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    TREINAMENTO DO ATOR

    PLANO PARA A REINVENO DE SI

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    TATIANA CARDOSO DA SILVA

    TREINAMENTO DO ATOR

    PLANO PARA A REINVENO DE SI

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em ArtesCnicas, do Instituto de Artes da UFRGS como exigncia parcialpara obteno do grau de Mestre em Artes Cnicas, sob a orientaoda Profa. Dra. Marta Isaacsson de Souza e Silva.

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    Porto Alegre 2009

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    FOLHA DE APROVAO

    AIANA CARDOSO DA SILVA

    TREINAMENTO DO ATOR

    PLANO PARA A REINVENO DE SI

    Dissertao de MestradoPara a obteno do titulo de Mestre em Artes CnicasUniversidade Federal do Rio Grande do SulInstituto de Artes Artes CnicasPrograma de Ps-Graduao em Artes Cnicas

    Banca examinadora:

    1) Professor Doutor Renato Ferracini (UNICAMP)

    2) Professora Doutora Ins Alcaraz Marocco (UFRGS)3) Professora Doutora Mirna Spritzer (UFRGS)

    Porto Alegre 2009

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    Aos meus mestres.Aos atores.

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    AGRADECIMENTOS

    Muito obrigada, minha orientadora, Marta Isaacsson, pela ajuda constante, correes impecveis,

    esprito crtico e pelo bom humor, na conduo da minha experincia.

    Muito obrigada, Renato Ferracini, por toda ajuda nessa caminhada. Desde a carta de

    apresentao ao PPGAC, at as valiosssimas contribuies de amigo, colega e banca. Sinto-me

    em falta contigo, pelo tempo que no tive, para me dedicar, como deveria, a Deleuze e a Bergson.

    Muito obrigada, Ins Marocco, pelo interesse que dedicou ao meu trabalho, pelosconselhos durante todo o percurso do mestrado, e pelas consideraes precisas e finais da

    banca.

    Muito obrigada a todos os professores, colegas e funcionrios do PPGAC da UFRGS,

    especialmente Mirna, pela sensibilidade e ateno ao meu processo, e tambm por ter aceitado

    fazer parte da banca final. Silvia Ballestreri, pelas suas indicaes deleuzeanas. Ao Joo Pedro

    Gil, pelo interesse ao trabalho.

    Muito obrigada ao Departamento de Arte Dramtica da UFRGS e coordenao da

    UERGS/FUNDARE, pelos espaos para o treinamento e para as apresentaes das duas

    demonstraes tcnicas da pesquisa.

    Muito obrigada, Iben Nagel Rasmussen e Carlos Simioni, pelos ensinamentos preciosos,

    e por me apresentarem um ao outro: O Carlos Iben pela primeira vez, e Iben, ao Carlos, pelo

    menos uma vez por ano.

    Muito obrigada, Maria Lcia Raymundo in memoriane Irion Nolasco, pelas valiosas

    sementes plantadas.

    Muito obrigada dedicao e cumplicidade de todos os atores que fizeram parte dessa

    pesquisa: Aline Marques, Cassiano Azeredo, Everton dos Santos, Fbio Castilhos, Giovanna

    Zottis, Lindon Satoru Shamizu, Marcelo Bulgarelli e Simone De Dordi.

    Muito obrigada Marcelo Bulgarelli, por ter coordenado a produo do retiro e do

    DVD.

    Muito obrigada Jackson Zambelli e Bianca Flores, pelos registros em vdeo.

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    Muito obrigada, Carol Peter, pela parceria distncia e por ter me apresentado o Michel

    Serres. Foi com vocs dois, que comecei a operar meu mestrado, e com vocs, que termino esta

    dissertao.

    Muito obrigada Oloir e Lucy, meus pais, por me salvarem tantas vezes, nessa e em tantas

    outras ocasies, alimentando minha casa, meu filho e minha alma com seu amor e dedicao

    incondicionais.

    Muito obrigada Nikolaj e eodoro, por fazerem parte da minha vida e serem os

    responsveis pelo impulso cotidiano para a reinveno de mim mesma.

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    u queres que eu te fale da dana e do teatro!

    eatro na dana e dana no teatro.u queres que eu te revele as minhas habilidades tcnicas e meus segredos!

    Ou talvez tu esperas que eu rasgue o corao de todos os personagensque representei ao longo dos anos e os sirva,

    ainda palpitantes, em uma bandeja, como uma dana macabra?alvez tu acreditas ter entendido, mas eu te digo:

    De onde te sentas, de onde olhas, e com todos os cadernos do mundonunca sers capaz de capturar o segredo.

    Atrs da mscara, do outro lado, dentro da dana mesmaVive o grande pas da sabedoria.

    Dana, dana e entenders...mas s entoOh, paradoxo dos paradoxos,

    As minhas palavras sero as tuas palavras, o teu falar como o meu falarSomente uma sombra do real.

    Iben/rickster

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    RESUMO

    Esta pesquisa busca ampliar os estudos sobre a formao do ator visando identificar e explorar

    princpios e procedimentos que promovam a autonomia tcnica e criativa do ator no exerccio

    profissional. A proposta de treinamento tem por base as prticas de Constantin Stanislavski,

    Jerzy Grotowski, Eugenio Barba e das experincias junto ao grupo Internacional Vindenes Bro,

    dirigido por Iben Nagel Rasmussen. Por meio de um treinamento fsico e vocal, realizado com

    oito atores, busca-se o aprofundamento do exerccio sobre si mesmo, de forma a promover oacesso a um corpo-mente orgnico, a presena e a capacidade de composio de repertrio prprio

    para a criao. O trabalho experimental, registrado em vdeo e acompanhado de questionrios

    respondidos pelos atores e notas pessoais de cada membro do grupo, constitui a base da reflexo

    sobre o processo de recepo e apropriao dos exerccios propostos, reconhecendo as alteraes

    e respectivas motivaes ao longo da experincia. A reflexo terica tambm nutrida pelo

    pensamento de diferentes disciplinas.

    Palavras chave:

    Ator treinamento autonomia

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    ABSTRACT

    Te research is an attempt to extend the study of the formation of the actor, aiming at the

    identification and the exploration of principles and procedures which cultivate the technical

    and creative autonomy of the professional training of the actor. Te training principles are

    built on the practises of Constantin Stanislavski, Jerzy Grotowski and Eugenio Barba and on

    the experiences achieved together with the international group Vindenes Bro (Bridge of the

    Winds) directed by Iben Nagel Rasmussen. By means of physical and vocal training, broughtinto practise by eight actors, this study aims at the exploration of Te Exercise On One Self

    in order to achieve access to an organical Body-Mind, to the presence of the actor and to the

    capability to compose ones own repertoire during the creation. Te experimental work, video-

    recorded and accompanied by questionaires answered by the students as well as by the personal

    annotations by each group member, constitutes the base for the reflection upon the reception and

    appropriation of the suggested exercises, recognising the alterations and individual motivations

    during the process. Te theoretical reflexion is also nourished by other disciplines thinking.

    Keywords:

    Actor training autonomy

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    SUMRIO

    1. Introduo 11

    2. Ator autor de si 16

    3. Quem (corpo) eu sou? 24

    4. Dilogo com atores 32

    4.1 Presena 43

    4.2 Imanncia 59 4.3 Formas em ao 66

    4.4 ornar-me contigo 86

    4.5 Possibilidades de vida 106

    4.6 Autonomia com dependncia 119

    5. Concluso 132

    6. Anexo 138

    7. Referncias 139

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    LISTA DE FOTOS

    1. Capa. Everton E. Santo. reino, janeiro 2008.

    2. P. 16. Grupo de atores, na demonstrao tcnica. DAD, UFRGS. Abril 2008.

    3. P. 24. Giovanna Zottis, na demonstrao tcnica. DAD, UFRGS. Abril 2008. Foto: F. Len

    Kiran.

    4. P. 32. Grupo de atores, na demonstrao tcnica. DAD, UFRGS. Abril 2008. Foto: F. Len

    Kiran5. P. 117. Lindon S. Shimizu, Marcelo Bulgarelli e Simone De Dordi. DAD, UFRGS. Abril

    2008. Foto: F. Len Kiran.

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    1. INTRODUO

    odos sabemos que a maior parte da vida escapa aos nossos sentidos:

    a mais poderosa explicao das vrias artes que elas falam de temas que s podem comear a reconhecer

    quando se manifestam em ritmos ou em formas.

    Observamos que o comportamento dos seres humanos, de multides, da histria,

    obedece a estes temas que se repetem.

    Sabemos que trombetas destruram os muros de Jeric,

    reconhecemos que uma coisa mgica como a msica

    pode vir de homens de casacas e gravatas-borboleta brancas, que sopram,repercutem, harpejam e arranham.

    Apesar dos mtodos absurdos que a produzem, reconhecemos o concreto atravs do abstrato,

    compreendemos que homens e seus instrumentos desajeitados

    so transformados por uma arte de posse.

    Podemos fazer um culto de personalidade ao maestro,

    mas sabemos que no ele quem faz a msica, ela quem o est fazendo

    se ele est relaxando, entregue e sintonizado, ento o invisvel toma posse dele;

    e atravs dele, chega ate ns.1

    Minha vontade de treinar partiu justamente de um senso de eliminao. Queria experimentar

    algo que fosse diferente do teatro que me constrangia, ou seja, aquele onde tudo j estava dado:

    a encenao seguia as determinaes do texto dramatrgico, os atores seguiam as marcas dadas

    pelo diretor e a ao era criada atravs de improvisaes que buscavam reproduzir apenas a

    primeira idia que a fbula sugeria. Buscava um teatro que me colocasse beira de um abismo,

    onde o prximo passo deveria ser inventado constantemente, onde criar fosse uma aventura,

    deixando, ou pelo menos tentando deixar para trs, tudo que fosse previsvel. Eu queria fazer

    um teatro que eu no conhecia, nem sabia como fazer. Ao experimentar o treinamento do ator,

    percebi que ali deveria ser um bom ambiente para descobrir um teatro que eu no conhecia. Nas

    primeiras vezes que experimentei um processo artstico, que tinham, eminentemente, um carter

    investigativo, eu obtive uma mostra de como eu poderia, por fim, guiar o meu processo pessoal.

    Eu experimentava no meu corpo, meu limite. Eu encontrava aquele ponto divisor de guas, onde

    1 Peter Brook,1970, p. 39.

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    nada do que se faz pode ser menos, pela metade, quase ou pouco. udo era de uma intensidade,

    de uma profundidade, de uma verdade e de uma entrega absolutas. Corpo, alma, voz e energia

    integrados. Naquela experincia, eu conhecia e estava vislumbrando minhas potencialidades.

