ALAMBERT, F. (2012) Reinvenção Da Semana 1932-1942

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    A REINVENO

    DA SEMANA(1932-1942)Se os ngulos de viso variam de uma gerao para outra,

    os problemas a se resolverem conservam eternamente os mesmos rtulos(Srgio Milliet).

    Francisco Alambert

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    dossi Semana de Arte Moderna

    RESUMO

    A Semana de 22 o mais importante fato da histria da cultura modernano Brasil. Por isso ela possui uma existncia histrica que lhe permite ser

    inventada e desinventada, amada e odiada, reconstituda e desconstrudaem todos os momentos em que a histria do Brasil moderno colocada emquesto. A Semana tornou-se efemride oficial e passou a ser reinventadaconforme os interesses e necessidades de cada poca em que o Brasil teveque repensar sua modernidade. o que o artigo pretende demonstrar, par-tindo da anlise dos vinte primeiros anos da existncia histrica da Semana.

    Palavras-chave: modernismo, Mrio Pedrosa, Antonio Candido, PauloEmlio, histria da cultura, arte moderna.

    ABSTRACT

    The 1922 Modern Art Week is the most important fact of the history of modern

    culture in Brazil. Because of that it can be invented and de-invented, loved or

    hated, reconstructed or deconstructed every time Brazilian modern history

    is under scrutiny. The Modern Art Week has become an offi cial major event;

    and has been reinvented to suit the interests and needs of each time Brazil has

    had to rethink its modernity. That is what this article seeks to demonstrate by

    analyzing the first 20 years following the Modern Art Week.

    Keywords:modernism, Mrio Pedrosa, Antonio Candido, Paulo Emlio, historyof culture, modern art.

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    Apenas quarentaanos antes da c-lebre Semana deArte Moderna de1922, as questescentrais do deba-te brasileiro sobre

    cultura e poltica poderiam ser resumidas aestas: devemos ou no abolir a escravido?;como fazer parte do concerto das naese da lgica do trabalho livre, moderno e in-dustrial?; a monarquia ou a repblica so asformas polticas necessrias para um pas li-vre e moderno?; culturalmente ramos meros

    copistas das ideias e das formas estrangeiras,como queria Sylvio Romero, ou, ao contrrio,incapazes de copiar, como queria Machadode Assis, e por isso mesmo condenados a in-ventar e adaptar formas e ideias?

    A incrvel proximidade histrica entre1880 e 1920, que raramente lembrada, mos-tra tanto o quanto as coisas no Brasil podemestar atrasadas quanto como elas podem seacelerar muito rapidamente. Os modernistas,

    todos nascidos entre ns da dcada de 80 eincio da dcada de 90 do sculo XIX, somais lhos desses debates do passado do

    que apstolos das novas ondas trazidas pelacivilizao industrial moderna. Dito de ma-neira mais clara, eles forosamente tinhamque se debater com ambas: com o passadorecente que no passava e com o novo quej tardava.

    Essas contradies e permanncias so

    tanto a base da histria da Semana de 22quanto so a matria mesma da histria doBrasil. Por isso a Semana o mais impor-tante fato histrico do Brasil moderno, dongulo da histria da cultura. Por ser essefato, ela ganha uma outra existncia, umaexistncia histrica. Ela assim inventada edesinventada, amada e odiada, reconstitudae desconstruda em todos os momentos emque a histria do Brasil moderno, de suas

    utopias e distopias, precisa ser posta na or-dem do dia ou no silncio da noite.

    A Semana de Arte Moderna entendida,quase consensualmente, como umaperfor-manceem forma de ato de guerrilha aris-

    tocrtica de jovens burgueses antiburgueses,dando-se a isso ora sentido positivo, ora ne-gativo. Praticamente ningum, sobretudo osprprios participantes, nega o fato de que aSemana nasceu para ser mito, para ser criadae recriada, para ter carter marcante e trans-formador. E que para isso a batalha deveriacontinuar muito depois daqueles dias de fe-vereiro de 1922.

    Portanto, no h uma histria da Semanaque no tenha que ser tambm uma histriado sculo brasileiro da Semana. De comoesse sculo pensou seu ato originrio e seumito. No h por que no entender que a

    histria da Semana de Arte Moderna umaguerra de interpretaes e armaes que re-nascia todas as vezes, especialmente em seusaniversrios decenais, em que ela era admi-rada e nas vezes em que era (ou ) achin-calhada. Se nos dias de fevereiro a respostaagressiva e barulhenta da plateia era parte daperformancetanto quanto o que aconteciano palco ou nos sales, sempre que se fa-lou da Semana de 22, esse ato se refez. Pelo

    menos at o momento em que, por volta dadcada de 1980, a Semana foi desaparecendocomo smbolo j quase secular para todas asmudanas, estabilizado-se apenas como umevento histrico (ou como matria de merca-do acadmico, ou como desculpa para discur-sos bairristas, etc.). Desde ento ela passoua ser cada vez menos efusivamente come-morada, ainda que permanecesse como umafantasmagoria a assombrar o sono dos vivos.

