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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015 Participação em políticas públicas de habitação e institucionalização dos movimentos urbanos Elaine Freitas de Oliveira 1 Resumo Este trabalho busca apreender a experiência do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) Entidades, reivindicado por movimentos sociais urbanos como conquista do processo participativo na Conferência das Cidades, considerando os mecanismos de elaboração e de implementação do mesmo, bem como seu impacto na dinâmica organizativa e nas perspectivas políticas dos movimentos sociais. O princípio da participação popular na formulação de propostas de moradia e de urbanização, por um lado, e os entraves político-burocráticos para efetivação de tais propostas, por outro, compõem o quadro observado durante pesquisa de campo a partir do projeto de desenvolvimento de 116 unidades habitacionais na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro. A compreensão dos elementos que viabilizam e os que obstaculizam a efetivação de políticas públicas de habitação mediante processos participativos direciona a reflexão para a questão dos riscos de formação de uma guardiania, tal como classifica o cientista político Robert Dahl, a partir do predomínio do discurso técnico e pragmático em lugar da disputa política característica da democracia. Palavras-chave: Programa Minha Casa Minha Vida; Movimentos sociais urbanos; Política habitacional. Introdução As ações do Estado brasileiro em relação à política urbana, com destaque para o Plano de Aceleração do Crescimento e para o Programa Minha Casa Minha Vida, têm sido tema de diversas análises de pesquisadores políticos e sociais que buscam compreender as mudanças e continuidades na política e na economia brasileira no século XXI, em especial a partir da assunção à presidência da República pelo Partido dos Trabalhadores. André Singer (2012) vislumbra as gestões do executivo federal brasileiro pelo PT como referenciadas pelo crescimento econômico induzido pelo Estado através de políticas como o PAC investindo em obras de infraestrutura e gerando empregos na construção civil e o Programa Minha Casa Minha Vida que, embora adote um modelo privatista de habitação (por utilizar em grande parte das obras aprovadas medidas de anulação dos riscos de investimento das construtoras com a aquisição total dos imóveis pela Caixa Econômica Federal), foi responsável pelo estímulo à contratação de mão-de-obra durante a crise financeira internacional iniciada em 2008, reduzindo os possíveis impactos sobre o emprego, além de movimentar o mercado de créditos imobiliários. 1 Cientista social. Mestre em Políticas Públicas. Doutoranda em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] . Bolsista Capes.

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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015

Participação em políticas públicas de habitação e institucionalização dos

movimentos urbanos

Elaine Freitas de Oliveira1

Resumo

Este trabalho busca apreender a experiência do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) Entidades, reivindicado

por movimentos sociais urbanos como conquista do processo participativo na Conferência das Cidades, considerando os

mecanismos de elaboração e de implementação do mesmo, bem como seu impacto na dinâmica organizativa e nas

perspectivas políticas dos movimentos sociais. O princípio da participação popular na formulação de propostas de

moradia e de urbanização, por um lado, e os entraves político-burocráticos para efetivação de tais propostas, por outro,

compõem o quadro observado durante pesquisa de campo a partir do projeto de desenvolvimento de 116 unidades

habitacionais na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro. A compreensão dos elementos que viabilizam e os que

obstaculizam a efetivação de políticas públicas de habitação mediante processos participativos direciona a reflexão para

a questão dos riscos de formação de uma guardiania, tal como classifica o cientista político Robert Dahl, a partir do

predomínio do discurso técnico e pragmático em lugar da disputa política característica da democracia.

Palavras-chave: Programa Minha Casa Minha Vida; Movimentos sociais urbanos; Política habitacional.

Introdução

As ações do Estado brasileiro em relação à política urbana, com destaque para o Plano de

Aceleração do Crescimento e para o Programa Minha Casa Minha Vida, têm sido tema de diversas

análises de pesquisadores políticos e sociais que buscam compreender as mudanças e continuidades

na política e na economia brasileira no século XXI, em especial a partir da assunção à presidência

da República pelo Partido dos Trabalhadores.

André Singer (2012) vislumbra as gestões do executivo federal brasileiro pelo PT como

referenciadas pelo crescimento econômico induzido pelo Estado através de políticas como o PAC

investindo em obras de infraestrutura e gerando empregos na construção civil e o Programa Minha

Casa Minha Vida que, embora adote um modelo privatista de habitação (por utilizar em grande

parte das obras aprovadas medidas de anulação dos riscos de investimento das construtoras com a

aquisição total dos imóveis pela Caixa Econômica Federal), foi responsável pelo estímulo à

contratação de mão-de-obra durante a crise financeira internacional iniciada em 2008, reduzindo os

possíveis impactos sobre o emprego, além de movimentar o mercado de créditos imobiliários.

1 Cientista social. Mestre em Políticas Públicas. Doutoranda em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em

Ciência Política da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] . Bolsista Capes.

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O PMCMV, já no seu primeiro ano de existência, reflete no crescimento de construtoras –

como MRV (que em julho de 2015 iniciou propaganda televisiva afirmando que 1 em cada 300

brasileiros reside em imóvel feito por esta construtora), Gold fard, Tenda e Rodobens – que

atendem à clientela de baixa renda e na ampliação do crédito para habitação em 36% ao comparar

os anos 2005 e 2009. O PAC da habitação, como foi apelidado o PMCMV, entra no rol dos

mecanismos de crescimento econômico do governo federal, ao lado dos empréstimos concedidos às

multinacionais brasileiras via BNDES (Ricci, 2010).

Uma política nacional de habitação, para além de impactar a geração de empregos na

construção civil, constava nas promessas de candidatura ao executivo federal por parte do PT e sua

elaboração contou com o auxílio de técnicos e organizações integrantes do Fórum Nacional de

Reforma Urbana, surgido em 1992 como esforço de articulação de diferentes movimentos, ONGs e

pesquisadores universitários orientados pela busca da gestão democrática das cidades e pela

ampliação no acesso aos bens e serviços urbanos (como moradia, transporte e saneamento).

Já na campanha presidencial de 1988, o PAG (plano de ação de governo) do PT destacava

elementos característicos da crise na qualidade de vida urbana, tais como a falta de esgoto e de

habitação; aluguéis altos e especulação imobiliária; expansão de favelas; transportes precários; e

crescente poluição. As medidas cabíveis para solucionar os problemas das cidades estariam na

aplicação de IPTU progressivo (aumentando o custo deste imposto para imóveis ociosos);

participação popular sobre a destinação dos recursos do FGTS e dos demais recursos financeiros

para habitação; formação de instância nacional sobre desenvolvimento urbano, com espaços de

decisão descentralizados e abertos à participação popular (o que seria o papel, a princípio, do

Conselho e das Conferências das Cidades).

