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Paulo Leminski - Anseios Cr pticos 2 (pdf)(rev) · 2018. 12. 20. · ORELHAS DO LIVRO Em 1986, a convite de Criar Edições, Paulo Leminski organizou, em dois volumes, textos nos

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Paulo Leminski

Anseios Crípticos 2

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Copyright © 2001 Paulo Leminsky

Todos os direitos desta edição reservados à:

CRIAR EDIÇÕES LTDA.

Rua José de Mello Braga Jr., 279

81.540-280 — Curitiba — PR

Fone/Fax: (41) 362 0468 / 362 6756

homepage: www.sintomnizado.com.br/criaredicoes

e-mail: [email protected]

Capa: Nexo Design

Programação Visual: Criar Edições

Editoração: Jefferson Schnaider

Revisão: Iria Zanoni Gomes

Atendemos pelo reembolso postal

PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTA OBRA, ATRAVÉS

DE QUALQUER MEIO, SEM AUTORIZAÇÃO DO EDITOR.

Impresso no Brasil

Printed in Brazil

2001

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OORREELLHHAASS DDOO LLIIVVRROO

Em 1986, a convite de Criar Edições, Paulo Leminski

organizou, em dois volumes, textos nos quais deixara fluir seu

talento de polemista-ensaísta-demolidor-criador: seus anseios. O

resultado foram duas pastas abarrotadas com recortes de jornais,

cópias de posfácios e prefácios, e textos datilografados. O primeiro

volume — Anseios Crípticos 1 / anseios teóricos — foi editado em

1986. O segundo, os anseios práticos, deveria sair no ano

seguinte.

No entanto, só hoje chega aos leitores. Por um lado, os

azares dos planos econômicos colocaram a Criar numa

quarentena da qual só retornou em outubro de 2000. Por outro,

em 1989, Paulo resolveu polemizar em outras dimensões. Não

bastasse, os originais sumiram, resistindo a três mudanças e, 15

anos depois, se materializaram no fundo de uma caixa na qual

deveriam estar apenas exemplares de antigos suplementos

literários.

São estes os anseios/ensaios que publicamos agora.

Diferentemente dos que estão no primeiro volume, no qual

Leminski dizia ter reunido as noções “teóricas” básicas a partir

das quais pensava, estes, os “práticos”, estão voltados para a

análise de obras e de autores.

Reunidos pela primeira vez em livro e na ordem que

Leminski estabeleceu, discutem obras de Brecht, Rimbaud,

Haroldo de Campos, Sartre, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha,

Dante, Whitmann, Fante, Jarry, Ferlinghetti, John Lennon,

Mishima, Becket, Joyce, Petrônio.

Alguns são inéditos, outros são inéditos em livro, outros

foram publicados em jornais e revistas de circulação nacional

(Folha de S.Paulo, Leia Livros, Veja), e outros saíram em jornais de

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tiragem restrita ao Paraná (Gazeta do Povo, Correio de Notícias).

Em todos, a marca que fez de Leminski um polemista de talento,

colocando em questão as obviedades literárias do momento, do

que estamos todos muito carentes nos dias de hoje, quando o

pensamento único nos provoca infindáveis bocejos de tédio.

Outras obras da CRIAR EDIÇÕES:

• Crítica da Razão Tupiniquim, de Roberto Gomes

• Mal Comportadas Línguas, de Sírio Possenti

• Riachuelo, 266, de Carlos Dala Stella

• Alma de Bicho, de Roberto Gomes

• Nuvem Feliz, de Alice Ruiz

Paulo Leminski Filho nasceu em

Curitiba, em 24 de agosto de 1944. O

pai descendia de poloneses e, a mãe,

Áurea Pereira Mendes, de portugueses,

índios e negros. Aos 8 anos, fez o

primeiro poema. Dos 12 aos 14 anos

permaneceu como oblato no Mosteiro

de São Bento/SP. Aos vinte anos já

participa de eventos relacionados à

literatura. Iniciou duas faculdades — direito e letras —,

abandonando ambas. Foi professor de cursinho, jornalista,

redator de publicidade, tradutor, compositor, letrista. Traduziu,

entre outros, Um atrapalho no trabalho, de John Lennon, Sol e aço,

de Mishima, e Satyricon, de Petronius. Foi parceiro de Moraes

Moreira, Itamar Assumpção, Arnaldo Antunes, Guilherme Arantes

e Ivo Rodrigues. Como compositor, teve canções gravadas por

Caetano Veloso e Ney Matogrosso, entre outros. Apresentou o

polêmico Jornal de Vanguarda, na TV Bandeirantes, em 1988.

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Catatau (“prosa experimental”) foi publicado em 1975. Seus

poemas estão em vários livros: Quarenta cliques, 1979, Não fosse

isso e era menos/Não fosse tanto e era quase, 1980, Polonaises,

1981, Caprichos e relaxos, 1983, Agora é que são elas, 1984,

Distraídos venceremos, 1987, Guerra dentro da gente, 1988.

Faleceu em 7 de junho de 1989, aos 44 anos.

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sumário m, de memória

latim com gosto de vinho tinto

um texto bastardo

taiyo to tetsu: entre o gesto e o texto

lennon rindo

ferlinguete-se!

o uivo e o silêncio

jarry, supermoderno

folhas de relva forever: a revelação permanente

méxico

sertões anti-euclidianos

trans/paralelas

significado do símbolo

o veneno das revistas da invenção

grande ser, tão veredas

e o vento levou a divina comédia

poeta roqueiro

aventuras do ser no nada: quem tem náusea de Sartre?

tímidos e recatados

tradução dos ventos

prosa estelar

bonsai: niponização e miniaturização da poesia brasileira

história mal contada

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m, de memória.

Os livros sabem de cor

milhares de poemas.

Que memória!

Lembrar, assim, vale a pena.

Vale a pena o desperdício,

Ulisses voltou de Tróia,

assim como Dante disse,

o céu não vale uma história.

Um dia, o diabo veio

seduzir um doutor Fausto.

Byron era verdadeiro.

Fernando, pessoa, era falso.

Mallarmé era tão pálido,

mais parecia uma página.

Rimbaud se mandou pra África,

Hemingway de miragens.

Os livros sabem de tudo.

Já sabem deste dilema.

Só não sabem que, no fundo,

ler não passa de uma lenda.

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latim com gosto de vinho tinto

1

as veias abertas da roma antiga

“De C. Petrônio não há muito que dizer. Dormia o dia

inteiro e dedicava a noite para seus trabalhos e prazeres. Muitos

ficam famosos por seus empenhos (industria). Ele era famoso por

sua preguiça (ignavia). Não era considerado um homem que corre

atrás do proveito, mas dos prazeres sutis (erudito luxu). Tudo que

dizia e fazia era descontraído e sem esforço, e sua simplicidade

cativava como uma gentileza. Mas soube ser enérgico quando no

serviço público, primeiro como procônsul na Ásia, depois como

cônsul. A seguir, retirou-se para a vida privada e seus vícios

favoritos e, como tal, foi aceito no círculo mais íntimo do

imperador Nero, onde reinou como um verdadeiro árbitro da

elegância (el egantiae arbiter). Nero nada fazia sem antes consultar

seu sofisticado cortesão. Isso suscitou a inveja de Tigelino, outro

cortesão, que contra Petrônio arma uma intriga, envolvendo seu

nome com conspiradores. Sabendo-se perdido, antes da ordem do

príncipe, Petrônio decide suicidar-se, abrindo as veias do braço.

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Um médico grego abria-as, o sangue corria, e ele as fechava

depois. Voltava a abri-las, e as fechava, assim muitas vezes.

Enquanto isso, impávido, Petrônio não se entregava a conversas

sobre a imortalidade da alma. Na realidade, fazia versos lúbricos e

fúteis. E assim fazendo morreu, com a maior naturalidade. Nunca

lisonjeou os poderosos, nem o próprio Nero. Ao contrário.

Escreveu uma narrativa onde descreve os excessos do imperador,

atribuindo-os a jovens depravados. E ao morrer enviou-lhe a

narrativa.” Assim Tácito, o maior dos historiadores romanos,

descreveu, em seus Anais, a vida e o fim de Petrônio, e a gêneses

do Satyricon.

2

Poucos livros têm biografia tão acidentada como este

Satyricon, o primeiro dos romances, a obra mais

escandalosamente original da literatura latina.

Oficialmente, consta como sendo o romance escrito por

Caius Petronius dito Arbiter, cortesão e íntimo do imperador Nero,

que este condenou ao suicídio, no ano de 65, por se achar

envolvido na conspiração da família dos Pisões contra o louco

imperador poeta.

Mas na ficha do Satyricon, tudo são conjecturas e

hipóteses que já produziram rios de tinta entre os sábios, do

Renascimento para cá: o livro, aliás, foi um dos primeiros textos

impressos; sua primeira edição, em Milão, é de 1477.

O texto que hoje temos é, certamente, parte de um texto

maior, que se perdeu nos azares da História, talvez um quinto

apenas do original (fragmentos dos capítulos XV e XVI). Mesmo

assim, esse texto se sustenta como uma obra inteira.

A autoria também não é segura.

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Toda a argumentação sobre a autoria se baseia num

célebre trecho do historiador romano Tácito, que viveu por volta de

120 da nossa era, cinqüenta e cinco anos depois da morte de

Caius Petronius.

Nele, Tácito fala do cortesão voluptuoso que, condenado

ao suicídio por Nero, escreve ao morrer uma longa sátira para

zombar do ridículo tirano.

Certas evidências, porém, laboram contra a identificação

do Satyricon, que temos hoje, com essa sátira do cortesão de Nero.

Primeiro, porque não é verossímil que um homem pouco

antes de morrer tenha forças para compor uma obra que, no

original, deveria ter algo como duas mil páginas.

Depois, há indícios de linguagem e estilo que acusam,

me parece, a presença de giros e palavras característicos de

épocas posteriores ao reinado de Nero. A oralidade e o registro

escrito do latim vulgar, por exemplo, o sermo humilis, parecem ter

sido introduzidos pela pregação cristã

Por fim, há o estranho silêncio dos escritores romanos

posteriores (Marcial, Suetônio, Plínio, Juvenal, Quintiliano) sobre

uma obra que deveria ter causado grande impacto na época em

que surgiu.

Os primeiros escritores latinos que mencionam o

Satyricon, entre eles, São Jerônimo, já são do século III da nossa

era.

Alguns estudiosos chegaram mesmo a atribuir ao

Satyricon uma data muito mais tardia. Um erudito mais precavido

atribuiu a obra a um bispo de Bolonha do século V!

Nem sequer se sabe ao certo se o nome original da obra

era mesmo Satyricon.

Em meio a todas essas brumas de dúvidas, só uma

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certeza permaneceu unânime. É a obra mais original da literatura

latina. Aquela que traz mais fundo a marca da personalidade de

um autor.

Coisas assim a gente costuma chamar, hoje, de obras-

primas.

3

Não adianta. A literatura latina é pálido reflexo da grega,

com a qual mantém uma relação espetacular, de original para

espelho. Virgílio já está todo em Homero e Teócrito. Horácio é

Alceu, Safo e Píndaro. Cícero é Demóstenes. Ovídio é uns

alexandrinos. Tácito e Tucídides. Todo escritor romano parece

algum grego.

Claro. Em literatura, é a forma que é social. E o

elemento material transmissível, a concretude do processo

criativo. As formas e que são o material herdável. E da literatura

grega a latina recebeu todas as suas formas. Seus designs de

texto. Seus programas. Seu software morfológico. Suas

configurações desejáveis. Suas Gestalts significativas.

Nesse quadro de dependência semiótica, alguns

momentos de originalidade romana: o teatrólogo Plauto, o poeta

Catulo, o satírico Marcial, o elegíaco Propércio, quem sabe.

Isso tudo, porém, talvez, não tenha muita importância.

Em arte, o conceito de originalidade é muito recente,

tendo surgido com a Revolução Industrial e o romantismo, que a

expressa.

A maior parte do que chamamos “obras de arte” são

aproximações a um modelo considerado padrão de performance: a

humanidade é clássica, um mundo romântico é indesejável,

porque ingovernável.

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A felicidade do escritor romano era poder reproduzir, em

latim, as proezas e feitos de algum escritor grego do passado, que

ele tivesse tomado por paradigma.

Nesse sentido, a literatura romana é clássica por

excelência.

Para nós, homens do século XX, esse mundo reflexo

lembra o folclore, onde a tradição é tudo e a insurreição do

arbitrário do talento individual é vista e tratada como tal, um

ligeiro desequilíbrio que o peso da inércia logo tratará de

reconduzir aos canais competentes da boa e verdadeira forma,

aceitável e reconhecível por todos.

Mas isso são complicações modernas. Os romanos não

sofriam com isso. Seu universo verbal e literário era bilíngüe,

grego e latim. E era na Grécia, dominada militarmente, que os

jovens romanos iam completar sua educação, como, hoje, vamos

fazer o mesmo na Europa ou nos Estados Unidos.

4

roma romance

Pelo menos no Ocidente (a China é outra história), o

romance, enquanto forma, parece ter nascido das variações

retóricas escolares em torno de fatos históricos, prática habitual

no ensino da oratória no mundo greco-romano.

Ironia: a história (a ficção literária) nasce da

Historiografia, o discurso que pretende ser o relato/espelho fiel da

História.

Nesse caso, dá pra dizer que a “mentira” nasceu da “ver-

dade”, da qual a mentira não passaria de uma versão

romanceada.

Depois de Tucídides, seco, racional, “científico”, a

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historiografia grega começa a ser influenciada pela linguagem

altamente cultivada das escolas de retórica, e vai virar alguma

coisa a meio caminho entre a ciência e a arte, entre a “verdade dos

fatos” e as belezas da fantasia, a tal ponto que o romano

Quintiliano pôde dizer que os historiadores gregos “tomavam

tantas liberdades quanto os poetas”.

Neste território furta-cor, nesta twilight zone, entre a

História e a história, nasceu o romance.

A saga sobre-humana de Alexandre Magno, por

exemplo, produziu toda uma linhagem de “histórias” meio-reais,

meio-fantásticas, híbridos centauros, sereias, esfinges, das quais,

só nos chegaram notícias.

Mas o precursor grego de Petrônio teriam sido as

Milésias, ficciones erótico-pornográficas, ambientadas na cidade de

Mileto e atribuídas a um certo Aristides de Mileto (século II a.C).

Quem não gosta de sacanagem? As Milésias tiveram

grande irradiação no mundo mediterrâneo, e chegaram a ser a

leitura predileta dos soldados romanos. Em Roma, quase um

século antes do Satyricon, foram traduzidas para o latim pelo

historiador e orador Lucius Cornelius Sisenna, ao que tudo indica,

o precursor imediato de Petrônio.

Além das Milésias, este texto romano parece dever a

outra vertente helênica, de maior complexidade textual, a

chamada sátira menipéia, tipo de texto que alternava partes em

prosa com partes em poesia, criando uma espécie de diálogo,

intratextual, entre dois discursos de natureza, fins e efeitos

distintos, o chamado prosimetrum, cuja invenção os antigos

atribuíam ao filósofo Menipo de Gandara, que viveu por volta do

século III a.C.

Uma das características da menipéia era o monólogo,

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muito freqüente no Satyricon.

Mas nada disso afeta a originalidade e a primazia do

romance de Caius Petronius: até segunda ordem, o Satyricon é a

primeira obra da literatura ocidental que podemos chamar

propriamente de romance. Dele descendem todos, do Decameron

de Bocaccio à picaresca espanhola do barroco, do romance inglês

do século XVIII a Balzac, de Flaubert a Joyce.

Há, portanto, uma espécie de justiça etmológica no fato

de o vocábulo “romance” trazer dentro de si o nome de Roma.

Como se sabe, a palavra “romance”, vem do advérbio

latino medieval romanice, isto é, “em romântico”, em língua vulgar,

palavra cunhada na Idade Média quando as narrativas de ficção

eram escritas em língua vulgar, em contraste com as obras ditas

sérias, escritas em latim.

Roma, romance. Nada mais justo. Foi com o Satyricon

que o homem ocidental começou a apanhar a vida através dessa

forma muito singular que, só no século XIX, se transformou numa

espécie de O Maior de Todos os Gêneros, a epopéia burguesa da

iniciativa privada e da vida particular.

Poucos livros tiveram tão próspera descendência.

5

baixo latim, baixo-ventre: o código dionisíaco

Parece haver algum mistério no fato de, do Satyricon, só

nos ter chegado, essencialmente, o Banquete de Trimalcião,

fragmentos dos capítulos XV e XVI da obra original.

O Satyricon, para nós, é um texto onde, sobretudo, se

come. E como se comia naquela Roma Imperial! Comia-se tudo,

animais da terra, aves, peixes, salsichas, plantas, frutas, um

apetite universal, absoluto, até o limite da fome. Bebia-se vinho

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em quantidades inverossímeis.

E Roma, o imperialismo romano, devorando o mundo

mediterrâneo, o trigo da Sicília e do Egito, os figos da África, o mel

da Grécia, a pimenta do Oriente.

A devoração do mundo, a elefantíase do desejo e da

gula.

O Satyricon fala a linguagem do baixo-ventre, sob o

signo da orgia, da bacanal, da embriaguez, de Dionísio, da

confusão carnavalesca de todos os apetites.

Este código devoratório do Satyricon encontra sua

contrapartida numa espécie de complemento excretório: o

Satyricon é todo percorrido por alusões ao ato de cagar, vomitar e

mijar. Trimalcião chega ao ponto de comentar suas dificuldades de

evacuar diante de seus convivas que devoram um javali.

Comer, cagar: o Satyricon come e caga. Como todo ser

vivo.

6

menipéia, picaresca, carnaval

Quem nunca leu Petrônio não conhece as delícias do

latim, o sumo, o suco, o tutano, o perfume desse latim ágil, vivo,

vulgar, malandro, espertíssimo, único.

O latim que aprendemos nas escolas (quando havia

latim) era aquela coisa pesada, retórica, altamente artificial, dos

chamados “grandes clássicos”, Cícero, Virgílio, César, Ovídio,

Horário, Tito Lívio.

Mal conseguimos imaginar a milionária riqueza verbal

da cultura greco-latina, baseada na retórica, na tradição escolar

da oratória, meticulosa acumulação de saberes verbais, que

começa no século V antes de Cristo e só termina com a queda do

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Império Romano, no século V depois de Cristo. Mil anos de

repertório!

Até as vanguardas do início do século XX, pouca coisa

inventamos de novo em relação à civilização greco-latina: recursos

de estilo, figuras de linguagem, a distinção entre poesia e prosa,

gêneros literários, formas de dizer, moldes do sentir e do pensar,

esquemas mentais, tudo devemos a esses gigantes em cujos

ombros estamos trepados.

Essa cultura, claro, era altamente aristocrática.

Uma aristocracia cria, naturalmente, uma linguagem

aristocrática que a expresse enquanto grupo social.

No caso de Roma, do que nos chegou, pouquíssima

coisa tem sabor popular, quase nada sabemos de como se falava

nas ruas, nos mercados, nas tabernas, nos lupanares, nas

oficinas, nas esquinas, no interior das casas. E é desse latim que

descendem o italiano, o francês, o espanhol, o português...

Traços de latim vivo, vulgo latim vulgar: o comediógrafo

Plauto, o lírico Catulo, cartas de Cícero, o satírico e epigramático

Marcial. E só.

Nesse quadro, Petrônio discrepa.

Nas falas dos personagens do fabuloso banquete de

Trimalcião, vemos desfilar um latim vivo, direto, o raro do reles,

enfim, diante de nós.

Expressões corriqueiras. Torneios familiares. Locuções

proverbiais. Frases feitas. A língua viva, na boca de pessoas vivas.

Por isso mesmo, o latim de Petrônio, apesar da sua

precisão, é particularmente difícil, um latim concentrado, onde

cada palavra remete a uma instituição, a um hábito da época, a

um gesto preciso.

Pragas. Invocações religiosas. Fórmulas mágicas. O

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Satyricon é rico de raridades.

Nenhuma obra da literatura romana que nos chegou

apresenta número tão elevado daquilo que a filosofia chama apax

legomena, palavras que só aparecem uma vez, nesse autor, numa

dada obra.

Em nenhuma outra obra da literatura latina,

encontramos palavras como baliscus, matus, carica, embasiceuta,

scordalia, mixcix, bucolesias, caldicerebrius, laecasin e centenas de

outras que se perderam no tempo, como plumas ao vento.

O texto de Petrônio, refletindo uma cultura bilíngüe,

grega e latina, está eivado de palavras e expressões gregas, que

deviam ser correntes no meio em que ele vivia.

Tanto que os nomes dos personagens do Satyricon são

todos gregos, com subsentidos significativos para seu público.

Ascilto, em grego, quer dizer “infatigável”. Eumolpo, “canta bem”.

Giton quer dizer “semelhante”. Encolpo dá a idéia de

“passividade”. Outros personagens se chamam “Psyche”,

“Hermeros”, “Echion”, “Agamenon”, “Phileros”, todos nomes

helênicos, que funcionam como máscaras verbais no carnavalesco

e carnavalizado romance de Petrônio.

O nome de Trimalcião (Nero?) é um composto burlesco

greco-semita: tri, “três vezes grande”, e malkion, em semita, “rei”, o

imensamente ridículo três vezes rei.

No caso de Petrônio, esse latim, salpicado de grego,

estava a serviço de um talento (ou diremos gênio?) narrativo, de

que mal podemos fazer idéia, dada a natureza fragmentária do

Satyricon.