    A Semana um fato sacralizado comoevento-smbolo da mentalidade renovadora emoderna do Brasil. Repetir isso, destacandoseu aspecto mais ou menos regressivo, comose fez nos anos 80 (e continua se fazendo athoje), to vlido e banal quanto repetir aimagem de que os dias de fevereiro de 1922foram equivalentes aos dias de outubro de1917. Mais do que o rol de intrigas, o queinteressa saber que a histria da Semana a

    histria do nosso sculo querendo saber quemsomos e para onde vamos com mais ou me-nos desatino. O que sabemos, sem dvida, que os participantes comearam a escreveruma histria de seu evento fundador elegen-

    FRANCISCOALAMBERT professorde Histria Socialda Arte e HistriaContemporneado Departamentode Histria da USP.

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    do os pontos a se privilegiar que se tornaramdesde ento os pontos a serem armados ou

    negados. A partir da, a Semana de Arte Mo-derna tornou-se efemride ocial e passou

    a ser recontada e reinventada conforme osinteresses e necessidades de cada poca emque o Brasil teve que (re)pensar sua moder-nidade. o que veremos a seguir, atravsda anlise dos vinte primeiros anos da exis-tncia histrica da Semana, ou de seu mito,de suas comemoraes e transformaes.

    II

    Em 1932, nos seus primeiros dez anos deexistncia, a Semana ainda reverberava comofato vivo, que podia continuar para diferen-tes lados. J ento havia claramente, comosintetizou Srgio Buarque em artigo clebrede 1926, um lado oposto mas tambm ou-tros lados (Holanda, 1996). Como se tornoucorriqueiro repetir, a polmica ainda reinavanos sales (da aristocracia, do Estado ou daclasse mdia radicalizada). E isso era sinal de

    uma reviravolta brasileira ainda em processo,da qual a Semana foi parte e muito difcilde ser sintetizada.

    Conforme entramos no sculo XX, po-demos observar uma nova mudana no eixoda produo intelectual mais adiantada (bemcomo no domnio poltico do Estado), cons-tituda nas cidades, se

    dirigindo em direo

    a So Paulo. No incio do sculo, no ape-nas o Estado mas principalmente a cidade

    de So Paulo passavam por um processo decrescimento econmico de grande escalaproveniente dos negcios em torno do caf.Ao lado das mais provincianas tradies, acultura mais ou menos europeizada (erudi-ta, pedante e conservadora), acumulada emtorno da Faculdade de Direito, e o clima tra-zido pela modernizao tcnica e urbana (eseus milhares de imigrantes vindos de todasas partes do mundo) criaram em seu entre-

    choque uma nova gerao de intelectuais eartistas dispostos a transformar radicalmenteo panorama cultural da Repblica. Para osmodernistas, especialmente os paulistas,as permanncias simbolistas, romnticas e

    parnasianas (ou idealistas, antitecnicistas eantimodernistas) representavam no apenascaractersticas estticas ultrapassadas pelamodernidade mas tambm caractersticassociais recursivas que emperravam a moder-nizao brasileira. A cidade tentacular, apauliceia desvairada, era o espelho da eufo-ria e das mudanas aparentemente possveis.Por isso a ao performtica e programticada Semana, no ano das comemoraes docentenrio da Independncia, foi paulista, eapenas por isso (o que no pouco nem algoque possa ser desprezado por qualquer lgicade lutas de regio).

    Todos sabemos que o movimento mo-dernista foi contemporneo do

    tenentismo,da fundao do

    Partido Comunista do Bra-sil e dos debates que levariam ao projeto daEscola Nova. Nesse momento, as transfor-maes nas artes, na educao, na polticae na vida urbana caminhavam prximas edavam a impresso otimista de um progressocontnuo. Se nos anos 20 a literatura (para amaioria) ou as artes plsticas (para alguns)

    eram a vanguarda desse estado, na pri-meira dcada de aniversrio da Semana, aarquitetura passaria a ser a sntese desse sen-timento erigido em pedra e concreto armado.

    O perodo que se estende entre as dca-das de 30 e 40 faz surgir como gura cen -tral o arquiteto: o pas foi mesmo por uminstante o paraso dos arquitetos (Pedrosa,1995, p. 237)1. Lcio Costa aqui a guramais importante, a outra face do modernis-

    mo paulista de Mrio de Andrade, princi-palmente depois de assumir a direo daEscola Nacional de Belas Artes e promover,em 1931, o 38oSalo da Escola Nacional deBelas Artes, quando pela primeira vez (des-de a Semana de 22) surge para o pblicobrasileiro no Rio de Janeiro a vanguardamodernista e a arte moderna, ou seja, quaseexatamente na primeira dcada das come-moraes da Semana2. O caminho do mo-

    dernismo no Brasil, pelo menos at os anos60, sempre o resultado da tensa negociaoe aprendizado entre paulistas e cariocas, ouseja, entre as novas formas estruturais docapitalismo brasileiro moderno.

