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    Elmano dArgus

    Palimpsesto

    Lisboa, 2001

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    A nossos filhos, Maria, tomando voz de nossos pais.

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    To elementar , afinal,pai, o teu desgnio.

    S tens que ser tal,qual te impe o meu destino.

    Quando te perguntarem quem foi o teu pai, podes, com o sentido

    que lhe queiras atribuir, responder:

    Eu sou a filha do enforcado.

    E posso-te garantir que essa resposta qualquer a pode dar. Nemsempre, nem todos com o mesmo sentido.

    Maria Leonor.

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    Itinerrio

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    Pouco antes de me despedir da sua companhia, quefrequentei durante um ror de anos, o cego Damio, prevendoporventura o eplogo da sua incansvel e atribulada viagem terrena,

    ansiando usufruir em intimidade os derradeiros dias, distribuu osseus haveres. Parcos haveres, diro alguns. Algumas dzias defardos de papelada atados com cordis, que ningum saberia o quecontinham, mas que tenho vindo a trazer fama.

    Talvez por vaidade, convenci-me de que me contemplaracom o quinho mais substancial do esplio, mais ainda do que aottere Perdigo, o mais dilecto e contguo dos seus discpulos. Masum dia encontrei por acaso o Perdigo, j muito doente e devastadopela saudade, perdido e solitrio em demanda de velhos caminhos,

    cujo rasto se perdera numa paisagem subvertida de que a memriase apagara. Ainda teve alento para se sair com umas dcimas, jsem a cadncia viva e sarcstica de outrora, mas sbias nodesnimo, conquanto recalcitrantes em iluses fugazes.

    Foi ento que tirou da sacola surrada um canhenhomanuscrito, com uma dezena de cadernos, muito esvaecido, e medisse:

    - Guarda-o. A mim no me serve j para nada. Era do

    Damio. Nem tu sabias que ele escrevia romances. Deve ter sidoescrito durante muito tempo, durante toda a sua vida, porventura, ajulgar pelas alteraes da caligrafia. H uns anos que, sem saberque destino hei de tomar no resto da minha caminhada, tentodesfazer o caminho do Damio, procura do lugar onde seiniciaram os nossos destinos. Mas o Damio calcorreou muitomundo, mais ainda com a mente alucinada e frentica de cego doque com as botas buliosas. E os caminhos apagaram-se na paisagem, submersos pelos detritos que se acumularam pelo

    mundo. J no vejo destino para a minha jornada, nem enxergo aprovenincia daquela em que me perdi j nem sei quando.Durante os ltimos anos, tenho tentado guiar-me por este

    livro, como se ele fosse um mapa para voltar para trs e

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    reencontrar o local e o momento de onde o Damio partiu. Algures,numa estncia qualquer da jornada do Damio, partimos ns, tu eeu, sucessivamente. Eu, por mim, perdi-me. Tenta agora tu.

    Tomei o livro e folheei-o. Resisti todavia a aceit-lo. A bemdizer, senti mesmo um pouco de despeito.

    - Ora... se a histria da vida do Damio, sabes que euprprio a recolhi e escrevi, guiado pelos seus relatos, h algunsanos. bem possvel que a histria da vida do Damio tivesse sidodiferente de cada vez que a relatou, conforme as circunstncias e oscircunstantes, e que este livro me proporcione uma verso

    surpreendente se a conotar com a que me transmitiu. Mas, pormim, fiquei muito satisfeito com a que eu prprio pude recolher desua viva voz e no me serve para desmanchar nem o caminho doDamio nem o meu, nem para procurar novos para as minhas prprias jornadas. Quero dizer que, depois de acompanhar oDamio atravs dos seus sinuosos caminhos, desejo cada vez maisencontrar os meus prprios, sem sobrepor s suas as minhaspegadas, no mesmo ou em inverso sentido.

    - No, ests enganado. Essa no a histria da vida doDamio. a histria da vida de algum, que serviu de esquema oude esboo sobre o qual o Damio quis que compusessem a suaprpria. Foi o que me pareceu. Ele mesmo, em notas, refere onderecolheu essa histria. Bem, se no te servir para nada, oferece-a aoutro qualquer. A mim, serviu-me apenas para me sentir maislonge de mim prprio.

    E l fiquei eu com a encomenda. Ainda hoje me sinto

    trado, quando penso que foi atravs do ttere que este livro meveio parar s mos. Esperaria que o Damio, ao confiar-me o relatoda histria da sua vida, me tivesse confiado este manuscrito.Desagravo-o, concluindo que o no fez por distraco.

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    Se fizer f numa nota que acompanha um prefcio sumrio,a histria foi recolhida pelo Damio de um velho alfarrbioimpresso em vora nos anos derradeiros do Sculo XVII, que jazia

    esquecido e cado nos entreforros de uma estante da biblioteca doseu tio Atansio. Todos os esforos que fiz para encontrar uma breve referncia raridade bibliogrfica foram baldados. Seexistiu, no deixou rasto. Mas o Damio era profcuo nestasmirambolncias.

    O manuscrito era o resultado de anos de trabalho literriodo Damio, reenfabulando porventura uma histria incua, alheiaao sentido que ele prprio resolvera atribuir-lhe. Estava em esboo,com alguns captulos na sua forma definitiva, outros apenas com

    breves referncias esquemticas, ou alternativas dedesenvolvimento, por vezes contraditrias. Era fcil deduzir que apea original se confinasse a um s prego, ou dois.

    Foi-me muito difcil edificar uma apresentao definitiva, apartir do esboo do Damio. Para mais, devo confessar que o liquatro vezes, transferindo para um caderno com a minha caligrafiaanotaes e tentativas de reconstituio, decifrando um originalcaligraficamente descuidado e j muito apagado e rasurado.Quando um dia quis retomar a tarefa, o original j no me servia

    para nada, rodo pela humidade e pelos ratos no soto de um amigoonde fora obrigado a deposit-lo, numa fase mais precria dasminhas breves estncias sedentrias.

    Mais uma vez o Damio, atravs de uma artimanhainsinuante, que, para mais, me fez sentir trado, deixou-me oencargo de transmitir, j no a histria da sua vida, mas o esbooda matriz atravs do qual quis que a decifrassem. Como se fora euo autor do sentido que ele prprio lhe quisera atribuir.

    E no deixo de me sentir tentado a imaginar como haveria o

    ttere Perdigo de se haver com a matria, no seu estilotragicmico, se no me tivesse encontrado, mesmo a talhe de foice,naquele derradeiro dia. Tenho a certeza de que comporia umaodisseia. O ttere Perdigo em peregrinao circum-cntrica, em

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    demanda dos trilhos que o conduzissem ao bero da gnesehumana, onde reencontraria o Damio para o guiar no regresso.

    Uma conjura

    Um episdio hilariante, pensava Cosme. O velho lenteespartilhado e empertigado nas suas negras vestimentas, debruadas

    a escarlate, a cabea lanada para trs, o monumental cartapciosob o brao esquerdo bem firmado junto ao peito, os botins aemergirem luzidios, alternadamente, por debaixo da sotaina a cadapasso rpido e conciso, a imagem viva da perfeio do universo na

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    compostura humana. O negro chapu de copa alta e troncocnica,insgnia do ambguo compromisso entre a razo e a magia, asobriedade e simetria apenas laivada de breves apontamentos de

    soberba. A dignidade, em p e ambulante, da prpria cincia e dassuas instituies. O velho lente tossica, para desagravar a voz daslongas incurses pelo latim dos tratados. No v ningum, todos seafastam inclinando discretamente a cabea.

    De sbito, parou, rgido como uma vara de salgueiro. Umbaque surdo e o estilhaar dos cacos no lajedo do corredor. Um aratnito, mais de surpresa e indignao, do que de dor ou de pnico.E despenha-se como se toda a massa slida do esqueleto se tivesseesvado de dentro das roupagens, agora esvaziadas do ar que as

    insuflara. O lente j no existia, pelo cho espalhara-se enroladoem pregas o seu negro invlucro, o chapu para um lado, os botinspara o outro, o livro aberto com as folhas em bulio sopradas pelaaragem. Gritos, correrias. Algum abriu uma porta, uma lufadaredemoinhou, a sotaina esvoaou descobrindo as ceroulas do lenteat s partes pudengas e assim ficou porque ningum teve o arrojode se aproximar para o compor. S ento se deramirreversivelmente conta de que, por debaixo de um tufo de saias bem vincadas, jazia Dom Francisco Canete, lente de prima de

    anatomia da venervel Universidade de Coimbra.Todos olhavam agora para cima, para as altitudes de uminterminvel varandim, em cuja balaustrada os elegantes vasos demajlica polcroma, transbordantes de verduras, se perfilavamimpvidos. Um pombo perdido esvoaava, assustado. L vem maisum... Outro... Todos protegem as cabeas com as mos e adebandada. L fica o lente.

    Quando de novo se aproxima, por entre os demais, aateno de Cosme atrada pela gravura ostentada na pgina do

    batente esquerdo do canhenho. Um elegante esfolado, em apolneacompostura, com o cotovelo apoiado num pilar e a cabearecostada na mo direita, descarnado em vrios estratos, msculose tendes pendurados e alguns ossos expostos. Cosme transfere-se

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    para a dimenso da alucinao e j s consegue imaginar umafloreira em majlica a despenhar-se das alturas sobre a cabea do petulante, que fica estirado por terra envolto em peles, carnes,

    msculos e humores.Um episdio hilariante, pensou Cosme. Dom FranciscoCanete rura com a elegncia e sobriedade de um esfolado deVeslio. Se no fora o vento que lhe levantou as saias.

    Contrariamente todavia ao esfolado, annimo porque lheiludiram a identidade da expresso do rosto no pristino esboo dafbrica osteogrfica, Dom Francisco Canete, cujo capital apndicetambm ficou omisso por debaixo do amontoado das roupas emdesalinho, era bem reconhecvel pelas insgnias dos adreos,

    sobretudo pelas pginas do Veslio folheadas pelos dedos sedososda aragem. Ele era o antdoto contra Veslio.Um breve fio de sangue despontou da negritude da massa

    informe dos escombros do lente, espraiando-se numa tnuemancha. O contedo de toda a sua vida esvaa-se naquela cenatragicmica.

    Dom Francisco Canete no editara uma linha durante osseus cinquenta e oito anos de vida. Tudo o que proclamara, publicara-o pela sua voz tonitruante, que educara

    disciplinadamente. Aos ouvidos de Cosme afloravam agora ostroves das sentenas com que o lente imobilizara os auditrios.

    - E ento, Senhores, tremeis vs de pnico s porqueconstatais que alguns aplicam a sua diligncia e a nossa cincia adesmanchar a fbrica? Pois, e o que ser dos vindoiros, quando presenciarem que a mesma diligncia e a mesma cincia sejaaplicada, no a decomp-la, que ao fim e ao cabo o nosso mester,mas a cri-la? A cri-la para a sujeitarem. Para imporem prpria

    criao a sujeio aos critrios dos vis desgnios do homem.Porque no acto de desmanchar a fbrica inicia-se a jornadaque se concluir na soberba pretenso da sua criao.