    Minhas primeiras experincias com o treinamento me fizeram ver que os exerccios

    tambm eram feitos por um sentido de eliminao. Exercitar no para reproduzir, mas para

    reinventar. A perspectiva que um trabalho cotidiano sobre si mesmo dava, se aproximava das

    minhas questes de atriz em formao. Eu necessitava de um espao para um trabalho que no

    fosse somente ligado produo de espetculos. Eu necessitava de um espao para a pesquisa,

    para a investigao de que espcie de artista eu poderia ser, e consequentemente, de que arte

    fazer.Mergulhar na prpria in-com-cincia, ir a todas as direes de mim mesma, atirando-

    me em pequenos poos de satisfao por estar em consonncia com meu desejo, experimentar

    a sensao de construir o prprio caminho, passo a passo, tropeo a tropeo. er a satisfao de

    procurar identificar minha prpria fome, e encontrar ou ver com meus prprios olhos que no

    tinha - meios de saci-la. Era uma espcie de deslocamento de funo. Ao invs de descobrir

    como fazer teatro, os exerccios me colocavam em disponibilidade para o teatro fazer-me, e

    fazendo-me, lev-lo a outras pessoas, a outros lugares.

    O treinamento do ator acompanha, h muitos anos, minha caminhada como atriz e

    como orientadora de atores e esta dissertao nasce do desejo de aprofundar as questes que

    surgem com esta prtica.

    A presente pesquisa contemplou dois nveis, um experimental e outro terico, podendo

    ser caracterizada como uma pesquisa em arte, qualitativa, tendo por foco o investimento na

    autonomia formativa e artstica do ator.

    O trabalho de campo, ou experimental, se deu com a proposio, conduo, observao

    e interlocuo de um treinamento fsico a oito atores, com idade entre vinte e trinta e seis anos,

    que so nomeados aqui: Aline Marques, Cassiano Azeredo, Everton E. Santo, Fbio Castilhos,

    Giovanna Zottis, Lindon Satoru Shimizu, Marcelo Bulgarelli e Simone De Dordi. odos estes

    atores haviam sido meus alunos na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul em convnio

    com a Fundao de Artes de Montenegro (UERGS/FUNDARE). Os instrumentos de

    coleta de informaes utilizados por meio da observao participante foram: entrevistas semi-

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    estruturadas, dirios de trabalho e o registro em vdeo de grande parte da experincia, colhidos

    em diferentes momentos da pesquisa.

    O segundo nvel da pesquisa contemplou estudos tericos e anlise do contedo dos

    relatos dos atores e dos registros em vdeo produzidos ao longo do treinamento. A reflexo

    ganhou um vis interdisciplinar, na medida em que, em meus estudos, me cerquei de conceitos

    e princpios de diferentes reas de conhecimento para abordar os desafios da arte do ator. No

    considero ter eleito uma disciplina em particular, para conduzir minha reflexo e argumentao

    terica, apenas relacionei alguns conceitos de cincias, como por exemplo, a Neurobiologia ou a

    Filosofia, ou os estudos da Antropologia teatral, para aproximar-me daquilo que era meu objeto

    principal: a minha prtica e os prprios referenciais do teatro.A pesquisa de campo foi realizada em encontros sistemticos de trs horas cada,

    perfazendo um total de cento e setenta horas, entre julho de 2007 e abril de 2008, em trs fases

    distintas: uma fase de instrumentalizao, em uma semana em julho todos atores j conheciam

    a maior parte dos exerccios - uma fase de apropriao, durante todo segundo semestre de 2007

    e uma fase de transformao, a partir de janeiro de 2008, que culminou em uma semana de

    trabalho, em regime intensivo de retiro. Estivemos juntos mais dois meses, em maro e abril do

    mesmo ano, na preparao e apresentao de duas demonstraes tcnicas levadas a pblico.

    O registro em vdeo contempla um total de trinta e trs horas, o que permitiu a anlise

    das modificaes ocorridas conforme a apropriao do treinamento, pelos atores. Acompanha

    esta dissertao, em anexo, um DVD, com uma seleo de imagens realizadas durante o trabalho

    de campo, depoimentos dos atores e cenas das duas demonstraes tcnicas levadas a pblico,

    uma apresentada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, e outra

    na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul em convnio com a FUNDARE, em

    Montenegro, ambas realizadas em abril de 2008. Faz parte do DVD tambm, uma sesso de

    treinamento, na ntegra, tal como se configurou nos ltimos dias da pesquisa.

    Cabe salientar que a inteno, minha e dos atores, no foi a de construir um sistema

    ou mtodo, mas construir um espao, onde a experincia do treinamento estivesse associada

    a uma reflexo crtica. Busquei que tal reflexo viesse embasada pelo referencial terico que me

    acompanha na trajetria profissional, somado a pensadores da arte, das cincias humanas e da

    vida, de forma a contribuir para as discusses atuais sobre os princpios que sustentam a arte doator.

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    Antes de avanar propriamente nas reflexes dessa pesquisa, parece-me oportuno fazer

    um pequeno desvio sobre minha histria pessoal, resumindo as experincias de formao que

    foram e so responsveis pelo modo como o treinamento foi proposto e refletido aqui.

    Formei-me como atriz no curso Bacharelado em Artes Cnicas na Universidade

    Federal do Rio Grande do Sul em 1991. Durante a faculdade, de 1989 a 1990, participei da

    pesquisaAs energias corporais no treinamento do ator, coordenada pelos professores Irion Nolasco

    e Maria Lcia Raymundo. Foi uma pesquisa eminentemente prtica, sobre o mtodo das

    energias corporais de Arthur Lessac. Era a primeira vez que eu experimentava uma pesquisa

    cientfica, sistemtica, com um embasamento terico e prtico consistentes e com a regularidade

    e constncia mnimas que uma pesquisa em arte exige. Aquela experincia reverbera diretamenteneste estudo e influenciou muito o contedo abordado no trabalho prtico.

    Em 1990, tive minha primeira experincia de treinamento com Carlos Simioni, ator e

    pesquisador do grupo Lume, da UNICAMP, de Campinas. Simioni e o trabalho desenvolvido

    pelo LUME foram e so fundamentais para esta pesquisa, pois inspiram permanentemente

    minha maneira de fazer e pensar o teatro. ambm foi atravs de Simioni que conheci Iben Nagel

    Rasmussen, atriz do Odin eatret(Dinamarca), minha mestra. A partir de 1996, passei a integrar

    oficialmente o grupo Vindenes Bro, dirigido por Iben. um grupo de pesquisa e trocas culturais

    sobre o trabalho do ator, formado por atores, bailarinos e cantores provenientes de diversos

    pases, entre eles: Argentina, Dinamarca, Peru, Brasil, Itlia e Cuba. O Vindenes Broexiste desde

    1989 e ainda se mantm com encontros peridicos anuais que duram aproximadamente vinte

    dias. Uma de suas principais atividades a prtica de um treinamento fsico a partir de exerccios

    que foram propostos por Iben e desenvolvidos pelo grupo ao longo do tempo. Alm deste

    treinamento, o grupo compe, reelabora e apresenta, a cada encontro, montagens cnicas e um

    concerto de canes do mundo. Em eventuais encontros, faz trocas culturais e artsticas com a

    comunidade em que se apresenta e oferece workshops para jovens atores do continente europeu.

    Alm de minha histria relacionada dana e outras experincias de formao, a partir

    dessas influncias principais, traduzindo-as numa forma particular minha, que hoje procuro

    estimular e propor para outros atores a construo de uma singularidade na prpria formao,

    atravs de um treinamento.

    Ao longo dos anos, como atriz e orientadora de atores, pude constatar que muitas vezes,falta um espao e um tempo para o ator dedicar-se a seu aprimoramento tcnico, desvinculado

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    de um resultado, que o ajude a encontrar uma certa autonomia no exerccio de sua arte. Muitas

    vezes pude ver tambm, alguns exerccios - como por exemplo, a dana dos ventos, sobre a

    qual falaremos mais adiante2- serem executados como meros exerccios ginsticos, sem uma

    conscincia da sua utilidade e sem uma apropriao criativa.

    ento me aproximar idia de treinamento de Jerzy Grotowski, no como um mtodo

    para ensinar alguma coisa ao ator, mas mais como um terreno onde ele possa, por ele mesmo, se

    apropriar de alguns princpios para eliminar suas resistncias.

    No educamos um ator, em nosso teatro, ensinando-lhe alguma coisa: tentamos

    eliminar a resistncia de seu organismo a este processo psquico. O resultado a

    eliminao do lapso de tempo entre impulso interior e reao exterior, de modo que o

    impulso se torna j uma reao exterior.3

    Muito est por fazer e infinitas so as perguntas em um processo formativo para o

    ator, mas algumas pistas podemos encontrar atravs de uma prtica diria de trabalho, sempre

    amparados pelo caminho j percorrido pelos nossos mestres ou outros atores e artistas.

    Com este trabalho de pesquisa procurei observar, investigar e registrar como o ator

    pode, dedicando um espao e um tempo para um treinamento pessoal, encontrar instrumentos,

    inspirao, solues e novas perguntas para suas criaes, atravs de um trabalho sobre si.

    2 Ver no captulo Presena.3 Jerzy Grotowski, 1976, p. 3.

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    2. ATOR: AUTOR DE SI

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    2. ATOR: AUTOR DE SI

    Autonomia e autopoiese

    O ator de teatro hoje est cada vez mais participante do processo de criao, deixando de ser

    um mero repetidor de texto e marcas, para se tornar um criador de sentido e um dramaturgo

    de aes. As atuais atribuies deslocam o ator de seu papel de intrprete das idias de outros

    para alm do terreno da interpretao ou da representao. O ator contemporneo - talvez

    mais conectado com sua natureza primordial, de agente de um teatro em conexo profundas suas prprias origens - entra perigosa e vertiginosamente no terreno da presentificao 1.

    Escolho esse termo para substantivaro modo da presena do ator, no evento teatral, onde sua

    ao tratada, entre outras coisas, como uma experincia perceptiva, ou ento como um ato de

    auto-referencialidade, para alm da ilustrao de situaes e circunstncias ou do jugo do texto

    ou do drama. Presentificar colocar em evidncia a prpria corporeidade e suas qualidades

    expressivas, ir alm da representao ou interpretao. Muitos dos grandes diretores da cena

    contempornea desenvolvem seus processos criativos em colaborao direta com seus atores,fomentando a expresso diferenciada e pessoal de cada um, atravs do treinamento do corpo, da

    voz, do movimento, da dramaturgia, ou no auto-exerccio de eliminar os bloqueios uma livre

    expresso.

    Para que haja autoria no processo de criao, ou seja, para que o ator no seja simplesmente

    um fazedor de tarefas ou virtuose de uma tcnica, preciso que ele conquiste uma identidade

    artstica, o que pode se dar atravs do desenvolvimento de sua autonomia, estabelecida atravs

    de um trabalho sobre si.

