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PEQUENOS MITOS SOBRE A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO BRASIL Bruno Freire de Carvalho Calabrich Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV; professor da Escola Superior do Ministério Público da União; ex-professor de Direito Processual Penal da Universidade Nilton Lins – Manaus (AM) e da Faculdade de Direito de Vitória (ES); ex-Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no Estado do Amazonas; ex-coordenador do Núcleo Criminal do Ministério Público Federal no Estado do Espírito Santo; procurador da República em Sergipe. 1 Introdução – Garantismo e investigação criminal no Brasil 2 Função e destinatários da investigação criminal 3 O que é “polícia judiciária” 4 Autoridade policial, “independência funcional” e “livre convencimento” 5 Conclusões

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PEQUENOS MITOS SOBRE A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO BRASIL

Bruno Freire de Carvalho CalabrichMestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV; professor da Escola Superior do Ministério Público da União; ex-professor de Direito Processual Penal da Universidade Nilton Lins – Manaus (AM) e da Faculdade de Direito de Vitória (ES); ex-Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no Estado do Amazonas; ex-coordenador do Núcleo Criminal do Ministério Público Federal no Estado do Espírito Santo; procurador da República em Sergipe.

1 Introdução – Garantismo e investigação criminal no Brasil

2 Função e destinatários da investigação criminal

3 O que é “polícia judiciária”

4 Autoridade policial, “independência funcional” e “livre

convencimento”

5 Conclusões

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1 Introdução – Garantismo e investigação criminal no Brasil

A Constituição Federal de 1988 consolidou um modelo penal e processual penal

eminentemente garantista, elencando uma série de direitos e garantias fundamentais outrora

negligenciados (formal e materialmente) pelo Estado brasileiro. Ao mesmo tempo, tratou de dotar

órgãos e instituições responsáveis pela persecução penal, notadamente o Ministério Público e as

polícias, de atribuições e poderes proporcionais a tal imensa responsabilidade. Alguns dos frutos mais

vigorosos dessa alteração no panorama constitucional começaram a aparecer em anos recentes, com a

formalização de denúncias contra criminosos de graduado coturno – grandes empresários, políticos,

altas autoridades públicas –, conforme cotidianamente noticiado pela imprensa brasileira. Se antes os

direitos fundamentais – entre os quais o direito fundamental à segurança e à justiça – figuravam

como a força motriz da atividade de persecução criminal – considerando a sua função basilar de

tutela (proteção) precisamente de tais direitos –, ocorreu que, quando o sistema penal passou a

incomodar quem antes jamais fora incomodado (a chamada criminalidade do colarinho branco),

supostos direitos fundamentais passaram a ser invocados exclusivamente para criar novos obstáculos

à aplicação da sanção penal. Fala-se em supostos, tendo em vista que tais alegados direitos

confundem-se, a par de uma análise minimamente séria, com um simples (e hipotético) direito à

impunidade, que nenhum ordenamento racionalmente posto seria capaz de conceber.

Surpreende o fato de que algumas das teses criadas no Brasil (e rotineiramente reproduzidas

pela defesa de possíveis agentes dessa nova criminalidade) apontam como fundamento o modelo

garantista de nossa Constituição ou a doutrina do garantismo penal e processual penal1. Invoca-se o

garantismo – quase que como numa “fórmula mágica” – para afirmar que tal ou qual ato deve ser

invalidado (levando-se à impunidade do investigado ou acusado), ainda que, ao cabo, nenhum direito

fundamental tenha sido realmente violado ou restringido. É certo, entretanto, que boa parte dessas

teses não resiste sequer a um rápido cotejo com os postulados da doutrina garantista2.1 Numa acepção bastante sintética do garantismo, pode-se dizer que a teoria representa uma radical mudança de foco: o

direito e o processo penal, que tendem a ser vistos como os ramos do direito que têm como objetivo “a condenação dos culpados”, devem, inversamente, ser compreendidos como os ramos do direito destinados a evitar a aplicação de uma sanção a quem não cometeu um ilícito penal (ou “a absolvição dos inocentes”) e, mesmo quando pertinente o sancionamento, que seja este aplicado em rigorosa obediência aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Em resumo, o direito e o processo penal, assim, não devem ser os ramos do direito simplesmente dirigidos à punição dos criminosos, mas sim à justa punição dos culpados e à absolvição dos inocentes (CALABRICH, Bruno. Investigação criminal pelo Ministério Público: fundamentos e limites constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 142). No Brasil, entretanto, muitos daqueles que se socorrem de postulados supostamente garantistas parecem ter olhos apenas para esta segunda função (o que se poderia alcunhar de “garantismo monocular”) – a de absolvição dos inocentes –, esquecendo-se que o processo penal e o direito penal também devem prestar-se à justa punição dos culpados.

2 Um interessante exemplo de como teses apenas aparentemente garantistas são engendradas no Brasil é o referente à impossibilidade de investigação criminal direta pelo Ministério Público. Afirma-se que o Ministério Público não poderia investigar, porquanto isso violaria o princípio acusatório e diversos outros direitos fundamentais. Pois bem: a tese é negada pelo próprio LUIGI FERRAJOLI, para quem não existem “[...] contradições entre o papel de investigação, de defesa da segurança, e o papel garantista em relação aos direitos, no sentido em que somente a aplicação das

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Os apontamentos que ora apresentamos dizem respeito a três equívocos (ou mitos) bastante

comuns a respeito da investigação criminal no Brasil. O primeiro deles é referente à função e aos

destinatários da investigação criminal – ainda grassa o entendimento de que é o juiz o destinatário da

investigação, e que a investigação teria por objetivo formar seu convencimento (quando não o do

delegado de polícia, como parecem acreditar outros). O segundo versa sobre o sentido da locução

“polícia judiciária”, que muitos insistem em dizer que é sinônimo da função de “investigar crimes”.

O terceiro concerne à hipotética independência funcional e ao “livre convencimento” de que seriam

(ou deveriam ser) dotadas as autoridades policiais no Brasil. Como fundamento para cada um desses

equívocos, costuma-se valer de princípios constitucionais e de alegadas violações a direitos

fundamentais, em assertivas invariavelmente desacompanhadas de qualquer base dogmática

verdadeiramente garantista. São estes os tópicos de que agora passamos a nos ocupar.

2 Função e destinatários da investigação criminal

Investigação é “o ato ou efeito de investigar; busca, pesquisa”3. E investigar, do latim

investigare, significa “seguir os vestígios”, “fazer diligências para achar; pesquisar, indagar,

inquirir”4. Investigação criminal pode ser definida, resumidamente, como a atividade preliminar de

produção e colheita de elementos de convicção (evidências) acerca da materialidade e da autoria de

um fato criminoso5.

A atividade de investigação criminal abrange uma série de atos: a inquirição de pessoas, a

apreensão de coisas e documentos, a realização de perícias etc. Ao tratar do inquérito policial, o art.

garantias processuais, somente os vínculos garantistas impostos também ao Ministério Público e à polícia, somente o respeito às garantias de defesa, de garantias processuais, muito rígidas, as provas, as contraprovas, podem assegurar a verificação da verdade, uma verificação plausível, da verdade, e das funções de segurança” (Palestra ministrada em evento organizado pela Fundação Escola do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul e realizado no auditório Mondercil de Moraes, na sede da Procuradoria-Geral de Justiça do MP/RS. Tradução de Sandra Dall'Onder). Sobre o tema, tivemos a oportunidade de discorrer mais detidamente em CALABRICH, Bruno. Investigação criminal pelo Ministério Público: uma brasileira e renitente polêmica. In: FARIAS, Cristiano Chaves de; ALVES, Leonardo Barreto Moreira; ROSENVALD, Nelson (Org.). Temas atuais do Ministério Público: a atuação do Parquet nos 20 anos da Constituição Federal. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 603-632.

