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25 Artigos A TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE DA LITURGIA ORIENTAL Pe. Mario Marinhuk, OSBM * RESUMO: A centralidade do mistério de Cristo para as Igrejas Católicas Orientais está na celebração da Divina Liturgia. Ao contrário da Igreja Romana, os orientais fazem girar sua razão de ser na liturgia, a ponto de dizer “nós não criamos a nossa liturgia, mas é ela que nos cria”. Antes de ser pensada, teologizada, estudada ou explicada, ela é vivenciada. Pois, ela faz experimentar e realizar o mistério de Cristo. Ela visa, portanto, tornar os fiéis outros Cristos, con-formados a Ele e co-edificados nEle. Da liturgia é que brota a teologia (só quem reza verdadeiramente faz teologia verdadeira). A liturgia, inclusive, é o lugar da teofania (da manifestação do Divino). E nela o ser humano vai se divinizando. A partir desta centralidade, o texto justifica os diferentes ritos, compara e distingue comportamentos das Igrejas Orientais e latina, a motivação de suas diferenças etc. E concluí afirmando: nossa liturgia é essa realidade: Jesus Cristo em nós. PALAVRAS CHAVE: Unidade e diversidade; Divina Liturgia; Teofania; Igrejas Orientais; Espiritualidade. ABSTRACT: The centrality of the mystery of Christ to the Eastern Catholic Churches is the celebration of Divine Liturgy. Unlike the Roman Church, the Orientals are turning their reason for being in the liturgy, to the point of saying: “we do not create our liturgy, but is it what creates us.” Before it be thought, theologized, studied or explained, it is experienced. Because, she does experiment and achieve the mystery of Christ. It therefore aims to turn faithful into other Christs, con-formed to him and co-edified him. The liturgy is the theology that springs (only those who pray truly makes true theology).The liturgy, indeed, is the place of theophany (revelation of the Divine). In addition, It from there the human becoming divine. From this centrality, the text justifies the different rites, compares and distinguishes behaviors of Latin and Oriental Churches, the motivation of their differences and so on. Moreover, it concludes by saying: our liturgy is this reality: Jesus Christ in us. KEYWORDS: Unity and diversity, Divine Liturgy, Theophany, Eastern Churches, Spirituality. * Bacharel em teologia. Doutorando em Ciencias Eclesiásticas Orientais no Pontifício Instituto Oriental, Roma.

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Artigos

A TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE DA LITURGIA ORIENTAL

Pe. Mario Marinhuk, OSBM *

RESUMO: A centralidade do mistério de Cristo para as Igrejas Católicas Orientais está na celebração da Divina Liturgia. Ao contrário da Igreja Romana, os orientais fazem girar sua razão de ser na liturgia, a ponto de dizer “nós não criamos a nossa liturgia, mas é ela que nos cria”. Antes de ser pensada, teologizada, estudada ou explicada, ela é vivenciada. Pois, ela faz experimentar e realizar o mistério de Cristo. Ela visa, portanto, tornar os fiéis outros Cristos, con-formados a Ele e co-edificados nEle. Da liturgia é que brota a teologia (só quem reza verdadeiramente faz teologia verdadeira). A liturgia, inclusive, é o lugar da teofania (da manifestação do Divino). E nela o ser humano vai se divinizando. A partir desta centralidade, o texto justifica os diferentes ritos, compara e distingue comportamentos das Igrejas Orientais e latina, a motivação de suas diferenças etc. E concluí afirmando: nossa liturgia é essa realidade: Jesus Cristo em nós.

PALAVRAS CHAVE: Unidade e diversidade; Divina Liturgia; Teofania; Igrejas Orientais; Espiritualidade.

ABSTRACT: The centrality of the mystery of Christ to the Eastern Catholic Churches is the celebration of Divine Liturgy. Unlike the Roman Church, the Orientals are turning their reason for being in the liturgy, to the point of saying: “we do not create our liturgy, but is it what creates us.” Before it be thought, theologized, studied or explained, it is experienced. Because, she does experiment and achieve the mystery of Christ. It therefore aims to turn faithful into other Christs, con-formed to him and co-edified him. The liturgy is the theology that springs (only those who pray truly makes true theology).The liturgy, indeed, is the place of theophany (revelation of the Divine). In addition, It from there the human becoming divine. From this centrality, the text justifies the different rites, compares and distinguishes behaviors of Latin and Oriental Churches, the motivation of their differences and so on. Moreover, it concludes by saying: our liturgy is this reality: Jesus Christ in us.

