduzem maior infelicidade e caminhos que levam maior

    realizao possvel para essas duas pessoas dada a estrutura de seus respec

    tivos crebros, os recursos imediatos de seu ambiente e as leis da natureza. Os

    fatos subjacentes aqui so os da qumica, da fsica e da biologia, na medida em

    que eles influenciam a experincia das duas nicas pessoas do mundo. A me

    nos que a mente humana seja completamente separvel dos princpios da fsi

    ca, da qumica e da biologia, quaisquer fatos sobre a experincia subjetiva de

    Ado e Eva (sejam eles moralmente relevantes ou no) so fatos sobre uma

    parte do universo.23

    Ao falarmos sobre as causas da experincia em primeira pessoa de Ado e

    Eva, estamos tratando da interrelao extraordinria entre estados do crebro

    e estmulos ambientais. Por mais complexos que sejam esses processos, clara

    mente possvel entendlos em maior ou menor grau (ou seja, h respostas

    certas e erradas a questes sobre o bemestar de Ado e Eva). Mesmo que exis

    tam mil maneiras diferentes de essas duas pessoas prosperarem, haver vrias

    formas diferentes de no prosperarem e as diferenas entre gozar um pico

    de bemestar ou sofrer num vale de horror inenarrvel se traduziro em fatos

    que podem ser entendidos cientificamente. Por que a diferena entre respostas

    certas e erradas desapareceria sem mais nem menos depois de acrescentarmos

    mais 6,7 bilhes de pessoas a esse experimento?

    a_paisagem_moralmiolo.indd 46 8/26/13 1:21 PM

  • 47

    * * *

    Ancorar nossos valores em um contnuo de estados da conscincia

    contnuo este que tem a pior infelicidade possvel para todos em uma de suas

    extremidades e diferentes graus de bemestar em outras partes parece o

    nico contexto legtimo no qual se podem conceber valores e normas morais.

    claro, qualquer pessoa que tenha um conjunto alternativo de axiomas morais

    livre para apresentlo, bem como para definir cincia do jeito que quiser.

    Mas algumas definies sero inteis, ou piores e muitas definies atuais

    de moralidade so to ruins que podemos estar certos, mesmo antes de qual

    quer grande avano nas cincias da mente, de que elas no tm vez em nenhu

    ma conversa sria sobre como deveramos viver neste mundo. Os Cavaleiros da

    Ku Klux Klan no tm nada de til a dizer sobre fsica de partculas, fisiolo

    gia celular, epidemiologia, lingustica, poltica econmica etc. Como a igno

    rncia deles pode ser menos bvia no tema do bemestar humano?24

    A partir do momento em que admitimos que a conscincia o contexto

    que d sentido a qualquer discusso sobre valores, precisamos tambm admitir

    que h fatos a serem descobertos sobre como a experincia dos seres conscientes

    pode mudar. O bemestar humano e animal um fenmeno natural. Como

    tal, ele pode, em princpio, ser estudado por meio das ferramentas da cincia e

    discutido com maior ou menor preciso. Ser que os porcos sofrem mais do

    que as vacas quando mandados para o abatedouro? Ser que a humanidade

    sofreria menos ou mais, na mdia, se os Estados Unidos unilateralmente desis

    tissem de todas as suas armas atmicas? Perguntas como essas so muito dif

    ceis de responder. Mas isso no significa que no tenham resposta.

    O fato de que pode ser difcil ou impossvel saber exatamente como ma

    ximizar o bemestar humano no implica que no haja formas certas e erradas

    de fazlo nem que no podemos excluir de cara determinadas maneiras

    obviamente ruins. Por exemplo, existe sempre uma tenso entre a autonomia

    do indivduo e o bem comum, e muitos problemas morais giram justamente

    em torno de como priorizar esses valores concorrentes. Porm, a autonomia

    traz benefcios bvios s pessoas e, portanto, um componente importante do

    bem comum. O fato de que pode ser difcil decidir exatamente como equilibrar

    direitos indivi duais e interesses coletivos, ou de que deve haver mil formas dife