    Mas a autonomia no trabalho do ator ser concretamente possvel ou at pertinente?

    Quando falamos em teatro entendemos uma arte coletiva, onde pessoas se associam em grupo

    para criar, independendo se os projetos sero duradouros ou no. Nesse sentido, na maioria das

    vezes a criao se d de forma colaborativa entre seus integrantes: ator, diretor, produtor, cengrafo

    1 Presentificar, pensar a presena no teatro conforme explora Hans-Ties Lehmann, em seu livroeatro ps-dramtico, na pg. 239: Ela no pode ser objeto nem substncia; no pode ser objeto do conhecimento no sentido deuma sntese realizada pela imaginao e pelo entendimento. Contentamo-nos com entender essa presena comoalgo que acontece, apropriando-nos assim de uma categoria terico-cognitiva e mesmo tica para caracterizaro campo esttico.

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    e figurinista. A obra composta com a participao de todos, isso sem falar no dramaturgo e na

    imprescindibilidade de um pblico. Cada vez mais o ator torna-se consciente da sua abrangncia

    dentro deste processo e cada vez so mais tnues as fronteiras entre os agentes criadores dentro

    de um grupo de teatro. As divises de funes se interpem e o ator est apto a determinar o

    alcance de sua participao no processo criativo. Ora, olhando por este aspecto, de que serve

    procurar ento, esta autonomia?

    Edgar Morin dentro dos paradigmas do pensamento complexo, nos fala que ser sujeito

    ser autnomo, sendo ao mesmo tempo dependente2. ter a capacidade de auto organizar-se,

    mas sem perder as suas relaes, criando-se um novo paradigma: a autonomia e a dependncia

    so possveis de conviverem numa mesma singularidade e circunstncia. Assim, a autonomia nosdiferencia, mas tambm nos pe em dependncia:

    Para sermos ns prprios, -nos preciso aprender uma linguagem, uma cultura, um

    saber e preciso que esta cultura seja bastante variada para que possamos fazer a

    escolha no stock das idias existentes e refletir de maneira autnoma. (...) A autonomia

    alimenta-se de dependncia3.

    Ento, se falarmos de autonomia no no sentido de individualismo, de onipotncia,

    de primazia ou solido, mas no sentido de tomar para si, de diferenciar-se, de apropriar-se, de

    tornar seu o que era de outro, a sim, a autonomia poder ser til ao ator. Entendo diferenciar-se,

    como a capacidade de construir algo seu, quando o ator encontra modos particulares de operar e

    transformar. Diferenciar-se, para mim, construir livremente, a partir de um ponto de partida,

    trabalhar em direo prpria singularidade. No ser diferente dealguma coisa, mas ser

    capaz de diferenciar-se em si.

    A diferenciao vem da repetio. No a repetio de um modelo, mas em relao a algo

    que passa pelo pessoal, pelo nico, como nos aponta Deleuze:

    (...) a repetio uma conduta necessria e fundada apenas em relao ao que no pode

    ser substitudo. Como conduta e como ponto de vista, a repetio diz respeito a uma

    singularidade no permutvel, insubstituvel. () Repetir comportar-se, mas em

    relao a algo nico ou singular, algo que no tem semelhante ou equivalente. Como

    2 Edgar Morin,2003, p. 96.3 Ibid.

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    conduta externa, esta repetio talvez seja o eco de uma vibrao mais secreta, de uma

    repetio interior e mais profunda no singular que a anima.4

    A repetio no est ligada, segundo o filsofo francs, reproduo do mesmo edo semelhante, mas produo da singularidade e do diferente. A repetio propulsora da

    diferena. No momento que eu repito, eu pego para mim, eu roubo. Sendo meu, eu guio e

    transformo. Assim, diferenciar-se, para o ator, torna-se no s um objetivo a ser alcanado, mas a

    condio de seu prprio processo, em constante devir, conforme afirma Ferracini: A nica coisa

    que pode se repetir dentro de um treinamento, justamente o processo de diferenciar-se. isso

    que se repete. Nada mais poderia se repetir em um treinamento.5

    Um ator que se diferencia, se possui e, portanto, capaz de doar-se, de transformar-se,

    de considerar toda sua integridade fsica, mental, social e espiritual como substncia nica, em

    processo de vir a ser e de tornar-se. Neste sentido, Jacques Copeau inspira a condio do ator

    artista:

    Se o ator um artista, ele de todos os artistas o que em maior grau sacrifica sua

    pessoa ao ministrio que exerce. Ele no pode dar nada se no se possui, se dar no em

    efgie, mas de corpo e alma, e sem intermedirio. anto sujeito quanto objeto, causa e

    fim, matria e instrumento, sua criao ele mesmo.6

    Atravs da construo de um treinamento tcnico possvel que o ator delimite um

    terreno pessoal e estruturante, onde ele possa desenvolver sua prpria subjetividade. Neste espao,

    atravs da disciplina, da perseverana, de um esprito curioso e determinado, o ator, mesmo

    sozinho, capaz de olhar para si como criador e criao, como outro - personagem ou texto - e

    como si mesmo. No entanto, ser criador, quando nos referimos arte do ator, tambm ser o

    operacionalizador. Fazer e criar so duas aes que se interpenetram constantemente, por isso,

    tcnica de ator no se restringe somente a um domnio mecnico de execuo. Isso, porque uma

    4 Gilles Deleuze, 1988, p. 22.5 Renato Ferracini em seu parecer, na banca de qualificao deste trabalho, realizada em 29/08/2008, no Departamento

    de Arte Dramtica, na UFRGS, em Porto Alegre. Renato ator, pesquisador e professor. Integrante do grupoteatral LUME, de Campinas, SP.

    6Jacques Copeau, 1928, apud Registres I, 1974, p. 205.

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    das peculiaridades do fazer artstico para todos os artistas do palco o fato de sua arte ocorrer no

    momento em que esto ali, presentes e vivos diante seu pblico. Como nos coloca Burnier7:

    A tcnica de ator no deve ser apenas fsico-mecnica, como a de um halterofilista, mas

    humana, em-vidaou seja, algo que permita estabelecer um elo comunicativo entre o

    humano em sua pessoa e o que seu corpo e faz e, ao articular esse processo, projet-lo,

    comunicando-o para seus espectadores. A tcnica de ator, portanto, s existe, a nosso

    ver, na medida em que abre caminhos para um universo eminentemente humano e vivo,

    tanto para o ator quanto para o espectador. Do contrrio, ela seria apenas ginstica a

    preparar o corpo para uma atividade puramente fsica, na qual os aspectos humanos e

    subjetivos estariam resguardados ou adormecidos.8

    Dessa maneira, a palavra tcnica vincula-se capacidade operativa do artista, sendo ela

    quem fomenta sua relao com a energia criadora9. A palavra autonomia vem do grego, autos, que

    significa si prprio, e nmos ou nomia, que significa lei. Autonomia predispe a capacidade de

    governar-se por si mesmo, de criar suas prprias leis. O ator tambm criador quando capaz

    de promover os mecanismos para a sua formao, sendo capaz de construir sua prpria tcnica.

    Entende-se por tcnica o reconhecimento, tambm, de aspectos que so inerentes cultura e identidade do ator, idia que ser desenvolvida no corpo do trabalho. Como explicita

    Mauss:

    Chamo de tcnica um ato tradicional eficaz (e vejam que, nisto, no difere o ato mgico,

    religioso, simblico). preciso que seja tradicional e eficaz. No h tcnica e tampouco

    transmisso se no h tradio. nisso que o homem se distingue, sobretudo, dos

    animais: pela transmisso de suas tcnicas e muito provavelmente pela sua transmisso

    oral.10

    A tcnica do ator, o aprender como fazer, pode se dar em dois principais mbitos: o

    instrumental e o expressivo. Dentro do aspecto instrumental a tcnica conduz para o terreno

    do como fazer, do como operacionalizar e visa uma finalidade. No aspecto expressivo, a tcnica

    7 Lus Otvio Burnier foi ator, diretor e pesquisador. Fundou e dirigiu o grupo LUME, da UNICAMP, de Campinas, SP.8 Lus Otvio Burnier, 2001, p. 25.9 Ibid, p. 24.10 Marcel Mauss, 1974, p. 217.

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    refere-se ao modo de dizer ou expressar alguma coisa, uma idia ou estado espiritual, uma

    atividade simblica e visa uma necessidade11. Chau, comentando Aristteles, afirma que em todo

    devir natural se observam vrias causas, entre elas a finalidade e necessidade. Em um ser, a

    matria a causa material12, ou seja, aquilo de que a coisa feita, como a madeira de uma mesa,

    por exemplo. A forma a causa formal dos seres13, como a mesa pode ser a forma da madeira,

    por exemplo. A forma de um ser est relacionada ao ato, atualidade. A matria est relacionada

    potncia, ao que ela pode vir a ser, conforme Chau:

    Ora sabemos, por experincia, que as coisas mudam e que os seres mudam de forma,

    isto , se trans-formam. A semente uma forma que se transforma em rvore; o ovo

    uma forma que se transforma em pssaro; a madeira uma forma que se transforma em

    mesa, em cadeira, em porta (...) Por que h mudana no devir? Responde Aristteles:

    porque da natureza da matria alterar-se, mudando de forma. Assim, o princpio da

    mudana (do devir, ou do movimento, kinesis) a matria. Por isso os seres compostos

    de matria e forma mudam ou esto submetidos ao devir.14

    Se falarmos da organizao dos seres vivos, a finalidade e a necessidade agem ao mesmo

    tempo e naturalmente. Para o devir ator, a tcnica desperta, para um finalidade e atravs de umanecessidade, o que j est em potncia, contido na matria corpo.

    Pesquisas atuais em Biologia apontam que uma das formas de determinar se o ser vivo

    um ser vivo, est em observar como eles se organizam enquanto classe15. a particularidade dessa

    forma de organizar-se, enquanto ser vivo capaz de gerar outro, produzindo de modo contnuo

    a si prprio, que o define como tal. A essa forma de organizao os neurocientistas chilenos

    Humberto Maturana e Francisco Varela chamaram autopoiese16.Autoquer dizer si mesmo e

    se refere autonomia dos sistemas auto-organizadores, e poiese, que vem da mesma raiz de

    poesia, significa criao. Logo, autopoiesesignifica auto-criao. Os seres vivos so uma rede

    contnua de interaes molecularesque produzindo a si mesmos, especificam seus prprios limites17. As

    11 Marilena Chau. 2002, p. 397.12 Ibid, p. 395.13 Ibid.

    14 Ibid.15 Categoria para classificao dos seres vivos (Biologia).16 Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela, 2005, p. 55.17 Ibid, p. 46.