Maria de Fátima Tardin Costa (2012) realiza importante análise da confluência de trajetórias

entre a construção de proposta para a política nacional urbana e habitacional do Partido dos

Trabalhadores e a institucionalização dos movimentos urbanos articulados no âmbito do Fórum

Nacional de Reforma Urbana, oriundo da Articulação Nacional do Solo Urbano (A ANSUR, criada

em 1984 e transformada em organização não-governamental, passando a se chamar Associação

Nacional do Solo Urbano para assessorar movimentos populares, em 1991), reunindo técnicos e

pesquisadores do campo urbanístico e da área social; organizações não-governamentais; e entidades

nacionais de movimentos de luta por moradia – tais como o Movimento Nacional de Luta pela

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Moradia (MNLM), a União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e a Central de Movimentos

Populares (CMP).

O projeto de reforma urbana para o Brasil debatido a partir da sociedade civil, que o FNRU irá

articular a partir da década de 1990, remonta aos anos 1960. Costa (2012) estabelece, assim, três

estágios de formação deste projeto:

Primeiro estágio do projeto de reforma urbana: pró-reformas de base, anterior ao golpe

militar de 1964, cujo marco foi o Seminário Reforma e Habitação de 1963, pautado por um

programa nacional-popular para o desenvolvimento urbano brasileiro.

Segundo estágio pró-democratização, correspondente ao período de 1979 a 1988, que

consolidará a proposição de instrumentos jurídicos e institucionais para uma gestão

democrática das cidades brasileiras com grande mobilização social.

Terceiro estágio de efetivação do projeto de reforma urbana, na década de 1990, marcado

pela profissionalização e predomínio de medidas técnicas e gerenciais em detrimento da luta

política no contexto do capitalismo globalizado, com crescente substituição de movimentos

sociais por organizações não-governamentais – como também apontam as pesquisas de

Maria da Glória Gohn (2012).

Este terceiro estágio, ainda vigente, é marcado pelas tensões entre o ideal do ‘urbanismo

democrático’ defendido pelo FNRU e a ‘gestão urbana de resultados’ que irá direcionar a

elaboração de planejamento estratégico urbano pelas gestões municipais, focado no consumo visual

do espaço, na destinação turística e na indiferença com relação às desigualdades socioeconômicas

entre os habitantes, enfatizando a competitividade entre cidades e aprofundando a sua

mercadificação, tal como ocorre no Rio de Janeiro desde 1993 a partir da gestão do executivo

municipal pelo então prefeito César Maia que desenvolverá o primeiro PEU (planejamento

estratégico urbano) desta cidade.

O Partido dos Trabalhadores se constitui no momento do segundo estágio da reforma urbana, no

período de abertura democrática do país, e assume a temática urbana de formas diferentes,

classificados em três momentos, ainda segundo Costa (2012):

Primeiro momento da fundação do PT (1980) ao 5º Encontro Nacional (1987) pré-

Programa Democrático Popular em que a questão urbana é secundária e predomina a

perspectiva classista e as organizações sindicais.

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Segundo momento a partir das gestões de executivos municipais – a exemplo de São

Paulo (com Luiza Erundina) e Porto Alegre (com Olívio Dutra) – em uma difícil

conjuntura econômica de políticas neoliberais (com valorização de políticas focalizadas

na área social) e de financeirização, a partir do final da década de 1980. Gestões nas

quais se criam instrumentos político-administrativos de participação popular na

formulação de políticas urbanas.

Terceiro momento das gestões do executivo federal, desde 2003, com a criação do

Ministério das Cidades – tendo a sua frente, inicialmente, o ministro Olívio Dutra – e a

valorização da participação popular em planos diretores para as cidades.

Embora seja um projeto resultante dos debates sobre política urbana pelo Partido dos

Trabalhadores com participação de integrantes do Fórum Nacional de Reforma Urbana, buscando

assegurar a ampliação das condições de habitabilidade nas cidades, o comando do Ministério das

Cidades passou a servir, desde 2005, de barganha política do PT com o PP – o partido progressista,

representado sucessivamente por Márcio Fortes (2005-2011), Mário Negromonte (2011-2012),

Aguinaldo Ribeiro (2012-2014) e Gilberto Occhi (2014) – e atualmente está sob o comando de

Gilberto Kassab (2015), presidente nacional do PSD (partido criado em 2011 com dissidentes do

DEM, do PSDB e do PPS). No espectro político brasileiro, estes partidos que têm comandado o

Ministério das Cidades podem ser classificados como de centro-direita com expressivo apoio à

militarização da questão social a exemplo do apoio majoritário dos membros destes partidos na

Câmara dos Deputados federais à proposta de redução da maioridade penal (a PEC 171/2015).

Na convergência das trajetórias entre a ascensão do PT à presidência e as ações na esfera

institucional do Fórum Nacional de Reforma Urbana que irão surgir políticas públicas como o

Programa Minha Casa Minha Vida – Entidades: setor do programa cuja elaboração de propostas de

construção habitacional tem origem em movimentos e organizações sociais que expressem a luta

por moradia popular, visando atender a famílias com renda máxima de R$1.600,00.

As instâncias de participação popular para política urbana irão reivindicar o PMCMV –

Entidades como contraponto aos interesses empresariais de construtoras e empreiteiras em capturar

recursos destinos à habitação, após terem os movimentos sociais urbanos percebido o escasso

recurso destinado ao Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social que seria acionado

diretamente pelos grupos mobilizados em torno da moradia popular.

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“O FNHIS foi aprovado pela base do governo para atender as pressões dos

movimentos sociais. A lei que o instituiu (Lei 11.124/05) teve origem em um

projeto de lei de iniciativa popular, entregue ao Congresso Nacional em 1990,

contendo mais de 1 milhão de assinaturas de eleitores. Ela instituiria, se seguisse a

proposta original, um sistema descentralizado de investimentos em habitação,

representado por fundos e conselhos estaduais e municipais, que teria autonomia

para aplicação dos recursos repassados por meio do Fundo Nacional. Seguindo

sua característica ambígua, o Governo Lula respondeu, de certo modo, com o

FNHIS para os movimentos sociais e com o PMCMV para os empresários, sendo

que o primeiro, gerido por um conselho que tem a participação de representantes

da sociedade, maneja recursos menos significativos que o segundo.”

(MARICATO, 2011, pp.55-56)

“(...) em 2008, várias empresas se encontravam em dificuldade para cumprir as

promessas feitas a seus acionistas. As causas são muitas, e vão desde a crise

hipotecária americana até a falta de experiência em lidar com uma outra faixa de

renda, (...) vários sinais deram conta do esgotamento do mercado de luxo para o

qual a maior parte dessas empresas estava voltada. Algumas delas se

descapitalizaram na compra de um estoque de terras, encontrando dificuldade para

sustentar a produção em seguida, e parte apresentou dificuldade para escoar o

excesso de produção. As mais fragilizadas foram adquiridas por outras que se

mantiveram sólidas. Seguramente o PMCMV, desenhado por uma parceria entre o

governo federal e 11 dessas empresas, respondeu a essas dificuldades e garantiu a

continuidade de um novo patamar de acumulação na produção imobiliária

residencial no Brasil.” (idem, p.63).

