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42 NOMEADA • páginas 42–65 AOCM – a organização d – Alguém consegue vê-lo? Agora só resta Naphtal, todos os outros familiares estão mortos. Se vocês o encontra- rem, matem-o também! Naphtal prende a respiração. Ele está mergulhado em um rio há apenas alguns metros dos homens... Este fato aconteceu em Ruanda no ano de 1994, quando cerca de 800 000 pessoas foram mortas em 100 dias. 300 000 deles eram crianças e outras 100 000 crianças ficaram órfãs depois do genocídio. Naphtal Ahishakiye perdeu toda a sua família: o pai, a mãe e quatro irmãos. Enquanto Naphtal estava mergu- lhado no rio, ele jamais poderia imaginar que um dia fundaria a AOCM – L’Association des Orphelins Chefs de Ménages (Associação dos Órfãos Chefes de Família). Uma organização que seria nomeada ao WCPRC, pela sua luta para dar uma vida melhor a 6 000 dos órfãos de Ruanda... Ruanda congo (kinshasa) burundi Kigali Gitarama Cyangugu uganda tanzãnia Lago Kivu POR QUE A AOCM ESTÁ SENDO NOMEADA? A AOCM está sendo nomeada para o WCPRC 2006 por sua luta em prol das crianças e jovens que tiveram seus pais mortos no genocídio de Ruanda em 1994. A AOCM é forma- da apenas por jovens que perde- ram seus pais no genocídio e jun- tos eles tentam ajudar uns aos outros a obter uma vida melhor. Eles almejam ser uma família na qual todos se importam com os outros. Apesar de a maioria dos membros da AOCM viver em gran- de pobreza, eles se ajudam mutua- mente com comida, roupas, um lugar pra morar, novas famílias, acesso aos cuidados de saúde e a escola. E o mais importante: oferecer um ao outro amizade e amor. Mais de 6000 órfãos receberam uma chance de vida melhor através da AOCM. Jovens e crian- ças que, de outra maneira viveriam uma vida de drogas, crime, prostituição e vio- lência nas ruas. A AOCM fala pelos órfãos em Ruanda, relembrando constantemente ao governo e organizações que os órfãos existem.

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R w a n d a 4 2 - 6 5 . i n d d 4 2 0 5 - 1 1 - 0 9 1 5 . 2 4 . 5 3 escola. E o mais importante: oferecer um ao outro amizade e amor. Mais de 6000 órfãos receberam uma chance de vida melhor através da AOCM. Jovens e crian- ças que, de outra maneira viveriam uma vida de drogas, crime, prostituição e vio- lência nas ruas. A AOCM fala pelos órfãos em Ruanda, relembrando constantemente ao governo e organizações que os órfãos existem. Kigali Cyangugu Gitarama Lago Kivu 42 congo burundi

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NOMEADA • páginas 42–65

AOCM – a organização d– Alguém consegue vê-lo? Agora só resta Naphtal, todos os outros familiares estão mortos. Se vocês o encontra-rem, matem-o também!

Naphtal prende a respiração. Ele está mergulhado em um rio há apenas alguns metros dos homens...

Este fato aconteceu em Ruanda no ano de 1994, quando cerca de 800 000 pessoas foram mortas em 100 dias. 300 000 deles eram crianças e outras 100 000 crianças fi caram órfãs depois do genocídio.

Naphtal Ahishakiye perdeu toda a sua família: o pai, a mãe e quatro irmãos. Enquanto Naphtal estava mergu-lhado no rio, ele jamais poderia imaginar que um dia fundaria a AOCM – L’Association des Orphelins Chefs de Ménages (Associação dos Órfãos Chefes de Família). Uma organização que seria nomeada ao WCPRC, pela sua luta para dar uma vida melhor a 6 000 dos órfãos de Ruanda...

Ruanda

congo

(kinshasa)

burundi

KigaliGitarama

Cyangugu

uganda

tanzãnia

LagoKivu

POR QUE A AOCM ESTÁ SENDO NOMEADA?A AOCM está sendo nomeada para o WCPRC 2006 por sua luta em prol das crianças e jovens que tiveram seus pais mortos no genocídio de Ruanda em 1994. A AOCM é forma-da apenas por jovens que perde-ram seus pais no genocídio e jun-tos eles tentam ajudar uns aos outros a obter uma vida melhor. Eles almejam ser uma família na qual todos se importam com os outros. Apesar de a maioria dos membros da AOCM viver em gran-de pobreza, eles se ajudam mutua-mente com comida, roupas, um lugar pra morar, novas famílias, acesso aos cuidados de saúde e a

escola. E o mais importante: oferecer um ao outro amizade e amor. Mais de 6000 órfãos receberam uma chance de vida melhor através da AOCM. Jovens e crian-ças que, de outra maneira viveriam uma vida de drogas, crime, prostituição e vio-lência nas ruas. A AOCM fala pelos órfãos em Ruanda, relembrando constantemente ao governo e organizações que os órfãos existem.

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dos órfãos Naphtal mantém ape-

nas o nariz fora da água. Apavorado, ele

se agarra às raízes que cres-cem no fundo do rio. Seu coração bate tão forte que parece que vai explodir. Ele só tem coragem de sair da água horas mais tarde, quando já está escuro. Os homens foram embora, mas ele sabe que eles voltarão a procurá-lo, assim que estiver mais claro. Naphtal descan-sa um pouco, mas desliza para a água novamente. Seus pensamentos estão girando.Toda sua família está morta e tudo aconteceu muito rápido.

BaratasAlguns dias antes, toda a família estava sentada ouvindo rádio. Como em

muitas outras vezes, a voz no rádio dizia que todos aqueles que pertenciam ao povo tut-si eram inimigos de Ruanda. Ouvia-se também que o povo hutu deveria estar pronto a defender-se com armas e que os tutsis eram falsos como cobras e sujos como baratas. Todos os hutus devem livrar-se desses animais perniciosos.

O pai de Naphtal disse que o governo patrocinava a estação de rádio. A família de Naphtali era tutsi e fi cava preocupada ao ouvir estas coisas. Mas, naquela manhã, a preocupação havia cresci-do. O rádio dizia que o pre-sidente morrera em um aci-dente aéreo. Seu avião teria caído quando ele voltava de uma reunião na Tanzânia com a FPR (Frente Patriótica de Ruanda), que estava em

guerra com o governo de Ruanda desde 1990.

A FPR queria retirar o governo do poder e dizia querer criar um país para hutus e tutsis. Com o presi-dente morto, os hutus que não concordavam em manter a paz com a FPR ou dividir o poder com os tutsis, podiam agir como quisessem.

Agora é o fi m. Os hutus vão começar a nos matar. Temos de nos esconder na fl oresta, cada um deve achar seu próprio esconderijo – disse o pai de Naphtal.

Mataram a famíliaAlguns dias depois que a família havia se escondido, um grupo de homens arma-dos chegou à casa onde moravam. Eles a derruba-ram, cortaram as bananei-ras, arrancaram batatas e mandiocas da terra e destru-íram as plantações. As cabras e vacas da família foram roubadas.

Do seu esconderijo, Naphtal viu tudo, e percebeu que muitos daqueles que des-truíram sua casa eram seus vizinhos. No dia seguinte os

– Quando eu me escondi na fl oresta, tinha medo o tem-po todo. Bastava algum ruído das árvores ou o barulho do vento nas folhas, para que eu pensasse que eram os assassinos que haviam voltado para me pegar. Era horrí-vel dormir ali no escuro, sozinho- lembra Naphtal.

Sozinho e com medo

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No genocídio de 1994 foram assassinadas quase um milhão de pessoas em Ruanda.300 000 eram crianças. Se você deseja fazer contribui-ções em tributo à memória delas, escreva para:Kigali Memorial Centre, B.P. 7521, Kigali, Rwanda. Aqui estão algumas das criançasque foram mortas:

300 000 crianças foram mortas

Umutoni e Uwamwezi, completaram 6 e 7 anosBrinquedo favorito: Boneca que tinham juntas.Comida favorita: Frutas.Elas eram: As garotas do papai.