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    relaes que os seres vivos fazem para existir so como uma rede de processos de produo. A

    funo de cada componente dessa rede participar da produo e da transformao de outros

    componentes, assim, toda rede continuamente produz a si mesma. Os seres vivos so unidades

    autnomas, distintas, mas iguais em sua forma de organizarem-se, conforme explicam Maturana

    e Varela:

    os seres vivos se caracterizam por produzirem de modo contnuo a si prprios.(...)

    E os componentes moleculares de uma unidade autopoitica celular devero estar

    dinamicamente relacionados numa rede contnua de interaes.18

    Sem nenhuma pretenso de tentar interpretar a autopoieseem toda sua complexidade,podemos tomar emprestado o termo, para refletir como essa forma de organizao est tambm

    presente no trabalho do ator, enquanto um ser que, ao transformar-se, gera a si prprio e que ao

    gerar-se, se auto-recria. Auto criar-se atravs do exerccio sobre si mesmo, na aquisio de uma

    tcnica, num constante estudo e aperfeioamento da sua arte. No se trata apenas de reconhecer

    na autonomia a dependncia, de criar condies para desenvolver sua capacidade operativa e

    colocar-se em conexo com a energia criadora, mais que isso, o ator porta na natureza do seu

    ofcio ser a obra e o obreiro e entranha na sua especificidade de artista uma condio auto-

    transformativa. Como os seres vivos.

    Em um organismo vivo, o metabolismo celular acontece atravs de uma srie de

    transformaes qumicas concretas em uma rede de interaes que o produzem e so produzidas

    por ele. Podemos pensar que a capacidade de auto gerir-se enquanto artista e enquanto criao

    promove autonomia ao ator, assim como o ser vivo autopoitico de Maturana e Varela:

    (...) Um sistema autnomo se capaz de especificar sua prpria legalidade, aquilo que

    lhe prprio. No estamos propondo que os seres vivos so os nicos entes autnomos;

    certamente no o so. Porm evidente que uma das propriedades mais imediatas do

    ser vivo sua autonomia.19

    O que faz os seres vivos autnomos a autopoiese. A peculiaridade dos seres vivos, assim

    como dos atores, que seu nico produto so eles mesmos. A autonomia do ator acontece quando

    18 Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela, 2005, p. 52.19 Ibid, p. 55.

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    o seu processo criativo, embora influenciado pelo processo de outros elementos, conserva certo

    grau de liberdade em relao queles, diferenciando-se. Autonomia para o ator a capacidade de

    guiar-se por si mesmo com independncia, apesar de estar em relao. Ser livre para determinar

    suas prprias escolhas e operacionalizar seu prprio processo de trabalho, capaz de ser responsvel

    pela criao de sua prpria tcnica e pelo acesso ao seu poder criativo. Autonomia com relao.

    Autonomia com dependncia.

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    3. QUEM (CORPO) EU SOU?

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    3. QUEM (CORPO) EU SOU?

    Treinar no, confrontar.

    O estudo contemporneo sobre o corpo remete a uma no separao entre corpo e mente e entre

    corpo biolgico e corpo cultural. O corpo no mais visto como um instrumento, como uma

    mquina, ou como uma estrutura que j nasce pronta, fixada, mas sim como algo que se revela,

    aberto a mudanas, como um processo vivo, em constante transformao. Um corpo individual,

    diferenciado, mas permeado pelo meio, pelas suas experincias em ao com o mundo, em relao.Para o ator, o trabalho sobre si mesmo pode dar instrumentos para a potencializao deste

    corpo, sensibilizando-o a inserir sua prpria singularidade na configurao de um treinamento

    pessoalizado.

    Grotowski e Barba, referncias sobre o que entendemos hoje por treinamento do ator,

    ao afirmarem a importncia da realizao de um treinamento pessoal, revelam uma compreenso

    deste corpo em consonncia com estas teorias. Ambos, a partir de suas comunidades especficas

    - no caso, seus dois grupos de teatro, o eatro Laboratrio e o Odin eatret - deixaram com suasexperincias prticas, muitos caminhos teis ao ator que queira confrontar-se consigo mesmo

    em treinamento e que queira desenvolver essa idia de corpo integrado em si e com seu meio.

    Neste espao e neste tempo em que o ator se coloca para averiguar, desenvolver ou inventar suas

    possibilidades enquantoperformer, um universo infinito de experincias se configura. Nos dois

    grupos referidos, ocorreu, ao longo do tempo, uma forma de treinamento que passou de um

    mbito coletivo, quando todos atores executavam os mesmos exerccios, para um treinamento

    mais pessoalizado, tentando respeitar as diferenas individuais de cada ator.

    A alterao dos detalhes tcnicos de cada exerccio, aprendidos inicialmente de forma

    fria, proposta por Grotowski a seus atores, aponta para o entendimento de um corpo-vida1.

    Os passos que deveriam guiar o ator em treinamento eram repetir, assimilar e transformar. E

    para esta transformao acontecer, o ator deveria obedecer a alguns princpios, que o permitisse

    no destruir, mas apropriar-se do que tinha, aproximando-o da sua essncia, do fluxo de vida,

    da fecundidade. Segundo Grotowski, a primeira coisa essencial fixar um certo nmero desses

    1Jerzy Grotowski, 1969, apud L. Flaszen (Curadoria), 2007, p. 173

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    detalhes e torn-los precisos. Depois, reencontrar os impulsos pessoais que podem encarnar

    esses detalhes; ao dizer encarnar, entendo: transform-los.2Essa transformao se dava em um

    processo que consistia, entre outros aspectos, em perceber e seguir impulsos internos, superar

    dificuldades, insistir em um caminho, encontrar sua subjetividade (ritmo, emoo, memria,

    histria, cultura) e deix-la manifestar-se em corpo, em vida: Dar ao corpo uma possibilidade.

    Dar-lhe a possibilidade de viver e de ser irradiante, de ser pessoal3. Mas nossa pessoalidade

    ou personalidade, aquilo que nos caracteriza como indivduos, vem influenciada por muitos

    aspectos, como explica Damsio:

    O que em geral designamos como personalidade depende de vrias contribuies.

    Uma contribuio importante provm dos traos, cujo conjunto com freqncia

    denominado temperamento e que j so detectveis por ocasio do nascimento.

    Alguns desses traos so transmitidos geneticamente, outros traos so moldados

    por fatores do desenvolvimento inicial. Outra cota importante provm das interaes

    nicas que um organismo vivo e em crescimento mantm com um meio especfico, nos

    aspectos fsicos, humanos e culturais.4

    O desprender-se dos automatismos da vida quotidiana, tal qual prope o treinamentopela via negativa de Grotowski, nos indica uma reverncia ao corpo criativo. Nos primeiros

    tempos do seu teatro laboratrio, as indicaes de treinamento de Grotowski, aos atores, tinham

    como objetivo a aquisio de destreza criativa5. Os atores deveriam se perguntar: como eu

    posso fazer isso?6Mas, anos mais tarde, todos exerccios que eram criados na tentativa de dar

    uma resposta a essa pergunta, foram deixados de lado para que o ator se perguntasse ento, o

    que devia no fazer, atravs de um processo de eliminao. O foco j no era mais dar ao ator

    destreza criativa ou aptido tcnica, mas sim atravess-lo por uma via negativa. No mais

    simplesmente treinar para adquirir, mas sim para confrontar7, eliminando hbitos antigos,

    despindo o ator daquilo que o impedisse de tocar seu germe criativo ou sua singularidade.

    2Jerzy Grotowski, 1969, apud L. Flaszen (Curadoria), 2007, p. 171.3 Ibid, p. 170.

    4 Antnio Damsio, 2000, p. 285.5Jerzy Grotowski apud E. Barba, 2006, p. 52.6 Ibid.7 Ibid.

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    Mas, para chegar a esta etapa da via negativa, a primeira fase foi, antes, exaustivamente

    explorada. Um exemplo desse processo de transformao se deu em relao ao uso dos exerccios

    de pantomima. Grotowski e seus atores praticaram alguns elementos pantommicos, executaram-

    nos durante muito tempo at tornarem-se precisos, depois os mudavam a tal ponto que j no

    eram mais reconhecidos como a pantomima clssica. Os elementos eram transformados e

    superados pelos impulsos vivos do ator. Eles comearam a transformar, no momento em que

    os atores percebiam que estes exerccios estavam sendo realizados apenas como um esteretipo,

    impedindo at, que seus impulsos individuais viessem tona, ou que os guiassem. Uma das

    suas descobertas foi que, atravs dos movimentos com o corpo, deveriam estabelecer uma srie

    de formas fixadas nos seus mnimos detalhes e execut-las com preciso. Depois, encontrar osimpulsos pessoais, que poderiam encarnar-se nesses detalhes, e encarnando-os, transform-los.

    A alterao de encaminhamento do treinamento para um modo diferenciado para cada

    ator tambm ocorreu em outra experincia de grupo. No primeiro perodo de existncia do

    Odin eatret, todos os atores treinavam os mesmos exerccios diariamente juntos, num ritmo

    coletivo. Com o passar do tempo compreenderam que o ritmo pessoal era diferente para cada

    indivduo. Alguns atores tinham um ritmo vital mais rpido, outros mais lento. Identificaram

    que h uma variao, uma pulsao, como a dos batimentos cardacos, da respirao, do olhar,

    que era diferente para cada um. Assim, se o ritmo orgnico era diferente, o treinamento tambm

    deveria ser. Cada ator passou, ento, a decidir e elaborar seu prprio treinamento 8. ambm a

    motivao era diferenciada. O que levava o ator a querer superar-se, partia de uma necessidade

    individual e era ela que decidia a forma deste treinamento.

    Para Barba, o ator deveria partir de cada exerccio, apreendido de maneira quase fria,

    assimilado pacientemente e, depois de um longo trabalho, uni-lo, fundi-lo a outros at se

    transformar numa onda. Este o caminho que leva ao treinamento individual modelado segundo

    o prprio ritmo orgnico, segundo as prprias necessidades, segundo as prprias motivaes9.

    Grotowski, por sua vez, sugeria ao ator executar aes simples aplicadas10a si mesmo

    ou seja, executar toda tcnica aprendida, mas agregando algo seu, pessoal, criativo. Produzir essa

    linha de impulsos vivos, que faz com que o ator seja irradiante 11. J Barba, em relao a essa

    8 Eugenio Barba, 1991, p. 56.9 Ibid, p. 55.10Jerzy Grotowski, 1969, apud L. Flaszen, 2007, p. 168.11 Ibid, p. 169.

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    abertura a si mesmo, s reaes do prprio corpo, fala da necessidade do ator ter confiana nos

    prprios reflexos: O ator deve ser levado pela sua inteligncia fsica, o corpo inteiro que pensa

    e este pensamento j ao, reao12.