KEYWORDS: Unity and diversity, Divine Liturgy, Theophany, Eastern Churches, Spirituality.

* Bacharel em teologia. Doutorando em Ciencias Eclesiásticas Orientais no Pontifício Instituto Oriental, Roma.

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1. A BUSCA DA UNIDADE NA DIVERSIDADE

A santa Igreja católica, Corpo místico de Cristo, consta de fiéis que se unem organicamente no Espírito Santo pela mesma fé, pelos mesmos sacramentos e pelo mesmo regime. Juntando-se em vários grupos unidos pela hierarquia, constituem as igrejas particulares ou os ritos. Entre elas vigora admirável comunhão, de tal forma que a variedade na Igreja, longe de prejudicar-lhe a unidade, antes a manifesta. Pois esta é a intenção da Igreja católica: que permaneçam salvas e íntegras as tradições de cada Igreja particular ou rito. E ela mesma quer igualmente adaptar a sua forma de vida às várias necessidades dos tempos e lugares (OE N.2).

Portanto, existe unidade e também a diversidade na Igreja de Cristo. Realidades que se manifestaram no decorrer da história, que jamais deveriam criar problemas, mas enriquecer gradualmente a Igreja de Cristo.

Unidade significa que a Igreja é um corpo formado de membros animados pelo mesmo Espírito Santo.

Diversidade significa que os membros deste mesmo corpo são realmente diferentes, mas cada um contribui segundo a sua natureza para o bem estar do corpo inteiro.

Quando falamos de diversidade de nenhuma forma devemos pensar na ruptura da unidade, a qual não foi desejada por Cristo.

Acreditamos que a Igreja é uma porque provém de um único Deus, acreditamos também que essa mesma Igreja é diversa porque é católica. Essa é universal porque serve a um único Deus, mas abraça diversos povos.

Afirmamos com os Padres do Concílio de Nicéia (325) e Constantinopla (381), que a Igreja é uma e universal, um corpo animado pelo mesmo Espírito, mas constituída de diversos membros.

A revelação divina é única, mas a comunidade humana à qual a revelação se manifestou é diversificada.

No mundo existem povos, culturas e manifestações religiosas diferentes, todas com a sua história, sua tradição, sua língua específica e diversas expressões, as quais necessariamente devem ser respeitadas, pois é através desse universo de variedades que o todo se completa. Segundo Robert Taft: “As diferenças culturais provocaram a primeira crise enfrentada pela Igreja primitiva: o problema do particularismo diante do universalismo, da diversidade diante da uniformidade. A grande tentação dos cristãos foi a não percepção de que é através da infinidade dos particularismos e pela consequente diversidade que a Igreja pode realizar plenamente a própria universalidade”1.

1 TAfT, Robert. Liturgia come espressione di identità ecclesiale. In: SILVESTRINI, Achile (ed.). L’identità delle

Chiese Orientali Cattoliche: Atti dell’incontro di studio dei Vescovi e dei Superiori Maggiori delle Chiese Orientali Cattoliche d’Europa. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana 1999, p. 120.

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Todavia, para uma grande parte dos ocidentais dos tempos anteriores ao Concílio Vaticano II, existia um único conceito de Igreja, a Igreja católica universal romana, enquanto as demais não passavam de ritos existentes dentro da Igreja católica apostólica romana. A partir desse modo de pensar, foi-se formando uma profunda idéia de latinização, com a descaracterização de uma das partes integrantes da Igreja católica, aquela de tradição oriental. Em consequência, foi empobrecido o conceito de Igreja universal, pela criação da confusa idéia de subordicionalismo das Igrejas orientais em relação à Igreja de Roma.

Essaconcepçãoumtantominimalistade Igreja, quedesconhecearealidade histórica e eclesial das Igrejas do Oriente, permitiu a expansão e aprofundamento da latinização das Igrejas orientais católicas. Tal situação também levou ao empobrecimento do conceito de Igreja Oriental no meio do clero e dos fiéis da Igreja latina, além de ter infelizmente incidido sobre a praxe litúrgica e disciplinar oriental, alterando inclusive a sua atuação pastoral. Tudo isso se deve ao fato que, os ocidentais possuíam um conceito unilateral do Oriente: generalizavam o mal e negligenciavam o lado positivo da questão. Generalizavam demais os defeitos e abusos introduzidos na Igreja Oriental depois da separação, sem apreciar a perfeita conservação das tradições históricas. Não se fazia outra coisa além de colocar em evidencia todos os defeitos e imperfeições dos Orientais, fomentando com isso o desprezo e o ódio.