Fidèle, completou 9 anosEsporte favorito: Futebol.Comida favorita: Batatas fritas.Adorava: TV e estar com os amigos.

David, completou 10 anosEsporte favorito: Futebol.Adorava: Fazer que as pessoas rissem.Sonho: Ser médico.

homens voltaram. Eles encon-traram o pai de Naphtal e o mataram. Se Naphtal tivesse tentado impedi-los, teria sido morto imediata-mente. Dois dias mais tarde, o irmão mais velho de Naphtal foi encontrado. Eles amarraram suas mãos e pés e depois o mataram. Depois, eles pegaram seus três

outros irmãos e sua mãe...Naphtal era o único que

havia restado...sozinho, mergulhado no rio. Ele esta-va com tanto medo que não teve coragem de sair do rio por três dias e três noites.

– De alguma maneira eu consegui sobreviver na fl o-resta por vários meses. Eu bebia água da chuva e entra-

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Francine, completou 12 anosEsporte favorito: Natação.Comida favoritas: Ovos e batatas fritas.Bebida favoritas: Leite e Fanta.Melhor amiga: Claudette, sua irmã mais velha.

Bernadin, completou 17 anosEsporte favorito: Futebol.Bebida favorita: Chá.Comida favorita: Arroz.Ele era: Ótimo na escola.

Yvonne & Yves, completaram 5 e 3 anosBebida favorita de Yvonne: Chá ao leite.Comida favorita de Yves: Batatas fritas.Eles eram: A garota do papai e o fi lhão da mamãe.

Nadia, completou 8 anosEsporte favorito: Correr com seu pai.Bombom favorito: Chocolate.Bebida favorita: Leite.Adorava: TV e música.

A AOCM deseja que suas crianças mais novas possam par-ticipar de passeios. Nos passeios, eles podem comer comi-das gostosas, tomar refrigerante, brincar e relaxar.

– Nós tentamos passear sempre que possível, mesmo que não tenhamos dinheiro.

Algumas pessoas acham que nós deveríamos usar nosso dinheiro apenas para as mensalidades escolares, comida e aluguéis. Mas eu não concordo. Eu creio que os passeios são tão importantes quanto estas coisas. Neles, as crianças podem sair, encontrar outras crianças e divertirem-se. Elas se tornaram adultas cedo demais, pois seus pais foram mor-tos. Nos passeios, elas têm permissão para serem crianças – diz Naphtal.

– Os passeios são a coisa mais divertida do ano! – diz Jean Claude Habineza, 14, que toma conta de seus dois pri-mos mais novos, sozinhos.

Com direito de ser criança

Fotografi as e textos publicados com autorização do Centro Memorial do Kigali, Ruanda.

va escondido nas plantações das pessoas para comer bananas. Durante as noites, eu dormia no chão. Eu esta-va muito triste e confuso. Eu tinha visto toda a minha família ser assassinada e não me sentia bem. Na verdade, eu havia perdido a vontade de viver. Mas algo me fazia

lutar e ir adiante – diz Naphtal.

Uma nova famíliaEnquanto Naphtal estava escondido na fl oresta por três meses, a FPR conseguiu derrotar o exército de Ruanda e dispersar o gover-no. Finalmente o genocídio

havia acabado. Naphtal e milhares de sobreviventes puderam sair de seus escon-derijos na fl oresta e tentar começar uma nova vida.

– Não foi fácil. Mas quan-do as escolas reabriram, eu decidi voltar a estudar. Eu queria honrar os meus pais e eu sabia que eles gostariam que eu tentasse viver uma vida melhor, apesar de tudo que aconteceu – diz Naphtal.

Na escola, Naphtal encon-trou muitas outras crianças e jovens que haviam perdido seus pais no genocídio. Todos eles tinham histórias terríveis para contar, mas

apoiavam uns aos outros.– Quando nós começamos

a conversar, entendemos rapidamente que nenhum de nós poderia sobreviver sozi-nho. Aqueles que tinham algum dinheiro ajudavam os que não tinham nenhum. Eu tinha um dinheirinho, pois as pessoas que tinham rou-bado as cabras e as vacas de minha família, tiveram que me pagar uma indenização. Eu comprei cadernos e cane-tas e dei àqueles que não tinham. À noite, nós estudá-vamos juntos. Nós, que éra-mos mais velhos, ajudáva-mos aos mais novos com

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suas lições. Nos tornamos como uma família e era maravilhoso sentir que não estávamos mais sozinhos.

O mais importante é o amorAlguns anos mais tarde, Naphtal e dois de seus cole-gas de escola, decidiram ten-tar ajudar os órfãos de toda Ruanda, da mesma forma com que tinham ajudados uns aos outros na escola.

– No ano 2000 nós funda-mos a organização AOCM, para que nós que somos

órfãos pudéssemos nos aju-dar a ter uma vida melhor.

A AOCM focalizou alguns problemas importantes:• Que todos deveriam ter

onde morar, já que a maioria teve suas casas destruídas.

• Que todos deveriam poder ir à escola e receber os cuidados de saúde neces-sários.

• Que todos deveriam ter alimentação e vestuário.– Mas aquilo que nós con-

siderávamos mais importan-te em toda a organização era

tentar criar uma atmosfera de amor entre nós que per-demos nossos pais no geno-cídio. Pois, se pudéssemos sentir amor, nos importaría-mos uns com os outros e cui-daríamos uns dos outros.

A novidade se espalhou rapidamente. Na primeira semana a AOCM ganhou 20 novos membros e na outra semana mais 20...

Hoje a AOCM tem 1 800 famílias em sua associação e, todos juntos, somos 6100 órfãos, crianças e jovens. A AOCM construiu 112 casas

e apóia 600 órfãos fi nancei-ramente para que eles pos-sam ir à escola. Ela também ajuda outros a começar cria-ções de porcos, salões de beleza, cafés e outras ativi-dades através das quais seus membros possam se manter quando terminarem a escola.

Todos precisam de alguém– No começo, nosso plano era que cada membro ajuda-ria com 100 Francos Ruandeses (0,18 dólares) por mês, mas não dá certo. A maioria de nossos mem-

A AOCM ajuda 600 crianças a frequentarem a escola. Os maiores ajudam os menores com as lições.

Como foi possível o genocídio?– É difícil de expli-car como aconte-ceu o genocídio de Ruanda, mas eu vou tentar – diz Naphtal:

“Os povos hutus e tutsis viveram juntos em Ruanda por centenas de anos. Os hutus sempre foram a maio-ria, mas, por um longo perío-do, Ruanda foi governada por reis tutsi. Desde o fi nal de 1800 até 1962, Ruanda foi governada, primeiramen-

te, pelos alemães e depois pelos belgas. Os europeus governavam através do rei e deram muitos privilégios aos tutsis. Os tutsis receberam boa educação e bons empregos, enquanto os hutus não podiam ir à escola e seus empregos eram de

trabalhos braçais. Fazendo assim, os europeus dividiram o povo de Ruanda, mas garantiram que os tutsis estariam do lado deles. O racismo e o ódio entre os hutus e os tutsis havia sido criado. Antes da indepen-dência, os belgas mudaram de opinião e passaram dar apoio aos hutus. Mas quan-do a independência chegou, em 1962, Ruanda passou a

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bros não possui esta quantia após um mês inteiro! Em vez disso, todos ajudam quando podem. Se alguém tem o que comer, então divide com quem não tem. Aqueles que têm dinheiro compram cadernos e lápis para os que estão em falta. Se alguém adoecer, nós o levamos ao hospital. Nós queremos ser como uma família de verdade.