    Esses procedimentos assinam o amadurecimento sobre a questo do corpo biolgico

    unido ao corpo cultural. Um corpo que pensa e age, realizando aes reveladas por impulsos

    internos. Grotowski falava especificamente da base inferior da coluna (mais abdmen e a base do

    corpo) como o ponto de partida dos impulsos, mas sem esquecer de perceber muitos outros, que

    se manifestam por meio do corpo-memria. No que o corpo tem memria.Ele memria.13

    Se conserva a preciso dos detalhes, o corpo pode agir em condies livres do pensamento, algo

    externo a ele pode agir, variando ritmos, executando mudanas ou ainda pegando no ar outrosdetalhes. o corpo-memria ou o corpo-vida que agem14.

    O corpo-memria e o corpo-vida15dizem o que fazer com as experincias ou com

    as possibilidades de experincias da vida. Aproximar a encarnao de nossa vida, nos impulsos.

    Grotowski pontua:

    Certos detalhes dos movimentos das mos e dos dedos iro se transformar, mantendo

    a preciso dos detalhes, em uma volta ao passado, a uma experincia na qual tocamosalgum, talvez uma amante, a uma experincia importante que existiu ou que poderia

    ter existido.16

    O detalhe existe, mas superado. Entra no impulso, na motivao. O corpo-vida traz

    os detalhes presentes na preciso externa e os libera. Entre as margens dos detalhes, passa agora

    o rio de nossa vida17.

    Neste aspecto, Damsio corrobora ao falar de registros abstratos de potencialidade que

    esperam para serem liberados no corpo:

    oda nossa memria, herdada da evoluo e disponvel ao nascermos ou adquirida desde

    ento pelo aprendizado em suma, toda nossa memria sobre coisas, propriedades das

    12 Eugenio Barba, 1991, p. 54.13Jerzy Grotowski, op cit, p. 173.

    14 Ibid.15 Ibid.16 Ibid.17 Ibid.

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    coisas, pessoas e lugares, eventos e relaes, habilidades, regulaes biolgicas, tudo

    - existe na forma dispositiva (ou seja, implcita, oculta, inconsciente), aguardando para

    tornar-se uma imagem explcita ou uma ao.18

    Se corpo memria, memria para mim, a durao das experincias no corpo, que

    podem estar constantemente se atualizando. No momento da lembrana, no entro numa

    espcie de tnel do tempo para o passado, mas, como Ferracini afirma, ao comentar Bergson,

    fao que, presente, passado, espao e mesmo o futuro imediato coexistam na conscincia do

    corpo presente a um s tempo.19 o passado que pode se atualizar, em ato ou em conscincia.

    Independente da nossa vontade, a memria continua existindo, conforme afirma Bergson:

    Com efeito, enquanto aparelhos motores so montados sob influncia das percepes

    cada vez mais bem analisadas pelo corpo, nossa vida psicolgica anterior continua

    existindo: ela sobrevive - procuraremos demonstr-lo com toda a particularidade de

    seus acontecimentos localizados no tempo. Constantemente inibida pela conscincia

    prtica e til do momento presente, isto , pelo equilbrio sensrio-motor de um

    sistema estendido entre a percepo e a ao, essa memria aguarda simplesmente que

    uma fissura se manifeste entre a impresso atual e o movimento concomitante para

    fazer passar a suas imagens.20

    Ao passar por estas fissuras, a memria atualiza-se e se torna criao. Memria

    criao.

    A criao, a manifestao do novo se d, tambm, por quem somos, com nosso corpo

    reaprendendo o tempo todo quem , numa construo de identidade mvel, fludica. Como

    sugere Guattari, unificando para entender: Identidade aquilo que faz passar a singularidade

    de diferentes maneiras de existir por um s e mesmo quadro de referncia identificvel21. Cada

    ator deve, mais do que compreender quem ele , deixar fluir no corpo quem ele possa ser, em

    potncia. Relevando seus aspectos pessoais, reverenci-los para transformar-se em criatura nova,

    viva ou em novas vidas. Reconhecer as nossas identidades, como afirma Hall:

    18 Antnio Damsio, 2000, p. 419.19 Renato Ferracini, 2006, p. 121.20 Henri Bergson, 2006, p. 107.21 Flix Guattari, 2000, p. 69.

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    as sedimentaes atravs do tempo daquelas diferentes identificaes ou posies que

    adotamos e procuramos viver, como se viessem de dentro, mas que, sem dvida,

    so ocasionadas por um conjunto especial de circunstncias, sentimentos, histrias

    e experincias nicas e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais. Nossasidentidades so, em resumo, formadas culturalmente.22

    Mas como o ator pode encontrar sua singularidade, sua subjetividade, deixando-a

    manifestar-se em ao ou imagem, no corpo? Como pode ter a coragem de mergulhar em

    suas prprias guas, ao usufruir de sua impermanncia concreta? Atravs do exerccio sobre si

    o ator pode abrir um espao e um tempo para lanar-se ao desbravar de seu rio, que nunca

    o mesmo. s vezes furioso, s vezes plcido, s vezes turvo, s vezes cristalino. Nas guas epedras, e terra - do seu ser/corpo o ator pode procurar seus impulsos pessoais e reverenciar seu

    corpo-memria. Por meio da prxis, do fazer, o ator pode aplicar pequenas aes a si mesmo

    e corporific-las, recheando-as com seus desejos, suas fomes, suas paixes, suas dores ou seus

    lampejos de felicidade. anto os aspectos mais subterrneos ou inconscientes, quanto os mais

    recentes e de experincias mais claras conscincia.

    Assim, tambm, o corpo prprio23, de Merleau-Ponty, revela um modo de existncia

    ambguo: Sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e,

    reciprocamente, meu corpo como um sujeito natural, como um esboo provisrio do meu ser

    total24. J Mauss, nos sugere que todas nossas maneiras de agir so adquiridas, que talvez no

    exista uma maneira natural de agir.25Ou, novamente Ponty, ser corpo estar atado a um certo

    mundo26. Mas nosso corpo, alm de um corpo histrico, biolgico, social, tambm um corpo

    criador, um corpo que em estado de potncia criadora, transborda todos estes corpos.27

    O ator deflagra, na especificidade de sua arte, tanto na criao de um espetculo quantonos seus estudos formativos, o desenrolar de um processo, de um fazer, de uma prtica. alvez

    inspirados pela experincia de Grotowski, o ator deva encontrar, junto com a sua via negativa,

    22 Stuart Hall, 1997.23 Maurice Merleau-Ponty, 2006, p. 268.24 Ibid, p. 269.25 Marcel Mauss, 1974, p. 216.26 Maurice Merleau-Ponty, op cit, p. 205.27 Renato Ferracini, 2006, p. 82. Ferracini usa o termo corpo-subjtil, para caracterizar justamente este corpo em

    Estado Cnico, capaz do transbordamento de todos os corpos, um corpo-em-vida: Nem um corpo somentemecnico e formalizado, nem um corpo somente vivo, informe e catico; nem um comportamento cotidianopuro, nem um comportamento extracotidiano puro, mas um corpo ao mesmo tempo formal e orgnico(...).

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    uma via dupla, de aquisio, mas tambm de abandono. No processo de aquisio tcnica e

    de desvelamento de quem se , muitos fios sutis se tramam, se confundem, se enroscam, se

    desfazem. Para o ator, em um processo de treinamento, difcil determinar com preciso, quanto

    de seu facilita sua arte ou quanto de seu, limita, perturba e o impede de prosseguir. Por ser o ator,

    agente e ao ao mesmo tempo, por seu corpo ser explorador e explorado, revelador e revelado,

    s vezes os limites entre o que pode e deve agregar e o que pode e deve abandonar, so confusos.

    Mais uma vez o paradoxo bate porta do ator em formao, e como arteso de uma matria

    viva, que muda constantemente, talvez seja importante reconhecer essa impermanncia e faz-la

    trabalhar para si, acolhendo-a, tentando ir junto com ela. Na percepo dos prprios lampejos

    de intensidades, ou em seu agenciamento, quem (corpo) se , est aberto e pedindo para serexpresso constantemente.

    A prxis, para o ator, pode funcionar como alavanca, como trampolim para disposies28,

    ou seja, esses contedos que ainda no se tornaram nem forma nem imagem, que esto aguardando

    um agenciamento, um processo, que os torne, de alguma forma, material para a construo

    de aes. Disposies so os contedos formadores da base do conhecimento ou registros

    abstratos de potencialidades29. Damsio coloca: Ao contrrio dos contedos do espao de

    imagens, que so explcitos, os contedos do espao dispositivo so implcitos.30

    Reconhecer o prprio corpo incompleto em sua plenitude, pode fazer o ator encorajar-

    se na prtica diria, no desvelamento de si, no desmembrar de suas finitudes e limites, num

    contnuo abandonar de automatismos, daquilo que o afasta da vida, da fecundidade. Absorver as

    diferenas, as particularidades e o que o torna o ato nico. As experincias propostas por Grotowski

    e Barba deram boas pistas ao ator contemporneo em formao. Atravs do reconhecimento e

    aproximao aos impulsos e ritmo pessoal possvel gerar uma tcnica orgnica e sensvel. Uma

    tcnica no aprisionadora ou delimitadora de uma esttica, mas liberadora de uma corporalidade

    plena de potncia criativa.

    28 Antnio Damsio, 2000, pp. 418 e 419.29 Ibid.30 Ibid.

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    4. DILOGO COM ATORES

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    4. DILOGO COM ATORES

    Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que so doces.

    Porque nada te poderei dar seno a mgoa de me veres eternamente exausto.

    No entanto a tua presena qualquer coisa como a luz e a vida

    E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.

    No te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.

    Quero s que surjas em mim como a f nos desesperados

    Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldioada.

    Que ficou sobre a minha carne como ndoa do passado.Eu deixarei... tu irs e encostars a tua face em outra face.

    eus dedos enlaaro outros dedos e tu desabrochars para a madrugada.

    Mas tu no sabers que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande ntimo da noite.

    Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.

    Porque meus dedos enlaaram os dedos da nvoa suspensos no espao.

    E eu trouxe at mim a misteriosa essncia do teu abandono desordenado.

    Eu ficarei s como os veleiros nos pontos silenciosos. Mas eu te possuirei como ningum porque

    poderei partir. E todas as lamentaes do mar, do vento, do cu, das aves, das estrelas.

