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Estudos de Psicologia 2006, 11(1), 71-78

Paradigmas do desenvolvimento cognitivo: uma breve retrospectiva

Suely de Melo SantanaUniversidade Católica de Pernambuco

Antonio RoazziMaria das Graças B. B. DiasUniversidade Federal de Pernambuco

ResumoA cognição humana tem sido foco de diversas investigações no campo da psicologia do desenvolvimento,buscando-se construir um referencial teórico-empírico para orientar estudos e intervenções nesta direção. Odebate tem se situado em torno de grandes paradigmas – piagetiano, neopiagetiano, processamento informacional,contextual e biológico-maturacional/neurociência cognitiva, sendo considerados, por vezes, enquanto referencialabsoluto de verdade, e percebidos como excludentes entre si. O objetivo deste trabalho consiste em realizaruma breve retrospectiva dessas vertentes teóricas, buscando identificar pontos de interlocução entre elas, natentativa de apreendê-las enquanto um corpo de conhecimentos que se complementam e integram váriosolhares sobre a mente humana.

Palavras-chave: desenvolvimento cognitivo; cognição humana; paradigmas

AbstractParadigms of cognitive development: a brief retrospect. The human cognition has been focused by diverseinquiries in the field of the development psychology, searching to construct a theoretician-empiricist referentialto guide studies and interventions in this direction. The debate has been situated around great paradigms –Piagetian, Neopiagetian, informational and contextual processing and cognitive biological-maturational/neuroscience, being considered, sometimes, as an absolute referential of truth, and perceived as excludentsamong them. The objective of this work consists in carrying through a brief retrospect of these theoreticalsources, searching to identify interlocution points between them, in the attempt to apprehend them while abody of knowledge that can complement and integrate some views about human mind.

Keywords: cognitive development; human cognition; paradigms

A integração de saberes advindos da biologia, da neu-rologia, da física e da matemática, ao longo da histó-ria da psicologia, tem em muito contribuído para des-

vendar a complexidade, riqueza e sutileza do funcionamentohumano. O percurso histórico das concepções sobre a men-te, contribuiu para o incremento das investigações no cam-po da psicologia do desenvolvimento, principalmente a par-tir do século XX, quando os estudos sobre a cognição eseus processos passaram a receber um enfoque diferencia-do, resultando num avanço dos conhecimentos na área dacognição humana.

Desenvolvimento cognitivoAs teorias que investigam a natureza e o desenvolvi-

mento cognitivo humano podem ser especificadas, segundoFlavell, Miller e Miller (1999), em quatro principais aborda-gens, a saber: o paradigma piagetiano; a perspectivaneopiagetiana; a abordagem do processamento de informa-

ções e o paradigma contextual. Ademais, outras duas aborda-gens começam a ser referenciadas nesta área: a biológico-maturacional e a abordagem do conhecimento baseado emteorias.

O paradigma piagetianoEste paradigma destaca-se, sobretudo, pela influência

marcante que exerceu sobre a psicologia do desenvolvimen-to, sendo um dos mais representativos e mais abrangentesnesta área. Até o final dos anos 70, Piaget dedicou-se aoaprofundamento das teses epistemológicas e a ampliação dapsicologia genética no tocante aos aspectos dinâmicos dopensamento e, posteriormente, passou a enfatizar o estudoempírico do funcionamento cognitivo e seu papel fundamen-tal enquanto propulsor do desenvolvimento, fazendo comque o construtivismo fosse o melhor definidor de sua obranesse período (Coll & Gillièron, 1987). Ele direcionou suasinvestigações para o desenvolvimento qualitativo das estru-

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turas intelectuais através de uma análise ontogenética quefavoreceu a compreensão do comportamento humano adultoa partir de uma perspectiva evolutiva (Flavell, 1988).

A inteligência, na concepção piagetiana, organiza-seatravés de estruturas que atuam como mediadoras entre asfunções invariantes e os diversos conteúdoscomportamentais. Estes últimos variam de acordo com a ida-de e são caracterizados pelos dados comportamentais bru-tos, enquanto que as funções definem a própria essência, ascaracterísticas amplas da atividade inteligente, e que nãovariam em função da idade. Os invariantes funcionais bási-cos são, por conseguinte, a organização e a adaptação –que se compõe dos processos inter-relacionados de assi-milação e acomodação. Sendo assim, “a atividade inteli-gente é sempre um processo ativo e organizado de assimila-ção do novo ao velho e de acomodação do velho ao novo”(Flavell, 1988, p. 17). Em outras palavras, pode-se dizer que“assim como os objetos precisam ajustar-se à estrutura pe-culiar do organismo em qualquer processo adaptativo (assi-milação), o organismo também precisa ajustar-se às exigên-cias idiossincráticas do objeto (acomodação)” (p. 45).