    rentes de fazer isso, no significa que no existam maneiras objetivamente pssi-

    a_paisagem_moralmiolo.indd 47 8/26/13 1:21 PM

  • 48

    mas de fazlo. A dificuldade de obter respostas precisas para certas questes de

    cunho moral no quer dizer que devamos hesitar ao condenar a moralidade

    do Talib no apenas pessoalmente, mas do ponto de vista da cincia. A par

    tir do momento em que admitimos saber cientificamente alguma coisa sobre

    o bemestar humano, devemos admitir que certos indivduos ou certas culturas

    podem estar absolutamente errados sobre ele.

    cegueira moral em nome da tolerncia

    H questes muito prticas que se impem diante da ideia apressada de

    que qualquer um livre para valorizar qualquer coisa. A primeira delas que

    precisamente essa ideia apressada permite que pessoas altamente instrudas,

    seculares e em geral bemintencionadas parem para pensar, muitas vezes por

    uma eternidade, antes de condenar prticas como o uso compulsrio do vu,

    a exciso genital, a queima de noivas, o casamento forado e outros alegres

    produtos de moralidades alternativas encontrados em diferentes partes do

    mundo. Os fs da distino de Hume entre o que e o que deveria ser parecem

    no se dar conta nunca do que est em jogo aqui, e tampouco enxergam como

    essa tolerncia intelectual das diferenas morais leva a uma abjeta falta de

    compaixo. Embora muito do debate sobre essas questes deva ser travado em

    termos acadmicos, no se trata aqui apenas de um debate acadmico. Neste

    exato momento h meninas tendo seus rostos queimados com cido por ousa

    rem aprender a ler, ou por se recusarem a se casar com um homem que elas

    nunca viram antes, ou at mesmo pelo crime de serem estupradas. impres

    sionante que alguns intelectuais do Ocidente no pensem duas vezes antes de

    defender essas prticas em termos filosficos.

    Uma vez dei uma palestra numa conferncia acadmica, abordando temas

    semelhantes a estes que estamos discutindo aqui. Perto do fim da conferncia,

    fiz o que parecia uma afirmao incontestvel: j temos razes para crer que

    certas culturas so menos aptas a maximizar o bemestar do que outras. Citei a

    misoginia cruel e o fanatismo religioso do Talib como um exemplo de viso

    de mundo que no parece perfeitamente condizente com a plenitude humana.

    Aparentemente, porm, denegrir o Talib num encontro cientfico fler

    tar com a controvrsia. Depois da minha palestra, ca num debate com outra

    a_paisagem_moralmiolo.indd 48 8/26/13 1:21 PM

  • 49

    palestrante, que primeira vista parecia apta a raciocinar bem sobre as impli

    caes da cincia para o entendimento da moralidade. Com efeito, um tempo

    depois ela seria indicada para a Comisso Presidencial para o Estudo de Ques

    tes Bioticas, e hoje uma das treze pessoas que aconselham o presidente

    Obama em questes que podem emergir dos avanos na biomedicina e em

    reas relacionadas da cincia e tecnologia, de forma a garantir que a pesquisa

    cientfica, a prestao de servios de sade e a inovao tecnolgica sejam con

    duzidas de modo eticamente responsvel.25 Aqui segue um trecho da nossa

    conversa, mais ou menos literalmente:

    ela: Por que voc acha que a cincia um dia poder dizer que errado forar

    mulheres a usar burcas?

    eu: Porque acho que certo e errado so uma questo de aumento ou diminuio

    no bemestar e bvio que forar metade da populao a viver dentro de

    sacos de pano e espanclas ou matlas se elas se recusarem no uma boa es

    tratgia para maximizar o bemestar humano.

    ela: Mas isso s o que voc acha.

    eu: o.k. Vamos simplificar as coisas. E se ns encontrssemos uma cultura que

    tivesse um ritual de cegar todos os terceiros filhos, arrancando seus olhos aps o

    nascimento? Voc concordaria que teramos encontrado uma cultura que dimi

    nui sem necessidade o bemestar humano?

    ela: Dependeria do motivo para eles fazerem isso.

    eu (lentamente abaixando as sobrancelhas): Digamos que fosse por causa de

    uma superstio religiosa. Na escritura deles, Deus diz: Todo terceiro deve an

    dar nas trevas.

    ela: Ento voc jamais poderia dizer que eles esto errados.