Nenhum dos que traba-lham para a AOCM recebe salário, nem mesmo Naphtal, seu líder.

– Primeiro, eu vou para o meu trabalho normal, depois trabalho na AOCM

nas tardes, noites e fi nais de semana. Eu me agarro ao telefone e corro de reunião em reunião com o governo, secretarias, organizações e pessoas ricas, tentando con-seguir algum dinheiro para as crianças e jovens órfãos de Ruanda. Mas nunca é sufi ciente. Nos últimos anos, além do genocídio, nos deparamos com um outro problema: a AIDS. Pessoas estão morrendo de AIDS todos os dias e seus fi lhos estão fi cando sozi-nhos. Nós fazemos o possí-vel para ajudar, mas as necessidades são enormes.

Existem milhares de órfãos em Ruanda. Se eles não rece-berem nenhuma ajuda, vão terminar nas ruas e jamais terão uma chance de ir à escola.

– Todos precisam de alguém. É por isso que nós começamos a AOCM e nós vamos continuar a lutar pelos direitos dos órfãos enquanto for necessário. �

No começo, todos os membros ajudariam com 100 Francos Ruandeses (0,18 dólares) por mês, mas a maioria de nossos membros não consegue 100 Francos nem em um mês todo! Então, nós paramos com a con-tribuição mensal, para que ninguém se sinta diminuído em relação aos outros. Em vez disso, todos ajudam quando podem- diz Naphtal.

Todos têm o mesmo valor

– A coisa mais importante tem sido criar uma atmosfera de

amor entre nós que perdemos nossos pais no genocídio

– diz Naphtal.

ser governada por pessoas que pensavam que todo poder deveria pertencer aos hutus. Elas passaram a se vingar dos tutsis por eles terem tido tantos benefícios por tanto tempo. Muitas das mesmas pessoas achavam que não deveria haver tutsis em Ruanda...de maneira alguma. Estas idéias perma-neceram até 1994, quando os governantes hutus conse-

guiram enganar uma grande parte de seu povo, que pas-saram a matar seus vizinhos e amigos tutsis. O próprio governo entregou armas às pessoas simples, para que matassem tutsis.

O mundo abandonou RuandaEm 1994, os funcionários da ONU a sede em Nova Iorque, que um genocídio

poderia estar prestes a acontecer. Eles pediram que mais soldados da ONU fos-sem enviados, mas a ONU decidiu não o fazer. A França, que anteriormente havia treinado os soldados do governo, criou uma “zona de paz” no sudeste de Ruanda. Muitos dos respon-sáveis pelo genocídio foram para lá em busca de prote-ção e depois partiram em

segurança para outros paí-ses. Eu acho que a ONU e o resto do mundo têm uma grande responsabilidade pela morte de tantas pesso-as em Ruanda. A ONU poderia ter impedido tantas mortes, mas escolheu não fazer nada.”

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Genócidio signifi ca uma tentativa de exterminar um certo grupo de

pessoas de uma área ou país. O extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial (1939–1945) e o extermínio dos tutsis em Ruanda em 1994, são exem-plos de genocídios.

A palavra “genocídio” foi criada para descrever o holo-causto – o extermínio de seis milhões de judeus e entre 200 000 e 600 000 ciganos durante a Segunda Guerra, pelos nazistas. Até mesmo homossexuais e outros gru-pos considerados de menor valor, foram assassinados.

Anne Frank é uma das crianças que morreram no holocausto, ela recebeu pós-tumamente (depois de sua morte) o prêmio de honra (World’s Children Honorary Award) na primeira entrega do WPCRC no ano 2000 (leia mais sobre Anne no site www.childrensworld.org).

Genocídios também acon-teceram no Cambodia, ali foram assassinados 2 milhões de pessoas entre 1975–1979 e na Iugoslávia onde mais de 250 000 pes-soas foram mortas entre 1992 e 1995.

O que faz o mundo?Um dos propósitos mais importantes da ONU é evitar o genocídio, considerado o maior crime contra a huma-nidade.

Em 1948, foi estabelecida

a Convenção para Prevenção e Repressão contra o crime de genocídio. Ali está escrito que o genocídio é um crime internacional e que os países que assinaram a convenção irão prevenir e punir quem o cometer.

A ONU e o mundo falharam na prevenção do genocídio na Iugoslávia e em Ruanda. Mas depois do acontecido, a ONU estabeleceu Tribunais Internacionais para julgar e punir os responsáveis por genocídios. Em 1993, foi estabelecido o Tribunal Criminal Internacional para a Iugoslávia, em Haia, na Holanda e, em 1994 foi fi rma-do o Tribunal Criminal Internacional para Ruanda em Arusha, na Tanzânia.

Em 2002, foi fundado tam-bém o Tribunal Internacional da ONU (Internacional Criminal Court – ICC) em Haia, na Holanda. Com um Tribunal Permanente lá, a ONU espera descobrir e impedir rapidamente os genocídios, e até mesmo punir os culpados com mais rapidez. Em maio de 2005, 99 países se uniram para fazer parte do ICC, mas paí-ses como os EUA, a Rússia, a China e o Japão ainda não o fi zeram. Isto signifi ca que, pessoas destes países não podem ser julgadas no ICC. �

O que é um genocídiogenocídio?

Anne Frank

“Todos nós precisamos de alguém. Foi por isso que abri-mos a AOCM e vamos conti-nuar trabalhan-do pelas crian-ças órfãs” – diz Naphtal.

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Marie Grâce

Marie GrâceNyiraminani, 12

adora sua casa AOCMNuma manhã de abril de 1994, todas as famílias tutsi foram atacadas no vilarejo onde Marie Grâce morava. A mãe e o pai dela foram assassinados e a casa deles completamente destruída.

– Se nós não tivéssemos recebido uma nova casa da AOCM, teria sido praticamente impossível que eu e meus irmãos sobrevivêssemos – conta Marie Grâce.

Marie Grâce toca sua-vemente na parede quebrada de barro

vermelho. Quando era pequena, ela morava ali, junto com seu pai e sua mãe. Eles tinham um lar de verda-de. Agora, restam apenas ruínas. No chão, onde já fora o quarto da família e a sala, agora cresce mato e há lixo por toda a parte.

Marie Grâce tinha apenas um ano quando seu vilarejo foi atacado. Ela não se lem-

bra de nada daquela época, mas, ainda assim, fi ca triste todas as vezes que vem aqui.

– É muito triste. Eles des-truíram nossa casa para mostrar que não nos que-riam por perto. Milhares de pessoas perderam seus lares. Eu não consigo entender como uma pessoa pode fazer isso. E não entendo porquê. É muita estupidez.

Depois de alguns instan-tes, ela caminha em direção a seu irmão mais velho,

Diogène, que observa as bananeiras da plantação da família, há alguns metros da casa. Foi Diogène quem a salvou naquela manhã quan-do tiveram de fugir.

Irmão preocupado– Ele me carregou e correu com todas as suas forças. Meus outros irmãos também

Mora: Na vila da AOCM fora de Gitirama.Adora: Ser feliz.Odeia: A guerra.Pior que lhe aconteceu: Ter perdido meus pais.Melhor que lhe aconteceu: Quando ganhamos uma casa da AOCM.Quer ser: Enfermeira.Sonha: Ser rica e ajudar os órfãos pobres.

–Eu acho que os hutus e os tutsis deviam viver como vizinhos e amigos. Não há nenhuma diferen-ça entre nós. Temos que parar de nos odiar. Eu não odeio as pessoas que mataram meus pais por serem hutus, mas porque mataram minha família – diz Marie Grâce.

Nenhuma dife-rença entre nós

Marie Grâce ao lado de sua casa destruída.

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➼ estavam conosco. Papai e mamãe tinham sido mortos, nossa velha casa destruída, e nós não sabíamos para onde ir. Finalmente chegamos a um campo de exilados para crianças sobreviventes. Ficamos ali três meses.