A relação existente entre formação de pensamento e aqui-sição da linguagem, na visão piagetiana, configura-se de ca-ráter apenas correlacional, sendo o pensamento constituídopor um processo bem mais amplo que remete ao desenvolvi-mento da função simbólica. Desse modo, na concepçãopiagetiana, defende-se que a maneira como a criança faz usoda linguagem, exprime o tipo de lógica que caracteriza seupensamento. Afora isso, advoga-se também que a linguagemda criança preenche outras funções além da comunicação,observando, por exemplo, que durante seu desenvolvimen-to, a linguagem pode ser duplamente categorizada, ou seja,ela pode ser apreendida enquanto uma linguagemegocêntrica ou enquanto uma linguagem socializada (Flavell,1988). Nesta concepção, existe uma lógica das ações que pre-cede a aquisição da linguagem e que se encontra numa fasepré-verbal, anterior ao desenvolvimento da função semiótica,contrariando a tendência do empirismo lógico de vincular agênese de todas as operações intelectuais à linguagem, atra-vés da tentativa de explicar o caráter operativo da lógicaenquanto circunscrito aos aspectos sintático, semântico epragmático da mesma. Assim, Piaget (1973) postula a dife-renciação entre linguagem e lógica, alegando que, apesarda linguagem ser um importante instrumento, uma ferramen-ta expressiva do conhecimento, ela não é suficiente para aformação das estruturas operatórias, principalmente dasestruturas lógico-matemáticas. Em sua concepção, existe umsujeito prévio, epistêmico, capaz de organizar suas açõessensório-motoras, fazer inferências práticas a partir de seuconhecimento de mundo.

Os esquemas, já no período sensório-motor (aproxima-damente de 0 a 2 anos de idade), diferenciam-se das açõespelo fato de conservarem uma certa organização interna cadavez que aparecem, constituindo-se em uma unidade básicado funcionamento cognitivo e no ingrediente elementar detodas as formas de pensamento. Assim, inicialmente, o bebê

desenvolveria esquemas reflexos, que se configuram emações espontâneas e automáticas diante de certos estímu-los, tais como esquema de sugar, esquema de preensão, etc.Paulatinamente, esses esquemas vão sendo submetidos aum processo de diferenciação que conduz à construção deesquemas de ação que, ao se coordenarem, favorecem aconstrução de novos esquemas. Por volta dos 2 anos deidade, esses esquemas de ação, devido ao surgimento dafunção simbólica, convertem-se em esquemas representati-vos, ou seja, em esquema de ação interiorizado (Coll &Gillièron, 1987).

De acordo com Piaget (1973), os esquemas seriam umaespécie de conceitos práticos, decorrentes de algogeneralizável a partir de uma dada ação. Estes esquemas es-boçariam o início das estruturas de classes e de relações,que, ao generalizarem-se, permitiriam à criança realizar umaespécie de classificação. Estabelecidas essas classes, obser-va-se, por um lado, uma compreensão – das qualidades quefundamentam a generalização – e, por outro, uma extensão –que consiste no conjunto de situações a que se aplicam. Con-tudo, essa extensão encontra-se limitada ao comportamentoobservado, uma vez que a criança carece de uma função sim-bólica que lhe permita representá-la. Vários tipos de relaçõesestão envolvidos nos esquemas, que, tomando-se o caso daatividade de empilhar cubos de diversos tamanhos, resultari-am numa forma de seriações sensório-motoras. Desse modo,a coordenação de esquemas variados, conduziria a inferênciaspráticas que comportariam, posteriormente, as noções deconservação e reversibilidade operatória.

Em seu desenvolvimento, a criança constrói vários e di-ferenciados esquemas que tendem a formar combinações,dando origem às estruturas cognitivas, que traduzem umaforma particular de equilíbrio na interação do indivíduo como ambiente. Na perspectiva piagetiana, a linguagem apenasfavorece a interiorização das ações quando as estruturas jáestão elaboradas, possibilitando a assimilação de informa-ções verbais que estejam consoantes com o nível de elabora-ção das mesmas. As crianças em idade pré-escolar, nesta con-cepção, ainda não conseguem fazer a distinção entre estadosmentais e físicos, assim como também apresentam dificulda-des outras que remetem à questão do egocentrismo, uma vezque a criança pequena percebe-se como centro do universo,“pois ela não tem consciência de que as outras vêem as coi-sas de modo diferente, isto é, que seu ponto de vista é ape-nas um entre muitos outros” (Flavell, 1988, p. 278).

A linguagem, em seu desenvolvimento, nivela-se ao jogosimbólico, à imitação diferida e à imagem mental enquantoimitação interiorizada. Consoante com os pressupostos deWallon, Piaget (1973) concebe que a imitação garante a tran-sição das condutas sensório-motoras para as condutas sim-bólicas ou representativas, uma vez que sua diferenciação einteriorização permitem a distinção entre significantes e sig-nificados. Essa acepção vincula-se diretamente ao desenvol-vimento da função simbólica, a qual favorece o aparecimentoda representação simbólica (símbolo) e da representaçãoconceitual (signo). Piaget (1978) situa os primórdios desse