Tais idéias discriminatórias e subordinacionalistas foram lentamente se enraizando no meio eclesial, e inclusive foram transplantadas pela Igreja de tradição latina para os diversos continentes em missão, dificultando o posterior diálogo entre os Ortodoxos e a Igreja de Roma. Aqueles, na verdade, percebendo o preconceito e a aversão dos latinos, reagiram com firmeza, bloqueando qualquer possibilidade ecumênica. E aqui temos um dos principais motivos do distanciamento do Oriente cristão em relação aos católicos ocidentais; aqui se encontra a raiz das dificuldades pelas quais passa atualmente o diálogo ecumênico.

2. A DIVINA LITURGIA – UM DOS COMPONENTES DO PATRIMÔNIO

DAS IGREJAS ORIENTAIS

Nas Instruções para a aplicação das prescrições litúrgicas do Código dos Cânones das Igrejas Orientais, a Sé Apostólica deixa claro que o patrimônio oriental vai além da liturgia. Não devemos reduzir o patrimônio específico das Igrejas Orientais somente na dimensão litúrgica. Por causa da sacralidade dos ritos, a riqueza dos textos passou-se a sublinhar exageradamente a liturgia como o único patrimônio específico dos orientais, esquecendo-se das outras riquezas que profundamente caracterizam as Igrejas cristãs do Oriente. A valorização teológico-simbólica e espiritual, a peculiaridade disciplinar dos orientais também faz parte do patrimônio indiviso da Igreja universal.

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Podemos afirmar então que a liturgia é a expressão mais perfeita e oficial de tudo o que anima qualquer que seja a tradição. Todavia, essa não é absolutamente a única componente de uma particular tradição. Os ritos tanto da Igreja oriental quanto ocidental incluem também todos os outros elementos que se espera encontrar numa cultura católica: escola de Teologia com seus Padres e seus Doutores, disciplina canônica, devoções, monacato, arte, arquitetura, hinos, música e também o próprio espírito que criou tal tradição, que por sua vez se nutre de tal tradição e é essencial para a sua identidade.

Importa deixar claro que para os orientais o rito não é somente um modo diferente de celebrar a missa. É um patrimônio especial com sua riqueza peculiar. Diferencia-se do rito romano pela diversidade de solenidades, pelos seus santos próprios e por tempos específicos de jejuns, santuários característicos, peculiares devoções e diversas práticas devocionais, além de contar com uma particular estrutura hierárquica e Direito Canônico próprio. Portanto, o espírito oriental busca manter uma afinidade bastante estreita com a sua liturgia, fazendo acontecer a união do rito com a cultura e a devoção religiosa. Por esse motivo podemos afirmar que para o oriental, a liturgia não é uma das várias tarefas espirituais: ela é o evento central da vida cristã, expressão suprema da vida em Deus.

Desse modo, para o fiel greco-católico ucraniano, tanto quanto para os demais fiéis orientais, a revelação salvífica de Deus torna a pessoa capaz da vida divina, e a liturgia é o terreno privilegiado do encontro entre o humano e o divino. É o lugar da teofania, lugar no qual o homem vem sendo iniciado na vida divina participando no mistério da redenção. Aqui está a razão do emigrante ucraniano, ao se deslocar para o território brasileiro, ter sentido tão intensamente a falta da própria estrutura eclesial, do próprio rito, das tradições, dos sacerdotes. E isso criou nele o grande desejo de que toda essa riqueza espiritual fosse, o mais rápido possível, transplantada para as novas terras.

As Igrejas orientais vivem, de fato, ao redor de sua liturgia. Esta liturgia ajuda os fiéis a vivenciarem uma fé centralizada nos dogmas, mas também e ao mesmo tempo, os identifica como um povo concreto. Para os orientais, a liturgia foi sempre concebida como vida, e vida sacramental na Igreja. Através dela, o cristão oriental vive o kerigma (do grego: κηρύσσω, que literalmente significa: proclamar. Palavra usada no Novo Testamento para indicar o anúncio da mensagem cristã). A liturgia se manifesta num ambiente familiar, num lugar de encontro: ela avança além dos murros da igreja. Por isso podemos dizer com firmeza que foi através da liturgia que a Igreja greco-católica ucraniana assegurou a sobrevivência de uma fé inabalável entre os ucranianos, capaz de ajudá-los a enfrentar e a vencer as muitas adversidades e perseguições.