Depois de um tempo, mui-tos dos assassinos, e até mes-mo outros hutus, fugiram para o Congo, pois estavam com medo de represálias. Foi quando muitas das crianças, que sobreviveram ao genocí-dio, foram morar nas casas abandonadas. Assim tam-bém fi zeram Marie Grâce e seus irmãos. Ali, eles podiam morar de graça e comer bananas e verduras das plan-tações deixadas para trás.

– Mas, depois de mais ou menos um ano, os exilados

começaram a voltar e nós fomos forçados a sair de lá. Tivemos que alugar uma casa na cidade e meu irmão fez tudo o que podia para que pudéssemos sobreviver. Foi muito difícil para ele conseguir dinheiro para o aluguel, comida e as outras coisas que precisávamos, pois não havia empregos na cidade. Nós vivíamos com fome e Diogène começou a fi car preocupado conosco.

Salvos pela AOCMHá alguns anos, Diogène, irmão mais velho de Marie Grâce, e muitos outros que tinham perdido seus pais, entenderam que teriam de ajudar uns aos outros para poder sobreviver. Então começaram a cooperar com

Tayari, ou bananabol, é um jogo no qual duas pessoas fi cam de pé, há 15 metros de distância uma da outra, e jogam uma bola feita de folhas de bananeira, uma para a outra. Entre estas duas jogadoras, fi cam todos os outros que querem participar. Aquele que fi ca no meio tem de se desviar da bola, quando as outras duas pararem de jogar a bola uma para a outra e, de repente, tentarem acertá-lo. Se ele for atingido, sai do meio e troca de lugar com quem jogou a bola.

– Além de jogarmos Tayari, nós também jogamos cartas aos sábados. Às vezes fi camos contando estórias e fazendo charadas. Aqui vai uma de minhas charadas – diz Grâce Marie

:

Jogando bananabol!

Marie Grâce faz uma bola de folhas de banana.

a AOCM em Kigali. Em junho de 2003, aconteceu algo que mudou completa-mente a vida de Marie Grâce e seus irmãos.

– Foi então que nós nos mudamos para nossa nova casa, na vila da AOCM. Ganhamos a casa de graça, não precisávamos pagar alu-guel! Antes, todo nosso dinheiro ia para o aluguel, mas agora podemos comprar comida, roupa e outras coi-sas que precisamos. Nós jamais teríamos condições

de comprar uma casa por nós mesmos e se a AOCM não tivesse nos ajudado, teria sido muito difícil para mim e meus irmãos sobrevivermos. Nem por isso, a vida é fácil para nós agora, mas pelo menos fi cou muito melhor.

Quando Marie Grâce vol-ta da casa antiga de sua família, ela corre até as bananeiras que fi cam em uma ladeira, perto das casas da vila da AOCM. É sábado, e ela ainda tem um pouqui-nho de tempo para brincar,

Qual é a casa sem portas que é feita por uma galinha branca?A resposta da charada está no fi nal da página.

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Resposta: O ovo

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antes de ir ajudar com a comida e fazer suas lições. Ela quer jogar “bananabol” ou Tayari, como é realmente chamado. Mas, primeiro ela deve fabricar a bola. Ela cor-ta as folhas secas da bana-neira e as junta num monti-nho no chão. Depois de pegar um número sufi ciente de folhas, ela senta na frente de casa. Ali, ela rasga as folhas em fi tas fi nas, para depois as enrolar em camadas até que se forme uma bola. Ela molha as últimas fi tas com água para dar uma boa forma à bola. Depois de 15 minutos, a bola está pronta.

Brinca com todosMarie Grâce brinca primei-ro com sua irmã mais velha, Emma, que está de pé e joga a bola de volta. Depois, aparecem crianças de todos os lados, que querem brin-car também. Muitos deles não moram na vila.

– Nós que moramos aqui na vila da AOCM, somos tutsis, pois fomos nós que tivemos as casas destruídas em 1994. Mas as crianças que moram aqui perto são geralmente hutus. Nós brincamos juntos sem problemas. É a mesma coisa na escola. Eu tenho amigos tutsis e

hutus. Quando não estou pensando, nem sei quem é quem. Eu não vejo diferença nenhuma, nem me importo! Eu acho que todos têm o mesmo valor. Muitos adul-tos não pensam assim, mas deveriam. Se os adultos não começarem a pensar como nós, crianças tenho medo que haja guerra em Ruanda de novo. �

Visite a nova casa de Marie Grâce.

IkigurudumuLandouard, 12 anos, vem correndo pelo caminho entre as casas da vila da AOCM. Em uma das mãos, ele segura um brinquedo chamado Ikigurudumu. A brincadeira consiste em tentar rodar uma roda diante de si, com a ajuda de uma vara e um cordão, ao mesmo tempo em que se corre.

– Eu mesmo fi z este aqui. Primeiro, peguei uma faca e cortei a roda de um pneu usa-do, que achei no ferro-velho. Depois fi z um cordão com alguns pedaços de roupa que eu amarrei. Por último, eu entrei na mata e trouxe uma vara, aí meu Ikigurudumu fi cou pronto. Levei dois dias pra terminar.

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Bem-vindos a minha nova casa!

“Eu acordo todos os dias às 6h da manhã e faço a limpeza, dentro de casa e lá fora.”

“Fazemos manteiga nessa cabaça que está pendurada na parede.”

“Este buquê de fl ores de sêda é a coisa mais bonita que temos em casa, penso eu.”

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“Quando eu venho da escola, eu preparo a comida. Feijão e banana d’àgua, na maioria das vezes. Mas minha comida favorita é o arroz. Eu cozinho no fogo mesmo. Nós jantamos na sala.”

Porcos em casa própria...Nas proximidades da casa de Marie Grâce, 20 porcos estão cavando e fuçando em sua própria casa. Os porcos foram um presente da AOCM para a vila. Todas as famílias na vila vão poder criar porcos para comer e para vender.

– Eu gosto dos porcos e eu acho que eles podem nos ajudar a melhorar de vida – diz Marie Grâce. Dentro de pouco tempo vão chegar 1000 galinhas e 20 bodes para a vila da AOCM.

“Lá no pátio nós lavamos as roupas, preparamos a comida e conversamos.”

Meninas PrimeiroNa vila onde Marie Grâce mora, a AOCM construiu 34 casas para 130 crianças que perderam seus pais no genocídio. No total, a AOCM construiu 112 casas em lugares diferentes em Ruanda.

- – Nós tentamos,

o tempo inteiro, conseguir mais dinheiro para construir mais casas, pois ainda exis-tem muitos sem lugar para morar. Nós pensamos sem-pre nas meninas primeiro, porque elas são as mais expostas, por isso precisam

Acontece quase todos os dias e, para trás, fi cam crian-ças pequenas que têm que tomar conta de si mesmas sozinhas. Quando nós distri-buímos comida e roupa, são também as meninas que ganham primeiro – conta Naphtal, líder da AOCM.

de casas. Na maioria das vezes, elas são forçadas a vender seus corpos aos homens adultos, para terem dinheiro para alugar um quarto ou uma casa para elas e seus irmãos mais novos. Muitas das meninas pegam AIDS e morrem.

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Janvier

Janvier Tuyishimire, 13

está soO pai de Janvier e sua irmã foram assassinados no genocídio de 1994. Alguns anos depois, a mãe dele morreu em um acidente de carro. Desde então, ele mora nas ruas da capital Kigali. Milhares de crianças órfãs em Ruanda vivem como Janvier.

Janvier está cansado e com fome. Ele passou o dia no estacionamento

ao lado da estação de ôni-bus, como costuma fazer. Janvier vai de carro em car-ro, estende a mão e diz:

- Será que vocês podiam me ajudar? Eu preciso de dinheiro para comer...