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    O que vos proponho que questioneis no o limite doconhecimento humano, pois para tal no h limites seno os que amoral lhe impuser. Mas a moral no impe limites ao

    conhecimento, Senhores, to s aco que dele possa advir. Ou aco de que ele possa provir.E ento tremeis s de ver os vossos irmos decompostos

    nas suas partes, para um lado as carnes e para outro os ossos. Pois,por ora, iniciou-se apenas um perverso processo de anlise, que noconhece j limites impostos pela moral. Mata, fere e amputa ohomem em vrias circunstncias, com o beneplcito dos reis, dos padres e at dos papas. O teatro anatmico parecer-vos-porventura um espectculo bem menos degradante do que o do

    cadafalso e o do pelourinho, ou o da ira das turbas em fria nosxtases das carneficinas.Tremei ento porque a anlise que se processa hoje no

    teatro anatmico no se consuma em si prpria, como seconsumam os outros actos de violncia contra os corpos e os seres.As anlises que agora vos propem consumar-se-o, no futuro, em propostas de snteses que nem poderemos imaginar. Hojeaplicamo-nos a dissecar e a analisar para conhecer, amanhaplicaremos o conhecimento para reoperar. E o que ser a violncia

    de que o nosso conhecimento provm, face que dele haver deadvir, quando com ele reoperarmos? E quando com ele nosquisermos substituir ao criador?

    A Cosme, o descrente, o cptico, pouco impressionavam osvaticnios do lente. Um certo desdm, at, transparecia na suaexpresso sarcstica, enquanto pela mente desfilavam algunsapontamentos breves da memria que retivera de trs anos derelao com o mestre. Enquanto os sinos dobravam a finados,

    Cosme, sentado com os cotovelos pousados no parapeito da janelada sua mansarda altaneira, alcantilada sobre os telhados edominando o rio, aspirava o ar que o chuvisco em contacto com asargilas ressequidas impregnava de um odor acre.

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    Dom Francisco Canete... Se uma floreira lhe nosuspendera o flego, talvez acabasse esturricado numa fogueira.

    - No fim da Primavera, ou no princpio do Vero, esgueiro-me para Salamanca. Ou mais para diante.

    Gritou Cosme, reunindo as mos em frente da boca, parauma andorinha encavalitada no beirado.

    O jovem virou-se para dentro e semicerrou as plpebras,perscrutando com o olhar o espao amplo da mansarda mergulhadaem penumbra, fazendo o inventrio dos seus parcos pertences.

    - Moedas de ouro... pensou - ou de prata... um bom par debotifarras, bons alforjes em cabedal e a liberdade para correr omundo todo. Os livros aferrolham-se nas voltas e arquivoltas dosmiolos, de cambulhada com as recordaes e as saudades, e anda-se livre e leve como um passarinho.

    Trinta anos depois, Cosme no saberia ainda responder,para si prprio, a uma interrogao que lhe andaria na peugadapelo resto da vida como um co tinhoso. Porque razo o sbito

    colapso de Dom Francisco Canete, com o crneo esmagado poruma floreira em majlica, despenhada das celestes alturas de umvarandim pela insinuante mo da tenebrosa mondadeira, subverterade tal forma a sua vida? Como se o episdio fora somente umdesgnio, j no na vida de Dom Francisco, que para mais se finarae conclura o seu destino, mas na sua prpria.

    Uma sinuosa conjura, em que interviera incautamente umpombo desastrado.

    Tambm eu no sei, caro leitor, se Cosme se convencera

    realmente alguma vez de que a sua mirambolante itinernciaeclodira assim subitamente por causa deste pitoresco episdio.Nem nunca consegui que me decifrasse como se precipitara ele,assim tambm to subitamente, como se fora mero espectador

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    todavia, no episdio derradeiro de uma vida alheia, que tomara, porparadoxo, como fundador da sua prpria.

    Mas tal como sempre a narrou, em vrias circunstncias,

    ento que se inicia a histria da vida de Cosme. Para trs, apenasuma penumbra nebulosa, em que despontam, como se um raio deSol subitamente rasgasse a massa informe de um nevoeiropermanente, disparando fugazes cintilaes de luz e cor, breves edesconexos apontamentos, cujo sentido astuto s mesmo Cosmeconseguiu capturar.

    De sua ascendncia, apenas revelou, com algumaambiguidade, que era filho nico de um abastado livreiro, queeditou em Lisboa um almanaque de circulao muito restrita, eleito

    veculo atravs do qual circularam as mais tenebrosas conjuras e osmais torpes boatos. Foi, afinal, o inesgotvel patrimnio que lheamparou sempre os desvarios e a bomia. Em qualquer lugar emque se encontrasse, aparecia-lhe sempre, magicamente, o amparoque lhe permitia prosseguir mais para diante nas suas desconexastransumncias, como se uma intricada teia de conjuradascumplicidades lhe vigiasse os passos. Mas, desse gato, nuncaCosme deixou que surgisse sequer um pelo nfimo da pontinha dorabo.

    Ora surgiu ento Cosme nesta histria, como seuprotagonista e centro de todas as intrigas, j havia muito baptizadoe comungado, com muito livro lido e muita caneca bebida, atestemunhar o bito de Dom Francisco Canete, como se as profundas gargantas da terra o houveram expelido para a vidanaquele momento e lugar, para logo se sumir e reaparecer emSalamanca, cabeceira de Mestre Jernimo de Villarroel que sefinava entre gemidos e suspiros, vtima de umas cutiladas que lhedesferiram traio, a coberto do crepsculo vespertino e do

    passadio do mosteiro de Santa Mnica.

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    Outra conjura

    Andou ento Dom Jeronimo de Villarroel sessenta e dois

    anos espera que Cosme despontasse nos horizontes salamantinos,portador de uma misteriosa missiva de seu pai, para que, sem maisaviso, lhe cassem em cima espadeirada trs meliantesencapuados.

    Em verdade, nem Cosme se houvera to cedo aproximadode Castela, se uma floreira no derrubara, do mesmo modoinesperado, Dom Francisco Canete. S no saberemos se, assimno sendo, Dom Jeronimo passearia ainda pelas praas e vielas deSalamanca a sua serena bonomia de burgus bem enraizado pelo

    menos durante uns bons dez anos, at que o sopro vital, ele prpriopor sua iniciativa, se despedisse.

    E ora l expirava Dom Jeronimo entre suspiros e gemidos,assistido dos seus e do inesperado Cosme, enquanto na antecmara

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    fsicos e cirurgies disputavam em sussurros exaltados e comgestos peremptrios sobre o que se faria ainda para entreter a vidae entupir o caminho da morte, de que ningum j o livraria. Numa

    narrativa viva, transbordante de pormenores insinuantes, a viva,ainda incrdula, transmitia aos circunstantes uma virtuosa versoda escaramua, como se a tudo assistira da plateia de um teatro.Fora o caso que Dom Jeronimo ainda afrontara os celerados comvigor e era certo que eram estrangeiros, talvez flamengos, eescondiam por debaixo dos capotes o fardamento dos esbirros dElRei. O velho j mal ouvia o que se dizia em seu redor, masesbugalhava os olhos, tentando talvez contrari-la. Os ferimentos,dispersos pelas costas e pescoo, no toleravam todavia qualquer

    suspeita, o ataque fora de surpresa e traio e derrubara DomJeronimo em meio instante.Mesmo jazente em seu leito, gemendo e suspirando, Dom

    Jeronimo era um homem de respeito. O peito largo e arfante,envolto na gaze das ligaduras que mal conseguiam conter aspoderosas inspiraes, invocava um boi bravo agonizante na arenaaps a estocada derradeira. No delrio da febre, os olhos chispavamclera e raiva e parecia que subitamente saltaria para fora delenois e cobertores, brandindo a espada. Abria e fechava a boca

    como se quisesse ainda vociferar qualquer imprecao, semcontudo pronunciar um som.Mas antes mesmo de expirar, ainda murmurou:

    - A quarta pgina... a quarta pgina...

    E foi o fim.

    - A quarta pgina... A quarta pgina de qu?

    S quando notou que os olhares interrogativos seimobilizaram, como se ningum se dera conta ainda da indiscretapresena de um intruso, Cosme soube que no interpelara os botes

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    do seu gibo mas os circunstantes, esperando que algum conclusseo que Dom Jeronimo deixara em suspenso.

    - E Vossa Senhoria vem de onde e em nome de quem?

    Altercou a viva, dando voz surpresa de todos.

    - Eu? Eu sou Cosme, filho de Simo de Castro, livreiro eimpressor de Sua Majestade, em Lisboa. Trago recomendaes demeu pai para Dom Jeronimo.

    - Simo! O meu irmo Simo...

    Ficou assim Cosme a saber que era sobrinho da viva dofinado Dom Jeronimo de Villarroel, livreiro e impressor daUniversidade, em Salamanca.

    - Que ter o meu irmo que ver com tudo isto?

    - O meu pai, Senhora, tem sempre que ver com tudo, nosei bem porqu.

    - Vejamos ento o que nos diz Simo.

    E parecia de sbito que ningum queria j saber de DomJeronimo, que jazia no seu leito de olhos escancarados, pois aningum ocorrera sequer cerrar-lhos. Foi um dos mdicos que,altercando ainda com um cirurgio, o comps com gestosmeticulosos.

    A longa epstola de Simo de Castro, seis flios de

    caligrafia mida e nervosa, era um intricado ror de subentendidosindecifrveis, que presumia um entendimento exclusivo entre osdois cunhados, uma contiguidade nunca suspensa de que ningumsuspeitara. Tudo fazia crer que Simo de Castro tinha poderosos e

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    profundos interesses na actividade editorial de Dom Jeronimo e,com esse fundamento, o impressor lisboeta contratava com osalamantino o aboletamento de Cosme em sua casa e encarregava o

    filho da edio castelhana de vrios livros que no achava oportunoque sassem em Lisboa. Surpreendeu Cosme que o nome de DomFrancisco Canete fosse citado em vrios passos, no se enxergava aque propsito, mas sempre como depositrio de algo que ambos osimpressores cobiavam, talvez um manuscrito. A quarta pginaficara literalmente em branco, apenas com uma breve insinuaoem latim por cabealho, sicut de proelio nostro tum dixisti. Era deresto tambm indecifrvel a conexo da intercalao latina com oque lhe ficava imediatamente anterior e posterior.

    - A quarta pgina... deixou escapar Cosme que lia em vozalta.

    - A quarta pgina de qu? interpelou a viva, como sedespertara de sbito.

    - A quarta pgina desta carta, claro.

    - E ento?...

    - Ento... haver de se ver. Uma coisa certa, DomJeronimo no conhecia esta carta, que a trouxe eu e ainda agoraaqui cheguei.

    - O Simo... Como bem diz Vossemec, meu sobrinho, omeu irmo tem que ver com tudo, ningum sabe bem porqu. Comque ento... a quarta pgina?...

    E neste p ficou a coisa, porque Dom Jeronimo, exanguetodavia, passou a reclamar a ateno de todos.

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    E gastou-se mais uma semana para serenar a dor que ficavapela ausncia de Dom Jeronimo e para o depositar no pavimento daCapela de So Joo na Igreja dos Carmelitas, bem encarcerado sob

    uma pesada laje de mrmore, que ostentava uma breve legenda:AQUI JACE DON JERONIMO DE TORRES Y VILLARROEL,IMPRESSOR Y LIBRERO DE LA UNIVERSIDADSALAMANTINA. AO MDCX. Ao lado, ficava uma arca vazia euma laje lisa, sem ornatos nem caracteres, espera da viva.

    E ento todos voltaram s coisas prticas da vida. E aprimeira delas foi procurar as disposies de Dom Jeronimo.