3 Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI, versão 3.0. Rio de Janeiro: Lexikon Informática, 1999.4 Idem.5 Já tivemos a oportunidade de propor um conceito talvez mais preciso e completo de investigação criminal: sequência

de atos preliminares direta ou indiretamente voltados à produção e à colheita de elementos de convicção e de outras informações relevantes acerca da materialidade e autoria de um fato criminoso (CALABRICH, Investigação criminal pelo Ministério Público, p. 54). A opção feita pela expressão “produção e colheita de elementos de convicção”, em vez de “produção e colheita de provas”, justifica-se ao se considerar que os elementos de convicção colhidos na fase pré-processual, anterior à formalização da acusação, sem a participação da defesa e do juiz, não são provas – ou, mais precisamente, são provas apenas em sentido lato, mas não em sentido estrito. Entre os axiomas garantistas está a nulla probatio sine defensione (é nula a prova produzida sem a participação da defesa – A103). Como decorrência da relação entre esse axioma garantista e outros axiomas, tem-se também que nullum iudicium sine acusatione, sine probatione et sine defensione (T654) (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 75 e 89). Com isso não se quer afirmar a imprestabilidade de tais evidências para um julgamento penal; apenas se quer reafirmar a absoluta necessidade de submissão de todos os elementos de convicção ao contraditório e à ampla defesa.

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6º do Código de Processo Penal elenca, em rol não exaustivo, uma série de medidas a serem

promovidas na apuração de ilícitos penais6. Todas as medidas ali mencionadas, sejam ou não

praticadas por um delegado de polícia no interesse de um inquérito policial, têm natureza

investigatória, porquanto voltadas à obtenção de elementos indispensáveis ao conhecimento

preliminar dos fatos, subsidiando o órgão estatal de acusação (ou o particular, na ação penal de

iniciativa privada) para sua decisão quanto à deflagração ou não do processo penal. Ao lado daqueles

elencados no art. 6º do CPP, diversos outros atos de investigação podem ser ainda mencionados: a

obtenção de informações bancárias, fiscais e financeiras; a realização de interceptação de

comunicações telefônicas e de dados (art. 5º, XII, da CF/88; Lei n. 9.296/1996); a captação e a

interceptação ambiental e a infiltração de agentes de polícia ou de inteligência (art. 2º da Lei n.

9.034/1995 e art. 33 da Lei n. 10.409/2002) e mesmo as prisões cautelares, quando fundadas na

“imprescindibilidade para as investigações” e na “conveniência da instrução criminal” em sua fase

pré-processual (art. 1º, I, da Lei n. 7.960/1989, e art. 312 do CPP).

Vê-se, pois, que investigação abrange todo e qualquer ato pré-processual direta ou

indiretamente voltado para o conhecimento sobre um fato delituoso.

Diversamente do que alguns podem crer, a investigação não tem como objetivo a colheita e a

produção de elementos que provem a prática de um ilícito. Afirmar isso implicaria dizer que toda

instrução preliminar teria como meta a demonstração de um ilícito, desconsiderando qualquer

elemento que apontasse para sentido oposto. Como já afirmava Carnelutti, a investigação “não se faz

para a comprovação de um delito, mas somente para excluir uma imputação aventurada”7. Para a

comprovação (ou não) de um delito, há a instrução processual propriamente dita, com todos os

princípios a esta inerentes, notadamente o contraditório e a ampla defesa.

A investigação preliminar pode subsidiar tanto o Estado – quando a órgão seu tocar a

iniciativa da ação penal – quanto o particular – na ação penal privada. A colheita de elementos em 6 “Art. 6º Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:I – dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos

peritos criminais;II – apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais;III – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;IV – ouvir o ofendido;V – ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro,

devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura;VI – proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;VII – determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias;VIII – ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de

antecedentes;IX – averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica,

sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter”.

7 CARNELUTTI, Francesco. Direito processual penal. Campinas: Péritas, 2001, v. 2, p. 113.

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etapa anterior ao exercício desse direito de ação (que é também um dever, no caso da acusação

estatal) serve a que não seja esse fruto de uma atuação temerária, evitando, desse modo, acusações

infundadas e fadadas ao insucesso.

O processo penal, em si, acarreta custos extraordinários aos diversos sujeitos e entes

envolvidos. O processo corresponde ao segundo momento da técnica punitiva, que tem em mira a

individualização, e se manifesta na forma de coerções e restrições aos potenciais responsáveis,

substanciada na sujeição do acusado ao juízo penal8. Ao réu, destarte, impõe-se o custo de submeter-

se à disciplina processual penal, com todos os ônus e deveres disso decorrentes, sem contar com o

estado de ânsia prolongada pela indefinição de sua situação jurídica, que só será deslindada com o

trânsito em julgado da decisão de mérito, ao cabo de todo um processo no bojo do qual se lhe

impinge a mácula do status de acusado. Ao acusador (público ou privado) e ao Estado-juiz, há o

custo da mobilização da máquina administrativa e judiciária, que demanda, além de tempo, o

exaurimento de recursos materiais e humanos.

Dentro desse contexto, aliado ao fato de que os atuais ordenamentos dos Estados

democráticos de direito são cada vez mais orientados à proteção de direitos fundamentais (e à

consequente limitação dos poderes do Estado perante o homem, a serviço exclusivo desses direitos),

é inegável que somente poderá ser admitida uma acusação quando arrimada em elementos mínimos

que apontem para sua plausibilidade. Dessa forma, não é qualquer notitia criminis que dará causa à

deflagração de um processo, senão aquelas que sigam respaldadas em razoáveis indícios, que serão

eventualmente produzidos e obtidos na fase de investigação, a revelarem a possibilidade de que o

fato criminoso tenha sido realmente praticado pelo imputado.

Vê-se, pois, que a instrução preliminar tem como objetivo permitir o exercício da ação penal

de forma responsável, seja pelo particular, seja pelo Estado. Por esse mesmo fundamento, pode-se

afirmar, sem sombra de incertezas, que toda e qualquer investigação criminal é destinada a fornecer

subsídios ao ente legitimado à acusação, para que esse legitimado, conforme o caso, promova a ação

cabível ou o arquivamento do procedimento apuratório respectivo.

A partir da identificação da finalidade da instrução preliminar, é possível extrair a distinção

entre atos de prova e atos de investigação. Atos de prova: (a) têm por fito convencer o juiz9 quanto à

verdade de uma afirmação; (b) servem ao processo e à sentença de mérito; (c) devem conduzir a um

juízo de certeza sobre a ocorrência ou não ocorrência de um fato; (d) exigem a obediência aos

princípios da publicidade, do contraditório e da imediação; e (e) são praticados perante o juiz que

8 FERRAJOLI, Direito e razão, p. 167.9 Não é demais salientar que o juiz, ou o órgão judicial que primeiramente apreciará a prova, não é seu único

destinatário – outros órgãos do Poder Judiciário poderão apreciá-la, notadamente quando provocados em grau de recurso.

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proferirá a sentença de mérito. Atos de investigação: (a) não se referem a uma afirmação, mas a uma

hipótese, a ser apreciada pelo órgão de acusação; (b) servem à formação da opinio delicti, a fim de

que formalizada acusação ou arquivado o caso; (c) devem ser aptas a formar um juízo de

probabilidade, e não de certeza quanto a um fato; (d) não pressupõem a observância aos princípios da

publicidade, do contraditório e da imediação; e (e) não necessariamente são praticados perante uma

autoridade judiciária10.