    1 Esse ensaio de Pedrosa um dos mais brilhan-tes contraexemplos daforma de lembranada Semana na pocada ditadura militar.Para uma importan-te reflexo sobre oimpacto de 1930 nacultura, ver Candido,(1987a).

    2 Sobre o Salo e seusdesdobramentos paraa cultura, ver Souza(1980, pp. 249-50).

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    Nessa reorganizao (ou rotinizao)do modernismo ps-30, o Estado tem papelcentral, e disso resultam tanto a primeiraatualizao quanto o precoce envelhecimen-to do ato performtico da Semana de 22. Poiso ser moderno, agora, implicava a vontadeconsciente de suplantar esse momento inde-ciso de manifestaes vanguardistas avulsas(Arantes, 1997, p. 119). A partir da capital fe-deral, e junto ao Estado (mesmo o Novo),o Brasil passaria a pensar uma face urbana earquitetnica moderna, como uma identidadeque lhe distinguisse, pois sem uma histriaclssica que fez reviver na Europa um estilo

    fascista classicizante nostlgico dos grandesimprios ramos a prpria matria brutada modernidade, j bem diagnosticada e tra-balhada por uma vanguarda local na dcadaanterior (Recamn, 2001, p. 220). J aqui ospreceitos da Semana morriam para renascer.

    Por outro lado, ela ainda estava viva o su-ciente para poder ser reinventada por outros

    meios. Sem querer ser efemride comemora-tiva, mas tambm sem poder deixar de ser,

    em novembro de 1932 o arquiteto e multiar-tista (ou seja, a Semana encarnada) Flvio deCarvalho, junto com alguns veteranos dadcada anterior e outros mais novos, fundouo Clube dos Artistas Modernos (o CAM).Seu intuito era criar uma agremiao dearte (e poltica) moderna que no dependesseda ajuda nanceira nem dos mecenas nem do

    Estado3. Em entrevista ao jornal Folha daNoite, Jaime Adour da Cmara declarava que

    o CAM deveria, alm de congraar

    [...] todos os artistas modernos, estimularreunies, realizar palestras sobre assuntos dearte, procurar por todos os meios estar emperfeita ligao com todos os grandes cen-tros artsticos do mundo. Afora todas essasparticularidades, o clube procurar facilitara aquisio de modelos coletivos; em suma,tratar da defesa dos interesses da classe (C-

    mara, 1932).

    O CAM era a Semana funcionando poroutros meios, e sobretudo muito mais es-querda. No CAM, anarquistas, sindicalistas

    e marxistas falaram, discursaram, expuse-ram e panetaram. Deperformancearisto-crtica, em 22, passava-se agora, em 32, aperfomance-comcio. O rpido fechamentodo CAM tem mais a ver com isso do quecom as estripulias morais ou experimentaisque at hoje lhe trazem fama. Na verdade, apoltica comoperformanceera parte decisivadas estripulias. Para se entender isso seriapreciso uma reexo maior sobre os cami-nhos da esquerda nos anos 30-40, para almdo dogmatismo do PCB e do nacionalismomodernista de Mrio de Andrade ou de L-cio Costa, e na qual modernistas tributrios

    de muitas das discusses a partir da Semanade 22, como Flvio de Carvalho e Mrio Pe-drosa, so centrais.

    Em 1932 a Semana de 22 no podia serliteralmente comemorada porque seus fun-damentos, sobretudo os mais progressistas,pareciam ainda estar em andamento. OCAM almejou at mesmo repetir a parce-ria entre paulistas e car iocas, que marcarao movimento de 1922. Os protagonistas do

    grupo paulista e da Sociedade Pr-Arte, doRio de Janeiro, fundada em 1931 (sobretudopor judeus alemes), tentavam estabeleceruma aliana modernista mais ampla. Juntocom o CAM, a sociedade carioca, ento di-rigida por Guignard, idealizou uma espciede franquia de suas sedes a m de realizar

    exposies, tentar criar uma escola de artese ofcios junto a um retiro de artistas no Riode Janeiro e editar em conjunto uma revis-

    ta. Como primeiro resultado dessa parceria,foi enviada a So Paulo, em junho de 1932,uma mostra de obras da gravadora alem emilitante socialista Kthe Kollwitz, ante-riormente exibida na galeria carioca Heu-berger. Foi na verso paulistana da exposi-o que Mrio Pedrosa apresentou aqueleque considerado seu primeiro texto decrtica de arte, dando incio mais radicalexperincia crtica do pensamento brasilei-

    ro sobre as artes plsticas modernas4. Emsua plateia no havia burgueses ou aristo-cratas cosmopolitas esperando ou se escan-dalizando com choques e novidades. Mashavia muitos daqueles para os quais a re-

    3 A Diretoria do CAMcontava com, entreoutros, Anita Malfatti,Nomia Mouro, Tar-sila do Amaral, JohnGraz, Yvone Maia, An-tnio Gomide, CarlosPrado, Flvio de Carva-lho, Procpio Ferreira,Paulo Torres, AfonsoSchimidt, Paulo Prado,Srgio Milliet, Caio

    Prado Jnior, Yolan-da Prado do Amaral,Baby C. Prado, Bea-triz Gomide. Oswaldde Andrade contavacomo associado,ao passo que Mriode Andrade e MrioPedrosa como fre-quentadores. Sobre oCAM, ver: Forte (2008).