    E ningum imaginara que o seu testamento, firmado por um bem conhecido e reputado tabelio do burgo, incontestvel,

    contribuiria para envolver ainda numa aura de mais sinistromistrio o sbito surgir de Cosme cabeceira do defunto.Dom Jeronimo e sua mulher Marta de Castro, que haviam

    contrado matrimnio no estio abrasador de suas vidas, nuncahouveram tido descendncia, mau grado os rumores acerca de bastardos do impressor, esquecidos em vrias estncias da suaperegrina e irrequieta juventude. Dom Jeronimo raptara Marta decasa de seu irmo durante uma breve estncia em Lisboa, episdioque originara amuos e altercaes corrosivas entre os dois livreiros,

    at ento amigos do peito. Simo de Castro desfrutava de forteascendente no seio de uma interminvel famlia de irmos,cunhados, sobrinhos, primos e compadres, todos associados, poruma ou outra razo, ao mundo dos alfarrbios, desde que seextinguira Simo de Castro Velho, seu pai, um majestoso patriarcade ascendncia rabnica.

    Cosme mal conhecia a extenso da forte influncia deSimo, mas percebera j que no tinha limites. De seus tios, apenasconhecia Jos, tenebroso brao direito de seu pai. Todos os outros

    alargavam o horizonte do domnio do livreiro lisboeta a remotasfronteiras, Amesterdo, Bruxelas, Anturpia. Havia alguns mdicose cirurgies reputados, juristas e at cannicos.

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    Cosme nunca decifrara o mistrio sobre que assentava odomnio e ascendente de seu pai, seno que intura e deduzira desussurros que se tratava de compromissos inviolveis, em redor de

    uma qualquer irmandade legitimada em fins e objectivosalegadamente msticos.Ora dispunha ento Dom Jeronimo que Cosme entrasse na

    posse de todos os seus haveres, ficando com o encargo vitalcio desua tia, que manteria todas as suas prerrogativas, bem como osbens de uso pessoal.

    E para tornar toda a circunstncia mais paradoxal, logo quese abriu a primeira gaveta do majestoso bufete de onde Cosme presidiria agora aos assuntos da casa, sau luz uma extensa

    epstola que Dom Jeronimo nunca expedira para o seu cunhado.Seis longas folhas repletas de caligrafia cuidada, excepto a quartapgina que tinha exclusivamente por cabealho uma breve legendalatina, ut de proelio nostro tum dixi.

    - Raios os partam!

    Exclamou Marta e deixou cair os braos em sinal dedesconsolo. Recolheu aos seus aposentos e no voltou, durante o

    resto da sua j breve vida, a dirigir a palavra ao sobrinho. Seismeses depois extinguiu-se, atormentada por fantasmas insondveis.E ficou Cosme com a encomenda, sem saber bem o que

    fazer.

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    Um enforcado

    E da encomenda fazia parte Raquel. Raquel no era nadanem ningum, era parte da encomenda como o acessrio de ummvel, a gaveta de um bufete ou a porta de um armrio. Raquel eraum acessrio ou adereo de Marta, um anel, um brinco ou umpregador, ningum sabia de onde surgira. O testamento de Dom

    Jeronimo dispunha sobre Marta, ficava o assunto de Raquelarrumado. S quando Marta faleceu, Miguel, o sbrio eimpenetrvel amanuense de Dom Jeronimo, disparou queimaroupa, encarando Cosme mas interpelando-se a si prprio.

    - E a filha do enforcado?

    - A filha do enforcado?... Ora essa... qual enforcado?...

    - Pois... do enforcado, ningum sabe nada. A filha DonaRaquel, a surda e muda.

    - Surda e muda?

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    - Vossa Senhoria no sabia? Foi encontrada sentada nocho, a balancear-se para trs e para a frente, com um cabaz de

    roms no regao e o olhar perdido num carreiro de formigas semdestino, aos ps de seu pai, que pendia da ponta de uma cordasuspensa de uma asna, num celeiro. Nunca disse sequer uma palavra e mouca como uma parede. Dona Marta de Castrorecolheu-a, no se sabe onde nem porqu. Para o Senhor DomJeronimo nem existia, porque lhe bastava que existisse DonaMarta. Portanto, no consta em rol nenhum e no saberemos o quelhe fazer.

    Convm todavia que saibais, Senhor, que l e escreve.

    Cosme vira Raquel uma meia dezena de vezes, a primeirarecolhida num canto obscuro dos aposentos de Dom Jeronimomoribundo, quase esconsa, com uns grandes olhos verdesirrequietos e buliosos que pareciam captar todos os detalhes, todosos movimentos, mesmo os mais ntimos e furtivos olhares trocadosentre os circunstantes. Era uma presena quase imperceptvel, quepercebia todavia tudo em seu redor.

    Invariavelmente, aparecia sempre por detrs de Marta,

    embora Marta parecesse nem notar a sua presena. Nos momentosde maior angstia, contudo, Marta lanava discretamente para trsa sua mo ao encontro da de Raquel, que apertavadesesperadamente. Apenas durante um breve instante Cosmeregistara um encontro fortuito entre o olhar de Raquel e o de DomJeronimo, momentos antes do estertor. Parecera-lhe pairar entreeles um entendimento profundo, como se Dom Jeronimo buscassenos olhos de Raquel o sinal derradeiro de que podia partirpacificado.

    - E ento? - disparou de novo e de sbito Miguel,suspendendo as lucubraes de Cosme.

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    - Ento? Ento manter Raquel todas as prerrogativas deMarta, os seus aposentos, o usufruto de seus bens pessoais e os seusrendimentos.

    - Bem... No seria altura para consultar o Senhor Simo deCastro sobre o assunto?

    - Meu pai? Ora... Que tem meu pai que ver com a matria?

    - No sei bem... Mas na vida de Dom Jeronimo deVillarroel, o Senhor Simo de Castro tinha que ver com tudo.

    - Dizes bem. altura de ter com meu pai uma conversa.Entretanto, fica Raquel no lugar de Marta. Parto depois de amanh,com o despontar do Sol.

    Diz-me, Miguel, e com a morte de Dom Jeronimo, que teriameu pai que ver? Como o conheceste?

    - Dom Jeronimo ia a Lisboa duas vezes em cada ano, tratardos seus negcios com o Senhor Simo de Castro, at h trs anos,que ento deixou de ir. Eu acompanhava-o sempre. Dona Raquel

    tambm.Nunca soube nada acerca dos particulares dos negcios deDom Jeronimo com o Senhor Simo de Castro. Eu encarregava-meto s de contactos comerciais com livreiros e impressores emLisboa. Mas havia sempre um longo colquio entre o Senhor seupai e Dona Raquel, encarcerados os dois ss na sua biblioteca.

    No creio que seu pai tenha que ver com a morte de DomJeronimo. Mas a morte de Dom Jeronimo bem poder, porventura,ter que ver com seu pai.

    Vossa Senhoria deseja mais alguma coisa?

    - No, Miguel, podes ir. Velars para que as coisas corram,enquanto estiver ausente, de acordo com o estabelecido.

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    Prosseguir-se-o os trabalhos que Dom Jeronimo deixou pendentes.Suspenders apenas a impresso do Tarot. Veremos o que diz sobreisso meu pai.

    Miguel retirou-se com uma vnia, mas com um sorrisoesquivo de cumplicidade, muito menos formal j do que estiveraat ento. Aps este breve colquio, entre Cosme e o amanuensedespontaria de resto uma profunda relao de intimidade quasefraterna. Miguel era um rigoroso conhecedor do complexo mundodos livros e da imprensa e um excelente tipgrafo, prudente masvigoroso no trato comercial, e, sob um aspecto contido e reservado, por vezes aparentemente insignificante, escondia-se um sedutor

    temperamento comunicativo. Raramente tomava a iniciativa deuma conversa que no fosse formalmente indispensvel, eraponderado e conciso nas suas intervenes, mas, uma vez que lhedestrancassem a lngua, era capaz de discorrer horas a fio sobre umassunto, sem se tornar maador. Deixava ento fluir um humormuito peculiar.

    A interpelao de Miguel acerca de Raquel fora suscitadapelo Tarot, insondvel assunto que deixara Cosme boquiaberto.

    Um dos trabalhos que Dom Jeronimo deixara em curso,

    executado em horas de viglia e em segredo num canto reservadodos fundos da oficina, fora a impresso da carta do Enforcado deuma edio dos vinte e dois arcanos maiores do Tarot, dado luz,pea por pea, por uma incgnita rede de tipografias, desde Lisboaa Anturpia. Pouco se sabia sobre o caso. No se conheciam comrigor que impressores estavam envolvidos, de onde e de quem partira o empreendimento, nem onde, quando e como seria obaralho reunido. Na ponderada e reservada opinio de Miguel, tudopartira de Simo de Castro.

    Porque coubera a Dom Jeronimo a impresso doEnforcado?

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    - V-se l saber... Coisas do Senhor Simo de Castro. Quecarta imprimir o Senhor seu pai?...

    Conclura Miguel, simulando fazer grande esforo paravelar uma certa malcia.Antes de partir, Cosme seria ainda surpreendido por uma

    breve entrevista com Raquel.O inverno andara parco em guas, com os dias inundados

    de luz e cor, um Sol plido cujos raios pareciam cristalizar em gelona atmosfera, pois as aragens continentais levavam a temperaturaaos seus extremos. Nas cristas mais altas das serranias as neves dofim do Outono haviam petrificado. Quando as trevas ameaavam a

    Oriente e o astro se tingia de vermelho na linha ocidental dohorizonte, toda a terra tremia de arrepio, vomitando glidasexalaes. As ruas ficavam ento abandonadas aos ces e aos gatose toda a humana espcie se juntava aos molhos debaixo de seustectos, como rebanhos, tentando reunir numa s fornalha os seusnaturais calores.

    No novo lar de Cosme abandonara-se o vasto salo etomava-se a ceia na cozinha. Ficavam todos depois aconchegadosem volta do fogo, como numa plateia, cada um em seus lazeres,

    uns coloquiando ou altercando, outros dormitando, as mulheres nosseus lavores. Iam-se depois recolhendo um aps outro a suasalcovas e ficava sempre ainda Cosme pela noite fora nas suasexaltadas lucubraes.

    E naquela noite, a penltima antes da partida de Cosme,aps o ltimo se despedir, entrou Raquel. Requebrou-sediscretamente numa vnia reservada e sentou-se ao lado de Cosme,olhando de soslaio. Cosme reparou ento que mantinha um quaseimperceptvel jeito de se balancear para trs e para a frente, como

    se fora a agulha de um diapaso marcando compasso.Durante minutos assim ficaram, sem que qualquercomunicao se estabelecesse. Mas depois Raquel tirou do peitilhouma carta e estendeu-a a Cosme. Estava endereada a Simo de

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    Castro, fechada e lacrada. Cosme guardou-a. Encarou ento Raquele, mais com o olhar do que com qualquer mmica, perguntou-lhede chofre:

    - Quem s tu?

    Raquel olhou-o longamente, como se tentasse inventar ossinais adequados para comunicar algo muito vago. Ento levantou-se, foi em busca de um tinteiro e de uma pena ao bufete do salo,sentou-se de novo e, num pedao de papel perdido, escreveu: Nosei... a filha do enforcado... a surda e muda... perguntai a vosso pai.Ele sabe. S ele.

    Cosme tomou a pena para interpelar: s minha irm?Raquel negou, abanando peremptoriamente a cabea. Cosmeinterpelou ainda: A quarta pgina?

    Raquel teve ento uma reaco inesperada. Levantou-se, foi junto de Cosme, ainda comeou a gesticular profusa eatabalhoadamente numa mmica sem sequncia, as lgrimascorreram-lhe pelo rosto e retirou-se. No chorava de dor, nem dedesalento, mas de raiva.