Nossa observação de campo na área central da cidade do Rio de Janeiro irá analisar justamente

as tensões entre gestores governamentais, interesses empresariais e movimentos sociais urbanos em

relação à construção de moradia popular nesta área. Partimos do período de crescimento de

ocupações de imóveis públicos ociosos nesta região com participação de grupos politicamente

organizados, iniciado em 2004. Em seguida, apontaremos elementos importantes do diagnóstico

aprofundado desenvolvido na zona portuária com o Projeto Quilombo da Gamboa para

reassentamento de famílias despejadas de uma das ocupações da área central, a Ocupação Quilombo

das Guerreiras, projeto este aceito em 2009 pelo Ministério das Cidades para construção de moradia

popular por iniciativa de movimentos sociais integrando, atualmente, o Programa Minha Casa

Minha Vida – Entidades.

Moradia em área central: experiências cariocas

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Olívio Dutra, primeiro ministro das Cidades, é lembrado na trajetória das ocupações urbanas na

área central da cidade do Rio de Janeiro, para onde nosso estudo está direcionado, em visita feita no

ano de 2004, no período em que tinha início a Ocupação Chiquinha Gonzaga nas imediações da

Central do Brasil.

O então ministro vinha apresentar e debater as possiblidades do novo Ministério para o

desenvolvimento das cidades. Moradores da referida ocupação entram no mesmo elevador que

Olívio Dutra e solicitam que ele assine carta de apoio à luta pela moradia popular na área central do

Rio de Janeiro. Este documento assinado pelo ministro é parte do material apresentado à diretoria

do INCRA-RJ - proprietário do imóvel onde instalou-se a Ocupação Chiquinha Gonzaga – além da

notícia de jornal O Globo cuja manchete “Lula diz que prédio abandonado vai virar moradia

popular” serviram de elementos para pressionar a instituição a efetivar a concessão de uso para as

famílias que no dia 23 de julho de 2004 arrombaram a porta do prédio que se encontrava vazio

desde que outra ocupação (a Ocupação Tiradentes) fora de lá despejada em 2001.

A memória política na qual se apoia a criação do Ministério das Cidades se assenta no resgate

do maior referencial de programa habitacional por iniciativa da esfera federal que o Brasil até então

havia conhecido: o Banco Nacional da Habitação (BNH). O diferencial com relação a este

programa seria a expectativa de alta participação dos movimentos de luta pela moradia na definição

dos rumos das políticas habitacionais, tendo em vista a histórica valorização da participação popular

por parte do Partido dos Trabalhadores.

No campo específico de observação do Projeto Quilombo da Gamboa na zona portuária do Rio

de Janeiro há demonstrações frequentes de que a pauta da participação como mecanismo de

conquista do direito à moradia permanece vigente na militância petista que ali se apresenta

ocupando a maior parte dos cargos da coordenação do projeto. Em caráter de exemplo, menciono a

fala de Aldair Alves da Central de Movimentos Populares (CMP) que em reunião com as famílias

cadastradas no projeto no dia 30 de novembro de 2014 afirmou ser o Programa Minha Casa Minha

Vida – Entidades resultado da pressão dos movimentos sociais no Conselho Nacional das Cidades

em 2012 (embora a Caixa Econômica Federal noticie que desde 2009 a categoria “Entidades” era já

parte do PMCMV), além das falas do Marcelo Edmundo da CMP em reuniões anteriores

declarando que a participação das famílias cadastradas no projeto em atividades como o Grito dos

Excluídos (que ocorre todos os anos em 07 de setembro, no feriado pelo Dia da Independência) e

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nos eventos do Fórum Nacional de Luta pela Reforma Urbana contaria como pontos positivos na

manutenção de seus cadastros.

A participação – motivada pelo convencimento ou pela coerção diante do risco de perda de

cadastro em um projeto de moradia popular – segue, portanto, como elemento importante no

discurso da militância vinculada ao partido do governo, o PT.

No entanto, quando o Programa Minha Casa Minha Vida é criado a partir de uma articulação da

Casa Civil da Presidência da República com o Ministério da Fazenda e com empresários do

mercado imobiliário e da construção civil, esta expectativa de tornar a atuação militante como co-

gestora da política pública de habitação perdeu força e um comentário comum entre militantes da

luta por moradia era de que o governo federal tinha passado a perna no Ministério das Cidades. O

tortuoso caminho da participação, trilhado entre o risco da cooptação e a esperança da co-gestão no

horizonte político dos reformadores sociais, estreitou-se em 2009 e o empenho desde então dos

movimentos nacionais de luta por moradia popular passou a ser a negociação por redes de

influência junto ao governo federal e a pressão pública para reabrir passagem para a participação da

sociedade civil nos rumos da política federal de habitação.

Na cidade do Rio de Janeiro – que havia sido cenário para subsequentes ocupações de imóveis

ociosos para moradia popular na área central, a exemplo de Ocupação Chiquinha Gonzaga (2004),

Ocupação Zumbi dos Palmares (2005), Ocupação Quilombo das Guerreiras (2006), Ocupação Flor

do Asfalto (2006), Ocupação Manoel Congo (2007), Ocupação Machado de Assis (2007),

Ocupação Carlos Marighella (2007) e Ocupação Guerreiros Urbanos (2009) – o ano de 2009 é

marcado também pelo início de uma nova gestão do executivo municipal com o prefeito Eduardo

Paes que dará continuidade à mercadorização da cidade no âmbito do planejamento estratégico

urbano, mas aprofundando aspectos como a periferização da pobreza e a elitização dos espaços da

área central sendo, por isso, apontado recorrentemente pelo noticiário como um “reformador” do

escopo de Pereira Passos.

Pereira Passos foi nomeado prefeito do Rio de Janeiro em 1902 pelo então presidente da

República Rodrigues Alves e tinha como mote de sua gestão a “abertura” da cidade com o

alargamento de vias ligando a área central no sentido sul (com a Avenida Beira-Mar) e no sentido

norte (com as Avenidas Mém de Sá e Salvador de Sá). Suas obras se articulam em um projeto de

modernização da área central com as intervenções do governo federal da época responsável pela

construção das avenidas Rodrigues Alves, Francisco Bicalho e Rio Branco, no mesmo período.