    Opinies como essa no so incomuns na torre de marfim. Eu estava falando

    com uma mulher ( difcil no achar que o gnero torna as opinies dela ain

    da mais desconcertantes) que havia acabado de fazer uma palestra inteira

    mente lcida sobre as implicaes morais da neurocincia para o direito. Es

    tava preocupada porque nossos servios de inteligncia poderiam um dia

    usar a tecnologia de imageamento cerebral para detectar mentiras, o que ela

    considerava uma provvel violao da liberdade cognitiva. Ela estava especial

    a_paisagem_moralmiolo.indd 49 8/26/13 1:21 PM

  • 50

    mente alarmada com rumores de que nosso governo poderia ter exposto ter

    roristas capturados a aerossis contendo o hormnio oxitocina, em um esfor

    o para fazlos cooperar.26 Embora ela no tenha dito isso explicitamente,

    suspeito que se oporia at mesmo a submeter esses prisioneiros ao cheiro de

    po fresco, algo que j se comprovou ter efeito semelhante.27 Ouvindoa falar,

    e ainda sem saber de suas opinies liberais sobre uso compulsrio do vu e

    mutilao ritual, acheia um pouco cautelosa demais, mas basicamente uma

    autoridade equilibrada e eloquente no uso prematuro da neurocincia nos tri

    bunais. Confesso que, depois que conversamos e que olhei de perto para o

    terrvel abismo que nos separava nessas questes, descobri que no conseguia

    dirigir mais nenhuma palavra a ela. Nossa conversa terminou com minha en

    cenao involuntria de dois clichs neurolgicos: meu queixo literalmente

    caiu e eu girei nos meus calcanhares antes de sair andando.

    Embora os seres humanos tenham cdigos morais distintos, cada uma

    dessas vises se pressupe universal. Isso parece ser o caso at mesmo do relati

    vismo moral. Apesar de poucos filsofos darem a si mesmos a pecha de relati

    vistas morais, muito comum encontrarmos erupes dessa viso sempre que

    cientistas e outros acadmicos topam com alguma diversidade moral. possvel

    argumentar que forar mulheres e meninas a usar burcas pode ser errado em

    Boston ou Palo Alto,* mas o mesmo no vale para muulmanas em Cabul. Exi

    gir que os orgulhosos cidados de uma cultura antiga se adaptem nossa viso

    de igualdade de gnero seria imperialismo cultural e ingenuidade filosfica. Es

    sa uma viso surpreendentemente comum, sobretudo entre antroplogos.28

    O relativismo moral, porm, tende a contradizer a si mesmo. Os relativis

    tas podem dizer que verdades morais existem apenas em relao a culturas

    especficas mas essa prpria afirmao sobre o status das verdades morais se

    pretende verdadeira para todas as culturas possveis. Na prtica, o relativismo

    quase sempre equivale alegao de que precisamos ser tolerantes em relao

    a diferenas morais, porque nenhuma verdade moral pode superar outra. S

    que esse prprio compromisso com a tolerncia no nunca colocado como

    apenas uma preferncia relativa entre vrias consideradas igualmente vlidas.

    * Cidades que abrigam a elite intelectual americana. (N. T.)

    a_paisagem_moralmiolo.indd 50 8/26/13 1:21 PM

  • 51

    A tolerncia considerada a nica posio possvel, porque est mais alinhada

    do que a intolerncia com a verdade (universal) em relao moral. A contra

    dio aqui no surpreende. Dada a maneira como somos profundamente dis

    postos a formular proposies morais universais, acho que possvel duvidar

    se j existiu no mundo um relativista moral consistente.