    Na madrugada da partida, Cosme encontrou sobre o bufete

    um livrito singelo, impresso no papel espesso e grosseiro dosalmanaques, dois pregos apenas em oitavo cozidos com fio desapateiro, com caracteres esborratados e ilustrado com xilogravurasde trao rude e ingnuo. Por ttulo trazia: Explicaaom das figurasdos vinte e dous arcanos do Tarot Universal. De novo dado luzem Lisboa, em Salamanca, em Toledo, em Paris, em Anturpia eoutros lugares da cristandade. E mais no se h de dizer. Ano de1611, reinando em Portugal Sua Majestade El Rei Dom Filipe.Vendem os cegos em todas as esquinas e portais. Taxado em dois

    chourios.Cosme enfiou-o no bolso do gibo e decidiu que lheanimaria a viagem. Merecia uma explorao detalhada. Uma coisaera certa, ia o ano ainda muito imberbe para ter j dado luz to

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    bizarro portento. O ano de 1611 andava ali por gralha, ou porlogro. Ou por graa.

    Um encontro fortuito

    E ento... o Tarot. O que interessaria o Tarot a Simo de

    Castro?A Simo de Castro nada interessava pelo que era em si, emsua prpria substncia, natureza ou inteno, ou pelo que algummais pudera suspeitar sequer que fosse. Se o Tarot interessara aSimo de Castro, s ele soubera porqu. No haviaempreendimento ou mera conduta de Simo de Castro que noobedecesse a um ponderado desgnio ou rigoroso plano, a quesubjazia uma ideia ou um alcance a que s ele conferia sentido. Naverdade, havia sempre no caso algum que podia intuir um remoto

    significado ou o ritmo da sequncia dos acontecimentos que Simoprecipitava em seu redor. Mas o alcance derradeiro era insondvel,um mistrio cuja chave, em ltima instncia, s ele possua.

    Cosme habituara-se a imaginar a oficina de seu pai comouma ambgua instituio, imbuda de mistrio. Como impressor elivreiro de Sua Majestade, Simo de Castro gozava de um estatutoquase inviolvel. Dos seus prelos saam para a rua para alm dosalvars, leis, posturas, ditos, regimentos, cartas de merc, avisos,um ror de papelada que suportava a administrao do reino, ainda

    um sem nmero de documentos que respeitavam a instituiesreligiosas e particulares, mosteiros, confrarias, irmandades emesmo universidade. Mas era sua porta que batiam tambm

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    todos os mecenas e diletantes, os bispos, os abades, mdicos,juristas, antiqurios, fillogos, memorialistas e poetas.

    Para l do trabalho tipogrfico, a loja de Simo de Castro

    era depsito de todas as novidades literrias e cientficas dadas luz por toda a Europa. Havia as que se vendiam s claras e as quesaam, para visitantes muito especiais, das portas esconsas e fundosfalsos dos armrios fundeiros, com capas discretas e ostentandottulos fictcios. Simo de Castro era um exmio bibligrafo ebiblifilo, com uma slida cultura quase sem limites, e no era raroque emendasse, sobre as prprias provas remetidas pelos autores,discretamente, como se reparasse uma insignificante distraco, acitao de um tratado, a nota de roda p de uma colectnea

    jurdica, a mtrica de um soneto, a sequncia das asseres de umenunciado de lgica dialctica.A oficina de Simo era ponto quotidiano de encontro de

    todos os ilustres do reino e havia uns que s entravam quandooutros saam. Por l se confessavam muitas coisas e se planeavammuitas mais, umas em sussurros, outras quase em rebelio exaltada.Simo, que parecia sempre um confessor benevolente, regia naverdade eximiamente uma grande orquestra, que soava sempredesafinada com cada um a tocar para seu lado, pois s ele conhecia

    as pautas.Mas o que muito poucos sabiam e quase ningumimaginava era que, por detrs desta insigne instituio, pairava, emcontra luz, uma outra muito mais tenebrosa.

    Ia Cosme alternando entre estes dispersos apontamentos dememria, suscitados pelo inesperado curso da sua vida durante osltimos dez meses, e a exultante ateno aos pitorescos pormenoresda paisagem a desabrochar para um novo ciclo. Estava-se nosincios de um Fevereiro inundado de Sol e claridade e toda a

    natureza renascia prematuramente das invernais letargias,paulatinamente, espreitando por detrs das fragas, ou acoitada aoabrigo de rvores e razes, aqui uma flor, ali um pssaro acabadode arribar. Os glidos ventos continentais batiam ainda com

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    bravura as extensas planuras e bramiam as ltimas imprecaes nasgargantas mais apertadas, todavia cada vez mais balbuciantes. Osrigores do Inverno comeavam a ceder s carcias da Primavera.

    Numa ou noutra fraga, um sardo madrugador que despertaraincautamente do seu sono colava-se rocha para dela furtar o calorda solheira e esfregava o nariz gelado. Nos pegos de ribeiros eriachos, as mantas de pequenas flores aquticas, brancas, azuis eamarelas, davam a iluso de continuidade entre os prados econstituam verdadeiras armadilhas para os viajantes desatentos.

    Cosme viajava com uma pequena comitiva de trs criados,num percurso cheio de escolhos, ora pelas estradas reais, ora porcaminhos e veredas, a improvisar o itinerrio mais curto para

    atingir o rio Tejo junto de Abrantes, pois decidira queexperimentaria a carreira fluvial da at Lisboa. O curso do rio forarecentemente alvo de dispendiosos trabalhos de desassoreamento eregularizao para alargar os horizontes da sua navegabilidade ealimentar o megalmano sonho do pai de Sua Majestade, ansiosopor embarcar um dia em Madrid e inspeccionar de um s flegotodo o seu ecumnico imprio, saindo pela barra de Lisboa a fazera circum-navegao e entrando no regresso pelo Tamisa a desferirumas morteiradas nos mpios ingleses. O prprio Simo andara

    exultante com a ideia, rodeado de mapas e roteiros, a imaginar osseus alfarrbios e as suas literrias conjuras a irromperem rio forapor Castela, sem se exporem aos trabalhos e imprevistos cuidadosdos penosos caminhos terrestres. Tanto como Sua Majestade, sSimo se interessava por caminhos.

    E vinha o grupo com trs bons cavalos e outras tantas mulaspara as cargas, bem aviadas de vitualhas para evitar desvios emdemanda de estalagem. Pernoitavam onde calhasse, em casasvelhas e abandonadas, no telheiro de uma igreja ou de uma ermida,

    ou ao ar livre, com as estrelas por cobertores.Cosme era um experimentado andarilho e viajante. Durantecerca de trs anos acompanhara seu tio Jos, a p e a cavalo, nassuas misteriosas e permanentes andanas de que s ele e Simo

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    conheciam o destino e o mbil. Para Cosme, nesse tempo, eramapenas aventuras. Aqui e acol apercebia-se de algo, a que noconseguia todavia atribuir significado, seno o de que a sombra de

    seu pai alcanava lugares muito longnquos. Mas, pouco a pouco,Simo foi-lhe levantando as pontas do vu, pouca coisa, osuficiente para o convencer de que, mais tarde ou mais cedo,quisesse ou no, haveria de o substituir. A reaco de Cosme fora, por receio ou por irreprimvel vontade de procurar um destinoprprio e autnomo, a de se ausentar e recolher nos seus estudos,longe de todos e com parcos meios.

    Simo encarara o afastamento de Cosme com serena benevolncia, at com um certo sarcasmo, inamovvel na sua

    convico de que no competia ao filho alterar o seu destino, poisaos seus desgnios ningum lograva furtar-se. Sem que o soubesse,disps com todo o rigor todas as peas do jogo em que o jovem iriamovimentar-se na sua bomia vida, de forma a que no dariasequer um passo que no estivesse previsto e programado nombito de uma sequncia ou de um plano. Quando Cosme se pdeaperceber, estava de tal forma intrometido nos assuntos de seu pai,ou por eles cercado, que chegara a imaginar que no era mais doque um inocente espectador da sua prpria vida. E ento decidiu

    viv-la, iludindo simplesmente o significado que pudesse ter paraquem quer que fosse.Fora por isso que, no prprio momento em que se

    confrontou com os escombros de Dom Francisco estatelados nolajedo, decidiu que suspenderia, com uma esquiva e inesperadafinta, qualquer plano que astutamente algum pudesse ter urdido eemboscado no episdio. Iria para Salamanca. Foi quase umaesconjura.

    Por ingenuidade, no pde deixar de confrontar Simo com

    a sua sbita deciso, para ver, com os prprios olhos, at que pontoficaria perturbado ou surpreendido. No ficou. Pareceu mesmo quenem esperara, nunca, outra coisa. Teve Cosme que chegar a

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    Salamanca para compreender porqu. Afinal, at levavarecomendaes de seu pai. E talvez at fosse esperado.

    E o Tarot?... Seria o Tarot a chave de todo o mistrio?

    Cosme afrouxou o ritmo do trote, enfiou a mo no bolso dogibo e folheou o livrito com ar especulativo.Simplesmente uma daquelas peas que os cegos e os

    almocreves disseminavam pelas tabernas, pelas praas das vilas elugares, pelos adros das igrejas em tempo de romarias, juntamentecom os almanaques, os tesouros de prudentes, as comdias, ossarrabais, as stiras. Ningum sabia onde se imprimiam, nem deque iluminadas cabeas brotavam, mas apareciam de sbito nosalforges de todos os andarilhos e nos estendais das bancas e

    proliferavam como ervas daninhas a galgarem terras de po. Oexemplar que Cosme folheava com desdm estava muito surrado echeio de notas manuscritas, com algumas dedadas de tinta negra,como se um tipgrafo o tivesse manuseado vezes sem conta naprpria oficina.

    Vinte e duas estampas, correspondentes s lminas dosvinte e dois arcanos maiores do Tarot, trazendo no reversosumrios repertrios iconogrficos. No fim, sumrias explicaessobre diversas maneiras de deitar as cartas, com que qualquer

    solteirona ou viva desocupada se iniciaria nas sortes dacartomncia para animar uns saraus. Uma pea incua.E entrementes um dos criados, que seguira cerca de uma

    lgua frente para preparar cmodos na estalagem junto barca deAlfanzira, onde Cosme decidira iniciar o seu percurso fluvial,chegava esbaforido:

    - Est aboletado na estalagem, acabado de passar o rio, oSenhor Jos de Castro. Espera-vos, Senhor.

    Cosme levantou a cabea e pde ver, recortado no horizontevespertino, mesmo contra o rubro Poente, o imponente morro ecastelo de Abrantes.

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    - E de onde conheces tu o meu tio?

    - Vosso tio, Senhor, era cunhado de Dom Jeronimo e irmoda Senhora Dona Marta. Ia vezes sem conto a Salamanca. Estevepor l pouco tempo antes de chegardes.

    - E ento...?

    Cosme suspendeu, desconsolado, a altercao, convicto deque nem valeria a pena prosseguir com a matria. A figura desandeu que faria se perguntasse ao criado por que razo s ele,

    Cosme, sobrinho do Senhor Jos de Castro e de Dona Marta, nosabia da assiduidade do tio em casa de Dom Jeronimo?Deu com as esporas na barriga do cavalo e num pice

    desmontava no terreiro da estalagem, deixando para trs,embasbacados, os criados e as mulas de carga.

    Jos de Castro era um homem peculiar. Alto, trigueiro, como rosto grave e magro curtido pela solheira e pelo p dos caminhos,os olhos cinzentos de expresso metlica, seco e ossudo, reservadoe circunstancial, sempre envolto em largos capotes de peregrino e

    calado com boas botifarras, o gesto largo e a voz breve e rspidade quem no diz mais do que o essencial. Incutia logo, primeiravista, tanto respeito e confiana, quanta reserva, distncia e cautela.Dependia da circunstncia.