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3. O QUE MOTIVOU A DIVERSIDADE:

• Sabemos que a liturgia no Oriente se desenvolveu durante os séculos nos quais a Igreja se ocupava principalmente dos mistérios da trindade e da encarnação. O grande esforço dos Padres da Igreja do Oriente (Atanásio, Basílio, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa entre outros

– século IV) foi o de explicar teologicamente os grandes dogmas da fé cristã: a Trindade e a Encarnação. Consequententemente a liturgia se apresenta como o eco dos primeiros grandes concílios da Igreja (Nicéia I – 325 e I Concílio Constantinopolitano – 381).

• A liturgia no Ocidente se desenvolve quando a Igreja Ocidental procurava entender e exprimir o dom da graça (Agostinho × Pelágio e seus seguidores – a partir de 400 d.C.) que não pode ser conquistada por alguma força humana. Por isso, nas orações litúrgicas a afirmação que a graça é um dom gratuito de Deus é repetida constantemente – A mesma fé, com ênfase diferente.

• No Oriente do primeiro milênio se desenvolve a veneração dos ícones: imagens sagradas de uma beleza transcendental que não somente representam mas tornam presente aos fiéis o mistério da fé. Esta devoção demonstra um respeito extraordinário da majestade de Deus e a grandeza dos seus santos e uma familiaridade dos mistérios mais sublimes.

• No Ocidente do século treze se desenvolve uma memória afetuosa pela vida terrestre de Cristo, pela sua humanidade. Inicia-se a era dos presépios e crucifixos realísticos. Os cristãos se alegravam diante de um presépio e se entristeciam aos pés do crucifixo. A mesma devoção, símbolos diversos.

• No Oriente, a teologia, isto é a procura pela compreensão dos mistérios se tornou cada vez mais contemplativa e menos analítica.

• No Ocidente, a contemplação não era ausente, mas a tendência pela analise tornou-se mais forte. O mesmo escopo, diversos caminhos.

• Oriente cristão, observa todo o acontecimento que envolveu a pessoa de Jesus Cristo partindo do Mistério. Por isso, segundo os orientais, a basílica onde Jesus Cristo morreu e ressuscitou no Domingo de Páscoa sempre foi denominada, a Basílica da Ressurreição.

• OsocidentaisobservamestamesmaVerdadepartindodahistoricidade, isto é, do que ela realmente foi. Para isso, a teologia latina acentua o Cristo histórico, isto é, a pessoa humana de Jesus Cristo. Segundo os ocidentais, a basílica onde aconteceu a morte e ressurreição de Jesus Cristo sempre foi denominada, a Basílica do Santo Sepulcro.

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• O sinal da cruz ocidental: cinco dedos unidos manifestam as cinco chagas de Cristo, como também uma saudação a toda criação de Deus. A testa simboliza o céu e a sabedoria, o peito simboliza o infinito amor de Jesus, e os ombros significam o poder de Deus e uma oração ao Espírito Santo.

• O sinal da cruz Oriental: unem-se os três primeiros dedos da mão direita, simbolizando a Trindade, enquanto que os dois dedos restantes, pressionados contra a palma, simbolizam a dupla natureza de Jesus Cristo. Dizendo “Em Nome do Pai”, tocamos com esses três dedos unidos primeiro a testa e, seguidamente, na zona da cintura, simbolizando que o Pai é o Criador do Céu e da Terra; em seguida, dizemos “e do filho” e tocamos com os três dedos unidos no ombro direito - porque o filho, Jesus Cristo, ressuscitou e sentou-se à direita do Pai; finalmente, dizemos “e do Espírito Santo”, tocando com os três dedos unidos no ombro esquerdo - o filho e o Espírito Santo são os dois “braços” do Pai agindo na Criação. Deste modo, traçamos uma cruz sobre o nosso próprio corpo, afirmando, simultaneamente, a nossa fé na Santíssima Trindade e na essência de Cristo.