    O relativismo moral claramente uma tentativa de reparao intelectual

    pelos crimes do colonialismo europeu, do etnocentrismo e do racismo. Essa ,

    eu acho, a nica coisa caridosa que pode ser dita sobre ele. Espero estar claro

    que no meu objetivo aqui defender as idiossincrasias do Ocidente como

    sendo em princpio mais esclarecidas do que as de qualquer outra cultura. O

    que quero argumentar que os fatos mais bsicos sobre a felicidade humana,

    como quase qualquer fato, precisam transcender a cultura. E, se existem fatos

    que so realmente uma questo de construo cultural por exemplo, se

    aprender determinada lngua ou tatuar seu rosto puder alterar fundamental

    mente as possibilidades da experincia humana , bem, ento esses fatos tam

    bm surgem de processos (neurofisiolgicos) que transcendem a cultura.

    Em seu maravilhoso livro Tbula rasa, Steven Pinker cita uma comunica

    o pessoal do antroplogo Donald Symons que captura muito bem o proble

    ma do multiculturalismo:

    Se uma nica pessoa no mundo segurasse uma menina aterrorizada, espernean

    do e gritando, cortasselhe os genitais com uma lmina sptica e costurasse o

    corte deixando apenas um minsculo orifcio para a passagem de urina e fluxo

    menstrual, a nica questo seria com que severidade essa pessoa teria de ser

    punida e se a pena de morte seria uma sano suficientemente severa. Mas quan

    do milhes de pessoas fazem isso, em vez de a atrocidade ser ampliada milhes

    de vezes, ela subitamente se torna cultura, e assim, por mgica, tornase menos

    horrvel, ao invs de mais, e chega at mesmo a ser defendida por alguns pensa

    dores morais ocidentais, incluindo feministas.29

    So precisamente esses casos de equvoco adquirido (ou psicopatia adquiri

    da, somos tentados a dizer) que apoiam a alegao de que uma moralidade

    universal demanda o apoio de uma religio estabelecida. A distino categri

    ca entre fatos e valores abriu um poo sem fundo debaixo do liberalismo secu

    a_paisagem_moralmiolo.indd 51 8/26/13 1:21 PM

  • 52

    lar levando ao relativismo moral e s profundezas masoquistas do discurso

    politicamente correto. Pense nos paladinos da tolerncia que, ato reflexo,

    culparam Salman Rushdie por sua fatwa, ou Ayaan Hirsi Ali por seus proble

    mas de segurana, ou os chargistas dinamarqueses por sua controvrsia, e

    voc entender o que acontece quando liberais instrudos acham que no exis

    te um alicerce universal para os valores humanos. Entre os conservadores no

    Ocidente, o mesmo ceticismo sobre o poder da razo leva, no mais das vezes,

    diretamente aos ps de Jesus Cristo, o Salvador do Universo. O propsito deste

    livro ajudar a abrir uma terceira trilha nesse terreno selvagem.

    cincia moral

    Acusaes de cientificismo no tardaro. Sem dvida, algumas pessoas

    ainda rejeitaro qualquer descrio da natureza humana que no tenha sido

    feita antes em versos decasslabos. Muitos leitores podero ainda temer que

    meu argumento seja vago ou explicitamente utpico. No , como h de ficar

    claro mais adiante.

