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VITÓRIA, SÁBADO, 8 DE SETEMBRO DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar O enigma de Artaud Entrelinhas IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO BUSCA A WOODSTOCK PERDIDA NO PASSADO. Página 3 Política PRODUTOR CRITICA A GESTÃO CULTURAL DE GOVERNOS E MUNICÍPIOS. Página 4 Música A GLÓRIA E A GARRA DO BLUES NA GUITARRA DE STEVIE RAY VAUGHAN. Página 5 Cinema ENSAIO REGISTRA A LIGAÇÃO DE GLAUBER ROCHA COM A REVOLUÇÃO CUBANA. Páginas 10 e 11 OS MITOS E VERDADES SOBRE O ARTISTA QUE REVOLUCIONOU O TEATRO DO SÉCULO XX Págs. 6 e 7 DIVULGAÇÃO

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VITÓRIA, SÁBADO, 8 DE SETEMBRO DE 2012

www.agazeta.com.brPensar

O enigma de Artaud

EntrelinhasIGNÁCIO DELOYOLABRANDÃOBUSCA AWOODSTOCKPERDIDA NOPASSADO.Página 3

PolíticaPRODUTORCRITICA AGESTÃOCULTURALDE GOVERNOS EMUNICÍPIOS.Página 4

MúsicaA GLÓRIA E AGARRA DOBLUES NAGUITARRA DESTEVIE RAYVAUGHAN.Página 5

CinemaENSAIOREGISTRA ALIGAÇÃO DEGLAUBERROCHA COM AREVOLUÇÃOCUBANA.Páginas 10 e 11

OS MITOS E VERDADES SOBRE O ARTISTA QUEREVOLUCIONOU O TEATRO DO SÉCULO XX Págs. 6 e 7

DIVULGAÇÃO

Documento:AGazeta_08_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_1.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:06 de Sep de 2012 20:11:13

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2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,8 DE SETEMBRODE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Karina de Rezende Tavares FleuryédoutorandaemLetras(Ufes)[email protected]

Juca Magalhãesé blogueiro de crônicas, professor de música eprodutor [email protected]

Camilo Ceoliné administrador, professor universitário epesquisador de blues, jazz e [email protected]

Wilson Coêlhoé Auditor Real do Collège de Pataphysiquede [email protected]

Hans Hansené fotógrafo alemão, tem 70 anos e vive emHamburgo.

Caê Guimarãeséjornalista,poetaeescritor.Publicouquatrolivroseescrevenositewww.caeguimaraes.com.br

José Augusto Carvalhoé doutor em Língua Portuguesa pelaUniversidade de São Paulo. [email protected]

Sandra Sarmentoé poeta, compositora e membro da Academiade Letras Humberto de Campos.

Marcos Veroneseé jornalista, diretor de cinema e ví[email protected]

Notícias do Planalto –A Imprensa e o Podernos anos CollorMario Sergio ContiLançado em 1999, o trabalhodocumental de Mario SergioConti consolidou-se comoum marco do jornalismo

político brasileiro ao revelar como aimprensa do país primeiro impulsionouCollor à presidência e depois o depôs. Aedição econômica traz o texto integral.

528 páginas. Companhia das Letras. R$ 39,50

A Fórmula da EternaJuventude e OutrosExperimentos NazistasCarlos de NápoliO historiador argentinorelata cada uma das etapasda fórmula nazista paraalcançar o rejuvenescimento

humano e os terríveis experimentos paraconsegui-lo, exercidos sem piedade sobre oscorpos dos prisioneiros judeus.

240 páginas. Civilização Brasileira. R$ 32,90

Poemas EscolhidosElizabeth BishopA antologia de uma dasmais importantes vozes dapoesia norte-americanaapresenta grande parte dospoemas que a autorapublicou em vida, além de

textos póstumos e aqueles que a poetaescreveu sobre o Brasil, resultado das quaseduas décadas em que morou no país.

416 páginas. Companhia das Letras. R$ 44,50

A Caixa de PandoraFerdie AddisNeste volume, opesquisador relaciona asorigens das expressõesmitológicas que usamosno dia a dia, além deoferecer informações

variadas sobre a Antiguidade.

192 páginas. Casa da Palavra. R$ 34,90

UniversidadeUfes sedia Jornada de PsicanáliseO Grupo de Pesquisa Psicanálise na Universidade realiza asJornadas de Pesquisa e Extensão 2012, na próxima sexta, das17h às 19h30, e sábado, das 8h às 17h30. Os encontros vãoacontecer no auditório do CCE (atrás do IC-1), no campus deGoiabeiras. Mais informações:[email protected]. Entrada franca.

Cultura políticaAntropólogo lança livro em VitóriaO pesquisador holandês Geert Banck apresenta o volume“Dilemas e Símbolos - Estudos sobre a cultura política do EspíritoSanto”, no dia 13 de setembro, às 19h, na Biblioteca PúblicaEstadual. Avenida João Batista Parra, 165, Praia do Suá, Vitória.

11de setembroNeida LúciaMoraes no CaféLiterário SescA escritora vai falarsobre o seu romancehistórico “À Sombra doHolocausto”, baseadona história daInquisição no EspíritoSanto, terça-feira, às19h, no CentroCultural Majestic. Oevento terá mediaçãodo escritorAnaximandro Amorim.Entrada franca.

13de setembroA MPB elegante de Zé Renato e Kátia RochaOs cantores se apresentam na próxima quinta, a partir das 20h,na Estação Porto, dentro do projeto Porto MPB. Entrada franca.

José Roberto Santos Nevesé editor do Caderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] O ARTISTA

Passados mais de 60 anos de sua morte, AntoninArtaud (1896-1948) permanece como um enigma nocampo das artes. Para os leigos, sua obra anárquica éimpossível de ser colocada em prática. Para os acadêmicos,ele é estudado apenas como louco ou como homem de teatroe cinema. Há, ainda, os fanáticos que tentam enquadrá-lo nacategoria de mito, eliminando o seu aspecto humano. Aprópria França, seu país natal, tinha uma espécie de dívidacom este criador compulsivo que rompeu com os surrealistasna década de 1920 e passou os últimos nove anos de sua vida

internado em diversos hospitais psiquiátricos. Essa per-sonalidade complexa é decifrada pela pesquisadora FlorenceMéredieu em “Eis Antonin Artaud”, a mais completa biografiado artista francês. Estudioso de Artaud há mais de trêsdécadas, Wilson Coêlho leu o volume de mais de mil páginase apresenta a sua visão do livro e do biografado nas páginascentrais desta edição. Wilson chama a atenção para a “sériede equívocos e especulações absurdas” sobre um personagemcuja contribuição para a arte e o mundo permanece atual.Vale a pena ler. Bom sábado, bom Pensar.

Pensar na webImagens de Antonin Artaud no cinema,vídeos de Stevie Ray Vaughan, trailers defilmes de Glauber Rocha e trechos delivros comentados nesta edição,no www.agazeta.com.br.