    Sero a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.1

    A arte de ator a arte de recriar a vida, no apenas imit-la. Ou, poderamos dizer, a arte de

    manifestar a vida criada. Como diria Artaud: A arte no a imitao da vida, mas a vida a

    imitao de um princpio transcendente com o qual a arte nos volta a pr em comunicao2,

    assim, poderamos recriar a vida atravs da ao. O ator, criatura em si, corpo, mente, alma e o

    que mais quisermos ou pudermos nomear para compor o homem. Ator tambm criatura aptaa recriar-se, atravs de outras vidas. Vida que ele tem, que ele , ou a vida que ele pode fazer

    surgir, no momento presente. Germinar ou criar atributo da natureza, e meta do ator acionar

    e cultivar esse atributo, conhecendo e se aproximando de quem . Uma das caractersticas da

    natureza de um ser, como define Durosoi, ser um princpio que dirige o seu desenvolvimento,

    o que j indica o termo grego phusis, o qual traz a idia de uma germinao3. Num sentido

    1 Vincius de Moraes,Ausncia.2 Artaud apud J. Derrida, 1995, p.153.3 Grard Durozoi, 1996, p. 336.

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    mais particular, dizemos ser da natureza de algum, as caractersticas prprias de um indivduo,

    que o distingue dos outros. Cada ator busca aproximar-se de uma forma humana, em si mesmo

    moldvel, como uma matria exercitvel e apta a transformaes. Um hibridismo aculturado,

    conquistvel, possvel de ser. A vida autntica do esprito humano, da qual falava Stanislavski;

    a centelha de vida, de Peter Brook; o estado de verdade, de Grotowski; a busca de uma outra

    realidade, perigosa e tpica de Artaud ou a busca pela conveno consciente de Meyerhold, so

    axiomas dos mestres do teatro, perseguidos pelos atores. Uma conexo direta com a vida, com

    aquilo que anima, impulsiona e inspira o ator, determinando o carter da sua ao, querendo

    ser viva e orgnica, buscando a essncia do ato de presentificar. E a fertilidade ou a germinao

    do ato pode se dar justamente no momento em que o ator est disposto a conhecer sua prprianatureza, seus meandros, suas articulaes e seus mistrios.

    Aperfeioar-se, colocar-se em confronto consigo mesmo, auto observar-se e superar

    limites, desafiar-se, adquirir aptido, desenvolver a auto conscincia, criar material para a cena,

    encontrar meios para desenvolver e guiar o prprio trabalho. Estes foram alguns dos objetivos que

    levaram os atores desta pesquisa a quererem participar da experincia do treinamento. Ao serem

    inquiridos sobre o porqu de se colocarem em uma prtica como esta, os atores participantes,

    nos primeiros dias desta pesquisa, deram respostas, tais como:

    O treinamento do ator, para mim, serve para construir auto conhecimento fsico e

    mental, e para constantemente descobrir e desconstruir caminhos que o corpo toma

    no decorrer do processo. Serve para conhecer, superar, respeitar, mas no ser escravo,

    dos prprios limites. O treinamento pode ser um meio de criao artstica e , para

    mim, uma maneira de obter prazer e auto estima. Considero o treinamento do ator

    um desafio muitas vezes difcil e doloroso, que me instiga a auto superao e no

    desistncia.4

    O treinamento do ator serve para uma permanente revelao de potenciais corporais

    individuais. Estes potenciais que surgem de um cosmos corporal desconhecido onde,

    atravs de uma profuso de energias que alavancam os impulsos internos, possvel

    emergir com aes reveladoras de sentidos.5

    4 Aline Marques, questionrio, julho de 2007.5 Everton E. Santo, idem.

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    reinamento do ator a preparao antes de ir a cena. Ele no possibilita somente

    variedade, mas qualidade do material cnico. reinamento do ator explorar as

    possibilidades corporais, vocais e mentais, numa seqncia sistemtica de exerccios.6

    O treinamento como um degrau para alcanar o pice do meu organismo, no qual

    a conscincia e o instinto estejam unidos. Serve para que o corpo esteja realmente

    apto para criar, no mais alto grau de compromisso, ou seja, criar verdadeiramente,

    sinceramente. 7

    Para mim o treinamento serve para descobrir e desafiar-me. Com ele descubro as

    possibilidades do meu prprio corpo. Verifico meus limites e tento ultrapass-los.

    Significa apropriar-me de uma tcnica e tentar super-la, o que no considero possvel

    sem prazer, diverso, deleite ou disponibilidade.8

    O treinamento do ator serve para aperfeioar e desenvolver meu trabalho. D

    instrumentos para que eu possa me desenvolver como artista, me coloca em contato

    direto com meus meios de criao. uma forma de tornar-me consciente de meu

    processo.9

    Nota-se que em todas as respostas, aspectos pessoais e tcnicos so levantados

    conjuntamente. Para o ator, colocar-se em treinamento, significa descobrir-se no s como

    artista, mas tambm enquanto pessoa, o que me faz relacionar ao que nos ensina Grotowski,

    sobre a arte, como algo que vai alm de um estado da alma, como uma inspirao ou algo

    extraordinrio, ou de um estado do homem10, referindo-se uma profisso ou a alguma funo

    social: A arte um amadurecimento, uma evoluo, uma ascenso que nos torna capazes de

    emergir da escurido para uma luz fantstica11. Para mim este perodo de prtica foi escrito emmovimentos circulares que desenhavam o ator emergindo do homem e o homem emergindo do

    ator, bem como, deste homem-ator, o corpo, a mente e a voz emergindo uns nos outros. Neste

    estudo, a palavra treinamento refere-se tanto explorao de aspectos fsicos quanto vocais, pois

    6 Simone De Dordi, questionrio, julho de 2007.7 Fbio Castilhos, idem.

    8 Giovanna Zottis, idem.9 Cassiano Azeredo, idem.10Jerzy Grotowski, 1992, p. 211.11 Ibid.

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    ambos foram praticados de forma integrada e indissocivel. Os princpios que guiam a prtica

    do corpo e da voz foram os mesmos, no objetivo original de reescrever um corpo-voz pessoal,

    mas revelado em suas mltiplas possibilidades.

    O treinamento vocal desenvolvido nesta pesquisa baseou-se em princpios semelhantes

    aos da explorao das aes fsicas. Nossa busca foi por aes vocais, ou seja, a voz dirigida ao

    espao com objetivos diversos de vibrao e intensidades, com intenes geradas no corpo, com

    impulsos e a base partindo, sobretudo, do abdmen. Buscvamos uma voz no impostada, ou

    modulada em determinados clichs de entonao ou projeo, mas uma voz pessoal livre, viva,

    ativa, entoada com uma fora que viesse de dentro , em direo ao externo. Iben transmitiu

    aos atores do Vindenes Brosua experincia com os ressonadores vocais, pesquisa desenvolvidapor Grotowski, onde o som deveria ser amplificado por caixas de ressonncias no prprio corpo.

    Lembro que nas minhas primeiras experincias com Iben, quando um de ns cantava uma cano

    - com a voz que conhecamos de ns mesmos, ou seja, aquela habitual, ela ia apenas colocando

    sua mo em determinados lugares do nosso corpo, enquanto nos movamos e cantvamos.

    Iben ia sutilmente propondo uma soltura e integrao do corpo e da voz, estimulando que

    colocssemos som em diversos lugares no corpo. Lembro do efeito que isso gerava em ns

    que, pouco a pouco, tentando colocar a voz no corpo, libervamos uma voz desconhecida, que

    no sabamos que era nossa, uma voz mais potente, mais inteira, mais vibrante, a qual jamais

    ouvimos antes. No presente estudo, procurei propor situaes semelhantes aos atores, quando,

    a emisso da voz era experimentada nas mudanas de posies corpreas, mudanas de apoios,

    com a respirao passeando entre abdmem e peito, os ps agarrados no cho, com a coluna

    como um tubo de ar, com a laringe relaxada, os braos e pernas ajudando a voz a sair, sempre

    direcionando em relao ao espao, ou alm dele, como estmulos. A voz era mais um membro,

    mas um agente gerador de movimento e ao, como uma perna ou um brao. odas as operaes

    tentavam acender a percepo que voz corpo e corpo voz: A ao vocal, os ressonadores, as

    proposies de imagens que inspiravam vozes diversas, como a voz de lava de vulco, a voz de

    crianas que brincam na praia, a voz de feirante vendendo frutas, a voz de gelo, de vento no mar,

    ou de montanha de terra, entre tantos outros procedimentos, serviam de mote, de brincadeira

    e desafio s nossas intenes, num exerccio sempre prazeroso em descobrir a pessoalidade do

    prprio corpo-voz.

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    Ao dispor-se a um trabalho sistemtico e cotidiano sobre si mesmo, inevitvel deparar-

    se com condies que so prprias do humano. O ator emerge do homem e o homem emerge

    do ator. O ator, predisposto a um trabalho sobre si, sabe que encontrar momentos de satisfao

    artstica, mas tambm, muitas dificuldades. Descobrir e reconhecer seus prprios limites no

    uma tarefa fcil, pelo contrrio, pode causar sofrimento e dor. Sofrimento ligado a frustraes que

    podem vir, por exemplo, de aspectos fsicos ou psicolgicos. Mas ao mesmo tempo, as mesmas

    dificuldades que causam a dor podem ser as que geram grande prazer, pela constatao de sua

    superao. Superar as prprias dificuldades revela o ser, ressignificando-o, dando uma outra

    perspectiva, e por isso, provoca uma sensao de plenitude, de satisfao. Barba pontua que:

    O treinamento no uma forma de ascetismo pessoal, uma dureza hostil em relao a

    si mesmo, uma perseguio do corpo. O treinamento um teste que coloca a prova as

    prprias intenes, at onde se est disposto a empenhar toda a prpria pessoa naquilo

    em que se acredita e que se afirma; a possibilidade de superar o divrcio entre inteno

    e realizao. Esse trabalho cotidiano, obstinado, paciente, com frequncia no escuro, s

    vezes at em busca de um sentido, um fator concreto de transformao cotidiana do

    ator como homem e como membro do grupo12

    Este teste, esta prova que o ator se coloca, pode ser feita com prazer. O treinamento

    pode acontecer com a cor, com a atmosfera, com o ambiente que atores e guia, quiserem criar,

    sempre em relao, uns com os outros. Eu, como condutora e observadora, fui to responsvel

    pela determinao do carter que a experincia adquiriu, quanto os prprios atores. Por ser

    um dilogo constante entre as percepes sobre o trabalho, necessrio que haja uma pr-

    disposio ao outro. Enquanto condutora do processo, uma atitude de respeito e cumplicidade

    foi fundamental para o bom encaminhamento da pesquisa, ainda mais devido fragilidade e

    exposio as que os atores se colocam no ato de desmanchar suas limitaes. Para eles, o treino

    um momento de desvelamento, de abertura, de sensibilidade aflorada, de sentidos abertos,

    de auto-revelao, e bem por isso, merecedor de respeito e cuidado. O importante que se

    estabelea uma predisposio a ouvir, e no uma imposio de ideias, por parte de quem conduz.

