Pensadores modernos - Editora · PDF fileA tradução desta obra contou com o subsídio do Goethe-Institut, apoiado pelo Ministério ... da escola analítica. 1 Também ... uma recapitulação

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  • Thomas Mann

    Pensadores modernosFreud, Nietzsche, Wagner e Schopenhauer

    Traduo e notas:Mrcio Suzuki

  • Traduo autorizada de uma seleo de textos de Thomas Mann(ver crditos completos pgina 279)

    Copyright 983, 2002 S. Fisher Verlag GmbH, Frankfurt am Main

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    Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa

    A traduo desta obra contou com o subsdio do Goethe-Institut, apoiado pelo Ministrio das Relaes Exteriores alemo.

    Preparao: Las Kalka | Reviso: Carolina Sampaio, Nina Lua Capa: Rafael Nobre/Babilonia Cultura Editorial

    cip-Brasil. Catalogao na publicaoSindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

    Mann, Thomas, 875-955M246p Pensadores modernos: Freud, Nietzsche, Wagner e Schopenhauer/

    Thomas Mann; traduo Mrcio Suzuki. .ed. Rio de Janeiro: Zahar, 205.

    (Thomas Mann: Ensaios & Escritos)

    Traduo de: Mein Verhltnis zur Psychoanalyse, Die Stellung Freuds in der modernen Geistesgeschichte, Freud und die Zukunft, Schopenhauer, Leiden und Grsse Richard Wagners, Nietzsches Phi-losophie im Lichte unserer Erfahrung, An Thomas Mann

    Inclui apndiceisbn 978-85-378-430-7

    . Filosofia alem Histria e crtica. 2. Psicanlise. i. Ttulo. ii. Srie.

    cdd: 935-20778 cdu: (43)

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    Minha relao com a psicanlise

    Minha relao com a psicanlise to complexa quanto ela merece. Pode-se com todo o direito ver na psicanlise, esse notvel rebento do esprito cientfico-cultural, algo de grande e admirvel, uma descoberta inovadora, um avano radical do conhecimento, uma ampliao surpreendente, sensacio-nal, do saber a respeito do homem. Pode-se, por outro lado, achar que, se for mal popularizada, ela pode se converter num instrumento malfico de esclarecimento, numa obsesso de desnudamento e difamao, avessa cultura, contra a qual ter cautela no significa necessariamente mero sentimenta-lismo. Sua essncia conhecimento, conhecimento melanc-lico, sobretudo no que se refere arte e atividade artstica, manifestamente o seu objetivo principal. Ora, quando travei contato pela primeira vez com ela, isso j no era algo novo para mim. No essencial, eu j tinha vivenciado algo assim com Nietzsche, em especial na sua crtica a Wagner, e ele se tornara, ironicamente, um elemento de minha constituio espiritual e de minha produo circunstncia qual devo sem dvida que meus escritos tenham recebido desde sempre certa aten-o caracterstica e preferncia crtica por parte de estudiosos da escola analtica.1 Tambm Morte em Veneza foi recebida, por

    Morte em Veneza foi discutida na revista psicanaltica Imago, em 94, por Hans Cachs, e Frederico e a grande coalizo em 96, por Eduard Hitschmann.

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    boas razes, com o mesmo interesse, embora nela se encontre esta passagem arrogante: Parece, porm, que o esprito nobre, valoroso, imuniza-se rpida e definitivamente contra o picante e amargo estimulante que o conhecimento; e certo que a meticulosidade do jovem, por abnegada e severa que seja, no passa de superficialidade, quando comparada com a slida deciso do mestre amadurecido, deciso que o faz negar o conhecimento, rejeitando-o, distanciando-se dele altivamente cada vez que haja perigo de que sua vontade, seu poder de ao, seu sentimento e mesmo a sua paixo possam ser de algum modo tolhidos, desanimados, humilhados por ele.2 Isso foi dito de maneira fortemente antianaltica, mas foi entendido como exemplo caracterstico do recalque, quando, na ver-dade, o que possibilita o atrevimento do neurtico-artista de realizar aquilo que lhe prprio, apesar de toda revelao analtica, no deve ser designado tanto como recalque quanto como (de maneira mais justa, embora menos cientfica) um

    deixemos como est para ver como que fica. No se trata, de modo algum, de simples hostilidade, pois o conhecimento, embora em princpio no produtivo, tambm pode ter muito que ver com a arte, como mostra o fenmeno Nietzsche, e o artista pode manter excelentes relaes com ele. No se trata, tampouco, da iluso de que, fechando os olhos, o mundo possa

    como se diz popularmente contornar os resultados obti-dos pela investigao de Freud e seus seguidores. O mundo no os contorna de maneira alguma, nem a arte o far. J no de hoje que a psicanlise parte essencial da composio

    Morte em Veneza, trad. Herbert Caro, Rio de Janeiro, Opera Mundi, 970, p.66. Traduo ligeiramente modificada.