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

Marco Valério Magalhãesé autor do blog e do programa de rádio “UmBando de Bandas”. [email protected]

Coletivo Peixariareúne amigos que desenham porque [email protected]

Documento:AGazeta_08_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_2.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:06 de Sep de 2012 20:11:16

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3PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

8 DE SETEMBRODE 2012

entrelinhaspor KARINA DE REZENDE TAVARES FLEURY

UMA VIAGEM EMBUSCA DE SI MESMO

ANDRÉ CONTI/AG. ESTADO

Ler é viajar sem sair do lugar. Éum clichê! Eu sei! Mas nãoencontrei maneira melhor pa-ra expressar as horas que pas-sei em companhia de Marildae Zezé Brandão, Márcia e Ig-

nácio de Loyola Brandão, sendo este onarrador de “Acordei em Woodstock: via-gem, memórias, perplexidades” (2011).

Estar em Woodstock, local onde ocor-reu o mais importante festival de músicade todos os tempos, foi o elemento mo-tivador que levou o quarteto a empre-ender, entre 23 de setembro a 7 deoutubro de 2000, um passeio de carropela Nova Inglaterra (EUA).

As anotações feitas pelo autor em seucaderno de viagem, que a partir dadécima terceira página do livro passa aser datado como se fosse um diário (nocanto direito, no alto da folha, a data -sábado, 23 de setembro de 2000 - abrea sequência dos dias registrados), nosdão a falsa ideia de que os fatos serãoapresentados numa sequência lógica,obedecendo ao ritmo dos acontecimen-tos vividos durante a viagem.

No entanto, não é isso o que se vê.Loyola quebra essa expectativa de umenredo óbvio, linear, e propõe ao leitormomentos de múltiplas viagens. Maispreocupado com o que diz do que pro-priamente com a forma como diz, aproposta desse relato é ser “despreten-sioso”, como afirma o escritor. O texto écomposto de “idas e vindas, de pen-samentos esparsos, anotações soltas, pe-quenos incidentes, lembranças, pessoasque retornam, o cotidiano transfigurado”(p. 10). Há também as colagens decartões-postais comprados durante a via-gem, cartões de visita, fotografias, com-provante de pagamento emitido pelabutique Giorgio Armani, capas de livros,folhas do jardim das pousadas em que sehospedaram, recorte de notícia de jornale uma folha de seu caderno de viagens(ao estilo dos produzidos pelo fotógrafoamericano que retratou a África, PeterBeard), onde se pode ler textos escritos àmão. Tudo serve como recurso paradiversificar as técnicas de composiçãodessa narrativa que fala de viagens,memórias e perplexidades.

AtmosferaÉ para aliviar o sentimento de in-

suficiência que temos perante uma obra,um museu ou a história da vida de umautorquenoscapturacomsuaescrita,que,muitas vezes, nos deparamos com o desejode querer mergulhar no universo do artistae de constatar os detalhes que compu-seram a atmosfera de sua vida e obra.

Orhan Pamuk, em “O romancista ingênuoe sentimental” (2011), também nos falasobre essa questão (esse livro foi re-senhado por mim e publicado no CadernoPensar, em 16/06/2012, p. 3).

Quantas vezes, ao concluirmos umaviagem de turismo, não nos invade aquelasensação de que deveríamos ter ido nesteou naquele lugar, de que poderíamos terdesacelerado um pouco o ritmo de tu-ristas e ter interagido mais com a na-tureza, com a cultura e com os moradoresdo lugar? Resta-nos amargar aquele “gos-to de quero mais”; ou organizar uma novaempreitada a fim de recuperar os tesourosque ficaram para trás; ou, ainda, como nocaso de Loyola, que é um fã confesso debiografias (“Gosto de biografias e de livrosde correspondência, assim como gosto dever fotos de autores”, p. 149), embarcarna viagem contada por terceiros, comonós nas mãos de Loyola.

Em “Acordei em Woodstock”, Loyola nosrevela outras de suas paixões além daliteratura: a música e, sobretudo, o cinema.Ao longo das 288 páginas de narrativa, eledemonstra, com muita naturalidade, o ho-mem erudito que é, e dá, aos amantes docinema, uma lista de “alguns dos melhoresfilmes de todos os tempos”, “filmes me-moráveis”, realizados por Billy Wilder, co-mo “Pacto de sangue”, “Farrapo humano”,

ACORDEI EM WOODSTOCK -VIAGEM, MEMÓRIAS,PERPLEXIDADESIgnácio de Loyola Brandão.Global. 288 páginas.Quanto: R$ 30,40

TRECHO“Quando embarco, sei que fareialgumas viagens simultâneas.A real, em que desfruto o queobservo, me toca, meimpressiona. A outra vem coma memória acionada porfotografias, palavras, situações,imagens, cheiros, músicas (ou osimples abrir de uma porta) medevolvendo fragmentos da vida.E a terceira em que misturofantasia e imaginação. Eu,o que fui, o que sou, o quedesejava, o que fomos,o que somos”(Página 10)

“O pecado mora ao lado”, “Crepúsculo dosdeuses”, entre outros (p. 135).

Em várias partes do texto, como as quecitamos acima, a sequência narrativa dodiário se abre para dar espaço aos fluxos dememória do autor: “O tempo desapareceem White River Junction. Demorou paratudo ficar claro. O processo fascina. Ma-ravilhas da mente. Aquela cidadezinha foium ponto de passagem, referencial naliteratura e no cinema” (p. 130).

Nesta obra, ele nos leva a transitarentre o real e o ficcional, intercalandofragmentos, anotações do dia a dia,memórias afetivas, brincadeiras, recor-dações particulares, lugares que se li-gam a leituras ou filmes. A chegada àcidade de Nova York faz com que anarrativa se despedace, deixando deser cronológica para transformar-se em“videoclipe, com instantes lembradosfragmentariamente, de acordo com aprópria maneira de ser da cidade” (p.221). “A narrativa sobre a viagem mudade tom em Nova York” (p. 222) e com amudança vêm as indagações de ser e deestar no mundo.

Ao buscar a Woodstock perdida nopassado, o autor partiu para uma via-gem em busca de si mesmo, de re-descobertas e de reencontros sur-preendentes, como a vida é.

Ignácio de Loyola Brandão leva o leitor a transitar entre o real e o ficcional através de um passeio de carro pelos EUA

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4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,8 DE SETEMBRODE 2012

Para professor de música, governo e prefeituras não possuem modelo de gestão definidopara a área, e grande parte do orçamento das pastas é destinada a shows e festas pontuais

políticas públicaspor JUCA MAGALHÃES

A DIFERENÇA ENTRE AÇÃOCULTURAL E EVENTO

DIVULGAÇÃO

Faz um tempão fomos con-vidados a representar o rock(imaginem) numa reuniãocom responsáveis pela gestãoestadual da cultura. A ideiaera captar uma visão da rea-

lidade dos “artistas da terra” (bananas,como diria Alexandre Lima) e ajudar adefinir metas e diretrizes com relação àsações e fazeres públicos. Daquela reu-nião, lembro muito de um senhor quefazia parte de um regional tradicional(acho que era o mestre Aquiles) e que, lápelas tantas, se encheu do blablablá eperguntou assim: “Vocês estão espe-rando eu morrer para me homenagear?Façam alguma coisa agora!”

Uns vinte e tantos anos se passaram e,curiosamente, muito pouca coisa mudoucom relação a essas reuniões. Compus egravei algumas músicas; pesquisei, escrevie publiquei dois livros; estudei, toquei,ensinei e palestrei. Por duas ocasiões tra-balhei para secretarias de cultura, conheciboas iniciativas e outras bastante opor-tunistas e equivocadas. Vi muitos artistas“perderem a razão” perante as mumunhasda coisa pública, uns com bons motivos,outros por desconhecimento assumido.Estes nem deviam reclamar (mas como ofaziam), afinal: como nem estar aí parauma coisa e querer ou imaginar que eladeveria estar aí para você?

