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PLATÃO Co imbraCo mpanio ns C O O R D E N A Ç Ã O DE G ABRIELE C ORNELLI E R ODOLFO L OPES Versão integral disponível em digitalis.uc.pt

PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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Page 1: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

PLATAtildeO

CoimbraCompanions

C o o r d e n a ccedil atilde o d e

G a b r i e l e C o r n e l l i e r o d o l f o l o p e s

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CoimbraCompanions

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C o o r d e n a ccedil atilde o d e

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PLATAtildeO

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EDICcedilAtildeO

Imprensa da Universidade de CoimbraEmail imprensaucpt

URL httpwwwucptimprensa_ucVendas online httplivrariadaimprensaucpt

REVISAtildeO

Aacutelia Rodrigues e Andreacute da Paz Silva

ISBN

978-989-26-1595-0

eISBN

978-989-26-1596-7

DOI

httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7

OBRA PUBLICADA EM COEDICcedilAtildeO COM

copyJULHO 2018 IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 11

Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes

Capiacutetulo I ndash Vida 19

Maria do Ceacuteu Fialho e Katsuzo Koike

Capiacutetulo II ndash Academia 33

Gabriele Cornelli

Capiacutetulo III ndash Doutrinas natildeo-escritas 57

Antoacutenio Pedro Mesquita

Capiacutetulo IV ndash Ordenaccedilatildeo dos Diaacutelogos 79

Rodolfo Lopes

Capiacutetulo V ndash Preacute-socraacuteticos 103

Francesc Casadesuacutes Bordoy

Capiacutetulo VI ndash Sofistas 119

Richard McKirahan

Capiacutetulo VII ndash Soacutecrates 137

Hector Benoit

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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153

Joseacute Gabriel Trindade Santos

Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169

Giovanni Casertano

Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189

Francesco Fronterotta

Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213

Franco Ferrari

Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231

Luc Brisson

Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259

Fernando Rey Puente

Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279

Marcelo Perine

Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295

Tom Robinson

Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313

Mario Vegetti

Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331

Olivier Renaut

Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349

Silvio Marino

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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361

Alberto Bernabeacute

Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383

Daniel Rossi Nunes Lopes

Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403

Fernando Santoro

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Apresentaccedilatildeo

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APRESENTACcedilAtildeO

O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os

favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo

desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto

semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua

filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha

compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta

com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada

sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)

Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente

antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o

primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua

portuguesa

Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e

pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia

que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade

dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute

certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de

Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos

em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente

a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o

XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar

pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia

no ano de 2016

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CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

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417

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Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

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Zurich Weidmann 1992

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Page 2: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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C o o r d e n a ccedil atilde o d e

G a b r i e l e C o r n e l l i e r o d o l f o l o p e s

PLATAtildeO

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EDICcedilAtildeO

Imprensa da Universidade de CoimbraEmail imprensaucpt

URL httpwwwucptimprensa_ucVendas online httplivrariadaimprensaucpt

REVISAtildeO

Aacutelia Rodrigues e Andreacute da Paz Silva

ISBN

978-989-26-1595-0

eISBN

978-989-26-1596-7

DOI

httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7

OBRA PUBLICADA EM COEDICcedilAtildeO COM

copyJULHO 2018 IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 11

Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes

Capiacutetulo I ndash Vida 19

Maria do Ceacuteu Fialho e Katsuzo Koike

Capiacutetulo II ndash Academia 33

Gabriele Cornelli

Capiacutetulo III ndash Doutrinas natildeo-escritas 57

Antoacutenio Pedro Mesquita

Capiacutetulo IV ndash Ordenaccedilatildeo dos Diaacutelogos 79

Rodolfo Lopes

Capiacutetulo V ndash Preacute-socraacuteticos 103

Francesc Casadesuacutes Bordoy

Capiacutetulo VI ndash Sofistas 119

Richard McKirahan

Capiacutetulo VII ndash Soacutecrates 137

Hector Benoit

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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153

Joseacute Gabriel Trindade Santos

Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169

Giovanni Casertano

Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189

Francesco Fronterotta

Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213

Franco Ferrari

Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231

Luc Brisson

Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259

Fernando Rey Puente

Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279

Marcelo Perine

Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295

Tom Robinson

Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313

Mario Vegetti

Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331

Olivier Renaut

Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349

Silvio Marino

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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361

Alberto Bernabeacute

Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383

Daniel Rossi Nunes Lopes

Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403

Fernando Santoro

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Apresentaccedilatildeo

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11

APRESENTACcedilAtildeO

O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os

favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo

desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto

semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua

filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha

compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta

com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada

sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)

Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente

antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o

primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua

portuguesa

Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e

pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia

que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade

dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute

certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de

Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos

em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente

a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o

XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar

pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia

no ano de 2016

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84

CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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85

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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87

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

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417

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Zurich Weidmann 1992

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Page 3: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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CoimbraCompanions

C o o r d e n a ccedil atilde o d e

G a b r i e l e C o r n e l l i e r o d o l f o l o p e s

PLATAtildeO

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EDICcedilAtildeO

Imprensa da Universidade de CoimbraEmail imprensaucpt

URL httpwwwucptimprensa_ucVendas online httplivrariadaimprensaucpt

REVISAtildeO

Aacutelia Rodrigues e Andreacute da Paz Silva

ISBN

978-989-26-1595-0

eISBN

978-989-26-1596-7

DOI

httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7

OBRA PUBLICADA EM COEDICcedilAtildeO COM

copyJULHO 2018 IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 11

Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes

Capiacutetulo I ndash Vida 19

Maria do Ceacuteu Fialho e Katsuzo Koike

Capiacutetulo II ndash Academia 33

Gabriele Cornelli

Capiacutetulo III ndash Doutrinas natildeo-escritas 57

Antoacutenio Pedro Mesquita

Capiacutetulo IV ndash Ordenaccedilatildeo dos Diaacutelogos 79

Rodolfo Lopes

Capiacutetulo V ndash Preacute-socraacuteticos 103

Francesc Casadesuacutes Bordoy

Capiacutetulo VI ndash Sofistas 119

Richard McKirahan

Capiacutetulo VII ndash Soacutecrates 137

Hector Benoit

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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153

Joseacute Gabriel Trindade Santos

Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169

Giovanni Casertano

Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189

Francesco Fronterotta

Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213

Franco Ferrari

Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231

Luc Brisson

Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259

Fernando Rey Puente

Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279

Marcelo Perine

Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295

Tom Robinson

Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313

Mario Vegetti

Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331

Olivier Renaut

Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349

Silvio Marino

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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361

Alberto Bernabeacute

Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383

Daniel Rossi Nunes Lopes

Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403

Fernando Santoro

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Apresentaccedilatildeo

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11

APRESENTACcedilAtildeO

O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os

favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo

desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto

semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua

filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha

compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta

com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada

sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)

Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente

antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o

primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua

portuguesa

Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e

pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia

que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade

dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute

certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de

Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos

em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente

a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o

XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar

pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia

no ano de 2016

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84

CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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85

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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87

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

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417

POEacuteTICA

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Zurich Weidmann 1992

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Page 4: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

CoimbraCompanions

C o o r d e n a ccedil atilde o d e

G a b r i e l e C o r n e l l i e r o d o l f o l o p e s

PLATAtildeO

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EDICcedilAtildeO

Imprensa da Universidade de CoimbraEmail imprensaucpt

URL httpwwwucptimprensa_ucVendas online httplivrariadaimprensaucpt

REVISAtildeO

Aacutelia Rodrigues e Andreacute da Paz Silva

ISBN

978-989-26-1595-0

eISBN

978-989-26-1596-7

DOI

httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7

OBRA PUBLICADA EM COEDICcedilAtildeO COM

copyJULHO 2018 IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 11

Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes

Capiacutetulo I ndash Vida 19

Maria do Ceacuteu Fialho e Katsuzo Koike

Capiacutetulo II ndash Academia 33

Gabriele Cornelli

Capiacutetulo III ndash Doutrinas natildeo-escritas 57

Antoacutenio Pedro Mesquita

Capiacutetulo IV ndash Ordenaccedilatildeo dos Diaacutelogos 79

Rodolfo Lopes

Capiacutetulo V ndash Preacute-socraacuteticos 103

Francesc Casadesuacutes Bordoy

Capiacutetulo VI ndash Sofistas 119

Richard McKirahan

Capiacutetulo VII ndash Soacutecrates 137

Hector Benoit

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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153

Joseacute Gabriel Trindade Santos

Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169

Giovanni Casertano

Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189

Francesco Fronterotta

Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213

Franco Ferrari

Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231

Luc Brisson

Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259

Fernando Rey Puente

Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279

Marcelo Perine

Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295

Tom Robinson

Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313

Mario Vegetti

Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331

Olivier Renaut

Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349

Silvio Marino

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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361

Alberto Bernabeacute

Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383

Daniel Rossi Nunes Lopes

Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403

Fernando Santoro

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Apresentaccedilatildeo

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11

APRESENTACcedilAtildeO

O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os

favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo

desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto

semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua

filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha

compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta

com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada

sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)

Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente

antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o

primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua

portuguesa

Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e

pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia

que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade

dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute

certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de

Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos

em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente

a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o

XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar

pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia

no ano de 2016

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84

CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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85

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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87

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

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417

POEacuteTICA

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Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

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Zurich Weidmann 1992

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Page 5: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

EDICcedilAtildeO

Imprensa da Universidade de CoimbraEmail imprensaucpt

URL httpwwwucptimprensa_ucVendas online httplivrariadaimprensaucpt

REVISAtildeO

Aacutelia Rodrigues e Andreacute da Paz Silva

ISBN

978-989-26-1595-0

eISBN

978-989-26-1596-7

DOI

httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7

OBRA PUBLICADA EM COEDICcedilAtildeO COM

copyJULHO 2018 IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 11

Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes

Capiacutetulo I ndash Vida 19

Maria do Ceacuteu Fialho e Katsuzo Koike

Capiacutetulo II ndash Academia 33

Gabriele Cornelli

Capiacutetulo III ndash Doutrinas natildeo-escritas 57

Antoacutenio Pedro Mesquita

Capiacutetulo IV ndash Ordenaccedilatildeo dos Diaacutelogos 79

Rodolfo Lopes

Capiacutetulo V ndash Preacute-socraacuteticos 103

Francesc Casadesuacutes Bordoy

Capiacutetulo VI ndash Sofistas 119

Richard McKirahan

Capiacutetulo VII ndash Soacutecrates 137

Hector Benoit

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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153

Joseacute Gabriel Trindade Santos

Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169

Giovanni Casertano

Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189

Francesco Fronterotta

Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213

Franco Ferrari

Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231

Luc Brisson

Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259

Fernando Rey Puente

Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279

Marcelo Perine

Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295

Tom Robinson

Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313

Mario Vegetti

Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331

Olivier Renaut

Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349

Silvio Marino

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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361

Alberto Bernabeacute

Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383

Daniel Rossi Nunes Lopes

Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403

Fernando Santoro

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Apresentaccedilatildeo

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11

APRESENTACcedilAtildeO

O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os

favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo

desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto

semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua

filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha

compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta

com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada

sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)

Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente

antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o

primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua

portuguesa

Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e

pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia

que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade

dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute

certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de

Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos

em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente

a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o

XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar

pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia

no ano de 2016

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84

CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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85

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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87

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

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417

POEacuteTICA

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Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

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Zurich Weidmann 1992

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Page 6: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 11

Gabriele Cornelli e Rodolfo Lopes

Capiacutetulo I ndash Vida 19

Maria do Ceacuteu Fialho e Katsuzo Koike

Capiacutetulo II ndash Academia 33

Gabriele Cornelli

Capiacutetulo III ndash Doutrinas natildeo-escritas 57

Antoacutenio Pedro Mesquita

Capiacutetulo IV ndash Ordenaccedilatildeo dos Diaacutelogos 79

Rodolfo Lopes

Capiacutetulo V ndash Preacute-socraacuteticos 103

Francesc Casadesuacutes Bordoy

Capiacutetulo VI ndash Sofistas 119

Richard McKirahan

Capiacutetulo VII ndash Soacutecrates 137

Hector Benoit

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Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153

Joseacute Gabriel Trindade Santos

Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169

Giovanni Casertano

Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189

Francesco Fronterotta

Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213

Franco Ferrari

Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231

Luc Brisson

Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259

Fernando Rey Puente

Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279

Marcelo Perine

Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295

Tom Robinson

Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313

Mario Vegetti

Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331

Olivier Renaut

Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349

Silvio Marino

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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361

Alberto Bernabeacute

Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383

Daniel Rossi Nunes Lopes

Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403

Fernando Santoro

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Apresentaccedilatildeo

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11

APRESENTACcedilAtildeO

O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os

favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo

desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto

semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua

filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha

compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta

com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada

sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)

Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente

antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o

primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua

portuguesa

Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e

pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia

que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade

dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute

certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de

Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos

em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente

a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o

XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar

pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia

no ano de 2016

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84

CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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85

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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87

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

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417

POEacuteTICA

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Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

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Page 7: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

Capiacutetulo VIII ndash Linguagem 153

Joseacute Gabriel Trindade Santos

Capiacutetulo IX ndash Dialeacutetica 169

Giovanni Casertano

Capiacutetulo X ndash Epistemologia 189

Francesco Fronterotta

Capiacutetulo XI ndash Teoria das Ideias 213

Franco Ferrari

Capiacutetulo XII ndash Cosmologia 231

Luc Brisson

Capiacutetulo XIII ndash Matemaacutetica 259

Fernando Rey Puente

Capiacutetulo XIV ndash Princiacutepios 279

Marcelo Perine

Capiacutetulo XV ndash Psicologia 295

Tom Robinson

Capiacutetulo XVI ndash Eacutetica e poliacutetica 313

Mario Vegetti

Capiacutetulo XVII ndash Gecircnero 331

Olivier Renaut

Capiacutetulo XVIII ndash Medicina 349

Silvio Marino

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Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361