    Porm, outras dvidas a respeito da autoridade da cincia so ainda mais

    fundamentais. H acadmicos que construram carreiras inteiras com base na

    alegao de que os alicerces da cincia so podres cheios de vieses como

    machismo, imperialismo, etnocentrismo dos pases do Norte etc. Sandra Har

    ding, uma filsofa da cincia feminista, provavelmente a proponente mais

    famosa dessa viso. Segundo ela, esses preconceitos levaram a cincia a um

    beco epistemolgico sem sada chamado objetividade fraca. Para remediar

    essa dura situao, Harding recomenda que os cientistas imediatamente reco

    nheam as epistemologias feminista e multicultural.30

    Primeiro, tomemos cuidado para no confundir essa alegao maluca

    com sua prima s: no h dvida de que os cientistas ocasionalmente demons

    tram vieses machistas e racistas. A composio de alguns ramos da cincia

    desproporcionalmente branca e masculina (embora hoje alguns sejam des

    proporcionalmente femininos), e faz sentido nos perguntarmos se essa no

    a causa de tais vieses. H tambm questionamentos legtimos quanto ao dire

    cionamento e aplicao da cincia: na medicina, por exemplo, parece claro

    que assuntos de sade da mulher so negligenciados algumas vezes porque o

    a_paisagem_moralmiolo.indd 52 8/26/13 1:21 PM

  • 53

    homem considerado o ser humano prototpico. Tambm possvel argu

    mentar que as contribuies das mulheres e das minorias para a cincia foram

    algumas vezes ignoradas ou subestimadas: o caso de Rosalind Franklin som

    bra de Crick e Watson poderia ser um exemplo disso. Mas nenhum desses fa

    tos, isolados ou combinados, vem nem de longe sugerir que nossas noes de

    objetividade cientfica so viciadas pelo racismo ou pelo machismo.

    Mas ser que existe mesmo uma epistemologia feminista ou multicultu

    ral? Harding s faz derrubar o prprio argumento quando divulga, de forma

    desastrada, que no existe apenas uma epistemologia feminista, mas vrias.

    Seguindo essa lgica, por que a noo de fsica judaica de Hitler (ou a ideia

    de biologia capitalista de Stlin) no seria apenas um emocionante vislum

    bre da riqueza da epistemologia? Ser que agora deveramos considerar no

    apenas a possibilidade de uma fsica judaica, mas de uma fsica judaica femi-

    nina? Como tal balcanizao da cincia poderia ser um passo na direo de

    uma objetividade forte? E, se a incluso poltica nossa preocupao pri

    mordial, onde poderiam parar tais esforos para ampliar nossa concepo de

    verdade cientfica? Os fsicos tendem a ter um apetite fora do comum para ma

    temtica complexa, e nenhuma pessoa desprovida de tal apetite pode contri

    buir muito para esse campo. Por que no remediar tambm essa situao? Por

    que no criar uma epistemologia para os fsicos reprovados em clculo? Por que

    no somos ainda mais audaciosos e criamos um ramo da fsica para portado

    res de leso cerebral? Quem imaginar que tais esforos de incluso possam

    aumentar a nossa compreenso de fenmenos como a gravidade?31 Como Ste

    ven Weinberg declarou uma vez sobre tais ataques objetividade cientfica: Vo

    c tem de ser muito instrudo para estar to errado assim.32 Tem mesmo e

    muitas pessoas so.

    Mas no h como negar que o esforo para reduzir todos os valores hu

    manos biologia pode produzir gafes. Por exemplo, quando o entomlogo E.

    O. Wilson (em colaborao com o filsofo Michael Ruse) escreveu que a mo

    ralidade, ou mais estritamente nossa crena na moralidade, apenas uma

    adaptao no sentido de satisfazer nossos objetivos reprodutivos, o filsofo

    Daniel Dennett corretamente chamou tal afirmao de bobagem.33 O fato de

    que nossas intuies morais provavelmente conferiram alguma vantagem

    a_paisagem_moralmiolo.indd 53 8/26/13 1:21 PM

  • 54

    adaptativa aos nossos ancestrais no quer dizer que o propsito atual da mo

    ralidade seja o sucesso reprodutivo, nem que nossa crena na moralidade

    seja meramente uma iluso til. (Ou ser que o propsito da astronomia tam

    bm o sucesso reprodutivo? E a prtica da contracepo ser que ela tam

    bm visa reproduo?) Tampouco significa que nossa noo de moralidade

    no possa ficar mais profunda e refinada na medida em que aumente nosso

    conhecimento sobre ns mesmos.