Artista é, por definição, alguém queproduz arte e “que faz dela profissão”.Porém, quando acontecem essas reuniõespolíticas com a “classe de artistas” apareceum número grande de pessoas que tra-balha eventualmente com arte, mas nãocria bens culturais de consumo. São osconhecidos “promotores de eventos”, mui-tas vezes mais respeitados que os própriosartistas, pelo menos aqui no Espírito San-to. Nessa hora de pensar políticas públicasde base o certo seria separar algumasinstâncias entre criar e produzir, mas issonão acontece e dificulta o foco. São tantasvertentes e iniciativas importantes emnossa cultura que estabelecer prioridadesé sempre um desafio.

Os próprios profissionais lotados emsecretarias de cultura até o momento nãoparecem ter atentado para a necessidadede estabelecer um limite entre “evento” e“ação cultural” e veem com naturalidadegrande parte da verba ser desperdiçadanas festas da cidade. Isso acontece porquenão existe uma política clara e definida

para a cultura – basta comparar com aeducação. As pessoas das secretariasacham que estão “mandando bem” quan-do “criam” projetos “itinerantes” comoficinas e apresentações que migram pe-las comunidades. Já imaginou como fun-

O processo de ação cultural resume-sena criação ou organização necessáriaspara que as pessoas inventem seuspróprios fins e se tornem, assim, sujeitosda cultura e não seus objetos”—Francis Jeansonjornalista e filósofo

cionariam, ou qual efeito educacionalteriam, em longo prazo, aulas “itine-rantes” de matemática e português?

Em Brasília, existe hoje a “Frente Par-lamentar em Defesa da Cultura”, queconcebeu uma carta compromisso a ser

assassinada por candidatos a prefeito. Oconteúdo da missiva é bacana, mas étambém tão abrangente que acaba soan-do confuso, porque não tenho certeza queseja possível abraçar os “múltiplos as-pectos” da dita “diversidade cultural” bra-sileira e ainda fazer relações com meioambiente (!). A maioria dos prefeitos nãopercebe muito bem o que é cultura,menos ainda consegue quantificar suaimportância, quando a compara com pas-tas menos subjetivas como saúde e se-gurança. Não seria a hora de pensarsimples e propor soluções pragmáticas?

ConceitosMinha primeira contribuição para o

Caderno Pensar de A GAZETA foi umtexto intitulado “Cultura para quem?”Nele já defendia alguns conceitos quevinham da experiência como professordo curso de Biblioteconomia e hoje, cadavez mais, de música popular e erudita.

Participei na orientação da tese deconclusão de curso de dois alunos (Lausi eValmir) que mencionavam a obra “L'ac-tion Culturelle dans la cite” (1973), dojornalista e filósofo Francis Jeanson(1922-2009), para quem a única açãocultural válida é a de formação, aquelaque fornece instrumentos de trabalhopara o surgimento de novos criadores.

É claro que os grandes eventos deuma cidade são importantes, porémsão pontuais, portanto, sua relevânciaenquanto ação cultural é nula, quandomuito têm impacto no comércio e noturismo da cidade e talvez devessem servistos assim: pelo valor turístico oucívico, que seja; cultural, jamais.

Ainda quero ver um candidato a pre-feito defender a dissociação entre açãocultural e evento, e a criação de núcleosde ensino formal de arte, a exemplo deoutras cidades do país, ou mesmo aVenezuela, que é referência em ensino demúsica para o mundo. Existe hoje umademanda enorme por esse tipo de ini-ciativa longe de ser atendida. Enquantoos municípios fervem uma ou duas vezespor ano com apresentações públicas deastros nacionais, seus próprios artistas(como o caso do mestre Aquiles) sãoignorados e seu talento desperdiçado porfalta de uma política formadora queproporcione o acesso e o domínio dasferramentas de criação cultural.

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5PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

8 DE SETEMBRODE 2012

falando de músicapor CAMILO CEOLIN

A GUITARRA CHORAO FUTURO NÃO VIVIDO

Ocenário para o blues noinício dos anos 1980 eratrágico. Só como exemplo,Buddy Guy, um dos maio-res guitarristas e bluesmanda história, estava implo-

rando por um contrato com alguma gra-vadora. Até o “Rei do Blues” estava numasituação ruim: já não era tão fácil para B.B.King conseguir um contrato.

Mas eis que na cidade norte-americanade Austin, no Texas, surge um brancomagricela tocando e cantando blues co-mo um negro. Stevie Ray Vaughan apa-receu do nada no início dos anos 1980para proporcionar a última grande ino-vação no mundo do blues. Sua curta eprofícua carreira pôde ser apreciada pelogrande público desde o lançamento deseu magnífico álbum de estreia, “TexasFlood”, em 1983, até a sua morte numtrágico acidente de helicóptero, há 22anos, em 27 de agosto de 1990.

“Texas Flood” obteve repercussão es-tupenda no meio da música em geral, nãosó entre os blueseiros. Que som eraaquele! Que guitarra feroz e intensa!Stevie tocava com a urgência de quemdependia daquela chance para fazer su-cesso. E tocou como nunca. Como se dizna gíria dos guitarristas, Stevie “desceu obraço” na sua Fender Stratocaster, ba-tizada por ele de “Number One” (NúmeroUm), e tirou dela riffs, licks, tur-narounds e bends furiosos, flame-jantes e intensos. Seu som fluía e eleparecia não se perder nunca. As cordasgrossas da guitarra, quase sempre afi-nada meio tom abaixo, com a sua pa-lhetada firme, precisa e suingada, pro-duziam um som que destilava a fúria deHendrix, a finesse de B.B. King, a cruezade Robert Johnson e a classe de AlbertKing. O blues estava vivo de novo.

O sucesso dos dois próximos álbuns,“Couldn’t Stand the Weather” (1984) e“Soul to Soul” (1985), pôs Stevie no topodo mundo da música. De quebra, o bluesvoltou a ficar em evidência. O visualextravagante, os indefectíveis chapéus, avoz anasalada e potente e, é claro, umaguitarra com muita personalidade, fi-zeram de Stevie Ray Vaughan um novoícone do blues. Seu séquito de fãs nãoparava de crescer. Guitarristas de todas asvertentes, do blues ao hard rock, re-verenciavam o seu som. Todos os guitarheroes da época desejavam “dar umacanja” com ele: Eric Clapton, Jeff Beck,B.B. King, Buddy Guy, Albert King, RobertCray, Albert Collins e outros.

Tanto sucesso teve um efeito colateral:o abuso de álcool e drogas pesadas. Certafeita, Stevie quase foi a óbito por causa de

DIVULGAÇÃOuma hemorragia no estômago que o fezvomitar muito sangue. Internado numaclínica de desintoxicação, saiu de cena poralguns meses, mas recuperou a vida.Sóbrio, anunciou que estava indo proestúdio gravar canções inéditas para umnovo álbum.