Alberto Bernabeacute

Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383

Daniel Rossi Nunes Lopes

Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403

Fernando Santoro

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Apresentaccedilatildeo

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11

APRESENTACcedilAtildeO

O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os

favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo

desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto

semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua

filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha

compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta

com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada

sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)

Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente

antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o

primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua

portuguesa

Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e

pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia

que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade

dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute

certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de

Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos

em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente

a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o

XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar

pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia

no ano de 2016

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84

CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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87

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 8: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

Capiacutetulo XIX ndash Religiatildeo 361

Alberto Bernabeacute

Capiacutetulo XX ndash Retoacuterica 383

Daniel Rossi Nunes Lopes

Capiacutetulo XXI ndash Poeacutetica 403

Fernando Santoro

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Apresentaccedilatildeo

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11

APRESENTACcedilAtildeO

O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os

favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo

desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto

semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua

filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha

compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta

com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada

sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)

Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente

antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o

primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua

portuguesa

Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e

pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia

que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade

dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute

certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de

Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos

em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente

a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o

XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar

pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia

no ano de 2016

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84

CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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85

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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87

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 9: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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Apresentaccedilatildeo

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11

APRESENTACcedilAtildeO

O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os

favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo

desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto

semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua

filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha

compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta

com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada

sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)

Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente

antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o

primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua

portuguesa

Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e

pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia

que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade

dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute

certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de

Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos

em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente

a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o

XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar

pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia

no ano de 2016

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84

CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 10: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

Apresentaccedilatildeo

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11

APRESENTACcedilAtildeO

O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os

favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo

desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto

semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua

filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha

compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta

com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada

sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)

Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente

antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o

primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua

portuguesa

Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e

pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia

que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade

dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute

certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de

Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos

em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente

a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o

XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar

pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia

no ano de 2016

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84

CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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85

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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87

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 11: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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11

APRESENTACcedilAtildeO

O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os

favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo

desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto

semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua

filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha

compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta

com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada

sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)

Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente

antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o

primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua

portuguesa

Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e

pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia

que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade

dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute

certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de

Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos

em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente

a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o

XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar

pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia

no ano de 2016

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84

CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 12: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

11

APRESENTACcedilAtildeO

O projeto deste Coimbra Companion Platatildeo dificilmente encontraria os

favores do Divino Mestre da Academia de Atenas Em sua Carta VII Platatildeo

desfere duras criacuteticas contra aqueles que estavam empreendendo projeto

semelhante isto eacute aquele de escrever tratados sistemaacuteticos sobre a sua

filosofia Anota com firmeza natildeo ser possiacutevel que nenhum destes tenha

compreendido alguma coisa do assunto isto eacute de sua filosofia e acrescenta

com dureza ainda maior que eacute muito provaacutevel que eles natildeo saibam nada

sequer de si mesmos (Pl Ep VII 341c)

Decidimos arr iscar as i ras de Platatildeo e sua agenda francamente

antissistemaacutetica por sentirmos a necessidade de entregarmos ao leitor o

primeiro compecircndio agrave vida e obra de Platatildeo escrito originalmente em liacutengua

portuguesa

Esta publicaccedilatildeo nos pareceu ao mesmo tempo oportuna e necessaacuteria e

pode ser facilmente considerada como uma consequecircncia da importacircncia

que a liacutengua portuguesa veio crescentemente desempenhando na comunidade

dos estudiosos e estudiosas de Platatildeo e dos platonismos Prova disso eacute

certamente o multiplicar de teses monografias e traduccedilotildees das obras de

Platatildeo e da tradiccedilatildeo platocircnica em liacutengua portuguesa nos uacuteltimos vinte anos

em ambas as margens lusoacutefonas do Oceano Natildeo menos o eacute certamente

a realizaccedilatildeo no Brasil do maior evento mundial de estudos platocircnicos o

XI Symposium Platonicum da International Plato Society que teve lugar

pela primeira vez no Sul do Mundo e em Paiacutes lusoacutefono na cidade de Brasiacutelia

no ano de 2016

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84

CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 13: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

84

CAPIacuteTULO IV

da estilometria implica que (1) natildeo existe outro mecanismo para determinar

a cronologia e por conseguinte que (2) natildeo eacute possiacutevel fixar aquela ordem

de leitura

No que respeita agraves ordens de leitura fundamentadas em criteacuterios

dramaacuteticos igualmente profiacutecuas nos estudos platonistas modernos6 nenhuma

delas pode obviamente ser tomada como ordem de leitura pelo simples

facto de por definiccedilatildeo todas elas dependerem de uma leitura preacutevia A

circularidade eacute evidente

Deste modo o nosso objetivo pode ser reduzido e reconduzido agrave

demonstraccedilatildeo de que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo eacute aplicaacutevel aos Diaacutelogos

tendo em conta as especificidades do texto platoacutenico Se for esse o caso

a claacutessica divisatildeo dos diaacutelogos em trecircs grupos (e por conseguinte as trecircs

fases que lhes correspondem) natildeo tem condiccedilotildees de se impor como imperativo

metodoloacutegico

No entanto antes de enfrentarmos o problema da estilometria conveacutem

abordar ainda que superficialmente algumas dificuldades acrescidas que

parecem invalidar a hipoacutetese de determinar as datas de composiccedilatildeo de cada

diaacutelogo

6 A galeria de ordenaccedilotildees pelo criteacuterio dramaacutetico eacute vasta e diversificada Talvez a mais impactante pela quantidade de adeptos que colheu seja a de Gregory Vlastos (cujas teses foram sendo divulgadas em artigos isolados (1983 1988) e posteriormente coligidas no livro (1991) Socrates Ironist and Moral Philosopher) que propotildee uma ordem de leitura a partir da evoluccedilatildeo da personagem Soacutecrates (que Vlastos todavia identifica com o Soacutecrates histoacuterico) inicialmente um filoacutesofo moral (segundo Vlastos o autor material dos diaacutelogos chamados lsquosocraacuteticosrsquo) depois um metafiacutesico porquanto criador da chamada lsquoTeoria das Ideiasrsquo A principal e mais pertinente criacutetica agrave ousada (e quanto mim indefensaacutevel) tese de Vlastos deveu-se a Charles Kahn (originalmente formulada em alguns artigos (1981 1986 1988) e mais tarde consolidada no famoso livro (1996) Plato and the Socratic Dialogue) A proposta de Kahn eacute que a Repuacuteblica consiste no nuacutecleo central da filosofia platoacutenica de tal forma que todos os outros diaacutelogos podem ser reconduzidos agrave lsquoobra-primarsquo (1996 48 Perhaps the better metaphor will be spatial rather than temporal instead of before and after we can speak of exoteric and esoteric of relative distance from the center as defined by the Republic)

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85

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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87

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 14: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

85

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

2 oBstaacuteculos agrave determinaccedilatildeo das datas de composiccedilatildeo

Poderiacuteamos elencar uma vasta lista de problemas hermenecircuticos

decorrentes das vaacuterias singularidades formais do texto platoacutenico que o

tornam um caso especial mesmo entre os autores antigos Tal explicaccedilatildeo

por mais humilde que fosse excederia em muito o limite destas paacuteginas

pelo que me limitarei a referir dois problemas fundamentais Um externo

tem que ver com o contexto histoacuterico em que os Diaacutelogos foram compostos

particularmente com o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo que definia esse

periacuteodo O outro interno decorre do proacuteprio registo literaacuterio que Platatildeo

utilizou para os compor

21 condiccedilotildees editoriais da eacutepoca

Em primeiro lugar tenhamos em conta o relativo lsquoanarquismo editorialrsquo

que definia a Atenas de Platatildeo o qual se deve ao facto de essa eacutepoca

coincidir do ponto de vista civilizacional com a transiccedilatildeo de uma matriz

cultural radicalmente oral para outra em que a escrita vai progressivamente

ganhando mais preponderacircncia (vide Havelock 1981 3-38 Reynolds amp

Wilson 1991 1-5) Neste contexto histoacuterico a transmissatildeo dos saberes

continuava assente na oralidade mas comeccedilava cada vez mais a incluir o

documento escrito como suporte complementar ndash em certa medida os

Diaacutelogos satildeo prova disso visto que constituem registos (escritos) de conversas

(orais)

Por um lado vaacuterias fontes relativamente contemporacircneas a Platatildeo

testemunham a existecircncia de documentos escritos que com as devidas

ressalvas podem ser equiparaacuteveis a lsquolivrosrsquo pelo menos do ponto de vista

de uma pragmaacutetica socioloacutegica Jaacute num vaso de c 485 aC (mais de 50

anos antes de Platatildeo ter nascido) se encontra a representaccedilatildeo de uma escola

em que os alunos estudam as primeiras letras com o apoio de rolos de

papiro (ARV2 43148) ndash e como eacute sabido a iconografia dos vasos gregos

tende a representar cenas da vida quotidiana Mais tarde mas natildeo muito

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86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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87

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 15: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

86

CAPIacuteTULO IV

(teria Platatildeo pouco menos ou mais de 20 anos de idade) nas Ratildes de

Aristoacutefanes aparece uma personagem (Dioniso) a lsquolerrsquo (52 ἀναγιγνώσκω)

a Androacutemeda de Euriacutepides durante uma viagem de navio Eacute ateacute provaacutevel

que comedioacutegrafos relativamente contemporacircneos tenham usado o termo

βιβλιοπώλης (lsquovendedor de livrosrsquo)7 ou seja estaria comeccedilando naquela

eacutepoca algo como um lsquomercado editorialrsquo O proacuteprio Platatildeo faz uma breve

referecircncia a esta crescente novidade quando na Apologia (26d-e) coloca

Soacutecrates dizendo que os lsquolivrosrsquo (βιβλία) de Anaxaacutegoras estavam agrave venda

apenas por uma dracma8 Essa ideia eacute reforccedilada pelo testemunho de

Xenofonte Na Anaacutebase (75142-3) refere que nos frequentes naufraacutegios de

navios mercantes gregos perto da Peacutersia eram perdidos muitos livros (πολλαὶ

βίβλοι) destinados a serem comercializados nesses territoacuterios o que sugere

que tal mercado ultrapassava ateacute os limites do mundo grego Nos Memoraacuteveis

quando reporta uma conversa entre Soacutecrates e Eutidemo (428-sqq) a

propoacutesito da possibilidade de um lsquoliteratorsquo ser ipso facto um bom governante

adianta informaccedilotildees assaz uacuteteis ao nosso caso tendo essa conversa existido

ou natildeo Eutidemo surge representado como um coleccionador compulsivo

de vaacuterios escritos (πολλὰ γράμματα) de homens saacutebios (428) pelas respostas

de Soacutecrates (4210) estariam ateacute disponiacuteveis colectacircneas de tratados meacutedicos

(πολλὰ γὰρ καὶ ἰατρῶν ἐστι συγγράμματα) e a obra completa de Homero (τὰ

Ὁμήρου πάντα)

Por outro lado todavia aleacutem do facto de a maioria dos documentos

escritos depender de uma performance oral de tal forma que os seus

destinataacuterios seriam mais lsquoouvintesrsquo do que propriamente lsquoleitoresrsquo9 a

7 lsquoProvaacutevelrsquo porque os fragmentos dos autores em causa (Aristomen fr 91 Kock Eup fr 327 Kassel-Austin Nicopho fr 194 Kock Theopomp Com fr 77 Kock) resultam de facto de citaccedilotildees indirectas posteriores Aleacutem disso (1) o termo βιβλιοπώλης comeccedila a ser utilizado somente por autores bem mais tardios (Str 1315435 DChr 21123 DL 32 71-2 Gal De loc aff 814814 Poll 72112 Ath 310052 Epit 21318) e (2) aqueles fragmentos derivam justamente desses autores

8 Ainda que seja muito difiacutecil aferir exactamente a conversatildeo monetaacuteria sabemos por Aristoacutefanes (V 788) que um juiz ganharia meia-dracma por dia logo natildeo seria uma soma tatildeo avultada

9 Veja-se sobretudo os exemplos dos proacuteprios Diaacutelogos que embora natildeo possam ser considerados documentos estrictamente histoacutericos datildeo conta de costumes ou tendecircncias gerais que poderemos considerar plausiacuteveis No Feacutedon (97b-c) Soacutecrates diz ter lsquoescutadorsquo as doutrinas de Anaxaacutegoras numa espeacutecie de leitura puacuteblica do seu livro (ἀκούσας μέν ποτε ἐκ βιβλίου τινός) No Fedro (230e-234c) o discurso de Liacutesias eacute lido em voz alta por Fedro A

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87

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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417

POEacuteTICA

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Page 16: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

87

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

divulgaccedilatildeo de um lsquolivrorsquo natildeo obedecia a qualquer tipo de poliacutetica editorial

Natildeo existia um conjunto de princiacutepios que regulamentasse a produccedilatildeo ou

a distribuiccedilatildeo de tal forma que circulavam ao mesmo tempo vaacuterias versotildees

diferentes do mesmo lsquolivrorsquo sem que nenhuma delas pudesse ser considerada

a oficial aleacutem de que como eacute evidente tambeacutem nenhuma delas indicava

a data O caso de Platatildeo segue claramente esta tendecircncia geral A partir do

cotejo das fontes podemos facilmente concluir que durante muitos anos

circularam diferentes versotildees de vaacuterios diaacutelogos (vide Alline 1915 65-84

