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Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão(1) na altura, Triste de facha,(2) o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno: Incapaz de assistir (3) num só terreno, Mais propenso ao furor do que à ternura; Bebendo em níveas (4) mãos por taça escura De zelos infernais letal veneno: Devoto incensador de mil deidades (5) (Digo, de moças mil) num só momento, Inimigo de hipócritas, e frades:* Eis Bocage, em quem luz algum talento; Saíram dele mesmo estas verdades Num dia em que se achou cagando ao vento.* Glossário 1 - Mediano, medíocre, médio 2 - De rosto, de cara 3 - Usado no sentido de morar 4 - Brancas como neve 5 - Divindades, venerações *- Versos corrigidos na edição de 1804 Comentários: Esse soneto é considerado o Auto-retrato do poeta. Ele foi corrigido, pelo próprio Bocage, na edição de 1804. Os versos "Inimigo de hipócritas, e frades" e "Num dia em que se achou cagando ao vento" foram substituídos, respectivamente, por "E somente no altar amando os frades" e "Num dia em que se achou pachorrento", no qual pachorrento tem o significado de paciente. Optamos por divulgar a primeira versão do poema porque a consideramos mais original. Nesse soneto, no qual o poeta vê com humor e um certo cinismo as suas desventuras, percebe-se toda a

poemas de bocage

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Page 1: poemas de bocage

Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão(1) na altura,Triste de facha,(2) o mesmo de figura,Nariz alto no meio, e não pequeno:

Incapaz de assistir (3) num só terreno,Mais propenso ao furor do que à ternura; Bebendo em níveas (4) mãos por taça escura De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades (5)(Digo, de moças mil) num só momento,Inimigo de hipócritas, e frades:*

Eis Bocage, em quem luz algum talento;Saíram dele mesmo estas verdadesNum dia em que se achou cagando ao vento.*

Glossário1 - Mediano, medíocre, médio 2 - De rosto, de cara 3 - Usado no sentido de morar 4 - Brancas como neve 5 - Divindades, venerações

*- Versos corrigidos na edição de 1804

Comentários: Esse soneto é considerado o Auto-retrato do poeta. Ele foi corrigido, pelo próprio Bocage, na edição de 1804. Os versos "Inimigo de hipócritas, e frades" e "Num dia em que se achou cagando ao vento" foram substituídos, respectivamente, por "E somente no altar amando os frades" e "Num dia em que se achou pachorrento", no qual pachorrento tem o significado de paciente. Optamos por divulgar a primeira versão do poema porque a consideramos mais original. Nesse soneto, no qual o poeta vê com humor e um certo cinismo as suas desventuras, percebe-se toda a instabilidade do poeta, tanto no sentido físico, quanto no moral. Ele é incapaz de assistir, aqui empregado no sentido de morar, "num só terreno".

Apenas vi do dia a luz brilhanteLá de Tubal(1) no empório celebrado,Em sangüíneo caráter foi marcadoPelos destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros(2) a morte devoranteMe roubou, terna mãe, teu doce agrado;Segui Marte(3) depois, enfim meu fadoDos irmãos, e do pai me pôs distante.

Vagando a terra curva, o mar profundo, Longe da pátria, longe da ventura Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura Essas quimeras, esses bens no mundo, Suspiro pela paz na sepultura.

Glossário1- Tubal viveu em Setúbal, conforme a história mítica2- Qüinqüênio, Espaço de 5 anos3-Deus latino da guerra

Comentários:

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Nesse soneto Bocage faz referência a morte de sua mãe. Em seguida ele nos fala sobre a sua entrada para Marinha de Guerra e sobre as suas viagens. Essa idéia é reforçada com a presença da "Marte" o deus romano da guerra. Finalizando o poema o eu-lírico, que deseja a paz da sepultura, se opõem aos homens que procuram como loucos os bens materiais, que não passam de quimeras, ou seja, sonhos fantasiosos.

Ó tranças, de que Amor prisão me tece, Ó mãos de neve, que regeis meu fado! Ó Tesouro! ó mistério! ó par sagrado, Onde o menino alígero(1) adormece!

Ó ledos(2) olhos, cuja luz parece Tênue raio do sol! Ó gesto (3) amado, De rosas e açucenas semeado Por quem morrera esta alma, se pudesse!

Ó lábios, cujo riso a paz me tira, E por cujos dulcíssimos favoresTalvez o próprio Júpiter (4) suspira!

Ó perfeições! Ó dons encantadores! De quem sois?... Sois de Vênus?(5) - É mentira; Sóis de Marília, sois de meus amores.