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desenvolvimento no índice sensório-motor – que consisteapenas em uma parcela ou aspecto do objeto que permiteantecipá-lo sem representação mental, simplesmente por meiode uma ativação do esquema interessado. A presença desseíndice, por exemplo, encontra-se no fato de que a “criança deoito a nove meses já saberá reencontrar um brinquedo debai-xo de uma coberta qualquer, quando a forma estufada destaserve de indício à presença do objetivo” (p. 129). De formadiferente, no entanto, Piaget salienta a distinção em relaçãoao símbolo, que já consiste numa representação, uma vezque repousa numa semelhança entre o objeto presente(significante) e o objeto ausente (significado), visto que umasituação passada é mentalmente evocada. Observa-se, noentanto, que existe a necessidade, nessa representação sim-bólica, de uma correspondência com o significado, fazendocom que o símbolo seja caracteristicamente motivado, o quejá o distingue substancialmente do signo, cujo caráter pri-mordial reside na arbitrariedade e na pressuposição de umarelação social que o legitime.

Essa conquista assegura o estabelecimento da funçãosimbólica que subsidia o pensamento representativo, umavez que permite o envolvimento simultâneo de eventos iso-lados, de forma a promover uma síntese interna e única. Emoutras palavras, possibilita à criança evocar o passado, re-presentar o presente e antecipar o futuro, por meio de umato organizado e temporalmente curto (Flavell, 1988). Com afunção simbólica, há uma diferenciação dos esquemas deação em esquemas representativos. “A possibilidade deexecutar uma série de ações organizadas se enriquece com apossibilidade de se imaginar e de executar tais ações atra-vés de representações” (Coll & Gillièron, 1987, p. 39). Naconcepção piagetiana “a função simbólica é uma aquisiçãomuito geral e básica que torna possível a aquisição de sím-bolos privados e de signos sociais” (Flavell, 1988, p. 157).As operações consistem em sistemas relativamente com-plexos que estão aquém e além da linguagem, mas, no en-tanto, com relação às operações proposicionais que se de-senvolvem entre 11 e 15 anos de idade, há uma maior depen-dência da linguagem, já que se encontram mais relacionadasà comunicação verbal e, deste modo, seria difícil concebê-las sem o uso da linguagem (Piaget, 1973). Durante esseperíodo, observa-se que as operações se desvinculam pau-latinamente do plano concreto, favorecendo o surgimentodo raciocínio hipotético-dedutivo, cuja utilização permiteao indivíduo “agrupar representações de representaçõesem estruturas equilibradas” (Coll & Gillièron, 1987, p. 41).Em outros termos, essa aquisição viabiliza ao adolescentepensar sobre o próprio pensar, evidenciando assim, a con-quista de uma habilidade metacognitiva.

Foi justamente na tentativa de ratificar experimental-mente as postulações piagetianas que os pesquisadorescomeçaram a identificar algumas inconsistências que tenta-ram suprir através de conhecimentos advindos de outrasperspectivas teóricas. Assim, surge um novo referencial te-órico, representado pela perspectiva neopiagetiana, queabordaremos a seguir.

A perspectiva neopiagetianaEsta abordagem, de acordo com Flavell et al. (1999), res-

gata como paradigma básico a concepção estruturalistapiagetiana, estabelecendo, no entanto, uma recorrência aoutros paradigmas para preencher as lacunas evidenciadasna teoria, que, em linhas gerais, são expressas através davariabilidade do comportamento em função do contexto soci-al, do tipo de tarefa, dos materiais e das instruções fornecidasàs crianças. Sendo assim, a linguagem, na concepção dosteóricos pós-piagetianos (e.g., Astington, 2000; Flavell et al.,1999; Karmilloff-Smith, 1986; Olson, 1988), assume um papelbem mais preponderante na formação do pensamento do queo admitido na perspectiva piagetiana. Atribui-se a variabili-dade a uma inconsistência observada na prática, quando cri-anças que deveriam apresentar as características de um de-terminado estágio não o fazem (por exemplo, deveriam con-servar, mas não conservam; estão no período operatório-for-mal, mas demonstram um pensamento tipicamente operató-rio-concreto). De um modo mais específico, as divergênciaspostas entre o pensamento piagetiano e os pós-piagetianos,residem em torno de quatro pontos básicos: noção de estru-tura, mudanças qualitativas, passagens abruptas e coinci-dências (Flavell et al., 1999).

Quanto à noção piagetiana de estrutura enquanto umconjunto unificado de conhecimento ou habilidadescognitivas, os teóricos neopiagetianos tendem a considerá-la, sendo contrários, no entanto, à concepção de que estasestruturas operatórias têm um tipo definido e específico deorganização, que obedece a modelos lógico-matemáticos quedefinem como a cognição estrutura-se nos estágios operató-rios, concreto e formal. Esta contraposição respalda-se nofato desses modelos serem, por vezes, inconsistentes en-quanto descrições teóricas dos processos mentais funda-mentais. No tocante às mudanças de um estágio a outro, nãose demonstram tão qualitativas nem tão abruptas quanto aconcepção piagetiana fazia acreditar, sendo as mudanças maisgraduais, importantes e extensas no tempo, assim como me-nos coincidentes do que seria de se esperar para uma carac-terização de estágio. Alega-se, conforme citam Flavell et al.(1999), que a estabilidade que deveria suportar um estágio,na verdade, traduz-se num processo de mudança e transiçãocontínuos, fazendo com que essa perda de previsibilidadereduza o valor científico do conceito de estágios, já que seriade se esperar que as competências advindas de um mesmolocus cognitivo emergissem mais ou menos ao mesmo tempono desenvolvimento.