Pasquali 1952 254-258) sem que nenhuma delas fosse considerada definitiva

ndash veja-se o conhecido caso da Repuacuteblica que seguramente teraacute circulado

em versotildees parciais (vide Nails 2002 324-sqq) No que respeita agrave

possibilidade de uma lsquoediccedilatildeo autorizadarsquo eacute altamente provaacutevel que tenha

jaacute sido divulgada postumamente havendo fortes indiacutecios todavia de que

tenha sido de facto lsquoautorizadarsquo por Platatildeo A hipoacutetese mais plausiacutevel10 eacute

que a ediccedilatildeo completa e oficial dos diaacutelogos foi produzida na Academia

mas as opiniotildees divergem quanto agrave eacutepoca exacta alguns autores defendem

que foi produzida logo por Xenoacutecrates (Alline 1915 45-46 Philip 1970

307) mas outros propotildeem que isso tenha ocorrido mais tarde na eacutepoca

de Arcesilau (Bickel 1944 122-123 129-131 157 Pfeiffer 1968 65-66) Seja

como for todos os autores parecem concordar que as versotildees definitivas

dos Diaacutelogos soacute foram divulgadas depois da morte do seu autor

Ora mesmo sendo certo que naquela eacutepoca jaacute circulavam documentos

que poderemos com as devidas reservas equiparar a livros (ainda que na

sua grande maioria utilizados como suporte de uma performance oral) natildeo

eacute menos certo que o referido lsquoanarquismo editorialrsquo torna anacroacutenico o

conceito de data de composiccedilatildeo justamente pelo facto de este pressupor

que a data em que um determinado documento foi divulgado pela primeira

vez corresponde agrave data da sua conclusatildeo enquanto texto isto eacute agrave data da

trilogia Teeteto-Sofista-Poliacutetico se levarmos a seacuterio (1) a expliacutecita conexatildeo narrativa e dramaacutetica entre os trecircs diaacutelogos e (2) as implicaccedilotildees metanarrativas decorrentes do proacutelogo do primeiro eacute um livro redigido por Euclides (Tht 143b5 βιβλίον ὦ Τερψίων τουτίmiddot ἐγραψάμην) mas lido por um escravo para Euclides e Teacuterpsion (Tht 143c)

10 Alguns autores (eg Jachmann 1942) defendem a existecircncia de uma ediccedilatildeo alexandrina Mesmo que tivesse existido natildeo invalidaria a ediccedilatildeo acadeacutemica a qual eacute amplamente documentada pelas fontes

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88

CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

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Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

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Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento

Vitoacuteria pp 102-135

Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

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417

POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

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Page 17: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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CAPIacuteTULO IV

sua publicaccedilatildeo A liquidez que os conceitos de lsquocomposiccedilatildeorsquo e lsquopublicaccedilatildeorsquo

acarretam se aplicados ao corpus Platonicum lanccedila seacuterias suspeitas sobre

a possibilidade de definir uma cronologia minimamente estanque a natildeo

ser que nos limitemos a considerar todos os Diaacutelogos poacutestumos tendo em

conta os paracircmetros e criteacuterios editoriais modernos

22 anistoricidade dos Diaacutelogos

O universo dramaacutetico em que os Diaacutelogos decorrem representa grosso

modo o periacuteodo histoacuterico compreendido entre o iniacutecio da segunda metade

do seacutec V e o iniacutecio da segunda metade do seacutec IV Quer tomemos as

circunstacircncias dramaacuteticas de um determinado diaacutelogo quer os consideremos

globalmente a partir de uma dada ordem de leitura todos os eventos

possivelmente histoacutericos se situaratildeo algures neste intervalo O mais antigo

seraacute a suposta conversa entre o jovem Soacutecrates Parmeacutenides e Zenatildeo que

constitui o Parmeacutenides O mais tardio contido nas Leis (638b) refere a

vitoacuteria dos Siracusanos sobre Loacutecride cuja data se fixa em 356 No entanto

o cenaacuterio da maioria dos Diaacutelogos situa-se num ponto intermeacutedio entre

esses dois extremos quando Soacutecrates jaacute mais velho conversava com

atenienses mais jovens A primeira estranheza eacute que embora a maioria das

personagens seja contemporacircnea de Platatildeo (incluindo amigos proacuteximos e

ateacute familiares) o autor natildeo se inclui entre os interlocutores

Natildeo seria cabiacutevel nestas paacuteginas abordar a questatildeo da anonimidade (vide

Edelstein 1962 Plass 1964 Press 2000) dado que o propoacutesito eacute apenas

explicitar que os Diaacutelogos natildeo foram compostos com o comprometimento

historiograacutefico necessaacuterio para serem considerados documentos histoacutericos

A este respeito limito-me a referir dois casos paradigmaacuteticos de diaacutelogos

explicitamente anacroacutenicos isto eacute cujo enredo dramaacutetico e cenograacutefico

remetem para vaacuter ias datas igualmente plausiacuteveis (e obviamente

incompatiacuteveis)11 Goacutergias e Repuacuteblica

11 A este propoacutesito vale a pena citar o diagnoacutestico de Nails (2002 307) lsquoPlato the consummate philosopher was not preoccupied with dramatic dates so one rarely expects exactness the dialogues are replete with anachronismsrsquo

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 18: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

89

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

O caso do Goacutergias foi exaustivamente analisado desde logo por Dodds

(1959 17-18) cujo veredicto se pode considerar ainda hoje indisputaacutevel

(apud Nails 2002 326-327) a pluralidade de datas possiacuteveis impede-nos

de escolher uma qualquer que ela fosse Os dados internos que conduzem

inevitavelmente ao anacronismo satildeo os seguintes Peacutericles tinha morrido

haacute pouco tempo (503c) e a uacutenica estadia (atestada) de Goacutergias em Atenas

foi em 427 logo a data estaria entre 429 e 427 Demo (um familiar de Platatildeo)

era amante de Caacutelicles (481d) o que permite aproximar o enredo de 422

ano em que Aristoacutefanes (V 97-99) refere a admiraacutevel beleza de Demo

Alcibiacuteades tinha jaacute sofrido um processo judicial (519a) o que aconteceu

primeiro em 415 e depois em 407 Arquelau tinha assumido o poder na

Macedoacutenia (470d) o que teraacute acontecido por volta de 413 jaacute era conhecida

a peccedila Antiacuteope de Euriacutepedes (485e) cuja data de composiccedilatildeo teraacute sido entre

411 e 408 Eacute matemat icamente impossiacutevel harmonizar todas estas

possibilidades

Quanto agrave Repuacuteblica que seraacute o caso mais problemaacutetico de todo o corpus

nomeadamente pela (elevada) probabilidade de ter sido composta e divulgada

em trecircs eacutepocas e partes diferentes seriam necessaacuterias vaacuterias paacuteginas para

esclarecer o assunto de modo minimamente claro Limito-me pois a indicar

as conclusotildees da competentiacutessima anaacutelise de Nails (2002 324-326) Muito

sucintamente o anacronismo deve-se agrave incompatibilidade dos seguintes

dados se (1) Ceacutefalo estaacute ainda vivo Soacutecrates encontra-se na meia-idade e

Trasiacutemaco eacute famoso em Atenas a data seraacute algures no uacuteltimo quartel do

seacutec V (421 eacute a mais aceite entre os comentadores) se (2) Glaacuteucon e Adimanto

participaram na Batalha de Meacutegara (368a) a data teraacute que ser posterior a

409

3 cronologia relativa

As primeiras propostas de ordenaccedilatildeo cronoloacutegica surgidas a partir do

final do seacutec XVIII (Tennemann 1792 Socher 1820 Hermann 1839 Raeder

1905) resultaram de uma tendecircncia metodoloacutegica que comeccedilava a generalizar-

se todos os problemas em Platatildeo ocupavam um determinado lugar no

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90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

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Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

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417

POEacuteTICA

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Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

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Page 19: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

90

CAPIacuteTULO IV

percurso evolutivo em que consistiu a sua actividade filosoacutefica Estes autores

esforccedilaram-se pois em estabelecer uma cronologia definitiva atraveacutes da

qual pudessem mapear as etapas desse desenvolvimento recorrendo ao

cotejo de alguns elementos contextuais contidos nos diaacutelogos com dados

considerados histoacutericos Pressupondo que o corpus consiste numa narrativa

de algum modo anaacuteloga agrave realidade histoacuterica em que se inscreve os diaacutelogos

poderiam ser ordenados de acordo com as datas e os episoacutedios a que fazem

referecircncia

Estas tentativas iniciais mediante a ausecircncia de criteacuterios externos

suficientes estavam quase inteiramente dependentes dos dados implicados

no enredo dramaacutetico Por isso tal meacutetodo levantava muitas dificuldades

tendo em conta aquelas singularidades do texto platoacutenico que referi nas

paacuteginas anteriores A possibilidade de determinar as datas de composiccedilatildeo

a partir de elementos externos ao texto chegou para grande entusiasmo

da maioria dos platonistas modernos com a estilometria que continua a

ser o meacutetodo para determinar as datas de composiccedilatildeo dos diaacutelogos12

31 a estilometria

Desde os seus iniacutecios no longiacutenquo seacuteculo XIX aos nossos dias os

meacutetodos estilomeacutetricos sofreram alteraccedilotildees consideraacuteveis Por exemplo no

uacuteltimo quartel do seacuteculo XX o desenvolvimento de sistemas informaacuteticos

cada vez mais complexos e robustos permitiu que a capacidade de

processamento de dados atingisse niacuteveis ateacute entatildeo nunca imaginados

Em todo o caso apesar das inovaccedilotildees tecnoloacutegicas todas as formas de

estilometria tecircm um denominador comum trata-se de um meacutetodo de anaacutelise

estatiacutestica Consiste pois numa certa forma de levantamento organizaccedilatildeo

anaacutelise e interpretaccedilatildeo de dados de um determinado universo a partir do

qual seratildeo isolados alguns subconjuntos (as amostras) de acordo com os

12 Vale a pena citar Howland (1991 205) a propoacutesito da centralidade da estilometria lsquoOther methods of drawing chronological distictions including literary criticism philosophical considerations and references to actual historical events are of little or no usersquo Para uma explicaccedilatildeo minuciosa da irrelevacircncia destes lsquoother methodsrsquo vide Thesleff (1982 7-66)

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91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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92

CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 20: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

91

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

paracircmetros teoacutericos estabelecidos previamente A validade formal da anaacutelise

depende portanto da aplicaccedilatildeo correcta das vaacuterias operaccedilotildees matemaacuteticas

implicadas no processo No entanto os resultados finais estatildeo determinados

pelos pressupostos e criteacuterios estabelecidos antes da anaacutelise propriamente

dita

No caso particular da estilometria o universo estatiacutestico corresponde a

um determinado corpus textual enquanto que as amostras poderatildeo variar

entre paraacutegrafos ou frases ateacute simples palavras ou letras O meacutetodo consiste

em determinar padrotildees de frequecircncia e elementos discriminadores que

permitam traccedilar a identidade estiliacutestica do autor e por conseguinte isolar

as vaacuterias fases do seu desenvolvimento

O momento fundador da estilometria (aplicada a Platatildeo) deve-se a uma

ediccedilatildeo do Sofista e do Poliacutetico preparada por Campbell (1867) Um tanto

acidentalmente este autor intuiu que o estudo comparativo do estilo de

escrita de Platatildeo poderia ser determinante para a dataccedilatildeo dos diaacutelogos

Atraveacutes da comparaccedilatildeo de estruturas sintaacutecticas e prosoacutedicas bem como a

elevada percentagem de termos teacutecnicos concluiu que Sofista Poliacutetico

Teeteto Filebo e Leis eram do mesmo periacuteodo (tardios no caso)

O primeiro trabalho inteiramente dedicado agrave fixaccedilatildeo de uma cronologia

esti lomeacutetrica (e tambeacutem aos criteacuterios que a estruturam) deveu-se a

Dittenberger (1881) cujo meacutetodo consistiu em averiguar a frequecircncia de

partiacuteculas Os resultados mostraram que o grupo de diaacutelogos ditos lsquotardiosrsquo

apresentava uma frequecircncia muito maior de articulaccedilotildees entre partiacuteculas

do que os grupos lsquoanterioresrsquo dando assim conta da tal lsquoevoluccedilatildeo estiliacutesticarsquo

O pressuposto era pois que o grau de complexidade sintaacutectica aumentava

de forma linear e anaacuteloga ao desenvolvimento doutrinaacuterio Vaacuterios autores

alargaram a proposta de Dittenberger a outros tipos de material textual

(construccedilotildees sintaacutecticas ritmo da prosa etc) mas todos eles seguiam o

mesmo princiacutepio geral o estabelecimento de um padratildeo de complexificaccedilatildeo

estiliacutestica eacute o criteacuterio para determinar a ordem de composiccedilatildeo dos Diaacutelogos

Um outro estudioso que merece especial destaque eacute W Lutoslawski

(especialista em loacutegica) cuja obra (1897) tinha a nada humilde pretensatildeo

de promover a estilometria agrave categoria de ciecircncia exacta como se de um

ramo da matemaacutetica aplicada se tratasse Em todo o caso o seu trabalho

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CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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417