No Brasil, nos moldes da CF/88, os únicos destinatários de investigações criminais são o

Ministério Público (regra) e, apenas para a ação penal de iniciativa privada, o particular. No caso da

ação penal de iniciativa pública, o “postulado do Estado Democrático de Direito está no exigir-se de

quem fala pela sociedade – o Ministério Público – acusação pública assentada em dados concretos de

verossimilhança sobre o evento”11 e 12.

Tal afirmação deságua na constatação de que o juiz não é o destinatário da investigação

preliminar:

Já se pensou, sem qualquer rigor técnico, que o inquérito policial destinava-se ao juiz porque, através

dele, poderia o magistrado avaliar se estariam ou não presentes as condições da ação, suporte que

precisaria para decidir se receberia ou não a denúncia oferecida pelo Ministério Público. Esta pobre

afirmação estaria tão correta quanto uma outra, que poderíamos fazer em resposta, no sentido de que,

se fosse assim, a prova colhida durante a instrução criminal (no processo penal) teria por destinatário o

promotor, para que ele avaliasse, à luz dela, se iria recorrer ou não da sentença prolatada pelo juiz da

causa. Haveria absurdo maior do que esta afirmação?!13

O que se pode admitir é que o juiz seja um destinatário indireto, dado que os elementos

colhidos e produzidos na fase investigatória serão estudados por este no momento em que decidir

pela admissibilidade ou não de uma acusação, assim que apresentados estes pelo órgão acusador – o

destinatário direto das investigações14. 10 LOPES JR., Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.

131. 11 FONTELES, Cláudio Lemos. Investigação preliminar: significado e implicações. Revista da AJUFE, Brasília:

Associação dos Juízes Federais, ano 19, n. 65, p. 301.12 Segundo a nova redação do art. 395 do CPP (consolida um entendimento doutrinário há muito abraçado pelos

Tribunais), a denúncia ou queixa será rejeitada quando “faltar justa causa para o exercício da ação penal” (inciso III, incluído pela Lei n. 11.719/2008). E justa causa é precisamente “a demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isso que lastreada em um mínimo de prova” (JARDIM, Afrânio Silva. Ação penal pública: princípio da obrigatoriedade. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 41-42).

13 BASTOS, Marcelo Lessa. A investigação nos crimes de ação penal de iniciativa pública: papel do Ministério Público. Uma abordagem à luz do sistema acusatório e do garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 89-90.

14 Foi exatamente por ser o Ministério Público o “destinatário final das investigações levadas a cabo no curso do inquérito policial” que o Conselho da Justiça Federal (CJF) editou a Resolução n. 63, dispondo sobre a “tramitação direta dos inquéritos policiais entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal” (disponível em: <http://daleth2.cjf.jus.br/download/res063-2009.pdf>. Acesso em: 4 ago. 2009) No mesmo sentido, o Conselho Nacional de Justiça confirmou a legalidade do Provimento n. 119/2007, da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Paraná, que estabeleceu a tramitação direta dos inquéritos policiais entre a polícia e o MP, sem necessidade de intermediação do Judiciário, a não ser para o exame de medidas cautelares (CNJ, Procedimento de Controle Administrativo n. 599, decisão de 15 de agosto de 2007).

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Se não é o juiz o real destinatário da investigação criminal, certamente não o é, de igual

modo, a autoridade policial – responsável pela condução de uma das espécies de investigação (o

inquérito policial). Nem de longe o inquérito, frise-se, tem como propósito “formar o

convencimento” da autoridade policial quanto à materialidade e à autoria de um delito – não é ele,

afinal, quem decidirá sobre a deflagração ou não de uma ação penal (tarefa que toca ao Ministério

Público), e muito menos sobre se deve ser acolhida ou não a acusação (tarefa de que são incumbidos

os órgãos do Poder Judiciário).

Certamente tendo por base os apontados equívocos acerca da verdadeira função e dos reais

destinatários da investigação criminal, no Brasil, atualmente, vem se verificando – de modo ainda

mais intenso que antes – um gravíssimo desvirtuamento da atividade de instrução preliminar

realizada no inquérito policial, de forma a torná-la uma instrução “definitiva”, em substituição à

instrução realizada no curso do processo penal. O grande prejuízo que isso acarreta é o abarrotamento

acachapante de trabalho das autoridades policiais e, dados os naturalmente limitados meios de que

dispõe, a inefetividade e a morosidade das investigações, predestinando-as ao arquivamento, pela

pobreza do conjunto probatório (preliminar) – conquanto exaustivo –, ou à prescrição15 –, devido à

necessidade de sua repetição em juízo16. Transforma-se, destarte, o que deveria ser sumário – no

sentido de que o que se exige dessa atividade preparatória é somente a reunião de elementos a

apontar a plausibilidade da demanda penal – em algo plenário – verdadeira coleta exaustiva de todos

os elementos de convicção17.

Esse desvirtuamento não pode ser creditado somente às polícias, mas também ao Ministério

Público – que comumente olvida de realizar o acompanhamento e o controle de investigações que,

afinal, servem ao seu interesse (ou, melhor dizendo, ao interesse público cuja tutela lhe foi outorgada

pela Constituição) – e ao Judiciário – que muitas vezes exige, para a admissão de uma acusação, que

sejam apresentadas, no momento proemial concomitante à denúncia ou a queixa, todas (ou quase

todas) as provas da prática do ilícito, antecipando um juízo que somente deveria ser feito ao final do

processo, retirando por completo, desse modo, o sentido da instrução processual18.

15 Se não pela pena in abstracto, certamente pela pena in concreto.16 Quando não tenham sido produzidos em estrita reverência aos princípios garantistas, especialmente do contraditório.17 O fenômeno não se restringe ao Brasil, consoante acena o ex-Procurador General de la Nación Argentina (1997-2004)

Nicolás Becerra: “No es una novedad, sin embargo, que la instrucción, que debería ser una etapa procesal breve y ágil, se halla completamente sobredimensionada en el sistema procesal federal. […] Además, este sistema de investigación no sólo se há demonstrado obsoleto, sino que también há provocado que la etapa de instrucción, en lugar de ser breve para dar paso al verdadero juicio, por el contrario, dure largos años y convierta al expediente en una colección de miles de hojas – literalmente hablando – cuando el delito presenta alguna complejidad. Como es sabido, cuando el caso llega finalmente al juicio oral, pocas veces puede ya modificarse el rumbo y el destino que imprimieron al proceso los acertos y falencias de la investigación en la etapa de instrucción, y el juicio oral se convierte en un juicio leído” (BECERRA, Nicolás E. El Ministerio Público Fiscal: génesis, ubicación institucional y la reforma pendiente. 1. ed. Buenos Aires; Madrid: Cuidad Argentina, 2004, p. 130-131.

18 A tendência de “supervalorização” da investigação no Brasil, que antes já era notado de forma bastante nítida nos tribunais, nos casos de sua competência originária (crimes cometidos por autoridades que gozam do foro por prerrogativa de função, cujo rito já previa uma defesa prévia do acusado, antes do recebimento da denúncia ou da

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A análise da plausibilidade da acusação apresentada, que já antes era de suma importância no

processo penal, ganhou ainda maior relevo com a nova redação do art. 395 do Código de Processo

Penal (dada pela Lei n. 11.719/2008), que previu expressamente a possibilidade de rejeição da

denúncia ou da queixa por “ausência de justa causa”. Ocorre que a alteração do CPP, que apenas

confirmou um entendimento há muito consolidado na doutrina e na jurisprudência acerca da justa

causa, não autoriza uma interpretação que transforme o inquérito policial (assim como qualquer outra

forma de investigação criminal) no centro de importância da atividade persecutória, relegando o

processo penal propriamente dito a um papel meramente secundário, de reles “confirmação” do que

foi produzido na etapa antecedente19.