    4 O ttulo original daconferncia era KtheKollvitz e o Seu Modo

    Vermelho de Percebera Vida, mudado de-pois para o definitivoAs Tendncias So-ciais da Arte e KtheKollwitz (cf. Pedrosa,1995).

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    voluo modernista tinha que assumir umcarter efetivamente revolucionrio, muitoalm dos sales e dos teatros municipais.

    III

    Entre a primeira dcada do evento, em1932, e a segunda, em 1942, a primeira mu-dana na histria da histria da Semana deArte Moderna se processou. Se em 1932 aSemana parecia jovem demais para ser cele-brada, em 1942 ela j parecia pronta para serenterrada. As questes fundamentais dessemomento crtico eram: a) saber quem era o

    defunto; b) saber quem eram seus herdeiros;c) saber o que fazer com o legado de algo tonovo e j to envelhecido. Aos 20 anos deidade, o esplio da Semana estampava umacrise criativa e muito produtiva, na qual asguras dos dois Andrades, Mrio e Oswald,

    encarnavam duas maneiras de pensar a con-tinuidade ou no da revoluo. Se o mpetoiconoclstico de 22 (ainda vivo em 1932) jhavia arrefecido, seus desdobramentos foram

    tremendamente criativos.Antes disso, porm, esses desdobramen-

    tos foram precedidos por um sentimento do-loroso de derrota e crise, em plena ditadurado Estado Novo: z muito pouco, porque

    todos os meus feitos derivam de uma ilusovasta [] faltou humanidade em mim. Meuaristocratismo me puniu. Minhas intenesme enganaram. Ou ainda mais trgico (eno menos lcido): meu passado no mais

    meu companheiro. Eu descono do meu pas-sado (Andrade, 1974, p. 252). Era assim quese sentia Mrio de Andrade perto do nal de

    sua vida, em 1942, em meio ao Estado Novo,s incertezas da Segunda Guerra Mundial,do futuro do nazifascismo e diante da des-confortvel posio de lder do vitoriosomovimento de modernizao cultural e pol-tica que parecia chafurdar, impotente diantedesse quadro de regresso. Dedo em riste,

    falando de outros tanto quanto de si mesmo,Mrio de Andrade lamentava que com pou-cas excees (nas quais ele mesmo no seenquadrava) ele e os modernistas vitoriosostivessem sido vtimas do nosso prazer da

    vida e da festana em que nos desviriliza-mos, virando as costas revolta contra avida como est. Incapazes de ler de fato ahistria e a poltica, deixaram de lutar peloamilhoramento poltico-social do homem(Andrade, 1974, p. 252).

    Talvez nunca um intelectual brasileiro te-nha lutado to violentamente contra si mes-mo. Mas a lamentao era uma autocrtica etambm uma ao programtica. Pois umatraio, j cometida antes, era agora sor-rateiramente indicada como uma estratgiade superao da derrota: abandonei, traioconsciente, a co, em favor de um homem-

    -de-estudo que fundamentalmente no sou.Mas que eu decidira impregnar tudo quantofazia de um valor utilitrio, um valor pr-tico de vida, que fosse alguma coisa maisterrestre que co, prazer esttico, a beleza

    divina (Andrade, 1974, p. 254).Mas nem tudo estava morto, e os vivos

    ainda poderiam caminhar adiante. Comose sabe, nesse mesmo depoimento, Mriode Andrade sintetizou os trs princpios vi-

    vos sados da aventura modernista dos anos1920: a) o direito permanente pesquisaesttica; b) a atualizao da inteligncia ar-tstica brasileira; c) a estabilizao de umaconscincia criadora nacional (Andrade,1974, p. 242). Isso foi o resultado positivo deum individualismo que arriscou, mas cujacontinuidade agora, nas novas condies emque se clama por uma renovada politizaoda inteligncia (Marchem com as multi-

    des), deve ser preferencialmente pensadaem sentido coletivo. Eis o conselho, verda-deiro programa para os ventos democrticosque talvez viessem: para se manter o direito pesquisa esttica (aqui entendido como odireito cultura moderna), para se prosse-guir a atualizao da inteligncia artsticalocal e para se estabilizar uma conscinciacriadora nacional, era preciso pensar a cul-tura e a arte para alm do mpeto esttico (e

    aristocrtico) do primeiro modernismo. Etudo isso com a poltica e com a polticapara as multides (mesmo que no hajasinal de que a poltica seria para a classecomo era para o CAM apenas uma dcada

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    antes). Um peculiar chamado passagemda co prtica, uma prtica que ser en-tendida por alguns como uma nova prticaintelectual. E o lugar dessa prtica no sernem o aristocrtico teatro de pera, nem osalo burgus-proletrio: ser a universidade.