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Zurich Weidmann 1992

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Page 21: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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CAPIacuteTULO IV

viria a ser determinante para as geraccedilotildees de estilomeacutetricos posteriores Em

primeiro lugar coligiu todas as propostas produzidas ateacute entatildeo de cuja

anaacutelise e criacutetica comparativas retirou um lsquoconsensorsquo miacutenimo isto eacute uma

conclusatildeo partilhada pela maior parte dos autores mais reconhecidos13

Sofista Poliacutetico Filebo Timeu Criacutetias e Leis constituem de facto o uacuteltimo

grupo cronoloacutegico Em seguida fez um levantamento das caracteriacutesticas

linguiacutesticas proacuteprias deste conjunto de diaacutelogos as quais seriam posteriormente

utilizadas como criteacuterios de padronizaccedilatildeo isto eacute os elementos discriminadores

Chegou a um total de 500 criteacuterios14

As investigaccedilotildees de Lutoslawski foram verdadeiramente revolucionaacuterias

na medida em que conferiram agrave estilometria um estatuto metodoloacutegico

praticamente indisputado durante geraccedilotildees de platonistas Ao mesmo tempo

confirmavam tambeacutem as primeiras intuiccedilotildees de Campbell bem como

validavam o meacutetodo desenvolvido por Dittenberger Todos os trabalhos

produzidos nas deacutecadas seguintes dependem inteiramente da obra destes

trecircs autores e pode bem dizer-se que muito pouco lhe acrescentam pois

limitam-se a explorar outros tipos de material linguiacutestico

De acordo com os seguidores do meacutetodo estilomeacutetrico Criacutetias Filebo

Leis Poliacutetico Sofista e Timeu constituem o grupo dos diaacutelogos lsquotardiosrsquo isto

eacute aqueles que Platatildeo escreveu por uacuteltimo A posiccedilatildeo dos restantes poderaacute

pois ser aferida por comparaccedilatildeo estiliacutestica com este grupo Ora tal optimismo

eacute manifestamente injustificado O que o meacutetodo estilomeacutetrico demonstra

com inegaacutevel clareza eacute que aqueles diaacutelogos (1) tecircm bastantes particularidades

estiliacutesticas em comum e (2) se tomados em conjunto pela soma de tais

particularidades constituem uma amostra estiliacutestica diferente dos restantes

diaacutelogos do corpus Platonicum A pretensatildeo de que tal diferenccedila tenha

implicaccedilotildees cronoloacutegicas eacute como veremos insustentaacutevel tendo em conta

um conjunto de limitaccedilotildees que o meacutetodo estilomeacutetrico natildeo consegue superar

quando aplicado a Platatildeo

13 Campbell (1867) Dittenberger (1881) Schantz (1886)

14 Na verdade o meacutetodo tinha sido criado por Ritter (1888) mas este tinha conseguido estabelecer apenas 45 criteacuterios Para a explicaccedilatildeo detalhada das 500 caracteriacutesticas e respectivos criteacuterios de selecccedilatildeo vide Lutoslawski (1897 76-123)

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93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

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417

POEacuteTICA

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Zurich Weidmann 1992

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Page 22: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

93

ORDENACcedilAtildeO DOS DIAacuteLOGOS

32 limitaccedilotildees do meacutetodo estilomeacutetrico se aplicado a platatildeo

321 Impossibilidade de definir uma data de composiccedilatildeo absoluta

O primeiro problema diz respeito ao estabelecimento de datas absolutas

isto eacute os marcos em funccedilatildeo dos quais se determinam as datas relativas

Conveacutem relembrar que o meacutetodo estilomeacutetrico como qualquer tipo de

anaacutelise estatiacutestica exige um ponto de referecircncia em relaccedilatildeo ao qual se

calculam as variaccedilotildees e por conseguinte o padratildeo dessas mesmas variaccedilotildees

A natureza singular do texto platoacutenico e as condiccedilotildees de ediccedilatildeopublicaccedilatildeo

vigentes na sua eacutepoca como vimos anterioremente natildeo permitem o

estabelecimento de um referente cronoloacutegico interno Natildeo existe em nenhum

diaacutelogo qualquer tipo de referecircncia que indique expressamente a sua data

de composiccedilatildeo

A uacutenica alternativa seraacute pois recorrer agraves evidecircncias externas factos

histoacutericos e testemunhos das fontes antigas No primeiro caso aleacutem da

notoacuteria escassez de material levanta-se um problema fundamental que

invalida por completo o recurso a este tipo de dados Eles satildeo irrelevantes

para a determinaccedilatildeo de uma cronologia relativa visto que apenas provam

que Platatildeo escreveu um determinado diaacutelogo depois de uma determinada

data mas natildeo permitem inferir quando teraacute sido exactamente No segundo

caso natildeo soacute os dados satildeo igualmente escassos como tambeacutem contraditoacuterios

na medida em que as mesmas fontes que por exemplo colocam as Leis

como uacuteltimo diaacutelogo afirmam que natildeo foram redigidas por Platatildeo

Como vimos um dos pressupostos mais fundamentais de toda e qualquer

proposta cronoloacutegica (e por conseguinte do proacuteprio meacutetodo estilomeacutetrico)

eacute atribuir agraves Leis o roacutetulo lsquoabsolutorsquo de uacuteltimo diaacutelogo Eacute um dado geralmente

considerado indisputaacutevel ainda que uma ligeira dose de rigor filoloacutegico

aconselhe a um pouco mais de contenccedilatildeo

A uacutenica fonte suficientemente proacutexima de Platatildeo a sugerir esse dado eacute

uma breve linha da Poliacutetica de Aristoacuteteles15 Estaacute em causa um conjunto de

15 Pol II 6 1264b26-27 O autor anoacutenimo dos jaacute citados Prolegoacutemenos agrave Filosofia Platoacutenica (2411-15) e Dioacutegenes Laeacutercio (337) muitos seacuteculos mais tarde limitam-se a repetir a mesma ideia acrescentando este uacuteltimo que o texto das Leis eacute poacutestumo e a sua ediccedilatildeo ficou a dever-se ao disciacutepulo Filipe de Opunte

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iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

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417

POEacuteTICA

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Page 23: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

iX

dialeacutetiCa

Giovanni CasertanouniVerSitagrave degli Studi di naPoli

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_9

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Traduzido por Ester Macedo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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417

POEacuteTICA

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Page 24: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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417

POEacuteTICA

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Page 25: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

169

i

Poder-se-ia dizer que a dialeacutetica com os mesmos atributos e conotaccedilotildees

que grosso modo lhe damos hoje nasce com Platatildeo Esta afirmaccedilatildeo que

penso ser vaacutelida conteacutem em si pelo menos dois pressupostos que conveacutem

explicitar apesar de natildeo serem justificados aqui

A) Naturalmente ela natildeo tem em conta o lsquoproblemarsquo Soacutecrates Como eacute

amplamente sabido na maioria dos diaacutelogos Platatildeo potildee na boca de Soacutecrates

teses que noacutes rotulamos como lsquoteorias platoacutenicasrsquo Mas Soacutecrates eacute soacute uma

personagem embora seja a principal dos dramas encenados por Platatildeo e

a historiografia platoacutenica tem trabalhado incansavelmente e trabalha ainda

na questatildeo da distinccedilatildeo no corpus platoacutenico do que corresponde agrave exposiccedilatildeo

das teorias do mestre e do que pelo contraacuterio eacute elaboraccedilatildeo somente do

seu disciacutepulo Natildeo pretendo enfrentar aqui esta questatildeo (pessoalmente a

considero sem soluccedilatildeo) pelo que falarei de lsquoPlatatildeorsquo e de lsquoteorias platoacutenicasrsquo

incluindo tambeacutem nestas expressotildees tudo o que nos diaacutelogos eacute exposto

pela personagem Soacutecrates Isto porque ndash como eacute bem conhecido ndash em

alguns diaacutelogos Soacutecrates muitas vezes natildeo eacute a personagem principal (ou

por vezes estaacute ausente como por exemplo nas Leis) e tambeacutem porque as

teorias-chave entre as quais a da dialeacutetica satildeo expostas por outras

personagens

B) Ao afirmar que a dialeacutetica nasce com Platatildeo natildeo se estaacute a dizer que

a cultura anterior ao filoacutesofo natildeo seja profundamente dialeacutetica basta apenas

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170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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417

POEacuteTICA

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Page 26: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

170

CAPIacuteTULO IX

pensar no conceito de nascimentomorte que pelo menos de Anaximandro

a Parmeacutenides Empeacutedocles e Demoacutecrito se afirma como sendo caracteriacutestica

dos muitos fenoacutemenos mas se nega se referido ao τὸ πᾶν isto eacute ao cosmo

pensado como um todo Todavia a dialeacutetica pensada como a possibilidade

de contrapor teses entre si de discuti-las com a consciecircncia da sua

relatividade da possibilidade de serem objeto de mediaccedilatildeo num quadro

que transcenda o quadro limitado da opiniatildeo pessoal estaacute certamente

presente em toda a cultura grega do teatro aos tribunais em suma em

toda a vida cultural da nova organizaccedilatildeo da poacutelis grega Por conseguinte

deve-se entender esta afirmaccedilatildeo no sentido de que com Platatildeo assistimos

a uma primeira complexa e estratificada lsquoteorizaccedilatildeorsquo da dialeacutetica

ii

Ainda assim natildeo se pode dizer simplisticamente lsquoo que eacute a dialeacutetica em

Platatildeorsquo dado que nos seus diaacutelogos nos encontramos face a diversas

teorizaccedilotildees com acentuaccedilatildeo de vaacuterios caracteres Nem se pode falar

simplisticamente de um desenvolvimento ou de uma lsquoevoluccedilatildeo da conceccedilatildeo

platoacutenica da dialeacuteticarsquo cadenciada por momentos temporais precisos Isto

natildeo porque natildeo tenha havido obviamente um desenvolvimento do

pensamento platoacutenico mas porque por um lado eacute muito difiacutecil estabelecer

uma sucessatildeo cronoloacutegica exata dos diaacutelogos a natildeo ser muito em geral e

por outro lado porque nos vaacuterios textos nos encontramos face a um

enriquecimento e a uma imagem caleidoscoacutepica da conceccedilatildeo platoacutenica da

dialeacutetica e portanto face a uma focalizaccedilatildeo de aspetos diversos de um

nuacutecleo conceptual unitaacuterio em ocasiotildees dramaacuteticas e em situaccedilotildees dialoacutegicas

diversas O que emerge do exame dos diaacutelogos eacute um quadro problemaacutetico

da dialeacutetica que abrange diferentes campos do loacutegico ao gnosioloacutegico do

eacutetico ao poliacutetico E se fizermos um exame em linhas gerais dos diaacutelogos

podemos detetar trecircs grandes nuacutecleos teoacutericos

A) A dialeacutetica pensada como diaacutelogo meacutetodo de investigaccedilatildeo nasce da

discussatildeo e natildeo eacute soacute a busca da verdade mas tambeacutem a da correccedilatildeo

metodoloacutegica do discurso que deve ser reconhecida e aceite pelos vaacuterios

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171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

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417

POEacuteTICA

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Page 27: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

171

DIALEacuteTICA

interlocutores Essa consiste fundamentalmente no meacutetodo de bem saber

interrogar e responder portanto deve respeitar uma exigecircncia loacutegica e

metodoloacutegica em que se frisam a centralidade e a imprescindibilidade do

discurso mas ela mostra-se jaacute como uma ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Eacute o quadro que aparece em diaacutelogos como o Meacutenon o Eutidemo o Craacutetilo

o Feacutedon

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras que usam uma loacutegica a-dialeacutetica mostra-se ainda como um

processo e como um meacutetodo mas ao caracterizar-se essencialmente como

uma consideraccedilatildeo sinoacuteptica da realidade e como a capacidade de possuir

o λόγος a razatildeo de ser das coisas apresenta-se tambeacutem como o fim de

todas as aprendizagens adquirindo assim uma conotaccedilatildeo loacutegica e eacutetica Eacute

o quadro oferecido especialmente na Repuacuteblica

C) A dialeacutetica pensada natildeo soacute como a capacidade de conectar ideias

estabelecendo as possiacuteveis relaccedilotildees e as eventuais incompatibilidades

(lsquodistinguir por geacutenerosrsquo) mas tambeacutem e principalmente como o conhecimento

mais verdadeiro e por conseguinte como o fim de todas as outras ciecircncias

essa eacute a caracterizaccedilatildeo mais proacutepria da filosofia Eacute o quadro que emerge

de diaacutelogos como o Parmeacutenides o Sofista o Poliacutetico o Filebo e o Timeu

iii

A) Uma definiccedilatildeo clara de dialeacutetica como busca da verdade por meio

de um diaacutelogo que se faccedila corretamente quer dizer com base num meacutetodo

que prevecirc natildeo soacute a correccedilatildeo loacutegica das argumentaccedilotildees mas tambeacutem o

consenso dos interlocutores em cada passagem do diaacutelogo pode ser

encontrada numa paacutegina do Meacutenon Em 72c-d Soacutecrates pergunta a Meacutenon

o que eacute a virtude isto eacute aquele εἶδος que faz com que sendo as virtudes

muitas e vaacuterias se possa identificar em cada uma delas precisamente uma

lsquovirtudersquo Apoacutes uma seacuterie de arrufos em que Meacutenon primeiro se recusa a

admitir que eacute possiacutevel encontrar o que Soacutecrates pede (com base no

ensinamento de Goacutergias de que as virtudes satildeo essencialmente diversas

umas das outras) e depois baseando-se explicitamente em Goacutergias aceita

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172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

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417

POEacuteTICA

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Page 28: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