Glossário

1 - Cúpido / Literalmente, alígero significa rápido ligeiro. 2- Risonho alegre 3 - significa rosto, é muito comum na poesia clássica 4 - Deus supremo, o pai de todos 5 - Deusa da beleza e do amor

Comentários: Esse soneto é um ótimo exemplo do estilo árcade. Nele temos a presença da natureza e de figuras mitológicas como Vênus e Júpiter. O poema é construído baseado na oposição beleza e o seu efeito. As mãos da musa tecem o fado do poeta, os seus lábios tiram a sua paz. A beleza da mulher amada é detalhada por quase todo o poema e, no final, ela é comparada a Vênus, deusa da beleza e do amor, e em nada perde para ela, pois até mesmo Júpiter por ela suspira.

Da pérfida(1) Gertrúria o juramentoParece-me que estou inda escutando,E que inda ao som da voz suave e brandoEncolhe as asas, de encantado, o vento:

No vasto, infatigável pensamentoOs mimos da perjura(2) estou notando...Eis Amor, eis as Graças festejandoDos ternos votos o feliz momento.

Mas ah!... Da minha rápida alegriaPara que acendes mais as vivas cores,Lisonjeiro pincel da fantasia?

Bastam, cega paixão, loucos amores;Esqueçam-se os prazeres de algum dia,

Glossário

1 - traidora, desleal, infiel, que mente a fé jurada2 - que jura em falso

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Tão belos, tão duráveis como as flores.

Comentários: Tudo leva a crer que esse soneto foi inspirado na traição de Gertrudes (Gertrúria) que casou-se com o irmão de Bocage, Gil Bocage, quando o poeta estava na Índia. Nesse poema percebe-se a dor e amargura do eu-lírico ao perceber que sua amada o traiu. A conclusão do poema é muito cínica. O amor é comparado com as flores, belas, porém, pouco duradouras.

Das terras a pior tu és, ó Goa,Tu pareces mais ermo, que cidade;Mas alojas em ti maior vaidade Que Londres, que Paris, ou que Lisboa:

A chusma(1) de teus íncolas (2) pregoa Que excede o grão-Senhor na qualidade; Tudo quer senhoria; o próprio fradeAlega, para tê-la, o jus da c'roa!

De timbres prenhe (3) estás; mas ouro e prataEm cruzes, com que dantes te benzias Foge a teus infanções (4) de bolsa chata

Oh que feliz, e esplêndida serias, Se algum fusco Merlin,(5) que faz bagata Te alborcasse (6) a Pardaus (7) as senhorias

Glossário

1 - Grande quantidade, montão 2 - Moradores, habitantes 3 - Pleno, repleto, cheio 4 - Antigo título da nobreza 5 - Lendário mago da corte do Rei Arthur 6- Permutasse, trocasse 7 - Antiga moeda da Índia portuguesa

Comentários: Essa Goa sobre a qual Bocage descarrega o seu Sarcasmo é muito diferente daquela que foi conquistada por Afonso de Albuquerque e que se transformou no maior centro comercial do oriente. Na visão do poeta Goa é "Das terras a pior" , seus habitantes são pretensiosos e vivem se vangloriando do seu luxo e riqueza, porém o império está em franca decadência, o império está falido e corrupção toma conta de seus habitantes. Para reverter essa situação, concluí ironicamente o poeta, somente Merlin com sua poderosa magia.

Camões, grande Camões, quão semelhante Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! Igual causa no fez perdendo o Tejo Arrostar(1) co sacrílego (2) gigante: (3)

Como tu, junto ao Ganges sussurranteDa penúria cruel no horror me vejo: Como tu, gostos vãos, que em vão desejo, Também carpindo estou, saudoso amante:

Glossário

1 - Olhar de frente 2 - Que cometeu sacrilégio, ato de impiedade, de profanação 3 Referência ao episódio do Gigante Adamastor, de Os Lusíadas. Representa o cabo das tormentas (Sul da África), limite do mar conhecido por Vasco da Gama. 4 - Escarneço, zombo

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Ludibrio (4) , como tu, da sorte dura Meu fim demando ao Céu, pela certeza De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!... Se te imito nos transes da ventura,Não te imito nos dons da Natureza.

Comentários: Nesse soneto Bocage invoca Camões, comparando as suas desventuras com as dele. As semelhanças entre os dois são muitas: Ambos cruzaram o cabo da Boa Esperança, eram boêmios, briguentos, tiveram muitos amores e morreram quase na miséria. No último terceto do poema, Bocage, como era de costume no período Neoclássico, admite que Camões é o seu modelo. No entanto, ele lamenta o fato de se equiparar ao "grande Camões" "Nos transes da ventura" e não no dom de fazer versos.

Incultas produções da mocidade Expondo a vossos olhos, ó leitores: Vede-as com mágoa, vede-as com piedade, Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da fortuna a variedadeNos meus suspiros, lágrimas, e amores; Notai dos males seus a imensidade, A curta duração dos seus favores:

E se entre versos de sentimento Encontrades alguns, cuja aparência Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violênciaEscritos pela mão do Fingimento,Cantados pela voz da Dependência.  