Isto posto, a perspectiva neopiagetiana busca suprir asincompletudes evidenciadas na teoria piagetiana através deoutras abordagens, especialmente pelos processos de mu-dança providos pelo processamento de informação, uma vezque os conceitos são expressos mediante os processos dememória, atenção e estratégias em determinado ambiente, e alimitação da memória de curto prazo dificulta a expressividadedos mesmos. Flavell et al. (1999) comentam que a teoria deCase (1985, 1992) acerca da mudança cognitiva é consideradabem representativa dessa abordagem, enfatizando que:

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o desenvolvimento cognitivo é uma seqüência de procedimen-tos cada vez mais poderosos para a solução de problemas,juntamente com um conjunto cada vez mais eficiente de estru-turas conceituais de conhecimento. Em uma tentativa de al-cançar seus objetivos e subobjetivos, as crianças constróemnovas estratégias ou empregam estratégias preexistentes ade-quadas. (Flavell et al., 1999, p. 18)

Esta constatação encontra ressonância nas considera-ções tecidas por Karmilloff-Smith (1986), no tocante ao pro-cesso de mudança pelo qual passam as representações inter-nas das crianças. Na concepção desta autora, a consciênciametalingüística exerce um papel essencial no desenvolvimentoem geral, e o processo representacional sofre mudanças atra-vés de níveis de explicitação progressivos. Em linhas gerais,a transformação do conhecimento ocorreria, contrariamenteà concepção piagetiana de desequilíbrio adaptativo, atravésda estabilidade, do equilíbrio. Assim, teria início a partir deum nível implícito – em que não se tem acesso consciente enão se encontra definido representacionalmente –, passandopara um nível de explicitação primária – que envolve umaredescrição do código anterior –, que pode ser operado inter-namente, sem, contudo, ser diretamente acessível à consci-ência. Transpondo a dicotomia usual do implícito/explícito,ela defende a existência de um nível de explicitação secun-dária – no qual há uma segunda redescrição deste códigorepresentacional –, agora com acesso consciente, que evoluipara um nível de explicitação terciária – no qual a múltiplarepresentação do mesmo conhecimento em diferentes códi-gos torna-se explicitamente ligada por um código comum,abstrato, propiciando ao sistema cognitivo humano uma gran-de flexibilidade. Sendo assim, diferentemente da perspectivapiagetiana, os neopiagetianos “abordam a especificidade dodomínio das habilidades cognitivas e dos aumentosevolutivos da capacidade mental” (Flavell et al., 1999, p. 24).

Considerando-se que as reflexões demandadas pelos es-tudos neopiagetianos foram marcadas pelas novasconceitualizações advindas da perspectiva do processamentode informações, apresenta-se, a seguir, esta outra abordagem.

A abordagem do processamento de informaçãoEsta abordagem surgiu com o advento tecnológico após

a Segunda Guerra Mundial e como uma contraposição aoparadigma behaviorista. As descobertas neste âmbito pro-moveram uma revolução em diversas áreas de conhecimen-to, sendo particularmente influentes no campo da psicolo-gia do desenvolvimento. Trouxeram um novo referencialpara o estudo dos processos mentais, elucidando uma aná-lise minuciosa e detalhada do desenvolvimento cognitivo.De acordo com Carvalho (1998), o físico e matemático A.Newell e o economista H. A. Simon, representantes desseparadigma computacional, defendiam que qualquer máqui-na capaz de processar símbolos poderia simular também osprocessos mentais. Nesta abordagem, a inteligência era con-siderada enquanto um processo de busca, por meio de es-tratégias heurísticas cada vez mais eficientes, para resolu-ção de problemas.

Este novo paradigma, caracteristicamente simbolista econexionista, concebe a mente enquanto um sistema comple-xo de caráter lógico e não físico, buscando legitimar-se pormeio de uma analogia estabelecida entre a mente humana e ocomputador (Carvalho, 1998). Utilizando-se desta metáforacomputacional para simular os processos mentais, esta abor-dagem considera que a mente humana apreende uma infor-mação, faz sua conversão para uma representação mental,atribuindo-lhe um significado através da comparação comoutras informações anteriormente processadas e, por fim, aconserva armazenada na memória (Flavell et al., 1999).