172

CAPIacuteTULO IX

formular uma primeira definiccedilatildeo da virtude colocando-a na capacidade de

governar os homens (73c) Aqui natildeo nos interessa seguir a discussatildeo desta

definiccedilatildeo por parte de Soacutecrates mas apenas encontrar na discussatildeo os

elementos que podem servir-nos para apresentar um primeiro sentido de

dialeacutetica Visto que a resposta de Meacutenon eacute claramente redutiva porque se

refere soacute a homens livres e adultos e por conseguinte em contraste com

o que se admitira anteriormente (isto eacute que a virtude pertence tambeacutem a

mulheres crianccedilas e escravos) Soacutecrates oferece um exemplo de definiccedilatildeo

que apreende o εἶδος do que se deve definir E escolhe o exemplo da lsquofigurarsquo

figura eacute lsquoa uacutenica coisa acompanhada sempre pela corrsquo (75b10-11 ὃ μόνον

τῶν ὄντων τυγχάνει χρώματι ἀεὶ ἑπόμενον) Meacutenon objeta que esta eacute a resposta

de um obtuso (75c2 εὔηθες) de facto se algueacutem dissesse que natildeo sabia o

que eacute a cor o que pensaria Soacutecrates de tal resposta

A objeccedilatildeo de Meacutenon eacute importante porque mostra que no trabalho de

procura de uma definiccedilatildeo correta eacute necessaacuterio que todos os termos usados

sejam compreensiacuteveis aos interlocutores para que natildeo haja uma perda de

sentido da definiccedilatildeo mesma Mas aqui a resposta de Soacutecrates ignora este

aspeto da questatildeo que Platatildeo bem conhece e desloca o acento para uma

caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que eacute simultaneamente loacutegica e psicoloacutegica isto

eacute mostra a importacircncia do contexto em que a investigaccedilatildeo se desenvolve

De facto Soacutecrates contesta que pensaria sempre que a sua resposta eacute

verdadeira mas se estivesse a discutir com um dos sapientes (75c8 σοφῶν)

ou dos eriacutesticos (75c9 ἐριστικῶν) ou com um dos que gostam de entrar

em competiccedilotildees verbais (75c9 ἀγωνιστικῶν ὁ ἐρόμενος) diria lsquoA minha

definiccedilatildeo eacute o que eacute se natildeo falei corretamente (75d1 μὴ ὀρθῶς λέγω) cabe-

te a ti tomar a palavra e refutar-me (75d1-2 σὸν ἔργον λαμβάνειν λόγον καὶ

ἐλέγχειν)rsquo Como se vecirc a resposta eacute seca e cortante de facto eacute uma recusa

a discutir com pessoas que natildeo estejam interessadas na procura da verdade

mas soacute em competir para mostrar a sua habilidade verbal e isto natildeo eacute

dialeacutetica Bem diversa seria a reaccedilatildeo de Soacutecrates se pelo contraacuterio estivesse

num ciacuterculo de amigos que quisessem discutir (75d3 διαλέγεσθαι) seriamente

entre si neste caso seria necessaacuterio responder de modo menos riacutespido e

mais dialeacutetico (75d4 πρᾳότερόν πως καὶ διαλεκτικώτερον) Portanto a dialeacutetica

no sentido de um confronto de opiniotildees mesmo diversas mas entre as

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173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

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417

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Page 29: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

173

DIALEacuteTICA

quais se procura a mediaccedilatildeo com o fim comum de alcanccedilar a verdade eacute

certamente um meacutetodo de discussatildeo que consiste no confronto e na refutaccedilatildeo

reciacuteprocos por meio de perguntas e de respostas mas soacute pode ser utilizaacutevel

nessa situaccedilatildeo E a caracterizaccedilatildeo da dialeacutetica que Soacutecrates daacute logo de

seguida frisa claramente estes dois aspetos do meacutetodo dialeacutetico o que na

realidade eacute mais conforme agrave dialeacutetica (75d4 διαλεκτικώτερον) por um lado

eacute responder a verdade (75d5-6 τἀληθῆ ἀποκρίνεσθαι) mas por outro e

sobretudo formular a sua resposta lsquodentro dos termos com que o interrogado

declare concordarrsquo (75d6-7 διrsquo ἐκείνων ὧν ἂν προσομολογῇ εἰδέναι ὁ ἐρωτώμενος)

Isso mais natildeo eacute do que procurar a concordacircncia sobre os significados

precisos dos termos utilizados e sobre o sentido que deriva da sua conexatildeo

E esta caracteriacutestica da dialeacutetica como capacidade de fazer perguntas e de

dar respostas de refutar-se reciprocamente e de alcanccedilar resultados

lsquoconcordadosrsquo estaraacute fortemente presente em muitos diaacutelogos platoacutenicos do

Goacutergias ao Feacutedon no caso deste uacuteltimo diaacutelogo vejam-se em particular as

paacuteginas 75-76 (sobre o igual e os iguais) 78-79 (sobre o lsquodar razatildeorsquo por

meio de perguntas e respostas) 99-100 (o lsquomanifestorsquo platoacutenico sobre a

centralidade absoluta do discurso) 115e em que se frisa que a incorreccedilatildeo

do uso da linguagem natildeo eacute soacute um erro loacutegico mas algo que pode prejudicar

a lsquosauacutedersquo mesma da alma (115e5-7 τὸ μὴ καλῶς λέγειν οὐ μόνον εἰς αὐτὸ τοῦτο

πλημμελές ἀλλὰ καὶ κακόν τι ἐμποιεῖ ταῖς ψυχαῖς a inexatidatildeo da linguagem

natildeo soacute eacute uma incorreccedilatildeo em si mesma como tambeacutem faz mal agraves almas)

Neste grupo de diaacutelogos como se dizia encontramos tambeacutem outra

caracterizaccedilatildeo formal da dialeacutetica esta eacute a ciecircncia do uso das outras ciecircncias

Esta caracteriacutestica eacute encontrada por exemplo no Eutidemo onde se nota

que nenhuma das artes relativas agrave caccedila ultrapassa o caccedilar e o conquistar a

presa De facto quando caccediladores e pescadores apanham aquilo que foram

caccedilar ou pescar natildeo sabem servir-se da presa pois a entregam aos

cozinheiros Analogamente os geoacutemetras os astroacutenomos e os mestres de

caacutelculo entregam as suas descobertas (Euthd 290c6 εὑρήμασιν) aos dialeacuteticos

(290c5 διαλεκτικοῖς) porque somente eles sabem como usaacute-las (290b-c)

Sobretudo no Craacutetilo realccedila-se a funccedilatildeo fundamental do dialeacutetico em

controlar a linguagem tarefa que significa precisamente julgar se os nomes

que usamos satildeo adequados agraves ideias correspondentes Na paacutegina 390c-d

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174

CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Zurich Weidmann 1992

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Page 30: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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CAPIacuteTULO IX

Soacutecrates refuta a tese lsquoconvencionalistarsquo de Hermoacutegenes as coisas tecircm uma

οὐσία proacutepria que natildeo depende de noacutes Com efeito o nome eacute o instrumento

com o qual nomeamos as coisas e mediante o qual se pode ensinar e

distinguir as coisas que satildeo tal como satildeo Mas por sua vez daacute-se o nome

com base numa ideia e eis a analogia entre as teacutecnicas de produccedilatildeo e a

teacutecnica do uso aplicada ao nomoacuteteta que daacute os nomes agraves coisas e ao

dialeacutetico Tal como o carpinteiro quando constroacutei uma lanccediladeira olha

para a ideia de lanccediladeira tambeacutem o legislador quando impotildee um nome

olha para a ideia de nome Mas aquele que julga se a ideia de lanccediladeira

estaacute bem impressa num ou noutro pedaccedilo de madeira natildeo eacute o carpinteiro

seraacute quem a usaraacute ou seja o tecelatildeo e isto vale tambeacutem para as outras

teacutecnicas quem julga a obra do construtor de liras eacute o citarista quem julga

a obra do construtor de naus eacute o piloto Julgar em todos estes casos

significa precisamente controlar se o εἶδος a propriedade natural (398c4

πεφυκός φύσει) de cada coisa estaacute impressa nela como sua funccedilatildeo (389d1

φύσει ἑκάστῳ) Mas quem julga da obra do legislador que daacute os nomes

agraves coisas Seraacute aquele que sabe interrogar e responder (390c6-8 ὁ ἐρωτᾶν

ἐπιστάμενος καὶ ἀποκρίνεσθαι) e este corresponde precisamente ao dialeacutetico

(390c11 διαλεκτικόν) O legislador daacute os nomes sendo vigiado pelo homem

dialeacutetico (390d4-5 ἐπιστάτην ἔχοντος διαλεκτικὸν ἄνδρα) que deve controlar

se esses nomes foram bem postos (390d5 καλῶς θήσεσθαι)

B) A dialeacutetica pensada autenticamente como ciecircncia (ἐπιστήμη) distinta

das outras a-dialeacuteticas e ao mesmo tempo como meacutetodo que nos permite

atingir o fim de todas as aprendizagens eacute o quadro teoacuterico que os livros

VI e VII da Repuacuteblica nos oferecem No livro VI apoacutes ter falado da ideia

do bem Soacutecrates traccedila a famosa imagem da linha Para compreender a

distinccedilatildeo entre o geacutenero do visiacutevel e o do invisiacutevel imaginemos uma linha

cortada em dois segmentos desiguais subdivididos ainda segundo a mesma

relaccedilatildeo

Teremos em relaccedilatildeo reciacuteproca de clareza e de obscuridade (509d9

σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφεία) a) na secccedilatildeo do visiacutevel 1 as imagens (509e1 εἰκόνες)

que correspondem agraves sombras as que aparecem na aacutegua e nos espelhos

e a todas as coisas do geacutenero 2 aquilo a que se assemelham as imagens

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DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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417

POEacuteTICA

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Page 31: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

175

DIALEacuteTICA

os animais as plantas e qualquer coisa construiacuteda Ora tal como o opinaacutevel

se distingue do cognosciacutevel em relaccedilatildeo agrave verdade (510a9 ἀληθείᾳ ὡς τὸ

δοξαστὸν πρὸς τὸ γνωστόν) tambeacutem a imagem se distingue daquilo de que

eacute imagem b) Na secccedilatildeo do inteligiacutevel 3 a alma procura o inteligiacutevel partindo

de hipoacuteteses (510b5 ἐξ ὑποθέσεων) dirigindo-se natildeo para o princiacutepio mas

para o fim 4 a alma procura o inteligiacutevel partindo de hipoacuteteses mas sem

as imagens relativas a elas (510b7-8 ἐξ ὑποθέσεως ἰοῦσα καὶ ἄνευ τῶν περὶ

ἐκεῖνο εἰκόνων) e realiza a investigaccedilatildeo precisamente com as ideias e por

meio delas (510b8-9 αὐτοῖς εἴδεσι διrsquo αὐτῶν τὴν μέθοδον ποιουμένη)

Esta primeira formulaccedilatildeo da distinccedilatildeo entre visiacutevel e invisiacutevel presta-se

a algumas reflexotildees Em primeiro lugar parece-me claro que natildeo se trata

de uma distinccedilatildeo quanto ao niacutevel da realidade natildeo se quer contrapor uma

natildeo-realidade a uma realidade O visiacutevel eacute tatildeo real como o invisiacutevel Por

outras palavras o mundo das nossas experiecircncias sensiacuteveis (eacute disto que se

fala na primeira secccedilatildeo) natildeo eacute o mundo da ilusatildeo um mundo aparente

contraposto ao mundo real do intelecto como se afirmou durante seacuteculos

de interpretaccedilotildees que partem de um suposto dualismo platoacutenico Parece-me

oacutebvio que aqui natildeo se estaacute a separar e a contrapor os sentidos ao intelecto

mas estaacute-se a distinguir metodologicamente dois momentos da aprendizagem

e do conhecimento humanos A sua distinccedilatildeo daacute-se (exatamente como em

Demoacutecrito) com base em criteacuterios de obscuridade e de clareza (509d9) ou

se se quiser de opinaacutevel e de cognosciacutevel mas natildeo de realidade e ilusatildeo

o conhecimento sensiacutevel eacute obscuro e opinaacutevel enquanto que o conhecimento

inteligiacutevel eacute claro Isto significa por outras palavras que soacute o conhecimento

inteligiacutevel eacute verdadeiro (510a9) Na segunda secccedilatildeo encontramos a enunciaccedilatildeo

do meacutetodo especiacutefico do conhecimento inteligiacutevel trata-se claramente de

um meacutetodo que utiliza hipoacuteteses Ou melhor significa que o conhecimento

eacute um processo que se constroacutei com base em e junto com um meacutetodo preciso

(510b8-9) que utiliza ideias

Poreacutem eacute precisamente a utilizaccedilatildeo deste meacutetodo hipoteacutetico e das ideias

na segunda secccedilatildeo da linha que natildeo parece ser muito claro a Glaacuteucon

interlocutor momentacircneo de Soacutecrates E Soacutecrates reformula a definiccedilatildeo da

segunda secccedilatildeo e das suas duas subsecccedilotildees especificando melhor os campos

deste conhecimento do inteligiacutevel alguns ocupam-se de geometria caacutelculo

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176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

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Page 32: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