    Estava sentado cabeceira de uma longa mesa corrida,coberta de iguarias rsticas, na companhia de dois cegos e de umalmocreve. Era um dos cegos quem falava, contando talvez umahistria animada e gesticulando profusamente, e os outrosescutavam atentos. Quando viu Cosme na soleira da porta, Jos

    levantou-se com ar prazenteiro e veio ao seu encontro, de braosestendidos.

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    - Jos, meu sempre inesperado tio, - exclamou Cosme comum ar radiante, mas com um quase imperceptvel laivo de sarcasmo- disseram-me que me esperveis.

    - Eu?... No. Venho de Sevilha, com uma breve estncia emvora, e j s vou parar em Coimbra. Mas mandou aqui algum teupai, para me dizer que vinhas ao meu encontro. Estou s tuasordens e muito folgo em ver-te.

    - Eu no venho ao encontro de ningum, vou para Lisboa atoda a brida e espero ter uma longa conversa com meu pai.Todavia, nem ele poderia saber que eu vinha. Espero aproveitar

    este fortuito encontro para ter uma longa conversa convosco,tambm. Anda, meu tio, a pesar-me muito a recalcitrante presenade meu pai em todos os passos das minhas caminhadas. Passo aminha vida a tropear com ele e raramente o vejo.

    - A maior poro dos cegos que eu conheo so sujeitos queno querem ver. Podes ter a certeza que mais se espanta teu pai, doque tu, por no o veres. Ou por no quereres v-lo. Mas teu paimuito te estima e quer e s por essa razo anda empecilhado nos

    teus passos. No tanto como julgas, todavia vigia-te com afincomas descrio.

    - E vs? Vigiais-me por conta de meu pai.

    - Eu no tenho nada que ver com essa trapalhada, pouco otempo que me sobra para beber um copo de vinho com poucosamigos e companheiros. Vem. Senta-te e serve-te, que a mesa estposta e o nosso apetite derrubado. Hoje, por ironia, vais aboletar-te

    por conta de teu pai.

    Jos riu sinceramente com bonomia e quando ria assim todoo rosto se desanuviava. Era ento que suscitava confiana e afecto

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    e uma atraco profunda. E tornava-se mais perigoso. Fez umbreve aceno com a cabea e os restantes elementos da companhiaabriram os braos em cruz, espreguiando-se, esfregaram os

    bandulhos a acondicionar o repasto, e levantaram-se pachorrentamente esgueirando-se para o exterior. De baixo damesa desenfiaram-se dois belos e lustrosos ces pastores paraguiarem os cegos. Cosme seguiu-os atentamente com o olhar, atse sumirem.

    - Gente dos caminhos - esclareceu Jos.

    - Gente da vossa companhia.

    - Em minha companhia anda todo aquele que os meus passos encontrarem. Muitas lguas engoliste tu, na minhacompanhia. Diz-me ento o que queres saber de mim.

    Cosme fitou demoradamente seu tio, com o olhar perdidotodavia, enquanto o seu esprito deambulava pelos labirintos damemria.

    Jos de Castro... o seu insondvel tio... Durante a infncia e

    a juventude, Jos foi o eleito confidente de Cosme, o nico ser quelhe dispensou um afecto consequente e incondicional. Sempre a partir e a chegar, mais ausente que presente, foi com Jos queCosme aprendeu a desbravar o mundo, a sondar os mistrios davida e a reconhecer as coisas simples e bvias. Ensinou-o a ler e aescrever, repreendeu-o, louvou-o, empurrou-o, refreou-o quandofoi o caso.

    Mau grado as suas ausncias, Jos estivera sempre maispresente do que Simo na vida de Cosme. Simo era um sujeito

    distante, sempre rodeado de alfarrbios ou de gente ilustre, ouenterrado no meio de pranchas e de prensas nos lugares maisremotos da obscura oficina. Sempre que se dirigia a Cosme, ou a

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    qualquer outro de casa, era com matria prtica, imediata eincontestvel, sem explicaes nem prembulos.

    Sempre que Jos chegava Cosme exultava de alegria, para

    se afundar na mais miservel ansiedade quando de novo partia. Atque um dia partiu com ele.E ento compreendeu que entre Jos e Simo havia uma

    continuidade de que nunca suspeitara. Tudo o que Simo ocultavaou pretendia ocultar, realizava-se atravs de Jos. Ele era otentculo que transportava a presena de Simo at aos confins dosseus domnios.

    Era Jos que distribua pelos cegos, pelos almocreves epelos bufarinheiros tudo o que se imprimia em segredo na oficina

    de Simo. Era Jos que trazia as novidades e levava os boatos. Eraele que levava as ordens e as encomendas. Que trazia os recados eque reunia numa s conjura todos os fios de uma enovelada rede.Jos era a realizao de tudo o que Simo tramava.

    A oficina de Simo alimentava, atravs de Jos, umacomplicada rede de peregrinos agentes, cegos, almocreves,bufarinheiros e todos os andarilhos, que podia num pice fazerchegar uma conjura ou uma notcia aos confins do Reino dasEspanhas e mais alm. Uma assdua imprensa de proscritos

    gneros, em folhetos ou simples pregos, almanaques, novelas,comdias, stiras, pagelas com matria vria, saa quotidianamentedos esconsos da oficina de Simo para os caminhos, atravs de umarede interminvel que Jos regia com mo de ferro. Depois de sair,nunca mais se lhe conseguiria atribuir a origem. Em coordenaocom Simo, assegurada por Jos, as mesmas peas, ou outras quelhe interessassem, saam simultaneamente em vrias oficinasespalhadas por um territrio imenso, em castelhano, em francs eem flamengo.

    Na mente de Cosme foi amadurecendo a ideia de que tudo oque o seu pai conspirasse para lhe traar o destino f-lo-ia medianteJos.

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    - Que querer, afinal, de mim meu pai?

    Cosme atirou subitamente a pergunta, como se a fizera a si

    prprio.

    - No me parece que queira alguma coisa. Seno que muitolhe agradaria se quisesses algo dele. Mas, j que falas no assunto,porque me perguntarias a mim e no a ele?

    - Tendes toda a razo. E que me dizeis a isto?

    Cosme estendeu para Jos o livrinho que trouxera de

    Salamanca. Jos folheou-o com manifesto desinteresse.

    - Ora. E que queres que te diga. uma coisa trivial, que sev todos os dias nas mos dos cegos. Porque te haveria deinteressar.

    - No ter sido impresso por meu pai e metido noscaminhos por vs?

    - Pode ter sido impresso em qualquer lugar. Se fizermos fno que diz, ainda haver de ser impresso, ou foi-o h poucos dias.Pode ter sido impresso por teu pai e ter sido metido nos caminhospor mim. Se o fizramos, f-lo-amos exactamente desta maneira,neste papel, com esta tinta, com estes caracteres e porventura comesta data. E todavia no sei porque te haveria de interessar.

    - E o enforcado?

    - O enforcado? Ora essa... qual enforcado?

    - O pai de Raquel, a surda e muda?

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    - Ah... esse... Ningum sabe quem era. Talvez saiba o teupai. Pergunta-lhe.

    - Porque imprimia Dom Jeronimo a carta do enforcado?

    - Porque lhe foi destinado. Agora imprimi-la-s tu.

    - E quem o destinou?

    - Ningum sabe. Ningum sabe de onde partiu e com quefim. Foi uma ordem a que ningum poder furtar-se.

    - Dom Jeronimo tentou furtar-se?

    - bem possvel.

    - Sereis vs quem reunir o baralho?

    - Sem dvida. E quando o fizer entregar-to-ei emSalamanca, pois foi assim, tambm, destinado. E sabers tu o quefazer com ele?

    - Algum mo dir?

    - No provvel.

    - Porque me esperveis?

    - Para ter a certeza de que vinhas. No saberia comoconfortar o teu pai, se no viesses. E agora vai dormir descansado.

    Nem todas as tuas interrogaes e dvidas tm que ter umaresposta. A maior parte delas nunca vir a ter resposta.Quantas dvidas e interrogaes de teu pai no obtiveram

    resposta? Quantas minhas?

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    Amanh j no me vers. Partirei antes de ti. Muito folgueiem ver-te, meu sobrinho, e em confirmar que vinhas.

    J Jos se erguera e se dirigia para a porta, quando Cosme,que ficara sentado mesa, o interpelou ainda.

    - O que a quarta pgina?

    Jos parou. Nem se voltou, apenas rodou brevemente acabea at ficar a olhar de soslaio, com o sobrolho carregado,deixou passar uns segundos e respondeu j em movimento.

    - o verso do segundo flio. Dorme bem.

    Cosme teve a certeza de que viu assomar aos olhos do tioum instantneo mas tenebroso brilho. No conseguiu decidir seexprimia sarcasmo ou apreenso.

    A mscara

    - Terei, afinal, inventado eu tudo?

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    - Dizei, Senhor?

    O criado olhava para Cosme com surpresa, com uma truta

    esventrada numa mo e a navalha na outra, subitamenteimobilizado, olhando em redor para localizar o imaginriointerlocutor do patro. Mas junto proa na coberta estavam ss osdois, Cosme debruado na amurada com os olhos fixos na prpriacarantonha, deformada pelo reflexo na irregular superfcie da gua,e o criado que preparava uma promissora caldeirada.

    - Chia, homem! - desabafou Cosme num inesperado acessode clera - Ser que nem mesmo no meio do rio conseguirei passar

    uns minutos sem que algum me espie e me escute?

    Mas mais inesperada ainda foi a deciso que tomou cercade uma hora depois. Vogavam velozes com as velas frouxas,entregues corrente do rio, cujo caudal redobrara nos fins de umInverno copioso em neves que escorriam pelas comissuras dasmontanhas, numa airosa fragata que Cosme encontrara pela manhj fretada e carregada sua espera. Com eles viajavam as montadasque traziam de Castela, excepto as mulas que aguardariam o

    regresso nas cocheiras da estalagem.Jos encarregara-se de tudo antes de partir e liquidara todasas despesas. Mas acrescentara s bagagens um grande fardo envoltoem pano grosseiro de serapilheira, com a recomendao expressade que no se molhasse pois continha papelada.

    Mas pouco depois de passarem o Castelo de Almourol, nolugar da barca, Cosme mandou o barqueiro encostar margemdireita no ancoradouro. Cortou com uma navalha as cintas do fardoque Jos embarcara e inspeccionou o contedo. Eram centenas de

    exemplares de um tomo volumoso, constitudo por cadernos jcozidos mas sem encadernao, acabados de imprimir e exalando oacre perfume das tintas. Por capas serviam ento os frontespcios,que anunciavam: Memrias tiradas de uns papis velhos em que

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    Cosme de Castro lanou a relao das viagens que, por encargode seu pai, impressor e livreiro de S. M., fez atravs dos Reinos dePortugal e de Espanha. Do que viu e do que ouviu, da gente ilustre

    que conheceu e muitos episdios que interessaro no s aoscuriosos. Impresso em lugar que no se revela, por no interessarao caso. No traz licenas nem vai taxado, porque se h de passarpor debaixo do capote e em segredo.

    Cosme folheou esbaforido e afogueado pela clera umexemplar, o que lhe bastou para concluir que o miolo confirmava acasca e que a brasa que lhe atiravam agora para as mosultrapassara todas as expectativas. O caso apresentava-se srio.