    Muitas caractersticas universais da vida humana no precisam ter sido

    selecionadas; elas podem simplesmente ser, como diz Dennett, bons truques

    transmitidos por meio da cultura ou movimentos forados que emergem

    naturalmente das regularidades do mundo. Como Dennett afirma, duvidoso

    que haja um gene para saber que voc deve jogar sua lana com a parte pon

    tuda para a frente. E, da mesma forma, duvidoso que nossos ancestrais te

    nham precisado gastar muito tempo transmitindo esse conhecimento a cada

    nova gerao.34

    Temos boas razes para acreditar que muitas das coisas que fazemos em

    nome da moralidade condenar a infidelidade sexual, punir trapaceiros,

    valorizar a cooperao etc. resultam de processos inconscientes que foram

    moldados pela seleo natural.35 Mas isso no significa que a evoluo tenha

    nos projetado para levar vidas plenas. De novo, ao falar de uma cincia da

    moralidade, no me refiro a um relato evolutivo de todos os processos cogni

    tivos e emocionais que governam as pessoas quando elas dizem que esto

    sendomorais; falo da totalidade dos fatos que governam nossa gama de so

    frimento e felicidade possveis. Dizer que h verdades absolutas sobre a mora

    lidade e os valores humanos simplesmente dizer que h fatos sobre o bem

    estar humano que ainda no descobrimos independente da nossa histria

    evolutiva. Embora tais fatos estejam necessariamente relacionados com a ex

    perincia de seres conscientes, eles no podem ser mera inveno de alguma

    pessoa ou cultura.

    A mim parece, portanto, que h pelo menos trs projetos que no pode

    mos confundir:

    1. podemos explicar por que as pessoas tendem a seguir determinados

    padres de pensamento e comportamento (muitos deles comprovada

    mente tolos e nocivos) em nome da moralidade;

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  • 55

    2. podemos pensar mais claramente sobre a natureza da verdade moral e

    determinar quais padres de pensamento e comportamento devera-

    mos seguir em nome da moralidade;

    3. podemos convencer as pessoas que esto comprometidas com padres

    tolos e nocivos de pensamento e comportamento em nome da mora

    lidade a romper com esse compromisso e viver uma vida melhor.

    Estes so esforos distintos e independentes, todos eles vlidos. A maioria dos

    cientistas que estuda a moralidade em termos evolutivos, fisiolgicos ou neu

    robiolgicos se dedica com exclusividade ao primeiro projeto: seu objetivo

    descrever e entender como as pessoas pensam e agem luz de emoes moral

    mente relevantes, como raiva, repulsa, empatia, amor, culpa, humilhao etc.

    Esse campo de pesquisas fascinante, claro, mas no o meu foco. E, embora

    nossa origem evolutiva comum e nossa consequente semelhana fisiolgica

    sugiram que o bemestar humano admite princpios gerais que podem ser

    compreendidos de modo cientfico, considero o primeiro projeto irrelevante

    para o segundo e o terceiro. No passado, entrei em conflito com alguns dos lde

    res nessa rea porque muitos deles, como o psiclogo Jonathan Haidt, acredi

    tam que o primeiro projeto representa o nico ponto de contato legtimo entre

    a cincia e a moralidade.

    Creio que o terceiro projeto mudar os compromissos ticos das pes

    soas a tarefa mais importante da humanidade no sculo xxi. Quase todos

    os objetivos importantes desde lutar contra a mudana climtica at com

    bater o terrorismo, curar o cncer e salvar as baleias entram no escopo

    desse projeto. evidente que a persuaso moral um negcio difcil, mas ela

    se torna especialmente difcil se no tivermos definido em que sentido as ver

    dades morais existem. Portanto, meu foco principal o projeto nmero 2.

    Para ver a diferena entre os trs projetos, o melhor considerar casos

    especficos: por exemplo, podemos explicar evolutivamente de uma forma

    plausvel por que as sociedades humanas tendem a tratar as mulheres como

    propriedades dos homens (1); porm, uma coisa bem diferente fazer um re

    lato cientfico que explique por que razo e em que grau as sociedades huma

    nas mudam para melhor quando superam essa tendncia (2); e outra coisa,

    ainda, decidir a melhor maneira de mudar as atitudes das pessoas neste mo

    mento da histria e dar poder s mulheres em escala global (3).