Mas hoje ninguém tinha dinheiro para lhe dar. Assim é quase todo dia.

– Peço ajuda a todos, afi -nal todos parecem ter mais dinheiro do que eu. Alguns deles são bonzinhos, mas a maioria deles é má. Eles não me dão nada e dizem que eu deveria voltar pro meu vila-rejo e plantar verduras em vez de pedir esmolas. É mui-to injusto, pois não tenho nem vilarejo nem terra para plantar. Eu fi co com raiva e me entristeço quando os adultos dizem isso.Eu mes-mo não quero viver assim, pedindo esmolas aos outros, mas como iria sobreviver de outra forma? – diz Janvier.

Papai foi assassinadoQuando Janvier tinha ape-nas dois anos, seu pai e sua irmãzinha foram assassina-dos no genocídio. Desde aquele dia, nada mais foi fácil para ele.

– Minha mãe e eu tivemos muitas difi culdades sem o papai. Mamãe trabalhava duro na terra dos outros e conseguiu um dinheirinho para a gente se manter.

Depois que cresci, tentei aju-dá-la ao máximo possível. Eu ia buscar água, lavava os pratos e fazia muitas outras coisas.

Eu amava minha mãe de verdade! Mesmo sem muito dinheiro, ela pagou minha escola para que eu pudesse fazer a primeira e segunda séries.

Mas, um dia, aconteceu aquilo que não podia acon-tecer. A mãe de Janvier mor-reu em um acidente de carro, e de repente ele fi cou sozinho.

– Eu chorei muito. Eu esta-va com medo e morria de saudades dela. Não tinha ninguém pra tomar conta de mim e eu não tinha a menor idéia do que fazer pra sobre-viver. Onde é que eu ia arru-mar comida? Onde é que eu ia morar?

Forçado a deixar a escolaJanvier não tinha dinheiro, por isso ele teve que deixar a escola que ele tanto amava. Depois disso, não demorou muito para que ele fosse for-çado a sair da casa onde morava e acabar nas ruas. Desde aquele dia, ele sobre-vive pedindo esmolas no centro da cidade. Começa de manhã cedo e vai até à noite. Todos os dias.

– Eu não sei por quanto tempo fi co aqui, mas eu odeio viver assim. A única coisa que eu quero é voltar para a escola, mas isso é impossível. Quem vai pagar

Mora: Nas ruas de Kigali.Adora: Jogar futebol.Odeia: Quando os adultos batem nas crianças.O pior que lhe aconteceu: Quando mamãe e papai morreram.Deseja ser: Um homem de negócios bem sucedido.Sonho: Ter uma casa e um carro bonito.

minha escola? Quem vai comprar meu uniforme e meus livros? Eu não tenho ninguém para me ajudar.

São quase sete horas, o sol começa a desaparecer por trás das montanhas de Kigali. Ninguém deu dinhei-ro a Janvier hoje. Ele tenta uma última rodada perto dos carros, mas desiste logo. Ele já não tem mais forças.

Mora nas calçadasJanvier deixa o estaciona-

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sozinho

mento e vai em direção do semáforo no cruzamento onde ele costuma dormir. Muitos estão voltando do trabalho para suas casas. Em todos os lugares, entre carros e camelôs, movem-se pequenas gangues de crian-ças que vivem nas ruas. Mas Janvier está sozinho. Ele fi ca assim quase sempre.

– É melhor fi car sozinho, pois têm sempre umas brigas rolando. Muitas das crian-ças que vivem nas ruas chei-ram cola para esquecer que seus pais foram mortos, e se tornam violentas. Todos querem mostrar que são os mais fortes e que são os che-fes da gangue.

Quando Janvier chega ao semáforo, ele pega um peda-ço de papelão que escondeu lá. Ele se senta no papelão e

se encosta no poste. Esta é sua casa. E,logo mais, ele vai se deitar e tentar dormir.

– Eu deito junto do semá-foro porque a luz fi ca acesa a noite toda. Os rapazes maio-res da rua vêm em cima de nós menores e tomam nosso dinheiro. Já aconteceu, mui-tas vezes, de eles me chuta-rem e me baterem e depois levarem aquilo que eu conse-gui durante o dia. Mas aqui perto do sinal, outras pesso-as podem ver, se eles tenta-rem me machucar.

Sozinho Janvier não tem cobertor, todas as noites ele sente mui-to frio deitado na calçada. Aí vem os duros pensamen-tos. Ele sabe que não tem futuro, afi nal de contas não está na escola. Ele também

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Crianças pobres apanham– Muitas noites na eu vou dormir sem ter comido nada o dia todo. Mas não importa quanta fome eu tenha, eu nunca iria roubar comi-da ou dinheiro. Se o povo te pega, te bate até morrer. Eu já vi várias crianças que vivem nas ruas apanharem muito dos adultos, até mesmo da polícia, por estarem roubando. Eu acho isso errado. Crianças pobres que vivem nas ruas, não têm culpa de roubarem. Elas estão com fome.

– Nós queremos que as crianças órfãs que vivem nas ruas sejam ajudadas e possam ir à escola-diz Naphtal, líder da AOCM.

A UNICEF, órgão da ONU, crê que 7000 crianças vivem nas ruas em Ruanda.

Ajudem as crianças nas ruas

sabe que jamais vai querer ter uma família nem ter fi lhos, pois morre de medo que eles terminem na rua, na mesma situação difícil que ele está.

– Muitas vezes quando me sinto deprimido e sozinho me lembro de meu pai, minha mãe e minha irmã

que estão mortos. Eu tenho muita saudade deles. Mas eu tento sair dessa e parar de pensar. Não adianta. Minha mãe e meu pai jamais vão voltar para mim, não importa o quanto eu pense neles. �

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Jean-Claude Habineza, 14

Jean-Claude

Mora: Em Kigali com seus dois primos mais novos.Adora: Fred, Manchester United e a Mercedes-Benz.Odeia: A guerra e fi car sozinho.O pior que lhe aconteceu: Mamãe e papai terem sido mortos.O melhor que aconteceu: Quando o genocídio acabou.Quer ser: Mecânico de auto-móveis ou ministro da ação social.Sonha: Que todos as crian-ças órfãs do mundo tenham seus direitos respeitados.

é órfJean Claude sabe que recebeu uma oportunidade que muitos órfãos em Ruanda apenas sonham.

– Se a AOCM não tivesse me ajudado, eu teria terminado nas ruas e nunca teria a chance de ir à escola – diz ele.

Hoje, Jean Claude toma conta de seus dois primos mais novos: Eric e Gloriose. Eles são uma família e a AOCM os ajuda.

Assim que é liberado, Jean Claude vai da escola para casa.

Kigali tem muitas ladeiras e, geralmente, ele demora uma hora no trajeto.Quando fi nalmente chega em casa, lá embaixo da ladeira, já são 14h30! Ele tem no máximo duas horas antes que seus primos Eric, 11 anos, e Gloriose, 12 anos, voltem da escola. Antes que isso acon-teça, ele deve buscar água e começar a preparar a comida, ele está com pressa. Todos os dias da semana são assim.

Jean Claude troca de roupa e põe uma camiseta e uma bermuda, depois vai buscar o balde amarelo de dez litros. Eles não têm água encana-da, por isso ele tem de subir até a “torneira do bairro”. Demora meia hora para ir e voltar. No caminho de volta, ele traz o balde na cabeça. É muito pesado. Assim que chega em casa, Jean Claude acende o fogo e começa a ferver a água. Ao mesmo tempo, ele prepara o feijão e as bananas d’água que com-prou no mercado, ontem.

Perdeu sua famíliaFinalmente a comida come-ça a borbulhar na panela e Jean Claude se dá por satis-feito: Ele conseguiu hoje também!