Seja como for, ainda não foi superada a capacidade de

Petrônio em marcar o caráter, e até a profissão e a origem social,

de um personagem pela linguagem que usa. O Satyricon é uma

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galeria de tipos, o liberto arrivista e cúpido, o mestre de retórica,

pedante e livresco, o eunuco bêbado, o ridículo nouveau riche, o

cínico, o amoral aproveitador dos esbanjamentos de uma

sociedade absurdamente desigual, um carnaval de máscaras e

fantasias, uma polifonia.

Acrescenta à riqueza do texto o fato de o Satyricon

conter em seu fluxo de prosa inúmeros trechos em poesia,

metrificados: é o que se chama de “menipéia”, uma forma mista,

compósita, híbrida, coincidentia oppositorum.

No Satyricon, entre outras coisas, uma sátira ao ensino

retórico, a prosa é plana, vulgar, popular, coloquial. Os poemas

são inflados de uma retórica beirando o burlesco e o ridículo.

Ao tradutor que quer devolver um vivo aos vivos, uma

tarefa ingrata.

Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair os dois,

único modo de não trair ninguém.

A concisão extrema do latim obriga a alongar certas

frases para que não se tornem incompreensíveis ao leitor atual.

Impossível entender o Satyricon sem ter alguma noção

das instituições da Roma escravagista, tão distintas das nossas.

Gestos, hábitos, significados, tudo nos é tão estranho

quanto num romance de ficção científica.

O que nos aproxima de Petrônio, e nos une, é a

presença forte de uma condição humana, uma humanidade feita

de grandezas e baixezas, de esplendores e misérias, coisa, aliás,

que o romance vem fazendo desde que o Satyricon nasceu, e deu o

primeiro exemplo.

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Um texto bastardo

1

Joyce é o maior prosador do século XX.

Semelhante afirmação está sujeita a dois tipos de

contestação, extremos. Não é bem assim. Maior, em que sentido?

Afinal, há Proust. Há Kafka.

Thomas Mann.

— Faulkner!

No terreno ideológico, as objeções se multiplicam pela

infinita imbecilidade que caracteriza o pensamento ideológico.

— Solidão aristocrática.

— Insensibilidade aos problemas reais do seu povo.

— Elitismo hermético.

— Intelectualismo pedante e cosmopolita.

Do outro lado, cada vez mais abundantes os que

objetam.

Não é o maior prosador do século XX. É o maior

prosador que jamais houve.

— Maior que Cervantes? E Quevedo?

— E Balzac?

— E Stendhal? E Flaubert?

— E Dostoievski?! E Tolstoi?!

Em que sentido, nesse time de gigantes, Joyce vem a ser

o maior?

Primeiro, claro, pelo insuperável domínio dos poderes de

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som e sentido da língua em que escreve: a máquina material com

que se expressa a alma de James Joyce só tem paralelo nos

poderes sinfônicos de um Beethoven, de um Wagner, de um

Stravinski (e esse domínio sobre a arte é um domínio sobre a

vida).

Depois, pela coerência arquitetônica única que

conseguiu imprimir ao conjunto de sua obra o autor de

Dublinenses (1906), Retrato do Artista Quando Jovem (1914),

Ulysses (1922) e Finnegans Wake (1939). Os dois primeiros livros,

um, uma coletânea de contos, e o outro um romance de formação

(um Bildungsroman, como dizem os alemães, grandes cultores do

gênero, que começa, no século V, com as Confissões, de S.

Agostinho), os Dublinenses e o Retrato ainda cabem dentro da

estética textual do século XIX.

Ulysses, porém, é puro século XX, o século das

megalópoles, das massas, do comunismo, do fascismo, o século do

cinema, do rádio, da psicanálise, da bomba atômica, que encerrou

a guerra, que começou no ano em que foi publicado o Wake.

Mas o Ulysses ainda é, apesar de tantas inovações, um

romance, mesmo que seja o romance para acabar com todos os

romances, do dito célebre.

O Wake já é um texto para o século XXI, prosa, poesia?,

o quê?

Ulysses foi difícil (é cada vez menos).

O Wake, cápsula do tempo, é ilegível (por enquanto).

A irradiação da obra de Joyce atinge uma área imensa

na prosa de ficção do século XX. Suas conquistas técnicas, como o

monólogo interior, no Ulysses, fazem, hoje, parte do repertório

comum, do parque de recursos de qualquer ficcionista que preze

seu ofício. Hoje em dia, o monólogo interior já foi incorporado até

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pela ficção dita comercial, de consumo de massas: em best-seller

mundial, James Clavell tira um belo partido desse recurso,

outrora, de vanguarda.

Ulysses /Joyce é influência determinante na prosa

criativa deste século. E a lista dos influenciados, direta ou

indiretamente, impressiona pela excelência literária: Faulkner,

Beckett, Virgínia Woolf, Musil (O Homem Sem Qualidades), Broch

(A Morte de Virgílio), Guimarães Rosa, Cario Emílio Gadda,

Augusto Roa Bastos, Lezama Lima, Cabrera Infante, Burgess...

2

Impecável a coerência crescente da engenharia de vôo

entre as quatro obras-primas de Joyce.

Nos trinta anos entre os Dublinenses e o Wake, sempre

escreveu-se o mesmo livro, o mesmo universo sempre levado a

graus cada vez mais agudos de criatividade verbal e inventiva

arquitetônica.

O mesmo Universo: a Irlanda, a Irlanda, a Irlanda,

maldita ilha maravilhosa, duende, sempre rebelde e sempre

submissa à Inglaterra, terra de bêbados e excêntricos, de

hipócritas e humoristas, com toda a parda mediocridade pastosa

de Dublin, sua capital, Irlanda papista, abafada debaixo de um

catolicismo retrógrado, castrador, aldeão.

O mesmo Universo: vidas rotineiras, sem grandeza, sem

horizontes, sem sentido.

Joyce só partiu para um exílio espontâneo pela Europa

(Paris, Zurich, Trieste) para melhor cultivar, à distância, sua

obsessão pela Irlanda, execrada e idolatrada na própria veemência

dessa execração, idéia fixa, agenbite of inwit, memória, o único

tempo possível.

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Os temas, os tipos, e até frases inteiras se repetem,

crescendo, dos Dublinenses ao Wake.

Joyce nunca saiu da Irlanda. Nunca saiu de sua obra.

3

Os Dublinenses: a Irlanda, vista do lado de fora.

Retrato do Artista: a Irlanda, vista de dentro.

Ulysses: entrechoque entre o fora e o dentro, monólogo

interior, o Dia, a História.

Finnegans Wake: síntese dialética entre o fora e o

dentro, pura linguagem, a Noite, o Sonho.

Na triunfal cavalgada das valquírias dessas quatro

obras-primas, Giacomo Joyce faz às vezes, talvez, de um filho

bastardo, fruto de um prazer furtivo, de um amor clandestino, de

um erro da juventude, de uma fantasia erótica.

Alinha, assim, com os livros de poemas, Chamber Music

e Tomes Penyeach, performances líricas de uma maestria métrica

e verbal extraordinária, mas apenas um pouco mais que isso, no

século dos Cantares de Ezra Pound e do Waste Land, de T. S.

Eliot.

Ou com Exiles, a peça que Joyce quis fazer, mas o

mundo do teatro nunca amou.

Mas, por favor, não façamos pouco de Giacomo Joyce.

Quando o escreveu, Joyce, terminando o Retrato e grávido do

Ulysses, já era, visivelmente, um dos maiores escritores da

Europa.

Em Giacomo Joyce, já dá pra ver o surgimento dos

germes do monólogo interior, a técnica central do Ulysses e uma

das grandes conquistas da ficção do século XX.

Joyce teria descoberto o recurso em um obscuro

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romance francês do século passado, Les Lauriers Sont Coupés

(1887), de Édouard Dujardin, figura de menor importância, ligada

ao movimento simbolista.

Esse monólogo interior parece consistir, sobretudo,

numa súbita (e não anunciada) passagem da terceira para a

primeira pessoa no universo do discurso, uma passagem direta,

sem índices do tipo, disse consigo, pensou, refletiu, e outros verbos

que acusam a interioridade de um emissor.

A ficção clássica, realista, naturalista, repousa sobre a

falácia da objetividade, fundada, lingüisticamente, na terceira

pessoa, no pólo do ELE, o pólo das coisas, como se as próprias

coisas falassem de si em lugar de um narrador. E a linguagem de

Deus, o narrador onisciente.

O monólogo interior representa um princípio de

economia narrativa. E, conseqüentemente, um aumento de

velocidade no tempo do texto e da leitura.

Alguns traços dele em O Vermelho e o Negro, de Stendhal

(1830).

E em Dostoiesvski (1821-1881).

O monólogo interior, de resto, representa uma espécie

de carnavalização do eixo pronominal do relato. A tarde está linda.

Preciso dizer a ela tudo o que sinto. Você não perde por esperar.

Ela, eu, você: sem aviso, sem hierarquia, como no fluxo da vida e

da consciência, onde eu, tu e ele podem ocupar o mesmo lugar no

espaço tempo, sem antes nem depois.

No quarto bloco de Giacomo Joyce, a voz que diz alguém

quer falar com a senhorita já comparece sem aviso, como uma

página de Ulysses.

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4

Das circunstâncias particulares em que foi escrito, que

fale Richard Ellmann.

Da paixão do professor maduro pela bela aluna judia

italiana de Trieste. Dos destinos do manuscrito quase perdido, não

fosse a solicitude de um irmão.

Para nós interessa, sobretudo, encontrar o Joyce que

conhecemos e aprendemos a admirar, senhor de todas as forças

da língua inglesa, num momento fragmentário, em mosaico,

isomórfico com a situação pessoal que Joyce vivia naquele

momento.

Giacomo Joyce é uma novela, cinematográfica,

ideogrâmica, como uma peça No, feita de flashes, um grande

poema de amor, uma vertigem vista de soslaio.

Neste texto, o arquiteto de Ulysses ensaiou,

orquestrando relâmpagos.

Bem-vindo de volta à casa, Giacomo Joyce.

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taiyo to tetsu entre o gesto e o texto

guerra sou eu

guerra é você

guerra é de quem

de guerra for capaz

guerra é assunto

importante demais

para ser deixado

na mão dos generais

(p. leminski, 85)

1

Certo dia de novembro de 1970, os jornais da capital do

Japão estamparam em suas colunas policiais uma notícia, no

mínimo, inquietante.

No dia anterior, um pequeno grupo de praticantes de

artes marciais tinha invadido, com violência, as dependências do

Quartel das Forças Armadas de Tóquio. O líder do grupo, um

homem forte, aparentando uns quarenta anos, acompanhado de

um jovem, chegou até o gabinete do Comandante da praça, diante

do qual os dois cometeram harakiri, o suicídio ritual da classe

samurai.

Antes do gesto supremo, acrescentaram os periódicos, o

líder dos invasores leu para a tropa que se encontrava no local

uma proclamação onde denunciava violentamente a

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ocidentalização, a decadência dos códigos de honra tradicionais do

País do Sol Nascente. E a tropa pôs-se a rir.

O grupo invasor era o Tate no Kai, a Sociedade do

Escudo, um exército privado de cultores de artes marciais,

organizado e dirigido pelo escritor Yukio Mishima1, que, assim,

declarava guerra, sozinho, ao Exército japonês.

1 Na manhã do dia quando se matou, Mishima enviou a seu editor o último volume da sua tetralogia, O Mar da Fertilidade.

Yukio Mishima (pseudônimo de Kimitake Hiraoka)

nasceu em Tóquio, de família samurai, em 14 de janeiro de 1925,

filho de um oficial do Ministério da Agricultura. Formou-se em

Direito e, depois do sucesso de seu romance Confissões de uma

Máscara (Kamen no Kokuhaku), em 1949, entregou-se à literatura

e outros excessos. Sua obra compreende mais de doze romances,

Confissões de uma Máscara, Sede de Amor (Ai no Kawaki), Morte

no Meio do Verão, Kinkakuji, Sei no Jida, Kinjiki, Higyo, focalizando

a dissolução dos costumes tradicionais no Japão do pós-guerra.

Deixou mais de uma centena de narrativas curtas. E peças para o

teatro Nô e Kabuki, os estilos ancestrais do teatro nipônico (Peças

Modernas para o Nô).

Em 1952, Mishima faz uma viagem à Grécia, onde, em

contato com a beleza da estatuária helênica antiga, seu

pessimismo de derrotado toma nova direção com a descoberta do

próprio corpo e da “força do corpo humano exposto à luz do sol”.

Foi ator num filme de gangsters. Gravou discos. E

participou de debates em programas de TV, tornando-se uma

celebridade nacional.

Uma viagem a Nova Iorque enriquece ainda mais o

complexo de suas idéias. É quando, conhecendo o existencialismo,

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desenvolve o “nihilismo ativo”, doutrina na qual o suicídio aparece

como o supremo gesto de liberdade humana.

Seu homossexualismo de tipo dórico, militar, másculo,

tinge-se cada vez mais de colorações sadomasoquistas,

transparentes em seu exibicionismo narcisista de tantas fotos,

onde se compraz em posar nu, a musculatura de halterofilista

saltando sob a pele, a espada samurai a meio caminho entre a

bainha e o olhar do observador, objeto sexual absoluto, sujeito

sexual absoluto.

Em Mishima, realiza-se, em carne viva, o drama

essencial da inter-subjetividade, no qual olhar é um ato agressivo

de apropriação do objeto pela consciência de outro, no qual ser

olhado é sinônimo de estar morto. No pleno exercício do existir, as

pessoas são invisíveis. Só a morte lhes dá a opaca presença

absoluta de um objeto do mundo, de uma obra de arte, por

exemplo.

Mais que fazer apenas obras de arte, Mishima quis se

fazer todo, corpo, história e vida, uma obra de arte, entidade além

e acima da mudança, da corrupção e da perda de sentido,

condição natural de todos os seres deste mundo sub-lunar.

Da fase novaiorquina de Mishima são Gogo no Eiko

(1963) e Sado Koshakufujin (1965).

Sol e Aço, de 1970, manifesto e síntese de seu

pensamento final, foi seu último livro.

Com tanto texto, engana-se, porém, quem imaginar

Mishima como pacato escriba, todo dedicado a seus livros e seu

trabalho literário, nos moldes erasmianos do scholar ocidental,

último descendente do monge beneditino, a meio caminho entre o

céu e o texto, Além e Signo.

Cultor das artes marciais, Mishima viveu entre o sol e o

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aço. Praticava karatê e a esgrima Kendô (da qual era faixa preta

quinto grau). Na procura do máximo de seu limite físico, fazia

halteres. Narcisista, aparece em suas fotografias mais conhecidas,

quase nu, músculos à flor da pele, um super-homem pronto para

a batalha final consigo mesmo. Que perdeu-ganhou.

Quando o intelectual ocidental parte para a ação, sua

sereia, vai normalmente para a política, esse simulacro da ação,

que substitui a verdadeira ação, que é a guerra, pelos vai-e-vens

das conversações e negociações, próprias da classe dos

comerciantes. Mishima era “um primitivo”. Um primitivo

sofisticadíssimo, herdeiro de uma verdadeira civilização, alguma

coisa pela qual vale a pena morrer.

Antes de condenar Mishima, vamos perguntar: e nós?

Será que nós temos alguma coisa pela qual valha a pena morrer?

2

O isolamento insular e a benigna (porque buscada, não

imposta) influência cultural chinesa criaram no Japão uma das

civilizações mais originais da História, cultura de uma coerência

interna única. Onde todos os aspectos da vida estão (estavam?)

integrados numa harmonia geral. Poder, sociedade, religião, arte.

Uma civilização que é, ela toda, uma gigantesca obra de arte viva

de mil anos. Por isso ou por pura sorte geográfica, o Japão foi a

única cultura da África, América e Ásia que escapou incólume da

agressão planetária que o Ocidente gosta de chamar,

pomposamente, de Grandes Descobrimentos, o mais vasto ato de

rapina da História. Assim que percebeu o que significava a

chegada dos navegadores e missionários, a elite governante do

Japão, o Xogun à frente, fechou o país, ferozmente, a qualquer

contato com o exterior. Um ovo que só a Revolução Industrial em

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1865 começou a quebrar. E nem se sabe se quebrou: o Japão foi o

país não europeu que melhor soube deglutir a Revolução

Industrial.

Era a integridade de uma cultura que Mishima defendia

quando abriu o ventre diante do Comandante do quartel de

Tóquio, escrevendo com aço na pele da sua vida as letras de

sangue que diziam: EU NÃO CONCORDO.

Mishima pertence a uma espécie particular de

revoltados, encontradiça entre os artistas: os revolucionários para

trás, os utópicos nostálgicos. “Os artistas são as antenas da raça”,

de Ezra Pound, sempre tem sido entendido num sentido futurista,

“progressista”, pra frente. O que talvez seja um equívoco. Nem

Pound era tão “progressista” assim... Como não o eram Fernando

Pessoa, Eliot, Yeats, Gottfried Benn, Guimarães Rosa, Drieu, e,

curiosamente, Pasolini, que dizia trocar uma florzinha de terreno

baldio por todas as instalações industriais da Itália.

Mishima era um artista. E os artistas são

particularmente sensíveis às alterações do meio ambiente.

O que não leva necessariamente a um triunfalismo

futurista. Quem foi que disse que a felicidade se encontra lá na

frente? O progresso (com que horror escrevemos esta palavra hoje!)

é uma invenção da burguesia dos séculos XVIII e XIX, que sempre

confundiu avanço da Humanidade com a prosperidade dos (seus)

negócios.

3

Quando a Marinha Imperial japonesa e sua aviação,

num tresloucado gesto, atacou de surpresa e afundou a frota

norte-americana do Pacífico, em Pearl Harbor, no Havaí, o

samurai Yukio Mishima tinha dezesseis anos. E vinte, quando, à

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sombra dos cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki, o

Japão se rendeu, depois de anos de vitórias, senhor do Extremo

Oriente. O Império do Sol Nascente foi ocupado, a seguir, pelos

Estados Unidos, que desmilitarizaram o país e incluíram-no em

sua esfera de influência, depois de obrigar o Imperador, até ali um

deus, a proclamar sua humanidade e apoiar uma Constituição

que introduzia bruscamente as instituições parlamentares anglo-

saxãs num país ainda meio feudal, apesar da industrialização.

Esse foi o quadro em que Yukio Mishima se tornou

adulto, um mundo estraçalhado, uma cultura estuprada, um

campo de ruínas, algo comparável ao México dos aztecas, depois

da vitória de Cortez.

A obsessão pela morte tem raízes nesse quadro histórico

e na tradição da sua classe social, na qual o seppuku, o suicídio

ritual harakiri, sempre foi distinção e privilégio de casta: tamanha

a rigidez das relações sociais no Japão tradicional que os conflitos

não permitiam negociações nem compromissos, exigindo a pura

auto-eliminação dos envolvidos. Nisso, o Japão é único: não há

paralelos em nenhuma civilização humana de uma

institucionalização tão radical do suicídio. Nisso, a solução final de

Mishima se distingue, essencialmente, do suicídio de um

Maiakovski ou de um Iessiênin. De Drieu La Rochelle (parecido

com ele, em tantos traços). De Stephan Zweig. De Virgínia Wolf.

De Van Gogh. Hart Crane. De Walter Benjamin. De Ganga Zumba.

A auto-imolação, para ele, era uma obra de arte, algo a

ser preparado, saboreado por antecipação, a chave de ouro de

uma vida, um clímax.

Ou, para falar em jargão freudiano, um orgasmo de

Tânatos.

Para a morte, Mishima se preparou, treinando halteres,

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desenvolvendo os músculos, treinando artes marciais,

desenvolvendo ao máximo suas potencialidades, enquanto

matéria.

Quando a lâmina, fazendo um L, entrou em sua barriga,

naquela tarde de 1970, no Quartel General de Tóquio, a morte,

longamente namorada, recebia um presente régio: um corpo

atleticamente perfeito, pleno, no auge de sua forma e de sua força,

como ele queria. E uma mente lúcida, cultivada, perfeitamente

sabedora do que fazia.

Em Sol e Aço, acompanhamos a luta minuciosa de

Mishima para ultrapassar as contradições entre corpo e espírito.

E, com ele, aprendemos que só a morte supera, para

sempre, essa contradição.

4

“Literatura” é um conceito (ou preconceito) ocidental

moderno, uma categoria européia, baseada na produção textual

da França, principalmente com a concorrência, meio discrepante,

da tradição anglo-saxã, milionária de valores e performances

textuais. Outras literaturas da Europa, a espanhola, a alemã, a

italiana, a russa, apesar de cumes insuperáveis, sempre ficaram

como coisa ligeiramente periférica e subsidiária. Quantos gênios e

obras-primas não ficaram desconhecidos e obscuros apenas

porque tiveram a desgraça de acontecer em húngaro, em sueco,

em gaélico, em albanês, em íidisch, em polonês, em galego, em

finlandês, em holandês, em tcheco, em português...

Como avaliar, valorar, com critérios ocidentais,

francocêntricos, obra de uma literatura tão remota e autônoma

quanto a japonesa, devedora, em muita coisa, da literatura

chinesa, mas autóctone na criação de formas como o Nô e o haiku,

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exclusivamente nipônicas?

Classicismo. Barroco. Neo-classicismo. Romantismo.

Realismo. Parnasianismo. Naturalismo. Simbolismo. Vanguardas e

modernidade. Esse quadro histórico nos é tão cômodo quanto um

chinelo velho. E baseia-se na evolução da literatura francesa.

Quando abordamos a literatura japonesa, porém, esse

esqueminha mental que mediterrânea e subterraneamente, dirige

nossa lógica, simplesmente não funciona.

Depois de 1867, abertura dos portos com a Era Meiji, o

Japão sofreu o impacto literário de algumas novidades ocidentais.