    Classe era um conceito importantepara o modernista, convertido ao marxismo,Oswald de Andrade. Oswald no comemo-rou a maioridade (ou a morte) da Semanaem 1942. Esperou uma oportunidade maisprtica, mas no menos alegrica. Em 1944,a convite do prefeito de Belo Horizonte Jus-celino Kubitschek, proferiu na capital minei-

    ra a sua verso do Movimento Modernista,ligando o caminho percorrido de 22 a 44.Ali, na cidade perfeita5, diante dos novosaliados mineiros (no marxistas, mas fran-camente desenvolvimentistas), ele deu suaverso para o cenrio de vinte anos antes:

    preciso compreender o modernismo comsuas causas materiais e fecundantes, hauridasno parque industrial de So Paulo, com seus

    compromissos de classe no perodo ureo--burgus do primeiro caf vaporizado, enm

    com o seu lancinante divisor das guas quefoi a Antropofagia nos prenncios do abalomundial de Wall-Street. O modernismo umdiagrama da alta do caf, da quebra e da re-voluo brasileira.

    Tudo isso para explicar que a Semana foimais pr-antropofagia do que propriamente

    modernista: a Antropofagia foi na primeiradcada do modernismo, o pice ideolgico,o primeiro contato com nossa realidade po-ltica porque dividiu e orientou no sentido dofuturo (Andrade, 1972, pp. 95-6).

    E o futuro j havia chegado e estava emBelo Horizonte, na arquitetura da Pampulha,em Juscelino.Oswald compara a experin-cia modernista paulista com a Incondncia

    Mineira e o movimento rcade, exalta o jo-

    vem prefeito modernizador e as revoluesdemocrticas burguesas, apontando para acontinuidade do modernismo, da antropofa-gia sobretudo, para orientar o destino do Bra-sil6. Em sua histria, cheia de continuidades

    e de conitos, no existe trao da crise de

    conscincia de Mrio de Andrade.A Oswaldpouco interessa o carter aristocrtico queMrio denunciava em sua conferncia. Muitomenos qualquer crise nacionalista.

    Se a forte relao do modernismo com aEuropa no era motivo de vergonha para osAndrades, ao contrrio, importar o espri-to modernista europeu, como deniu Mrio,

    era essencial para acertar o passo do Bra-sil com o mundo, como explicou Oswald,as semelhanas entre eles vo parando pora. Oswald enumera exemplos do atraso dacultura brasileira que teriam sido varridos

    pelo mpeto modernista, o que teria trazidoo povo ao protagonismo da arte produzidano Brasil. Ele exulta tanto suas reminiscn-cias histricas quanto sua prpria genialida-de, exemplo para os jovens cuja misso serabrir inteiramente a clareira. Trabalho pol-tico, resultado de uma nova aliana que subs-tituiria o velho caf com leite da RepblicaVelha, que fez o modernismo acontecer, paraa nova forma do Brasil depois do fascismo

    e beira da revoluo: Faamos da irma-nao entre mineiros e paulistas, um fastoda fraternidade nacional. Faamos crdito unio que se anuncia! Constatamos hoje quecaram marcados aqui, vinte e dois anos de

    luta nesse trajeto. De So Paulo a Belo Hori-zonte (Andrade, 1972, p. 101). Para Oswald,os modernistas verde-amarelistas e os libe-rais seguidores de Mrio caram no passado

    do Estado Novo. O futuro do Brasil seria a

    retomada dele e de sua antropofagia, agoramarxista, com os novos aliados das Minasdesenvolvimentistas.

    No momento em que proferiram suasconferncias, os Andrades j haviam pas-sado pela experincia de um engajamentopoltico real. Mrio, como um dos articula-dores do Partido Democrtico e como chefeda Diviso de Expanso Cultural, duranteo governo Vargas. Oswald, o homem sem

    prosso, foi membro do Partido Comunis-ta, agitou o mundo da provncia com Pagu,escreveu radicalmente sobre poltica. Semcargos e sem o desejo de construir o Esta-do, Oswald permite-se ser otimista, ego-

    5 To perfeita era a ci-dade juscelinista que,l, o maior dos arqui-tetos do paraso bra-sileiro da arquiteturamoderna, o Gnioarquitetnico de Os-car Niemeyer, faria anica catedral capazainda de converter.Nessa cidade sagrada

    do novo modernis-mo, pregava ainda umsanto ensinando asartes da pintura comonos bons tempos doRenascimento, Guig-nard, aquele mesmoque doze anos antestentou uma frustradaaliana com os radicaisdo CAM de Flvio deCarvalho. A confern-cia de Oswald emgrande medida a mis-sa do pregador bus-cando novos rebanhos(Andrade, 1972, p. 102).O texto de Oswaldfoi republicado em1972, na esteira dascomemoraes patro-cinadas pela ditaduramilitar, como de res-to uma grande partedas obras do primeiromodernismo e muitosestudos fundamentaissobre o tema.