• Por se tratar de outro gênio e temperamento, diferentes rituais e devocionais, os orientais acreditam na aparição e intercessão da Virgem Maria, porém para o mundo oriental, as aparições de fátima, Lurdes, Guadalupe, Medjugorje não são manifestações de um mundo cristão universal. Pois a Virgem Maria aparece sem ter entre os braços o filho – uma imagem perfeitamente ocidental, inconcebível no contexto cultural do rito bizantino, onde a Virgem Maria é a Theotókos, a geradora de Deus, tendo total mérito de carregar o seu filho divino. Inseparável de seu filho. Nas suas aparições, a Virgem Maria não recomenda as práticas do Akathistos, Paraklesis (celebração que se realiza através do canto dos cânones, salmos, hinos e litanias), a oração de Jesus, Canon de Santo André de Creta.

Toda a supracitada variedade de expressão revela a insuficiência do conhecimento da liturgia sem um estudo prévio do contexto histórico-social no qual ela se formou. Sabemos que a liturgia deve necessariamente ser vivenciada, antes de ser estudada ou explicada. Segundo oriente cristão, uma teologia que não procede da vida não é teologia, mas um simples exercício acadêmico. Uma teologia que não procede da oração não chega ao seu máximo escopo. Dizia Evagrio Pontico (345-399), amigo intimo de São Basílio e de Gregório Nazianzeno que“Somente o teólogo (contemplativo), verdadeiramente reza e somente quem reza è verdadeiramente teólogo”.

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Não podemos imaginar conhecer a liturgia oriental sem ter em mente a teologia sobre o Espírito Santo de Basílio Magno, sem as definições do I Concilio de Constantinopla (381), sem a vitória sobre o iconoclasmo (843) e sem as composições litúrgicas de Teodoro Studita e de São João Damasceno.

Com a liturgia acontece o mesmo que acontece com o aprendizado da língua. Não se pode inventar uma liturgia, assim como não se pode inventar uma língua. Não se cria a sua língua materna, mas se aprende como parte essencial da hereditariedade cultural que existe precedentemente e independente da nossa vontade, goste ou não dela. Em outras palavras, nós não criamos a nossa liturgia, mas é ela que nos cria. A profundidade e a amplitude dos ritos derivam dessa realidade, isto é, o verdadeiro autor é sempre a Igreja que celebra, e não qualquer indivíduo, mesmo ele sendo o mais santo e dotado ou sábio legislador.

4. DIVINA LITURGIA – ÍCONE DA VIDA CRISTÃ

A liturgia é uma realidade objetiva, a qual não significa o que pensamos, sentimos, imaginamos ou que gostaríamos que ela fosse, mas o seu significado está nos dados da tradição cristã. Por isso, aprendemos sobre ela, observando a sua integralidade, observando-a desde a sua origem.

Já os Padres da Igreja do Oriente (Basílio Magno, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa, Dionísio Areopagita, Gregório Palamas, João Damasceno, Nicolau Cabasilas) advertiam a impotência das palavras para exprimir a plenitude dos Divinos Mistérios, recorrendo seguidamente ao apofatismo, aos símbolos iconográficos e litúrgicos. Toda a afirmação sobre Deus, apenas atingida, passa a ser superada em razão da insondável profundidade da essência divina (essência – energia). A vida litúrgica e sacramental encentrada em Cristo e no mistério pascal como coração do amor trinitário é a fonte viva de todo o caminho ascético.

Por isso a experiência litúrgica e arte icônica tornaram-se traços característicos e os mais expressivos veículos da espiritualidade oriental, a qual possui como nutrimento espiritual não somente o ensinamento doutrinal dos sermões, mas a liturgia no seu pleno significado. É aqui que se dá a razão dos orientais não simpatizarem tanto com a Suma Teológica ou com o sistema escolástico. É uma convicção vinda dos Padres da Igreja de que não é bom especular sobre os mistérios, é melhor contemplá-los, deixar iluminarem e deixar que eles penetrem lentamente com a sua luz, assim, sem a racionalização o mistério torna-se iluminante. É dessa convicção que vem uma espiritualidade muito mais litúrgica e iconográfica do que discursiva, conceitual e doutrinária.

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Em outras palavras, a visão integral da espiritualidade litúrgica oriental não é outra que a pura e autêntica vida mística e sacramental, a vida da pessoa humana com Deus e diante de Deus, assim como foi na vida de Cristo encarnado, o fundamento ontológico, medida e critério da verdadeira vida da Igreja. A ascese cristã não é um fato privado, mas sempre um evento eclesial, uma obra de comunhão, de participação pessoal na unidade da vida da Igreja que na liturgia possui o seu fundamento constitutivo, a sua fonte de graça e de salvação.