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    fcil ver por que o estudo das origens evolutivas da moralidade pode

    levar concluso de que a moralidade no tem nada a ver com a Verdade. Se a

    moralidade simplesmente um meio adaptativo de organizar o comportamen

    to social humano e mitigar conflitos, no haveria razo alguma para pensar que

    nossa noo atual de certo e errado refletiria qualquer entendimento mais pro

    fundo da natureza da realidade. Portanto, um foco estreito na explicao de por

    que as pessoas pensam e agem de certa maneira pode levar uma pessoa a achar

    a ideia de verdade moral literalmente ininteligvel.

    Mas perceba que os dois primeiros projetos contam histrias diferentes

    sobre como a moralidade se encaixa no mundo natural. No projeto 1, a mo

    ralidade um conjunto de impulsos e comportamentos (juntamente com

    suas expresses culturais e bases neurobiolgicas) que foram colados em ns

    pela evoluo. No projeto 2, a moralidade se refere aos impulsos que pode

    mos seguir e aos comportamentos que podemos adotar de forma a maximizar

    nosso bemestar futuro.

    Para dar um exemplo concreto: imagine que um estranho charmoso ten

    te seduzir a mulher de outro homem na academia de ginstica. Quando a mu

    lher informa educadamente a seu admirador que ela casada, o garanho per

    siste, como se um casamento feliz no pudesse ser empecilho aos seus encantos.

    A mulher corta a conversa logo depois, mas de forma muito menos abrupta do

    que permitiriam as leis da fsica.

    Escrevo agora luz de uma experincia recente. Posso dizer que, quando

    minha mulher me relatou esses eventos ontem, de imediato eles me pareceram

    moralmente relevantes. Com efeito, nem bem ela completou a terceira frase,

    os lquidos venenosos da indignao moral cimes, vergonha, raiva etc.

    j corriam em meu crebro. Primeiro, estava irritado com o comportamento

    desse homem e, se tivesse estado l para testemunhlo, suspeito que minha

    irritao teria sido muito maior. Se esse domjuan fosse to confiante na mi

    nha presena quanto foi na minha ausncia, eu poderia imaginar que tal en

    contro terminaria em violncia fsica.

    Nenhum psiclogo evolutivo acharia difcil explicar a minha resposta a

    essa situao e quase todos os cientistas que estudam a moralidade limi

    tariam sua ateno a este conjunto de fatos: meu chimpanz interior havia

    emergido, e quaisquer pensamentos que eu pudesse alimentar sobre verdades

    morais no passariam de chicana retrica mascarando preocupaes muito

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    mais zoolgicas. Sou o produto de uma histria evolutiva na qual todo macho

    da espcie precisa evitar gastar os prprios recursos com a prole de outro ho

    mem. Se tivssemos escaneado meu crebro e correlacionado meus sentimen

    tos subjetivos com mudanas em minha neurofisiologia, a descrio desses

    eventos seria quase completa. O projeto 1 acaba aqui.

    Mas h diversas maneiras de um macaco responder ao fato de que outro

    macaco acha a mulher dele desejvel. Se isso ocorresse em uma cultura tradi

    cional de honra, o marido ciumento poderia espancar sua esposa, arrastla

    para a academia e forla a identificar seu perseguidor, para que ele pudesse

    meterlhe uma bala na cabea. De fato, em sociedades de honra, os funcion

    rios da academia poderiam simpatizar com essa ideia e ajudar a organizar um

    duelo. Ou talvez o marido se contentasse em agir de forma mais oblqua, ma

    tando um dos parentes de seu rival e iniciando uma clssica guerra entre fam

    lias. Em qualquer dos casos, assumindo que ele prprio no fosse morto no

    processo, ele poderia matar sua mulher s para dar o exemplo, deixando seus

    filhos sem me. H na Terra muitas comunidades nas quais os homens se com

    portam assim, alm de centenas de milhes de meninos comeando a rodar

    esse software arcaico em seus crebros neste momento.