O resultado, para os agentes da macrocriminalidade moderna (que apenas há muito pouco

tempo, no Brasil, começaram a ser incomodados pelo sistema penal), é um curioso paradoxo: exige-

se que a investigação seja plenária, justamente para que o processo (a persecutio in judicio) seja

esvaziado – pela prescrição (de um crime apurado num inquérito que demora absurdamente a ser

concluído), pela rejeição da acusação (por não terem sido reunidos, nesse interminável inquérito,

todas as provas possíveis), ou pela absolvição (decorrente da imprestabilidade de um inquérito mal

conduzido, por uma polícia assoberbada por inúmeras outras investigações igualmente exaurientes).

Outra consequência, ainda mais grave, do equívoco acerca da função e dos destinatários da

investigação é a policialização da fase de investigação, que pode ser traduzida na preponderância da

atuação das autoridades policiais em detrimento do papel que deveria ser exercido pelo Ministério

Público – dada sua qualidade de controlador da atividade policial e natural destinatário da

investigação – e pelo Poder Judiciário – considerando sua função de garantidor da legalidade da

investigação. A policialização da investigação é objeto de preocupação crescente na Europa,

conforme bem acentua Kai Ambos:

Nas investigações científicas se critica que, na realidade do processo, com respeito a vários e amplos

âmbitos de criminalidade, o Ministério Público só aparece no esclarecimento dos procedimentos ou

nos feitos judiciais. Quanto à coleta de elementos de investigação ou informação em fase de

diligências prévias, acaba sendo um coadjuvante secundário ou “marginal”. A expressão

“policialização” (Verpolizeilichung) da fase de investigação, o que inclusive se transmite a todo o

queixa – Lei n. 8.038/1990), pode espraiar-se para todas as causas penais, considerando a alteração do art. 396 do CPP, que incluiu em todos os procedimentos penais de primeiro grau (art. 394, § 4º) a etapa da “resposta à acusação”, momento após o qual o juiz poderá, nos termos do art. 397, absolver sumariamente o réu (valendo ressalvar que rejeição da denúncia e absolvição sumária têm fundamentos absolutamente distintos). A participação do acusado na fase inicial do processo é salutar; o que não se compatibiliza com o moderno processo penal é a pretensão de que a decisão sobre o recebimento da acusação e os debates imediatamente subsequentes demandem o completo esgotamento das vias probatórias, antecipando toda a instrução processual.

19 O reconhecimento de que a investigação preliminar não deve ser exauriente ou plenária não torna menos recomendável que, antes da propositura de uma ação penal, seja dada a oportunidade ao investigado de se manifestar quanto às provas produzidas (não só por seu interrogatório, mas, eventualmente, também por escrito, a requerimento seu), tudo de modo a ensejar o exercício responsável da ação penal.

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processo penal – ocorre, por certo, também em outros ordenamentos jurídicos da Europa continental –

acaba por imperar, entendendo-se por tal, em geral, o papel dominante que cada vez mais tem a polícia

na investigação dos feitos20.

Na prática, e isso é facilmente constatado no Brasil (não de hoje), o Ministério Público e o

Judiciário tornam-se cada vez mais “reféns” do trabalho das autoridades policiais, no sentido de que,

deixando de exercer um eficiente controle e direcionamento da investigação, quedam-se totalmente

dependentes dos elementos colhidos pela polícia. Esta, por seu turno, atua cada vez mais de modo

“independente”, ditando sozinha os rumos da investigação criminal. É incontestável que a

preponderância do papel da polícia, sobrepujando os demais atores responsáveis pelo controle e pela

legalidade da investigação (MP e Judiciário), em nada prestigia um modelo processual penal que se

pretenda afirmar efetivamente garantista. Noutras palavras, tem-se que a crescente policialização não

contribui para a eficiência da investigação criminal – e quando aqui se fala em eficiência (definida

como meta para a persecução penal), utiliza-se a expressão no sentido dúplice do garantismo penal e

processual penal: eficiência do ponto de vista do absoluto respeito aos direitos e garantias

fundamentais do investigado ou acusado e eficiência do ponto de vista do justo sancionamento dos

responsáveis pela prática de um ilícito penal21.

3 O que é “polícia judiciária”

Ao adotar o modelo acusatório, a Constituição não negligenciou os meios para sua aplicação.

Assim, previu a investigação criminal – instrumento que, como visto, tem como finalidade municiar

o órgão ou agente incumbido da acusação de modo que possa atuar de forma responsável – como

uma das principais atribuições das polícias.

De acordo com o art. 144 da Constituição Federal, que trata das atribuições das polícias, “a

segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a

preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. O mesmo art. 144 da

CF/88 (§§ 1º e 4º) destaca, dentre as diversas atribuições dos órgãos policiais, a apuração de

infrações penais e a função de polícia judiciária.

Infelizmente, parece persistir a confusão entre “apuração de infrações penais” e “polícia

20 AMBOS, Kai. Controle da polícia pelo Ministério Público versus domínio policial da investigação na Europa, especialmente na Alemanha. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, n. 27, jan./mar. 2008, p. 126-127.

21 “O problema axiológico da justificação volta a identificar-se [...] com o problema das garantias penais e processuais, ou seja: aquele das técnicas normativas mais idôneas para minimizar a violência punitiva e aquele de exponenciar ao máximo a tutela dos direitos, que são precisamente os objetivos [...] que justificam o direito penal. Existe, pois, uma correspondência biunívoca entre justificação externa ou ético-política e garantismo penal. Um sistema penal é justificado se, e somente se, minimiza a violência arbitrária na sociedade. E atinge tal objetivo à medida que satisfaz as garantias penais e processuais do direito penal mínimo” (FERRAJOLI, Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 318).

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judiciária”, muitos ainda afirmando serem ambas expressões sinônimos de “investigação criminal”.

Uma leitura minimamente atenta do art. 144 da CF/88 indica que estão claramente separadas a

função de polícia judiciária da função de apuração de infrações penais. Tal distinção se nota

facilmente na redação do § 1º do mesmo art. 144, precisamente na comparação de seus incisos I e IV

(que tratam das atribuições da polícia federal), e, ainda mais nitidamente, na redação do § 4º do

mesmo artigo (que trata das atribuições das polícias civis dos Estados).

Quanto à Polícia Federal, eis o que preceitua o citado art. 144 da CF/88:

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

[...]

IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União [grifo nosso].

Para as polícias civis, reza a Constituição:

§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares [grifo nosso].

Sendo o art. 144 da CF/88 cristalino ao apartar a função de polícia judiciária da função de

apuração de infrações penais, o propósito que se pode extrair disso foi o de reservar à polícia federal

o exercício, com exclusividade, das funções de polícia judiciária da União.

De fato, uma leitura isolada do inciso IV poderia dar azo à conclusão de que a investigação

dos crimes afetos à competência da justiça federal teria sido atribuída, com exclusividade, à polícia

federal – e a mesma lógica da exclusividade deveria valer para as polícias dos estados, com respaldo

no princípio federativo e na simetria das formas. Como demonstrado, nada mais equivocado. O

dispositivo em tela foi enfático ao conferir exclusividade, à polícia federal, das funções de polícia

judiciária da União. Funções de polícia judiciária da União não se confundem com a atribuição de

investigar crimes, para a qual a Constituição não estabeleceu uma exclusividade. O art. 144 cuida de

funções distintas, sendo a exclusividade apenas para a função de polícia judiciária. O referido inciso

I trata da atribuição específica de “apurar infrações penais” – investigar, na expressão escolhida pelo

constituinte. Para essa atribuição a CF/88 não conferiu nenhuma exclusividade, abordando em inciso

diverso a função de polícia judiciária da União – esta, sim, de exclusividade da polícia federal.