A liturgia da Igreja oriental contém um ensinamento dogmático, bíblico, moral muito importante. Ela ajuda os fiéis a viver a fé resumida nos dogmas e ao mesmo tempo ajuda a viver a própria identidade. A fé resumida nos dogmas, a qual se exprime nos decretos dos concílios ecumênicos, nas decisões do magistério eclesiástico, nos decretos papais, vem sendo vivenciada e professada da parte das Igrejas particulares unanimemente. No campo dogmático não pode existir diferença entre as Igrejas. A diferença está na fé professada. É isso que indica o modo dos fiéis viverem a sua fé, o que ela significa nas suas vidas, e em que modo a liturgia expressas a identidade.

Através dos textos litúrgicos da Igreja oriental os fiéis recebem um auxílio eficaz para viver a fé mais conscientemente.

A liturgia oriental se estende e se dissolve nos textos, nas orações, nos hinos dos ofícios. A liturgia da Igreja oferece uma ajuda excelente. Os textos litúrgicos tocam quase todos os temas da dogmática, oferecendo ensinamentos severos nos diversos campos. Por isso que a liturgia desde os tempos antigos tinha o papel tão importante também no campo da catequese.

A cena da criação pintada por Michelangelo na Capela Sistina representa o dedo de Deus, que doa a vida que estende o braço, quase tocando o dedo reclinado de Adão.

A liturgia, segundo os Padres da Igreja (Santos Padres), é tudo o que preenche o espaço entre os dedos de Deus e de Adão. Para eles, a liturgia era a suprema expressão de toda a oikonomia (todas as obras de Deus por meio das quais ele se revela e comunica sua vida. E mediante a “Oikonomia” que nos é revelada a “Theologia”; mas, inversamente, é a “Theologia” que ilumina toda a “Oikonomia”), a relação contínua e salvífica entre Deus e nós, a escada de Jacó da história da salvação. Na metáfora da Capela Sistina, o dedo de Deus é um dedo que cria, que concede a vida, que salva, que redime, um braço que sempre se estende em direção a nós. A história da salvação é uma história das nossas mãos erguidas (ou não) no acolhimento e em ação de graças pelo dom da vida.

A Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Concílio Vaticano II afirma a mesma coisa de uma forma diferente quando diz: “A Liturgia, pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, se opera o fruto da nossa Redenção, contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos

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outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja, que é simultaneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, empenhada na ação e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, peregrina, mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao divino, o visível ao invisível, a ação à contemplação, e o presente à cidade futura que buscamos” (SC 2).

Esta teologia da liturgia cristã provém do princípio fundamental do Novo Testamento que ensina que toda a história da salvação é recapitulada e personificada em Jesus Cristo. Tudo na história sagrada – todo evento, lugar sagrado, teofania, culto – foi assumido na pessoa de Jesus Cristo encarnado. Ele é a eterna palavra de Deus, a sua nova Criação, o novo Adão, a nova Páscoa e o seu cordeiro, a nova aliança, a nova circuncisão e a maná celeste, o templo de Deus, o novo sacrifício, a era messiânica que deve vir. Tudo isso que veio antes se cumpriu Nele.

Esta revelação coloca fundamento para todas as teologias cristãs da liturgia e da espiritualidade. O verdadeiro culto, agradável a Deus não é nada mais que a vida, morte e ressurreição salvífica de Cristo.

Esta liturgia da vida, a nossa verdadeira liturgia cristã, é a comum celebração eclesial da nossa salvação em Cristo. Como tal, é a mais perfeita expressão e realização da espiritualidade da Igreja. A vida espiritual é a vida em Cristo, e esta vida é criada, nutrida e renovada na liturgia. Sendo a nossa identidade fundamental cristã, por isso, ser cristão implica ser outro Cristo. Assim a liturgia passa a ocupar um lugar por excelência na vida espiritual de cada pessoa cristã, porque é na liturgia que o próprio Cristo nos torna outro Cristo conformando-se a si mesmo.

Este é o motivo pelo qual a liturgia foi sempre considerada o centro da vida da Igreja, ela é a linguagem com a qual a Igreja diz o que ela é.

O escopo principal da liturgia é gerar na nossa vida aquilo que a Igreja realiza por nós no seu culto público: experimentar e realizar o mistério na nossa vida, tornar-se outros Cristos através da nossa espiritualização (deificação, divinização). A Vida espiritual não é nada mais do que a relação pessoal com Deus e a liturgia é a comum expressão da relação da Igreja com Deus.