    Mandou apear a encomenda e atear-lhe o fogo. Passada

    uma hora estava reduzida a cinzas que cavalgavam os lombos dovento. Depois desembarcou o seu cavalo, arreou-o e lanou-se estrada. Os criados ainda ficaram a olhar atnitos para o rasto dopatro durante meia hora, desembarcaram tambm as bestas e ascargas e mandaram seguir o barqueiro de regresso. S lhes restavaesperar.

    - E terei eu ento inventado tudo? No os episdios, porqueesses so incontestveis. Finaram-se Dom Francisco Canete e Dom

    Jeronimo e eu estava l. Finou-se minha tia. Encontrei-me commeu tio Jos que me despachou uma encomenda e trago no meubolso as memrias das viagens que no fiz. Ou acaso as terei feito?

    Terei inventado eu a relao entre tudo e todos, osignificado de cada passo desta tenebrosa histria e o papel de cadaum? Estarei eu to envolvido nela que sou j quem tece a trama econstri a intriga? E se tudo no passasse de episdios desconexos,sem qualquer ordem nem algum sentido, e no fosse seno eu queos cozesse uns com os outros, no lugar e do modo que convm

    minha histria, que no sei todavia qual seja nem como seconcluir?E bastaria ento que suspendesse eu o meu papel de

    narrador e protagonista para que tudo prosseguisse ao acaso, sem

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    qualquer finalidade ou sentido, cada episdio rematando-se econcluindo-se em si prprio, cada interveniente no papel que odestino e a necessidade lhe impem, uma fatdica desordem enfim

    que ningum sequer intuu. E ento tanto faria que prosseguisse naviagem em demanda de meu pai, que mal conheo, pois pouco o viem cerca de quinze anos que com ele morei e outros dez quesustentou, mais ou menos, os meus desvarios. Ou que invertesse orumo e regressasse a Salamanca ou a Coimbra, ou embarcasseesconso no poro de uma nau que me lanasse nas ndias, Orientaisou Ocidentais, onde ningum saberia j quem sou, nem que mundocalcorreei por meu livre desgnio ou por encargo de meu pai.

    Mas no sou eu prprio quem me impe que procure meu

    pai e no outro destino, para atribuir porventura a tudo umsignificado que s eu procuro e de que s eu necessito? E, sendoassim, inevitvel que me v chegando a Lisboa e me reencontrecom meu pai, pois s eu sou o sentido da minha prpria histria.

    Cosme puxou as rdeas com firmeza para obrigar amontada a suspender o galope, manteve-a a passo ainda duranteuma jarda, parou e desmontou numa sombria clareira. Aliviou osarreios ao cavalo extenuado, para que pastasse livremente num

    pequeno prado que a sombria humidade alimentava, e sentou-se depernas estendidas numa pedra que ladeava o caminho, esfregandoos lombos macerados por trotes e galopadas.

    Retirou do alforge o exemplar que guardara da relao dassuas imaginadas viagens. Fora o nico que subsistira ao fogo.

    Tratava-se da relao de vinte e duas viagens, tantasquantos os arcanos maiores do Tarot, por mero acaso ou prfidoardil. Tudo num ambiente alucinado e inverosmil, nenhum lugar,nenhuma personagem nem nenhuma circunstncia podia ser

    atribuda a qualquer tpico do mundo real, seno metaforicamentee com muita astcia. Cosme ficava com a impresso, todavia maldefinida, de que, por detrs de toda a trama, se traava umitinerrio rigoroso de visita a uma rede de oficinas tipogrficas

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    astutamente decalcada sobre uma rede viria elementar, como seforam estalagens ou estaes de muda.

    - Ser que me introduzi, inadvertidamente, no avesso dasroupagens do universo? Que passei para o lado de l do meureflexo nas tenebrosas guas do rio? Onde irei agora recolher ereunir os fragmentos do meu ser, antes que sejam lanados pelatorrente nas ondas revoltas do oceano e por elas quebrados contraas arestas agudas dos baixios?

    Sentiu-se ento, durante alguns instantes, um ser miservel,abandonado a um insondvel destino, abatido por uma angstia

    profunda.Reagiu, foi recolher o cavalo entregue s delcias do repastoe da liberdade e partiu de novo. Em breve veria os esteirosderradeiros do rio espraiados atravs da charneca, lanando no cuo reflexo sanguneo da luz do astro que tombaria sobre o horizontee, sem mais anncio, recortar-se-ia em contra luz o perfil docasario e das torres sineiras da metrpole, dominado pela massamajestosa da obra de So Vicente a cuja sombra repousariamXabregas e a Madre de Deus. Do lado de l da morada do mrtir,

    descaindo sobre a S, ansioso porventura, sentado no seu cadeirode alto espaldar junto janela, seu pai perscrutaria as vielas.Nada foi, todavia, como esperava. Chegou j envolto em

    trevas, os cascos da besta resfolegante a ecoarem pelas ruasdesertas, e quem o esperava, luz de uma candeia tremulenta, eraFrei Boaventura, com o rosto aberto num sorriso alvar de anfitriocativo do dever de hospedagem.

    - Vosso pai, Senhor, receber-vos- amanh, pela manh.

    No tem andado bem e os mdicos prescrevem-lhe que se recolhacedo. Acompanhar-vos-ei enquanto ceais e apresentar-vos-eivossos alojamentos. Vinde comigo.

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    De toda a comitiva que Simo de Castro aboletava em suacasa, gente de dspar prstimo e condio, mas cada um investidonum papel que s ele saberia atribuir e definir, o que mais

    aborrecia a Cosme era Frei Boaventura. Era um homem altssimo,rotundo e luzidio, de rosto afogueado e aspecto imberbe, com umasgrandes mos de dedos grossos e inexpressivos, os olhos inquietosde quem se mantm sempre em guarda, tentando adivinhar adisposio dos circunstantes, como se se preparasse sempre para osservir, mesmo antes que se manifestassem. Por vezes aflorava aosseus olhos um ar malvolo que causava calafrios. Ningum sabiaporqu, mas assentara praa em casa de Simo havia cerca de vinteanos e nunca mais de l sara. Os Domingos passava-os fora.

    Homem erudito e de certo modo mundano, exmio pregadore ardiloso argumentador, passara a usufruir junto de Simo de umainquestionvel preponderncia. Desde que surgira, no haviamemria de que o livreiro falasse com algum sem a serficacustdia do frade. Exceptuando Jos, obviamente.

    Havia uns anos, Cosme interpelara seu tio:

    - Que faz aqui o frade? Que ter meu pai que ver com ele?

    Jos encolhera os ombros e parecera que no responderia.Mas depois fitara Cosme com o seu pardo e insondvel olharinquiridor e resmordera entre dentes:

    - Que melhores ouvidos e melhores arautos poderia teu paiescolher, seno os andarilhos da Serfica Ordem? Valem bem pordez confrarias de cegos. Esto em todo o lado e sempre de um parao outro.

    Cosme no apreendeu, seno algum tempo mais tarde, oalcance da observao do tio, mas notou nela um profundodesprezo.

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    Ora durante a ceia Cosme manteve-se silencioso ereservado, deixando que o frade percebesse o seu amuo por no seresperado pelo pai e, sobretudo, o incmodo que lhe causava a sua

    presena buliosa, a voltear em torno da mesa no af de o servir,ou de fingir diligncia em servi-lo. Fez-lhe um sinal vago, para quese sentasse e sossegasse.

    Quando Frei Boaventura por fim se sentou, Cosme,enquanto enchia o copo com vinho, perguntou-lhe:

    - Como sabia meu pai que eu vinha?

    - E porque estais vs to certo disso?

    - Parece-me bvio. Para alm do mais encontrei-me commeu tio em Abrantes.

    - Mas vosso tio, Senhor, est fora h quase dois meses.

    - Seja. Porque me esperveis vs, ento?

    - Ningum vos esperava. Espervamos vosso tio, desde h

    trs dias. Fiquei surpreendido por chegardes vs.

    - Meu tio ia para Coimbra. Surpreendido fico eu, FreiBoaventura, por no ver meu pai mas a vs, fingindo todavia queno me esperveis a mim, mas a meu tio.

    - E que interessa isso, Senhor Cosme de Castro? J tomastesvossa ceia, ireis repousar agora em vossos aposentos, amanhesperar-vos- vosso pai. Tendes, Senhor, Frei Boaventura s vossas

    ordens para vos servir, como tem servido vosso pai.

    - E em que serviria meu pai um sujeito de vossa condio?

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    - S ele vos poder responder. Porque manteria vosso paiFrei Boaventura se o no servisse?

    De manh, logo que Cosme sau de seus aposentos, queeram os mesmos desde que se recordava da casa de seu pai, foiconduzido vasta biblioteca, que ocupava quase metade do andarsuperior da casa, sobre as oficinas. Uma estreita escada de madeira,que despontava no sobrado atravs de um alapo e, no andartrreo, se dissimulava atrs da porta de um armrio, permitia aSimo de Castro deambular pelas duas partes da casa, sem que sesoubesse, em cada momento, em que lugar estaria.

    Seu pai jazia repousado em seu natural poiso, um

    imponente cadeiro de alto espaldar junto janela, com uma pesada manta de l sobre os joelhos, de olhos semicerrados,ouvindo Frei Boaventura que parecia acocorado, pois mal se via,oculta sob o seu volume imenso e as pregas do burel, uma cadeirapequena que rangia a cada movimento subjugada pelo peso. Calou-se quando chegou Cosme, que se sentou em frente dos dois, numacadeia igual de seu pai j preparada para o receber.

    Durante dois ou trs minutos ningum falou, pois Simocontinuou a dormitar ou a fingir que dormitava. E s quando se

    tornou notria a suspenso do monlogo do frade, abriu ento osolhos. Fitou Cosme com uma expresso serena e quase deindiferena, sem surpresa alguma, como se olhasse para algumque nunca se tivera ausentado daquele lugar. Ento disse:

    - Diz ento, rapaz. Sei j que no vens para repousar, ou para tomar o teu lugar em tua casa, mas trazes algo para medizeres.

    - E vs, meu pai, no tendes nada que me dizer?

    - Nada, filho, que no te diga desde que me ouves. Repetir-te-ei todavia tudo o que quiseres ouvir de novo.

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    - Ora, pai, o que pretendeis de mim?

    - Nada pretendo de ti, seno que no esqueas teu pai e atua casa. E tu, que pretendes tu de mim.

    - No sou eu que tropeo em vossos passos, sempre quemoveis as pernas.

    - Eu mantenho-me sedentrio em minha casa e no merecordo de te sair ao caminho. Os meus negcios estendem-se amuitos lados atravs de muita gente e so como tiveram que ser,

    nos lugares onde tiveram que ser feitos, com a gente que neles sequis meter. No sou eu exclusivamente dono da minha vida. Masmuito estranho que tu, que pareces querer rejeitar-me da tua,continues a tropear comigo em todo o lado, como se no tiverasmais caminhos por onde andasses, seno aqueles por onde corremos meus negcios. No quiseste, por acaso, escapar-te paraSalamanca? Apenas te encaminhei para tua tia. Esperavas de mimoutra coisa?

    - No esperava que morresse meu tio logo que cheguei,depois minha tia que nunca conhecera, que andasse por l Raquel,a filha do enforcado, e que tivesse herdado eu tudo sem saberporqu.

    - E que queres tu, filho, que faa? Que erradique toda agente que j l estava, de todos os lugares onde resolvas de sbitopernoitar? No sobe to alto o meu poder nem a minha condio.Nem que fora el-rei.

    - E isto, o que ?