Mas só o realismo-naturalismo representou novidade mesmo. A

literatura japonesa em geral é de caráter meio lírico, meio

fantástico, do teatro à ficção, da poesia ao diário (gênero maior, no

Japão).

Com seu credo de “literatura colada à vida cotidiana

imediata”, o realismo-naturalismo trazia a pobreza essencial do

projeto de vida burguês para dentro da literatura: o realismo-

naturalismo é o triunfo da razão burguesa, contábil, pragmática,

imediatista, imanente.

Os textos de Mishima respiram um outro tempo

cultural.

Sol e Aço não sabemos dizer se é poesia ou prosa, livro

de memórias ou ensaio filosófico, confissões de uma máscara que

traz por trás de si outra máscara, outra máscara, outra, máscaras

sobre máscaras.

Seu andamento lembra Sendas de Oku, e outros diários

do grande haikaisista Bashô (séc. XVII). A diferença é que, em

Bashô, há tristeza e melancolia por trás da beleza.

Em Mishima, há desespero.

O desespero pessoal. O desespero coletivo da derrota na

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guerra.

Um desespero que quer chegar perto da vida, tão perto

quanto chegou do coração do samurai aquela lâmina, naquele dia

de novembro de 1970.

5

Sol e Aço é, basicamente, a reflexão de um poeta e atleta

sobre as relações entre o corpo e a mente. Entre o fundo e a

superfície. O dentro e o fora. A vida mental e a existência

corpórea.

Para nós, ocidentais do século XX, esse tipo de reflexão

não pode deixar de lembrar as conquistas da Fenomenologia, as

catedrais conceptuais de Husserl, Valéry, Sartre ou Merleau-

Ponty, horas e horas de cerrado raciocínio metódico tentando

flagrar, com exatidão, os misteriosos matrimônios e divórcios entre

o exterior e o interior, as fraquezas onipotentes do Eu que pensa e

a selvagem liberdade do mundo que é pensado.

Mas que diferença entre as teias puramente lógicas dos

mestres ocidentais e o percurso de Sensei Mishima!

O espírito dos ocidentais pensa a matéria, o Fora.

Num gesto muito mais genial, porque mais global,

essencialmente radical, Mishima resolve o problema

transformando seu espírito em matéria, matéria pensante,

inteligente, quando se entrega de corpo e alma à prática do kendô,

do karatê e do halterofilismo.

Para fazer isso, Mishima nem precisou sair de casa.

Essa sabedoria o Japão já tinha, sob a forma de “Bushi-dô”, o

caminho do guerreiro, aquele código global de postura e

comportamento que caracterizava a casta samurai (e que, de um

jeito ou de outro, acabou por impregnar a mentalidade de todos os

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japoneses em geral). Um dia, no Japão, o maior dos mestres de

haikai sentenciou:

NÃO SIGAM AS PEGADAS DOS ANTIGOS.

PROCUREM OS QUE ELES PROCURARAM

No melhor estilo oriental, Mishima apenas descobriu

sozinho o tesouro que estava enterrado debaixo dos seus pés.

6

Vírgulas. Dois pontos. Ponto de interrogação. De excla-

mação. Travessão. Aspas. Essas coisas gutenberguianas não

existem no japonês clássico, onde as frases não começam com

maiúscula nem terminam com ponto final. Saem do nada e só

terminam diante do vazio zen da página, como se todas as frases

terminassem num precipício de reticências.

A mente nipônica se move num universo material regido

por leis distintas das que regem nosso mundo textual e

conceptual.

Mal conseguimos conceber um universo textual onde as

marcações gráficas consagradas pela imprensa não têm vigência:

no texto japonês nem há espaço separando cada palavra,

continuum ininterrupto como na fala, sílaba após sílaba forçando

jogos de palavras, ressonâncias, ecos colidindo, palavras e

sentidos se acavalando em polinômios vaporosos.

Com a ocidentalização depois da Era Meiji (1867), o

Japão adotou as convenções da imprensa gutenberguiana, na

medida do possível. Mishima é um japonês do século XX, até

muito influenciado por leituras de escritores do Ocidente (Novalis,

Amiel, Yeats, Ícaro!). Mas o estilo dos movimentos do seu

pensamento acusa um acentuado sabor nipônico.

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As categorias da lógica de Aristóteles, hoje sabemos,

eram apenas as categorias da língua grega. Outra é a “lógica” de

quem pensa em japonês.

A língua japonesa, por sua própria natureza, favorece os

longos períodos, com muitos gerúndios, ligados, em subordinação,

por uma máquina de conjunções que não correspondem

exatamente aos nossos “mas”, “porque”, “se”, “logo”, “embora”,

“por isso”. E é nessa máquina que se monta qualquer lógica, esse

sinônimo de sintaxe.

Penso nisso ao tentar, desconcertado, acompanhar em

Sol e Aço, a lógica peculiar com que Mishima sai de um

pensamento para o outro, de um fato para uma conclusão, de

uma premissa para sua conseqüência. Até que ponto esse meu

desconcerto vem das singularidades da língua e da lógica

japonesas, até que ponto vem do próprio Mishima, não sei ao

certo.

De qualquer forma, quem quer que já tenha estudado

uma língua muito antiga ou muito remota sabe que não existe

uma “lógica universal” sobre a qual as línguas se conformariam

mais ou menos: cada idioma (ou família de línguas) postula uma

lógica particular, exclusiva, intransferível, um mini-universo

fechado de significados.

Palavras como “problema”, “ironia”, “lógica”, “natureza”,

“hipótese”, “culpa”, “honra”, “forma”, “contradição”, “essência”,

“conceito”, “abstrato”, “causa”, “efeito”, “ordem”, para nós tão

óbvias e indispensáveis para pensar o mundo e a vida, são apenas

conceitos greco-latinos, ocidentais, mediterrâneos, e podem não

ter equivalentes em outros sistemas lingüísticos-culturais2.

2 Conceitos são artefatos, coisas (coisas não estão sujeitas a tradução): “Páscoa”, “filosofia”, “alienação”, “ying”, “yang”, “zen”, “jazz”, “totem” (do

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ojibua, língua pele-vermelha), “tabu” (do polinésio), “jihad”, “mitzvah”, “faslnefas”, “milagre”, “axé”, “domingo”, “panema”, “esprit de corps”, “romântico”, “júri”, “guilate”, “missa”, “dengo”, “xodá”, “harakiri”.

Qual nossa possibilidade, por exemplo, de tradução do

conceito sânscrito-hindu de “karma”?

Em hebraico antigo, havia uma forma verbal que

representava, ao mesmo tempo, o pretérito e o futuro. Ainda em

hebraico, a mesma palavra “dabar” designa “palavra” e “coisa”:

como vivenciar um mundo em que palavra e coisa se dizem com a

mesma palavra (ou a mesma coisa?)

E que dizer das línguas, como o chinês, ou o tupi, onde

não existe o verbo “ser”?

O único esperanto, senhores, é a tecnologia industrial.

Toda tradução, de certa forma, uma impossibilidade, é

sempre uma agressão, um ato de violência, uma brutalidade: toda

a mensagem deveria ser deixada em paz no idioma em que foi

concebida.

7

No volume El Informe de Brodia, Jorge Luis Borges tem

um conto, La Señora Mayor, que me lembra muito o destino que

contemplou Yukio Mishima. Ou foi o destino de Mishima que me

lembrou La Señora Mayor? Borgeanamente, prefiro não saber.

La Señora Mayor é a fábula de Maria Justina Rubio de

Jáuregui, filha de um coronel que lutou nas guerras da

Independência argentina.

No dia 14 de janeiro de 1941, ela completaria cem anos,

la única hija de guerreros de la Independencia que no había muerto

aún, no dizer do mais inventivo ficcionista que a América Latina já

produziu.

Nesse centenariamente festivo dia, autoridades, amigos

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e patriotas resolvem dar uma festa para celebrar, com grande

concurso da imprensa, muitos brindes e discursos fervendo de

civismo e história pátria. Passados alguns dias, arrasada de tanta

emoção, La Señora Mayor veio a falecer, la última víctima, diz

Borges, de uma batalha que aconteceu no Peru, há quase cem

anos atrás.

Mishima, suicidando-se em 1970, é a última baixa do

Exército Imperial Japonês da Segunda Guerra Mundial, a guerra

que ele, samurai, quis lutar, mas, infelizmente, era jovem demais

na época. Quando Mishima pratica “harakiri”, o mundo que ele

defende já é, há muito tempo, um universo de fantasmas: o Japão

é um dos países capitalistas mais avançados, altamente

industrializado, norte-americanizado e desmilitarizado,

dependendo dos Estados Unidos até para sua defesa externa.

Para essa morte-protesto, morte de mártir, morte de

monge budista se queimando vivo no Vietnã, Mishima se preparou

durante muitos anos. Anos de vergonha e humilhação. De

degradação nacional e raiva impotente. De ódio surdo e dentes

cerrados. Anos de estupro, invasão e ocupação.

Anos de muito texto, romances, contos, peças de teatro.

Mas, sobretudo, anos de sol e de aço: anos de halteres,

de milhares de quilômetros corridos, de flexões, de apoio de frente

sobre o solo, de suor saindo com a força com que sai o sangue de

uma veia cortada.

De morte, não. Sol e Aço é uma afirmação da vida. De

uma vida tão tensa e tão forte que só o Fim poderia ser o

Significado.

Nem venham com esquemas Freud-psicanalíticos sobre

a obsessão de Mishima pelo suicídio. De que valem esses

esquemas no interior de um grupo social onde o suicídio não é um

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fenômeno patológico, uma carência, mas o sinal de uma plenitude,

como entre os antigos filósofos estóicos gregos e romanos, que

viam na auto-imolação uma afirmação dos poderes da consciência

sobre os acasos do destino? Narcisimo. Sadismo. Masoquismo.

Reacionarismo. As palavrinhas terminadas em “ismo” com que

tentamos dar algum sentido à nossa pobre vida feita de alguns

lucros e vagas esperanças não fazem nenhum efeito quando

batem nos músculos poderosos de Sensei Mishima.

Guevaras, Mishimas: mortos, somos invencíveis.

8

Em Mishima, o percurso de busca, tateando no escuro

entre a noite do pensamento e os reflexos do sol no aço das

espadas e halteres, entre o doentio da razão pura e os esplendores

da pele bronzeada e dos músculos conduzidos a seu máximo

desenvolvimento, em Mishima, esse percurso de procura casa, às

mil maravilhas, com as sinuosidades da língua japonesa que, ao

contrário da chinesa, dura, seca e simétrica, parece se comprazer

em caprichosos meandros de vaporosas sinuosidades de incenso,

donde extrai sua beleza específica, uma formosura, digamos

assim, olfativa, atmosférica, ambiental, em fluida luta contra a

morte que o conceito puro representa.

O texto de Mishima é todo perfumado de parece-me, tive

a impressão de que poderia sentir, nada mais me restava a não ser

entregar-me ã necessidade de vir a pensar que, formulações

extremamente mediatizadas, cautelosas, especulares, refrações

como que gasosas, muito mais complexas do que a brusquidão

totalitária de um o homem é uma paixão inútil, a religião é o ópio do

povo, o Estado sou eu, de Sartre, Marx ou Luís XIV, o estilo

ocidental de emitir o conceito, lapidar concisão herdada da dura

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lex sed lex do latim, idioma de legisladores e administradores,

nossa mãe e superego.

O que Mishima apresenta não é uma generalidade. É

uma experiência pessoal, intransferível como uma dor de dente,

como parar de fumar, como querer ser maior que si mesmo.

Sol e Aço: a luta com as palavras. A luta com as armas.

A luta consigo mesmo. A luta contra o destino. O Amor pelo sol.

O texto/testamento do samurai está à altura do gesto.

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lennon rindo

business man

make as many business

as you can

you will never know

who i am

your mother

says no

your father

says never

you’l never know

how the strawberry fields

il will be forever

(Caprichos e Relaxos)

1

“que pode

um pobre rapaz pobre fazer

a não ser

cantar numa banda de rock?”

(Mick Jagger, dos Rolling Stones, “Street Fighting Man”)

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Este livro são dois, Lennon On His Own Write, de 1964 e

A Spaniard In The Works, publicado em 1965, estranhas

miscelâneas de textos de natureza vária, flash-contos, esboços de

peças, poemas nonsense, acompanhados de desenhos, todos

marcados por extrema criatividade de linguagem, conduzida ao

absurdo por um humor sarcástico e cínico.

Quando os escreveu, John estava à frente de uma

banda inglesa de rock, os Quarrymen, agora The Beatles,

trocadilho que ele inventou, montando beetles, “besouros”, em

inglês, com beat, “batida de percussão”, e, certamente, beat

generation, beatniks.

Nesse momento, Lennon recebia, direta e pessoalmente,

o impacto da criatividade de Bob Dylan, músico, escritor e

desenhista como ele.

Com Dylan, um judeu novayorquino muito mais

sofisticado intelectualmente que ele, John aprendeu isso e as

coisas, “ouvindo Dylan, descobri que letra de música não precisa

ser papo furado”, confessou o beatle que, no princípio, assinava

letras que diziam apenas “I Want To Hold Your Hand” ou “She

Loves You”.

Estava a caminho, e no bom caminho, o poeta que ia

fazer, a seguir, a maior parte das letras e versos dos LPs Rubber

Soul, Revolver, Abbey Road, e, sobretudo de Sergeant Pepper’s

Lonely Hearts Club Band. E, daí, partiria para o vôo solitário de

Imagine, Mind Games, até o maravilhoso e fatídico Double Fantasy.

Lennon foi figura de proa numa geração que produziu,

entre os músicos populares, algumas de suas melhores cabeças

(Dylan, Zappa, Jim Morrison, Bob Marley; no Brasil, Caetano

Veloso, Gilberto Gil; e no mundo?), músicos e ao mesmo tempo,

pensadores da coisa da cultura, ligados ao sentido das

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transformações, artistas abertos a outras artes, agitadores

culturais, bons de som, de poesia e de conceito.

Os dois livros do beatle ocupam lugar especial no

quadro da criação textual da segunda metade do século XX. Pela

linguagem, seus textos remetem a James Joyce, o mais radical

dos prosadores do século, o Joyce das inovações de Ulysses e das

montagens de palavras do Finnegans Wake. Assim que saíram, os

livros de Lennon foram traduzidos para várias línguas. E consta

até que, na Finlândia, traduziu-os o próprio tradutor finlândes de

Ulysses.

O “walrus”, porém, declarou que, quando os escreveu,

não conhecia Joyce. Sua fonte maior de influência era o Lewis

Carrol, da Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho,

influência fundamental sobre Joyce.

A ser verdade essa declaração, Lennon saiu da mesma

fonte do pai do Wake.

Daquele bizarro professor de matemática que gostava de

fotografar menininhas, tinha o estranho hábito de acasalar

palavras em híbridos que chamou de portmanteau words,

palavras-valise, palavras-montagem. E escrevia como se fosse o

senhor de todas as lógicas.

2

“o humor é a vitória do ego

sobre o princípio da realidade”

(Freud)

“quem não tem senso de humor

nunca vai entender a dialética”

(Brecht)

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O humor da linguagem, traço muito inglês de Lennon e

o grande obstáculo para o tradutor, depende de alguns recursos-

chave. Principalmente, o estranhamento do lugar-comum através

da alteração da expressão idiomática. Mas também através do

bizarro e do inesperado na lógica ficcional.

Além disso, John é muito chegado numa de alterar, a

seu babel prazer, a grafia das palavras, criança que estivesse

brincando de grudar uma letra, ou tirar, ou trocar as letras das

palavras. Este efeito, no humor televisivo brasileiro, é a

especialidade de Renato Aragão, o maior palhaço brasileiro vivo,

exímio em arrancar as gargalhadas que se dá diante da

informação nova, com uma alteração arbitrária do modo de dizer

as palavras, graça fonética do Didi dos Trapalhões.

Como amostra de estranhamento do lugar-comum,

valha o próprio título dos dois livros de Lennon. No primeiro,

Lennon On His Own Write, acontece a superposição de duas

expressões: “in his own right”, no seu direito, e “in his own

writting”, com seu próprio punho, montagem que procurei traduzir

para “Lennon Com Sua Própria Letra”. No segundo, o jogo é ainda

mais complexo: A Spaniard In The Works, “Um Espanhol Nas

Obras”, é, na realidade, uma corruptela da expressão idiomática

“a spanner in the works”, ao pé da letra, “uma chave-de-fenda nos

mecanismos”, mas que designa uma dificuldade súbita, um

obstáculo que não estava nos planos. Alguma coisa que tem que

ver com as origens da palavra francesa sabotage. Em francês,

sabot é “tamanco”. E sabotar, na origem, é “jogar um tamanco

para danificar o mecanismo de uma máquina”. Tanto a expressão

inglesa “a spanner in the works”, quanto a sabotagem francesa

pertencem ao mundo da Revolução Industrial, e trazem

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conotações de luta de classes, “ludditas”, entre operários, os

patrões e suas máquinas1.

1 A partir do nome John Ludd, que teria destruído máquinas têxteis por volta de 1780, a expressão “ludditas” designou os membros de um movimento operário inglês (1811) que se organizou para destruir as máquinas das fábricas onde trabalhavam, já que elas provocaram o desemprego e a diminuição da qualidade dos produtos.

“A spanner in the works”: (botar) Formiga no Pudim (de

alguém), uma mosca na sopa, por essa você não esperava, uma

pedra no caminho?

Alice Ruiz, por fim, me tirou do impasse, propondo o

imbatível (unbeatable!) Um Atrapalho no Trabalho.

3

O específico do discurso de Lennon parece ser uma

subversão sistemática dos códigos de registro da escritura, bem

dentro do juvenil espírito de quebra-quebra que caracterizou os

anos 60.

John não escreve errado: ele, moleque, escreve “erros”.

E subverte a grafia dos vocábulos, introduzindo neles ruídos

arbitrários, grafitti, deformando a gestalt ortográfica das palavras

deixando subsentidos se infiltrarem pelos interstícios das frases.

Uma escrita “fria”, nos termos de MacLuhan, uma escrita porosa,

como a TV, que convida à participação.

Em Um Atrapalho no Trabalho, prosa-pop, prosa da era

da TV, do VT clips, VTVTTVTVTVVTTT &tc, arte de arte, o beatle

faz gato e sapato das receitas de todos os gêneros, excomunga os

lugares-comuns. E, trapalhão, atrapalha todo o andamento do

trabalho: uma gota da baba de Dadá, no comportamento textual

do “Working Class Hero”.

Nenhuma fórmula verbal escapa da verve cínica e

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sarcástica daquele que escandalizou o mundo ao dizer, “somos

mais populares que Jesus Cristo”.

O conto. A anedota. O poema. A estória da carochinha.

De detetive. A peça de teatro. A carta do leitor. A entrevista. O

anúncio. A frase de TV. A notícia de jornal. A canção de ninar. Um

Atrapalho é caleidoscópio de todas as formas verbais imagináveis,

erodidas e erotizadas como paródia.

Mas o humor do “Nowhere Man” não é um bom humor.

É a graça que nasce do azedume (não há sexo na prosa

de Lennon).

Em suas fulminantes anedotas, sempre tendentes a

estados caógenos, crepusculares, na fronteira entre o inteligível e

o ininteligível (“Dividido Davi”, “Os Famosos Cinco Através das

Ruínas de Eagora”, “Linda Linda Cremilda”, “Mr. Boris Norris”,

“Elerico e Eurique”), o desfecho é sempre trágico ou melancólico,

com toques às vezes sádicos e mórbidos, teratológicos.

O beatle máximo era, hoje sabemos, um “maior

abandonado”, aquela pessoa profundamente insegura, poço de

angústias, atingida no coração e na cabeça pela súbita idolatria

mundial em escala nunca vista.

4

“For the benefit of Mr. Kite

there will be a show tonight on trampoline.

The Hendersons will all be there

late of Pablo Fanques Fair — what a scene”

(“Being for the benefit of Mr. Kite”, LP “SgtPeppers”)

O universo ficcional do “fool on the Hill” está super-

povoado de nomes próprios, onoma-personagens que só existem

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porque têm um apelido, como se o beatle quisesse encher seu

mundo de gente, dando uma festa textual, criações da fantasia de

Lennon, nomes burlescos, portando segundos sentidos,

trocadilhos onomásticos, “rabelaisianos”.

Sua tradução oferece problemas particulares.

Diante de mim, duas opções extremas: traduzi-los todos

ou mantê-los na íntegra, em inglês.

Nada impede que se verta “Judro Bathing” por Germano

Amano ou “Large John Saliver” por Zé Grandão Gouveia.

O problema é que, traduzindo todos os nomes, o texto ia

ficar brasileiro demais, jagunço, perdendo um sabor britânico que

é essencial em Lennon.

Saí da dificuldade optando pela solução média: ora

traduzir, ora não traduzir os nomes próprios, o que só acrescenta

estranheza a estes textos ínvios.

Tenho certeza que Lennon aprovaria minha decisão.

Afinal, é para ele que estou tendo esse trabalho todo.

5

“Mal e mal possuímos os rudimentos de uma teoria

da tradução, de um modelo de como funciona a mente quando

passa de uma língua a outra. A o falar da tentativa de tradução ao

inglês de um conceito filosófico chinês, o lingüista I. A. Richards fez

a seguinte observação: é possível que aqui estejamos em presença

do tipo mais complexo de evento até agora ocorrido na história do

universo.”

(Georg Steiner, Extraterritorial)

Casos-limite como o da prosa de Lennon forçam o

emprego de uma modalidade particular de tradução. A co-criação.

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A trans-criação, diria Haroldo de Campos. Nesses casos, uma

tradução apenas pelo sentido é a pior das traições. Para fazer

justiça ao teor de surpresa do texto original, precisa descriar e

reproduzir os efeitos materiais, gerando análogos, universos

sígnicos instavelmente paralelos, ora secantes, ora tangentes, à

figura original.