    6 que a Antropofagiasalvava o sentido domodernismo e pagavao tributo poltico de tercaminhado decidida-mente para o futuro(Andrade, 1972, p. 97).

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    cntrico e utpico7: preciso, porm, quesaibamos ocupar nosso lugar na histriacontempornea. [] O papel do intelectuale do artista to importante hoje como o doguerreiro da primeira l inha. A lembranade 22 de Oswald to autocentrada quantoa de Mrio, mas muito mais complacentee otimista. Ele a inda quer formar exrci-tos (e nesse sentido est muito prximo doCAM). Depois de estabelecer o paralelo en-tre a Incondncia e a Semana de 22 como

    movimentos que queriam acertar o passocom o mundo, Oswald entende os desdobra-mentos polticos posteriores, o tenentismo, a

    Coluna Prestes e a Revoluo de 30, comodecorrncia direta do caminho aberto pelossemforos de 22. E da faz seu apelo, suaverso para o Marchem com as multidesde Mrio: Tomai lugar em vossos tanques,em vossos avies, intelectuais de Minas. Tro-cai a serenata pela metralhadora. [] Deni

    vossa posio! (Andrade, 1972, pp. 100-1).Em um e em outro Andrade o apelo aos

    jovens, aos seguidores, era um trao comum.

    Se a Semana envelhecia, caducava alienadae reacionria, que o futuro viesse. No mes-mo momento em que os Andrades de 22faziam seu jogo e suas apostas para que omovimento de superao modernista tomas-se novo flego, j se encontrava em evoluoo processo que formaria uma nova geraode estudiosos e acadmicos modernos, emmuito devedores da crise de conscincia deMrio de Andrade, que o gnio desabusa-

    do de Oswald de Andrade no hesitou emapelidar de chato boys. Para o surgimen-to desse novo momento nos estudos sobre acultura brasileira foi de crucial importnciaa fundao da Faculdade de Filosoa da Uni-versidade de So Paulo, projeto acalentadopor modernistas, modernizadores e descen-dentes progressistas dos oligarcas de 22. Suaprincipal consequncia foi a formao de umcerto radicalismo intelectual, ou mais especi-

    camente, como disse Antonio Candido, um

    modesto radicalismo que cou sendo uma

    tradio e tem produzido efeitos positivos(Candido, 1980, p. 103).

    Antonio Candido deniu o poeta e crtico

    modernista Srgio Milliet como o homem--ponte entre a gerao de 22 e aquela queele mesmo representava. Mais do que isso,Milliet seria sua maior afinidade e o pon-to inicial em que se baseou para denir seu

    prprio iderio crtico. Candido salientava asqualidades do tipo de ensasmo que Millietintroduzira entre ns: sua capacidade de cir-cundar problemas, evitando dogmatismos,aguando a reexo, engajando sua perso-nalidade numa forma crtica que tateia comliberdade os fatos e as ideias por meio dopensamento que se ensaia (Candido, 1987,p. 131). Uma atitude que ensaiava ela mesma

    a possibilidade da crtica dialtica que osanos posteriores viabilizariam. Uma lio aque os participantes da revista Clima, funda-da em 1941 (pouco antes dos acontecimen-tos de 1942, portanto), daro continuidadese desdobramentos.

    Alm de Antonio Candido, Paulo Em-lio Salles Gomes foi outro jovem intelec-tual ps-modernista que fez histria. Naverdade, suas ideias foram decisivas na for-

    mao intelectual de sua gerao. Marxistamilitante, exilado poltico, frequentador doscrculos intelectuais radicais franceses, te-rico dialtico das vicissitudes da cinema-tograa nacional e seus impasses, o jovem

    redator de Climatinha tudo para conquistara ateno dos novos intelectuais, simpticosao ensasmo de Milliet e aos clamores deMrio e Oswald. Mais do que isso, ele lhesdeu quase um plano de trabalho, bem como

    uma orientao poltica precisa, como se foraele o responsvel por repensar o modernismoem nome de sua gerao depois da despedidade Mrio de Andrade e da proposta de con-tinuidade crtica de Oswald.

    Em 1943, j em plena ressaca das come-moraes de 1942, o jornalista Mrio Neme,provavelmente inuenciado pela conferncia

    de Mrio sobre a crise do modernismo e astarefas da nova gerao, realizou um inquri-

    to publicado nas pginas do jornal O Estadode S. Paulo, que depois seria reunido em li-vro intitulado Plataforma da Nova Gerao(1945)8. Nele, jovens crticos e escritores sur-gidos nos anos 1940 eram questionados sobre

    7 Silviano Santiago (2006,p. 116) observou que a

    escolha de Oswald emfazer a conferncia em1944 e no em 1942significava uma estra-tgia para ao mesmotempo lembrar a via-gem dos modernistasem 1924 s cidadeshistricas de Minas eo prprio movimentoPau-Brasil, ou seja, dese colocar ele mes-mo como centro domodernismo. Mas

    preciso notar tambm,como fez Oswald, quehavia outros passadosa se relembrar: a trag-dia da Revoluo de1924, em So Paulo, eesse raide de semilou-cos que foi a ColunaPrestes.