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A gestão de Passos (1902-1906) foi marcada pela demolição de cortiços e pela proibição de

melhoramentos nas edifições que resistiram. Também pela penalização de comportamentos

considerados “incivilizados” como cuspir nas ruas. Passos afirmava que estas medidas tornariam o

Rio de Janeiro uma Paris dos trópicos. Foram as reformas parisienses do Barão de Haussmann que

o inspiraram quando fora enviado na condição de engenheiro ainda no período imperial brasileiro,

em 1875, para apreender os componentes da reforma “civilizatória” e “embelezadora” do centro de

Paris.

A referência a Pereira Passos para falar da gestão de Eduardo Paes não é em vão: este prefeito

estabeleceu a “política do choque de ordem” restringindo o trabalho informal nos centros

comerciais e em áreas de lazer (como as praias), punindo com multas comportamentos considerados

“incivilizados” como a prática de urinar em vias públicas, além de apresentar um amplo programa

de reformas urbanas, como a construção das vias para ônibus rápido Transcarioca (da Ilha do

Governador à Barra da Tijuca), Transbrasil (do Centro à Deodoro), Transolímpica (de Deodoro à

Barra da Tijuca) e a Transoeste (de Campo Grande/Santa Cruz à Barra da Tijuca); a instalação de

trilhos do bonde moderno, o VLT, ligando o centro da praça da Cinelândia à praça Mauá; e a

aceleração do processo de “revitalização da zona portuária” com a derrubada do elevado da

perimetral, despejo de centenas de famílias de diversos cortiços e ocupações, construção do Museu

de Arte do Rio no lugar da rodoviária intermunicipal que ligava a zona portuária aos municípios da

Baixada Fluminense, abertura da Avenida Binário (que alterou e reduziu de 142 para 116 unidades

habitacionais o projeto de moradia popular Quilombo da Gamboa a ser financiado pelo PMCMV –

Entidades, sobre o qual nos deteremos mais profundamente na próxima seção).

Em vez da “Paris dos trópicos” dos tempos de Pereira Passos agora, na gestão municipal de

Eduardo Paes, é a cidade global o espectro que assombra os movimentos sociais urbanos em uma

aliança entre as três esferas governamentais (municipal, estadual e federal) que limitará fortemente

as possibilidades de moradia popular em área central, área de planejamento 1 da cidade,

redirecionando este contingente populacional em larga medida para a área de planejamento 5, zona

oeste da cidade, com menos recursos infraestruturais e distante mais de uma hora em transporte

rodoviário ou ferroviário da área central.

Ocupações e favelas no caminho das grandes obras referidas sofrem ameaças de despejos

forçados e remoções. Deslocamento e desenraizamento desenham as trajetórias das populações

residentes em áreas de acelerada urbanização e de renovação, como uma tendência globalizante

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segundo estudo de Mike Davis (2006) que verificará especialmente a combinação da modernização

das áreas rurais, empurrando os habitantes para as cidades onde irão residir de modo precário, sendo

novamente empurrados dos locais que sofrem valorização para as franjas urbanas. Um processo de

vulnerabilidade habitacional que expande a periferia urbana das cidades a partir dos seguintes

elementos centrais:

(Nova) Invasão

Expulsão dos invasores Demanda de infra-

estrutura urbana

pública

Ação especulativa Valorização

Há resistência para evitar a expulsão rumo à periferia por parte das ocupações da área central na

cidade do Rio de Janeiro com a articulação em torno do Fórum contra o choque de ordem no ano de

2009, reunindo integrantes das ocupações Chiquinha Gonzaga, Quilombo das Guerreiras, além das

ocupações associadas à Frente Internacionalista dos Sem Teto (FIST) e do Movimento Unificado

dos Camelôs (MUCA) para pensar estratégias de ação conjunta para evitar despejos e proibições

relativas ao trabalho informal de ambulantes e camelôs. A escala local de atuação destes grupos e a

autonomia dos mesmos em relação a organizações partidárias, especialmente com relação aos

referidos grupos de sem-teto, fazem com que seu poder de pressão em escala nacional seja muito

limitado, com escassos canais de diálogo institucional, quase sempre mediados pela esfera jurídica

como a organização de audiência de denúncia dos problemas gerados pela política de choque de

ordem do município do Rio de Janeiro junto à Ordem dos Advogados do Brasil.

Movimentos nacionais, por sua vez, organizam fóruns de debate e documentos com

recomendação aos governos elaborados por entidades da sociedade civil, a exemplo do Encontro

Nacional do Fórum de Luta pela Reforma Urbana realizado entre 08 e 10 de agosto de 2014 no Rio

de Janeiro; o lançamento da cartilha popular sobre direito à cidade da Plataforma Dhesca

organizada pela ONG Justiça Global e divulgada em 2010; e o Encontro “Moradia é Central” sobre

habitação popular nas áreas centrais realizado pela Central dos Movimentos Populares em 2009 –

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tendo participação em conselhos e conferências das cidades. Mas, aqui, a atuação é limitada pela

institucionalização e pelo forte vínculo partidário que restringe as mobilizações críticas à política

urbana articulada entre o Partido dos Trabalhadores e o Partido do Movimento Democrático

Brasileiro.

O resultado para as ocupações urbanas na área central é preocupante, como podemos observar a

partir de três casos acompanhados de modo mais próximo em nossa pesquisa de mestrado no

período 2007-2009, na dissertação sobre “Revitalização dos centros urbanos: a luta pelo direito à

cidade”: as ocupações Chiquinha Gonzaga, Zumbi dos Palamares e Quilombo das Guerreiras.

A Ocupação Chiquinha Gonzaga que tinha uma perspectiva otimista de requalificação do

imóvel ocupado em 2004 a partir de aprovação de seu projeto em edital do Ministério das Cidades

com esta finalidade no ano de 2008 passou a sofrer sérios problemas organizativos. A perspectiva

de regularização do imóvel teve consequências distintas: a princípio, reacendeu a participação dos

moradores nas assembleias locais para discutir a reforma nas unidades habitacionais, bem como nos

espaços coletivos. Porém, com a demora nos trâmites burocráticos para efetivação do projeto

aprovado, há dificuldade em obter informações seguras sobre os obstáculos que impedem o início

da requalificação, ora sendo acusada a Secretaria Estadual de Habitação como receptora do recurso,

ora diretamente a Caixa Econômica Federal. Além do mais, cresce a pressão externa de

comerciantes varejistas de entorpecentes ilícitos que tiveram seu espaço de atuação limitado no

morro da Providência, próximo à referida ocupação, após a instalação da Unidade de Polícia

Pacificadora e pulverizaram, então, seus pontos de venda, na área plana, no “asfalto”. Espaços

comuns dos moradores da Ocupação Chiquinha Gonzaga como a sala destinada a um projeto de

informática e a portaria de entrada do prédio passam a ser recorrentemente tomados pelo comércio

ilícito e aumenta a insegurança pelo temor dos moradores de terem suas residências ameaçadas

pelos vendedores de ilícitos e também pelas incursões de policiais armados aumentando o risco de

vítimas letais entre os moradores da ocupação. Por fim, um canal de interlocução institucional com

o governo estadual pela atuação do Instituto de Cartografia e Terras do Estado do Rio de Janeiro (o

ITERJ) é bloqueado com a mudança em sua presidência que permanece sob influência do PMDB

mas perde a gestão de Célia Ravera que acompanhava de modo próximo as reivindicações das

ocupações urbanas da área central. A mudança de gestão restingiu as possibilidades de diálogo e de

mediação do Instituto e até o presente momento não há indícios de início da requalificação da

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Ocupação Chiquinha Gonzaga, permanecendo em condições de precariedade e de vulnerabilidade a

situação habitacional de seus residentes.