O que as línguas têm de mais próprio é intraduzível,

como a poesia, é a poesia dos povos, suas expressões idiomáticas,

aquelas que ou você entende no original, ou adeus.

Poesia, afinal, não tem sinônimo.

Traduções criativas, re-criações, são as mais idôneas (e

enriquecedoras) quando devidamente acompanhadas de cotejos

entre o texto de origem e o texto de chegada.

O ideal é sempre, como aqui, uma edição bilingüe, uma

pedra da Rosetta.

Em Um Atrapalho, reduzi a um mínimo as notas ao pé

da página para não tirar a fluência da leitura nem o leve espírito

juvenil que anima a criatividade “primitiva” do beatle.

Quem acompanhar, porém, o original com este análogo,

vai ver que não pulei por cima de nenhuma dificuldade, achando

jeito de passar para o brasileiro todo e qualquer efeito do texto de

Lennon.

6

“... it’s like a portmanteau... there are two meanings

packed up in one word”. Assim definiu Lewis “Humpty Dumpty”

Carroll (1832-1898), seu inventor, a portmanteau word, a

superpalavra com dois sentidos vivendo dentro dela.

Portmanteau, em inglês, designa uma valise de couro,

com dois compartimentos.

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E a tradução para o português da expressão

lewiscarrolliana exigiria coisas como “palavra-valise”, “palavra-

double-face”, “palavra-porta-palavra”. Com portmanteau words,

Carrol compôs o “Jabberwocky”2, poema onde um verdadeiro

espírito lúdico infantil se manifesta através da mais elevada

inventividade de linguagem (Through the Looking Glass, caps. 1 e

6).

2 Jabberwocky (ou jabberwock) é montagem cunhada por Carroll, a partir de jabber, “tagarelar, falar uma língua misturando-lhe palavras de outra”, e um derivado da antiga palavra anglo-saxã wocon, “fruto”, “rebento”. O poema que Alice leu no Livro-Espelho, sereia, vem desafiando a perícia de tradutores de várias línguas, a começar pelo nome, o nome-nume-totem do portmanteau. Na versão alemã de Robert Scott (1872), Jabberwocky é Der Jammerwoch. Na versão francesa de Warrin (1931), é Le Jaseroque. Nem faltou uma translação para o latim por um erudito de Oxford, onde o prodigioso monstro se chama Gaberboccbus.

Em português, temos a sorte de dispor da perfeita transcriação de Augusto de Campos, quando o Jabberwocky vestiu as cores da língua de Camões sob o nome de “Jaguadarte” (agora, musicado por Arrigo Barnabé). De minha parte, proponho: “murmurilho” (“murmurar” + “andarilho”, de walk, “andar”), “balbulonge”, “urrofruto”, “tragarelva”. Com o Jabberwocky, Antonin Artaud teve uma relação freudiana de amorrepulsa. Artaud chegou a começar a tradução de L’Arve et L’Aume, como ele verteu Jabberwocky:

“Il était roparant, e les vliqueux tarands Allainet en gibroyant et en brimbulkdriquant...”

Não passou da primeira estrofe. Artaud perdeu. E declarou: “Nunca gostei desse poema, que sempre me pareceu de um infantilismo afetado...”, “(...) o Jabberwocky não tem alma”.

Natural esse desentendimento. Afinal, Artaud era um esquizo-paranóide. Carroll, apenas, um neurótico.

Alice enfrenta Jabberwocky, ou Jammerwoch, ou Jaseroque, Jaguadarte, ou Gaberbocchus, ou Urrofruto, o monstro da linguagem que faltou no Manual de Zoologia Fantástica de Jorge Luís Borges (gravura de John Teniel para o texto original de Through the Looking Glass, tradução de Sebastião Uchoa Leite, ed. Fontana/Summus, 1977).

A primeira estrofe, na trans-criação de Augusto de

Campos,

Era briluz. As lesmolisas touvas

Roldavam e relviam nos gramulvos.

Estavam mimsicais as pintalouvas,

E os momirratos davam grilvos,

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dá bem uma idéia do que é uma palavra portmanteau em ação. No

primeiro verso, em inglês, “deslesmolisa”, a palavra slithy,

montagem de lithe, “ágil” e simy, “viscoso” (Carrol pega, alhures,

as palavras snake, “cobra”, e shark, “tubarão”, e monta a palavra

snazrk, onde as duas imagens ocupam o mesmo lugar no espaço-

tempo).

Não tenho notícia de antecedentes para isso em

qualquer literatura. Como recurso, a palavra-montagem parece ser

uma invenção de Lewis Carroll.

O princípio de síntese e velocidade que ela representa

tem muito a ver com a velocidade das máquinas da Revolução

Industrial, que explode na Inglaterra no século XIX.

Convém acrescentar que a língua inglesa sempre teve

uma tendência natural para a produção desses híbridos. A

filologia desconfia, inclusive, que o verbo bash, por exemplo,

“amassar”, resulta do cruzamento dos verbos bang, “percutir” e

smash, “esmagar”. O verbo clash seria o encontro dos verbos clang

e crash. Flurry, “agitação”, um misto de fluster, “excitação”, e

hurry, “apressado”.

A imprensa londrina do início do século cunhou a

palavra-montagem smog, mistura de smoke, “fumaça”, e fog,

“neblina”, para designar a espessa nebulosidade que envolveu a

capital da Inglaterra na época. E a palavra pegou e ficou.

O verbo chortle, “rir alto”, é uma palavra-montagem de

Carrol (chuckle sobre snort), que o uso e os dicionários adotaram e

legitimaram.

Portmanteau é “motel”, onde o motel e o hotel se

encontram como duas paralelas, infinito mistério do amor entre

sons e sentidos.

Entre nós, palavras como “salafrário”, “barafunda”,

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“estapafúrdio”, “geringonça”, “espalhafato”, “escalafobético”,

“lambisgóia”, “sorumbático” parecem apontar para essa direção.

Se, no Brasil, é espécie relativamente nova como recurso

literário, a palavra-montagem não é rara na linguagem popular,

oral, no linguajar despoliciado, na fala, na gíria, lugares onde ela é

uma das maneiras que a língua utiliza para enriquecer seu

vocabulário.

“Estrambólico”, na fala brasileira, designa alguma coisa

fora das normas, estranho, esquisito, singular, bizarro,

extravagante, irreal.

Vem do italiano strambotico, de strambotto, o terceto a

mais que se acrescentava a um soneto completo para continuar-

lhe o sentido. E a quebra da métrica.

No Brasil, aclimatado, o vocábulo italiano sofreu a

interferência de uma série “bola”, e virou o portmanteau natural

“estrambólico”.

O fenômeno da “etimologia popular” é responsável por

um bom número de “palavras-valise” “naturais”. Na palavra

“sumitério”, comum na zona rural, percebe-se que o falante

vinculou “cemitério”, palavra grega estranha ao seu universo

verbal, ao verbo “sumir”, que lhe é familiar e cotidiano.

As parlendas infantis e a liberdade carnavalesca da

linguagem jocosa criam outros. Para causar riso, gente do povo

deforma “observar” em “urubu-servar”.

“Presunto”, a palavra da gíria policial carioca para

designar o prisioneiro executado por Esquadrões da Morte, é um

sinistro portmanteau de “preso” e “defunto”.

“Bofélia” é “mulher feia”, misto de “bofe” com “Ofélia”.

E a montagem de palavras é cada vez mais corriqueira

na onomástica popular brasileira, onde Florisvaldo é filho de

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Florisbela e Oswaldo, Claudionor, filho de Cláudio e Leonor,

Divonei, filho de Diva e Nei.

Hoje, por fim, seria infinito enumerar todas as palavras-

montagem que dão nome a produtos industriais, empresas,

estabelecimentos comerciais, serviços especiais, repartições

públicas, programas de rádio e TV, LPs, shows, as coisas do

mundo urbano-industrial.

Ver as montagens que a publicidade cria todo dia:

tranqüilometragem, primaverão, sexacional.

A palavra-montagem é mais “natural” do que uma

mente conservadora poderia imaginar.

Montagens por justaposição (lado a lado) são recurso

comum nas línguas indo-européias. Em sânscrito, é possível

montar superpalavras de até 20 componentes. O grego clássico, se

não chega a tanto, permite a montagem de palavras com até cinco

componentes. Em latim, o comediógrafo Plauto pode cunhar

superpalavras como thesaurocrypsonichocrysides, e outras tão

vastas. É quase proverbial a capacidade da língua alemã de

permitir a montagem de compostos complexos como

weitanschauungenwahlverwandtschaften para dizer “afinidades

eletivas entre as visões do mundo”.

As línguas neolatinas não herdaram essa riqueza (que já

não era muito forte em latim). O italiano, o francês, o espanhol, o

português são línguas analíticas, onde essas macrocombinações

de palavras soam estranhas e artificiais.

Mas, em todos esses casos, trata-se de montagens por

justaposição.

Ora, um portmanteau é uma montagem por

superposição (sobre-impressão).

Duas palavras são projetadas uma dentro da outra,

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produzindo uma terceira, nova totalidade, uma unidade

poemática.

Entra muito de acaso e de sorte na confecção de um

portmanteau feliz.

Tudo depende das possibilidades sonoras e semânticas

da língua com que se lida.

Nesse sentido, o portmanteau compartilha o destino da

rima e do tracadilho, dois efeitos rigidamente determinados,

idiomaticamente falando.

Quando monto “insensatisfeito”, dependo da existência

em português das palavras “insensato” e “satisfeito”, e das

coincidências sonoras que apresentam. Ou quando faço

“universário”, “plânico”, “opóstolo”, “fecundário”, “guerrilhotina”,

“arquívoco”, “pornomenores”, “manusgrito”, “estratejitória”,

“redondavia”, “hospitálculo”, “rodopiária”, “empenhasco”,

“demoquátrico”, “ativitudes”, “gritantesco”, “ostranauta”,

“literatorturas”, “cometalinguagem”, “obgestos”.

Para encontrar algo parecido, tem que procurar na

literatura japonesa, onde um efeito chamado kakekotoba, “palavra

pendurada”, desempenha papel nobre na poesia lírica e na

linguagem do teatro Nô.

“O kakotoba não é, exatamente, um trocadilho. É mais a

passagem de uma palavra por dentro de outra palavra, nela

deixando seu perfume. Sua lembrança. Sua saudade.” (Bashô — A

Lágrima do Peixe, Paulo Leminski, p. 39).

Na expressão shiranámi por exemplo, “brancas ondas”,

em japonês, uma mente nipônica pode captar uma alusão a

shiránu, “desconhecido”, ou a namida, “lágrimas”, num só gesto de

leitura.

No kakekotoba, o processo de dupla (ou tripla) leitura é

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“natural”, produzido pelo próprio modo de ser da língua japonesa.

Já o portmanteau é um artefato, um produto do fazer

humano, como um poema, como o mínimo poema que é.

Neste século, Joyce viria a empregar a invenção de

Carroll como o principal recurso de linguagem do Finnegans

Wake, a Work in Progress, sua monsterpiece, onde pontificam

camibalistics, aeropagods, brasilikerks, allbegeneses, joyicity e

outros portentos de linguagem, produzidos aos milhares pela

inesgotável criatividade verbal do gênio irlandês.

A spaniard in the works in progress, saindo diretamente

de Carroll e do Jabberwocky, John Lennon trouxe o portmanteau

das culminâncias máximas de alta literatura rara para as

planícies da cultura pop. Um portmanteau beat. Ou beatle.

Na prática textual brasileira, a história do portmanteau

pode muito bem começar com o sex appeal-genário Oswald de

Andrade, das nada “tris-tris-tristes” Memórias Sentimentais de

João Miramar. Ganha status de jagunço poliglota com o

“hipostrélico” Guimarães Rosa das “engenhingonças”,

“perséquitos”, “malandrajos”, “descrevivendo”. Resquícios de ouro

no auritabirano Drummond da Lição de Coisas ou do poema “Os

Materiais da Vida”. A história atinge o clímax com os

“equivocábulos” da poesia concreta paulista (que influenciou Lição

de Coisas). As trans-criações de trechos do Finnegans Wake, feitas

pelos Irmãos Campos. O Livro das Galáxias, de Haroldo de

Campos (“servissalário”, “cabaleulístico”, “sobrescravo”). E

deságua na música popular em letras do “acrilírico” Caetano

Veloso (“Outras Palavras”, “homenina nelparaís de felicidadania”) e

de Gilberto Gil, tantas vezes “zanzibárbaro”, duas vezes Gil,

anfíbio Logunedé.

Em 1975, publiquei o “Catatau”, monólogo cartesiano,

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que me tomou oito anos, onde o portmanteau desempenha papel

principal.

Nem é preciso ser profeta para sentir que a “palavra-

porta-palavra” veio pra ficar, um recurso afim à era da

compressão da informação, das micro-células portadoras de

macro-informação, das distâncias mínimas em velocidades

máximas. Zune algo de informático-eletrônico nesse recurso, que

a retórica e a estilística antigas não conheceram, espécie de

retrato verbal (holográfico) da nossa época.

Quanto a Caroll, sua prática do portmanteau não pode

ser distinguida de outras singularidades deste padre-matemático-

fotógrafo. Deste reverendo que desenhava figuras que, de ponta-

cabeça, davam outro desenho. Escrevia cartas no espelho, ao

contrário. Ou as começavam pela última palavra, a penúltima, a

antepenúltima, e assim por diante, às avessas, na direção

contrária.

Enxadrista, Carroll (ou Dodgson) era muito hábil em

prestidigitação. Colecionava caixinhas de música que adorava

tocar de trás para diante. E espelhos com defeito, que

deformassem a imagem.

Como matemático, gostava de tratar “classes nulas” (um

conjunto sem membros) como coisas existentes: “ninguém”, para

Carroll, podia ser um personagem.

Uma mente de vanguarda, moderníssima, perdida (ou

achada?) na Inglaterra vitoriana.

7

Muita coisa do espírito infantil e jocoso de Carroll, de

Joyce e de Lennon está ligada a duas formas da literatura oral

inglesa: as nursery rhymes e o limerick.

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Nursery rhymes são poemas ou histórias metrificadas

para crianças.

Hickory,dickory,dock,

The mouse ran up the clock.

The clock struck one,

Themouse ran down,

Hickory, dickory, dock.

Ou:

Pat-a-cake, pat-a-cake, baker’s man,

Bake me a cake as fast as you can.

O limerick é um pequeno poema humorístico, de cinco

linhas, esquema de rimas normalmente AABBA, com uma

semântica em grau de nonsense.

There was a young lady of Riga,

Who rode with the smile of a tiger.

They returned from the ride

With the lady inside,

And the smile on the face of the tiger.

Neste limerick, o duplo sentido (double-entendre) é o

próprio tema:

There was an old man at Boulogne

Who sang a most topical song,

It wasn’t the words

Which frightened the birds,

But the horrible double-entendre.

Limerick, nome de uma região da Irlanda, foi dado a essa

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forma a partir de um espécime que começa dizendo

Will you come up to Limerick?,

dito ou cantado em ocasiões festivas, comilanças ou bebedeiras.

Desse espírito de saudável nonsense, saem os poemas,

que emergem, aqui e ali, ao longo de Um Atrapalho.

Ora, só o sentido pode ser traduzido. O sem-sentido é

opaco como uma escultura abstrata, um passo de dança ou um

happening, coisas que só significam a si mesmas.

Felizmente, “poetry is to inspire”, disse Bob Dylan.

Do nonsense de Lennon, às vezes em puro grau zero de

sentido, extraí apenas a espessa noite semântica que presidiu

minhas transcriações, braçadas desesperadas do nadador que

afunda nas confusas águas do in-significaldo.

Às vezes uma sombra de método atravessa a loucura de

Lennon.

Em “The Faulty Bagnose”, “A Falsa Amordaça”,

vislumbra-se um clima de crítica à hipocrisia eclesiástica, pelas

alusões religiosas que cercam o “Mungle” (pilgriffs, religeorge,

bless, bless the loaf, give us thisbe our daily tit).

A estratégia do tradutor, nesses casos, é pegar o espírito

geral da coisa e se atirar de cabeça na aventura, pedindo socorro,

aqui e ali, a uma palavra, um conceito, um jogo de palavras do

original.

Foi o que fiz, fiel, infiel, à irregular métrica regular dos

contra-sensos poéticos do beatle, onde a lógica é substituída à

altura por valores puramente rítmicos e musicais.

8

Do primeiro para o segundo livro, Lennon parece

radicalizar seus processos (palavras-montagem, deformações

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ortográficas, anomalias sintáticas, arbitrariedades morfológicas).

“Silly Norman”, já no final do segundo livro, “Simples Mendes”, foi

a ficción que mais me deu (a) trap/balho. O texto de base, que

fornece o fio da intriga, está quase irreconhecível, inscrição antiga

corroída por uma pesada estática, hendrix-distorções no material

verbal (quem reconheceria “what can I do”, naquele “wart

canada”?), como ler tanta fumaça dentro de tamanha neblina?

Trans-duzindo, é claro.

9

A integração nipônica, antes de Ioko, entre desenho e

texto, como num haikai. A recuperação de um espírito “infantil”,

caligráfico, que lembra Oswald de Andrade ou o Maiakowski das

cartas a Lili Brik, que Maiakowski assinava com o ideograma naïf,

ingênuo, de um cachorrinho. O caráter pop-urbano-cosmopolita

da coisa de Lennon, que pressupõe o cinema, os quadrinhos, o

cartum. O desprezo pelas formas canonizadas do sistema literário

vigente, com suas espécies definidas, o romance, a novela, o

conto, a crônica, a poesia lírica, o ensaio.

Os livro-livros de Lennon são uns cadernos de textos e

desenhos de natureza heterogênea, coerentes apenas naquilo que

são fragmentos de uma mesma explosão.

John Lennon, “um atrapalho no trabalho”: a unidade

não é mais possível.

Rir é o melhor remédio, achar graça, a única saída.

10

Existe alguma coisa de propositalmente desajeitado,

awkward, clumsy, gauche, na linguagem de Lennon. Como se,

como Oswald de Andrade, ele temesse escrever “certo demais”. Só

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isso bastaria para fazer dele um escritor de relevo, num mundo,

como a literatura, onde ainda e sempre acabam imperando a frase

certa, a gramática “correta”, a ortografia ortodoxa e os efeitos

garantidos, o terno e a gravata.

Mas só as estrepolias, peraltices e malcriações de

linguagem não bastariam para definir a arte textual do beatle.

É genial sua fantasia fabular e ficcional, capaz de urdir

enredos e pequenas intrigas com ingredientes ínfimos, sempre sob

o signo do imprevisto tragicômico. Através de um espírito lúdico,

muitas vezes, aparentemente, destrambelhado e arbitrário, passa

todo o sopro do nosso tempo: a irreverência de uma época post-

utópica, cética, crítica, cínica, que já riu de todos os deuses, e

transformou a vida em espetáculo e show, enquanto The Day After

não vem.

Na prosa de Lennon, está toda a Inglaterra careta, onde

a Beatlemania e a revolução dos jovens caiu como uma bomba H.

A galeria dos pais e senhores, que pensam conhecer o significado

da vida.

A mediocridade canalha da vida política (“General

Erection”).

A mediocridade doméstica do dia-a-dia da pequena

classe média.

As mães megeras. Os homens de negócios e pais

operários que não sabem que tudo mudou e que os filhos

adolescentes riem de seus códigos de postura, sua moral, sua

tabela de objetivos na vida, as filhas menores fazem sexo grupal,

os filhos dão a bunda e tomam pico, todos candidatos a uma

“Magical Mistery Tour” em direção a “Strawberry Fields”, como

membros groupies ou tietes de uma das “Sergeant Pepper’s Lonely

Hearts Club Band”, que pululariam às centenas de milhares.

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O garotão de origem operária que fumou maconha no

banheiro do Palácio de Buckingham, um pouco antes da Rainha

condecorar os Beatles com a mais alta comenda do Reino Unido,

brincava em serviço.

E brincava alto, brincava pesado, brincava leve,

brincava brabo, brincava lindo, Lennon rindo.

Vamos brincar com ele.

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ferlinguete-se!

1

Um filme, “The Last Waltz”, dirigido por Martin

Scorsese, a turnê/show de despedida da The Band, a banda que

acompanhou Bob Dylan durante anos.

Apocalypse now, the dream is over, “la banda está

borracha”, uma parte do sonho morria ali naquele palco cheio de

estrelas, algumas legítimas, Joni Mitchel, algumas de menos

quilates, Neil Diamond, e amigos, muitos amigos de Dylan e de

tudo que Dylan representou: o enterro de um faraó.

No meio do show final, apoteose-orgasmo-agonia, num

momento de silêncio, de repente, entra no palco aquele velhinho

magro e alto, cabelos totalmente brancos, andando muito lento,

chega no microfone e lê um poema em inglês incompreensível,

cheio de esses e erres carregados, como na fala de um irlandês.

Quem é, quem não é, era Lawrence Ferlinghetti.

Tinha vindo ler um poema em inglês arcaico, em anglo-

saxão antigo, para os seus netos, seus queridos netinhos, grande

coisa insignificante. E se retirou, tão irreal quanto viera.

Primeira e última vez que vi Ferlinghetti.

2

Em “A Coney Island Of the Mind”, predominam os

longos poemas orais, que é de rigor imaginar recitados em

enfumaçadas salas meio existencialistas, contra um fundo de jazz,

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Charlie Bird Parker, quem sabe?, um bongô solitário marcando o

compasso.

Os longos poemas falam, o apodrecimento do sonho

americano, a solidão urbana, o consumismo desenfreado, a fé nas

promessas traídas, tudo podia ser melhor.