    8 Esse inqurito eraacompanhado por ou-tro, com os represen-tantes da gerao maisvelha (fundamental-

    mente os modernistasde diferentes verten-tes), que foi tambmpublicado com o ttulotumular deTestamentode uma Gerao(Cava-lheiro, 1944).

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    Catlogo da exposio da Semana de 22, com desenho de Di Cavalcanti

    CaixaModernista,

    Edusp/EditoraUFMG/ImprensaO

    ficial,SoPaulo,

    2003

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    dossi Semana de Arte Moderna

    a herana recebida das geraes anteriores esobre seus novos valores em esttica, cin-cia e ideologia (alm das relaes disso tudocom a guerra mundial em pleno andamento).Sinal de tempos de mudana, percebida alispor Milliet, o homem-ponte, que agora (eleanota em seuDirio Crtico, em 4 de julhode 1943) estaria s vsperas da ecloso deuma nova esttica (e, acrescento, de um novopensamento sobre a esttica nas novas con-dies brasileiras). Uma nova gerao pron-ta para o engajamento e para unir pesquisacultural e atuao social: a gerao de 22falou francs e leu os poetas. A de 44 l in-

    gls e faz sociologia

    (Milliet, 1981, p. 109)9

    .Dentre os depoimentos da Plataformados jovens intelectuais, o de Paulo Emliose destacava pela admirvel lucidez e pelacapacidade de organizar as questes decisi-vas do perodo e do que viria adiante. Desdeo incio, ele deixa claro que fala do pontode vista de um jovem intelectual paulistanode esquerda (especialmente, da elite inte-lectual da cidade), mas que pertence a uma

    nova gerao para a qual no h unidadeideolgica. Entretanto, lhe parece certo quenaquele momento a direita est derrotada esobrevivendo em um clima de delrio, refu-giando-se em elogios tresloucados a milita-res argentinos e se vendo nos romances deClarice Lispector. Tudo sinal de um desvioda gerao antecedente que, como Mrio deAndrade disse em sua conferncia, e PauloEmlio repete em outros termos, perdeu o

    rumo da histria: a estrada do oportunismo uma estrada real, e j foi trilhada por repre-sentantes ilustres da faco(Paulo Emlioapud Calil & Machado, 1986, p. 82).

    Paulo Emlio cauteloso em relao aofuturo. O fascismo poderia retornar por con-ta da confuso da poca, inclusive entre aesquerda. Ele nota o recrudescimento do rea-cionarismo catlico ao mesmo tempo em quea desiluso poltica e atinge desde a direita

    at os comunistas. O certo que o liberalis-mo seria o grande derrotado da poca. Sobreisso, fez um prognstico surpreendente queos anos recentes realizaram de maneira efe-tiva: no h na nova gerao nenhum setor

    intelectual propriamente liberal, no velhosentido da palavra. Ligados s atividadesintelectuais da Fiesp, alguns jovens econo-mistas so talvez o ncleo para uma futuracorrente neoliberalista (Paulo Emlio apudCalil & Machado, 1986, p. 85).

    Mas o que mais lhe interessa a criseda esquerda, ou mais precisamente entrejovens intelectuais de classes mdias e daburguesia, que se exprimem ideologicamentepela esquerda. Jovens com pouco menosou pouco mais de 30 anos, que se politiza-ram por volta de 1935 (poca da intentonacomunista, e antes do Estado Novo e depois

    do CAM), influenciados pelo marxismo,pela psicanlise, pelo ps-modernismo ar-tstico no contexto da extenso da super-cial revoluo de 1930. Para muitos deles, aRssia se tornara uma religio. Isso eraapenas o resultado do nvel terico muitobaixo dos comunistas. Apenas meia dziateria um nvel terico avanado, porm al-guns estavam afastados, enquanto os ou-tros se refugiavam na oposio de esquerda

    (ele talvez pensasse em Caio Prado e MrioPedrosa). Porm, essa nova esquerda capen-gava em dois aspectos bsicos: ningumnunca leu O Capital. Do Brasil no se sabianada. Stalinistas ou trotskistas, por motivosdiversos, amavam a Rssia, mas ningumsabia pensar dialeticamente (Paulo Emlioapud Calil & Machado, 1986, pp. 85-7).

    Esse era o contexto em que a sua gerao,a gerao de Clima, surgiu e no qual atuaria.