Este é um ensinamento não somente católico. Diz respeito à teologia do mistério dos Padres da Igreja e aos clássicos comentaristas bizantinos da liturgia, que afirmam que a liturgia não é nada mais do que obra salvífica do Unigênito filho de Deus que continua. foi isso que levou um dos grandes Padres latinos, Papa Leão I ou São Leão Magno (pontificado 440-461), a dizer: “Tudo o que era visível na vida do nosso redentor passou para os ritos sacramentais”. Em outras palavras, aquilo que Jesus fez historicamente durante a sua vida terrena, continua fazendo sacramentalmente através dos mistérios litúrgicos que celebra a sua Igreja.

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Através da liturgia que o Espírito de Cristo nos torna mais cristãos, inserindo-nos na vida de Cristo e conformando-nos a essa, nutrindo e reforçando continuamente essa vida em nós. A liturgia é um encontro atual, é salvação que acontece no presente.

Este acontecimento do passado é direcionado ao futuro. Assim como Cristo cumpriu toda a promessa, com a finalidade de assemelharmo-nos a Ele, tornando- se uma só pessoa em Cristo.

Para exprimir esta identificação com Cristo, São Paulo usa muitos verbos que iniciam com a preposição com: sofro com Cristo, sepultados com Cristo, ressuscitado e vivo com Cristo, levado ao céu e sento à direita do Pai com Cristo. Trata-se de um dos modos paulinos de sublinhar a necessidade da participação pessoal na redenção. Devemos revestir-se de Cristo (Gl 3, 27) e assemelhar-se a ele. Afirmar com Paulo: “Com Cristo eu sou crucificados, vivo, mas não sou mais eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 19-20). A liturgia é uma celebração da vida cristã, uma comum celebração daquilo que nos tornamos e estamos e incessantemente nos tornamos em Cristo.

A nossa liturgia é essa realidade; Jesus Cristo em nós. A verdadeira Divina Liturgia acontece quando somos atraídos por Cristo.

A nossa liturgia encontra um terreno privilegiado para acontecer esse encontro entre o Divino e o humano, uma teofania ou revelação da presença salvífica de Deus entre nós no mundo de hoje.

É por isso que nós damos por concluída essa colocação com um fragmento da oração eucarística (anáfora) bizantina de São João Crisóstomo, na qual o santo não se cansa de repetir: “É digno e justo celebrar-vos, bendizer-vos, louvar-vos, dar graças e adorar-vos em todo tempo e lugar, porque Vós sois o Deus inefável, insondável, invisível, acima de toda a compreensão; Vós existis desde sempre e sempre sois o mesmo, Vós, Pai, e o vosso filho Unigênito e o vosso Espírito Santo. Vós nos criastes, do nada nos trouxestes à existência e, depois que caímos, nos reerguestes e não cessastes de fazer tudo para nos conduzir ao céu e nos doar o vosso reino vindouro. Por tudo isso rendemos graças a Vós, Pai e ao vosso filho Unigênito e ao Espírito Santo. Damos graças por todos os benefícios que fizestes em nosso favor, conhecidos ou desconhecidos, manifestos ou ocultos. Também rendemos graças por esta liturgia que vos dignastes de receber das nossas mãos, ainda que diante de Vós estejam multidões de arcanjos e anjos, querubins e serafins, cantando o hino triunfal”.

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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA SAGRADA. Tradução Ecumênica – TEB. São Paulo: Paulinas / Loyola, 1996.

GLINKA, Luis. Introducción a la Liturgia Bizantina Ucraniana. Buenos Aires: Editorial Lúmen, 1997.

fARRUGIA, Edward (ed.). Dizionario Enciclopedico Dell’Oriente Cristiano. Roma: Pontificio Istituto Orientale, 2000.

SACROSANCTUM CONCILIUM OECUMENICUM VATICANUM II. Constitutio de

Sacra Liturgia. AAS 56, dec. 1963.

SACROSANCTUM CONCILIUM OECUMENICUM VATICANUM II, Orientalium

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SILVESTRINI, Achile (ed.). L’identità delle Chiese Orientali Cattoliche: Atti dell’incontro di studio dei Vescovi e dei Superiori Maggiori delle Chiese Orientali Cattoliche d’Europa. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1999.

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