Tudo isso numa linguagem assimétrica, solta,

“prosaica”, o discurso “beat”, neo-romântico, ligeiramente

surrealista.

Nem se pense, porém, que a poesia de Ferlinghetti é

puro derramamento verbal, sob o signo da entropia, o “enxame de

sentimentos inarticulados”, que Ezra Pound desprezava, e que

parece ser o estereótipo, a opinião pública sobre a poesia “beat”.

Sobre isso, o próprio Ferlinghetti se equivocava nesse “Poesia

Moderna é Prosa”, constante do “Work in Progress”, ensaio-

tentativa de reflexão teórica, tão cheio de intuições iluminadas

quanto de limitações: sua poesia é muito menos “prosa” do que ele

imaginava.

Pegue um poema de “A Coney Island Of The Mind”,

como, digamos, “The Pennycandystore Beyon The El”, que traduzi

como “A Loja de Bombom Barato Além do El”, basta pegar um

poema como esse para ver de quanta artesania e domínio da

matéria verbal Ferlinghetti é capaz (e, afinal, para que servem os

poetas a não ser para escrever melhor, mais fundo, mais exato,

mais inesquecível que todo mundo?).

O fluxo verbal de Ferlinghetti é rico de todos os efeitos

que fazem de uma frase poesia e não prosa, ecos sonoros, reflexos

fonéticos, paralelismos, aliterações, alto grau de fusão do magma

verbal.

The pennycandystore beyond the El

is where I first

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fell in love

with unreality

A rima interna entre “El” e “fell”. O atrito entre “first” e

“fell”. O jogo de L entre “El”, “fell”, “love” e “unreality”.

Decididamente, isto não é prosa.

A escritura poética de Ferlinghetti é mais “savante” do

que ele a julgava xavante.

Que dizer do sinfônico arranjo fonético de dois versos

como:

Jellybeans glowed in the semi-gloom

of that september afternoon?

Ou daquele momento supremo?

A girl ran in

Her hair was rainy

Como não ouvir a coerência interna das moléculas

fonéticas destes dois versos? Quem não vê que, entre tantas

tranças, “ran in” esta dentro de “rainy”?

Ou aquilo:

Her breasts were breathless,

que eu teria feito melhor traduzindo por

Seus foles sem fôlego,

isso, é claro, se eu não tivesse certos compromissos e

responsabilidades de sentido que nunca nos deixam, a nós,

tradutores, fazer o que queremos, em matéria de música.

Desafio aqueles que pensam que traduzir poesia “beat”

seja apenas questão de verter “sentidos”, não trans-criação, a me

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passar para o vernáculo coisas como estas do poema “Endless

Life”,

Brave the beating heart of flaming life

its beating and pulsings and flame-outs,

apenas (?) pelo sentido, passando por cima da fina tapeçaria

harmônica no acorde de B/FL/P/PL/FL: traduzir não é deixar

mais barato, nenhum original merece ser passado para um

repertório mais baixo, cultura é subir crescendo, para o mais rico,

o mais raro, o mais forte, o mais radioativo, “para que luza sobre

todos os que estão na casa”.

Poesia é uma coisa muito material, afinal, o espírito da

matéria, aquele espírito que, no fundo, a matéria é, ou não?

No meio, de repente, algo como “Dove Sta Amore...”, raro

momento de raro construtivismo, pedra no caminho do tradutor:

Dove sta amore

Where lies lave

Dove sta amore

Here lies love

The ring dove love

In lyrical delight

Hear love’s hillsong

Love’s true willsong

Love’s low plainsong

Too sweet painsong

In passages of night

Dove sta amore

Here lies love

The in dove love

Dove sta amore

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Here lies love

The ring dove love

Dove sta amore

Here lies love

Não é qualquer poeta que consegue esse fantástico

trocadilho bilíngüe entre “dove”, onde, em italiano, e “dove”,

pomba, em inglês, onde está a pomba, a doce ave de Vênus, a

deusa do amor? “Hillsong”, “wilsong”, “plainsong”, “painsong”, é

desse Ferlinghetti que eu vou lembrar sempre, capaz de uivo e

capaz de silêncio.

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o uivo e o silêncio

A poesia “beat” é uma vanguarda?

Se considerarmos o Uivo (Howl) de Ginsberg (1956)

como uma espécie de manifesto (manusgrito, obgesto) da poesia

“beat”, ela é praticamente contemporânea da Poesia Concreta

brasileira, cujo Plano Piloto é exatamente de 1958.

No Brasil, em 1956, Décio Pignatari fazia “Terra”,

Haroldo de Campos dava à luz seu “SI LEN CIO” e Augusto de

Campos compunha “Tenso”. Nunca os astros de Estados Unidos e

Brasil estiveram em tão rigorosa oposição.

Lá, a vanguarda, representada por um Ginsberg, um

Ferlinghetti, um Corso, passava-se numa pauta oral.

Aqui, a vanguarda concreta representava, sobretudo,

uma radicalização da dimensão visual da poesia.

A poesia concreta é o “poster”, o “out-door”, os anúncios

luminosos, e, hoje, o vídeo-texto.

A poesia “beat” é o recital, o poema feito para ser falado,

caudalosas torrentes esperando uma voz.

Duas poesias, duas vanguardas: duas médias distintas?

Outras coisas, ainda, distinguem as duas.

A poesia “beat” é indissolúvel de um gesto

comportamental, que foi a vida “beatnik”, da qual é a legítima

expressão lírica.

A poesia concreta brasileira resultou de um trabalho

intelectual, realizado com alta ênfase na racionalidade, nas

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fronteiras entre a arte e a ciência. Uma textosignovisão global.

E produziu sua própria teoria, a reflexão sobre si

mesma, o aprofundamento do ser-poesia, enquanto signo,

enquanto código, enquanto matéria e consciência de linguagem.

Já a poesia “beat”, pela própria natureza da sua

proposta, não poderia produzir teóricos nem ensaístas. E seu

alcance e abrangência intelectual é, necessariamente, menor do

que a da poesia concreta brasileira, sua contemporânea.

A título de paradoxo, daria para constatar que, nesse

momento, a poesia norte-americana buscava o que o Brasil, país

de analfabetos, tem de sobra, a oralidade. E o Brasil, ao contrário,

no setor mais radical da sua poesia, buscava aquilo que a

civilização tecnológica norte-americana produzia de mais vivo, na

área de comunicação de massas. Estranhas inversões, destinos

cruzados.

Com tudo isso, a poesia “beat” produziu, sim, poetas e

poemas de primeira qualidade.

Ginsberg, Ferlinghetti e Corso são vozes que, enquanto

a alma humana tiver ouvidos para “a voz que é grande dentro da

gente”, não vai faltar amor pra eles.

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jarry, supermoderno

1

A folhas tantas do seu Manifeste du Surréalisme (1924),

André Bréton rascunha um esboço de árvore genealógica do

movimento da “escrita automática” e do sonho acordado, de que

sempre foi uma espécie de Papa:

“Poe é surrealista na aventura.

Baudelaire é surrealista na moral.

Rimbaud é surrealista na prática da vida e alhures.

Mallarmé é surrealista na confidência.

Jarry é surrealista no absinto.”

Alfred Jarry (1873-1907), porém, foi mais que um

simples bebedor da terrível bebida, quase psicodélica, que levava

os poetas ao delírio, antes de matá-los em algum sanatório.

Antes de morrer, aos 34 anos, ele teve tempo para

deixar atrás de si uma esteira de lendas de excentricidade e

extravagância, a Patafísica, “ciência das soluções imaginárias”,

meia dúzia de livros e uma contribuição definitiva para a história

do teatro, na figura do “Ubu Rei”.

Dramaturgo e teatrólogo, como é mais conhecido, Jarry

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é precursor das práticas teatrais mais avançadas do século XX, o

século em que, sob o impacto do cinema, do circo e do teatro

exótico (Nô, Kabuki), Meyerhold, Piscator, Brecht, Antonin Artaud,

Beckett e Ionesco dariam nova vida à arte de Sófocles,

Shakespeare, Racine e Ibsen.

Seu ensaio De l’Inutilite du Théatre au Théatre (1896)

expõe os princípios da sua dramaturgia: esquematização dos

caracteres, das ações, do cenário, repudio ao “realismo” e à

psicologia.

Como vai ser lindo o século XX.

2

Rabelais. Sade. Nerval. Lautréamont. Rimbaud.

Corbière. Raymond Roussel. Duchamp. Artaud. Bréton. Drieu.

Céline. Ponge. Queneau. Butor. Existe, de tocaia, uma linhagem

louca naquela literatura que, estabilizada por Malherbe e Boileau,

teve um começo legal na Academia, fundada pelo cardeal de

Richelieu, e parece ser a mais “careta” das literaturas, uma

literatura normal e normalizadora, muito zelosa pela estabilidade

de certas formas, pelo equilíbrio, pela manutenção de um certo

“bom gosto”, decoro canonizado com “o Gosto”, o “génie latin” de

Anatole France.

Nessa linguagem, Jarry não foi o menos “louco”.

Nascido em Laval, no Noroeste da França, Jarry deixou

a lenda de uma vida tão bizarra quanto suas produções.

A fábula das suas singularidades corria de boca em

boca, na Paris da belle-époque.

Pescava seu almoço no Sena. Aficionado por matemática

e física, estudava heráldica horas a fio. Quando lhe pediam fogo,

puxava um revólver, que Picasso depois veio a obter e guardava

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como uma relíquia.

Sua fotografia mais conhecida mostra-o andando de

bicicleta, invenção recente, que era uma das suas paixões (tendo

um papel fundamental em O Supermacho, onde o superalimento

do cientista americano é experimentado nos ciclistas que fazem a

Corrida das Dez Mil Milhas, hipérbole sobre duas rodas da

potência sexual infindável do “Indiano”).

Para nós, brasileiros, sua figura não pode deixar de

lembrar a de Santos Dumont, tão excêntrico quanto ele, que vivia

e tentava voar naquela mesma Paris da primeira década do século

XX, quando viajar pelos ares parecia ser uma obsessão

emblemática daquele momento de espantosas novidades e

ilimitados horizontes tecnológicos.

Jarry também voou. Não em balões ou dirigíveis. Mas

em criações dramáticas e textuais muitos pés acima do chão de

seus contemporâneos, cabeça enfiada alguns quilômetros para

dentro do futuro.

O verdadeiro culto que Dadá e os surrealistas lhe

tributaram é mais que justificado: na rigorosa hierarquia

poundiana, Jarry, supermoderno, é um “inventor”, um dos

escritores mais originais deste século, “herói fundador” de tantas

singularidades que, depois de virarem moda, viraram sistema.

Centauro de fantasia erótica com romance de ficção-

científica, O Supermacho, de 1902, chamado pelo autor “romance

moderno”, faz par com Messalina de 1901 “romance da antiga

Roma”.

Nos dois “romances”, um no passado, outro no futuro, o

herói é, num, um homem, no outro, uma mulher, dotados da

capacidade de praticar o amor físico além dos limites humanos,

“indefinidamente”. Priapismo e ninfomania: hipérboles da

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sexualidade.

Cenas de evidente marcação teatral. Jogos de palavras,

de árdua decifração e recriação. O fio do enredo sustentado por

trocadilhos. Um espírito lúdico libertado de amarras lógicas. A

pontuação arbitrária e caprichos tom meio erudito, meio circense.

As imagens e comparações insólitas e delirantes. Alguma coisa de

muito criança com qualquer coisa de muito velho.

A escritura de Jarry é de alta imprevisibilidade.

Não era provável que, em 1902, alguém chamado Alfred

Jarry publicasse esse romance que vocês acabam de ler, vocês não

acham?

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folhas de relva forever

(a revelação permanente)

“Whitman é, para minha pátria,

o que Dante é para a Itália.”

(Ezra Pound)

“Ninguém vai entender meus versos,

se quiser interpretá-los como performances literárias.”

(Walt Whitman)

“Whitman, que numa redação do Brooklyn,

Entre o cheiro de tinta e de cigarro,

Toma e não diz a ninguém a infinita

Decisão de ser todos os homens

E de escrever um livro que seja todos.”

(“El Pasado”, “El Oro de Los Tigres”, Jorge Luis Borges)

Toda revolução digna deste nome produz seu grande

poeta.

“Antena da raça”, o poeta capta, nos tempos de comoção

social, a tremenda energia vital liberada pelas grandes

transformações coletivas, em seu momento agudo, revolucionário

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ou insurrecional. Assim, se Maiakovski é o poeta da Revolução

Russa, não é exagero dizer que Walt Whitman (1819-1892) é o

poeta da Revolução Americana, ocorrida uma geração (1776) antes

do seu nascimento. Da revolução que expressa, a poesia de

Whitman herdou todos os traços fundamentais: o libertarismo

individualista, o igualitarismo antifeudal, a vitalidade inaugural do

capitalismo na América, o otimismo ativista de um povo de

vikings, a vertigem da abertura de inimaginadas fronteiras

geográficas, econômicas e técnicas. E também emocionais,

existenciais e pessoais. “This is a big country”. “This is a free

country”. Nessas frases, que decoramos em filmes de faroeste,

condensa-se o essencial da ideologia que informa os versos do pai

do verso livre, o pai do verso louco, o pai do verso novo.

Assim como a Revolução e o Sonho Americano liberta-

ram, nos EEUU, o indivíduo (se devidamente branco) dos entraves

do feudalismo, assim Whitman libertou o verso dos duros deveres

da métrica, convencionais como os aparatosos cerimoniais das

cortes do Velho Mundo.

Whitman, a rigor, o primeiro poeta a fazer versos livres,

é o libertarismo da jovem república, fronteira aberta a oeste,

projetado em plano formal.

Para realizar, no texto, tudo isso, o poeta de “Whispers

of Heavenly Death” desenvolveu um poderoso híbrido, em matéria

de linguagem.

Uma dicção algo entre a poesia e a prosa, determinada

por um movimento retórico (retórico, aqui, significando, no sentido

grego original, de rétor, orador, envolvido num processo de

convencer, dissuadir ou persuadir uma platéia, através da palavra

viva e dita).

Ouve-se, por trás das tempestades verbais de Whitman,

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alguns raios e relâmpagos dos sermões de igreja, vociferados por

furibundos pastores apocalípticos de pequenas comunidades

religiosas dos Estados Unidos, todas heréticas em relação a algum

credo tradicional (presbiterianismo, calvinismo, puritanismo,

luteranismo), tudo dentro da melhor tradição do fragmentarismo

localista das igrejas protestantes. A mãe de Whitman era “quaker”.

E transmitiu-lhe a fé, tipicamente “quaker”, na luz interior.

Sem entender a fé “quaker”, não se entende Walt

Whitman.

A seita fundada pelo inglês George Fox (1624-1691)

caracterizou-se pela recusa radical a toda liturgia religiosa e

sacerdócio, confiando apenas na presença do Espírito Santo na

consciência individual. Na inspiração. Além ou contra as

autoridades.

Muito forte a autoridade do movimento “quaker”, na

formação dos Estados Unidos, no século XVII e XVIII.

Tão forte, talvez, quanto a influência, sobre à poesia

moderna, do primeiro grande poeta da Revolução Industrial.

Essa influência se estende por caminhos

desconcertantes. Mas todos indo dar na estrada da melhor poesia

do século XX.

A incorporação da máquina ao mundo poético, o

futurismo de Marinetti, no início do século, apenas consolidou-a.

Já está lá, no Whitman de “A uma Locomotiva no

Inverno”, “signo do moderno”, “beleza de voz feroz”, mecânica

musa, prenunciando os biônicos tempos que vivemos e vocês

ainda não viram nada.

O ímpeto oratório de Maiakovski ecoa o tom da voz do

“easy rider” Walt Whitman, audível na fluente grandiloquência de

vastos poemas do bardo russo. Whitmaniana, em Maiakovski,

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ainda, via Marinetti e futurismo, uma certa mecanolatria,

zombada por Trotsky, em Literatura e Revolução, onde diz que os

futuristas russos só idolatravam as máquinas porque a Rússia

não as tinha.

E já se vê no poeta de Song for Myself algo do gigantismo

narcisista de Maiakovski, que se dá, simplesmente, como o centro

do universo, a coisa mais importante que a vida tenha produzido

neste planeta.

Com o panteismo populista e democrata (meio budista)

do eremita de Long Island, até o europeizado e aristocratizante

Ezra Pound teve que fazer “Um Trato”:

APACT

Um trato com você, Walt Whitman.

Já te detestei o bastante.

Hoje, cresci.

Já posso chegar na tua frente.

Idade eu tenho para tanta

Você cortou a madeira nova.

Tá na hora de esculpir.

Tua seiva é a minha, tua raiz.

(Ezra Pound, 1913; tradução Leminski)

O próprio fôlego homérico dos “Cantos” (ou “Cantares”)

de Pound, sua obra máxima, composta, de 1917, até sua morte,

em 1972, tem algo, nos “Cantos”, que parece respirar pelos épicos

pulmões whitmanianos, órgãos afeitos a inspirar o infinito

oxigênio das mais amplas pradarias que olho humano já

descortinara.

O fato (ou o fado ?) de as revoluções apodrecerem, por

mais altos que sejam seus ideais, pouco afeta a poesia dos que as

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exaltaram, por elas exaltados, em seu momento puro, em sua hora

plena, em seu meio-dia.

Whitman. Maiakovski.

Que importa que seus sonhos não se incarnem nem se

enquadrem na estúpida evidência da “Real Politik”?

Dai-nos, hoje, Senhor, a utopia de cada dia.

Walt Whitman coloca em andamento toda uma

linguagem vitalista norte-americana do escritor não como

“scholar” ou mandarim, mas como homem de ação, da estrada, da

aventura e do mundo (Jack London, Hemingway, John Reed,

Kerouac, Norman Mailer, e, naturalmente André Malraux, o mais

norte-americano escritor da mais anti-norte-americana das

literaturas).

Homossexual, enfermeiro na Guerra da Secessão como

Hemingway na Guerra Civil Espanhola, recebendo, quakermente,

o Espírito Santo da poesia, livre como um pele-vermelha, como

Thoreau, como um garimpador de ouro, nas Montanhas Rochosas,

barbudo como um arbusto da beira do rio, Whitman, o primeiro

“beatnik”, vive da longa vida que só uma grande poesia (ou uma

grande revolução) irradia.

WITH THE MAN

aqui

no oeste

todo homem tem um preço

uma cabeça a prêmio

índio bom é índio morto

sem emprego

referência

ou endereço

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tenho toda a liberdade

pra traçar meu enredo

nasci

numa cidade pequena

cheia de buracos de balas

porres de uísque

grandes como o grand canyon

tiroteios noturnos

entre pistoleiros brilhantes

como o ouro da Califórnia

me segue uma estrela

no peito do xerife de denver

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méxico

O apocalipse para a civilização mexicano-asteca teve

uma data precisa. Em 1518, um coletor de impostos chegou às

pressas na capital Tenochtitlán para relatar ao imperador

Moctezuma coisas espantosas: estavam vindo do mar torres com

asas, trazendo homens com caras brancas e muita barba.

Eram os espanhóis, os navios espanhóis, sob o comando

de um gênio chamado Hernán Cortez, que concentrava em sua

pessoa, em grau máximo, as melhores e as piores qualidades da

raça castelhana: coragem pessoal e crueldade sem limites,

resistência aos reveses e teimosia, imaginação administrativa e

ambição, idealismo e fanatismo cego. Nesse momento, o mundo

asteca encontrava-se no auge do seu poder. Elite militar invasora,

os astecas, recém-vindos do Norte, dominavam, pelo terror e pela

guerra, inúmeros povos muito mais civilizados que eles.

Quando os bárbaros astecas chegaram no México,

toltecas e olmecas, há mais de mil anos, construíam cidades de

pedra, esculpiam ídolos, faziam cálculos astronômicos exatos e

desenvolviam uma escrita. Como os romanos fizeram com os

gregos, os astecas se apossaram desse tesouro civilizatório,

“mexicanizando-se” culturalmente, mas exercendo um brutal

imperialismo militar e econômico sobre dezenas de povos vizinhos,

muitos vivendo em cidades de pedra, com reis, dinastias, templos

e bibliotecas, organizações administrativas complexas, luxos e

artes.

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Diante da superioridade técnica da Europa (cavalos,

pólvora, armas de fogo, estratégia), o “império” asteca evaporou,

num passe de mágica. Os povos oprimidos pelos “assírios do Novo

Mundo” aliaram-se ao invasor espanhol. Assim começou o México,

quando foi derrotado e convertido aquele povo que sacrificava ao

sol, ao alto de pirâmides, milhares de prisioneiros de guerra,

coração arrancado com facas de obsidiana por sacerdotes que se

cobriam com a pele extraída de vítimas vivas, em homenagem ao

deus Tláloc, para que não faltasse chuva aos milharais, dos quais

dependia a vida de todos.

Acontece que esse povo tinha uma escrita, bibliotecas,

uma literatura. Seus livros de caráter mítico e litúrgico, pintados

sobre cascas de árvores, foram queimados aos milhares, em

gigantescos “autos de fé” pelos missionários espanhóis. Sobrou

pouca coisa, alguns códigos que foram, como curiosidades, parar

em bibliotecas européias: o Códex Bórgia, o Fejervary-Mayer, e

mais meia dúzia.

Esse mundo, porém, era tão rico que espanhóis e

mestiços de espanhol com índio mexicano registram dados de sua

literatura, que nos aparece tão estranha como se fora de uma

civilização extra-terrena, num livro de ficção científica.