A Ocupação Zumbi dos Palmares, onde residiram 134 famílias na zona portuária do Rio de

Janeiro desde abril de 2005 foi completamente esvaziada em fevereiro de 2011 com a pressão de

agentes da prefeitura a oferecer indenizações no valor de R$20.000,00 por família ou um

apartamento em conjunto habitacional construído pelo Programa Minha Casa Minha Vida em Vila

Kosmos na zona oeste da cidade. Recorrentes incursões policiais atendendo a supostas denúncias no

prédio ocupado, falta de saneamento sanitário e de fornecimento de luz e água regularizados

causando transtornos e dificultando as condições de habitabilidade, bem como as obras que

interditaram o entorno da ocupação no âmbito do projeto “Porto Maravilha” levaram as famílias

residentes da Zumbi dos Palmares a temerem uma ação de despejo. O projeto para modernização do

porto não incluía as famílias de baixa renda que já habitavam a região.

A Ocupação Quilombo das Guerreiras, abrigo de 50 famílias desde outubro de 2006, termina

despejada em fevereiro de 2014 na outra extremidade da zona portuária da cidade do Rio de Janeiro

tendo seu terreno já modificado antes mesmo do despejo pelos tratores e materiais de obra do

consórcio Porto Novo contratado pela CDURP – Companhia de Desenvolvimento Urbano do Porto

do Rio, companhia criada em parceria entre o poder público municipal e empresas privadas para

coordenar as transformações urbanísticas na zona portuária.

Figura 1. Pátio do prédio ocupado pelo grupo “Quilombo das Guerreiras”, onde se instalaram os tratores para a obra

administrada pela CDURP, destruindo a horta comunitária iniciada pela moradora Maria Aparecida Alves.

(Foto/Divulgação: Quilombo das Guerreiras, 2013)

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Antes dos tratores, outras ameaçadas como recorrentes cortes de luz e de água, bem como a

instauração de uma comunidade nos fundos da ocupação com intensa atividade do comércio

varejista de entorpecentes ilícitos – a comunidade “Bairro 13” – aprofundaram as condições de

precariedade e de vulnerabilidade das famílias ocupantes.

A ocupação que possuía estrutura organizativa de revezamento das famílias no serviço de

portaria e de limpeza das áreas comuns, assembleias semanais, biblioteca e reforço escolar para

crianças, horta comunitária passou a enfrentar a ameaça armada de comerciantes de ilícitos e a

desmobilização das famílias resultou na impossibilidade de significativa resistência à ordem de

despejo que veio acompanhada de pagamento mensal de aluguel social no valor de R$400,00 pela

prefeitura a cada família até que se concretize o projeto habitacional de realocação dos ocupantes

aprovado pelo Ministério das Cidades desde 2009 – o projeto “Quilombo da Gamboa”.

As três ocupações supracitadas – Chiquinha Gonzaga, Zumbi dos Palmares e Quilombo das

Guerreiras – apresentam-se aqui destacadas em razão de seu modelo organizativo centrado nas

assembleias locais definidoras da dinâmica de funcionamento da vida coletiva no imóvel ocupado,

além de contarem com atividades culturais e educativas frequentemente vinculadas à participação

de uma rede de apoiadores (técnicos, pesquisadores e militantes) nos espaços da ocupação. Em

dissertação de mestrado (OLIVEIRA, 2009) analisou-se o processo de construção do direito à

cidade através da autogestão do espaço urbano pelos habitantes destas ocupações.

Esta forma autogerida de habitação passa a ser ameaçada por um projeto de cidade voltado

ao exercício da vocação turística do Rio de Janeiro de acordo com o diagnóstico do poder executivo

municipal ao elaborar o planejamento estratégico urbano. Com a aprovação de megaeventos

esportivos como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 a serem sediados na

cidade do Rio de Janeiro, o poder público ganha um forte argumento justificador da intensificação

de transformações urbanas polêmicas com remoções impostas a ocupações e favelas para viabilizar

as instalações e as vias de acesso aos eventos referidos.

O Projeto Quilombo da Gamboa, apresentado ao Ministério das Cidades em 2009 para

construção de habitação de interesse social pela Fundação Bento Rubião de assessoria a

movimentos sociais, em parceria com a Central de Movimentos Populares (CMP) e a União

Nacional por Moradia Popular (UMP), expressa um esforço de resistência à periferização da

pobreza com a ameaça de despejo dos moradores da Ocupação Quilombo das Guerreiras. Mas

agora a forma organizativa dos habitantes se efetivaria em outros termos.

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Uma experiência do Programa Minha Casa Minha Vida Entidades no Porto do Rio

Os moradores da Ocupação Quilombo das Guerreiras (área central, zona portuária do Rio de

Janeiro), junto a moradores ameaçados de remoção na favela Parque da Cidade (no bairro Gávea,

zona sul da cidade) e outras famílias da área central despejadas de antigos sobrados serão

apresentados como demanda habitacional em projeto elaborado pela Fundação Bento Rubião, pela

CMP e pela UMP. A proposta aprovada pelo Ministério das Cidades consistia na construção de 142

unidades habitacionais, no bairro Gamboa, ao lado da Cidade do Samba, na zona portuária.

A nomeação deste conjunto residencial se define em reunião das famílias cadastradas, a

partir de votação nas seguintes propostas apresentadas: “Pequena África”, “Lula Lar” e “Quilombo

da Gamboa”. A última proposta é vitoriosa e o grupo Quilombo da Gamboa inicia seu processo

organizativo.

As entidades da sociedade civil Fundação Bento Rubião, Central de Movimentos Populares

e União de Moradia Popular são responsáveis pelo projeto de construção habitacional e a partir da

proposição de seus integrantes se organiza a coordenação política do grupo Quilombo da Gamboa.

Os coordenadores das referidas entidades ocupam quase a totalidade das intervenções em cada uma

das reuniões ocorridas mensalmente há seis anos.