Muita gente atribuía ao álcool e àsdrogas a explicação para o talento deStevie, como se essas substâncias quí-micas fossem os propulsores do fantásticosom que ele emulava. Ledo engano. “InStep” saiu em 1989 e trouxe um Steviesóbrio em canções que falavam da sualuta contra seus vícios, como em “Cross-fire” (que tem um dos solos mais geniaisde sua carreira) ou na espetacular “Tigh-trope”. Stevie provara ao mundo que nãoera um fenômeno por causa das drogas,mas apesar delas. Um show de divul-gação de “In Step” foi transformado noDVD “Live in Austin”. O solo que Stevietoca em “Thightrope” neste DVD é tãoarrebatador que deveria ser obrigato-riamente assistido por qualquer inicianteem guitarra elétrica (pra falar a verdade,até para certos veteranos preguiçosos).

HelicópteroEm 22 de agosto de 1990, Stevie fez

mais uma apresentação em sua turnêamericana. Terminado o show e compressa de chegar em Chicago, seu próximodestino, ele resolveu ir de helicóptero,desobedecendo aos avisos de perigo porcausa do mau tempo. Minutos depois dadecolagem, o helicóptero bateu numarampa de uma estação de esqui e o matou.Tinha 35 anos. A morte de Stevie RayVaughan foi amargamente lamentada.Anos depois, alguns de seus fãs torna-ram-se músicos profissionais e cuidaramde manter acesa a chama do blues. Gentecomo Jonny Lang, Kenny Wayne She-pherd, Joe Bonamassa, Gary Clark Jr eJohn Mayer são fãs declarados de Stevie.

O tamanho da perda de Stevie RayVaughan é incalculável. A sua obra, cons-truídanumabrevecarreira, éavassaladorae inspira muitos até hoje. É triste ver ummúsico tão brilhante e tão importante teruma vida ceifada muito cedo e de maneiratrágica. Fico aqui pensando no que Stevieestaria fazendo hoje com tanto talento etanta vontade de tocar e compor.

Aonde ele chegaria com tanta garra,paixão e determinação? Se passados 22anos de sua morte ele continua sendolembrado e reverenciado como o homemque salvou o blues do fundo do poço, sóposso concluir que pensar em Stevie RayVaughan hoje é pensar no desper-dício de um futuro não vivido.

Stevie Ray Vaughan: para muitos, a última grande inovação no mundo do blues

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7PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

8 DE SETEMBRODE 2012

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,8 DE SETEMBRODE 2012

PESQUISADOR ANALISA A BIOGRAFIA MAIS COMPLETA DOARTISTA QUE VIVEU ENTRE A GENIALIDADE E A LOUCURA

vanguardapor WILSON COÊLHO

PARA ACABARCOM O MITODE ARTAUD

Com a edição de “Eis Antonin Artaud”, de Florence Méredieu, a França resgata uma espécie de dívida com o escritor, poeta, dramaturgo, roteirista, ator, desenhista e criador do “Teatro da Crueldade”

DIVULGAÇÃO

Nos nove anos em que viveu em manicômios, Antonin Artaud concluiu uma obra polêmica que revolucionou a arte dramáticaConforme narrativa de Flo-rence Mèredieu, em seu“Eis Antonin Artaud”, “aos4 de setembro de 1896, às 8horas da manhã, ao final deuma gravidez normal, An-

toine Marie Joseph Artaud sai do ventrematerno, na rua do Jardin-des-Plantes,15, em Marselha. Antoine, Marie, Jo-seph: a criança leva os dois nomes muitocristãos da Virgem Maria e de José, ocarpinteiro. É concebido, então, comosendo ‘da Sagrada Família’. Fato que eleespecificará mais tarde...”.

Do muito que se tem escrito ao redordo nome de Artaud em várias partes domundo, há uma série de equívocos eespeculações absurdas. Insistem numprocesso de mitificação que acaba porassassinar o homem Artaud, colocando-onum plano onde deve ser adorado semespaços para diálogo ou reflexão. Sãoimpressionantes as leituras que se temfeito, desde os mais ignorantes até osacadêmicos, passando, obviamente, pe-los fanáticos.

Aos olhos dos ignorantes, talvez os maissinceros, Artaud se apresenta mesmo co-mo um enigma e toda sua obra lhes pareceinviável, ou seja, impossível de ser co-locada em prática. No caso dos aca-

dêmicos, fazendo jus a um tipo de men-talidade departamental das cátedras, Ar-taud passa por um processo de esquar-tejamento. Por um lado, estudado apenascomo um louco; por outro, meramentecomo um homem de teatro ou cinema e,ainda, há os que – mesmo com dificuldade– pretendem enquadrá-lo numa categorialiterária. Os fanáticos se subdividem emdois tipos. O primeiro está entre aquelesque na incapacidade de compreender algodomundo fazemdeArtaudumaseitaparase asfixiarem do absoluto. O segundo sãoaqueles que na incompetência em or-ganizar e desenvolver técnicas no campoda arte, em especial, no teatro, se dizemartaudianos para se autorizarem a fazerqualquer coisa e se sentirem inseridos norótulo de vanguarda. Estes ainda se des-dobram nos happenings dos perfor-máticos demais, pós-modernos que nãochegaram nem no moderno, contempo-râneos não sei de quem e outros nomesque se vomitam por aí. O espaço aqui épequeno para este debate, mas, resu-mindo a ópera, e sem querer me arvorarem especialista do tema (apesar de es-tudá-lo desde 1981), posso afirmar queAntonin Artaud é ritual, ou seja, nele nãohá espaços para a improvisação.

Na verdade, o que poucos conseguem

entender é que compreender AntoninArtaud não passa pela via do mito etampouco pelos atalhos do modo con-ceitual de explicar o mundo. Melhormesmo é recorrer às suas obras, tendoem vista que sua história tem sido muitomal contada e, como sempre, de acordocom os interesses de quem conta.

Com a edição de “Eis Antonin Artaud”(C’était Antonin Artaud), de FlorenceMéredieu, a França resgata uma espéciede dívida com o escritor, poeta, mis-sivista, dramaturgo, roteirista, encena-dor, ator de teatro e cinema, figurinista,cenógrafo, desenhista, pensador e cria-dor do “Teatro da Crueldade”.

DivisãoO livro é dividido em nove partes, a

saber: I – As Infâncias (1896–1920); II –Os Primeiros Anos Parisienses; III – 1924–1926: Um Rebelde Lançado ao Assalto àRepública das Letras; IV – 1927–1930: OsAnos Jarry; V – 1930–1935: Teatros. Fil-mes. Literaturas; VI – As Viagens e os Anosde Deriva (1936–1937); VII – Os Pri-meiros Anos de Asilo (setembro de 1937 –fevereiro de 1943); VIII – O Período deRodez (fevereiro de 1943 – maio de1946); e IX – O Retorno a Paris. Apesar daobra garantir uma espécie de fidelidadecronológica, o grande mérito de FlorenceMèredieu foi conseguir escapar do merorelato biográfico e tampouco cair na ar-madilha do “historicismo”, tendo em vistaque consegue contextualizar o processosocioartístico em que Artaud tran-sitou, desde seu nascimento, no final

FilmografiaAtor:“Fait-divers”, de Claude Autant-Lara (1922)“Matusalém”, de Yvan Goll (1924)“Surcouf”, de Luitz Morat (1924)“Graziela”, de Marcel Vandal (1925)“O Judeu Errante”, de Luitz Morat (1926)

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Na cisternaestreita que ossenhores chamampensamento, osraios espirituaisapodrecemcomo palha”—ANTONIN ARTAUDem Carta aos Reitores dasUniversidades da Europa

EIS ANTONIN ARTAUDFlorence de Mèredieu.Editora Perspectiva.Tradução: Isa Kopelmane equipe Perspectiva.1048 páginas. 2011.Quanto: R$ 180

do século XIX, até a primeira metadedo século XX. “Para além da cruel-

dade”, como um capítulo inserido em “Oteatro e seu duplo”, a autora enfatiza a“crueldade” que está impregnada no iti-nerário de toda a sua existência.