O § 4º do mesmo art. 144, versando sobre as atribuições das polícias civis, afasta qualquer

dúvida quanto à distinção entre as funções investigatória e de polícia judiciária – valendo notar que,

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nesse inciso, nada há de referência à exclusividade para a apuração de infrações penais, do que se

extrai que as funções de polícia judiciária dos Estados, assim como a apuração de infrações penais,

não são exclusivas das polícias civis.

Por uma questão de coerência sistêmica, a Constituição não poderia repetir, num mesmo

inciso, duas locuções sinônimas (apuração de infrações penais e polícia judiciária). É de se

perquirir, então, o real conceito de polícia judiciária.

A expressão polícia judiciária remonta ao século XIX, época em que as autoridades policiais

brasileiras eram dotadas de poderes reservados às autoridades judiciárias. Diante do que dispõe a

CF/88, não há mais como se empregar a expressão na sua significação original. Assim, é de se

perquirir o verdadeiro e atual sentido da expressão polícia judiciária22.

Para a prática de alguns de seus atos, internos ou externos, o Poder Judiciário pode

eventualmente precisar do suporte de algum órgão dotado de meios materiais e humanos para, sob

seu comando, executá-los diretamente ou, ao menos, para auxiliar em sua execução. Assim é que o

juiz poderá requisitar a força policial para auxiliá-lo na manutenção da ordem e da segurança em

audiências e sessões ou para cumprir (ou acompanhar o cumprimento) de outros atos, como

comunicações processuais, buscas e apreensões, penhoras e condução coercitiva de pessoas.

As funções de polícia judiciária, dessa forma, abrangem todas as funções referentes ao apoio

necessário para a prática de determinados atos ou para o cumprimento de decisões judiciais. E essa

função, no que toca aos órgãos do Poder Judiciário da União, recai com exclusividade na polícia

federal. A função de polícia judiciária diz respeito não somente aos juízos criminais, mas a todo e

qualquer juízo, seja qual for sua competência. Em suma, polícia judiciária nada mais é que a função

de auxílio ao Poder Judiciário na execução de seus atos e decisões23.

O Superior Tribunal de Justiça também efetuou com clareza a distinção entre a função

investigatória e de polícia judiciária:

[...] Diversamente do que se tem procurado sustentar, como resulta da letra de seu artigo 144, a Constituição da República não fez da investigação criminal uma função exclusiva da polícia, restringindo-se, como se restringiu, tão-somente a fazer exclusivo da Polícia Federal o exercício da função de polícia judiciária da União (parágrafo 1º, inciso IV). Essa função de polícia judiciária – qual seja, a de auxiliar do Poder Judiciário – não se identifica com a função investigatória, qual seja, a de apurar infrações penais, bem distinguidas no verbo constitucional, como exsurge, entre outras disposições, do preceituado no parágrafo 4º do artigo 144 da Constituição Federal [...] (STJ – Recurso Especial n. 2001/0191236-6; DJ de 15 dez. 2003, p. 00413; relator ministro Hamilton Carvalhido) [grifo nosso].

22 Sobre a expressão polícia judiciária no ordenamento jurídico brasileiro e a evolução de seu significado: RIBEIRO, Diaulas Costa. A prerrogativa constitucional do Ministério Público para exercer o controle externo da atividade policial. Revista Jurídica Consulex, ano 8, n. 184, 15 set. 2004, p. 16-17.

23 No mesmo sentido, distinguindo as funções de investigação e de polícia judiciária, com diversos exemplos, cf. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 64.

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Sendo evidente a distinção entre uma e outra função, a ratio essendi do art. 144, § 1º, IV, da

CF/88 só pode ser a de conferir exclusividade das funções de polícia judiciária da União à polícia

federal para, com isso, afastar das demais polícias essa atribuição. O simples propósito dessa

exclusividade, destarte, é a distribuição de funções, nos moldes em que ocorreu com diversas outras

atribuições entre os entes federados.

Feitas todas essas considerações, não se pode descurar do fato de que a investigação criminal

é, juntamente com a repressão à prática de crimes (no que diz respeito à polícia federal, em algumas

infrações penais [art. 144, § 1º, II e III] – função de policiamento ostensivo – que no caso dos estados

toca às polícias militares [art. 144, § 5º, da CF/88]), a atividade primordial da polícia (não é por outro

motivo que essa atribuição é focada no primeiro dos incisos do § 1º do art. 144 da CF/88).

A relevância da distinção entre uma e outra função conferidas às polícias reside atualmente,

sobretudo, na polêmica a respeito da possibilidade de o Ministério Público realizar investigações

criminais diretamente. No STF, há algumas ações diretas que têm esse tema como objeto principal;

no STF, no STJ e nos vários tribunais e juízos estaduais e federais têm sido rotineiros

questionamentos individuais provindos de réus em processos criminais deflagrados com base em

investigações conduzidas diretamente por membros do MP24. O argumento central dessas investidas é

a alegada exclusividade da atribuição para investigar crimes, que teria sido prevista, no que diz

respeito à polícia federal, pelo art. 144, § 1º, inciso IV. Ignora-se (ou se quer ignorar) que o inciso IV

é explícito ao tratar da função de polícia judiciária, e não da função de apuração de infrações penais.

Como já afirmou Eros Roberto Grau, “não se interpreta a Constituição em tiras, aos

pedaços”25. A tese da exclusividade da investigação pela polícia incide precisamente nesse erro. A

exegese é tão canhestra que é difícil crer que quem a professe não tenha “percebido” o inciso I do §

1º nem o § 4º do mesmo art. 144. Mas, por incrível que pareça, esse ainda é o principal argumento

que se tem invocado na defesa da tese da impossibilidade da investigação pelo Ministério Público.

24 A discussão sobre a constitucionalidade da investigação direta pelo Ministério Público, que outrora se concentrava no chamado caso “Remi Trinta” (INQ 1.968-DF), foi reaberta pelo STF em 11.6.2007, no julgamento do HC n. 84.548/SP, impetrado por Sérgio Gomes da Silva (conhecido como “o Sombra”). Com base em elementos colhidos pelo Ministério Público paulista, Sérgio Gomes foi denunciado pelo homicídio do então prefeito do município de Santo André, Celso Daniel, em janeiro de 2002. Além de diversos casos concretos nos quais o STF tem sido instado a decidir sobre a validade de atos investigatórios realizados diretamente pelo MP, é possível que aquele tribunal venha a se pronunciar em definitivo sobre o tema pela via do controle concentrado. Em 22.7.2003, o Partido Liberal ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI n. 2943-6, pugnando pela suspensão da eficácia dos dispositivos da Lei Complementar n. 75/1993 e da Lei n. 8.625/1993, que tratam da investigação pelo MP. Mais recentemente, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL) ajuizou a ADI n. 3.806 (distribuída em 10.10.2006), arguindo a inconstitucionalidade da Resolução n. 13 do Conselho Nacional do Ministério Público, que regulamentou a LC n. 75/1993 e a Lei n. 8.625/1993, disciplinando os procedimentos de investigação criminal do MP. Semanas depois, em 19.12.2006, a OAB ajuizou a ADI n. 3.836, questionando a constitucionalidade da mesma Resolução n. 13 do CNMP. Todas essas ações ainda esperam uma decisão do STF. O argumento fulcral das referidas iniciativas é a suposta exclusividade da investigação policial, conforme permitiria concluir o art. 144 da CF/88.