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    potica de todo o mbito de nossa cultura, e no s modificou o seu aspecto, como continuar possivelmente a influenci-la de maneira crescente. Ela tambm desempenha o seu papel em A montanha mgica, romance de poca escrito por mim que acaba de ser publicado. O seu representante ali, que atende pelo nome de dr. Krokowski, sem dvida um pouco cmico. Mas sua comicidade talvez seja apenas uma compensao por concesses mais profundas que o autor faz psicanlise no interior da sua obra.

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    O lugar de Freud na histria do esprito moderno

    Se me perguntassem qual das contribuies ousadas e inova-doras de Sigmund Freud para o conhecimento do homem me causou mais forte impresso, e qual dos seus escritos literrios me vem primeiro mente quando se menciona o seu nome, eu diria, sem pestanejar, o tratado em quatro partes Totem e tabu, no dcimo volume de suas Obras completas.1 improvvel, alis, que eu esteja sozinho nessa escolha, pois por mais que, diante da fama mundial hoje alcanada pelo conjunto da obra desse grande investigador, parea uma declarao quase como-vente de modstia cientfica que ele acredite ter de diferenciar esses estudos do restante da sua obra, atribuindo-lhes excep-cionalmente uma pretenso de alcanar o interesse de um crculo maior de pessoas cultas, certo no entanto que eles constituem num sentido relativo e exigente o mais popular de seus escritos, e isso porque, por seus objetivos e conheci-mentos, ele vai bem alm da esfera mdica, adentrando as ci-ncias do esprito em geral e abrindo para o leitor que se ocupa com a questo do homem perspectivas enormes e iluminado-ras sobre o passado da alma, profundezas do mundo primi-

    Thomas Mann utiliza a primeira edio das obras reunidas de Freud (Ge-sammelte Schriften), publicadas a partir de 924 pela Internationaler Psycho-analytischer Verlag.

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    tivo na histria arcaica e na pr-histria moral, social e mtico- religiosa da humanidade.

    A extraordinria atrao que a obra provoca pode ser expli-cada de diversas maneiras. Antes de tudo, ela , sem dvida, de todos os trabalhos de Freud aquele que se situa mais alto em termos puramente artsticos, obra de mestre pela construo e pela forma literria, tendo afinidades com todos os grandes exemplos do ensasmo alemo, entre os quais figura. Isso no de admirar e, no entanto, tem algo de misterioso. Pois jus-tamente na alta legibilidade dessa obra, que se eleva da esfera clnica a uma viso ampla e audaciosa da esfera daquilo que interessa ao humano em geral, manifesta-se a lei humana da forma, a solidariedade metafsica existente entre humanidade e forma, que domina e determina o mundo da poesia e da

    bela literatura. o mundo das coisas que no se expressam, a no ser que sejam bem expressas o mundo dos poetas e dos escritores. Essa composio faz, sem dvida, parte dele; ela no uma obra cientfica rotineira, trabalho pesado, mas um pedao da literatura mundial.

    Freud a denomina tentativa de aplicao dos pontos de vista e resultados da psicanlise a problemas no esclarecidos da psi-cologia dos povos. A viso clnica mantida, e deve-se dizer que em grande medida ela se confirma esplendidamente. Desde Nietzsche temos uma noo do valor da doena para o conheci-mento e desenvolvimento da vida em geral; em investigaes da mais ousada perspiccia e de um mpeto profundo, o psiclogo da neurose nos leva a compreender esses nexos, essas relaes entre neurose e humanidade, de um jeito diversificado e preciso, e se, por um lado, seu escrito significa que a teoria da neurose conseguiu iluminar e compreender psicologicamente o que foi

  • O lugar de Freud na histria do esprito moderno 13

    a humanidade primitiva e antiga, os fundamentos ltimos de toda a vida da civilizao, por outro lado ele concebe o tipo do neurtico como um tipo arcaico, no sentido do subttulo do tratado, que diz modestamente: Algumas concordncias entre a vida psquica dos selvagens e a dos neurticos. Mas como, no significado paleontolgico e pr-histrico da palavra, vida

    selvagem significa sem dvida vida primitiva, essa aplicao dos resultados psicanalticos histria da humanidade consiste, portanto, numa transferncia e projeo da famosa psicologia profunda do plano clnico individual para o tempo e para seus imensos intervalos o que proporciona ainda uma interpretao mais ampla da peculiar fora de atrao dessa genial obra rap-sdica. Ela um exemplo espantoso de unio entre expanso e concentrao, j que contm in nuce o sistema terico inteiro da psicanlise, com todos os seus elementos: psicologia dos sonhos, concepo do complexo de dipo, conceito de ambivalncia, te-oria do recalque e da transformao dos impulsos2 e muito ainda restaria por enumerar , representando ao mesmo tempo o empreendimento literrio espiritualmente mais vasto que j foi feito sob o ponto de vista mdico.

    Alm de parecer intil, no haveria espao aqui para fazer uma recapitulao, mesmo que por alto, da sequncia de ideias desse grande ensaio. Mas peo permisso para inserir uma observao e constatao que me ocorreu ao rel-lo, em louvor a Freud e em