Lingüisticamente, os astecas falavam uma língua da

grande família nahuatl (pronunciar “náualt”). Em O Pensamento

Cosmológico dos Antigos Mexicanos, o etnólogo Jacques Soustelle

esclarece: “(em nahualt), cada palavra, quando empregada num

contexto mitológico ou mágico, é susceptível de receber uma

multidão de significados mais ou menos esotéricos (...) A palavra

quáultli, águia, designa igualmente, na linguagem esotérica dos

sacerdotes, o sol e os guerreiros. O sol é o deus dos guerreiros,

que o nutrem com o sangue das vítimas. Na escrita ideogrâmico-

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hieroglífica dos astecas, a pena da águia é o ideograma da guerra

e dos sacrifícios humanos”. Nesse universo de ecos de sentido,

quáuhnochtli, “figo da águia” é o coração das vítimas sacrificadas

ao sol; quauhteca, “povo da águia”, são as vítimas sacrificadas,

transformadas em companheiros do sol. O nome (nefasto) do

último imperador asteca, Quáuhtemoc, “águia que cai”, quer dizer

“sol poente, crepúsculo”.

Neste texto religioso muito antigo, dedicado ao deus

Xipe Totec, recolhido por um espanhol da época da conquista, dá

para ver em ação essa proliferação de sentidos metafóricos na

imagética da poesia asteca: Senhor tua pedra-preciosa-água

desceu Ah cipreste-quetzal Ah serpente-fogo-quetzal.

“A pedra verde preciosa e a pluma verde do pássaro

quetzal são símbolos da riqueza e da fertilidade agrícola. O deus

mandou a chuva. A serpente de fogo, símbolo da seca e da fome,

transformou-se numa “serpente de plumas”, um quetzal-coatl, que

representa a abundância”.

Esse jogo de imagens, evidentemente, está ligado à

natureza da árdua escrita hieroglífico-ideogrâmica, com que os

astecas grafavam, até hoje só em parte decifrada.

Em náhuatl, poesia se dizia através de uma metáfora e

de um ideograma, que significavam “flor e canção”, “flor canção”,

“florcanção”.

Nas cortes dos imperadores astecas, figuravam poetas

entre muitos outros ofícios. Desconcerta constatar nesse povo,

que levou os sacrifícios humanos a um grau nunca visto, a

existência de uma delicada lírica voltada para a beleza das flores,

a brevidade da vida humana, a efemeridade da juventude e o amor

pelas crianças.

Poesia praticada inclusive pelos reis. Como este

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Nezahualcoyotl, rei da cidade asteca de Texcoco, em cuja corte

floresceram artistas e poetas. Outras “pólis” nahualt (aliadas

dúbias ou inimigos da capital Tenochtitlán) produziram, na corte

dos seus reis, focos de intensa vida poética, artística e intelectual,

paralelos e perfeitos das cortes da Itália da Renascença, lugares

onde elites cultivadas, livres dos afazeres da sobrevivência,

podiam entregar-se à vida superior do espírito. Tais foram as

cortes de Tecayehuatzin, rei da cidade de Huexotzinco, e do rei de

Tecamachalço, Ayocuan.

Todas estas cidades eram centros náhuatl muito mais

antigos que a capital Tenochtitlán, a Nívive dos Assurbanípal,

donde saíam os exércitos astecas para extorquir tributos, capturar

mão-de-obra escrava e — sobretudo — arrebanhar prisioneiros

para serem sacrificados aos milhares ao deus do milho Tláloc, ou

a Huitzilopóchtli, deus da guerra e do sol, nume tutelar da tribo

dos astecas, sempre sedento de sangue humano. “Guerra florida”

chamava Tenochtitlán às expedições periódicas para captura de

prisioneiros destinados ao sacrifício ritual.

Homens-Águia, homens-Jaguar se entrelacem, príncipes

Escudos contra escudos fazem sinfonia,

Lá vai colher prisioneiros a primeira companhia (...)

Guerreiros terríveis, temidos por todos os povos

vizinhos, os astecas produziram uma poesia bélica, exaltando os

prazeres do combate.

Nesse rosário-galáxia de “pólis” (mais ou menos)

independentes em volta de Tenochtitlán, nas cidades em volta, no

entanto, as coisas eram um pouco mais complicadas.

Os bárbaros astecas sabiam: o que tinham,

culturalmente, de melhor, deviam ao que tinham encontrado

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quando chegaram, os toltecas, a cultura tolteca.

Entre os astecas, este hino ao tlacuilo, o pintor-escriba

dos códices, dos livros astecas, dos maravilhosos livros

hieroglifico-ideogrâmicos, da multidão dos quais só nos chegou

meia-dúzia:

Um bom desenho, um tolteca, um artista.

Com tinta vermelha e preta,

quem pinta melhor?

Até com água, ele pinta,

Sábio é o bom pintor,

um deus no seu coração

Ele põe deus nas coisas,

conversando com o coração.

Sabe das cores,

colora e sombreia.

Dos pés à cabeça,

sombreia e colora

A ele a perfeição.

Pois ele pinta as cores de todas as flores

como se fosse um tolteca.

Outro hino asteca exalta a habilidade do oleiro tolteca, o

povo anterior, o povo vencido, o povo superior:

Quem dá vida à argila,

seu olho vê a maravilha,

senhor da terra mole.

O ótimo oleiro

sofre em sua obra.

Ensina a argila a mentir.

Com seu coração, conversa.

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E chama as coisas a vida.

Tudo sabe, como se fosse um tolteca.

A Texcoco de Nezahualcóyotl era muito mais tolteca que

Tenochtitlán. Destroços que nos chegaram sobre o rei de Texcoco

nos reportam o retrato de um cacique, meio poeta, meio-filósofo,

reformador religioso como o faraó Ikhanaton.

Parece que tentou, como Ikhanaton no Egito,

estabelecer uma espécie de monoteísmo, sintetizando o politeísmo

asteca num dualismo, numa Dupla Absoluta, uma Dualidade, em

vez de uma Trindade. Um dos componentes desta Dupla, era, sem

dúvida, o deus Quetzalcóatl (pronunciar “quetzal-cóaut”), deus

mais antigo, adversário de Huitziopóchtli, o deus da guerra dos

astecas.

“Quetzal-Cóatl”, “pluma-serpente”, ou a Serpente de

Plumas, o deus civilizador, Sumé, mexicano, Oanes babilônio, era

um nume da vegetação molhada pela chuva, do verde das plantas,

do milho, da abundância agrícola.

A inovação teológica de Nezahual-cóyotl foi registrada

por um cronista mestiço, Fernando de Alva Ixlilxochitl,

descendente do rei de Texcoco, e, portanto, suspeito.

Conforme este cronista, Nezahual o Coiote (pois do

náhuatl nos vem a palavra “coiote”) opôs-se aos sacrifícios

humanos, propondo, em seu lugar, o sacrifício de cobras e

borboletas e a destruição de objetos de jade.

O testemunho é suspeito. O que não pode ser posto em

dúvida, porém, é a condição de poeta do rei Nezahualcóyotl. Dele,

esta queixa sobre a impermanência de todas coisas:

Vivermos, será que na vida se vive?

Não para sempre na terra,

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só um pouco no tempo.

Jade sela, jade quebra,

ouro, desdoura,

pena de quetzal, pena voa.

Não para sempre na terra,

só um pouco no tempo.

(Nezahualcóyotl, rei de Texcoco, séc. 15)

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sertões anti-euclidianos

nenhum livro

teve sobre a cultura brasileira letrada

o impacto de “os sertões”

com ele

euclides da cunha

militar

engenheiro

positivista como toda a oficialidade

republicana

traumatizou

uma literatura feita por bacharéis

ornamental

“sorriso da sociedade”

brilho dos salões do 2º império

A leitura para ioiôs e iaiás

surto de espinhas no rosto imberbe dos

acadêmicos de direito

ócio de aposentados

prenda doméstica

da elite de um país de analfabetos

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com ele

um brasil outro

um brasil novo

o brasil verdadeiro do interior

saltava na cara das nossas elites letradas

concentradas nas cidades

no eixo rio-são paulo

centrífugas

europocêntricas

produzindo uma literatura francesa no

trópico

para branco ver

canudos foi uma revelação

o despertar da consciência brasileira

o satori nacional

um acontecimento histórico de muitas

conseqüências

das quais a mais importante

um livro chamado “os sertões”

dele descendem

“macunaíma”

“vidas secas”

“o tempo e o vento”

toda nossa prosa regionalista

até o sertão máximo

“grande sertão: veredas”

onde o gênio de guimarães rosa

dá ao sertão uma dimensão cósmica

num texto rico como os de joyce

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encerrando com chave de ouro

o ciclo mais fecundo da literatura brasileira

o texto de “os sertões”

tem uma história

uma biografia essencial

para a compreensão do livro

nasceu das anotações

do engenheiro militar euclides da cunha

jornalista correspondente de “o estado de s. paulo”

no próprio local das operações da guerra

jagunços e fanáticos do antonio

conselheiro

contra as tropas da república

das anotações às reportagens

e destas ao texto final de “os sertões”

um longo percurso textual

onde euclides apostou tudo que tinha

preparo científico

perícia de linguagem

e maestria dos recursos estilísticos da

língua

o retorcido

o tortuoso

o caudaloso

o barroco positivista de euclides

“estilo de cipó”

é prosa em drama

isomórfica com o drama que presentifica

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discurso deformado e informado pelo assunto

o impacto que canudos provocou em euclides

não foi apenas histórico

geográfico

antropológico

sociológico

foi também semiótico/poético

de linguagem

em canudos

euclides descobriu a fala natural do sertão

a linguagem popular

“errada”

antinormativa

uma linguagem

cheia de giros próprios

dizeres e falares jagunços

muito distantes do “sermio nobilis” da capital

este impacto

escapou aos exegetas de euclides

a revelação da linguagem dos sertões

está documentada

na “caderneta de campo” de Euclides

caderno de bolso editado recentemente

pela cultrix

nascedouro de “os sertões”

onde euclides fazia anotações de geografia

geologia

operações militares

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episódios e incidentes da guerra

muitas folhas do “caderno”

estão juncadas de listas de palavras e

expressões que Euclides ouvia na boca jagunça do

povo

linguagem/poesia viva

explodindo em seus tímpanos civilizados

algumas dessas expressões

verdadeiros fósseis

palavras e giros arcaicos

mantidos no isolamento do sertão

uma volta ao passado da língua

euclides recolheu no “caderno”

poemas populares

como o “abc de incredulidade”

cordel de guerra

de um homero anônimo

onde a crueza das idéias e expressões

se expressa em bárbara ortografia

o código ortográfico

constitui a primeira camada protetora da

língua dominante

sua primeira linha de defesas

muralha da china contra a invasão do

popular

do poético

do novo

euclides

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perante a tortografia social

psicológica

lingüística

faz uma viagem psicanalítica ao passado

do Brasil

e dá

nome ao nosso mal

ele se chama alienação

nenhuma paideuma brasileira

(escolha de um elenco de autores vitais)

que deixe fora “os sertões”

pode se pretender completa

com ele

o euclidiano (matematicamente falando)

euclides

descobre o avesso

antieuclidianamente

e nos descobre.

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trans/paralelas

DEDICATÓRIA

Se acaso uma alma se fotografasse

De sorte que, nos mesmos negativos,

A mesma luz pusesse em traços vivos

O nosso coração e a nossa face;

E os nossos ideais, e os mais cativos

De nossos sonhos... Se a emoção que nasce

Em nós, também nas chapas se gravasse

Mesmo em ligeiros traços fugitivos;

Amigo! tu terias com certeza

A mais completa e insólita surpresa

Notando — deste grupo bem no meio —

Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente

Destes sujeitos é precisamente

O mais triste, o mais pálido, o mais feio.

(Euclides da Cunha, 1905)

Traduzir de uma língua para outra é apenas um caso

particular de tradução. A possibilidade da tradução está na

própria raiz da natureza do signo que, diz Peirce, é “qualquer coisa

que possa ser entendida através de outros signos”, numa definição

tautológica, bem ao gosto do neo-positivismo.

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Sendo assim, pode-se entender como “tradução” todas

as aproximações do tipo da paródia (=canto paralelo), que tem

intuitos burlescos, da paráfrase, que tem intenções sérias, da

adaptação (de um texto para o cine ou o teatro), da diluição de

uma mensagem original em (quase)-similares, mais ou menos

afastados do seu protótipo.

São da mesma natureza todos os fenômenos que afetam

a área da “influência”, na literatura e na arte comparadas.

Influência de Sterne em Machado de Assis, traduções de

Machado.

Influência do realismo socialista em Jorge Amado.

Influência da poesia espanhola (a quadra em rimas

toantes) em João Cabral.

Traduções.

Mais literais, mais “espirituais” (conforme o “espírito”,

não a letra), a vida da cultura é um processo de traduções

contínuas e constantes, em que traduções se transformam em

novos originais, por sua vez, traduzidos, para repertórios mais

altos ou mais baixos, vindo a constituir originais novos, e assim

por diante.

euclides da cunha/raimundo correia

Uma das mais extraordinárias traduções da poesia

brasileira é aquela que Euclides da Cunha fez, parodiando um

soneto de Raimundo Correia.

Nesse poema, de 1905, Euclides introduz (a 1ª vez?) a

recém-nascida arte da fotografia na petrarquesca velharia do

soneto, falando em “negativos”, em “gravação”, em “chapas”,

emprestando uma súbita modernidade técnica ao fácil filosofismo

do parnasiano acadêmico.

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O que torna mais extraordinária a “tradução” de

Euclides é que há uma complementariedade forma/fundo

(isomorfismo) entre a técnica da paródia e a da fotografia.

A paródia, com efeito, é uma espécie de fotografia

(distorcida) de um original.

Ela é, em termos de Peirce, um ícone de um original

(mas como a fotografia, um ícone, tendo um índice, por suporte: o

soneto-paródia de Euclides aponta diretamente para o soneto de

Raimundo Correia, a ele, materialmente, contíguo).

Parece carregado de significado o fato de a tradução em

pauta ter sido feita por um poeta-engenheiro, o militar e

positivista Euclides da Cunha, que com o monopólio poético e

científico de Os Sertões, reduziu a mero beletrismo a literatura de

sua época, amenidades anódinas bordadas por bacharéis

verbalistas e ornamentais.

Euclides era um homem dos novos tempos, da

inteligência técnica, científica e industrial.

Sua tradução/paródia é a tradução entre dois mundos,

o artesanal de Raimundo Correia e o industrial, que o

cientificismo positivista anuncia (o positivismo de Comte é a

ideologia industrial burguesa do século XIX, assim como o

marxismo, a ideologia proletária correspondente).

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significado do símbolo

Vamos despir a experiência sígnica dos Simbolistas,

levantando os 7 véus de Isis em que eles a vestiram.

A experiência é extraordinariamente concreta.

Mas eles a mitificaram, camuflando-a.

Simularam-se hierofantas, Celebrantes de um Rito

Esotérico. Monges, praticantes de uma solidão aristocrática.

Filósofos gregos, cultores de um saber: o culto do oculto.

Que se esconde por detrás da parafernália simbolista?

Que concreta experiência sígnica?

A Chave dos Grandes Mistérios simbolistas é

encontrada pela análise semiótica, ao nível dos signos. A

experiência simbolista consistiu, basicamente, na descoberta do

signo icônico. Na capacidade de ler/escrever o signo neo-verbal.

Os simbolistas foram os primeiros modernos. Neles, a

produção de textos poéticos se resolve em problemática do signo,

resolução emblematizada no próprio nome-totem do movimento, o

primeiro a ter nome semiótico.

O que os simbolistas chamaram de Símbolo era, nada

mais, nada menos, que o ícone. O Oculto, que o curitibano Dario

Vellozo cultuava, apenas, a irredutibilidade do signo icônico ao

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signo verbal.

Ícones dizem sempre mais que as palavras (símbolos)

com que tentamos descrevê-los, esgotá-los, reduzi-los.

O Ícone é o signo, parcialmente motivado, que tem algo

em comum com seu referente, eco, rima, reflexo, harmonia

expressiva, visual ou acusticamente, no plano material dos signos,

no significante.

Este mistério da participação do signo icônico na

natureza do seu referente, mistério material, produz uma taxa de

informação estética incomparavelmente maior do que aquela que

conseguem gerar os símbolos, signos imotivados, arbitrários,

meras convenções imateriais.

As palavras (símbolos) dos simbolistas apontam para

outra família de signos, os ícones.

Não-verbal, o ícone nunca é exaustivamente coberto

pelas palavras, restando sempre uma área transversal, uma mais-

valia, um sexto-sentido além das palavras. Os simbolistas

intuíram essa terra de-ninguém-que-seja-palavra. E nela,

plantaram sua bandeira.

Daí, seu célebre “amor ao vago”. O problema do texto

poético simbolista é a programação do indeterminado, a

“determinação da indeterminação”, como mostrou Décio Pignatari,

sobre Mallarmé.

Sensível-criativamente, os simbolistas anteciparam-se a

uma das mais revolucionárias produções da Física Moderna, o

princípio da incerteza, formulado por Heisenberg: o observador, ao

observar, perturba a coisa observada (ler = escrever).

À luz do verbo, todo ícone é inesgotável. Nem com todas

as palavras do mundo se pode esgotar a abertura, o plural, a

multivalência semântica de um desenho, um esboço, uma foto,

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um esquema, uma rima ícones.

As palavras estarão sempre aquém, sempre menos;

além, um campo de possíveis, “oculto”, “mistério”, “inefável”.

“Mistério” é palavra grega que vem de um radical que

significa “fechar a boca”. Só há mistérios para o código verbal.

Melhor dizendo: para o interpretante do signo icônico que o

aborda com os preconceitos logocêntricos da contiguidade.

ícone: antes de tudo, uma polissemia

As teorias do código verbal (gramática, retórica,

estilística) cedo se ocuparam do fenômeno da polissemia, a

capacidade de um signo (verbal) comportar mais de um

significado.

No verbal, a polissemia é uma anomalia. Um desvio. Um

caso patológico. Prova disso a presença de polissemias na retórica,

como se sabe, um elenco de desvios e infrações, em relação a um

grau zero, o discurso “natural” e “normal”.

Tais são a metalepse (o antecedente pelo conseqüente,

sinônimo contextualmente impróprio, semanticamente incorreto),

a ironia (faz uma palavra significar o oposto do que significa), a

paronomásia (o jogo de palavras, o trocadilho), a antanáclase (dar

à mesma palavra um sentido diferente), o enantiosema (palavra

com dois sentidos contrários, uma palavra que tenha um oxímoro

como significado). A polissemia, anomalia para o código verbal

(símbolos tendem a ser unívocos), é o estado normal dos icônicos,

seu natural semântico.

Uma imagem vale por mil palavras (as palavras tem que

usar palavras para dizer isso às palavras, os signos, sendo, sabem

disso).

Outro fenômeno da esfera da polissemia verbal é a

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conotação, o significado segundo que se estrutura sobre um

significado anterior. A conotação, opondo-se à denotação (o

sentido do dicionário), é um fenômeno de sobressignificado.

A conotação é de natureza icônica.

Além do seu significado-padrão, registrado em

dicionário, toda palavra tem um halo de ecos, uma aura

ectoplásmica, campos elétricos de significados difusos em volta do

núcleo denotativo.

Secundária quando se usa a linguagem com função

prática ou referencial, a conotação passa a ser matéria-prima

quando se faz uso poético da linguagem, quando pretendemos

produzir estados estéticos numa cadeia ou superfície verbal.

As misteriosas reações sígnicas chamadas polissemia ou

conotação só o são para o código verbal. No plano do ícone, são

naturais e normais, integrantes da própria definição de ícone.

São responsáveis por climas, atmosferas, verdadeiras

ambiências sígnicas, estados de baixa definição e alta

contaminação recíproca. A consciência icônica dos simbolistas

pode ser observada em ação nos poemas mais conseqüentes do

movimento: no “L’Aprés Midi d’un Faune”, de Mallarmé; na

“Antífona”, de Cruz e Sousa; em “Horas Igneas”, de Kilkerrey; em

“Palingenésia”, de Dario Vellozo...

5 Sentidos, 5 Códigos

A consciência icônica inovadora do Simbolismo não se

revela apenas na inconização do verbal, como na grafia fantasista

da palavra “lírio” grafada pelos simbolistas como “lyrio”, a letra Y

funcionando como ícone da flor/referente.

Revela-se, ainda, na revolução que associamos às

“Correspondances” de Baudelaire ou ao soneto das vogais de

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Rimbaud.

No poema de Baudelaire, a natureza “é um templo”,

onde o homem passa “através de florestas de símbolos” e “os

perfumes, as cores e os sons se respondem”.

Rimbaud, por sua vez, atribui cor a cada som vogal,

numa fonética cromática, aparentemente arbitrária, fútil e

gratuita. O fenômeno da tradução do código de um sentido (ouvir,

som etc.) para outro (ver, cor etc.) é a sinestesia, uma operação

intersemiótica (como a tradução de um idioma para outro ou de

uma família de signos para outra família de signos).

Toda tradução é icônica: reproduz partes de um original

(o original traduzido, um Primeiro).

Só informações documentais eventuais, nos idiomas

naturais, são traduzíveis “ao pé da letra” (isto é, por contigüidade).

Ícones, não tendo sinônimos, não são traduzíveis.

O que se chama, impropriamente, de tradução é a

construção de um novo objeto, homólogo ou análogo, uma paródia

(= canto paralelo), ao Primeiro.

Poesia, numa mensagem, é o que se perde na tradução.

Poesia é uma substância frágil demais (ou sólida

demais) para ser transportada sem danos ou perdas irreparáveis.

Esta intersemioticidade sensorial, explicitada por

Baudelaire, nas “Correspondances”, incorporada pelo programa

simbolista, ocorre em plano trans, infra ou ultraverbal, no plano

icônico, no plano do Mistério e do Oculto, para quem olha os

signos com telescópios verbais.