25 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 145.

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No Brasil, não é de hoje que se reconhece a atribuição investigatória a órgãos diversos da

polícia. O próprio CPP (de 1941), em seu art. 4º, fixa que a atribuição para a apuração de infrações

penais e sua autoria cumpriria à polícia, deixando claro, em seu parágrafo único, que “a competência

definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a

mesma função” [grifo nosso]. Em verdade, há diversos exemplos de investigações conduzidas por

órgãos distintos da polícia. Podem ser lembradas, nessa esteira, as investigações realizadas pela

Receita Federal e Receitas estaduais (Delegacias da Receita e seus Escritórios de Inteligência –

ESPEI); Banco Central (Departamento de Ilícitos Cambiais e Financeiros – DECIF e Conselho de

Coordenação de Atividades Financeiras – COAF); Controladoria-Geral da União; Instituto Nacional

do Seguro Social – INSS (crimes contra a previdência social); Delegacias do Trabalho (crimes contra

a organização do trabalho, especialmente o trabalho escravo); IBAMA e órgãos estaduais de proteção

do meio ambiente (infrações penais ambientais); as agências reguladoras (ANP, ANS, ANATEL etc.);

no Poder Legislativo, as Comissões Parlamentares de Inquérito (art. 58, § 3º, da CF/88) e a

Corregedoria da Câmara dos Deputados ou do diretor do serviço de segurança (no caso da prática de

uma infração penal nos edifícios da Câmara dos Deputados – art. 269 do Regimento Interno da

Câmara), além dos órgãos correlatos das assembleias estaduais e câmaras municipais; no Judiciário, a

investigação de ilícitos praticados por magistrados (art. 33 da Lei Complementar 35/197926) e o

inquérito promovido pelo Supremo Tribunal Federal, no caso de crime cometido em sua sede ou

dependências (Regimento Interno do STF, art. 43).

No sistema processual brasileiro, o inquérito policial – instrumento de investigação a cargo

das autoridades policiais – é um procedimento não essencial ou dispensável. Assim, consoante

plenamente assentado, a ação penal pode ser promovida independentemente da instauração (ou das

conclusões) de um inquérito policial, desde que o MP (ou o particular, no caso da ação penal privada)

esteja munido de outros elementos aptos a convencê-lo quanto à plausibilidade da acusação. A

legislação processual penal brasileira nomina esse conjunto de elementos diverso do inquérito

policial, simplesmente, de “peças de informação” (art. 28 do CPP).

Sendo uma das funções das polícias a investigação de ilícitos penais, e sendo o inquérito

policial o instrumento típico de documentação dessas investigações, é natural que grande parte das

demandas penais seja ajuizada com base nos elementos de convicção colhidos e produzidos pela

polícia. Ocorre que os elementos de convicção podem ser coletados por outro ente estatal que tenha

atribuição para apurar os fatos, tenham ou não esses fatos, a priori, um caráter criminal. No exercício

regular de suas atividades, diversos órgãos podem obter e produzir elementos por si sós suficientes

para a formação da opinio delicti. Por dever de ofício, sendo a ação penal de inciativa pública, esses

órgãos hão de encaminhar tais peças de informação ao Ministério Público, que, por sua vez, pode 26 Trata-se, é importante registrar, de uma norma de constitucionalidade duvidosa, por violação ao princípio acusatório.

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desde logo deflagrar o processo penal respectivo, independentemente da prévia instauração de um

inquérito policial. Quando labora na colheita de elementos que configurem uma infração penal, o

ente estatal, seja a polícia, seja qualquer outro órgão, está investigando. Nada importa que as

investigações tenham foco imediato não na persecução penal, mas noutro fim para o qual o órgão

esteja legal e constitucionalmente dedicado.

Nesses termos, a tese da exclusividade da investigação criminal policial tem apenas uma

aparência de “garantista”, por supostamente conferir ao cidadão uma proteção contra investigações

conduzidas por autoridades desprovidas de atribuição para tanto (segundo defendem os adeptos da

tese). Superada a questão hermenêutica – dado que apontado o equívoco da pretendida leitura do art.

144 da CF/88 –, a falácia é completamente desconstruída, no plano fático, ao se constatar que o

cidadão comum – ou, melhor dizendo, o cliente tradicional do (seletivo) direito penal brasileiro – não

parece ter grandes restrições à atuação do Ministério Público (ou de outros órgãos da administração

pública) na atividade persecutória27. A tese da exclusividade tem sido invocada, geralmente, pela

defesa de criminosos do colarinho branco, em crimes de grande repercussão social (mas de

vitimização difusa), envolvendo altas autoridades, políticos e grandes empresários – antes, como já

frisamos, jamais incomodados pela justiça penal.

4 Autoridade policial, “independência funcional” e “livre convencimento”

Se existem dispositivos da Constituição Federal dos quais não se pode reclamar de “falta de

precisão” ou de “clareza”, esses dispositivos são os incisos VII e VIII do art. 129 da Carta Política.

Eis o que prescrevem:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

[...]

VII – exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;

VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; [...] [grifo nosso].

No mesmo sentido, veja-se o que estatuem o art. 7º da LC n. 75/9328 e o art. 13, II, do Código

de Processo Penal:

27 Não é porque conduzida por ente diverso da polícia que a investigação do Ministério Público, bem como de qualquer outro órgão da administração, poderá desrespeitar os direitos fundamentais do investigado. É precisamente para assegurar tal proteção que, e.g., no que diz respeito às investigações do MP, foi editada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) a Resolução n. 13, de 2.10.2006, que regulamenta o art. 8º da LC n. 75/1993 e o art. 26 da Lei n. 8.625/1993, disciplinando a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal. Ali estão previstos, entre outros, a necessidade de participação dos investigados (art. 7º), a forma, os requisitos e os prazos para a instauração e para a conclusão das investigações e as regras atinentes à publicidade dos atos.

28 Para os Ministérios Públicos dos Estados, o dispositivo análogo (referente ao poder de requisição) é o art. 26, IV, da Lei n. 8.625/1993.

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Art. 7º Incumbe ao Ministério Público da União, sempre que necessário ao exercício de suas funções institucionais:

[...]

II – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, podendo acompanhá-los e apresentar provas;

[...]

Art. 13. Incumbirá ainda à autoridade policial:

[...]

II – realizar as diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público; [...] [grifo nosso].

Em que pese a redação inequívoca dos mencionados dispositivos, não falta, hoje, quem

pretenda impedir ou restringir sua incidência – notadamente autoridades policiais a que se dirigem

requisições29 ou que são alvo de procedimentos de controle externo da atividade policial promovidos

pelo Parquet. Uma marcante demonstração dessa irresignação foi o recente ajuizamento de uma ação

direta de inconstitucionalidade (ADI n. 4271/2009) pela Associação dos Delegados de Polícia do

Brasil (ADEPOL), contestando as leis orgânicas do Ministério Público (LC n. 75/1993 e Lei n.

8.625/1993) e a Resolução n. 20/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que

trata precisamente do controle externo da atividade policial pelo MP. Ainda como desdobramento da

recalcitrância em se dar efetivo cumprimento ao comando constitucional, já se começa a afirmar que

autoridades policiais são dotadas de “livre convencimento” – de modo idêntico ao que têm as

autoridades judiciais! – para obedecer ou desobedecer às requisições do MP, e que são (ou deveriam

ser) dotadas de “independência funcional”, tal qual conferida aos membros do Parquet (e,

implicitamente, aos membros do Poder Judiciário, como decorrência do dever de imparcialidade, do

sistema recursal e da estrutura do Judiciário brasileiro). Veja-se o que afirmam Luiz Flávio Gomes e

Fábio Scliar:

A autoridade policial, munida do poder discricionário na condução da investigação, só deve satisfações à lei. Não obstante a Polícia Judiciária seja órgão da Administração, sujeita ao princípio da hierarquia, esta não interfere no âmbito do inquérito criminal. Aqui, o delegado de polícia age com ampla liberdade em função da natureza da atividade que realiza.