As reuniões das famílias cadastradas começaram a ocorrer em 2010, ora na Ocupação

Quilombo das Guerreiras, ora na favela Parque da Cidade. Posteriormente, concentrou-se as

reuniões na referida ocupação e quando esta passou a ser intensamente ameaçada de despejo,

transferiu-se o encontro dos cadastrados para o terreno destinado às futuras instalações das 116

unidades habitacionais, já que o projeto residencial fora reduzido em razão das alocações da

Avenida Binário construída no conjunto de transformações urbanísticas intensificadas a partir de

2012 no projeto “Porto Maravilha” protagonizado pela prefeitura do Rio de Janeiro.

A transferência das reuniões para o terreno destinado à construção do prédio “Quilombo da

Gamboa” também tinha por motivação a tomada de posse contra diferentes ameaças: 1) a

necessidade de pressionar pela aquisição definitiva de dois terrenos privados pelo poder municipal

para que, junto aos quatro terrenos cedidos pela Superintendência do Patrimônio da União, se

completasse o espaço necessário à realização do projeto de construção habitacional; 2) os riscos de

usos do espaço por outros grupos, especialmente pela proximidade do terreno com a Cidade do

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Samba, como ocorreu no caso solucionado de apropriação indevida de parte do terreno pelo

empresário Chico Recarrey ligado aos festivos carnavalescos cariocas e no caso ainda não

solucionado de uso de parte do terreno por um bloco carnavalesco retirado de um dos galpões

municipalizados pela empresa Docas, o bloco “Vizinha Faladeira”; 3) a difícil realidade de escassez

de espaços nas áreas centrais para habitação de famílias pobres, visto que apesar de haver mais de

200.000 imóveis públicos vagos no Rio de Janeiro, sempre que estes são ocupados, têm sido

despejados em curto tempo, sem exceder o prazo de uma semana, e os terrenos cedidos a iniciativas

de construção de habitação popular se tornariam assim alvos mais fáceis de futuras ocupações.

Interessante observar que o Ministério das Cidades participa do projeto “Porto Maravilha”

investindo recursos financeiros e doando imóveis ao poder municipal com o argumento contrário

justamente aos vazios urbanos que têm sido aumentados com os despejos de ocupações que

ocorrem como medidas de modernização da área central.

A área central do Rio de Janeiro é apontada como área com necessidade de programas especiais

pelo coordenador do Programa de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais do Ministério das

Cidades, Renato Nunes Balbim (2008). O motivo é o elevado número de vazios urbanos e de

imóveis subutilizados, em função da escassa prática de requalificação imobiliária da construção

civil brasileira, de acordo com o referido coordenador.

Dados do IPEA referentes a 2010 afirmam existir 266.074 domicílios vagos no centro da capital

fluminense. Como parte do esforço para alterar este quadro, em 2011, no Encontro Nacional de

Planejamento Urbano (ANPUR), arquitetas e urbanistas do Ministério destacaram a atuação do

programa federal de reabilitação nas obras do “Porto Maravilha”:

“Especialmente importante pelos seus desdobramentos, o trabalho de reabilitação

do porto do Rio, iniciado em 2006 com a assinatura de um Acordo de Cooperação

Técnica entre a União, a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, a companhia

DOCAS do Rio de Janeiro e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e

Social (BNDES), culminou no desenvolvimento da Operação Urbana do Porto, no

âmbito do projeto municipal de requalificação da área, denominado “Porto

Maravilha”, lançado pela prefeitura em 2009.” (AMARAL, 2011).

A parceria com a prefeitura respeitaria a característica descentralizadora na legislação

relativa à política urbana, a começar pela própria Constituição Federal (1988) na qual é atribuído

aos municípios o controle sobre o uso e ocupação do solo, bem como saneamento, transporte e

coleta de lixo, reservando à esfera federal o poder regulador de tais políticas.

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No entanto, esta parceria entre a União e o governo municipal serviu para que a prefeitura

solicita-se ao poder judiciário a reintegração de posse desses imóveis e a consequente retirada das

famílias residentes em galpões nas imediações da Rodoviária Novo Rio, na zona portuária da

cidade. A ocupação Quilombo das Guerreiras resistiu até fevereiro de 2014, mas parte dos

problemas que afligiam os moradores era a concentração de famílias já despejadas na região nos

galpões atrás da ocupação e adotando formas problemáticas de organização como a busca por

espaço para moradia e para pontos do comércio varejista de entorpecentes ilícitos no interior da

Quilombo das Guerreiras, invadindo espaços já ocupados com atividades educativas, políticas e

culturais como os salões para reunião e confraternização, bem como a biblioteca onde ocorriam as

atividades de reforço escolar.

Parte das famílias em situação mais vulnerável de habitação e que são obrigadas a sair da

Quilombo das Guerreiras se mudam, então, para instalações improvisadas no terreno destinado ao

grupo Quilombo da Gamboa, o que confere maior tranquilidade às demais famílias cadastradas com

relação à posse do terreno para o projeto de construção habitacional. Por outro lado, algumas destas

famílias cadastradas, pressionadas por despesas com aluguel e possuindo baixo rendimento salarial,

(visto que o Programa Minha Casa Minha Vida – Entidades se destina a famílias com renda máxima

de R$1.600,00) se colocam em muitas das reuniões do grupo Quilombo da Gamboa a respeito do

que estaria faltando para o início das obras.

Figura 2. Foto/Divulgação da apresentação do projeto arquitetônico para o prédio Quilombo da Gamboa elaborado pela

empresa Chiq da Silva e apresentado na reunião mensal das famílias cadastradas em 29/03/2015.

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Diante do questionamento das famílias sobre a razão de seis anos de organização não terem

sido ainda suficientes para que se iniciassem as obras de construção habitacional, cada um dos

representantes das entidades da sociedade civil responsáveis pelo projeto responde com os seguintes

argumentos: 1) projeto de habitação popular de iniciativa dos movimentos sociais é demorado

mesmo, devemos tomar como exemplo um conjunto habitacional na zona oeste do município do

Rio de Janeiro que levou 16 anos para que as primeiras unidades fossem entregues às famílias

cadastradas; 2) há questões técnicas a serem resolvidas e não há muitos técnicos dispostos a se

vincular a projetos ligados ao PMCMV-Entidades pois é preciso pensar em um empreendimento de

mais baixo custo, com qualidade e cujo pagamento do trabalho técnico será efetivado somente após

liberação de recursos pela Caixa Econômica Federal (recursos estes contratados recentemente, em

julho de 2015); 3) há pouca participação das famílias nas reuniões mensais e nas comissões de obra,

de formação política e de mobilização; 4) há pouco entendimento do que precisa ser feito em termos

burocráticos como pedidos de licença e apresentação de etapas do projeto em diferentes órgãos

públicos, como companhias de água, de saneamento, de iluminação, de autorização para construção

residencial e, sem o cumprimento de todas as medidas burocráticas não deve haver protestos junto

aos órgãos responsáveis pela liberação de recursos (a Caixa Econômica Federal) e pela liberação da

parte do terreno ainda indevidamente apropriada pelo bloco carnavalesco “Vizinha Faladeira” (por

responsabilidade da Companhia de Desenvolvimento do Porto do Rio – a CDURP que autorizou a

permanência do referido bloco no terreno já destinado ao grupo Quilombo da Gamboa até que nova

sede fosse entregue, o que estava previsto para 2012 e até o presente momento não ocorreu).