176

CAPIacuteTULO IX

e coisas semelhantes postulam (510c3-4 ὑποθέμενοι) o iacutempar e o par as

figuras geomeacutetricas trecircs espeacutecies de acircngulos e coisas do geacutenero E como

se conhecessem estas coisas e transformando-as em pressupostos (510c6

ταῦτα μὲν ὡς εἰδότες ποιησάμενοι ὑποθέσεις αὐτά) creem natildeo dever dar conta

disso (510c7-d1 οὐδένα λόγον διδόναι) nem a si mesmos nem aos outros

como se fosse algo absolutamente claro (510d1 ὡς παντὶ φανερῶν) Estas

pessoas servem-se das espeacutecies visiacuteveis e sobre elas discorrem mas tecircm

em mente aquelas formas abstratas a que estas se assemelham procurando

ver aquelas realidades em si que natildeo se podem ver a natildeo ser com a razatildeo

discursiva (511a1 διανοίᾳ) Este tipo de εἶδος eacute certamente inteligiacutevel (νοητόν)

mas a alma eacute obrigada a investigaacute-lo usando hipoacuteteses sem se dirigir para

o princiacutepio (511a5 ἐπrsquo ἀρχήν) natildeo sendo capaz de ultrapassar as hipoacuteteses

mas servindo-se destas como antes se servira das imagens

A outra secccedilatildeo do inteligiacutevel eacute a que atinge o discurso com a forccedila da

dialeacutetica (511b4 αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι δυνάμει) fazendo

das hipoacuteteses natildeo princiacutepios (511b5 ἀρχάς) mas realmente (511b5 τῷ ὄντι)

lsquopreacutesupostosrsquo quase uma espeacutecie de pontos de apoio e de trampolim

(511b6 οἷον ἐπιβάσεις τε καὶ ὁρμάς) ateacute que dirigindo-se para o que natildeo

tem pressupostos para o princiacutepio do todo (511b6-7 τοῦ ἀνυποθέτου ἐπὶ

τὴν τοῦ παντὸς ἀρχήν) e alcanccedilando-o se possa regressar apoiando-se ao

que dele deriva e descer ateacute ao fim sem usar absolutamente nada de

sensiacutevel mas somente as ideias por elas e para elas e se termine nas ideias

(511c1-2 ἀλλrsquoεἴδεσιν αὐτοῖς διrsquo αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ εἰς εἴδη) Com isto

se quer definir aquela parte do real e do inteligiacutevel (511c5-6 τοῦ ὄντος τε

καὶ νοητοῦ) que eacute contemplada pela ciecircncia dialeacutetica (511c5 ὑπὸ τὴς τοῦ

διαλέγεσθαι ἐπιστήμης)

Em primeiro lugar esta segunda formulaccedilatildeo socraacutetica diz-nos quais satildeo

as ciecircncias do inteligiacutevel Geralmente satildeo as matemaacuteticas estas usam imediata

e intuitivamente hipoacuteteses admitidas como sendo claras e evidentes das

quais natildeo datildeo razatildeo (510c-d) mas das quais se servem para construir os

seus raciociacutenios (511a1) em geral satildeo os postulados das matemaacuteticas que

natildeo se demonstram mas que servem para demonstrar A relaccedilatildeo com o

sensiacutevel estaacute ainda bem presente aqui (basta pensar por exemplo na

geometria) mas eacute apenas instrumental pois que os objetos das suas

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250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 33: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

250

CAPIacuteTULO XII

O demiurgo eacute bom e desprovido de inveja Esta eacute a razatildeo pela qual ele

faz o mundo o mais belo possiacutevel e eacute por isso que natildeo o destruiraacute (Ti

41a-b) Esta passagem natildeo vai aleacutem disso mas os inteacuterpretes tecircm se deixado

levar em duas direccedilotildees

41 O demiurgo eacute o Bem que produz ateacute mesmo o inteligiacutevel18

Os defensores da interpretaccedilatildeo esoteacuterica quiseram identificar o demiurgo

com o Bem e fazer dele o produtor das Formas inteligiacuteveis se baseando

principalmente numa passagem famosa do livro X da Repuacuteblica (595e-597e)

Mas no mundo inteligiacutevel natildeo pode haver fabricaccedilatildeo Por conseguinte agrave

medida que o deus produz a Forma isto significa que a faz advir ao mundo

sensiacutevel que ela a implanta nele e eacute nisto que consiste a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel Daqui deriva a necessidade de distinguir na pessoa do

deus que fabrica o universo o δημιουργός do φυτουργός O δημιουργός produz

no sentido em que fabrica as realidades sensiacuteveis enquanto o φυτουργός

produz no sentido que implanta19 uma Forma na mateacuteria favorecendo assim

a reproduccedilatildeo do Inteligiacutevel no mundo sensiacutevel Elas consistem na mesma

atividade mas considerada sob dois pontos de vista diferentes um pouco

como no caso dos dois lados da mesma moeda

Uma cama em particular eacute fabricada por um produtor de camas em

particular (κλινοποιός τις) um fabricante de camas (δημιουργὸς κλίνης)

algueacutem que se ocupe de fabricar camas (κλινουργός) um carpinteiro (τέκτων)

e mais genericamente um trabalhador manual (χειροτεχνής) Uma cama

particular (κλίνη τις) eacute sua obra (ἔργον)

A imitaccedilatildeo da cama em particular eacute a obra de um pintor (ζώγραφος)

que pode ser definido assim imitador da coisa que os outros fabricam

(μιμητὴς οὗ δημιουργοί) O pintor eacute assim um fabricante (δημιουργός) e

portanto um trabalhador manual (χειροτεχνής) De fato o pintor produz

(ποιεῖ) coisas mas que soacute apresentam aparecircncia (φαινόμενα) e que satildeo

desprovidas de realidade verdadeira (οὐ ὄντα τῇ ἀλήθειᾳ) coisas cujo status

18 Sobre o assunto vide Brisson (2002) Fronterotta (2003)

19 Isso natildeo significa que as Formas se encontram tais quais na mateacuteria sua presenccedila eacute mediada pelas ciecircncias matemaacuteticas como fica bem claro no Timeu

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251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 34: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

251

COSMOLOGIA

ontoloacutegico se assemelha ao do reflexo num espelho Mas se ele natildeo produz

aquilo que eacute o pintor natildeo produz o ser mas a aparecircncia Nota-se que aqui

a aparecircncia eacute oposta ao ser que no nosso universo equivale ele mesmo a

uma imagem da Forma por conseguinte o pintor estaacute muito afastado da

realidade pois ele natildeo produz nada aleacutem de uma imagem da imagem

Portanto a ideia desenvolvida na primeira parte do livro X Repuacuteblica eacute

facilmente definida A imitaccedilatildeo posta em praacutetica pela poesia deve ser

rejeitada pelas duas razotildees seguintes ela nos aliena e agrave medida em que

modifica nosso lsquoeursquo natildeo chega mesmo a lhe opor resistecircncia pois a imitaccedilatildeo

age como um encanto maacutegico e nos manteacutem longe da realidade pois ela

produz uma imagem da imagem imitando aquilo que em sua esfera natildeo

passa de uma imitaccedilatildeo

Eacute essa condenaccedilatildeo da imitaccedilatildeo artiacutestica no plano da ontologia que ao

que me parece permite compreender por que Platatildeo introduz o termo

φυτουργός e em que sentido este se distingue do δημιουργός Se houvesse

assimilado a funccedilatildeo do deus agravequela de um δημιουργός Platatildeo teria por

esse proacuteprio fato valorizado o trabalho natildeo soacute do carpinteiro mas tambeacutem

e sobretudo do pintor os quais poderiam tambeacutem ser classificados como

δημιουργοί em sua esfera Para mostrar uma oposiccedilatildeo clara entre o deus

por um lado e o carpinteiro e pintor por outro e para insistir na

inferioridade do pintor (e por consequecircncia do poeta) em relaccedilatildeo ao

carpinteiro Platatildeo mantendo-se totalmente fiel agrave ideia segundo a qual tudo

no mundo sensiacutevel resulta da produccedilatildeo estabelece uma ruptura entre a

accedilatildeo do deus que ele assemelha a uma atividade agriacutecola e a accedilatildeo dos

homens que se aplica ao trabalho artesanal No Timeu onde natildeo mais se

trata de condenar a imitaccedilatildeo artiacutestica mas sim de descrever o mundo

sensiacutevel Platatildeo se sentiraacute livre para comparar a intervenccedilatildeo do deus agrave

atividade de um δημιουργός Entre o livro X da Repuacuteblica e o Timeu nota-

se uma diferenccedila de estrateacutegia relativamente agrave descriccedilatildeo da atividade

exercida mas as linhas de forccedila no que se refere agrave constituiccedilatildeo do universo

sensiacutevel em relaccedilatildeo agraves realidades inteligiacuteveis permanecem as mesmas

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252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 35: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

252

CAPIacuteTULO XII

42 A questatildeo da teleogia20

A partir dos anos 1950 muitos inteacuterpretes passaram a considerar Platatildeo

um adepto da teleologia ndash termo inventado no seacuteculo XVIII por historiadores

da filosofia alematildees para contrapor aos sistemas mecanicistas de explicaccedilotildees

fiacutesicas e bioloacutegicas sistemas de explicaccedilotildees em que a finalidade (em grego

antigo telos significa fim objetivo) tinha lugar21 Ora como Aristoacuteteles era

considerado o primeiro (e ateacute o mais importante) defensor desse tipo de

interpretaccedilatildeo ao interpretarmos Platatildeo como um defensor da teleologia

noacutes o confundimos com Aristoacuteteles jaacute que em Aristoacuteteles nos encontramos

num contexto filosoacutefico bem diferente De fato para Aristoacuteteles a fiacutesica eacute

a ciecircncia de uma regiatildeo do ser Satildeo ditos lsquonaturaisrsquo os seres que possuem

em si mesmos o princiacutepio de seu movimento este uacuteltimo termo sendo

compreendido como a mudanccedila segundo todas as categorias afetadas por

um movimento Uma planta viva tem em si mesma o princiacutepio de seu

crescimento o elemento fogo tem em si mesmo uma tendecircncia de se mover

em direccedilatildeo agrave periferia do Universo Por outro lado eacute em algo diferente de

si mesmo a saber no artesatildeo que maneja seus instrumentos que a cama

encontra o princiacutepio de seu vir a ser O estudo da fiacutesica se limita entatildeo a

certas realidades que Aristoacuteteles enumera nas primeiras linhas de seu tratado

chamado Meteoroloacutegicos os seres em movimento e seus movimentos a

saber os corpos celestes os seres vivos os fenocircmenos lsquometeoroloacutegicosrsquo

que designam uma parte das realidades que chamamos com esse nome

(chuva granizo arco-iacuteris) mas tambeacutem as mareacutes o mar e os cursos da

aacutegua os terremotos assim como os fenocircmenos os cometas as estrelas

cadentes a via laacutectea etc O conjunto dessas realidades pertencem agrave natureza

que pode ser definida assim lsquoa natureza eacute um princiacutepio e uma causa de

movimento e de repouso para a coisa na qual ela reside imediatamente

por essecircncia e natildeo por acidentersquo (Arist Ph II 1 192b20-22 III 1 200b12

Cael 301b17-sqq)

20 Sobre este assunto vide Johansen (2004) Sedley (2007)

21 Sobre esse assunto ver Woodfield (1976) A palavra foi inventada em 1728 por Christian Wolff em Philosophia rationalis sive logica Kant rejeita a teleologia na Criacutetica da Razatildeo Pura Mas na Criacutetica do Julgamento ele a aceita com ressalvas poreacutem

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253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

BiBliografia

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Traduzido por Ester Macedo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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Page 36: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

253

COSMOLOGIA

O sistema dos seres fiacutesicos ndash ou seja o cosmos ndash eacute um conjunto finito

fechado eterno Aristoacuteteles se recusa a fazer de todas as transformaccedilotildees

que lhe advecircm simples alteraccedilotildees de uma substacircncia ou substacircncias sempre

as mesmas como segundo ele haviam pretendido os fi loacutesofos que

postulavam que o Universo eacute feito de uma soacute realidade fundamental Haacute

geraccedilatildeo e perecimento de seres naturais na fiacutesica aristoteacutelica mas numa

cadeia ininterrupta de transformaccedilotildees que se fundamentam sobre a

transmutaccedilatildeo contiacutenua dos elementos uns nos outros Aristoacuteteles retoma de

Empeacutedocles os quatros constituintes da mateacuteria terra aacutegua ar e fogo Mas

ele define cada um por um par de suas propriedades fundamentais que satildeo

o quente e o frio o seco e o uacutemido o fogo eacute quente e seco o ar quente

e uacutemido a aacutegua fria e uacutemida a terra fria e seca (principalmente GC) Ao

perder ou ganhar essas qualidades os elementos podem se transformar uns

nos outros e isso acontece mais facilmente mas natildeo exclusivamente entre

dois elementos que possuem uma qualidade comum o fogo viraraacute ar se o

seco se transformar em uacutemido por exemplo

Mas esse sistema fechado natildeo eacute autossuficiente Tudo o que eacute movido

eacute movido por um motor que eacute por sua vez movido por outro motor O

uacuteltimo dos motores movidos do movimento de qual dependem direta ou

indiretamente todos os outros movimentos eacute o lsquoprimeiro ceacuteursquo o conjunto

das estrelas fixas que Aristoacuteteles imaginava fixas sobre uma esfera a uacuteltima

dentro do seu universo geocecircntrico e finito Mas o proacuteprio primeiro ceacuteu

recebe o movimento de um motor imoacutevel que para Aristoacuteteles eacute o deus

(cf Livro XII Metaph) Esse conceito limite que eacute o motor imoacutevel mostra

bem o status que Aristoacuteteles concede agrave fiacutesica Sendo material e natildeo tendo

outra atividade possiacutevel a dizer compatiacutevel com sua eminente dignidade

de ato puro que aquela em que consiste a pensar-se a si mesmo o Primeiro

Motor natildeo pode se mover mas ele move tudo o resto que eacute fiacutesico Eacute a

princiacutepio o primeiro ceacuteu que eacute movido pelo desejo pois a perfeiccedilatildeo do