A condição de autoridade que reveste o cargo de delegado, faz (sic) com que aja com completa independência na condução da investigação policial, desautorizando qualquer determinação que seja contrária à sua convicção. Desta forma, não pode o chefe da delegacia determinar que o delegado instaure inquérito policial, indicie, prenda ou execute determinada diligência se com estas decisões a autoridade não concordar.

[…]

O mesmo raciocínio se aplica ao Ministério Público que (sic) no decorrer da investigação fica jungido a executar apenas o controle externo determinado pelo constituinte.

[…]

A possibilidade de o membro do parquet requisitar diligências, é (sic) limitada pela necessidade de

29 É curioso que somente agora, quando o (batido) Código de Processo Penal conta com quase setenta anos de vigência, queira se questionar o poder de requisição do MP em sede de investigação criminal.

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fundamentação de suas manifestações e pela ampla discricionariedade que tem o delegado de polícia na condução do apuratório, tendo plena autonomia técnica e tática na direção da investigação, podendo por isso mesmo rejeitar, sempre fundamentadamente, requisições impertinentes, desarrazoadas ou apresentadas a destempo30 e 31.

Na esteira desse posicionamento, mas reconhecendo a inexistência, no plano constitucional,

da (por alguns) almejada independência funcional de delegados de polícia, tramita atualmente no

Congresso Nacional a proposta de Emenda Constitucional n. 293/2008, de autoria do deputado

federal Alexandre Silveira (delegado de polícia em Minas Gerais). Pela proposta, que pretende alterar

o art. 144 da CF/88, atribuir-se-ia aos delegados não só independência funcional, mas também as

garantias da vitaliciedade e inamovibilidade, iguais às previstas para magistratura e para o Ministério

Público.

O entendimento pela independência funcional e pelo livre convencimento de delegados de

polícia na investigação criminal não se restringe, hoje, ao plano meramente teórico ou legislativo. A

esse propósito, eis o que (surpreendentemente) já orienta a Corregedoria-Geral da Polícia Federal

(COGER-DPF) aos seus delegados:

10. Daí, conclui-se que o Ministério Público não pode requisitar, quando da instauração do inquérito policial, que a autoridade policial realize a oitiva de uma ou outra pessoa e que produza essa ou aquela prova. A autoridade policial tem seu livre convencimento para praticar os atos de investigação no momento que considerar mais oportuno, bem como quando concluir que determinado ato é relevante e necessário para a elucidação do ilícito penal.

11. A presidência do inquérito policial pertence à autoridade policial, a qual conduzirá o procedimento desde a instauração até o relatório, não sendo admissível qualquer ingerência na instrução e condução deste, nem de superior hierárquico da autoridade policial (o qual, se for o caso, poderá, desde que justificadamente, avocar o feito) e muito menos do Ministério Público.

[...]

18. [...] sugere-se às autoridades policiais que as (sic) aquelas requisições de diligências sejam consideradas meras sugestões do Ministério Público Federal, sendo a autoridade policial inteiramente livre para apreciar tais sugestões, acatando-as ou não, de acordo com seu convencimento (Parecer n. 29/2008-SELP/CGCOR/COGER) [grifos nossos].

O entendimento acima apresentado é absolutamente equivocado.

Requisição, em sentido jurídico estrito, é sinônimo de ordem, determinação; o não 30 GOMES, Luiz Flávio; SCLIAR, Fábio. Investigação preliminar, polícia judiciária e autonomia. Disponível em:

<http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20081020154145672>. Acesso em: 4 ago. 2009.31 Os articulistas também citam Ferrajoli, mas a passagem transcrita não parece traduzir nenhum apoio à tese da

independência funcional da polícia, tal qual pretendem: “En particular la policía judicial, encargada de la investigación de los delitos y de la ejecución de las decisiones judiciales, debería estar rigidamente separada de los demás cuerpos de policía y dotada de las mismas garantías de independencia frente al ejecutivo que el poder judicial, del que debería depender en exclusiva” (FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. 2. ed. Madrid: Trotta, 1997, p. 767). Pois bem: na Itália, magistratura e Ministério Público fazem parte de uma carreira única (art. 107 da Constituição italiana), sendo ambos autoridades judiciárias. Lá, os membros do MP nada mais são que magistrati in servizio in uffici giudiziari requirenti – ou simplesmente magistratura requerente. Ao advogar a necessidade de separar a polícia investigativa das demais polícias e de submetê-la ao controle do poder judicial, o que defende Ferrajoli é sua retirada da esfera de ingerência (independência) do poder executivo, permanecendo dependente em relação àquele (poder judicial), exclusivamente. E Ferrajoli pode afirmar isso precisamente porque, na Itália, “l’autorità giudiziaria dispone direttamente della polizia giudiziaria” (art. 109 da CI).

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atendimento a uma requisição sujeita o destinatário da ordem a sancionamento pelo crime de

desobediência32 ou prevaricação (conforme o enquadramento penal que se entenda adequado), além

de caracterizar ato de improbidade administrativa.

Nada impede – muito ao contrário, é bastante recomendável – que a autoridade policial, ao

deparar-se com uma requisição do Ministério Público que entenda impertinente, desarrazoada ou

extemporânea, solicite ao Promotor natural do caso esclarecimentos quanto àquela diligência

pretendida – até mesmo ponderando sobre sua desnecessidade ou impertinência para a investigação.

O que não pode fazer é, simplesmente, ao seu talante, negar cumprimento a uma ordem emanada do

Ministério Público33. Mas o problema é ainda mais grave que o simples desprestígio ao princípio da

legalidade.

A razão para que não se tenha conferido, na lei ou na Constituição, independência funcional a

autoridades policiais é bastante simples (e deveria ser óbvia). O Brasil precisou de mais de duas

décadas para superar um regime ditatorial, em que instituições armadas atuaram de forma

independente, sobrepondo-se ao poder civil. É princípio basilar da democracia que uma instituição

armada – qualquer que seja esta – seja uma instituição subordinada, dependente de ordens ou

comandos que lhe sejam exteriores. A polícia e outras instituições armadas exercem, em nome do

Estado (e da sociedade a que este serve), o monopólio da força, da violência – tendo por base a lei e

sempre com vistas na proteção de interesses que, concretamente, sejam superiores ao bem jurídico

afetado pela coação praticada. Para que exerça legitimamente o monopólio da violência do Estado, é

crucial que o órgão ou instituição armada se submeta a limites e controles severos, sob pena de, na

prática, possibilitar-se a esse órgão desafiar qualquer um dos poderes constituídos (que, afinal, não

exercem diretamente o monopólio da violência34). É a mesma lógica que impõe, por exemplo, as

limitações ao direito de greve das polícias e outras instituições responsáveis diretas pela segurança

nacional e pela segurança pública35.

32 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ministério Público do Trabalho: doutrina, jurisprudência e prática. 3. ed. São Paulo: LTr, 2006. p. 291-292.

33 Ressalve-se, sem embargo, a (excepcionalíssima) situação de se tratar de uma ordem manifestamente ilegal, hipótese em que o membro do Ministério Público possivelmente terá cometido um crime (no mínimo, um abuso de autoridade) e um ato de improbidade administrativa, sendo dever da autoridade policial comunicar o fato ao Procurador-Geral de Justiça ou ao Procurador-Geral da República para que promovam, conforme o caso, o imediato afastamento e/ou a prisão do promotor ou do procurador responsável.