Na França dos anos 30 e 40 do séculoXX, a recompensa que Antonin Artaud tevepelo seu desinibido modo de viver e pelarejeição dos valores convencionais, fora ointernamento em hospitais para doentesmentais durante nove solitários anos. Aimportância de Artaud não está simples-mente por ele ter sido um inspirador doteatro ou um pesquisador de estilos al-ternativos de vida. Artaud foi, sobretudo, ocriador de uma imagem viva, um homemque encarnou o sonho em sua própria vida,as contradições e discórdias entre muitasmanifestações e movimentos que contri-buíram para mudar o mundo, tanto noespaço da estética e da política quanto napossibilidadedecolocararazãonaberlinda

e - em virtude de seu declarado amor aoteatro – reivindicar a sua destruição. Masdestruir o quê? Destruir este teatro refémdomodelocivilizatório, cuja sistematizaçãose dá a partir dos cânones de Aristóteles emsua “Poética”, onde imperam as unidadesde ação, tempo e espaço.

Artaud chegou em Paris nos anos 20 e,a partir daí, participou do Grupo Sur-realista, capitaneado pelo temperamentalAndré Breton. Logo depois, foi expulso e,inclusive, o “segundo manifesto” do mo-vimento fora escrito praticamente paracriticar Artaud. Tendo como sonho a re-novação da arte dramática e, devido àimpossibilidade encontrada entre os sur-realistas, em 1927, com Robert Aron(1898-1975) e Roger Vitrac (1899-1952),fundou o Teatro Alfred Jarry, onde passa adesenvolver suas ideias sobre as artescênicas em “O Teatro e seu Duplo”. Devidoao novo fracasso e a sua postura deresistência, volta-se para a teoria e publica

o “Manifesto do Teatro da Crueldade”. Suaobra escrita é extensa e somente pelaeditora Gallimard, suas “Oeuvres Com-plètes” (Obras Completas) se compõem de30 volumes. Além do já citado, suaspublicações mais conhecidas são “O Pe-sa-Nervos”, “O Umbigo dos Limbos”, “AArte e a Morte”, “Heliogabalo”.

Tem uma passagem muito importanteno cinema, como ator, diretor e roteirista,embora as películas de maior destaquetenham sido “Napoleão”, de Abel Gance,em que fez o papel de Jean-Paul Marat, e“A Paixão de Joana D’Arc”, de Carl Thèo-dore Dreyer, no papel de um mongelouco e apaixonado por Joana D’Arc.

Em 1936, viaja ao México e chegatrazendo o texto “No País dos Tarahu-maras”. Logo em seguida vai para aIrlanda. Na volta, é preso e – entre 1937e 1946 – fica internado em diversoshospitais psiquiátricos. Mesmo assimcontinua criando e escreve “Van Gogh, o

Suicidado pela Sociedade”, “Para acabarcom o julgamento de deus”, “Artaud, oMomo” e “Aqui Jaz”. Gravou, juntamentecom Roger Blin, Maria Casarès e PauleThèvenin, o texto radiofônico “Para aca-bar com o julgamento de Deus”, na RádioDifusão Francesa, embora tenha sidoproibida pelas autoridades. EmIvry-sur-Seine, uma espécie de casa derepouso, foi encontrado morto na manhãde 4 de março de 1948.

Enfim, a contribuição de Antonin Ar-taudnãosedápelamerasistematizaçãodeum novo teatro pronto e acabado pararesponderàs inquietudesdaquelesquenãomais se contentam com o caduco teatrotradicional, mas pela provocação aos quenecessitam assumir a si mesmos como uminstrumento de ação sobre o mundo paramudá-lo, recriando o homem e cu-rando-o, sim, pela destruição.

“Napoleão”, de Abel Gance (1927, foto acima)“A Paixão de Joana D’Arc”, de Carl Dreyer (1928)“O dinheiro”, de Marcel L’Herbier (1928)“Verdun, Visões de História”, de Léon Porier (1928)– versão muda“Tarakanova”, de Raymond Bernard (1929)“Verdun, Visões de História”, de Léon Porier (1931)– versão sonora“A Ópera dos Três Vinténs”, de Georg Pabst (1931)“A Mulher de uma Noite”, de Marcel L’Herbier (1931)“Faubourg Montmartre”, de Raymond Bernard (1931)“As Cruzes de Madeira”, de Raymond Bernard (1932)“Tiros na Madrugada”, de Serge de Poligny (1932)“A Filha de Minha Irmã”, de Henri Wullschleger(1932)“Mater Dolorosa”, de Abel Gance (1933)“Liliom”, de Fritz Lang (1934)“Sidonie Panache”, de Henri Wullschleger (1934)“Lucrécia Bórgia”, de Abel Gance (1935)“Koenigsmark”, de Maurice Tourneur (1935)

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Documento:AGazeta_08_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_6.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:06 de Sep de 2012 20:00:21

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8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,8 DE SETEMBRODE 2012

artesanatopor HANS HANSEN

A MAGIA DA SIMPLICIDADEFotógrafo alemão revela o encantamento que o levou a produzir um livro sobre as colheresde bambu de Alvaro Abreu, traduzindo em imagens a dedicação do artesão por suas criações

HANS HANSEN

De cima para baixo: diversas formas em um mesmo tamanho; colheres finas ecompridas, que fazem pensar; e peças que mostram os vários usos do nó do bambu

Oque me fascinou nas co-lheres de bambu produ-zidas por Alvaro Abreufoi a magia que vem dasimplicidade. Um tema,um material, essa diver-

sidade sem fim e a criatividade doartesão. Não havia nenhuma questãosobre arte, design, filosofia ou arte-sanato. Era tudo de uma só vez e aindamuito mais que isso. Mas também nãoera uma questão de sucesso, dinheiro,fama, técnica ou velocidade.

Ver Alvaro Abreu trabalhando cer-cado por suas colheres me tocou pro-fundamente. Sua tranquilidade, suaconcentração, o domínio da atividade,o silêncio. Disso surgiu o desejo defazer um livro. Então se passaram dezanos, e o livro agora existe, e espero queele permaneça atemporal, pois foi feitotão simples quanto possível.

Foi o primeiro livro que desejei fazer.E eu não quis ter qualquer compro-misso. Então decidi retratar as colheresem tamanho original, organizadas se-gundo meus critérios, sem usar ne-nhuma cor, a não ser o preto e o branco,com papel reciclado para os leporellos euma luva rígida. O hotstamping emlaranja é o único enfeite e uma re-ferência ao Brasil. A embalagem não

poderia usar plástico e deveria ser feitaà mão, assim como as colheres.