Primeiro Motor o torna tambeacutem supremamente desejaacutevel O mundo fiacutesico

tem portanto sua impulsatildeo e mesmo sua possibilidade num aleacutem-de-si-

mesmo uma realidade lsquometafiacutesicarsquo no sentido etimoloacutegico daquele lsquoque se

encontra aleacutem da realidade fiacutesicarsquo Assim a regiatildeo eminente do ser escapa

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254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

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DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

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417

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Page 37: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

254

CAPIacuteTULO XII

agrave fiacutesica De onde temos uma foacutermula desse tipo lsquoO deus e a natureza natildeo

fazem nada em vatildeorsquo (Cael I 4 271a33 cf Ph II 8 199a 16 PA 5 645a5)

Neste contexto interpretativo encontramo-nos na imanecircncia absoluta

mais formas separadas mais demiurgo distinto e mais alma do mundo

Propomos entatildeo uma interpretaccedilatildeo meacutedio-platocircnica inspirada pelo

aristotelismo e pelo estoicismo que corresponde muito bem agrave tradiccedilatildeo

neo-kantiana da filosofia que predomina ainda principalmente na Inglaterra

e nos EUA

Como vemos uma pesquisa sobre as causas no Timeu nos permite fazer

um tour do panorama da histoacuteria da filosofia antiga Quis nessa apresentaccedilatildeo

evitar interpretar Platatildeo me inspirando em Aristoacuteteles nos estoicos e mesmo

no meacutedio- e neoplatonismo

BiBliografia

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Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

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417

POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

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Page 38: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

255

COSMOLOGIA

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de Caen

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Dai dialoghi giovanili al Parmenide Pisa Scuola Normale Superiore Pubblicazioni della

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Traduzido por Ester Macedo

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon

Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill

Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and

Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp

93-110

Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press

Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion

Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

Rio de Janeiro 7 Letras

Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes

Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica

Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento

Vitoacuteria pp 102-135

Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

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POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

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Page 39: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon

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Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp

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Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion

Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

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Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

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417

POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

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Page 40: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

Xiii

matemaacutetiCa

Fernando Rey PuenteuniVerSidade Federal de minaS geraiS

DOI | httpsdoiorg1014195978-989-26-1596-7_13

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon

Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill

Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and

Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp

93-110

Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press

Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion

Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

Rio de Janeiro 7 Letras

Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes

Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica

Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento

Vitoacuteria pp 102-135

Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

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417

POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

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Page 41: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon

Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill

Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and

Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp

93-110

Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press

Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion

Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

Rio de Janeiro 7 Letras

Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes

Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica

Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento

Vitoacuteria pp 102-135

Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

417

POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

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Page 42: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

259

i introduccedilatildeo e estado da questatildeo

A presenccedila da matemaacutetica nos diaacutelogos de Platatildeo eacute um tema que produziu

importantes debates desde a recepccedilatildeo mesma da filosofia platocircnica na

Antiguidade ndash seja por parte de seus seguidores no interior da Academia

(especialmente Espeusipo e Xenoacutecrates) seja por parte de seu mais atento

disciacutepulo e ao mesmo tempo mais forte opositor Aristoacuteteles ndash passando

por vaacuterios periacuteodos histoacutericos nos quais houve uma apropriaccedilatildeo positiva

(por exemplo no seacuteculo II com o comentaacuterio de Teacuteon de Esmirna intitulado

Τῶν κατὰ τὸν μαθηματικὸν χρησίμων εἰς τὴν Πλάτωνος ἀνάγνωσιν e no seacuteculo

XVI com o livro de Gillaume Postel De admirandis numerorum platonicorum

secretis) ou negativa de sua obra ateacute chegar agrave contemporaneidade onde

podemos assinalar a dissertaccedilatildeo de Carl Blass De Platone mathematico

publicada em latim no ano de 1861 na Alemanha como um marco que

continuou a propagar a lenda originaacuteria na tradiccedilatildeo antiga de que Platatildeo

havia sido um matemaacutetico original criador de novas concepccedilotildees matemaacuteticas

ou ao menos de ideias matemaacuteticas mais avanccediladas em relaccedilatildeo ao

conhecimento matemaacutetico mediano que se poderia ter em sua eacutepoca (Frajese

1951) Essa publicaccedilatildeo ocorreu portanto eacute importante lembrar pouco antes

dos quarenta anos decisivos (1890 a 1930) que marcaram o periacuteodo que foi

denominado como sendo o da transformaccedilatildeo moderna da matemaacutetica (Gray

2008)

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410

CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon

Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill

Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and

Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp

93-110

Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press

Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion

Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

Rio de Janeiro 7 Letras

Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes

Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica

Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento

Vitoacuteria pp 102-135

Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

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417

POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

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Page 43: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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CAPIacuteTULO XXI

de mentira ilusatildeo falso saber deve ser banido ainda que muitiacutessimo

agradaacutevel Assim o que na poesia e no mito natildeo corresponde agrave verdade e

ao justo pondo em risco atraveacutes da educaccedilatildeo toda a cidade tambeacutem natildeo

deve ser poupado E se tais mentiras ainda vierem com o encanto sedutor

das sereias o risco de corrupccedilatildeo eacute ainda maior Mas o que eacute que na poesia

natildeo corresponde agrave verdade e agrave justiccedila Seraacute simplesmente isto que Soacutecrates

criticara na presunccedilatildeo de Iacuteon de falar de todas as coisas sem ter o devido

saber sem ter a competecircncia especiacutefica um saber lsquoteacutecnicorsquo do que fala

Na Repuacuteblica Soacutecrates inicia sua criacutetica como jaacute fizera Xenoacutefanes3 em

relaccedilatildeo aos poetas eacutepicos pela condenaccedilatildeo ao modo antropomoacuterfico como

satildeo representados os deuses Os poetas natildeo representam (imitam) com

justeza os deuses quando contam que estes realizam violecircncias ou promovem

enganos em atos semelhantes aos dos homens poderosos Um princiacutepio

moral que eacute estabelecido jaacute desde o primeiro livro eacute que o justo soacute realiza

atos bons para amigos ou inimigos e que os deuses sendo sumamente

justos e bons soacute podem agir bem e ser verdadeiros Natildeo podemos esquecer

que as accedilotildees dos deuses e dos heroacuteis satildeo paradigmas para a formaccedilatildeo de

um homem virtuoso um homem belo e bom capaz de governar a si e a

cidade Podemos chamar estas primeiras criacuteticas do Iacuteon e do Livro II da

Repuacuteblica criacuteticas epistemoloacutegicas e morais a poesia natildeo eacute uma autoridade

confiaacutevel de conhecimento e sabedoria os poetas mentem em assuntos

seacuterios quando sua poesia natildeo estaacute plenamente conectada agrave verdade dos

deuses e da justiccedila quando tentam explicar o cosmo como se este funcionasse

com paixotildees e intenccedilotildees humanas ou quando representassem os modelos

morais como estes natildeo devem ser Por isso o conteuacutedo da poesia de suma

importacircncia para a educaccedilatildeo deve passar pelo crivo dos filoacutesofos que

examinaratildeo o que eacute verdadeiro e uacutetil e expurgaratildeo o que natildeo proveacutem de

boa inspiraccedilatildeo Este eacute um dos aspectos polecircmicos da teoria platocircnica pois

trata-se da fundamentaccedilatildeo da censura

A forma dos mitos usados na educaccedilatildeo eacute criticada no Livro III da

Repuacuteblica Entre a narrativa simples com discurso indireto a imitaccedilatildeo em

discurso direto e as formas mistas de discurso direto e indireto Soacutecrates

3 Este seria um precursor na lsquoarcaica disputa entre filosofia e poeacuteticarsquo

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411

POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon

Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill

Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and

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Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press

Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion

Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

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Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

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417

POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

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Page 44: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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POEacuteTICA

vai condenar a accedilatildeo mimeacutetica de quem se faz passar por outro ou que

assume muitos caracteres diferentes Neste caso a criacutetica visa diretamente

as representaccedilotildees teatrais seus autores e os atores mas atinge tambeacutem as

partes mais dramaacuteticas das epopeias E tanto mais a aparecircncia pela

semelhanccedila se revele como sendo o verdadeiro ente encobrindo a diferenccedila

real entre o imitado e a imitaccedilatildeo mais mentirosa seraacute a poesia e portanto

moralmente prejudicial agrave constituiccedilatildeo da cidade Mas natildeo eacute soacute a questatildeo

do engano de quem se faz passar por outro pois tambeacutem eacute criticada a falta

de unidade de caraacutecter que fere o principio ordenador da cidade ideal

pelo qual cada cidadatildeo deve desempenhar uma uacutenica funccedilatildeo segundo sua

excelecircncia

A criacutetica platocircnica agrave μίμησις continua para aleacutem da seleccedilatildeo do conteuacutedo

e da forma pois se aprofunda como uma criacutetica ontoloacutegica Dizer que a

poesia eacute imitaccedilatildeo para a teoria apresentada no Livro X da Repuacuteblica eacute

tambeacutem distanciar o seu ser duplamente da verdade pois em primeiro

lugar plena de ser e realidade estaacute a verdade na ideia em si mesma de

algo sempre igual a si mesma Se um artesatildeo vislumbra esta ideia eterna

e produz um objeto este eacute gerado a uma certa distacircncia da verdade no

mundo e no tempo das coisas que satildeo produzidas e destruiacutedas e se um

poeta canta nos seus versos o objeto entatildeo este estaacute afastado mais ainda

da verdade pois a representaccedilatildeo poeacutetica eacute apenas feita das aparecircncias

(596e) de imagens e sons natildeo visando agrave coisa mesma mas a como

encantar e agradar o auditoacuterio O poeta sendo imitador eacute um artiacutefice de

segunda categoria o mais afastado da verdade proacuteximo aos prestidigitadores

e ilusionistas porque natildeo produz mais do que sombras das coisas Isto

eacute uma afronta ao senso comum dos gregos que como jaacute dissemos

cultuavam seus poetas como os mais saacutebios dentre os homens porta-vozes

de seu panteatildeo tradicional e do conhecimento das virtudes lsquoQuando

falamos do que natildeo eacute como parece natildeo falamos de um contraacuterio do ente

mas somente de algo diferentersquo Esta eacute a determinaccedilatildeo que Platatildeo no

Sofista (257b) descobre para a falsidade para a existecircncia do natildeo ser no

real e no discurso O lsquonatildeo serrsquo (quando se diz que algo natildeo eacute) eacute com

relaccedilatildeo a um mesmo ente os outros que lhe satildeo diferentes Proferir algo

que natildeo eacute do mesmo mas de outro constitui o falso A imitaccedilatildeo do poeta

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CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

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POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

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CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon

Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill

Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and

Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp

93-110

Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press

Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion

Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

Rio de Janeiro 7 Letras

Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes

Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica

Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento

Vitoacuteria pp 102-135

Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

417

POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

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Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

Page 45: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

412

CAPIacuteTULO XXI

opera esta funccedilatildeo alegoacuterica expressando outras coisas de outro modo e

criando no discurso toda uma realidade lsquooutrarsquo A arte mimeacutetica eacute o gecircnero

das espeacutecies tanto do sofista (Soph 235a) como do poeta as duas sombras

do filoacutesofo para Platatildeo

Mas o Soacutecrates da Repuacuteblica natildeo acusou a poesia apenas por seu caraacuteter

mimeacutetico capaz de produzir falsidades e ilusotildees As razotildees que levaram

Soacutecrates a expulsar os poetas da cidade que se pretende conservar justa

vatildeo aleacutem do problema de conteuacutedo falso das representaccedilotildees mimeacuteticas

vatildeo alcanccedilar o caraacuteter sedutor da obra de arte (o valor propriamente

esteacutetico) e tambeacutem a sua capacidade de produzir sentimentos (o poder

pateacutetico) Para o Soacutecrates da Repuacuteblica a beleza sensiacutevel da obra de arte

serve para atrair pelo prazer o jovem incauto para as garras maleacuteficas da

falsidade e dos sentimentos fracos Ela faz a parte irasciacutevel e emotiva da

alma corromper a parte racional que as deveria governar Especialmente

as artes dramaacuteticas amoleceriam os sentimentos dos jovens desvirtuando-

-lhes o caraacuteter a comeacutedia torna-os propensos ao despudor sem vergonha

de rir e comprazer-se com as baixezas e vilanias dos homens enquanto

a trageacutedia incute as fraquezas do terror e da compaixatildeo nos valentes

guardiotildees da cidade (R 606a-c)

O problema da falsidade chega a ser atenuado por Soacutecrates agrave condiccedilatildeo de

o conteuacutedo dos mitos ser regulamentado pelos guardiotildees filoacutesofos de modo

que o jovem seja modelado segundo uma harmonia virtuosa do caraacuteter para

cuja obtenccedilatildeo ateacute seria permitido algum tipo de mentira benfazeja Mitos que

dariam exemplos de heroacuteis virtuosos e deuses justos e que propiciariam a

formaccedilatildeo de homens semelhantes agravequeles A filosofia ateacute pode salvar o conteuacutedo

dos mitos eacutepicos mas o efeito da comeacutedia e da trageacutedia sobre as paixotildees este

natildeo parece ter cura A sentenccedila socraacutetica eacute impiedosa como deve ser a atitude

de um guardiatildeo da justiccedila a poesia eacute agradaacutevel e charmosa ningueacutem discute

mas que vaacute perfumar outros ares que o da nossa justa cidade

Sem duacutevida o platonismo nunca se viu muito agrave vontade com essa atitude

socraacutetica sobretudo confrontado com o proacuteprio gecircnero do diaacutelogo que

sendo dramaacutetico ora resvala na comeacutedia ora na trageacutedia Mas eacute inegaacutevel

que o Soacutecrates da Repuacuteblica expulsa se natildeo todo poeta com certeza o

comedioacutegrafo e principalmente o compositor de trageacutedias

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon

Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill

Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and

Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp

93-110

Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press

Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion

Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

Rio de Janeiro 7 Letras

Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes

Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica

Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento

Vitoacuteria pp 102-135

Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

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417

POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

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Page 46: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