– Oi pessoal! Tudo bem?Gloriose e Eric acabaram

de aparecer. Jean Claude sorri. Nada o faz mais feliz do que ver seu irmãozinho e irmãzinha. Ele os chama assim, mesmo eles sendo pri-mos, porque é assim que ele se sente com Eric e Gloriose. Jean Claude jamais vai esquecer do dia em que ele

A melhor rolha.

Jean Claude prepara as bananas d’água.

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rfão e “pai”descobriu que os dois exis-tiam. Foi o dia mais feliz de sua vida. Antes disso, a vida era dura, injusta e solitária:

– Minha mãe, meu pai e meu irmão mais velho foram assassinados no genocídio de 1994. Todos desaparece-ram e fi quei sozinho. Eu só tinha três anos na época. Alguém pode dizer que eu tive sorte, pois o tio de meu pai conseguiu me salvar. Nós escapamos pelo rio Akanyaru para o país vizi-nho, o Burundi, onde eu fui levado para um campo de exilados para crianças que tinham fugido de Ruanda.

Depois de seis meses nos colocaram em vários ônibus de volta para casa. Eu me lembro que todos os ônibus estavam cheios de crianças. Quando chegamos em Ruanda, fomos levados para

uma enorme casa para crianças que tinham perdido os pais no genocídio.

Novos desastres– Nos primeiros momentos, eu vivia esperando que a minha mãe viesse me bus-car. Mas ela nunca veio. Depois de dois anos, eu compreendi que ela jamais viria. Eu entendi que ela também fora assassinada.

Mas quando Jean Claude tinha 11 anos, tendo mora-do quase sete anos no orfa-nato, aconteceu algo que lhe deu nova esperança.

– Minha tia Léocadie, que também tinha sobrevivido, conseguiu me encontrar e queria que eu fosse morar com ela. Claro que eu que-ria! Ela me amava muito e me tratava como seu próprio fi lho. Parecia

Ouça Munyanshoza Dieudonné no site

– Eu adoro meu rádio! Todas as noites, eu escu-to as notícias e as estó-rias, porém, mais que tudo eu gosto de ouvir música. Meu artista favori-to é Munyanshoza Dieudonné, ele também sobreviveu o genocídio. Ele canta muito sobre as coisas terríveis que acon-teceram, mas também sobre o amor e uma Ruanda melhor, cheia de paz.

Meu bem favorito

Antes eu jogava futebol, mas depois do acidente de carro, eu manco um pouco e sinto dores na minha perna quando me esforço muito. Mas eu escuto mui-to rádio e tento acompa-nhar os times. Eu adoro futebol e o Mancehester United é meu time favorito.

Manchester United é o melhor!

Hoje Ange e Pamela vie-ram almoçar com Jean

Claude e seus primos.– Vamos dividir o pouco

que temos. Depois é nossa vez de comer com outras pessoas. É assim que fun-ciona na AOCM. Todos os membros são pobres, mas nós tentamos ajudar uns aos outros o máximo possível. Quando nós não temos dinheiro nem comida, os outros órfãos dividem o pou-co que têm conosco. Se alguma coisa grave aconte-ce, ou se Eric e Gloriose fi carem doentes, eu peço ajuda a Naphtal ou aos outros líderes. Desse modo,

eu sempre consigo algum dinheiro para remédios ou para irmos ao hospital.

Eu também vou às reuni-ões da AOCM três vezes por mês. Ali, nós tentamos encorajar uns aos outros a continuar com a vida, apesar de tudo que aconteceu. Nas reuniões, nós também con-tamos se estamos precisan-do de ajuda com dinheiro ou qualquer outra coisa. Não nos sentimos sozinhos, pois todos temos os mesmos problemas. Somos como uma família, não sobreviverí-amos sem os outros – conta Jean Claude.

A família AOCM

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➼ que eu havia encontrado uma nova mãe! Agora pare-cia que a vida, fi nalmente, ia ser boa de novo.

Mas, mal tinha Jean Claude morado um ano com Léoca-die, um acidente aconteceu.

– Minha tia tinha proble-mas na visão e um dia, quando voltávamos do oftalmologista, o taxista perdeu o controle da cami-nhonete. Ele bateu de frente de uma árvore e minha tia morreu na hora. Eu feri gra-vemente a perna e passei seis meses no hospital.

Uma nova famíliaA AOCM tinha construído

a casa onde Jean Claude morava com sua tia antes do acidente. Quando ele saiu do hospital pode morar lá intei-ramente de graça. Mas Jean Claude tinha perdido a von-tade de viver.

– A vida parecia sem senti-do e injusta. Eu só queria morrer. Mas um dia, uma das vizinhas me contou que dois de meus primos mais novos ainda estavam vivos e moravam num orfanato. Primeiro, eu não acreditei que fosse verdade. Mas depois fi quei super feliz, pois pensava que estava comple-tamente sozinho! Eu tinha morado no orfanato e sabia

como era. Mesmo que você tenha comida, um lugar pra morar ou até mesmo possa ir à escola, ainda existe aquele sentimento de que alguma coisa está faltando. Eu estava cansado de viver sozinho e eu queria dar ao Eric e a Gloriose uma chan-ce de ter uma família de verdade.

A AOCM prometeu aju-dar Jean Claude a tomar conta de seus primos e ele tomou o ônibus para o orfa-nato. Ele contou para o dire-tor que Eric e Gloriose eram seus primos e que ele queria que eles fossem morar com ele em Kigali.

– O diretor concordou e meus primos fi caram muito felizes! Desde então, nós somos uma família. Estamos morando juntos 3 três anos e eu os amo.

Um futuroQuando Jean Claude, Eric e Gloriose terminam de comer, já começa a anoite-cer. Jean Claude acende uma vela e a coloca na mesa. Eles batem papo, riem baixinho, mas também dão gargalha-das. Depois de um tempi-nho, Gloriose e Eric trazem

Fazendo as lições à luz de vela. Jean Claude ajuda seus primos Gloriose e Eric o máximo possível.

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seus livros e começam a fazer a lição de casa. Jean Claude os ajuda o quanto pode. Ele decidiu que, enquanto viver, vai fazer todo o possível para que eles continuem indo à escola.

– Eu tenho uma responsa-bilidade muito grande, pois sou a única pessoa que eles têm. Eu tenho que me esfor-çar muito para fazer todas as coisas. Fico cansado na maioria das vezes, pois estou estudando e tomo conta de uma família. Nos fi nais de semana, lavo roupa e faço outras coisas em casa, quase

nunca tenho uma folga nes-ses dias. Mesmo a minha vida sendo dura, sei que eu tenho uma oportunidade que os outros órfãos de Ruanda apenas sonham em ter. Se a AOCM não tivesse me ajudado eu teria termina-do nas ruas e jamais teria a chance de ir à escola. As crianças que vivem nas ruas e não estão na escola irão sempre sofrer pra sobrevi-ver. Agora sinto que eu e meus irmãos temos um futuro. �

Eu amo Jean Claude. Ele veio nos buscar e agora nós somos uma família. À noite, quando terminamos nossas lições, costumamos sentar, dizer charadas, contar estórias e brincadeiras uns para os outros. Nós rimos muito e eu me sinto bem- diz Gloriose. – Aqui está uma de minhas adivinhações:

– Quem anda sempre falando consigo mesmo?Resposta no fi nal da página.

– Aqui vai um provérbio que eu aprendi: “ O passarinho que não tem coragem de voar, nunca vai saber onde o sorghum* mais gostoso cresce.”