Convidar seis pessoas de áreas tãodistintas – filosofia, design, jornalismo,poesia, curadoria de design – para falarsobre as colheres foi a maneira queencontrei para mostrar a variedade deexperiências e pontos de vista sobre ummesmo assunto: um único objeto (co-lher), feito de um único material (bam-bu). Somente dois deles conheciamAlvaro pessoalmente.

Eu quis fazer o livro para que pessoasque nunca tiveram (e talvez nunca terão)a oportunidade de ver de perto as co-

lheres, pudessem vê-las em toda a suasimplicidade e suas variações. Optei porusar as fotos em tamanho real, para queas pessoas pudessem ver os detalhes e,também, as diferenças entre colheres pa-recidas, como na foto em que agrupeipeças que mostram os nós do bambu.

Na contramão da pressa e da mul-tiplicidade de coisas que se faz hoje emdia, acho impressionante que uma pes-soa se dedique com tanto afinco epaciência à confecção de um único tipode objeto, feito de um único material –e, ainda, contrariando tecnologias erecursos disponíveis, utilizando-se ape-nas de ferramentas tão simples. E que ofaça somente por querer fazer.

Isso também impressionou MarcusJauer, um dos autores do livro. Ele, quemora na Alemanha Oriental – onde seespera que todo cidadão se enquadreno “sistema” –, ficou profundamenteemocionado ao ver que uma pessoapode fazer algo movido apenas pelodesejo de fazê-lo, livre de obrigações.

Espero que o livro leve um poucodo meu fascínio.

ALVARO ABREU BAMBOOHans Hansen. Com 20 fotosP&B de 108cm x 29cm e 6textos (em alemão, inglês eportuguês). Quanto: R$ 180. Àvenda na OÁ Galeria (RuaAprígio de Freitas, 50,Consolação, Vitória - (27)3227-5443) e no sitewww.mandacarudesign.com.br.

A colher maior, que definiu a dimensão do livro

Documento:AGazeta_08_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_8.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:06 de Sep de 2012 19:58:53

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9PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

8 DE SETEMBRODE 2012

poesias

TARDEMORTASANDRA MARIASARMENTOTarde morta... Fechando portas.Dando adeus ao fim do dia,Difundindo a nostalgia,Que meu coração destroça.

Tarde morta... Quem se importa?Nesta doce calmaria,Esvai-se a luz da alegria,Desmaia o céu que me conforta.

Tarde morta... Que em mim aporta.Derrama na paz que me invade,Tantos rios de saudades,Desse amor que me sufoca.

MELANCOLIAParece que vai chover...Parece que vou sofrer...O dia perdeu as cores.A vida esmaeceu.

O céu se fez sombrio.A rola voou pro ninho.O sapo com seus temores,Num canto emudeceu.

O tempo se arrasta lento...Lá fora, fustiga o vento.Tristonhas pendem as flores...O bicho se recolheu.

Parece que vai chover...Parece que vou sofrer...O peito lateja as dores,De amores que já viveu.

QUIMERASeu amor, triste quimera,caprichos do coração.Foi a mais crua miséria,que me domou a razão.

Descuidada, dei-lhe vida,deixei meu sonho ecoar...Pra depois, arrependida,ver que estava a delirar.

Ao redor, só restam cinzas...A empanar o meu olhar.Foi-se o meu desejo louco!Diluindo, pouco a pouco,o encanto a desmanchar...

IN MEMORIANRumor dos teus passosecoam no silêncio...saudades.

crônicas

A LÂMINA E OS DADOSSOBRE A MESA(com o pensamento em João Cabral de Melo Neto eStéphane Mallarmé)por CAÊ GUIMARÃESA poesia é uma mirada crítica sobre acondição humana. Ela usa a palavracomo música. Como pintura. Como es-cultura, como teatro e como cinema. Epode tomá-las, tanto uma por vez, comocom quantas combinações simultanea-mente lhe caibam. É que ela preexiste atodas essas manifestações, e sendo amãe das artes, surgiu no segundo se-guinte à criação do universo e o adi-vinhou todo. E assim tornou-se seuanverso e reverso. Em verso.

Poesia é raspar a língua lânguida napele trêmula, é a fala trôpega de idiomassonâmbulos, é o escuro e a várzea ondenos encontramos, tantos e tontos, trô-pegos e assombrados ante todos os sinaisdo mundo. Poesia é o estrondo da bolhaque explode quando somos sábios ou

tolos. É o pó que sobra do farelo do ouro,o caldo mais ardente do destilado maisferoz. Com ela podemos desenhar guelrasimaginárias em nossas artérias para mer-gulhar em fossas abissais dispensando aapneia. Ela também é a lâmina afiada quedesenha essa várzea necessária à pas-sagem de oxigênio no meio aquoso. Poe-sia. Ascensão e dolo. Essa faca só lâminanos mostra o vermelho que nos corre pordentro, porque é a cor que carregamos dolado de lá da pele, onde nada é lento,muito menos o sangue que circula – vai evemevai–eosnervosque respondemaossinais cerebrais.

Sob o sigilo da insinuação em temposbanais, como o que vivemos, a poesia éantídoto para celebridades instantâneas,comidas instantâneas, arte instantânea,

relações instantâneas. Hoje é possívelcomprar qualquer coisa – afeto, entre-tenimento, valores, informação –, abrir aembalagem, adicionar água quente e mis-turar a gororoba por um minuto e meio.Pronto para olhar sem depurar. O poeta éo cara que busca obsessivamente atéencontrar a parte mais infinitesimal dagrande explosão do corpo como extensãoindissociável do espírito. E a relação des-tes com a matéria e o campo fértil eincinerado das ideias. Em geral o poeta étorto. E no corpo herético e erótico daspalavras, emborca todas as garrafas es-vaziadas e faz delas um xilofone afiadoonde percute uma canção desafinada.

Quando a poesia vem, arcanos fervemno tutano. Medusas dançam sem mesurana medula. É a força de cada lâmina coma maciez própria do seu brilho. E o brioque corta com eficiência o que cabe emseu corte. Um lance de dados que jamaisabolirá o acaso. Ou a sorte. Poesia é faca.Poesia é carne. Poesia é corte.

Ela não escreve sobre você. Escreveatravés de você. Em caso de neces-sidade, fique à vontade para arrancaros olhos para ver.

PARALIPSE ESTILIZADApor JOSÉ AUGUSTO CARVALHO

A menina de cabelos longos tinha ferrosnas pernas para poder firmar-se quandoestivesse de pé. O palhaço tentava fazê-lasorrir. Suas piadas, piruetas e mala-barismos faziam rir a plateia infantil,mas a menininha de cabelos longos eferros nas pernas permanecia triste,olhando séria para ele. O palhaço usoude todos os recursos de que dispunha, detodos os truques que conhecia, para fazersorrir a menininha de cabelos longos eolhos tristes. Era como se apenas elacontasse, como se não houvesse nin-guém mais na plateia, a não ser amenininha de ferros nas pernas, de ca-belos longos e de olhos tristes.

Desanimado, odiando a própria in-competência profissional, o palhaço de-sistiu e, embora dizendo ainda piadas emostrando riso no rosto pintado, co-meçou a chorar, olhando a menininhade olhos tristes, de cabelos longos ecom ferros nas pernas. Quando as lá-grimas fizeram trilhas no rosto pintado

do palhaço triste, a menininha de ca-belos longos e ferros nas pernas sorriu egritou para as colegas: “O palhaço estáchorando!” E ela mesma começou a rir,fazendo explodir por contágio um corode gargalhadas. O palhaço parou dechorar e riu também, ao ver que ria feliza menininha de ferros nas pernas, decabelos longos e de olhos alegres.