413

POEacuteTICA

Todavia depois de decretar aquela expulsatildeo Platatildeo lanccedila um desafio

(R 607c-d trad Prado 2006)

Mesmo assim fique dito que se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse

apresentar um argumento que prove que eacute necessaacuterio que ela tenha um lugar

numa cidade bem administrada prazerosos noacutes a acolheriacuteamos porque

temos consciecircncia de que ela exerce um encanto sobre noacutes

Concederiacuteamos tambeacutem a quantos entre todos os seus patronos natildeo satildeo

poetas mas amantes da poesia que digam em sua defesa com um discurso

sem meacutetrica que ela natildeo soacute eacute agradaacutevel mas tambeacutem uacutetil em relaccedilatildeo agrave cidade

e agrave vida humana e com boa vontade os ouviremos

Pela boca irocircnica de Soacutecrates mais parece um desafio lanccedilado pelo

proacutepr io Platatildeo a si mesmo e aos seus disciacutepulos da Academia O

proacuteprio Platatildeo vai responder a esse desafio no seu uacuteltimo diaacutelogo

as Leis (cf Mouze 2005) e tambeacutem o melhor disciacutepulo Aristoacuteteles

vai elaborar uma resposta completa na Poeacutetica (cf Santoro 2008)

sobretudo cont ra as mais graves acusaccedilotildees agrave t rageacutedia vendo na

representaccedilatildeo traacutegica do terror e da piedade uma forma de catarse

desses mesmos sentimentos

Nas Leis seu uacuteltimo diaacutelogo Platatildeo retoma a consideraccedilatildeo sobre a funccedilatildeo

educadora da poesia o ponto de partida que o levara a uma discussatildeo

sobre a poeacutetica na Repuacuteblica A formaccedilatildeo dos guardiatildees da cidade justa

se fazia com ginaacutestica e muacutesica e a parte mais importante da muacutesica eacute o

λόγος requisitando um exame agrave luz do criteacuterio da justiccedila Mas na Repuacuteblica

as criacuteticas ao conteuacutedo agrave forma agrave essecircncia mimeacutetica da poesia ao modo

como ela seduz encanta e emociona acabam por deixar muito pouco espaccedilo

para se pensar justamente como seria a muacutesica formadora de uma alma

justa Com certeza ela estaria submetida agrave parte racional da alma agrave filosofia

e deveria modelar as partes apetitiva e irasciacutevel para obedecerem agravequela

parte Somente tendo demonstrado ser capaz de se prestar a uma tal formaccedilatildeo

do caraacuteter a poesia poderia ser anistiada do famigerado exiacutelio As Leis

ocupam-se desta demonstraccedilatildeo positiva e preenchem a lacuna deixada na

Repuacuteblica

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon

Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill

Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and

Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp

93-110

Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press

Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion

Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

Rio de Janeiro 7 Letras

Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes

Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica

Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento

Vitoacuteria pp 102-135

Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

417

POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

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Page 47: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

414

CAPIacuteTULO XXI

Tambeacutem para as Leis (principalmente os Livros II e VII) o mais importante

a regular na constituiccedilatildeo de uma cidade-estado eacute a educaccedilatildeo formadora

dos cidadatildeos Com tal objetivo o exame das composiccedilotildees poeacuteticas torna-se

lsquoa questatildeo poliacutetica por excelecircnciarsquo (Mouze 2005 10) Mas diferente da

Repuacuteblica a educaccedilatildeo natildeo eacute pensada apenas para a formaccedilatildeo da elite dos

guardiatildees e do filoacutesofo-rei A educaccedilatildeo eacute pensada para todos os cidadatildeos

em diversas faixas etaacuterias e a priorizaccedilatildeo da educaccedilatildeo literaacuteria e musical

ocupa a faixa dos 10 aos 16 anos ndash a transiccedilatildeo para a vida adulta (Lg

809e-810a) O principal objetivo desta educaccedilatildeo eacute formar um bom caraacutecter

no tocante ao enfrentamento do medo agrave constituiccedilatildeo do pudor e ao domiacutenio

do desejo e dos prazeres Natildeo eacute uma educaccedilatildeo teacutecnica ou intelectual mas

sobretudo eacutetica A muacutesica e a poesia satildeo os meios de ensino em que se

mostra a representaccedilatildeo (μίμησις) de vidas heroicas paradigmaacuteticas nas quais

se deve associar a felicidade agrave justiccedila e a desgraccedila agrave injusticcedila A muacutesica

que melhor se presta a esta representaccedilatildeo eacute a trageacutedia contanto que se

possa reformaacute-la e adaptaacute-la para ser lsquoa μίμησις da vida mais bela e melhorrsquo

(Lg 817b) Esta educaccedilatildeo do caraacutecter tambeacutem se faz como uma educaccedilatildeo

do gosto uma educaccedilatildeo esteacutetica em que o agradaacutevel deve ser associado

ao belo e justo e nunca aos seus opostos O conteuacutedo e a finalidade da

poesia satildeo orientados pelas leis da cidade pois a muacutesica e a poesia

transmitem o sentido e o apreccedilo agraves leis agraves almas das crianccedilas e dos jovens

Nas poesias natildeo devem aparecer meramente as formulaccedilotildees prescritivas

pois as representaccedilotildees poeacuteticas devem ilustrar sobretudo o preacircmbulo agraves

normas que justificam porque cada lei precisou ser promulgada O Ateniense

que conduz o diaacutelogo sugere que as proacuteprias leis incluam na sua formulaccedilatildeo

tais preacircmbulos (Lg 715e ss) de modo que o legislador deve escrever como

um poeta Haacute uma passagem interessante que propotildee que determinados

hinos aos deuses sejam tratados como leis que seriam obrigatoacuterios em

determinadas festividades e cuja transgressatildeo seria punida Esta passagem

sugere um procedimento que perpassa todo o diaacutelogo aproximando as

atividades do legislador e do poeta assim como o canto (ἀοιδή) e a lei

(νόμος) (Lg 799e) Em todo o diaacutelogo a poesia estaacute sob o crivo do conselho

de anciatildeos que zela pela sauacutede da cidade e que a potildee em acordo com as

leis Natildeo devemos poreacutem entender apenas que o poeta se deve submeter

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415

POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

Versatildeo integral disponiacutevel em digitalisucpt

416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon

Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill

Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and

Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp

93-110

Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press

Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion

Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

Rio de Janeiro 7 Letras

Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes

Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica

Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento

Vitoacuteria pp 102-135

Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

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POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

Zurich Weidmann 1992

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Page 48: PLATÃO - Universidade de Coimbra · que definia a Atenas de Platão, o qual se deve ao facto de essa é poca coincidir, do ponto de vista civilizacional, com a transi çã o de uma

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POEacuteTICA

ao crivo e censura do legislador Como o conselheiro e o legislador devem

selecionar os poemas mais educativos e muitas vezes reformar as muacutesicas

mais agradaacuteveis para tornaacute-las tambeacutem mais justas e verdadeiras de certa

forma o legislador deve tornar-se poeta Ou visto de outro acircngulo os

melhores poetas aqueles que sabem reunir em agradaacutevel harmonia o belo

o justo e o verdadeiro e que satildeo verdadeiramente afeitos agraves musas seratildeo

tambeacutem os melhores guardiatildees e legisladores da cidade Vecirc-se aqui que

natildeo se trata de um projeto de censura tacanha agrave liberdade da poesia mas

antes o inverso de pensar a instauraccedilatildeo da poliacutetica como um projeto esteacutetico

a elaboraccedilatildeo de uma cidade bela com um gosto refinado pelo bem e pela

verdade (cf Bellintani 2006) Neste sentido a filosofia natildeo expulsa a poesia

mas instaura um novo princiacutepio de valoraccedilatildeo esteacutetica em que o melhor

natildeo eacute o que agrada facilmente mas sim o que eacute mais verdadeiro A filosofia

de Platatildeo enfrenta os modelos tradicionais de poesia porque eles satildeo

decisivos politicamente julga-os seleciona-os e reformula-os em vista desse

novo princiacutepio que ordena a atividade poeacutetica para a melhor educaccedilatildeo da

cidade Platatildeo pode assim finalmente reconciliar o poeta com o filoacutesofo e

com o bom governo da cidade justa

Assim como o conflito tambeacutem a reconciliaccedilatildeo entre a filosofia e a

poeacutetica permeia toda a obra platocircnica Se nas Leis o legislador escreve a

constituiccedilatildeo da cidade como lsquoa trageacutedia mais verdadeirarsquo (817b) como natildeo

identificar este novo tragedioacutegrafo verdadeiro com o proacuteprio autor do

diaacutelogo Natildeo eacute Platatildeo que estaacute realizando natildeo soacute neste mas em todos os

seus diaacutelogos a representaccedilatildeo da vida mais bela e melhor a paradigmaacutetica

vida de Soacutecrates Claro estaacute que nem sempre esta vida eacute representada

tragicamente pois haacute comeacutedias como o Banquete e a Apologia porque

Platatildeo disputa em vaacuterios gecircneros poeacuteticos a reforma literaacuteria em vista do

lsquomais verdadeirorsquo Mas quem natildeo vecirc num diaacutelogo como o Feacutedon o modelo

platocircnico da trageacutedia reformada Num drama carregado de emoccedilatildeo nem a

condenaccedilatildeo agrave morte eacute capaz de afligir o caraacuteter e sobretudo abalar a

felicidade do homem justo e verdadeiro Nesta trageacutedia nova todas as

incocircmodas lamentaccedilotildees satildeo explicitamente banidas com a serenidade da

conversa e do raciociacutenio ndash a amizade emoldura a discussatildeo sobre o prazer

e a dor sobre o sentido da vida e da morte

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416

CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon

Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill

Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and

Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp

93-110

Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press

Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion

Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

Rio de Janeiro 7 Letras

Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes

Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica

Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento

Vitoacuteria pp 102-135

Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

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417

POEacuteTICA

Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

Wilamowitz-Moellendorff (1919) Platon sein Leben und seine Werke Berlin Weidmannsche reimp

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CAPIacuteTULO XXI

Encontramos a assunccedilatildeo desta reconciliaccedilatildeo da filosofia com a poesia

em outro diaacutelogo de maturidade o Fedro Aleacutem do fato de que tanto os

melhores poetas quanto os filoacutesofos satildeo ali apresentados como delirantes

inspirados em certo momento da narrativa do beliacutessimo mito das almas

em cortejo (que confirma Platatildeo no rol de tais autores inspirados) Soacutecrates

apresenta uma seacuterie hieraacuterquica de tipos humanos No topo da lista estaacute a

alma de um filoacutesofo (amante do saber) amante da beleza muacutesico eroacutetico

em segundo lugar a alma de um rei respeitoso das leis apto para a guerra

e o governo em terceiro a de um poliacutetico apto para a administraccedilatildeo e a

economia em quarto um atleta ginasta educador fiacutesico e meacutedico em

quinto um adivinho sacerdote que celebra rituais em sexto a alma de um

poeta e artista mimeacutetico em seacutetimo a de um artesatildeo ou lavrador em oitavo

a de um sofista ou demagogo em nono a de um tirano Nesta lista o poeta

natildeo inspirado o imitador de imagens chega em sexto lugar jaacute na banda

dos tipos depreciados Mas em primeiro lugar o amante do saber eacute tambeacutem

amante da beleza inspirado pelas musas e por Eros eacute um filoacutesofo muacutesico

um filoacutesofo poeta Como diz Soacutecrates no Feacutedon (61a) lsquoa filosofia eacute a forma

mais alta de muacutesicarsquo

BiBliografia

Auerbach E (1946) Mimesis A Representaccedilatildeo da Realidade na Literatura Ocidental Satildeo Paulo

Editora Perspectiva

Cossutta F amp Narcy M (2001) La forme dialogue chez Platon Grenoble J Millon

Destreacutee P amp Herrmann F-G (2011) Plato and the Poets Leiden Brill

Gonzalez F J (2011) The Hermeneutics of madness Poet and Philosooher in Platorsquos Ion and

Phaedrus In P Destreacutee amp F-G Herrmann (2011) Plato and the Poets Leiden Brill pp

93-110

Nightingale A W (1995) Genres in Dialogue Cambridge Cambridge University Press

Mouze L (2005) Le leacutegislateur et le poegravete une interpreacutetation des Lois de Platon Lille Setemptrion

Muniz F (ed) (2011) As artes do entusiasmo a inspiraccedilatildeo da Greacutecia antiga agrave contemporaneidade

Rio de Janeiro 7 Letras

Prado A L A (2006) (trad) Platatildeo Repuacuteblica Satildeo Paulo Martins Fontes

Oliveira C (2012) (trad) Iacuteon Rio de Janeiro Autecircntica

Ribeiro L F B (2006) Arte no Pensamento de Platatildeo In F Pessoa (org) Arte no Pensamento

Vitoacuteria pp 102-135

Rossetti L (2011) Le dialogue socratique Paris Encre MarineLes Belles Lettres

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Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

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Santoro F (2008) Como anistiar o poeta exilado por Soacutecrates Rio de Janeiro Anais de Filosofia

Claacutessica vol 2 nordm 4 19-28

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