Nós somos uma família– Na maioria das vezes,

estamos muito bem. Mas alguns dias são muito difí-ceis. Começamos a pensar sobre por quê nossos pais foram mortos e coisas des-se tipo. Eric e Gloriose fi cam muito tristes e cho-ram em dias como estes. Eu tento consolá-los sem mostrar que também estou triste. Mas, às vezes, eu me tranco em um outro quarto e choro quando eles não estão vendo. Eu também

tenho saudade de minha mãe e de meu pai...muita saudade. Eu gostaria de ter pais como qualquer outra criança. Os pais podem dar tudo de bom para uma criança. Carinho, amor e um senso de que ela é par-te de um lar em algum lugar. Eu tento fazer com que Eric e Gloriose tenham tudo isso. Isto é a coisa mais importante para mim – diz Jean Claude.

Tenta ser um pai

Jean Claude lava roupas nos fi nais de semana.

* Sorghum é um tipo de cereal, comum em Ruanda.

Resposta da adivinhação: A língua!

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Jean-Claude

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sonha ser Ministro da AçO maior sonho de Jean Claude é ter um Mercedes azul e se tornar ministro da ação social para ajudar crianças órfãs.

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Jean Claude está deita-do, mexendo em um dos carros velhos da ofi cina

da escola. Há uma semana, ele contraiu malária e por dois dias, não teve forças para ir à escola. Ele está feliz por estar de volta.

– Eu adoro a escola. Quando eu estou aqui, apren-do várias coisas importantes para o futuro. Mas eu acho divertido também! Por algu-mas horas eu esqueço de tudo de ruim que aconteceu e não me preocupo com o futuro. Eu trabalho somente com os

carros que mais gosto. Meu carro favorito é o Mercedes-Benz. Não importa qual o modelo, apenas que seja azul – diz Jean Claude e ri.

A classe de Jean Claude tem 45 alunos, e todos estão na ofi cina trabalhando com motores e carros nessa aula. Para Jean Claude, as horas passam rápido demais. Ele mal começou a trabalhar em seu carro e um dos professo-res já está chamando:

– Descansem um pouco antes da aula de teoria mecânica, rapazes!

Jean Claude se levanta e limpa a sujeira de seu maca-cão. Ele vai ao pátio da esco-la, junto com os outros, mas queria mesmo era ter fi cado na ofi cina trabalhando. Ele é muito grato à AOCM por ter lhe dado uma chance de ir à escola, e ele quer apren-der o máximo possível lá.

– Para mim seria impossí-vel ir à escola se a AOCM não me ajudasse com as mensalidades escolares.

Toma conta de si mesmoO curso de mecânica dura

dois anos, e quando Jean Claude terminar a escola, ele poderá trabalhar como mecânico de automóveis, se quiser.

– Fui eu mesmo quem deci-diu por este curso técnico. Para mim, ele é perfeito por várias razões.

Os dias de aula são mais curtos aqui do que em esco-las normais, assim eu tenho tempo de correr para casa e tomar conta de Eric e Gloriose. O curso em si mes-mo é bem curto e eu ainda aprendo uma profi ssão. Se eu tiver sorte, vou conseguir emprego rápido e ter meu próprio dinheiro. Eu quero poder tomar conta de minha família sem ter que sempre

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Ação Social

– Nós temos tutsis e hutus na minha sala de aula. Nós tentamos ser amigos apesar de tudo que aconteceu, mas não é tão fácil. Às vezes, tenho a impressão de estarmos apenas fi ngindo. Eu tenho medo de que aquilo que aconteceu em 1994 possa acontecer de novo, pois ainda não somos amigos de verdade – diz Jean Claude.

Tentando uma amizade

“Nós acreditamos que a escola é a coisa mais impor-tante que existe, para que alguém venha a ter uma boa vida. Agora mesmo, estamos apoiando economicamente 600 crianças e adolescentes, para que eles possam ir à escola. Isto desde o ensino fundamental até à escola téc-nica profi ssinonalizante e à universidade. Nós tentamos ajudar com as mensalidades escolares, transporte de ida e volta à escola, uniforme escolar e, algumas vezes, até com material escolar, como livros, cadernos e canetas. Entre aqueles que ajudamos, estão 146 adultos que foram forçados a deixar a escola por causa do genocídio de 1994. Nós lhes damos uma chance de completar o ensi-

no fundamental.No momento, não temos

dinheiro para ajudar mais de 600 alunos, mas ajudamos muitos outros de outras maneiras. Nós queremos ser os pais que essas crianças perderam, tentamos fazer aquilo que seus pais fariam se estivessem vivos. Se uma criança apresenta difi culdades na escola e começa a faltar, por exemplo, nós a visitamos e tentamos descobrir o que há de errado. Encorajamos a criança a continuar na escola, mesmo estando difíceis com todas as difi culdades. Chega-mos a visitar até mesmo outras escolas e conversamos com os professores, se for necessário, para que as crian-ças possam voltar a estudar”.Naphtal Ahishakiye, líder da AOCM

600 menores recebem apoio

pedir ajuda a alguém. Eu me envergonho de fi car pedindo ajuda todo dia e me sinto pequeno, de alguma manei-ra. Se eu conseguir um emprego, vai ser muito mais fácil para Eric e Gloriose terem uma vida melhor. Talvez, no futuro, eles pos-sam até entrar na universi-dade!

A única coisa que Jean Claude acha ruim em seu curso é que eles não estudam nenhum outro assunto além daqueles relacionados com carros e técnicas.

– Eu acho que é importan-te aprender outras coisas também, por exemplo, como o mundo é, história e coisas desse tipo. Eu costumo pedir

emprestado livros de histó-ria e geografi a de outros colegas que são de uma esco-la comum, e os leio à noite, antes de dormir. Sempre que posso eu tento ler jornais, pois eu quero estar por den-tro do que acontece em Ruanda e nos outros países. Eu sou bastante interessado nessas coisas e, mesmo estu-dando para ser mecânico, o que eu gostaria mesmo de ser é Ministro da Ação Social de Ruanda. Assim eu poderia ajudar os órfãos a ter comida sufi ciente, um lugar para morar e uma escola. �

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Vestine

Vestine Uwinbabire, 15

quer

Vestine olha para o lago Kivu, no sudeste de Ruanda. Do outro lado do lago, está o país vizinho, o Congo, que ela pode ver clara-mente da praia onde se encontra.

– Aqueles que mata-ram minha família estão, provavelmente, escondidos nas fl ores-tas do Congo. Eu tenho medo de encontrá-los, mas espero fazê-lo algum dia – diz Vestine, 15 anos.

São 11 horas da manhã em um vilarejo ao redor da cidade de

Cyangugu, onde Vestine mora. Numa clareira, em frente à pequena escola, reu-niram-se mais de 200 pesso-as. A maioria delas já está sentada na grama, esperan-do há duas horas. Mas, apesar se serem tantos, o ambiente está quase em silêncio absoluto. Todos estão esperando que o “ Tribunal da vila” – ou Gacaca, como é chamado-comece.

Vestine está sentada na parte de trás com um grupo de mulheres. Ela observa cuidadosamente tudo ao seu redor. O gacaca dessa sema-na é especial para ela. Hoje, ela decidiu contar sua histó-ria para todos os que estão aqui. E ela sabe que muitos dos que estão aqui ao seu redor , também estavam presentes quando quase toda sua família foi assassinada.

Finalmente, Modeste, líder da reunião, limpa a garganta e diz:

– Hoje vamos começar a falar sobre aquilo que aconteceu com a família de Vestine. Bem-vinda à frente, Vestine.

Pais assassinadosQuando Vestine vai à frente, muitos olham com surpresa. Não é comum que crianças e jovens apareçam no

perdoar os assassinos“Tribunal da vila”. Mas Vestine já esteve lá duas vezes e hoje ela começa a contar sua hostória com voz fi rme.

– Em uma manhã, todas as nossas casas foram quei-madas e muitos tutsis foram assassinados. A matança durou muitos dias. Meu avô foi morto quando tentava se esconder entre as bananei-ras. Depois de alguns dias, eles mataram meu irmão mais velho e minha avó. Minha mãe e meu pai foram assassinados aqui neste vale, exatamente atrás de nós – diz ela e aponta.