    Porm, minha prpria mente demonstra alguns traos precrios de civi

    lizao: um deles que encaro a emoo do cime com suspeita. Mais ainda,

    amo minha mulher e realmente quero que ela seja feliz, e isso implica com

    preender o ponto de vista dela. Parando para pensar, posso ficar feliz pela

    injeo de autoestima que ela recebeu com a ateno desse homem; tambm

    posso ter compaixo pelo fato de que, aps ter recentemente dado luz nos

    so primeiro beb, talvez ela precisasse mesmo de alguma injeo de autoesti

    ma. Tambm sei que ela no iria querer ser grossa, e isso provavelmente a fez

    demorar demais para cortar uma conversa que havia tomado o rumo errado.

    E no tenho nenhuma iluso de ser o nico homem do mundo que ela acha

    atraente, nem imagino que a devoo dela a mim devesse consistir nesse es

    treitamento impossvel de foco. E o que eu sinto por esse homem? Bem, ainda

    acho o comportamento dele condenvel porque simplesmente no posso

    simpatizar com seu esforo para romper um casamento e sei que no faria o

    que ele fez , mas me solidarizo com tudo o que ele deve ter sentido, porque

    tambm acho minha mulher linda e sei como duro ser um macaco solitrio

    na selva.

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    Mais do que tudo, porm, dou valor ao meu prprio bemestar, bem co

    mo ao da minha mulher e da minha filha, e quero viver numa sociedade que

    maximize a possibilidade do bemestar humano em geral. Aqui comea o pro

    jeto 2: ser que existem respostas certas e erradas questo de como maximizar

    o bemestar? De que maneira minha vida seria afetada se eu tivesse matado

    minha mulher em reao a esse episdio? No preciso ter uma neurocincia

    completa para saber que minha felicidade, bem como a de vrias outras pessoas,

    teria diminudo profundamente se isso tivesse ocorrido. E quanto ao bemes

    tar coletivo de pessoas que vivem em sociedades de honra e que poderiam

    apoiar tal comportamento? Pareceme que os membros dessas sociedades es

    to obviamente pior na vida. Se eu estiver errado, porm, e houver formas de

    organizar uma cultura de honra que permitam o mesmo nvel de florescimen

    to humano de outras sociedades, que assim seja. Isso representaria outro pico

    na paisagem moral. Mais uma vez, a existncia de mltiplos picos no torna as

    verdades morais meramente subjetivas.

    O esquema da paisagem moral implica que muitas pessoas tero ideias

    errneas sobre a moralidade, assim como muitas tm ideias errneas sobre f

    sica. Algumas acham que o termo fsica inclui (ou valida) prticas como a

    astrologia, o vodu e a homeopatia. Essas pessoas, ao que tudo indica, esto

    simplesmente erradas. Nos Estados Unidos, a maior parte da populao (57%)

    acredita que impedir homossexuais de se casarem um imperativo moral.36

    Porm, se tal crena repousa sobre uma noo errnea de como podemos ma

    ximizar nosso bemestar, esses indivduos podem simplesmente estar errados

    sobre a moral. E o fato de milhes de pessoas usarem o termo moral para

    designar dogmatismo religioso, racismo, machismo ou outras deficincias de

    intelecto ou compaixo no deve nos obrigar a apenas aceitar tal terminologia

    at o fim dos tempos.

    O que significa para ns a aquisio de um entendimento profundo,

    consistente e totalmente cientfico da mente humana? Embora vrios deta

    lhes permaneam obscuros, o desafio comearmos a falar de certo e errado

    e de bem e mal de maneira razovel, dado tudo o que j sabemos sobre nosso

    mundo. Tal conversa parece prestes a moldar nossa moral e nossas polticas

    pblicas no futuro.37

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