    Mesmo considerando que meu papel no era de direo cnica, mas de orientao, na forma de

    conduzir, mais uma vez Grotowski inspirador:

    12 Eugenio Barba, 1991, p. 59.

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    O ator s pode ser orientado e inspirado por algum que se entrega de todo corao

    sua atividade criativa. O diretor, enquanto orienta a inspirao do ator, deve ao mesmo

    tempo permitir ser orientado e inspirado por ele. rata-se de um problema de liberdade,

    companheirismo, e isto no implica falta de disciplina, mas num respeito pela autonomiados outros. O respeito pela autonomia do ator no significa ausncia de lei, falta de

    exigncias, discusses interminveis, e a substituio da ao por contnuas correntes

    de palavras. Ao contrrio, o respeito pela autonomia significa enormes exigncias, a

    expectativa de um mximo de esforo criativo e de um mximo de revelao pessoal.13

    Orientar o ator sua autonomia o faz libertar-se e lhe d coragem. O ator adquire a

    capacidade de conhecer seu corpo e suas necessidades. Reconhece, por exemplo, que quandoh algum problema fsico concreto o impedindo de ir adiante, ele deve aprender a estabelecer,

    para si prprio, estratgias de superao. Se existe uma dor ou dificuldade especfica, ele no

    precisa desculpar-se a ningum, pois o responsvel pelo seu processo. Durante o treinamento

    apareceram vrias dificuldades, de toda ordem, como por exemplo: dores fsicas, pelo grande

    empenho corporal que o trabalho exige; dificuldades ligadas capacidade de concentrao ou de

    separao entre o que acontece em sala e as preocupaes dirias da vida cotidiana; dificuldades

    com a resistncia fsica e o cansao; medos e fraquezas que podem se revelar; expectativas consigomesmo e com o grupo; um senso crtico exacerbado, julgador, punitivo, que cria uma imobilidade

    frente a obstculos; um juzo, uma racionalidade que oprime, e tantas outras dificuldades que vo

    aparecendo, conforme o ator traa seu plano de si. Observar-se, prestar ateno ao prprio ritmo

    e s prprias particularidades, estar aberto, faz o ator encontrar por si mesmo, as melhores formas

    de relacionar-se com os problemas do processo. As descobertas e as conquistas so ainda mais

    prazerosas, quando ele reconhece suas debilidades e descobre meios para super-las. Seguem

    abaixo, relatos sobre algumas dessas dificuldades, e como os atores se relacionaram com elas:

    Hoje eu estava com gripe e um pouco de febre. Fui treinar na medida do possvel. Foi

    interessante, que durante o treino eu no tive nenhum mal estar, estive disposta, senti

    prazer. Fiz coisas que ainda no tinha feito: energtico mais dinmico, mais rpido.

    Acho que o fato de eu no ter nenhuma expectativa em relao ao treino e o fato de

    no temer, de confiar na minha capacidade de dosar a energia, me ajudou. 14

    13Jerzy Grotowski, 1992, p.213.14 Aline Marques, dirio de trabalho, 4/04/2008.

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    Para mim, eu acredito que o meu maior bloqueador foi a dificuldade da mente se

    conectar com o resto do treinamento, ou seja, preocupaes do dia-a-dia muitas

    vezes no me deixavam estar totalmente presente. O desapego total dos problemas

    cotidianos na hora do ato ainda um grande obstculo que devo superar. 15

    Penso que seja necessrio transcender mais a forma. Ser mais gil, mais furaco. Sinto

    falta de um furaco em mim. s vezes me sinto uma menina, criana, insegura, sem

    certezas ou verdades. Me sinto insegura com questes, me julgo, me critico, e nem sei

    se isso me ajuda ou me prejudica. 16

    A grande dificuldade fsica do cansao e a superao em no parar, mesmo segurando o

    vmito. Pude perceber as micro-motivaes que me conduziam durante o encontro. Foi

    fundamental a deciso de no ceder para a dor, mesmo ela sendo forte, at conseguir super-

    la tornando-a coadjuvante no trabalho. A conquista em cada gota de suor derramado. ive

    a conscincia do momento em que se percebe que se danado, como se fosse levado por

    algo, por uma fora, mesmo quando o corpo parece que no aguenta mais.17

    Hoje o corpo estava cansado, foi uma semana puxada, a que passou, mas mesmo assim

    no desisti, lutei de verdade.

    18

    s vezes acho que no vou conseguir, e por isso, nem tento. Como bom encorajar-me

    e fazer. Nem sempre estamos bem. Assim a vida. No estar sempre bem faz parte,

    precisamos aprender a conviver com o no confortvel.19

    Apesar das dificuldades, para mim e para os atores, foi fundamental saber instaurar um clima

    de prazer e de alegria durante o treinamento. Sobre esse aspecto, algumas percepes dos atores:

    A coisa mais importante do treinamento pr mim o prazer. Por mim podia ser sempre

    assim. Eu queria que essa fosse a minha vida. Que eu ganhasse dinheiro com isso. em

    as dificuldades, mas s alegria.20

    15 Lindon Satoru Shimizu, questionrio final, janeiro de 2008.16 Aline Marques, dirio de trabalho, 5/09/2008.

    17 Cassiano Azeredo, idem, 15/09/2007.18 Fbio Castilhos, idem.19 Simone De Dordi, idem.20 Aline Marques, dirio de trabalho, 14/07/2007.

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    reino por prazer. Porque eu quero fazer isso. Para me descobrir. 21

    Senti que o clima estava bastante descontrado, mas sem ser qualquer coisa. A dana

    dos ventos, principalmente, estava muito divertida. Acho que o caminho esse,experimentar. E principalmente divertir-se, no sofrer, ou ter extrema seriedade.22

    O treinamento me traz um prazer inquestionvel, muda minha vida, meu sono, minha

    percepo das coisas. Como se dignificasse minha escolha pelo teatro.23

    O prazer um dos sintomas para determinar se o treinamento foi uma experincia

    produtiva ou no. No quero dizer com isso que todos devam treinar sorrindo, mas sim,

    estabelecer um vnculo profundo com o que pretende desenvolver. importante encontrar

    dentro de si uma motivao real, concreta, fsica, pois isso vai dando um rumo para a pesquisa

    individual a cada dia. Superar as dificuldades, manter a disciplina dos treinos e lanar-se a

    desafios constantemente, vem acompanhado de uma sensao de ser apto a promover dignidade

    ao prprio ofcio. Conforme perceberam Simone e Satoru, logo nos primeiros dias de treino:

    Depois dessa semana tenho outro olhar para com meu trabalho. Sinto, no sei se estou

    certa, que apesar do teatro ser sempre coletivo, este trabalho muito particular. S cabe

    a mim transform-lo. Percebi que exige muito empenho, uma tarefa diria, que exige

    persistncia. E essa a maior transformao pessoal. Estou disposta a ter persistncia.

    No me conformaria em fazer o tipo de teatro que estava fazendo.24

    Sinto-me mais digno pelo contato comigo mesmo.25

    O prazer de aprofundar-se na prpria arte condiciona ao ator algumas escolhas, algumasdecises. Como por exemplo, a escolha por um ambiente e um grupo que faa ecoar, mesmo

    em parte, as suas aspiraes individuais, propiciar-se um espao, um tempo, e parceiros, que

    viabilizem a experimentao. Quer dizer, decidir pelo auto-comprometimento e disciplina,

    determina uma atitude tica frente ao prprio trabalho. Entendo por tica, uma tomada de

    21 Giovanna Zottis, dirio de trabalho, 14/07/2007.

    22 Simone De Dordi, idem, 10/09/07.23 Ibid, 13/7/2007.24 Simone De Dordi, questionrio, julho de 2007.25 Lindon Satoru Shimizu, dirio de trabalho,14/07/2007.

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    posio, uma escolha de como agir junto com os outros, em direo a um bem comum. No caso

    do treinamento, essa tica passa por uma disponibilidade de estar trabalhando junto, de acordo

    com regras estabelecidas coletivamente, no interesse em compartilhar um trabalho em parceria:

    Disciplina, disponibilidade, vontade, abertura, para mim so os principais elementos

    que o trabalho me d. No adianta a pessoa ter um alto grau de sensibilidade se no

    tiver esses elementos. So essas caractersticas que, para mim, no treinamento, iro

    fazer desenvolver minha sensibilidade e criatividade.26

    Da reverncia Dionsio ao exerccio mais tcnico, h que se encontrar disciplina,

    escuta e comprometimento.27

    Os elementos essenciais para o bom aproveitamento da experincia do treinamento

    foram a disponibilidade, a doao e a fque o grupo depositou nestes dias de trabalho.

    Outro fator essencial tambm foi a afinidade de vontades do grupo, que se constri

    da necessidade de cada colega experenciar, aprofundar e descobrir o seu caminho, seus

    desejos, anseios e dificuldades em relao ao seu fazer artstico, de maneira coletiva.28

    Muitas vezes, esse trabalho silencioso, s vezes to solitrio - mesmo em grupo - quepode ser o treinamento do ator, remete aos olhos dos outros, ou seja, de quem no treina, uma

    certa descrena, um certo ceticismo sobre a sua real importncia. Se estar diante do pblico, criar

    espetculos, o fim do ator, ento por que dedicar tanto esforo a um treinamento que ningum

    v? Acredito que, se houver uma resposta para essa pergunta, essa passa por um sentimento de

    inconformidade de quase revolta, que guia os atores que no se satifazem com aquilo que j est

    estabelecido. Mais do que algum que quer chamar a ateno para si, aproximo esse ator da idia

    de Kantor: um rebelde, um contraponto, um herege, livre e trgico, por ter ousado ficar s com

    sua sorte e seu destino29. So os atores que tm uma sede de si, uma curiosidade fresca, pulsante,

    uma atitude transparente sobre seu corpo, suas emoes, suas aspiraes. Eles tm um desejo

    de no serem meros repetidores, simplesmente, um desejo de serem autores - mesmo sabendo

    da autoria um bem diludo entre os outros agentes do processo. O treinamento pode funcionar

    26 Lindon Satoru Shimizu, dirio de trabalho,14/07/2007.27 Everton E. Santo, questionrio final, janeiro de 2008.28 Marcelo Bulgarelli, questionrio, julho de 2007.29adeuz Kantor. Le Ttre de la Mort, pp. 85-90.

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    como um laboratrio para a f do ator. F como crena, como capacidade em acreditar. Acreditar

    em si, em seus companheiros, em seus desejos, em seus ideais, em sua capacidade de trabalho.

    Mnouchkine fala sobre o dom de credulidade30dos atores. Ns podemos acreditar ou no nos

    atores. Os atores podem acreditar ou no no que esto fazendo, e isso remete diretamente aos

    espectadores. A f, em sua possibilidade de aprofundamento na arte, imprescindvel ao ator.