Vestine conta os nomes de todas as famílias que foram mortas e até mesmo os nomes dos assassinos que ela conhe-ce. Sua voz já não está tão forte e fi rme. Finalmente, ela começa a chorar. Muitos daqueles que a escutam tam-

Vestine conta as terríveis coisas que aconteceram com sua família.

bém estão chorando.Quando Vestine volta ao

seu lugar, uma senhora vai à frente testemunhar.

– Eu reconheço a dureza

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Mora: Internato de Cyangugu, ao lado do lago Kivu.Adora: Ir à escola e dançar.Odeia: A guerra.O pior que lhe aconteceu: Ter perdido meus pais.O melhor que lhe aconteceu: A paz ter chegado em Ruanda.Quer ser: Médica.Sonho: Que nunca mais haja guerra no mundo inteiro.

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da situação ocorrida aqui na vila em 1994. Muitos tutsis tiveram suas casas queimadas e depois foram assassinados. Mulheres gritavam e crian-ças corriam para todos os lados. Eu mesma roubei rou-pas, telhas de zinco, aparelhos de TV e videocassetes dos tutsis que tinham se dado mal. Eu quero pedir desculpas e acho que todos os outros deveriam fazer o mesmo para que nós pudéssemos viver em paz uns com os outros.

PesadelosDepois do Gacaca, Vestine está cansada e triste. Muitas lembranças incômodas vol-taram.

– Mesmo eu tendo apenas quatro anos quando tudo aconteceu, eu ainda me lem-bro dos gritos e do sangue no chão.

– Eu ainda tenho pesade-los e acho muito difícil falar dessas coisas horríveis. Mas, acho ainda mais difícil guar-dar todos estes pensamentos e sentimentos só para mim. Me sinto melhor em poder conversar com outras pesso-as que experimentaram as mesmas coisas. É por isso que eu vou para o Gacaca.

Vestine também vai para lá por outras razões. Ela espera que aqueles que mataram sua família, um dia, estejam lá quando ela contar sua história.

– Muitos dos assassinos estão escondidos no Congo, mas muitos estão na cadeia aqui mesmo em Ruanda. Quando eles forem soltos, vamos nos encontrar aqui no Gacaca. Eu fi co com medo, pois sei que posso ser morta se contar a verdade.

Mas eu espero que, em vez disso, eles me peçam perdão. Eu jamais vou esquecer aquilo que eles fi zeram comigo e com minha famí-lia, mas eu quero tentar per-doar. Eu sou membro da AOCM e nós nos encoraja-mos a falar sobre nossas vidas no Gacaca e a perdoar aqueles que mataram nossas famílias. É difícil, mas eu creio que esta é a única maneira de podermos ter um futuro melhor em Ruanda.

O grupo de dança À tardinha, Vestine começa a sentir-se melhor. Hoje à noite haverá ensaio do grupo de dança da AOCM. Essa é a coisa que ela mais gosta. Eles ensaiam no quintal da casa de um de seus amigos. Quando Vestine chega à casa, troca de roupa bem rápido e

Quando termina de falar, Vestine se entristece com as horríveis lembranças.

No tribunal da vila, o chama-do Gacaca, chega a vez de Vestine falar sobre o que aconteceu com sua família.

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➼corre ao encontro dos outros. Um dos rapazes começa a cantar e marca o tempo em um tambor. É uma canção de casamento e todos logo começam a cantar. As meni-nas dançam em fi la e se movem como uma cobra no pátio. Vestine está sorrindo. Quando ela dança, sente calma e todas as memórias horríveis que haviam voltado durante o “Tribunal da vila” pela manhã, começam a desaparecer. Depois de alguns instantes ela já não pensa nem no tambor, nem em seus amigos. Por alguns minutos, ela está apenas feliz.

O grupo é minha famíliaFazer parte do grupo de dança da AOCM é muito importante para mim, espe-cialmente quando eu me sin-to triste e sozinha. Todos os

membros do grupo perde-ram seus pais e nós tentamos apoiar e encorajar uns aos outros. Nós somos como uma família. A maioria de nós começou a dançar ainda no orfanato, depois do geno-cídio. Somos um grupo de 62 pessoas, mas muitos estudam em outros lugares, por isso o grupo diminui no fi nal do semestre. Nós nos apresen-tamos em casamentos, festas e festivais. O dinheiro que nós ganhamos quando dan-çamos é compartilhado de maneira igual entre nós. Com o dinheiro, compramos material escolar, roupas, comida e outras coisas que precisarmos. Nossas músi-cas são sobre o genocídio, a AIDS, o Gacaca, a alegria, o casamento, o amor...enfi m, os mais variados temas.

-diz Vestine. �

Veja e escute Vestine e o grupo de dança, no site:

Salvo pelos hutus

O grupo de dança é como uma grande família para Vestine. Eles compram comida, material escolar e roupas com o dinheiro de suas apresentações.

– No mesmo dia em que minha mãe foi morta, eu e qua-tro de meus irmãos fomos salvos por uma mulher hutu que se chama Francine. Ela era uma boa amiga da minha mãe. Quando chegamos à sua casa, já havia cin-co crianças tutsi que também tinham sobrevivido. Francine tinha seus próprios fi lhos e não podia tomar conta de todos nós. Nós fomos divididos entre famílias diferentes. Eu terminei com uma mulher que se chama-va Bibiane. Ela também era hutu. Quando a paz che-gou, alguns meses mais tarde, eu e meus irmãos nos mudamos para um orfanato. Agora eu moro na escola internato aqui em Cyangugu.

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Depois do genocídio de Ruanda, 100 000 pes-soas foram presas por

participarem do massacre e esperam por um julgamento. Apesar do estabelecimento do Tribunal Criminal Internacional para Ruanda em Arusha, Tanzânia e de outros Tribunais em Ruanda para tratar exclusivamente do genocídio, foi fácil compreen-der que iria demorar muito para julgar tanta gente. Levaria aproximadamente 100 anos!

Em 2001 foi decidido, então, que se reestabeleceria um antigo sistema de “Tribunais das vilas”, os cha-mados Gacaca. A palavra Gacaca, signifi ca algo como “sentar na grama”. Antigamente os moradores das vilas sentavam-se juntos e

tentavam resolver pequenas questões. Nos Tribunais modernos das vilas, 250 000 pessoas, escolhidas pelos habitantes de suas próprias vilas e comunidades, foram treinadas para atuarem como juízes nos novos Tribunais das vilas. Em Ruanda existem hoje, mais ou menos 11 000 tribunais Gacaca, que tratam de questões diferentes. Uma coisa é ter uma audiência e julgar pessoas que participa-ram do genocídio, outra, é escutar a história das vítimas. Espera-se que as vítimas e aqueles que cometeram os cri-mes possam de alguma maneira encontrarem-se e perdoarem-se. �

O que é o Gacaca?

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Crianças em Ruanda

Crianças órfãs: 613 000Crianças que são chefe de família: 101 000Crianças fora da escola: 400 000Trabalhadores infantis: 120 000Meninos de rua: 7 000Crianças abaixo de 14 anos com hiv/AIDS: 22 000Crianças refugiadas no Congo(Kinshasa): 2 500

Muitas das crianças de Ruanda estão em péssimo estado psicológico desde o genocídio de 1994. Milhares delas foram vítimas de violência e abusos e outros milhares foram forçadas a assassinar e praticar violência, contra suas vontades. Muitas delas acabaram na cadeia.

Ruanda é um dos países mais pobres e menores da África. Ali vivem oito milhões de pessoas. Metade delas é composta de crianças abaixo de 18 anos. Muitas das crianças vivem em situação difícil. Uma entre cinco crianças morre antes de completar cinco anos de idade, e metade de todas as crianças em Ruanda é desnutrida.

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