A cena, de um filme antigo, talvezilustre a ideia de que chorar é a soluçãoquando a esperança de êxito se perdeuno esforço inútil. Mas talvez tambémilustre a ideia de que as lágrimas tra-zem consolo aos que desistem de lutar,ou de que elas podem trazer a vitóriaquando a derrota parece iminente, oude que podem trazer alegria onde exis-te tristeza, porque deve haver alegriatambém na tristeza...

Hilário Soneghet, no seu livro de1971, “Por estradas curvas”, tem umlongo poema em que ele diz procurarum tema para escrever um poema

forte. Percorre mundos imaginários ereais, vai de infinito a infinito, recorreà mulher que ama, aos céus, aosmares, às nebulosas, às consciências eaos corações, e não encontra motivopara o seu poema forte. Finalmente,cansado de tanto esforço que lhe pa-rece inútil, abre os braços em cruz egrita, humilhado e vencido, sua an-gústia e dor que se traduzem nodesespero de não ser poeta.

No entanto, é na confissão de in-competência que ele consegue mos-trar-se competente; é no desespero deachar que não conseguiu escrever seupoema forte que ele acaba por escreverseu melhor poema.

Com essa página maravilhosa dapoética capixaba, Hilário Soneghetdeu-nos uma lição de moral: como nahistória do palhaço e da menininhade olhos tristes, talvez desistir deuma empreitada seja uma forma derealizá-la.

Documento:AGazeta_08_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_9.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:06 de Sep de 2012 19:52:15

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11PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

8 DE SETEMBRODE 2012

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,8 DE SETEMBRODE 2012

cinemapor MARCOS VERONESE

QUANDO O DRAGÃO DA SÉTIMAARTE ENFRENTA A GUERRILHA

Este ensaio é um breve olharsobre a trajetória política eartística de um ícone do ci-nema no Brasil – o irreve-rente, combatente e criativocineasta Glauber Rocha, que

se tornou um mito. Em 1964, os militarestomam o poder e o Partido ComunistaBrasileiro defende a tese de unir-se àburguesia nacionalista para derrubar omovimento militarista, entrando em pro-cesso de ruptura. Siglas surgem – ALN(Aliança de Libertação Nacional), VPR(Vanguarda Popular Revolucionária),MR-8 (Movimento Revolucionário Oitode Outubro), MRT (Movimento Revo-lucionário Tiradentes), PCRB (PartidoComunista Brasileiro Revolucionário).

Com o racha, essas organizações pas-sam a assaltar bancos para financiar aguerrilha.AAliançadeLibertaçãoNacionalé reconhecida por Cuba, e Marighella éeleito líder da resistência por Fidel Castro.Em 1967, representando a Olas (Orga-nização Latino-americana de Solidarieda-de), Marighella chega a Cuba. Um dosprimeiros atos da Revolução Cubana(1959) foi a criação da Casa das Américase do Icaic (Instituto Cubano de Artes eIndústria Cinematográfica), atraindo asimpatia do meio artístico e intelectual.

Cartas a GuevaraNo início dos anos 60, Glauber Rocha

passou a se corresponder com Che Gue-vara. “Vou enviar uma cópia de ‘Bar-ravento’ ou levarei pessoalmente a Cuba,pois amo muito seu país e sou um en-tusiastadaRevolução, inspiraçãoparanós,jovens da America do Sul, que desejamosliberdade de culturas”, escreveu ele em1961. “O PC acredita e prega uma re-volução orgânica sem sangue, o que meparece impossível enquanto toda juven-tude inquieta deseja uma ação terroristaarmada contra os regimes escandalosos”,afirmou em 1962. “Como o considero umvelho amigo, direi que o artista e in-telectual desapareceram radicalmente eagora sou uma pessoa disposta a trabalharrevolucionariamente. Istoéparamimmaisqueumadeclaração ideológica, ecreioquesó poderei viajar a Cuba quando estiver àaltura de aceitar as condições da Re-volução. Apresento-te Hélio, meu amigo,uma pessoa importantíssima no Brasil.”

O Hélio citado na carta é Itoby Correa,estudante de Direito de São Paulo e mem-

bro de um GTA (Grupo Tático Armado) daALN, que partia para Cuba. Sair do Brasilera complicado, mas no Uruguai e naArgentina grupos ligados aos Tupamaros eMontoneros (organizações guerrilheiras)davam apoio. Viajava-se com passaportefalso feito em uma gráfica de Argel, onde ogovernador de Pernambuco, Miguel Ar-raes, cassado em 64, negociava com osargelinos. A entrada na Europa era porRoma, através da Embaixada Cubana.

Um quixote latinoEm julho de 69, Glauber estava em

Roma; acabara de ganhar o prêmio deCannes de melhor diretor com “O Dragãoda Maldade Contra o Santo Guerreiro”.

DIVULGAÇÃO

Especialista em cinema registra o momento em que Glauber Rocha se aproxima da RevoluçãoCubana e passa a defender a união das esquerdas para combater a ditadura militar no Brasil

Itoby e Glauber encontram-se na casa docineasta italiano Gianni. “Posso ajudar nadivulgação da luta. Tenho amigos nasembaixadas, jornalistas, posso ser útil naação de propaganda”, teria comentadoGlauber. O cineasta francês Jean-LucGodard filmava “Vento do Leste” emRoma, com participação de Sartre noroteiro, e doou parte do dinheiro daprodução à ALN. O sequestro do em-baixador americano pela ALN mudaria odestino da luta armada. Godard ofereceum documentário para divulgar a luta.Em Paris, Sartre marca audiências com aALN e também oferece dinheiro e apoio,além de publicar um número especial emsua revista “Temps Moderns” dedicado àluta armada brasileira. O sequestro cha-

ma a atenção da CIA.O combate à subversão é a prioridade

dos militares. Começa o ciclo de queda,torturas, mortes e prisões. Glauber recebepropostas para filmar na Europa e EstadosUnidos. Rejeita. Realiza “Leão de SeteCabeças” no Congo. Sofre reveses - Leão éfracasso de crítica e público. Filma “Ca-beças Cortadas” na Espanha, é acusado deininteligível, vai ao Chile e filma “De-finição” com Norma Benguell, a produçãopara, e os negativos desaparecem. Houveboicote. Glauber então segue para Cuba eencontra o país em pleno andamento coma Campanha dos 10 Milhões, uma safra degrãos que daria ao país divisas e au-tonomia política. Os brasileiros das or-ganizações ALN, VPR e MR-8 treinavam.

Glauber chega com dois projetos: umdocumentário e a ficção “A Idade daTerra”. Alfredo Guevara lhe abriu asportas e ofereceu como assistente umlíder estudantil carioca que ganharauma bolsa de estudos do Icaic: MarcosMedeiros, condenado no Brasil por ati-vidades subversivas. Medeiros moroucom Glauber em Havana e juntos de-senvolveram “História do Brasil”, ins-pirado no documentário do cineastaargentino Fernando Solanas, “La Horade los Hornos”, sobre o peronismo.Glauber pensa o Brasil e entrevista vá-rios guerrilheiros, como Vladimir Pal-meira, Lizt Vieira, Fernando Gabeira eOnofre Pinto. As entrevistas aconteciamno hotel Habana Libre, sob o olhar de

Daniel Herrera, o “Olaf”, agente trei-nado pela KGB.