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o veneno das revistas da invenção

Consolem-se os candidatos.

Os maiores poetas (escritos) dos anos 70 não são gente.

São revistas.

Que obras semicompletas para ombrear com o veneno e

o charme policromático de uma “Navilouca”? A força construtivista

de uma “Pólem”, “Muda”, ou de um “Código”? O safado pique

juvenil de um “Almanaque Biotônico Vitalidade”? A radicalidade

de um “Pólo Cultural/Inventiva”, de Curitiba? A fúria pornô de um

“Jornal Dobrabil”? E toda uma revoada de publicações (“Flor do

Mal”, “Gandaia”, “Quac”, “Arjuna”), onde a melhor poesia dos anos

70 se acotovelou em apinhados ônibus com direção ao Parnaso, à

Vida, ao Sucesso ou ao Nada.

poesia, uma coisa pra nada

Lavra, faz tempo, um “boom” poético, nestas partes

pudendas, descobertas por Cabral. Livros. Livretos. Folhas.

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Folhetos. Grafitis. Gravetos. Vagas. Ondas. E, sobretudo, poetas.

Índice, eu acho, de uma insatisfação com a(s)

linguagem(ns) vigentes e seus limites.

Afinal, se a poesia tem algum papel nesta vida é o de

não deixar a linguagem estagnar, deitada em berço esplêndido

sobre formas já conquistadas. Sobre clichês. Sobre automatismos.

Papel de renovar ou revolucionar o como do dizer. E, com isso,

ampliar o repertório geral do o que dizer. Formas novas, qualquer

malandro percebe, geram conteúdos novos,

Para a poesia, alargar as fronteiras do expressável. Um

poema — um dia, respondi a um repórter que queria saber — é o

contrário de uma notícia de jornal.

Uma notícia de jornal diz coisas previsíveis e, portanto,

possíveis: Irã Sequestra Corpo Diplomático dos Estados Unidos.

URSS invade o Afeganistão. Direita Vence Eleições em El Salvador.

Recrudesce a Luta no Oriente Médio.

Já a poesia fala de coisas que ninguém previa,

impossíveis, nadas:

“Tinha uma pedra no meio do caminho” (Drummond).

Quem diria que um súbito obstáculo iria sustar a

marcha do bardo? “A Carne é Triste e eu Li Todos os Livros”

(Mallarmé). Ninguém poderia imaginar que a carne e os livros

poderiam sair juntos na mesma notícia. Querem mais uma não-

tícia? “Tu pisavas nos astros distraída” (Orestes Barbosa). Ora,

vamos e venhamos, mas essa da nêga pisar em estrelas é dose. E

distraída, ainda por cima! Não param aí os absurdos. Quando

você menos espera, vem um português magrinho, bêbado, que diz,

detrás de um bigodinho chaplin-hitleriano: “O poeta é um

fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a

dor que deveras sente”. Aí é demais. O desrespeito pela santidade

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da lógica e da realidade é de molde a fazer qualquer leitor,

medianamente instruído, torcer o nariz. Nisso, o Augusto de

Campos chega e encerra o assunto, mandando aquele abraço para

o espaço cósmico: “Abra a janela e veja/o pulsar quase

mudo/abraço de anos-luz.” Abraço de anos-luz! Chega. Eu passo.

É pra isso que poesia existe. Pra dizer o que não se diz.

E só assim aumentar o campo dos prováveis do dizer. Para bem de

todos, da poesia à prosa. Subversivamente.

Nos anos 70, a poesia que mais fez isso foi a que esteve

nas revistas. As revistas são a obra-prima da poesia brasileira, na

década que acabou de passar. Mas não pára. Porque na vida dos

signos superiores, gratuitos, o que passa, fica. E só fica o que

passou, forte.

O subversivo dessa linguagem casou, de véu e grinalda,

com a era das nanicas jornalísticas (“Pasquim”, “Movimento”,

“Coojornal”, “Em Tempo”, “Versus”, “Repórter”), e crítico-

humorísticas (“Ovelha Negra”, “Raposa”, “Risco”, “Pato Macho”),

alternativas-quixote para o sanchopança do jornalismo oficial,

acadêmico e rotineiro, conformado e auto-satisfeito.

Jorraram nanicas na Idade das Trevas, sob a sombra do

AI-5. Foi a idade da imprensa pobre, “povera”, precária, aquém

dos padrões empresariais da banana-maçã (ou ouro) da imprensa

vigente; E muito além dela quanto independência de opiniões,

contacto com as bases, contundência crítica e originalidade

criativa. As migalhas de dinheiro que caíram das mesas da fartura

do “milagre brasileiro”, talvez, consigam explicar alguma coisa da

facilidade com que os pequenos jornais e revistas proliferaram nos

anos 70.

Com a alta do petróleo e a carestia geral, aventuras

como as nanicas começaram a se tornar, financeiramente, menos

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prováveis. As bombas nas bancas, intimidando o intermediário,

agravaram ainda mais o quadro clínico das nanicas. Quantas vão

bem das pernas hoje?

nanicas na produção

Par e passo com as nanicas de consumo (tipo

“Pasquim”), a geral e as arquibancadas (mais estas que aquela)

assistiram ao desfile das nanicas de produção, onde os poetas

mais jovens procuraram criar novos processos e novas formas de

dizer, dizendo coisas novas. Enfim, isso que chamam por aí de

poesia. Com o passamento dos suplementos literários nos jornais,

que marcaram os anos 50/60, a minoritária linguagem da poesia

buscou novos leitos e novos leitores para fazer correr seu leite

(essa foi de lascar, hein, Régis?).

Pequenas revistas, atípicas, prototípicas, não típicas,

coletivas, antológicas, representando um grupo ou tendência

(“formalistas”, pornô, “marginais”), onde predominou a faixa etária

dos 20 aos 30 anos. Em comum: a auto-edição (samizdat), todo

mundo juntando grana para comprar a droga da poesia.

Antologias: essa coletivização do aparecer (se não do

fazer) corresponde a uma politização, mesmo que não explícita. E

a escolha da revista como veículo (mais que um jornal, mas menos

que um livro), a uma posição estético-filosófica: a eleição do

provisório, a arte e a vida do horizonte do provável, a renúncia e o

repúdio do eterno por parte de uma geração que cresceu à sombra

do apocalipse. Talvez não haja mais tempo para a glória. Só para o

sucesso. Assim como não há mais lugar para a emoção. Só para o

suspense. Entre essas nanicas de produção, dá pra distinguir

muito bem entre umas, de design de nível baixo, e outras, com um

repertório mais alto de informação plástico-visual. Aquelas com

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programação visual nível gráfico-técnico inferior à média das

publicações correntes, meros suportes-excipientes de poemas,

impressos corriqueiramente, sem a consciência da plasticidade do

texto-página. E aquelas que, de certa forma, herdaram o apuro

industrial e o elevado repertório gráfico-visual das revistas da

Poesia Concreta paulista nos anos 50/60 (“Noigandres”,

“Invenção”).

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grande ser, tão veredas

A pois. E não foi, num vupt-vapt, que as altas histórias

gerais da jagunçagem deram de ostentar suas prosápias e

bizarrias no tal horário nobre da caixinha de surpresas, pro bem e

pro mal, Rede Globo chamada?

Compadre mano velho, mire e veja as voltas que o

mundo dá. Quem haverá de dizer que toda essa aprazível gente

cidadã ia botar gosto em saber das fabulanças daqueles tempos,

quando o desmando e a contra-lei atropelavam os descampados

do Urucuia, lá praquelas bandas brabas, onde tanto boi berra?

Só dizendo mesmo, a bem dizer, como proclamava meu

compadre de Andrade, Oswald, dito e falado, lauto fazendeiro de

S. Paulo: a massa ainda vai comer do biscoito fino que eu fabrico.

A graça que ia nisso! Tinha muita graça meu compadre de

Andrade. Mas o senhor, que é homem instruído, não faça pouco

nem ponha reparo nas facéias do compadre Oswald. Era homem

sabido de esperto, e quando parecia que estava mais se rindo,

mais se estava falando sério. Tudo questão de tino, coisa que é

que nem coragem, que tem, como tem gente que não vai ter

nunca.

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De modos que esse brazilzão todo, rol de gente de nunca

acabar, está ficando sabendo, devagarinho, das andanças do

jagunço Riobaldo Tatarana, ao lado do seu querido Reinaldo, vale

dizer Diadorim. Só que tem um desconforme. A gente não sabia de

principio, que Reinaldo era mulher, que nem a gente já fica

sabendo nas televisivas fabulanças. E se bem me alembro, a

memória tem dessas coisas, Reinaldo não era tão bonito como

essa beleza de dona Bruna, Lombardi chamada, italiana tirana de

tanta boniteza. Semelhava assim, no psico do olho, uns jeitos de

garoto nos seus quinze, o mais tardar seus dezessete anos,

emborasmente mais judiado, que a jagunça vida nasceu pra dar

formosura pra ninguém.

Nem ninguém jagunceia por picardia, jagunceia por

precisão.

Tarcísio Meira? Meira, dos Meida de Buritis-Altos? Ah,

não. A pois. Veja você, que a gente de prol e de escol, mire e veja.

Não assemelha o Hermógenes. Não, Deus esteja. T’arrenego, e

esconjuro! O cão com o cão, e faca na mão! Aquilo não era

criatura de Deus, quem viu, viu sabendo, e bem sabido. Era feio

como a necessidade, ninguém nunca deitou os olhões num

indivíduo mais puxado a sapo, que até cascavel, pra quem gosta,

até tem lá suas graças e desenhadas cores.

E, despotismo de calamidades! Teve o fim que mereceu,

que o diabo escolhe quem quer, Deus só escolhe os seus.

Do Diabo? Diá? Diadorim? Do diabo, não se fala. Que

diabo hoje não faz pavor na gente cidadã. Que diabo, que nada! o

coisa-ruim, o que-nem-se-diga, o diantre, o dívida-externa, o Aids,

o inflação, o Delfim-Netto! Acreditar não digo que a gente

acreditava. Difícil era achar quem duvidasse, o senhor releve a

sutileza, que é cortesia de jagunço velho, mor de não estragar a

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pontaria.

Pontaria, pontaria mesmo, quem teve nunca deixou de

ter, foi Riobaldo Tatarana Guimarães Rosa, esse o nome cabal e

completo, homem de muitas letras, nenhum igual ninguém nunca

nem viu. A pois, mano velho. Tino e siso era ali, jagunço de

caudaloso cabedal, tiro certeiro no olho da onça jaguareté, pau a

pau, pum e pum.

Quem dissera? Nem quem diria! Aquela parolagem toda,

jaguncismo de lei, no tal nobre horário da Rede Globo chamada...

Custoso é o mundo de entender, custosa a fala de Riobaldo

Tatarana Guimarães Rosa. Aquilo é falar de cristão, cruz-credo,

me persigno!? Nem nenhuma lei de sã gramática aquele jagunço

reverenciava, e era tudo um redemoinho de sustos, que gente

como nós é minuciosa nas artes do sem-sobreaviso. Surpresa só.

Vá que a gente cidadã nos seus nobres horários vá saber o que a

gente só dizia no oco do toco, o senhor que é de lá me diga... e a

caixa de surpresa, televisão chamada, não tem validade de forças

pra suflagrar no durante e no seguinte, os cafundós de filosofismo

que Tatarana Guimarães Rosa enredava naqueles cipós lá dele...

que esse Tatarana fosse o Homero desses brasis todos, Homero, o

senhor sabe, o Adão dos cantadores...

Divago. Mas não disperso. Esse rural acabou. A pois.

Mas que foi muita coragem desse tal siô Avancino, Avancini, o

senhor me corrija e reja, de ponhar em vídeo e áudio tanto caudal

primitivo, que isso foi, foi macheza, ninguém duvida, quem haverá

de? Eh, mão de obra!

Efetuar proezas é da vida, e o que for do homem, o bicho

não come. Contar é que empecilha, a lembrança não pousa nunca

no mesmo lugar, e o dito nunca fica como foi, nem o escrito, que

só vem muito depois.

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Consoamente meu compadre falecido Tatarana, na

glória esteja! Costume e tenho bom uso de dizer, que com ele

aprendi, “viver é muito perigoso”.

Vê lá se televisionar não haverá de ser!

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e o vento levou a divina comédia

E aí também aconteceu a Messer Alighieri, até a ele,

aquele comum destino de morrer, e no leito de morte, no amargo

exílio, Alighieri falou pela última vez, e disse a seus filhos:

— Deus me perdoe por tudo o que eu fiz.

Dito isto, crispou o rosto com uma última dor, e

entregou a alma aos outros mundos, onde prossegue a vida

humana.

Na Comédia que deixava, Alighieri tinha se fantasiado

como o único homem que, vivo, tinha percorrido os domínios

depois da morte.

Em ficção, em texto, tinha estado no Inferno, no

Purgatório e no Paraíso, antes de morrer.

Impossível idéia maior.

Durante toda a sua vida, Messer Alighieri sofreu com a

idéia de que tinha tido uma idéia excessiva, uma intuição poética

tão alta e tão funda que só podia ser pecado.

Pecador que era, teceu os tercetos da sua Comédia

durante cinqüenta anos, eu, pecador, me confesso, estou

escrevendo o poema que não deveria estar sendo escrito, eu estou

imaginando o inimaginável.

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Agora, era a hora de prestar contas da vida, dos

pensamentos e das obras.

Mereceria o Inferno, pelo orgulho de se imaginar, vivo,

atravessando os três reinos depois da morte? Era demais. Não é

possível. A misericórdia divina sabia, a vaidade dos escritores é a

fortaleza dos fracos, daqueles que não conseguiram poder pelas

armas, pelo dinheiro ou pelas influências junto aos magnatas.

Purgatório, talvez? Esse reino intermédio parece o lugar

perfeito para Dante, como o é para todos nós que pecamos apenas

um pouco, a destinação dos pecadores razoáveis, aqueles que,

entre a virtude heróica dos eremitas e a depravação extrema dos

artistas de teatro, escolheram a dourada mediania dos pequenos

vícios, das infâmias mínimas, os medíocres em vício e virtude.

Não pode ser o lugar para Dante. Com seu poema, ele

pede ou a glória ou a danação. Nada menos que isso seria digno

dessas estrofes, perfeitas, absolutas, divinas.

Mas Deus, que é justo, porque é pai, decretou diferente,

muito além da nossa justiça lógica.

Dante foi condenado a ser amado pelos homens, e seu

poema blasfemo e sacrílego a ser repetido por todos os séculos dos

séculos, amém.

E assim será para todo sempre:

“No meio do caminho da vida,

me vi no meio de uma via transviada,

o resto era tudo estrada.”

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poeta roqueiro

Aí vem o primeiro marginal. Vivesse hoje, Rimbaud seria

músico de rock. Drogado como o guitarrista Jimi Hendrix,

bissexual como Mike Jagger, dos Rolling Stones. “Na estrada”,

como toda uma geração de roqueiros. Nenhum poeta francês do

século passado teve vida tão “contemporânea” quanto o gatão e

“vidente” Arthur Rimbaud. Pasmou os contemporâneos com uma

precocidade poética extraordinária — obras-primas entre os 15 e

os 18 anos. De repente, largou tudo, Europa, civilização ocidental-

cristã, literatura e, cometa, se mandou para a Abissínia, na África.

Lá, longe da Europa branca e burguesa que odiava, levou a vida

de mercador árabe, traficando armas, varando desertos nunca

antes pisados, vivendo a grande aventura infantil, pré-figurada em

seu nome de rei lendário. Breve durou esse Camelot. Da África, o

rei Arthur voltaria à França para amputar uma perna e morrer, de

câncer, num hospital de Marselha, delirando poesia, cercado por

padres e sua irmã, ávidos pela confissão desse blasfemo.

Claro que uma vida assim não caberia em versinhos. E

uma ampla prosa, de sopro largo e rebelde a todas as medidas,

que Rimbaud escreveu Uma Temporada no Inferno e Iluminações,

agora, mais uma vez, à disposição do público brasileiro, na

apaixonada tradução do poeta Ledo Ivo. A indisciplinada e genial

verborragia infanto-juvenil desse precursor dos surrealistas não

levantaria maiores percalços a seu tradutor. O texto de Rimbaud,

no caso, é uma prosa fluente, trepidante de arroubos e

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entrecortada de interjeições sem muitos acidentes de métrica ou

armadilhas de arquitetura e engenharia.

Nada que exigisse as proezas, digamos, dos irmãos

paulistas Haroldo e Augusto de Campos, com suas insuperáveis

transfigurações de textos impossíveis para o repertório e o

consumo brasileiros. Uma Temporada no Inferno traz poemas de

métrica regular. Mas, nestes, o tradutor de Rimbaud pisou na

bola, não lhes conseguindo a métrica que não se cobra do tradutor

comum mas, sim, de um que tem nome de poeta nas antologias

escolares, caso de Ledo Ivo. A despeito do português um pouco

“escrito” demais para Rimbaud (como certos “tende”, “voltais”,

“dar-lhe-ia”), o poeta, sem ledo engano, se saiu bem da empresa. A

garotada que pinta agora tem muita sorte de ter essa tradução,

para curtir e aprender com seu irmão mais velho de um século

atrás — auxiliada pela estudiosa introdução de Ledo Ivo pelos

meandros de uma das mais portentosas peripécias poético-

existenciais do Ocidente.

Enfim, como diz o próprio poeta: “Eu é um outro”. A

melhor poesia de Rimbaud esteve, porém, em seu gesto final: a

recusa do “sucesso”, a escolha do “fracasso”, a derrota da

literatura, inimiga da poesia, para que esta triunfasse.

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aventuras do ser no nada

(quem tem náuseas de Sartre?)

— Vim te matar.

— A essa hora? Pra quê?

— Soube que você está escrevendo matéria sobre Sartre.

— É pecado?

— Em Curitiba, só eu posso escrever sobre Sartre.

— Com o perdão dessa arma apontada para mim, não

sei o que vocês vêem nesse francês com cara de sapo, que acabou

a vida mijando nas calças, num pileque contínuo.

— Vê lá como fala.

— Falo como Sartre falaria, diante de uma arma. Como

você acha que ele falou, quando a Gestapo o prendeu, na

Resistência?

— Esse não me interessa.

— Ah, você prefere o Sartre das palavras.

— Fora das palavras, não há salvação.

— Abaixe essa arma, pare de bobagem, sente aí e vamos

conversar sobre.

— Está bem. Mas um gesto, e eu transformo seu para-si

em em-si.

— Enquanto você elucubra aí, não se incomoda se eu

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terminasse de ler isso aqui?

— Sobre o que é?

— Adivinhe.

— Ah, sei.

— Que é que você acha disso: “Sartre é o último filósofo

grega Depois dele, só são possíveis MacLuhans”.

— Não acho nada.

— “Teórico e ficcionista, antes de tudo, teve pela ação e

pela militância um amor não correspondido: todas as suas

agitações políticas, em termos de ação, sobre a sociedade

francesa, foram menos que um fracasso. Foram apenas o nada”.

— Continue.

— “Contra o existencialismo, Sartre cometeu o crime

supremo. Escreveu O ser e o nada, vasto tratado, suma teológica

de uma doutrina filosófica que exalta a experiência individual,

anti-teórica e contrária a toda e qualquer suma teológica. Cedo,

Jean Paul percebeu que a forma perfeita para a exposição de suas

teorias já existia. Não era o discurso conceitual de seus mestres, o

teutônico delírio conceitual de O Ser e o Tempo, de seu mestre

germânico Heidegger, o estilo de jogo de Kant e de Hegel. O

existencialismo, por sua própria natureza, só poderia ser exposto

através da ficção. Do conto. Da novela. Do romance. Com Sartre, a

ficção transformou-se no gênero literário (textual) do

existencialismo, veículo ideal de seus princípios”.

— Prossiga. Ainda lhe concedo uma página.

— “Difícil dizer, em Sartre, se é o filósofo que abastece o

escritor ou o escritor que abastece o filósofo. De qualquer forma, o

autor de A náusea deu à literatura o status e a dignidade da

filosofia. E, naturalmente, à filosofia, a cor e o movimento da

literatura. Criou conceitos que se tornaram, em nossa época,

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moeda comum. A expressão “engajamento”, foi ele que criou.

“Autencidade”. “Angústia”. “Má consciência”. “Escolha”. E teve

dois amores: Simone de Beauvoir e o marxismo...”

— Pare aí, senão...

— Deixe eu pular para: “A invasão da Hungria pela

União Soviética, para sufocar um movimento popular e nacional,

fez com que Sartre rompesse seu alinhamento com a URSS

stalinista. Como teórico, aliás, não deve ter sido fácil a tarefa do

profeta das “caves” post-guerra, cheias de pré-beatniks, camisas

de gola enrolada, barbas por fazer, jazz e álcool na cuca. Seus

filhos, depois seriam, nos Estados Unidos, “beatniks”. E seus

netos, os “hippies”. O existencialismo é a metafísica do

individualismo ocidental e capitalista”.

— Páre, senão eu atiro.

— Não atire. Eu me rendo. Digo aqui que “O problema

teórico de Sartre foi, sendo existencialista, isto é, seguidor de

Kierkegaard, assumir um pensamento hegeliano, como o

marxismo. Existencialismo e Hegel não combinam. Para Hegel e o

marxismo, saído dele, o concreto é o geral: a classe social, o

sindicato, o Estado. O particular e o individual não passam de

abstrações. Para Kierkegaard de o Existencialismo é exatamente o

oposto. O geral é abstrato. O individual é concreto. Sartre nunca

conseguiu resolver essa contradição. Ainda bem. Ao que tudo

indica, não tem solução”.