34 Não se diga que membros do Ministério Público ou do Poder Judiciário, por terem porte de arma (conforme previsto em lei), seriam equiparáveis às polícias e também exerceriam o monopólio da violência. O raciocínio é pueril. Promotores e juízes podem portar armas como instrumento de defesa, e apenas extraordinariamente podem praticar um ato de violência (ato que, a rigor, pode ser praticado por qualquer cidadão, em defesa própria ou de terceiro); as autoridades policiais, por sua vez, utilizam armas como instrumento de trabalho e exercem (legitimamente) a violência como modo de execução cotidiana de suas atividades. Para as polícias, a possibilidade de praticar determinados atos é verdadeira condição para sua atuação; a violência (quando legitimada) é, por assim dizer, seu instrumento de trabalho.

35 Nos termos do art. 142, §4º, IV, da CF/88, aplicável, por analogia, também às polícias civis, conforme decidido em liminar do ministro Eros Grau na Reclamação n. 6.568. Cumpre gizar que, no julgamento da mencionada reclamação pelo pleno do STF, findou-se por afirmar que a competência para o caso, nos aspectos em que não se cuidava

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As polícias têm a prerrogativa (e eventualmente o dever) de portar armas em meio aos

cidadãos comuns. Seja realizando o policiamento ostensivo, seja exercendo outras atividades (como

atos de investigação criminal ou em apoio a atos ou decisões do Judiciário – função de polícia

judiciária), as autoridades policiais, armadas, podem praticar atos coativos, de constrangimento físico

e de limitação de direitos fundamentais. É precisamente para evitar tentações de abuso desse

extraordinário poder que se impõe o estrito respeito à hierarquia e a submissão ao controle tanto de

superiores (controle interno) quanto do Ministério Público (controle externo).

Conferir independência a uma instituição armada (ou a seus integrantes), como é o caso das

polícias, representaria uma contradição interna a nossa democracia – verdadeiro “ovo da serpente”

para o recrudescimento de conceitos que, cremos todos, já deveriam estar há muito sepultados.

Na reivindicação de independência às autoridades policiais costuma-se rogar pela necessidade

de maior eficiência da investigação, de forma a torná-la imune a ingerências que desviem seu foco ou

prejudiquem seus resultados. Ocorre que, desobrigando-se a polícia do controle a ser exercido pelo

MP, é exatamente a eficiência da investigação (no sentido garantista do termo) que é posta em risco,

tanto sob o aspecto da proteção dos direitos fundamentais dos investigados quanto do justo

sancionamento dos responsáveis pela prática de um ilícito penal. Com efeito, atuando a polícia de

maneira independente, imbuída de “livre convencimento” e sem o controle externo do MP, abre-se

maior espaço para o cometimento de abusos contra o investigado – uma vez que mais facilmente

seriam praticadas violações a direitos fundamentais pela autoridade – e menos qualificado tenderá a

ser o conjunto de elementos probatórios (lato senso) reunidos – dado que a investigação correrá

propriamente de uma afronta a decisão sua, seria da Justiça comum do Estado de São Paulo. Entretanto, diversos ministros adentraram o mérito, para assim discorrerem:

“‘O fato de haver um movimento paredista de pessoas armadas já é suficiente para a reflexão. Não é uma greve pacífica por definição. Existe o potencial de conflito’, afirmou o presidente do tribunal, ministro Gilmar Mendes.

[...] no caso, os servidores eram policiais civis de São Paulo, o que gerou a discussão sobre a greve de servidores armados.

Quem levantou a questão foi o relator do processo, ministro Eros Grau. Ele citou jurisprudência de cortes constitucionais da Itália, França e Espanha, que proíbem a greve de policiais sob o fundamento de que se trata de um setor essencial que visa a proteger direitos fundamentais do cidadão. Para Eros, o direito de greve deve ser relativizado nos casos de serviços que garantem a ordem pública. ‘A recusa da prestação de serviços público essencial é inadmissível’, disse.

Ao endossar a posição do relator, o ministro Gilmar Mendes acrescentou que há categorias cuja greve é inimaginável. É o caso, segundo ele, de juízes, responsáveis pela soberania do Estado. O tema, observou, está atualmente em debate na Espanha. ‘Quem exerce parte da soberania não pode fazer greve’, sustentou.

Os ministros Cezar Peluso e Celso de Mello concordaram com os colegas. O ministro Carlos Britto também concordou que, no que diz respeito a greves, os policiais não podem ser tratados como qualquer outro servidor público” (Movimento armado: STF sinaliza que policiais não podem fazer greve. Consultor Jurídico, São Paulo, 21 maio 2009, Seção Notícias. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-mai-21/ministros-stf-sinalizam-policial-nao-greve>. Acesso em: 4 ago. 2009) [grifos nossos].

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absolutamente alheia à opinio delicti de seu verdadeiro destinatário36 e 37.

5 Conclusões

Espera-se terem sido apresentadas, no presente artigo, noções elementares que permitam a

superação de alguns equívocos bastante comuns a respeito da investigação criminal no Brasil. Talvez

também tenha ficado clara ao leitor a estreita inter-relação dos três temas: cada um dos equívocos se

baseia no outro e, ao mesmo tempo, dá supedâneo ao outro (algo como uma “retroalimentação” de

conceitos deturpados). Afirma-se que a polícia é a destinatária das investigações, para com isso se

afirmar a necessidade de independência funcional e para delegados de polícia; afirma-se que a função

de polícia judiciária é o mesmo que a função de investigar crimes, para com isso se afirmar a

exclusividade de tal atribuição e, consequentemente, sua prevalência sobre a atuação do Ministério

Público; afirma-se que delegados de polícia são dotados de livre convencimento, para que não se

sujeitem ao controle do Ministério Público, destinatário da investigação; etc.

A correção dos apontados mitos por certo contribuirá para a consolidação de um processo

penal sintonizado com as necessidades de uma sociedade que almeja a correta aplicação do direito

penal e o respeito aos direitos fundamentais individuais e coletivos previstos em nossa Constituição –

direitos, ressalte-se sempre, titularizados não só por investigados e acusados, mas por toda a

sociedade. É um reclamo antigo, possivelmente tão antigo quanto os abusos cometidos contra os

indivíduos sujeitos a uma investigação ou a um processo penal – titulares de direitos que devem ser

dia a dia reafirmados –, a solução (ou, ao menos, o abrandamento) do gravíssimo problema da

impunidade vicejante em nosso país.

Referências

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36 Em sede de investigação criminal, o órgão para o qual se justifica o atributo da independência funcional é exatamente o Ministério Público, que, com respaldo nessa independência, tem o poder/dever de requisitar diligências, além de promover o controle externo da atividade policial. É precisamente tal poder de requisição (aliado a um eficiente controle externo) o mecanismo pelo qual se impede que, em razão de “ingerências indevidas” – de políticos, autoridades superiores etc. –, a autoridade policial (o delegado) se omita ou se desvie dos necessários rumos da investigação. E o Ministério Público é (e deve ser) independente porque, embora tenha poder de iniciativa (seja para deflagrar a ação ou medida processual correspondente, seja para simplesmente determinar, à autoridade policial, a realização de alguma diligência), não ostenta o poder de execução material de tais medidas (se não todas, certamente aquelas que exijam o uso da força), que têm as polícias.

37 Considerando que cabe ao Ministério Público, e não ao delegado, promover o arquivamento do inquérito ou deflagrar a ação penal correspondente, é de se indagar, afinal, quais seriam a utilidade e o propósito de uma investigação “independente” da autoridade policial.

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