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    Cosme estendeu firmemente em direco a seu pai o livroque furtara da encomenda de seu tio. Simo nem se mexeu, ficoude braos cruzados e recostado a olhar melancolicamente a rua

    inundada de luz matinal atravs das vidraas. Foi o frade quem seergueu e tomou o livro da mo de Cosme. Olhou brevemente ofrontespcio, entregou-o a Simo e disse:

    - a relao das viagens de Cosme de Castro. Por vossoencargo, Senhor.

    Simo recolheu o livro, passou-lhe demoradamente a moespalmada por cima, para um lado e para outro, levou-o ao nariz e

    cruzou de novo os braos com o livro contra o peito.

    - Uma graa, talvez, ou uma perfdia. Hoje em dia,qualquer um escreve e publica em nome de outrem o que lhe der nareal gana, sem que da venha qualquer mal seno o de que nada setoma j por srio. Vivemos uma permanente iluso. A imprensa eos livros so a mais cabal expresso dela. Se assim no fosse, quefaria ento Simo de Castro. E que faria seu filho Cosme?

    - Quereis-me dizer que no fostes vs quem imprimiu esselivro e quem o inventou? Ou que, pelo menos, no foi impresso einventado por vossa ordem?

    - E porque haveria de ser? Ou pensas tu que tudo o que seinventa e imprime no mundo sai da cabea de Simo de Castro?

    Houve qualquer indcio fortuito que fez Cosme subitamenteintuir algo de paradoxal em tudo aquilo. Nunca haveria de saber

    com certeza o qu. Talvez a precipitao de Frei Boaventura aoantecipar-se para receber o livro. Mas algo o obrigou a tomar umainiciativa. Levantou-se furtivamente, quase sem agitar a atmosfera,moveu-se para a beira de seu pai, do lado contrrio quele em que

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    poisava o frade, e estendeu a mo como se pretendesse a restituiodo livro. Os olhos do frade esbugalharam-se de perplexidade.Simo agitou-se inquieto, apercebendo-se de qualquer movimento

    que no conseguiu localizar com preciso.Cosme sentou-se de novo. Durante cerca de um quarto dehora, ningum pronunciou uma palavra. Boaventura permaneceude olhos baixos. Simo continuava a olhar pela janela.

    - E Raquel, a filha do enforcado? Que farei com ela?

    - Um dia virs a saber. Entretanto, manter-se- tudo comoest. um compromisso de honra meu e de tua tia. No o negars

    tu, espero.

    - No, meu pai, no o negarei. Vou descer s oficinas, paraver como esto.

    - Vai, filho. Ests em tua casa.

    Cosme desceu directamente pelas escadas do alapo.Quando entrou na oficina, sentou-se por momentos num tamborete

    a refazer-se da surpresa. Simo de Castro era cego. Sempre o fora,ou cegara?Vislumbrou ento o papel de Frei Boaventura junto de seu

    pai. Era a mscara, a presena que lhe permitira ocultar que eracego. Era os olhos de Simo. Em qualquer direco que Simoolhasse, Boaventura repousava os olhos e a sua voz, emboscadanuma conversao natural, transmitia o que viam. Uma exmiasincronia. Porqu?

    - Ser possvel que tudo isto me tenha acontecido, assim derompante?

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    Interrogou Cosme quase em surdina, passando as mospelos tipos abandonados sobre uma mesa de composio.

    - Nada nos acontece de rompante. A trama da vida vai-setecendo, como a de um brocado no tear. Quando deparamos com obrocado j pronto e acabado, nem sabemos j reconstituir os passose os gestos que se escondem por detrs de cada ponto, de cadaornamento. Para isso, meu filho, era necessrio desmanch-lo. Masa vida no se pode j desmanchar.

    Respondeu Frei Boaventura, que aparecera furtivamentepor detrs de Cosme.

    Cosme iludiu, durante momentos interminveis, a presenado frade, que permaneceu imvel, expectante, como um gato dianteda gaiola de um pssaro.

    Levantou-se depois e encarou-o.

    - Suponde todavia, Senhor Frade, que o bordado no estcompleto, mas em meio, aguardando as agulhas e os fusos, asdelicadas mos da dedicada bordadeira que concluiria a matriz. Esuponde ainda que algum decidiria desmanch-lo, mas no para

    trs, desenfiando cada linha e desmontando cada ponto, mas para afrente, subvertendo irreversivelmente a composio.

    O frade ficou surpreendentemente atnito, desorientado,incapaz de esconder um sbito nervosismo incontrolado. O serficorosto no conseguiu mesmo deixar de se abalar por dois espasmosmomentneos.

    - Tende piedade de ns, Senhor!... deixou escapar E

    seria to perfidamente astuto vosso pai, meu jovem Senhor, quevos conhece to bem, que antevira j o momento em quedespontareis no horizonte do seu rigoroso plano com essaslucubraes.

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    A mente diligente de Frei Boaventura parecia agorafumegar. Em seguida serenou de novo e a candura tomou-lhe conta

    da expresso.

    - Todavia, para que pudsseis desmancha-lo, Senhor,mesmo para a frente, tereis que lhe conhecer a matriz.

    Cosme retirou do bolso do gibo o compacto volume dahistria das suas imaginadas viagens, tamborilando sobre ele comos dedos, fitando de frente o frade.

    -Talvez que no...

    Parecia agora ter agarrado com firmeza as rdeas conjura.

    -Talvez que para desmanch-lo, melhor fora quem no lheconhea a matriz.

    - Que destino ter, na mente de vosso pai, esta conjura?

    A interrogao fluiu como um sussurro por entre os beiosgrossos de Frei Boaventura, que se esvaiu, fluindo tambm, pelocaminho por onde surgira.

    Nos trs dias seqentes, os encontros entre Cosme e seu paidecorreram silenciosos e pesados, apenas entrecortados por curtosdilogos ou monlogos acerca de novidades triviais. Cosmedeambulou pela casa e pelas ruas sem destino, revendo velhostpicos da sua adolescncia, como se no tivera idia algumaacerca do que o impelira para a sbita visita a seu pai.

    Na madrugada do quarto dia despertou de tempestuosos pesadelos em turbilho, com a carantonha rotunda de FreiBoaventura quase encostada na sua, exalando um hlito pesado eflatulento, chamando:

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    - Senhor. Senhor.

    Cosme assustou-se, rolou sobre o leito para o lado oposto edespenhou-se desamparadamente no cho. O frade, que noesperara to descontrolada reaco, esgueirou-se para junto daporta e, j da, quase a sair, disse sem olhar para dentro:

    - Vinde Senhor. Vosso pai parece falecer.

    Quando Cosme se abeirou do leito de Simo de Castro, noparecia falecer, j falecera. Jazia de olhos cerrados, lvido mas de

    expresso serena, como se dormisse profundamente, as mo apenasligeiramente crispadas sobre o cobertor.Cosme ficou estaticamente sentado na beira do leito durante

    duas horas, recordando serenamente todos os episdios da suaesquiva relao com o pai. A morte sbita de Dom FranciscoCanete, ou a de Dom Jernimo, ou mesmo a de sua tia, haviamporventura causado mais surpresa, ou angstia, do que a de seu pai.Pensou simplesmente, sem mais, que desvendara o desgnio que oimpelira to subitamente para Lisboa.

    Encarou depois Frei Boaventura, que se mantinha de moscruzadas sobre o peito, em orao, de p, na beira oposta do leito.

    - Mandareis sepultar meu pai, em segredo, na nave doConvento de So Francisco. Preparareis depois uma carruagem, emque meu pai partir, vista de toda a gente, para uma demoradaviagem Flandres, para visitar um irmo, uma irm, um cunhado,um compadre, quem quiserdes e achardes mais oportuno.Mandareis regressar meu tio.

    - Sim, Senhor. Servir-vos-ei, como servi a vosso pai. So asminhas ordens. E o meu desgnio.

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    Entregue ao frade a encomenda, Cosme, que apenascompareceu ao acto derradeiro do depsito do fretro sob o glidolajedo da nave conventual, pela calada da noite, entregou-se nos

    dias seguintes, enquanto aguardava o regresso do tio, a umaprofunda reflexo e ao vasculhar de vria papelada respeitante aosnegcios de seu pai. Nada mais do que coisas formais e incuas, porque as outras ficavam sepultadas, seno as poucas que FreiBoaventura e Jos de Castro aferrolhavam nas memriasvinculadas ao segredo. De resto, nem seria Cosme a violar velhosvnculos, porque a parte da conjura j realizada nem lhe diziarespeito. A partitura agora seria outra e escrita sobre pautasvirgens.

    Cosme no duvidava de que em Frei Boaventura poderiaconfiar sem reservas, porque a confiana que agora lhe exigissefora planeada por seu pai, ou, pelo menos, o frade assim oentendera. Cosme no fazia ideia do que o pai esperaria quefizesse, mas tinha a certeza de que Simo de Castro sabia que fariatudo de forma inesperada e imprevisvel, sem qualquercontinuidade e at com displicente desconhecimento do que estavafeito.

    O verdadeiro problema, cogitava, seria seu tio. At que

    ponto Jos de Castro, que controlava afinal toda a extenso doterritrio de interveno do irmo, no estaria preparado para selhe substituir como mestre da orquestra?

    Bem, o reencontro de Cosme com o seu tio acabou pordecorrer de forma ainda mais inesperada do que tudo o que jocorrera.

    Jos de Castro chegou trs dias passados, com o seu irmo j sepultado, ou bem metido nos atalhos para o seu inventadodestino de viagem, com a sua comitiva em alarido, no meio de

    grande exaltao de contentamento pelo regresso, depois decalcorreado meio mundo. Trazia mesmo consigo uma pequenacompanhia de saltimbancos aperaltados, que alojou nas lojas.

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    Agarrou-se a Cosme com efuso e, antes que algum o pudesse admoestar, encarou Frei Boaventura com ar grave, desobrolho erguido.

    - Venho muito zangado convosco, Senhor Frade. Nodeveis ter deixado partir meu irmo para to longe, no precrioestado de sade em que se encontra, sem que, pelo menos, oacompanhsseis.

    - E achais, Senhor Jos de Castro, que estou em condiesde impor o que quer que seja a vosso irmo. Duvido mesmo quevs o consegusseis. Anunciou-me que partiria e no admitiu

    rplicas, como seria de esperar. Se achais que ainda sereis capazde o demover, mais no tendes do que ir-lhe no encalo. Debalde,penso, todavia.

    parte os astutos trocadilhos, claro ficava, por enquanto,que Jos de Castro aderia farsa. Com que inteno, ficava porsaber. Mas tinha que ser apartado do frade, os dois bem longe umdo outro, seno a coisa ia dar em guerra permanente.

    Cosme reuniu-se s com o tio ao cair da noite na biblioteca.

    Jos de Castro no deixava transparecer tenso ou expectativa,apresentava-se com o seu jovial encanto, afvel e efusivo. Todavia,depois de ouvir em silncio as primeiras palavras do sobrinho, oolhar carregou-se-lhe daquele brilho metlico impenetrvel quecausava calafrios no mais temerrio dos interlocutores.

    O jovem, de pois de acomodados, Jos na velha cadeira deseu irmo e Cosme sua frente, desfrechou.

    - Meu tio, muito vos incomodava, como a outros, o

    suspeitardes que andava pela vida ao desvario, sem que mepreparasse para a contingncia, mais tarde ou mais cedo eminente,de ter que substituir meu pai, ningum saberia bem em qu, senoele e vs, porventura. Fico ainda a suspeitar que os episdios que

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    me impeliram para Lisboa no momento derradeiro da partida demeu pai foram programados mais por vs do que por ele e que,mais do que ningum, sois quem mais se interroga sobre o que

    farei de seguida.E terei que vos comunicar que, quaisquer que tenham sidoos planos, de meu pai ou de meu tio, sobre o curso das conjurasque tinham em curso, ficam por mim suspensos porque no osconhecia. E se, como penso, posso em esquema intu-los, vouimediatamente dispor de tudo e de todos para que sejamdesmantelados, pois no adiro e tenho os meus prprios. E creioque, nos derradeiros momentos de meu pai, afectado peladescrena, no foram outros os seus planos.