As informações processadas variam quanto à natureza,ao tamanho e aos níveis de complexidade. Existem informa-ções do tipo declarativas, que remetem ao sentido das pala-vras e fatos, e informações procedimentais, que esclarecem aforma de operacionalização para a resolução do problema. Asinformações podem se organizar em unidades pequenas eelementares ou, ainda, como um todo organizado em um nívelmais abstrato, composto por várias unidades elementares,tais como scripts de eventos (festa de aniversário, de casa-mento, etc.) e planificação de estratégia para a resolução deproblema (Flavell et al., 1999). A mudança cognitiva, nestaperspectiva, seria impulsionada pela automatização dos pro-cessos mentais, definida por Siegler (1991) como uma pro-gressiva e eficiente execução de procedimentos que promo-ve a liberação de recursos mentais para outras finalidades.Esta eficiência seria alcançada em decorrência da prática eaprimoramento das estratégias. Outros elementosimpulsionadores do desenvolvimento seriam o aumento navelocidade e a ampliação da capacidade de processamento.Modelar o processamento cognitivo em tempo real, de ma-neira tão precisa, explícita e detalhada, que seja viável acio-nar o modelo como um programa de computador, além depoder realizar previsões específicas sobre o comportamentode uma criança e de um computador, por exemplo, submeti-dos a uma determinada tarefa em condições específicas, con-siste na meta mais idealizada e desejada desta abordagem(Flavell et al., 1999).

Contudo, existem limitações, até o momento, queinviabilizam esse objetivo e que são provenientes do quanti-tativo de informações que o sistema consegue simultanea-mente processar, assim como das operações cognitivas (taiscomo codificar, comparar e recuperar informações da memó-ria) que, em geral, requerem tempo e são realizadas de formaserial. Estas limitações citadas fazem com que a realização deapenas uma tarefa possa acarretar numa sobrecarga do siste-ma, por requerer uma quantidade de procedimentos que exce-dam a sua capacidade (Flavell et al., 1999). Afora estas, umaoutra limitação, como já mencionada inicialmente, remete àconsideração de que a perspectiva de trazer a mente de voltaàs ciências humanas, advogada inicialmente pela revoluçãocognitiva, foi substituída por uma ênfase acentuada nos pro-cessos de informação, negligenciando-se assim, a descober-ta e descrição formal dos processos de produção de signifi-cados que emergem da interação entre os seres humanos e omundo (Bruner, 1997). Ademais, e talvez, a mais complexa de

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todas as limitações, seja a questão singular da consciênciaou, em outras palavras, o fato da mente humana, não apenasrealizar tarefas, mas primordialmente ter a capacidade devivenciá-las, de experimentar a consciência de seus proces-sos. Talvez, como salienta Carvalho (1998), a consciência sejaum princípio fundamental irredutível, da mesma maneira quea carga elétrica, o espaço e o tempo.

As considerações relativas à questão da construção designificados e da consciência, negligenciadas pela aborda-gem do processamento de informações são, de uma maneirabastante diferenciada, valorizadas enquanto foco essencialde interesse dentro do paradigma contextual, que será abor-dado a seguir.

O paradigma contextualEste paradigma representa uma nova e importante fron-

teira na ciência psicológica, devido ao forte papel atribuídoàs interações no ambiente social enquanto propulsoras dodesenvolvimento cognitivo. Aqui, toda psiquê humana cons-titui-se a partir do coletivo (percorrendo um caminho que vaido exógeno para o endógeno), sendo substancialmente dis-tinta das concepções anteriores em que se advoga uma cons-tituição intrinsecamente individual e interna, delegando-seao contexto social, no máximo, a função de facilitar ou dificul-tar o desenvolvimento. O marco referencial dessa perspecti-va sócio-interacionista vem principalmente dos trabalhos deLev Semenovich Vygotsky, revolucionário marxista que ado-tou como referencial o materialismo dialético, desenvolven-do suas pesquisas ao longo de 10 anos em parceria comAlexander Romanovich Luria, Alexei Nikolaevich Leontiev eLeonid Solomonovich Sakharov. Devido a sua morte prema-tura, muitas de suas idéias não chegaram a ser concluídas(Vygotsky, 1993).

Na concepção vygotskyana, o estudo da consciênciaconfigura-se de primordial importância para a ciência da psi-cologia. Sua veemente oposição às duas correntes de pensa-mento dominantes na psicologia da época – a mecanicista e aidealista –, apoiava-se, por um lado, na desconsideração daconsciência enquanto objeto de estudo da psicologia – evi-denciada pelo behaviorismo – e, por outro, na abordagem àconsciência sob os caminhos da introspecção, consideran-do-a enquanto fenômeno mental puramente subjetivo e ex-clusivamente interno. Assim, contrapondo-se à análiseatomística e funcional da consciência, na qual os processospsíquicos eram investigados de maneira isolada, ele adotavauma perspectiva monista-holística (sistêmica), de que o de-senvolvimento psíquico deveria ser estudado por meio dossistemas psicológicos que integram a estrutura interfuncionalda consciência (Leóntiev, 1999).

A gênese da consciência é atribuída, na concepçãovygotskyana, à internalização dos processos interativos es-tabelecidos no ambiente social. Esta internalização, por suavez, tem um caráter bastante dinâmico, não sendo caracteri-zada apenas como uma exata cópia interna das experiências(Wertsch, 1985). Ocorreria sim, por meio de uma reconstruçãoe resignificação dessa experiência, preservando, desta ma-

neira, a unicidade e singularidade de cada indivíduo que par-tilha daquela interação social. Em outras palavras, o proces-so de internalização da experiência atuaria traduzindo-a deum nível interpsicológico para um intrapsicológico (Reig &Gradolí, 1998). Então, a consciência, enquanto subjetividade,delineia-se a partir das relações interpessoais mediadas porferramentas – instrumentos materiais – e signos – instrumen-tos psicológicos (Rego, 1995), e por mediação social atravésdas atividades cooperativas entre os indivíduos (Alvarez &Del Rio, 1996).