“Glauber era uma personalidade,ninguém tomava conta. Eu gostava deseus cabelos, ninguém tinha cabeloscompridos. Admirava sua mania decolocar cada sapato de uma cor. Erareconhecido nas ruas e acenava comoum herói latino. Ele mandava no hotel.Todos o adoravam”, afirmou DanielHerrera em depoimento à “Folha de S.Paulo” em 1996.

SuicídioFoi na sorveteria Copélia, situada

numa praça frequentada por intelec-tuais e artistas, que aconteceu um fato

que ficou conhecido em todo o mundo.Fernando Gabeira cobrou de Glauber arealização de um filme sobre a re-volução brasileira, que envolveria ato-res americanos como Jack Palance eJane Fonda, os protagonistas CarlosLamarca e sua mulher, Lara Lavelberg,com música dos então exilados Cae-tano e Gil. “Gabeira, você tem Hol-lywood na cabeça e me pede para fazerjustamente o que sempre combati. Vo-cê quer meu suicídio”, disse Glauber.“Você deve se matar como cineasta erenascer como revolucionário”, res-pondeu Gabeira. A entrevista queGlauber deu ao “Pasquim” saiu comesse título – “Gabeira tentou me matarem Havana”.

O início do fimGlauber passa então a defender a

tese do Partidão, ou seja, a união dasesquerdas. Ele lê muito e conhece asteorias geopolíticas de Golbery do Cou-to e Silva. Fala publicamente que aditadura brasileira só cairia com a rup-tura dos militares, que a esquerda nãotinha discurso correto, que os quadrosem Cuba não derrubariam os militares.A safra dos 10 milhões fracassa, Cubase desorganiza economicamente. Opaís reaproxima-se da União Soviética.A epopeia libertária chega ao fim. Glau-ber volta a se dedicar ao cinema, e oprojeto “A Idade da Terra” não é pro-duzido devido à recessão. Retoma “His-tória do Brasil” com Medeiros, colagemde 47 filmes brasileiros dos arquivos doIcaic. Em 1972 deixa Cuba. “História doBrasil” tem o som sincronizado emParis, mas Alfredo Guevara desautorizao filme, por considerá-lo uma “bagunçaideológica, um documento heterodo-xo”. Glauber ficou chocado.

Em 1974, em depoimento à revista“Visão”, anuncia apoio à abertura po-lítica de Geisel. O filme “Claro” (1975),feito em Roma, é recebido com críticanegativa pela revista francesa “Le Nou-vel Observateur”. Em Paris, o ministroJoão Paulo dos Reis Velloso convidaGlauber para voltar ao Brasil e compor oprojeto de criação da produtora de ci-nema estatal Embrafilme. Glauber acei-ta. Antes de morrer, em agosto de 1981,Glauber desabafou em uma entrevista:“Estudo história do Brasil e tenho vastainformação sobre cultura e política. Nãoaderi ao governo Geisel porque nãodisputo o poder, nem me interessa sa-tisfazer a centros de poder. Posso entãoemitir opiniões independentes deconceitos vigentes.”

Jean-Pierre Léaud e Rada Rassimov em “Leão de Sete Cabeças”: rodado no Congo, filme foi fracasso de crítica e de público

Com “O Dragão da Maldade Contra oSanto Guerreiro”, estrelado porMauricio do Valle, Glauber Rochaganhou o prêmio de melhor diretorno Festival de Cannes em 1969

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12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,8 DE SETEMBRODE 2012

ficçãopor MARCO VALÉRIO MAGALHÃES

O PRIMEIRO DIA DAMINHA NOVA VIDA“Tomado por uma estranha excitação e sem entender o que acontecia, tomei a decisão de iratrás de mim”, narra o personagem deste conto sobre um encontro inesperado consigo mesmo

Após a longa viagem euma noite maldormida,finalmente estava devolta a Vitória. Rever arodoviária era a primei-ra satisfação no meu re-

gresso. Mal esperei o ônibus parar ejá estava de pé, procurando minhamochila no bagageiro. E foi assim, aoolhar para o lado, que o vi.

Não sei se devido ao cansaço daviagem, ou se por algum problemamomentâneo de visão, o fato é que apoucos metros de mim e também pe-gando uma mochila, estava... eu mes-mo. Abri e fechei os olhos com força, econtinuei vendo a mim mesmo, agorase dirigindo para a porta de saída.Tomado por uma estranha excitação esem entender o que acontecia, tomei adecisão de ir atrás de mim.

Mantendo distância segura, seguimeu duplo até o ponto de ônibus eentrei um pouco depois dele no co-letivo que ia para o bairro de Ma-ruípe, onde eu havia morado há mui-to tempo. Não estranhei quando elepuxou a cordinha para a descida nopróximo ponto. Era nele que eu tam-bém saltava quando ali vivia. Outraspessoas desceram, o que me permitiusair sem ser visto por minha cópia. Aopisar na calçada, olhei para cima epercebi um céu esquisito, passandodo cinza ao ocre próximo à altura dascasas. Escondendo-me atrás de pos-tes, fui seguindo por ruas bem co-nhecidas, até chegar ao portão daminha antiga casa. Vi meu alter egoabrir o portão, passar pela varanda,abrir a porta da sala, virar-se naminha direção (atrás de um postepróximo ao portão), dar um sorrisosem abrir a boca – como eu semprefaço – e entrar.

Com o coração acelerado e as pon-tas dos pés e mãos formigando, entreiapressado dentro de casa, procuran-do por mim. Passei pela sala, peloestreito corredor onde havia o ba-nheiro e os quartos e cheguei à co-zinha, onde minha mãe colocava àmesa as mandiocas cozidas com man-teiga e o café bem ralinho que eusempre considerei a melhor refeiçãode todos os mundos. Sentei-me aolado de mamãe, contemplei seu rostosofrido e, ao encostar minha cabeça

no seu ombro, não consegui conterum choro longo e há tanto temporepresado.

Conversei por uma hora. Falei pou-co e ouvi muito. Coisas que só umcoração de mãe é capaz de transmitir.Um a um, revi os muitos erros daminha vida. Nem tudo estava per-dido. Compreendi que eu era capazde dar um novo sentido a tudo isso.

Minha própria mãe me mostrava ocaminho, e ninguém melhor do queela para traduzir todos os anseios domeu espírito. Ao final, chorei de no-vo. Dessa vez, um choro diferente,adocicado e repleto de esperanças.Nem toquei na melhor refeição detodos os mundos. Perdi a pista domeu duplo. Abracei-a fortemente, medespedi e rumei para casa.

Acordei disposto no dia seguinte,apesar do frio e da chuva fina. Men-talmente, enquanto tomava leite combiscoitos, agendei o primeiro dia daminha nova vida. A primeira visitaseria ao túmulo de minha mãe, ondenão ia há mais de 10 anos. Depois, umpor um, ia tratar de enterrar todos osoutros fantasmas que me per-seguiam e voltar a ser feliz.

COLETIVO PEIXARIA

Documento:AGazeta_08_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_12.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:06 de Sep de 2012 19:51:50