Os argumentos possuem consistência e merecem uma análise mais aprofundada.

Considerações a respeito das dificuldades técnicas e burocráticas para a efetivação de propostas de

construção habitacional de interesse social se relaciona ao uso político tanto estatal para maior

concentração do controle do uso urbano por seus administradores em detrimento da necessidade da

população residente de pouco acesso aos capitais econômico e político, quanto se relaciona ao uso

empresarial para adquirir preferência no acesso ao solo urbano em áreas valorizadas concentrando

corpo técnico necessário ao cumprimento das condições exigidas pelas instâncias governamentais.

O terceiro argumento relativo à baixa participação das famílias cadastradas no grupo

Quilombo da Gamboa precisa ser visto no escopo mais amplo das ações coletivas reivindicatórias

em nossa sociedade. No Brasil, segundo Rudá Ricci (2010), as organizações de bairro são

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responsáveis pela participação política de 8% da classe E, 7% da classe D, 5% da classe C e 2% das

classes A/B. Debater os rumos da cidade a partir de uma territorialidade específica, ao que indica

este estudo, se torna mais importante entre os mais pobres do que entre os mais ricos, mas envolve

apenas uma pequena parte da população.

Além disso, nos conselhos e conferências que expressam esforços de construção de gestões

públicas participativas, há uma hiper-representação das classes A e B, bem como de pessoas com

ensino superior. No caso do Rio de Janeiro, em 2004, 60% dos representantes cariocas em

conselheiros municipais possuíam formação universitária e 66% recebiam mais de 5 salários

mínimos.

Duas hipóteses são aventadas por Ricci ao pensar os movimentos sociais que se

institucionalizaram ao longo dos anos 1990, efetuando uma transição do anti-institucionalismo dos

anos 1980 para a situação presente de organizações hierarquizadas, burocratizadas e atreladas de

modo mais ou menos direto ao Estado.

A primeira hipótese seria a falta de base teórica e programática dos movimentos sociais que

ascendem no contexto de redemocratização política do Brasil. A segunda é a excessiva vinculação

partidária dos integrantes destes movimentos.

O comunitarismo cristão que fundamentava as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) teria

reunido a militância – de movimentos populares e do partido operário-popular que surgia na

abertura política (o Partido dos Trabalhadores) – em torno da luta dos pobres, dos excluídos do

desenvolvimento, retirando da pauta a luta de classes e deslocando-a para a busca de inclusão

social. Este comunitarismo cristão, formado sob influência da Teologia da Libertação, enfatiza a

participação: aquilo que a educação popular freiriana nomeara como o processo transformador de

tomar a própria palavra. A adesão da militância a esta concepção política estaria relacionada à

persistente memória da solidariedade rural em um país de recente e acelerada urbanização,

carregando para dentro do sujeito político moderno a ideologia da intimidade e a valorização do

particularismo, inserido em um cenário de baixo engajamento político social. Afinal, “43% da

classe A/B não participa de nenhuma organização; subindo para 56% no caso da classe C; 62% no

caso da classe D e 63% no caso da classe E” (RICCI, 2010, p.197).

A pequena adesão a grupos de mobilização social para reivindicação de direitos é, portanto,

um fenômeno largamente presente na população brasileira. Mas esta participação também é

desmotivada, no caso em análise do projeto Quilombo da Gamboa, pela predominância de uma

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concepção de que o entendimento técnico capacitaria para a definição da atuação política. E, é neste

sentido que apontamos a aproximação com a ideia de guardiania na condução das decisões pelas

coordenações das entidades da sociedade civil envolvidas na experiência de construção de habitação

de interesse social na zona portuária do Rio de Janeiro.

Segundo Robert Dahl (2012, p.77), a guardiania “é uma perene alternativa à democracia”

baseada na concepção “de que o governo deve ser confiado a uma minoria de pessoas

especialmente qualificadas para governar em razão de seu conhecimento e de sua virtude

superiores”.

O entendimento técnico e burocrático como critério para decidir se o momento é de ato

público de denúncia das instâncias governamentais que impedem o início da construção do

Quilombo da Gamboa há seis anos ou se deveriam ser priorizados diálogos fraternos considerando

os gestores governamentais como parceiros no projeto de moradia popular não só limita a

legitimação da fala a um grupo restrito de pessoas dedicadas à institucionalidade política com forte

vinculação com profissionais e acadêmicos ligados ao urbanismo, como também indica, na presença

dominante da última alternativa, um quinto argumento necessário ao entendimento do processo de

desenvolvimento do projeto Quilombo da Gamboa e dos entraves a sua efetivação como construção

de habitação popular.

Algo pouco dito nas reuniões, mas que se destaca nas práticas de atuação: os gestores

públicos são compreendidos pelos representantes das entidades da sociedade civil que elaboraram o

projeto Quilombo da Gamboa como aliados políticos. Os dois movimentos populares envolvidos no

referido projeto são coordenados por integrantes do Partido dos Trabalhadores. A formação destes

grupos tem como marco o período de institucionalização das lutas pela reforma urbana, na década

de 1990, e de elaboração das propostas de política nacional urbana pelo PT, conforme analisado

anteriormente, na introdução deste trabalho.

Somente esta concepção de aliança permite compreender fenômenos como a recepção

festiva para a visita de representantes estatais ao grupo Quilombo da Gamboa em julho de 2015,

inclusive de membros da CDURP, companhia responsável pelo despejo das famílias cadastradas no

projeto que residiam na ocupação Quilombo das Guerreiras sob a justificativa de aumentar os

recursos do município com a venda do terreno para construção de um empreendimento empresarial

denominado Trump Tower que não se efetivou até o presente momento, dois anos após o despejo de

cinquenta famílias da Quilombo das Guerreiras e de 200 famílias dos galpões atrás da ocupação que

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formaram a comunidade “Bairro 13”. Companhia também responsável pela redução das dimensões

do terreno para a construção de habitação popular aprovada pelo Ministério das Cidades de 142

para 116 unidades para não alterar o desenho projetado para a Avenida Binário. Ademais, a

CDURP autorizou o uso do terreno destinado à habitação de interesse social para instalação de um

bloco carnavalesco prometendo-lhe nova sede sem data prevista para efetiva retirada do bloco.

Companhia presidida por um integrante do Partido dos Trabalhadores.