A defesa de um método dialético que contemple o estu-do histórico dos processos de mudança, adotando uma aná-lise do processo, das relações dinâmico-causais explicativas,possibilitando reconstruir todos os pontos do processo até aorigem de uma certa estrutura, caracteriza o métodovygotskyano enquanto experimental-desenvolvimentista.Estando além da análise fenotípica que identifica apenas assemelhanças externas dos fenômenos psíquicos, este méto-do assegura a análise genotípica das funções psicológicassuperiores, focalizando seus processos de construção eoperacionalização, possibilitando abordar o desenvolvimen-to da criança em sua dialética complexidade (Vygotsky, 1998a).Afora a consideração histórica, este paradigma também pos-tula a importância de se contemplar na análise as dimensõestemporais (tempo filogenético, ontogenético, microgenéticoe tempo da história da humanidade), como caracteristicamen-te distintas e complementares (Lyra & Seidl de Moura, 2000;Wertsch, 1985).

Na análise das mudanças cognitivas, o conceito de zonade desenvolvimento proximal (ZDP) assume um papel funda-mental, que permite abordar o relacionamento existente entreo funcionamento intrapsicológico e interpsicológico. Estaapreensão favorece identificar a distância existente entre onível de desenvolvimento potencial e o nível de desenvolvi-mento atual da criança (Wertsch, 1985), caracterizando o pe-ríodo intermediário que precede a evolução dos processospsicológicos humanos. Em linhas gerais, a ZDP consiste emum momento transitório no qual a criança, potencialmentecapaz, consegue solucionar um determinado problema quan-do está em interação com outra criança mais evoluída ou comum adulto, mas ainda não consegue resolvê-lo por si mesma,sem a ajuda de terceiros (Flavell et al., 1999).

Além da dimensão social, a perspectiva vygotskyanaconsidera as dimensões cognitiva e afetiva enquanto consti-tuintes da consciência, vinculadas por meio de uma relaçãoindissociável de construção e reconstrução dinâmica ao lon-go de todo o processo de desenvolvimento. Esta considera-ção integrada entre cognição e afeto apresenta-se comomarcantemente distintiva com relação às demais teorias dodesenvolvimento cognitivo, uma vez que, partindo-se de umaanálise realizada por Vygotsky (1998b) sobre os estudosanatômicos, fisiológicos e psicológicos acerca da emoção,apesar de haver uma gradual e importante transferência davida emocional de um locus extra-cerebral para a área cerebrale de uma esfera orgânica para uma psíquica, as emoções con-tinuavam a ser consideradas de ordem inferior e isoladas de

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outros processos psíquicos considerados superiores. Asconcepções de que o fluxo de pensamentos não seria autô-nomo e desvinculado dos interesses e necessidades pesso-ais daquele indivíduo que pensa (Oliveira, 1992) e, ainda, queas emoções poderiam sofrer evolução e refinamento, trans-formando-se de maneira qualitativa de emoções primitivasinfantis a emoções superiores dos adultos (van der Ver &Valsiner, 1996) encontram respaldo na visão monista-holística,adotada por esta perspectiva.

Muitas das idéias germinadas no paradigma vygotskyanoforam resgatadas por várias teorias contextualistas mais con-temporâneas. Bruner (1997), por exemplo, investiga o locus daprodução de significados na ação humana, assim como suanatureza e modelagem cultural, por meio do estudo de narrati-vas que constituem a psicologia popular. Ele defende o esta-tuto canônico dessa psicologia, alegando que ela sintetiza tan-to o que as coisas são quanto o que deveriam ser. Dentrodessa concepção ele postula que “a psicologia popular tratade agentes humanos que fazem coisas com base em suas cren-ças e desejos, empenhando-se no atendimento a metas, en-contrando obstáculos que eles dominam ou que os dominam,tudo isso se estendendo ao longo do tempo” (p. 46).

A metáfora da criança enquanto aprendiz lastreia o pro-cesso de mudança cognitiva para os contextualistas. Rogoff(1990) salienta que esta posição permite à criança iniciantenão apenas acessar os aspectos explícitos da habilidade, mastambém o acesso aos processos internos mais ocultos dopensamento. Os adultos nesse processo atuariam comoincentivadores cognitivos na medida em que orientam e esti-mulam as crianças a desenvolverem todo seu potencial.

O paradigma vygotskyano também se configura comobastante contributivo, influenciando de maneira mais ou me-nos intensiva, os construtos teóricos elaborados em outrasáreas, como a da neurociência cognitiva.