    Atravs da sua capacidade em acreditar, o espectador acreditar tambm, e se concretizar aquilo

    que o ator almeja: a partilha de algo seu, precioso, com o espectador. Mas esse desejo de partilhar,

    no suficiente, como coloca Ferracini:

    Essa vontade de partilha, em si mesma, no determina um bom trabalho de ator, mas

    determina a vontade de trabalho, e esse trabalho cotidiano, sistemtico o que pode, um

    dia, vir a determinar qualidade. E esse desejo ou ambio, essa vontade quase telrica

    , justamente, o combustvel que faz que eu trabalhe, na prxis, por uma constante

    revoluo pessoal, unitria, minha e do ser humano que me assiste; revoluo essa, que

    acomete o homem diante de uma obra artstica.31

    Poderia referir-me a alguns aspectos no trabalho do ator. Primeiro, um aspecto interno,

    que seria sua psiqu, suas emoes, sentimentos, sua mente, sua alma ou sua hereditariedade.Depois, um aspecto externo, que pode ser seu meio, sua cultura, sua sociedade, sua tradio.

    E um intermedirio, que no est dentro nem fora. Um entre, que se pode atribuir a um ir e

    vir, a uma conexo e interpenetrao de todos, ao espao entre um e outro ator, entre o ator e

    o espectador, ao corpo, ao contato, troca, comunicao, manifestao, formao de uma

    realidade que est em mudana, num constante vir a ser. Mas prefiro me referir ao ator, sem

    divises, a um entrelaar de desejos e prticas que nos leva a falar da vida do ator que no

    divisvel, que ntegra. Minha inspirao para o treinamento fazer os atores se aproximarem

    de uma possibilidade de si, ampla, generosa, abundante e frtil. Assim, busquei inspirar os atores,

    a descobrirem as linhas e o espao para o estabelecimento de um plano de reinveno de si. Nos

    seguintes captulos, tentarei registrar como isso se deu.

    30 Ariane Mnouchkine, 2007, p. 25.31 Renato Ferracini, 2006, p. 34-35.

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    4.1 PRESENA

    O ator (...) o fator essencial da encenao;

    ele que viemos ver,

    dele que esperamos as emoes que viemos procurar

    Se trata, ento, de fundamentar a encenao a todo custo,

    sobre a presena do ator, e para isso,

    liber-la de tudo aquilo que est em contradio com esta presena.1

    Cativar a ateno do pblico atraindo seu olhar, tornar-se visto, crescer ao olhar do espectador,

    ser notado ou sentido, so objetivos que o ator busca incessantemente no desenvolver de sua

    tcnica. Pode-se dizer que ter presena uma das qualidades mais almejadas pelos atores.

    Segundo Patrice Pavis, ter presena saber cativar a ateno do pblico e impor-se; , tambm,

    ser dotado de um que que provoca imediatamente a identificao do espectador, dando-lhe a

    impresso de viver em outro lugar, num eterno presente2. J Dario Fo refere-se presena como

    algo inerente ao indivduo. Ele diz: Eu acredito que presena , na origem, algo de natural. (...)

    Elas (as pessoas com presena) projetam alguma coisa sobre seus gestos, talvez por sua maneira

    de ser, que nos chama a ateno. Enquanto outros, no.3E, ainda, completa Fo, para o ator, este

    impacto inicial de chamar a ateno, no deve ser suficiente. O ator deve saber como sustentar

    esta capacidade de atrao4. ambm, para Bob Wilson o conceito de presena est ligado a algo

    nico, individual: Ele afirma que isto particular a cada indivduo, o que no final das contas

    faz com que o trabalho nos toque.5Wilson observa, no entanto, que mesmo sendo intrnseco

    em cada pessoa, para o ator, talvez seja necessrio que seja algo mais, aproveitando suas palavras,

    trata-se de ter confiana no que se faz, de conhecer seu corpo, sua voz, de conhecer o que

    1 Adolphe Appia apud M. de Marinis (curadoria), 1997, p.70. Lattore (...) il fattore essenziale della mezza inscena; lui che noi veniamo a vedere, da lui che aspettiamo lemozione che siamo venuti a cercare. Si trattadunque ad ogni costo di fondare la messa in scena sulla presenza dellattore, per far cio, di liberarla da tutto cioche in contraddizioni con questa presenza..

    2 Patrice Pavis, 1999, p. 305.3 Dario Fo apud J. Feral, 1997,p. 101.4 Ibid, p. 102.5 Bob Wilson apud J. Feral, op. cit., p. 339.

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    nico em si. (...) algo misterioso.6Essa parcela de presena como um mistrio, mas no como

    algo inatingvel, tambm notada por Peter Brook, para quem a presena do ator, aquilo que

    d qualidade ao seu ato de escutar ou de olhar, uma coisa misteriosa, mas no indecifrvel.(...)

    Ele pode descobrir essa presena num certo silncio em seu ntimo.7Para ampliar a reflexo,

    as contribuies de Richard Schechner e de Eugenio Barba, so tambm importantes. Para o

    primeiro, presena est associada noo de eventualidade, quando o espectador percebe que

    o ator pode no s mudar o que ele est fazendo, mas que ele pode tambm ser o autor desta

    mudana, no que tenha de mudar, mas que ele pode eventualmente faz-lo. 8E, na viso de

    Eugenio Barba, presena o que age sobre o espectador, uma maneira de recriar a vida sobre

    a cena, criando artificialidade e organicidade ao mesmo tempo. O ator deve criar uma formade fazer com que o espectador veja uma coisa que no somente conhecimento intelectual, mas

    que est enraizada em seu sistema nervoso e faz apelo a sua energia sensorial, intelectual, fsica,

    muscular9.

    Na nossa linguagem de trabalho, estar presente ou ter presena, quer dizer muitas coisas,

    entre elas uma capacidade de estar pleno no aqui e agora, no momento, de agir com preciso,

    com organicidade e com os sentidos afiados. Quer dizer, tambm, ser capaz de concentrar a

    ateno em algo, sem perder o que acontece sua volta. Ou ainda ser capaz de interessar-se por

    um caminho dentro do processo de treinamento e criar os prprios recursos para desbrav-lo. E,

    ainda mais, nesse sentido, presena tem a ver com a capacidade de direcionar a prpria energia

    pelo espao. Pode-se dizer que estes so meios para instaurar no ator este que, este estado que

    provoca o interesse daquele que v. Mas estes seriam apenas os aspectos que esto no topo de

    algo mais subjacente.

    Na perspectiva desta pesquisa, um dos aspectos compreendidos e ento explorados, que

    podem ser propulsores da presena refere-se ateno diferenciada. Para refletir sobre isso,

    recorro a dois exemplos prticos, onde a atriz Aline foi agente e meu olhar testemunha. O

    primeiro exemplo ocorreu durante o percurso do trabalho de campo desta pesquisa e o segundo

    ocorreu alguns anos antes, em 2006, quando fui professora de Aline em uma disciplina na

    UERGS/FUNDARE, universidade onde atuo como professora.

    6 Bob Wilson apud J. Feral, op. cit., p. 339.7 Peter Brook, 1999, p. 63.8 Richard Schechner apud J. Feral, 1997, p. 289.9 Eugenio Barba apud J. Feral, op. cit., p. 79.

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    Mas antes preciso destacar, j que a premissa para anlise o meu olhar, que naturalmente

    este vem carregado de minha subjetividade, ou seja, quem eu sou e quem estou, enquanto

    indivduo, pesquisadora ou professora, influencia a descrio. Mas ainda assim, buscarei a luz da

    transparncia invocada por Sontag, como aquela que significa luminosidade da coisa em si,

    das coisas que so o que so10. No momento de descrio e anlise do trabalho fsico, executado

    por outros atores, necessrio, alm do exerccio de um olhar transparente para ser fiel aos

    fatos, uma certa imparcialidade para nos aproximarmos com objetividade das coisas que so.

    Como toda pesquisa em arte, essa observao de fatos acaba sendo afetada por qualidades que,

    s vezes, nos escapam, como por exemplo, aquelas qualidades que pertencem especificamente

    ao movimento(...) que nos falam secretamente.11

    entarei direcionar minha descrio dosfatos, mesmo que este trabalho no se trate de crtica em arte, perseguindo um bombardeio de

    preciso de estilo, e uma evocao da natureza essencial do trabalho uma viso filtrada por uma

    viso e sensibilidade particulares12.

    No treinamento proposto no trabalho de campo, um dos exerccios mais exigentes

    fisicamente o exerccio do samurai13. O ator instrudo a acionar uma carga muito forte de

    energia nos movimentos, que devem ocorrer no espao de forma direta, assertiva e decidida,

    semelhante figura do tradicional guerreiro oriental, com uma energia masculina e potente,

    procurando exercitar um estado de alerta e prontido maiores que os habituais ou cotidianos.

    Satoru, outro dos atores desta pesquisa, articula muito bem essa energia, por j trazer na sua

    histria corporal uma longa experincia com o karat e com os princpios da arte marcial do

    oriente. Em um jogo de relao entre o samurai de Satoru e o samurai de Aline, pude observar

    um ajuste de intensidades por parte de Aline. Naquele momento do treino, por ela apresentar

    maior dificuldade e menor liberdade que ele na execuo formal dos passos e no domnio tcnico

    da energia, Aline se via quase que obrigada a fazer uma espcie de compensao, atravs de uma

    intensificao da sua ateno sobre seu guerreiro adversrio. Essa intensificao era visvel

    atravs de um aumento no nvel de tenso muscular, de uma maior aderncia dos seus ps no

    cho, de uma agudez maior no olhar, de uma seriedade na expresso do rosto, de uma pequena

    inclinao do tronco para frente e da instaurao de um estado corpreo geral mais ativo e alerta.

    10 Susan Sontag, 1987, p. 23.11 Deborah Jowitt, material didtico.12 Ibid.13 Este exerccio ser descrito no captulo ornar-me contigo.

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    Isso obrigava Satoru, por sua vez, a redobrar sua ateno e provocava nele, tambm, em reao,

    um estado de prontido ainda maior do que havia demonstrado antes. Na carncia de um domnio

    tcnico absoluto do samurai, Aline viu-se obrigada a acessar aquilo que para ela era possvel no

    momento, numa espcie de auto-defesa natural: uma maior ateno aos movimentos de Satoru.

    Como se invocasse, fisicamente, uma antiga estratgia de luta: se no posso atacar, saberei me

    defender. O resultado era uma relao equilibrada, onde os dois jogavam com equanimidade

    de foras. Especificamente neste momento do confronto entre samurais, a ateno instaurada

    deflagrava uma intensificao de todos os aspectos que estavam postos prova: o tnus muscular,

    a relao consciente com o cho, a participao da coluna e o olhar decidido. Era como se a

    figura do samurai houvesse sido aumentada em suas dimenses. Porm, alguns anos antes, eupude presenciar um estado de ateno diferenciada na mesma atriz, atravs de diferentes sinais

    corporais,