    Depois da crise do Estado Novo, dos mo-dernistas e dos comunistas, inclusive de suareligio, a nova esquerda poderia surgir,gozando a gratuidade e a disponibilidadeque lhe permitia sua condio de classe.Isso tudo propiciou um novo processo decrescimento e formao: adquiriram umaseriedade e eccia de pensamento que os

    diferencia logo em relao ao tom bomiode Vinte-e-Dois. Na medida em que viam a

    Rssia dos processos de Moscou como umpesadelo, tomaram a Frana como paradig-ma. A gerao se une na ideia de acalentar aoriginalidade e a alternativa do modelo so-vitico, mas tambm se interessa pela crti-

    9 Ou mais adiante: osvelhos vo pela es-trada larga, os moospassam pela portaestreita (Milliet, 1981,p. 119). Sobre o mesmo

    assunto, mas sob outroponto de vista, verSantiago (2006). Sobreas ideias de Milliet noperodo, ver Campos(1996) e Gonalves(1992).

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    ca desse modelo feita pelo trotskismo (PauloEmlio apud Calil & Machado, 1986, p. 88).

    Nesse processo, o marxismo pode ser re-visitado e, agora sob um prisma especulativo,no dogmtico (ou seja, sem a religio rus-sa), repensado diante de uma nova situao(o Brasil e sua histria). Alm de comear aler Marx e os marxistas clssicos, a geraose aproxima da reinterpretao do marxismofeita via pensadores (sobretudo socilogos)norte-americanos (por isso, como brincouMilliet, era preciso agora ler ingls). Abre--se uma nova poca de estudos, para a quala Amrica (seja a sociedade norte-americana

    marcada pelas consequncias da Depressodos anos 1930, seja a sociedade perifricalatino-americana) e seus problemas espec-cos sero o foco central.

    Nesse verdadeiro programa de revisodo pensamento modernista, e do prpriopensamento marxista diante de uma histriaque ele desconheceu (a histria dos pases deorigem colonial, perifricos e dependentes),o conceito-chave para ser posto sob o crivo

    da dialtica seria a velha questo, modernistaalis, do nacionalismo. E para explicar isso,Paulo Emlio saca um exemplo inusitado: oda velha Rssia. Antes da Revoluo, elediz, a Rssia semifeudal no conhecia o na-cionalismo. O internacionalismo era impor-tado do Ocidente. Mas no centro da Europa oclima era de revoluo, sobretudo nos pasesderrotados na Primeira Guerra Mundial. Pa-radoxalmente, com o fracasso da revoluo

    na Europa, surge o nacionalismo russo. Eaqui ele apresenta sua peculiar dialtica daquesto nacional:

    Sem saber nada dos pases capitalistas maisadiantados, o termo de comparao para opresente era o passado da prpria Rssia. Dao moral altssimo que se notava em certossetores russos, sobretudo na mocidade. Oexemplo russo mostra como as ideias sobre

    nao e nacionalismo no foram abordadascom inteira correo pelo marxismo. Naoe nacionalismo no esto necessariamenteligados direo burguesa da sociedade.Foi uma revoluo operria de esprito in-

    ternacionalista que permitiu o nascimentodo nacionalismo russo. Agora que o nacio-nalismo existe que possvel contradiz-loe super-lo pelo internacionalismo (PauloEmlio apud Calil & Machado, 1986, p. 92).

    Nesse ponto, ele est pronto para expres-sar a ideologia de sua gerao: o nacionalis-mo precisa ser construdo para ser superadono pelo simples internacionalismo, mas porum pan-nacionalismo (Paulo Emlio apudCalil & Machado, 1986, p. 93). Depois de es-pecular sobre a possibilidade de surgimentodessa peculiar dialtica entre nacionalismo

    e internacionalismo em vrios pases, ter-mina seu depoimento-plataforma pedindoabertura para esse debate. Clama (dando ecorenovado aos clamores dos Andrades) paraque os jovens intelectuais deixem a torre demarm e assumam as questes de cultura

    como sua responsabilidade. Sua tarefa maiordeveria ser participar do desaparecimentode um Brasil formal e do nascimento de umanao (Paulo Emlio apud Calil & Macha-

    do, 1986, p. 95).Assim, a jovem gerao universitria,

    filha do clamor do primeiro desenvolvi-mentismo da revoluo de 1930, resolvia sua maneira o chamado s armas de Mrioe Oswald. Se no era a revoluo das ruas,que fosse a das ideias e das organizaes.Seria preciso refazer o projeto moderno parao Brasil depois que a ditadura e o horror dofascismo se dissipassem. A cultura moder-

    nista ganhava novo flego, depois de ser en-terrada por Mrio e devorada por Oswald:estudo e engajamento, politizao e institu-cionalizao. A chave para as futuras come-moraes de 1952 e 1962 estava dada. O mo-dernismo ainda teria uma longa sobrevida,que o golpe militar iria liquidar logo aps ainaugurao de Braslia, a mais espetacularcriao do nosso penltimo sonho moderni-zador. De 1972 em diante, as comemoraes

    da Semana de Arte Moderna j seriam con-sideravelmente diferentes e ela estaria prontapara morrer de novo sem garantia nenhumade que o melhor que pudesse oferecer amea-asse continuar renascendo.

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