A abordagem biológico-maturacional:neurociência cognitiva

A abordagem biológico-maturacional sustentada pelaneurociência cognitiva, apesar de apresentar algumasnuanças, enfatiza basicamente que o processo da mudançacognitiva ocorre devido à dotação genética e à maturaçãocerebral. Considera-se, por exemplo, que a maturação do lobofrontal influencia na noção de permanência de objeto(Diamond, 1991; citado por Flavell et al., 1999) e que a menteconstitui-se por módulos mentais inatos (Fodor, 1983; citadopor Flavell et al., 1999). Uma abordagem à consciência que seconfigura inovadora dentro desta área merece uma referêncianesse momento: a neurociência cognitiva.

Damásio (2000) traz mais uma importante contribuiçãopara os estudos da mente com o resgate da abordagem àconsciência, já priorizada nos estudos de Luria e Vygotsky.Ele afirma que a mente consciente é constituída em parte, porum sentido do self. A sua concepção de mente refere-se a umprocesso que abrange tanto operações conscientes quantoinconscientes. De acordo com sua concepção, na perspecti-va da neurobiologia, o problema da consciência consiste na

combinação de dois problemas inter-relacionados. O primei-ro diz respeito a entender como o cérebro humano engendraos padrões mentais denominados de imagens de um objeto e,o segundo, remete a como, paralelamente ao engendramentodesses padrões mentais, o cérebro também engendra um sen-tido do self no ato de conhecer. Este segundo problema indu-ziria à descoberta dos alicerces biológicos da capacidadehumana em construir tanto padrões mentais de objetos quan-to padrões mentais que transmitem o sentido de um self noato de conhecer.

A neurociência cognitiva tem contribuído no sentido deassociar, de maneira mais concreta, determinados comporta-mentos a marcadores específicos de estrutura ou atividadecerebral. As descobertas nesse campo têm contribuído para aidentificação da arquitetura neural que sustenta a consciên-cia, revelando a existência de uma relação entre alguns as-pectos dos processos da consciência e as operações de regi-ões e sistemas cerebrais específicos. Ainda, têm comprovadoque os estados de vigília e a atenção básica são distintos daconsciência e, também, que consciência e emoção são pro-cessos indissociáveis, visto que o comprometimento de umaafeta a outra, e vice-versa. Por fim, duas descobertas foramde especial importância, denotando que a consciência huma-na não é um monólito, podendo ser separada em tipo simplese complexo e que as funções cognitivas como linguagem,memória, razão, atenção e memória operacional, são necessá-rias, apenas, aos níveis superiores da consciência ampliada.

A necessidade da consciência reside no fato de que açõeseficazes requerem imagens eficazes, uma vez que estas per-mitem não apenas escolher a ação mais adequada e otimizarsua execução, mas, principalmente, porque permitem inven-tar novas ações apropriadas a situações inéditas e fazer pla-nos para ações futuras (grifos nossos). Desta forma, osurgimento da consciência prenuncia a antevisão do indiví-duo, ou seja, seu potencial para realizar inferências e interpre-tações. Origina-se como um sentimento que acompanha aprodução de qualquer imagem (visual, tátil, etc.) dentro doorganismo e torna-se conhecimento.

Em linhas gerais, Damásio (2000) salienta que a consciên-cia tem início quando o cérebro adquire o simples poder decontar uma história sem palavras, uma história de que existevida no organismo e que este vivencia incessantes mutações,dentro dos limites do corpo, a partir de suas relações comobjetos e eventos ou por pensamentos e ajustes internos doprocesso da vida. Segundo ele, pode existir mente sem consci-ência, porque consciência e mente são instâncias distintas. Aconsciência seria uma parte da mente relacionada ao sentidomanifesto do self e do conhecimento. Ele advoga uma possívelrelação de privilégio entre consciência e sentimento, uma vezque o sentimento pode estar situado no limiar entre o ser e oconhecer. Contudo, os processos da emoção (conjunto de re-ações, em geral, de caráter público e não exclusivamente huma-no) e do sentimento (experiência mental de uma emoção, decaráter privado), independem da consciência.

Através das ligações estabelecidas com as idéias, princí-pios e valores, as emoções tornam-se especialmente huma-

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nas. O sentimento gerado por estas emoções, intermediando-a do público ao privado, propicia seu impacto sobre a men-te. Contudo, a consciência apresenta-se necessária ao im-pacto integral e duradouro do sentimento, já que seu co-nhecimento requer a integração com um sentido de self. Aofalar das emoções, Damásio (2000) adota a distinção entreprimárias ou universais (tais como alegria, tristeza, medo,raiva, surpresa), secundárias ou sociais (ciúme, culpa, or-gulho) e emoções de fundo (bem ou mal-estar, calma, ten-são). Salienta que as emoções são conjuntos complexos dereações químicas e neurais que formam um determinadopadrão e que estão ligadas ao corpo, sendo seu papel regu-lador o de preservar a vida do organismo. Elas são proces-sos determinados biologicamente, dependendo de meca-nismos cerebrais inatos e automatizados. Contudo, o de-senvolvimento e a cultura influenciam marcantemente o seuproduto final, seja adequando o indutor à determinada emo-ção, seja modelando alguns aspectos de sua expressão ou,ainda, moldando a cognição e o comportamento decorren-tes de sua mobilização.