— Fique aí onde está.

— “O interessante em Sartre é que esse conflito filosófico

de grandes proporções acaba sendo pai e mãe de sua ficção e seu

teatro, única saída que achou para conciliar Hegel e Kierkegaard”.

— Mais uma dessa não vou aturar.

— “No fundo, o existencialismo de Sartre é a tradução

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da impotência política da intelectualidade francesa, no quadro

histórico da França do pós-guerra”.

— Não é o bastante.

Um tiro na noite é coisa que quem dorme nem nota.

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tímidos e recatados

Só o respeito por seu teatro extraordinariamente

inventivo e, talvez, um preconceito ideológico ainda nos fazem ver

no alemão Bertolt Brecht (1898-1956) um grande poeta, no século

que produziu exageros bem maiores. Com certeza. A obra poética

do gênio teatral que inventou o célebre “distanciamento” não

suporta confronto com a obra de um Vladimir Maiakovski, um

Velimir Khliebnikov, um Ezra Pound, um T. S. Eliot, um E. E.

Cummings, um Fernando Pessoa. Comparada com a destes

gigantes, a poesia de Brecht é tímida formalmente e pedestre em

seus achados. Inútil procurar nela os mergulhos abissais dos

futuristas russos nos abismos da linguagem ou as infratoras

aventuras gráficas de um Cummings.

Nem teria sentido procurar na poesia deste comunista

ortodoxo as onginalidades metafísicas e existenciais que seu credo

político, certamente, repudiaria como alienações burguesas Não

que Brecht fosse adepto do simplismo estético e literário do

famigerado realismo socialista. Contra o teórico Georg Lukács, por

exemplo, defensor da tradição literária, Brecht sempre manteve as

mais corajosas posições de vanguarda artística, aliada à militância

política de esquerda. Mas isso dizia respeito principalmente ao

teatro, arte onde Brecht inovou como poucos.

A lírica brechtiana, porém, sempre se moveu num

território muito estreito, indo do primarismo métrico do poema Do

Pobre B. B., injustamente célebre, a registros circunstanciais,

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notáveis apenas porque saltam da mesma mente que criou peças

como O Senhor Puntila ou Mãe Coragem. Isso, no entanto, não é

um juízo definitivo. Há quem veja exatamente nessa simplicidade

e nesse aparente à vontade uma marca de suprema excelência

poética.

Há, sem dúvida, um lastro muito grande de prosa na

poesia de Brecht, aquele lastro discursivo de quem carrega uma

ideologia e se crê porta-voz dela. Em Brecht, encontramos lucidez

e ironia, sarcasmo e relâmpagos críticos. Mas também momentos

ridiculamente retóricos, como nesse O Grande Outubro, poesia

celebrativa da pior espécie, ode ginasiana em louvor da Revolução

Russa. Ou em poemas ingênuos, como aquele chamado Rapidez

da Construção do Socialismo, que parece ter sido encomendado

por Stalin.

Esta edição dos poemas de Brecht é bem o momento de

dizer um “basta” a uma idolatria indevida. Como poeta, Brecht

não merece a fama que desfruta. É um poeta ocasional, que

dedicou seu gênio a outra arte. O grande poeta de esquerda é

Maiakovski. Esse sim soube ver (e fazer) que “não há arte

revolucionária sem forma revolucionária”. Brecht, porém, nos

suscita uma questão inquietante. A velha questão sobre o que é

poesia. E suas brevidades prefiguram certas tendências da poesia

do século XX, o registro relaxado de certas vivências, o

fragmentarismo da dicção, o coloquial sem nobreza.

Em seus melhores momentos, Brecht realiza uma poesia

que se sustenta apenas na idéia. No saque. Numa fulgurante

intuição, que ilumina a realidade e a vida. E parece que isso foi o

que ele procurou atingir enquanto poeta. Atingir esse Brecht

através de uma tradução não parece tarefa fácil. No caso, a tarefa

coube a Paulo César Souza, professor de alemão e íntimo da

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língua de Goethe. Sua tradução, porém, é apenas literal, não-

criativa, uma transposição pelo sentido, sem muita atenção aos

elementos formais, materiais, do texto de Brecht. Mas é, nesse

sentido, uma tradução idônea e competente. Para os poemas de

Brecht, esse grau de competência basta.

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tradução dos ventos

Os japoneses estão chegando. Desta vez, não é mais um

clássico como o haikaisista Matsuo Bashô, já conhecido do

público letrado brasileiro. Ou um Prêmio Nobel como Kawabata.

Ou um genial samurai de direita como Mishima. É o terno

Takuboku Ishikawa, autor destes Tankas, carinhosamente

publicados, em edição bilingüe, com transcrição alfabética, para

aqueles que querem, além da palavra, a música e a imagem da

poesia.

Quando Ishikawa nasceu, filho de um religioso budista,

em 1885, fazia vinte anos que o Japão, aberto para o comércio

com o Ocidente, industrializava-se em alta velocidade. Nesse

mundo de rápidas transformações, Ishikawa, como bom poeta

romântico, amargou seus 27 anos, levando uma vida de

tuberculoso, infernizada por dificuldades econômicas, confusões

amorosas e familiares, além de fundas tensões ideológicas. As

idéias socialistas eram uma novidade no Japão e a elas Ishikawa

se atirou com todo o seu entusiasmo juvenil.

É significativo da sua época ver um poeta japonês,

praticante de uma forma aristocrática de poesia como o tanka,

veiculando idéias de revolução e solidariedade com a classe

trabalhadora. Nada mais estranha à literatura japonesa do que

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“preocupação com problemas sociais”. Além disso, os círculos

literários que Ishikawa freqüentou estavam profundamente

influenciados pela literatura que se fazia no Ocidente, na época:

Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Zola.

Mas foi numa forma ancestralmente nipônica que

Ishikawa traduziu os vários ventos que sopraram sobre ele. O

tanka (ou waka), que ele praticava, é o primo rico do haikai, que o

Ocidente já conhece há um século. Mais velho de, pelo menos, mil

anos que o haikai, o tanka é uma forma fixa ligeiramente mais

longa (31 sílabas) do que as parcas dezessete sílabas do hai-kai.

Sempre foi a forma nobre da poesia japonesa, praticada nos

círculos aristrocráticos e imperiais. Nas mãos de Ishikawa, o

tanka funde a pungência do passado com as pressões do

irremediável presente que acabava de chegar:

Há dias em que eu penso

Ser minha linguagem,

Talvez, a do venta

A respeitável tradução brasileira, conduzida por dois

poetas, um japonês e um brasileiro, dão conta muito bem do

significado básico do original dos Tankas. Não se trata, porém, de

uma transcriação. Não foi recriada em português a fina tessitura

de jogos sonoros que fazem a graça específica de Ishikawa e da

poesia japonesa em geral, espelhismos sonoros onde as palavras

se refletem como reflexos da lua na água. E passaram inadvertidos

muitos jogos contidos nos ideogramas do original. Mas o essencial,

talvez, já está conosco:

Mostrar um milagre qualquer

E desaparecer

Enquanto estiverem surpresos

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prosa estelar

Os astronautas do texto que se preparem. Depois de 21

anos de trabalho e navegação, finalmente brilham as Galáxias do

poeta, tradutor e ensaísta Haroldo de Campos. No início da

viagem, o autor era um dos promotores da poesia concreta, e foi

na extinta revista Invenção que publicou o plano de vôo e os

primeiros fragmentos dessa sua “prosa longa”. Ampliando as

fronteiras do projeto concreto, até então voltado principalmente

para o poema curto, a carta de navegação espacial de Haroldo de

Campos previa um livro de 100 páginas, permutáveis como as

cartas de um baralho. Ele não chegou às 100 páginas, mas

montou textos que não precisam ser lidos em sequência,

registrando, no todo, o monólogo exterior de um poeta.

Galáxias é um livro difícil — num fluxo contínuo e sem

pontuação, o escritor vai do “raro ao reles”, num trajeto que se

expande para todos os lados, englobando experiências sensoriais e

intelectuais, leituras e aventuras, vida e literatura num só

momento textual. Ou, como escreve o próprio Haroldo de Campos:

Um livro de viagem em que o leitor seja a viagem um livro-areia

escorrendo entre os dedos.

Completado o percurso, cabe a pergunta: Galáxias é

prosa ou poesia? Entre a força centrífuga da prosa e a centrípeta

da poesia, esse livro representa uma síntese, uma espécie de

momento de repouso entre dois ímpetos que seguem em direções

opostas. Nessa experiência literária, Haroldo de Campos partiu

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também de extremos opostos, como a contenção poética das

últimas obras do poeta francês Stéphane Mallarmé, e a prosa

alucinada do Finnegans Wake, o derradeiro romance do irlandês

James Joyce. No final, a prosa parece sair ganhando por pouco no

livro de Haroldo de Campos. E, no ambiente da prosa, Galáxias

representa a experiência mais radicalmente inovadora levada a

cabo no Brasil desde 1956, quando foi publicado Grande Sertão

Veredas, de João Guimarães Rosa.

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bonsai niponização e miniaturização

da poesia brasileira

Felizmente, não se realizou a profecia de Rudiard

Kipling: “O Ocidente é o Ocidente, o Oriente é o Oriente, jamais se

encontrarão”.

Por desencontrários caminhos e variadas

encontrovérsias, Oriente e Ocidente, cada vez mais trocam sinais,

apressando a unidade cultural da espécie humana, agora, em

velocidades cibernéticas.

Todos os homens são, enfim, herdeiros da produção

cultural de todos os homens, de todos os povos, de todas as

épocas.

Os hindus são meio ingleses. A China adota Marx, e o

chineseia. Os beatniks e os hippies da Califórnia e do mundo

descobrem o continente-zen.

A Ásia incorpora a tecnologia e a ciência européias. Mas

o Ocidente é inundado pela yoga, pelas artes marciais, pela

macrobiótica, por técnicas de massagem, pela acupuntura, pelo I-

Ching, pela ginástica “tai-chi”, por mantras, nirvanas, “gurus” e

“hare-krishnas”.

No plano horizontal, a influência do Ocidente, infinito da

técnica, de horizonte a horizonte, como esta frase que escrevo, na

horizontal, da esquerda para a direita.

O Oriente, o vertical, o mergulho nos abismos

simbólicos dos signos ancestrais, os mantras, o inconsciente

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coletivo, a “alma”, o universo esquecido, lá em baixo (na escrita

chinesa e japonesa, as frases são escritas de cima para baixo).

O Japão é o olho-do-ciclone do entrecruzamento

Oriente/Ocidente, horizontal/vertical.

Estranho de tudo é que as mais recentes conquistas da

arte ocidental coincidam com características da arte japonesa

mais tradicional:

— montagem atrativa (Eisenstein): ideograma, nô,

kabúki;

— distanciamento épico (Brecht): Nô, kabúki;

— port-manteau-words, montagens verbais lewis-carrol-

joycianas: -”kakekotaba”, as “palavras penduradas”, da literatura

japonesa (Nô, waka, tanka, senryu, haikai;).

— música “minimal” (Glass): música japonesa

tradicional;

— miniaturização e síntese poética (e. e. cummings,

Pound, Wiliam Carlos Wiliams, Oswald, poesia concreta) haikai,

waka, tanka.

— linguagem analógica, ideogrâmica, não discursiva (Mc

Luhan, poesia concreta).

No Brasil, a primeira influência direta da poesia

japonesa parece ter sido sobre os Modernistas de 22, através de

traduções francesas.

Guilherme de Almeida, nos anos 20, fez os primeiros

“haikais”, adotando as três linhas (versos com cinco, sete e cinco

sílabas), mas introduzindo um artificioso e maneirista sistema de

rimas, que não existem em japonês (o superego parnasiano do

soneto era muito forte...).

Oswald de Andrade, amigo e parceiro de Guilherme,

deve ter tirado do haikai a idéia para seus “poemas-minuto”,

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milionários segundos de ultra-informação.

O ideal de brevidade advindo do haikai não morreu com

22. Encontramo-lo no Drummond em cujo caminho havia uma

certa pedra...

Ou no Drummond, que se perguntava: “Stop. A vida

parou. Ou foi o automóvel?”

O imagismo do haikai ainda compareceria na poesia

altamente icônica de Murilo Mendes. Ou na do isolado Mário

Quintana.

A soneteira e suporífica Geração de 45 demonstrou todo

o seu baixo repertório, ignorando-o.

Nos anos 50, a palavra “hai-kai” é incorporada ao

vocabulário brasileiro, através do humorista Millôr Fernandes, que

popularizou a palavra entre nós. Millôr é autor de inúmeros hai-

kais notáveis.

Nessa mesma década, em S. Paulo, a poesia concreta

proclamou a excelência do pensamento ideogrâmico, como método

de composição poética. E começou a praticar uma poesia breve,

sintética, anti-discursiva, verdadeiros hai-kais industriais.

Nos anos 70, por fim, a garotada da poesia marginal ou

alternativa, crescida com manchetes de jornal, frases de “out-door”

e grafittis nas paredes das cidades que inchavam, começou a fazer

“hai-kais”, até sem querer. Waly, Chico Alvim, Chacal, Régis, Ana

Cristina César, Alice Ruiz, todos o fizeram. Fazem. E farão.

Hai-kai é o nosso tempo, baby. Um tempo compacto, um

tempo “clip”, um tempo “bip”, um tempo “chips”.

Essas brevidades lembram aquelas árvores japonesas,

as árvores “bonsai”, carvalhos criados dentro de vasos

minúsculos, signos e seres vivos, produtos da arte e da paciência

Explique quem puder. Os japoneses já estavam lá.

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história mal contada

Neste Natal, você, leitor brasileiro, descontente com os

rumos da ficção nacional, pode prestar um grande serviço às

nossas letras. Dê a seu ficcionista favorito uma máquina

fotográfica e um manual de instruções. Ele vai ficar radiante por

poder realizar sua verdadeira vocação secreta. E nós vamos ficar

livres de tantos contos e romances que se querem literatura mas

não passam de jornalismo enfeitado com plumas e paetês do estilo

mais em voga.

O mal é de família. Foi no século passado que a ficção

brasileira contraiu o vírus do naturalismo, uma espécie de AIDS

literária, que não deixa o escritor tirar os pés do chão. Desde

então, a obsessão da narrativa brasileira é “refletir” a realidade

nacional, como se a literatura pertencesse ao ramo da

comercialização de espelhos. Nesse ponto, a ficção latino-

americana em geral dá um baile de bola em nossos contadores de

histórias. Não admira o sucesso que tiveram entre nós, e

continuam tendo, os Borges, os Cortázar, os Rosa e os Bastos, os

Lezama Lima, os Juan Rulfo da vida e da literatura. Comparada

com o nosso naturalismo pedestre e fotogênico, a ficção latino-

americana parece uma literatura que enlouqueceu.

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Nós raramente enlouquecemos. Um certo bom senso

lusitano pesa em nós como uma lei da gravidade que sempre nos

devolve à terra a um nível imaginativo digno do dono do armazém

da esquina. Boa parte da nossa ficção é contabilidade. Peguem o

caso do chamado romance social dos anos 30. Tirando o caso de

Graciliano Ramos (o de São Bernardo, não o de Vidas Secas),

aquilo é naturalismo puro, aspergido com as águas bentas do

realismo socialista.

No plano da linguagem, não há nada naqueles Lins do

Rêgo, naquelas Rachel de Queiroz, naqueles José Américo de

Almeida, naqueles Érico Veríssimo que já não estivesse em

Flaubert, em Émile Zola, em Eça de Queirós ou em Aluísio

Azevedo. Em Jorge Amado, uma certa ebulição imaginativa e

lírica, provocada, talvez, pela pimenta baiana, escapou, às vezes,

dessa maldição fotográfico-naturalista que, como a liberdade do

hino, abre as asas sobre nós. E produziu esse fenômeno: Jorge, o

escritor menos amado pela crítica e pelos intelectuais, é, até hoje,

um campeão imbatível de vendagens e nossa única ameaça séria

ao Prêmio Nobel.

A evolução fotográfica da nossa ficção, com sua

compulsão acadêmica, deixou de lado algumas de nossas riquezas

naturais. Machado de Assis, por exemplo, essa esfinge negra que

até hoje ri de todos nós. Nunca vou me conformar com o fato de

que o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, um romance

de vanguarda em 1881, seja também o fundador e primeiro

presidente da Academia Brasileira de Letras. Machado, realmente,

tinha muito senso de humor, esse humor que, dizem os

entendidos, é a forma superior da inteligência.

Humor era o que não faltava ao paulista Oswald de

Andrade quando, nos idos de 20, publicou suas Memórias

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Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, romances

em mosaico, brincando com todas as formas e fórmulas. Nossa

ficção atual, infelizmente, não descende de Machado nem de

Oswald. Descende do realismo socialista, acadêmico e naturalista,

dos anos 30 e conta com o apoio irrestrito do mercado, natural

patrocinador de todas as tendências médias, vale dizer, vendáveis.

A historinha acessível, com começo, meio e fim, chega muito mais

fácil à lista dos best-sellers, ao cinema, à rede Globo, aos nossos

milhões de queridos ouvintes. Para que complicar as coisas?

Os tempos estão difíceis. A inflação é alta. Os escritores,

como todo mundo, precisam vender, fazer sucesso e, se possível,

comer e tomar Chivas Regall, como qualquer pessoa neste país, já

não tão tropical, mas sempre abençoado por Deus e bonito por

natureza.

A abertura do mercado internacional, via traduções,

também não aliviou nosso lastro naturalista e fotográfico. Ao

contrário, europeus e americanos gostam mesmo é de Carnaval,

mulata e samba. Em termos de linguagem, isso significa mais

naturalismo, mais fotografia, menos experimentação e mais

fidelidade a um certo padrão de literatura em que o típico e o

exótico sejam servidos numa bandeja contendo acarajé, licor de

pequi, doce de goiaba e o abacaxi de Carmen Miranda.

É o Brasil rural que triunfa, com três gols de Jeca Tatu.

A experiência urbana, em termos de linguagem e de vida, ainda

não tem status, literário, pelo menos a vivência da solidão e da

solidariedade da metrópole ainda não teve seu narrador. Há uma

estranha força conservadora na ficção. As grandes revoluções

literária brasileiras, que nem são tantas assim, envolveram

principalmente a poesia e os poetas. A prosa de ficção ficou assim

sempre como um lugar onde as coisas se mantêm. O lugar do bom

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senso e do bom gosto e, sobretudo, o da forma de sucesso

garantido.

Mas até nesse terreno as queixas prosseguem. A ficção

brasileira atual não está conseguindo realizar a única coisa que

justificaria sua existência — a criação de boas histórias. Daquelas

histórias tão redondas que traduzissem a experiência universal

numa forma particular. A última grande fábula brasileira é a de

Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. E um romance de

1956. De lá para cá, nossos ficcionistas se debatem entre o

naturalismo e a máquina fotográfica. Entre a dificuldade de narrar

uma realidade nova e a tirania de uma linguagem velha. Neste

país, não é só a História, com maiúscula, que vai mal. A história,

no sentido literário, também não anda muito bem das pernas.

Talvez, um dia, isso tudo dê um bom romance. Ou um filme.

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EEssttaa oobbrraa ffooii ddiiggiittaalliizzaaddaa ee rreevviissaaddaa ppeelloo ggrruuppoo DDiiggiittaall SSoouurrccee ppaarraa pprrooppoorrcciioonnaarr,, ddee mmaanneeiirraa ttoottaallmmeennttee ggrraattuuiittaa,, oo bbeenneeffíícciioo ddee ssuuaa lleeiittuurraa ààqquueelleess qquuee nnããoo ppooddeemm ccoommpprráá--llaa oouu ààqquueelleess qquuee nneecceessssiittaamm ddee mmeeiiooss eelleettrrôônniiccooss ppaarraa lleerr.. DDeessssaa ffoorrmmaa,, aa vveennddaa ddeessttee ee--bbooookk oouu aattéé mmeessmmoo aa ssuuaa ttrrooccaa ppoorr qquuaallqquueerr ccoonnttrraapprreessttaaççããoo éé ttoottaallmmeennttee ccoonnddeennáávveell eemm qquuaallqquueerr cciirrccuunnssttâânncciiaa.. AA ggeenneerroossiiddaaddee ee aa hhuummiillddaaddee éé aa mmaarrccaa ddaa ddiissttrriibbuuiiççããoo,, ppoorrttaannttoo ddiissttrriibbuuaa eessttee lliivvrroo lliivvrreemmeennttee.. AAppóóss ssuuaa lleeiittuurraa ccoonnssiiddeerree sseerriiaammeennttee aa ppoossssiibbiilliiddaaddee ddee aaddqquuiirriirr oo oorriiggiinnaall,, ppooiiss aassssiimm vvooccêê eessttaarráá iinncceennttiivvaannddoo oo aauuttoorr ee aa ppuubblliiccaaççããoo ddee nnoovvaass oobbrraass.. SSee qquuiisseerr oouuttrrooss ttííttuullooss nnooss pprrooccuurree:: hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//VViicciiaaddooss__eemm__LLiivvrrooss,, sseerráá uumm pprraazzeerr rreecceebbêê--lloo eemm nnoossssoo ggrruuppoo..

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Anseios Crípticos II FOI IMPRESSO NAS OFICINAS DA GRÁFICA DO COLÉGIO UNIFICADO, CURITIBA, PARANÁ, NO MÊS DE MARÇO DO ANO DE 2001 PARA

CRIAR EDIÇÕES.

Page 131: Paulo Leminski - Anseios Cr pticos 2 (pdf)(rev) · 2018. 12. 20. · ORELHAS DO LIVRO Em 1986, a convite de Criar Edições, Paulo Leminski organizou, em dois volumes, textos nos