    A rede ser desmantelada. Partireis em breve, recolhereis asimpresses em curso que andam por a, nomeadamente o baralhointeiro do Tarot, que me entregareis em Salamanca em trs meses.Por aqui, fica Frei Boaventura com o encargo da administrao dacasa de Lisboa. Vs mantereis todas a prerrogativas e recursos quetendes tido.

    Eu parto dentro de trs dias para Salamanca e contodesposar Raquel, se for esse tambm o seu desgnio. As novasconjuras, quaisquer que sejam, ficaro por l sediadas.

    - Ora... rapaz. E onde foste tu inventar tanta conjura, tantosmeandros tenebrosos para poderes atribuir qualquer obscurosentido a tudo o que se tem precipitado na tua vida sem nexo, queno mais do que o resultado seno disso, da falta de nexo e desentido com que deixasses que flusse o teu destino? E porque metens que atribuir a mim, ou a teu pai, o nexo ou o sentido quedeixaste que faltasse na tua vida? Ou pensas tu que exista nexo, ousentido, na vida de quem quer que seja? No existe, nem tem que

    existir, seno na tua, porque o nexo que procuras no existe senoem ti e jamais na tua vida. Irs desposar Raquel. Pergunta-lhe quenexo encontraria ela na sua desgraada vida, desde que encontrouseu pai dependurado pelo pescoo de uma corda?

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    - Existe pelo menos um. que a falta de nexo, ou o nexoou sentido que procuro para a minha vida, tem a mesma raiz que a

    falta de nexo que se precipitou na vida de Raquel.Todavia, se de facto entre vs, meu Tio, e meu pai e todosaqueles que reunistes, nunca correu qualquer conjura e se faltavaqualquer nexo vossa aco concertada, passar a haver uma e soueu quem a decreta. E mais no ser do que desmantelar a conjura eo concerto em que vos envolvestes, mesmo que a tenha euinventado. E passa a ter nexo e sentido, a minha vida, que o de onegar e desmantelar.

    Mas se h algum, para alm de meu pai, que soubesse de

    que conjura falo, sois vs. Eu no sei, mas intu. E esperaremosento trs meses, para que me visiteis em Salamanca desobrigadodo encargo com que vos carreguei. Ento se falar com maisdetalhes de conjuras. E de esconjuras.

    - Ora, meu sobrinho, muito me contraria o nexo ou osentido com que queres agora carregar a minha vida e destino, queeram to bons assim, sem nexo, ao desvario pelos caminhos. Noserei eu todavia quem te haver de contrariar. Far-se- como

    ordenares. Mas no venhas, depois de a desmantelares eesconjurares, atribuir conjura do teu pai, real ou de tua inveno,qualquer nexo ou sentido, ou a falta deles, que queiras dar ao restoda tua vida.

    Mas tenho ainda que te dizer uma coisa, para que novenhas um dia alegar que no te adverti. O maior mistrio queenvolve a tua vida fica ainda muito afastado do teu alcance. Masmorou sempre ao teu lado. No sei se virs um dia a saber quemfoi, em verdade, Simo de Castro.

    - Pois, meu tio, bem possvel que no venha jamais asaber quem foi, em verdade, Simo de Castro, nem mesmo Jos de

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    Castro. Mas interpelei-vos uma vez j sobre a matria e interpelo-tede novo. O que , ou era, ou foi a quarta pgina?

    - Foi, e sempre ser o verso do segundo flio, so daspoucas coisas que no mudam, as acepes universais e imediatasdos significados do lxico. O que pode variar o volume, o tomo,o caderno, de que uma dada pgina a quarta. Mas isto, nem necessrio ter andado a estudos por Coimbra ou Salamanca, parasab-lo. Mais valia que me dissesses tu, a quarta pgina de qu?

    - Ora... isso dir-me-eis vs um dia, estou certo. E qual era adisputa, ouproelium, que corria entre meu pai e Dom Jernimo?

    - Ah... isso... Acerca dessa matria, para l dos dois, s umsujeito sabia...

    - Deixai-me adivinhar. Dom Francisco Canete?

    - Dom Francisco Canete, nem mais.

    Jos de Castro levantou-se, dera o colquio por concludo e

    mostrava um enorme cansao. Dirigiu-se para a porta, despedindo-se com uma cortesia que contrastava com as efuses de afecto comque se apresentara. Ao sair, virou-se encarando Cosme e disse entredentes, com ar sinistro.

    - Com que ento... a quarta pgina...

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    A filha do enforcado

    Cosme chegou a Salamanca na madrugada da Sexta Feirada Paixo do Senhor, aps ter reproduzido no regresso o itinerrioque levara, recolhendo os criados e bagagens que ainda esperavamnas estncias em que ficaram.

    Reuniu-se logo pela manh com Miguel, que encarregou deconcertar com Raquel uma entrevista depois do almoo. Entretanto

    ps o amanuense, esquematicamente, ao corrente do que ocorreranas ltimas semanas e do que congeminara acerca do que deveriaocorrer a partir de ento.

    Miguel escutou-o, primeiro incrdulo e atnito, depoisdando mostras de sincera inquietao. No perdeu todavia, durantetodo o colquio, o seu bem administrado e reservado humor. Masquando Cosme lhe comunicou que tencionava desposar Raquel,no conseguiu inibir um divertido entusiasmo pueril.

    - Promissrio matrimnio, entre uma surda e muda e umandarilho com o diabo no corpo.

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    Deixou escapar. Cosme riu-se, para desanuviar a perturbao que o inadvertido arrojo causara visivelmente nointerlocutor, que levou a mo boca, desculpando-se.

    Raquel apresentou-se vestida de negro, o que Cosmeinterpretou como simplesmente adequado conjuntura litrgica.Raquel causara um profundo abalo sentimental em Cosme, desde oseu fortuito colquio nas vsperas da partida para Lisboa. Invadira-lhe a alma. Levava escrita uma breve e concisa missiva de duasfolhas, em que lhe comunicava o sucedido depois que partira e lheexpunha atabalhoadamente a sua paixo.

    Raquel leu demoradamente, reiniciando repetidas vezes,como se procurasse nexo para as matrias que Cosme lhe

    comunicava. Ficou depois durante vrios minutos com olharinexpressivo a fitar Cosme, inspeccionando-o com os olhos verdescomo se foram lagos de guas imperturbveis.

    Subitamente atirou-se ao pescoo de Cosme que enlaoudesesperadamente com os braos. Ria e chorava em simultneo.Cosme sentiu as lgrimas a escorrerem-lhe pelo peito, inundando-o.

    Depois tomou uma folha de papel e escreveu:Tu e no eu s o filho do enforcado. Algum me escolheu

    para carregar com a tua desgraa. O enforcado era Simo deCastro. O meu pai, que tomaste como teu, algum o escolheu paracarregar com o destino suspenso de Simo. No te posso garantirse foi o frade, ou o teu tio.

    Antes de te conhecer, j te amava. No sei porqu. Masreconheci-te logo que apareceste cabeceira de Dom Jernimo,mesmo antes de te apresentares.

    Tem muita graa. Agora, foste tu quem se recusou asepultar teu pai, ou o seu espectro, que morreu todavia h quase

    vinte anos.Raquel entregou a folha a Cosme, esperou que terminasse aleitura, incrdulo, e disse:

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    - Agora podemos coloquiar de viva voz e ser a nica eltima vez, porque prometi a meu pai que jamais o faria, fosse comquem fosse, ou em que circunstncia.

    No sou surda nem muda.Marta foi a nica que nunca aderiu farsa, Dom Jernimoaderiu talvez forado, vivia mutilado entre a lealdade a Marta e alealdade a quem quer que fosse Simo de Castro. No sei quem oSimo de Castro que esteve por detrs de todo este plano, duranteestes anos, desde que morreu teu pai. Talvez teu tio.

    Meu pai era apenas a mscara de algum.Jamais revelars, se fores leal para comigo, o que te revelo.

    Continuaremos tudo como estava, eu sou a filha do enforcado,

    surda e muda, tu o filho de Simo de Castro, que anda por a deviagem. Serei tua mulher, no s porque te amo, mas porque, podes ter a certeza, algum disps de tudo para que assimacontecesse.

    No te revelarei mais nada. Ter tu que decifrar o teudestino. Tenho medo. No por mim, porque o meu destino esttraado. Por ti, que ters ainda que decifrar o teu.

    - Revela-me s mais uma coisa, rogo-te, por amor de teu

    pai e do meu. Quem era, no meio desta tenebrosa histria, DomFrancisco Canete?

    - Dom Francisco Canete... Dom Francisco Canete... Era tos a razo de teu pai se enforcar. Dom Francisco Canete foi to sa causa primeira de um plano, ou de uma conjura, a que nuncaaderiu e que teu pai quis num dado momento desmantelar sem oconseguir. Por isso se enforcou.

    tudo, agora sou de novo surda e muda.

    Cosme ficou absorto em pensamentos durante quase meiahora, silencioso, meditando. Depois perguntou.

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    - Tu falaste comigo, ou terei eu imaginado?

    Raquel no respondeu. Cosme tresladou a interpelao para

    mmica.Raquel no respondeu, de novo. Ficou simplesmente a fita-lo incrdula e surpreendida, como se no desvendasse a quematria se referia.

    Depois, tomou a folha que suportara o incio do colquio,foi ao fogo e pegou-lhe o fogo. Foi ento para Cosme, sentou-senuma cadeira sua frente, tomou-lhe as mos e repousou o rostoencharcado de lgrimas entre elas. Profundos soluos percorriam oseu corpo, como espasmos.

    Nunca mais disse e, porventura, ouviu uma palavra.Durante um ms Cosme preparou Raquel e Miguel para, emconcerto, administrarem autonomamente a filial de Salamanca,onde passariam a sediar-se todos os empreendimentos editoriais ecomerciais da casa Simo de Castro, incluindo os de Lisboa.Miguel visitaria regularmente Frei Boaventura para coordenar asduas filiais.

    Raquel surpreendeu Cosme com uma vasta erudio econhecimento profundo do mundo editorial e livreiro. Os dois

    juntos, ela e Miguel, garantiam uma administrao e orientaoeficaz e ponderada.Ficava Cosme livre para viajar e calcorrear o mundo, em

    demanda dos fios soltos da teia, ou vu, que Simo de Castrotecera.

    No fim do ms celebrou formalmente o matrimnio comRaquel, discretamente, numa parquia perifrica.

    Restavam-lhe dois meses at que seu tio lhe aparecesse emSalamanca, como haviam concertado, ou, pelo menos, para saber

    se viria.Entretanto lera com ateno, entre linhas e fora delas, oitinerrio das suas fictcias viagens.

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    Ora, Dom Francisco Canete jamais publicara sequer umapgina, mas possua para publicar algo que Simo de Castro, ou oseu espectro, sempre impedira que sasse a lume. Havia algures em

    Coimbra um livreiro para encontrar.Foi por Coimbra que Cosme iniciou o seu novo itinerrio,agora j sem o encrrego de seu pai, mas por sua prpria conta.Levou trs dias a cobrir a distncia entre Salamanca e Coimbra,desafogado de bagagens, com um criado que viajaria regularmentea trazer e a levar os recados e novidades.

    Realojou