Neste processo, portanto, há membros do PT como representantes de movimentos sociais

parceiros na luta pelo direito à moradia, direito posto em questão por outros, do mesmo partido,

como representantes do governo municipal pressionando pelo despejo de famílias pobres da região

da zona portuária. Os impedimentos burocráticos para início da construção habitacional do

Quilombo da Gamboa encobrem, neste sentido, questões políticas relativas a um projeto de cidade.

Um projeto que restringe o campo de disputa através da lógica de que movimentos de luta

por moradia popular devem ser dirigidos a uma atuação propositiva tecnicamente orientada sem que

haja disputa explícita em relação às estratégias de reformulação do espaço urbano.

A espera prevista para uma década de organização até a efetivação da construção

habitacional no caso em análise do projeto “Quilombo da Gamboa” com recursos do PMCMV-

Entidades sinaliza a insuficiência da via institucional para suprir a demanda popular por moradia. A

ocupação de imóveis vagos por famílias pobres sem propriedade segue como prática marcada pela

vulnerabilidade e pela precariedade habitacional, com o agravante de não poderem contar em

muitos casos com o significativo apoio de entidades da sociedade civil organizadas em torno da

questão da habitação de interesse social pois estas estão mais direcionadas para a procura do

cumprimento das condições técnicas e burocráticas para aprovação de projetos em editais

governamentais do que na ação de mobilização para crítica da fraca democracia urbana que impede

as condições mínimas de moradia digna para a população das cidades.

Considerações finais

No campo propositivo da atuação em parceria entre coordenações de movimentos urbanos,

pesquisadores do campo técnico do urbanismo e gestores públicos, desde junho de 2015, iniciou-se

a elaboração de um plano de habitação de interesse social para a zona portuária da cidade do Rio de

Janeiro. Medida que poderia ser comemorada como um avanço no direito à cidade por parte da

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população mais pobre, porém que vem acompanhada da informação de que o referido plano é, na

verdade, um mecanismo de arrecadar maiores recursos para as obras do “Porto Maravilha” que se

sustentaria inicialmente com a venda antecipada de terrenos municipais para a iniciativa privada

mas que não tendo alcançado a arrecadação necessária para a conclusão das obras previstas

solicitou ao governo federal o uso de recursos do FGTS para a continuidade das transformações

urbanas com a justificativa de que a CDURP – administradora municipal destas obras – elaboraria

propostas junto à sociedade civil de habitação de interesse social para a referida região em análise.

A política urbana nacional, no que tange à questão da moradia, tem recebido significativos

investimentos para o desenvolvimento do capital imobiliário, segundo Boulos (2015), tendo o

governo federal concedido créditos para construção e financiamento de imóveis no valor de R$4,8

bilhões em 2005 e chegando a 2014 com investimentos de R$102 bilhões.

A principal medida na área habitacional foi a criação do Programa Minha Casa Minha Vida

(PMCMV) – lançado em 25 de março de 2009 como medida anticíclica em uma conjuntura de crise

econômica internacional, cuja proposição resulta da articulação entre a Casa Civil da Presidência da

República, o Ministério da Fazenda, setores empresariais imobiliários e da construção civil.

As milhares de residências produzidas no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida

possuem um duplo efeito problemático. Ao serem definidas por construtoras que recebem valor fixo

por unidade residencial, as obras são alocadas em áreas desvalorizadas e com metragem mínima

estabelecida pela Caixa Econômica Federal. Isto resulta na tendência à periferização da pobreza.

Além disso, os investimentos urbanos concentrados em determinados terrenos como na

infraestrutura para recepção de megaeventos como Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de

2016 tem gerado maior especulação imobiliária: o valor do metro quadrado carioca subiu 265%

entre 2008 e 2015, assim como os aluguéis também tiveram alta de 140% no Rio de Janeiro neste

período.

“As metrópoles brasileiras tornaram-se, nos últimos anos, verdadeiras máquinas

de produção de novos sem-teto. Mesmo com o Minha Casa Minha Vida, o maior

programa de habitação popular da história do país, o déficit habitacional

aumentou, por conta da explosão no valor do aluguel.

Os investimentos públicos e privados terminaram por aprofundar um modelo de

cidade segregador. Ricos e classe média no centro e pobres jogados em periferias

mais e mais afastadas. Muros reais e simbólicos, marcando a intolerância das

elites em conviver no mesmo espaço que os desvalidos. Intolerância que degenera

em fascismo e política oficial de controle militar das periferias.” (BOULOS, 2015,

p.12)

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O Programa Minha Casa Minha Vida – Entidades, acessado por entidades da sociedade civil

deveriam permitir reverter essa tendência à periferização da pobreza além de contribuir para a

redução do déficit habitacional. Funcionando como “autogestão habitacional” a partir de assembleia

das famílias cadastradas em cada projeto de habitação de interesse social serviria, ainda, como um

estímulo à maior participação política da população brasileira em organizações reivindicativas de

direitos relativos à qualidade de vida urbana.

As condições técnicas e burocráticas para reconhecimento de um grupo passível de

apresentação de projeto no PMCMV – Entidades leva movimentos urbanos a se configurarem como

organizações não-governamentais (ONGs).

Virgínia Fontes (2010) menciona que as ONGs, atuando como aparelhos privados de

hegemonia, influenciam os grupos sociais no que tange à profissionalização da militância como

atividade remunerada que, para tanto, necessitará de agenciadores de recursos, quebrando o

princípio da autonomia de classe nas organizações partidárias e nos movimentos sociais visto que

reproduz-se a sociabilidade do mundo do trabalho capitalista em vez do autofinanciamento para

instauração de práticas desvinculadas da lógica empresarial de compra e venda de capacidades.

Ademais, decisões políticas são reposicionadas como questões técnicas e burocráticas,

como pudemos observar no caso específico do empreendimento na zona portuária do Rio de

Janeiro, enquanto imóveis federais que poderiam ser destinados à habitação de interesse social,

alguns já cumprindo esta função por iniciativa de famílias ocupantes, foram entregues à gestão

municipal, que argumenta ter projeto para requalificar os imóveis para desenvolver a “vocação

turística” da cidade em grandes empreendimentos de transformação da infraestrutura, desalojando

as populações mais pobres das áreas centrais e perpetuando o elevado déficit habitacional da cidade

– que alcança a falta de 275.066 moradias no município do Rio de Janeiro em 2009 segundo

estimativas oficiais da própria Secretaria Municipal de Habitação.

Uma reforma urbana significativa com base nos princípios de direito à cidade, função social

da propriedade e gestão democrática das cidades permanece demandando movimentos sociais

pautados pela autonomia e pela capacidade de mobilização para instauração de fóruns efetivos de

decisão dos rumos da cidade pelos seus próprios habitantes.

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