Para este teórico, haveria uma consciência central, quese caracteriza por ser uma estrutura simples, estável, encon-trada também em animais não humanos, responsável pelofornecimento de um sentido do self ao organismo no momen-to imediato (aqui e agora); e uma consciência ampliada, quecorresponde a uma estrutura mais complexa, que se constituinum processo histórico-evolutivo, que varia em níveis e graus,fornecendo um sentido do self mais completo ao organismo,conferindo-lhe a conquista de uma identidade individual. Essaúltima, em seus níveis mais elevados, depende da memóriaconvencional e da operacional, só sendo encontrada em se-res humanos e intensificada pela linguagem. Assim, para ele,há uma coordenação desses dois tipos de consciência, umasobreposição que unifica essas duas instâncias no funciona-mento da consciência, observando-se que a consciência cen-tral constitui-se num alicerce da consciência ampliada. Essesdois tipos de consciência remetem também a distintas formasde self, que se mantêm inter-relacionadas.

De acordo com Damásio (2000), anterior ao sentido doself, há um precedente biológico pré-consciente, denomina-do de proto-self, que se define enquanto “um conjunto coe-rente de padrões neurais que mapeiam, a cada momento, oestado da estrutura física do organismo nas suas numerosasdimensões” (p. 201). A estrutura do proto-self não é constitu-ída pela linguagem, não tem capacidade de percepção e nãotem conhecimento. O proto-self é um conjunto de padrõesneurais de primeira ordem que ocorre do tronco cerebral aocórtex cerebral, emergindo “dinâmica e continuamente devários sinais em interação que abrangem diversas ordens dosistema nervoso” (p. 201). Posterior ao estabelecimento doproto-self, encontra-se o desenvolvimento de um self cen-tral, que tem caráter transitório e recria-se a cada interaçãodo cérebro com os objetos; e um self autobiográfico, quemantém um caráter de dependência com lembranças sistema-tizadas de situações nas quais houve uma participação daconsciência central no processo de conhecimento dos as-pectos mais invariáveis da vida do organismo.

Em uma tentativa de compreender o processo dosurgimento da consciência central, poder-se-ia dizer, de modobastante insípido, que seu estabelecimento ocorre por meioda geração de um relato imagético, não-verbal, provenientedos mecanismos cerebrais de representação, na medida emque o organismo sofre alteração em seu estado, decorrentedo ato de processar um determinado objeto, suscitando umrealce de sua imagem e, conseqüentemente, destacando suaexistência espaço-temporal.

A conquista da consciência ampliada, na concepção deDamásio (2000), possibilita ao ser humano

atingir o ápice de suas capacidades mentais, tais como: criarartefatos úteis, levar em consideração a mente de outra pes-soa, entender as mentes de uma coletividade, (...) valorizar avida (...), levar em conta os interesses de outra pessoa e dacoletividade, (...) perceber uma discordância de sentimentos edepois uma discordância de idéias abstratas, o que é a origem dosenso da verdade. (p. 294)

Nesse processo, ele dá especial destaque à primeira, pelapossibilidade de superação dos próprios limites de sobrevi-vência e, à segunda, pelo fato de que é a “percepção críticade discordâncias, que leva à busca da verdade e ao desejo decriar normas e ideais para o comportamento e para a análisedos fatos” (p. 295), possibilitando, dessa maneira, alcançar aconsciência moral, considerada enquanto uma função verda-deiramente humana.

Considerações FinaisAlmejar uma conceituação única e, ao mesmo tempo,

explicativa de todas as nuanças da cognição, apresenta-secomo uma perspectiva de improvável êxito, visto que suadefinição requer, já a priori, uma diferenciação de sujeito –ser humano ou não-humano –, além da adoção de uma deter-minada teoria que lhe sirva de lastro. Em outras palavras, adiscriminação dos aspectos filogenético e ontogenético quecaracterizam a cognição, requer o suporte de um paradigmaespecífico que, necessariamente, conduz a relevância de cer-tos atributos e ao descarte de outros.

Considera-se, pois, em consonância com Flavell et al.(1999), que os paradigmas anteriormente apresentados tendema ser mais complementares que excludentes, uma vez quepriorizam aspectos distintos do desenvolvimento cognitivo,refletindo a riqueza e complexidade da mente humana.

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Suely de Melo Santana, mestra em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco e doutoran-da em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (Portugal),é professora assistente na Universidade Católica de Pernambuco. Endereço para correspondência: Rua Prín-cipe, 526; Boa Vista; Recife, PE; CEP: 50050-900. Tel: (81) 3216-4172. E-mail: [email protected] Roazzi, doutor pela Universidade de Oxford (Reino Unido), é professor adjunto no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco.Maria das Graças B. B. Dias, doutora pela Universidade de Oxford (Reino Unido), é professora adjunta noPrograma de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco.

Recebido em 21.jul.04Revisado em 21.mar.06

Aceito em 17.abr.06

S.M.Santana et al.