Comentários: Esse soneto pode ser considerado como o julgamento literário que Bocage faz dos poemas que escreveu na juventude. Ao criticá-los, ele crítica também o estilo da época e o fingimento das composições árcades. Por meio da forma imperativa, ele amplia a intensidade apelativa do poema e pede aos leitores para que tenham piedade de seus versos, pois é só piedade eles buscam. A utilização de iniciais maiúsculas em "Fingimento" e "Despotismo" personifica idéias abstratas. Ao fazer isso, ele pode estar tentando transferir a eles um pouco da responsabilidade pela autoria dessas "Incultas produções".

Lembrou-se no Brasil bruxa insolenteDe amar ao pobre mundo estranha peta; (1) Procura um mono (2), que infernal careta

Glossário

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Lhe faz de longe, e lhe arreganha o dente:

Pilhando-o por mercê do Averno (3) ardente, Conserva-lhe as feições na face preta; Corta-lhe a cauda, veste-o de roupeta, E os guinchos(4) lhe converte em voz de gente:

Deixa-lhes os calos, deixa-lhe a catinga;Eis entre os Lusos o animal sem rabo Prole(5) se aclama da rainha Ginga: (6)

Dos versistas se diz modelo e cabo; A sua alta ciência é a mandinga, O seu benigno Apolo (7) é o Diabo.

1 - Mentira 2 - Designação geral para os macacos 3 - Inferno 4 - Som agudo e inarticulado do homem e de alguns animais 5 - Geração, progênie, descendente 6 - Rainha Ginga, da angola. 7 - Deus Grego-romano, o mais belo dos deuses

Comentários: Esse soneto, de tom extremamente irônico, foi dedicado a Domingos Caldas Barbosa, presidente da Nova Arcádia. Nele, Bocage compara Caldas a um demônio que, para iludir os portugueses, disfarça seus guinchos em canções. Esse demônio, por ser descendente da rainha Ginga, adversária dos portugueses durante a época da colonização, é um inimigo do povo português.

Cartaz:

Quarta-feira catorze do corrente Se apresenta outra vem com bom cenário No Salitre a comédia do "Antiquário", A que tem concorrido imensa gente:

É obra traduzida novamente Por um poeta, amigo do empresário,Memorião,(1) que engole um dicionário,E orna de verdes pâmparos(2) a frente:

Em lugar de entremez(3) se há de seguir Do Franco a grande peça curiosa, Tragédia de "Sesóstris" que faz rir

Tem versos naturais, parecem prosa! Que venha o nobre público a aplaudir Espera a companhia obsequiosa.

Glossário

1 - quem tem boa memória, ou facilidade para decorar2 - ramos mais novos da videira3 - coposição teatral curta, de caráter jocoso

Comentários: Soneto com tom satírico. Nele é anunciado a repetição de uma peça, cuja tradução é atribuída a Belchior Manuel Curvo Semedo, membro da Nova Arcádia. No entanto, essa peça só está sendo apresentada porque o tradutor é "amigo do empresário". Note que a peça será apresentada em uma quarta-feira, referência irônica às reuniões da Nova Arcádia que, por acontecerem às quartas-feiras, ficaram conhecidas como "quartas-

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feiras de Lereno".

Vós, ó Franças, Semedos, Quintanilhas,Macedos e outras pestes condenadas; Vós, de cujas buzinas penduradas Tremem de Jove(1) as melindrosas filhas;

Vós, néscios, que mamais das vis quadrilhas Do baixo vulgo insossas gargalhadas, Por versos maus, por trovas aleijadas, De que engenhais (2) as vossas maravilhas;

Deixai Elmano, que, inocente honrado Nunca de vós se lembra, meditando Em coisas sérias, de mais alto estado.

E se quereis, os olhos alongando, Ei-lo! Vede-o no Pindo (3) recostado,De perna erguida sobre vós...

Glossário

1 - Outro nome de Júpiter. 2 - Inventais, traçais, maquinais 3 - Nome do monte consagrado a Apolo e às musas na Grécia antiga

Comentários: O tom desse soneto é irônico. Nele, Bocage compara os membros da Nova Arcádia à "pestes condenadas". Ele ainda zomba deles usando nomes árcades como Jove e Pindo. Essas "pestes", como diz Bocage, fazem uma poesia maçante e vivem perseguindo Elmano, que, além de ser um poeta superior, é um homem honrado, que nunca se lembra deles porque está ocupado com a verdadeira poesia "coisas sérias, de mais alto estado". A superioridade de Elmano fica clara no último terceto: ele está no Pindo sob a proteção de Apolo e das musas enquanto que os outros... Em algumas publicações esse verso é completado com "mijando" ou "cagando".As duas palavras se encaixam perfeitamente no verso, ou seja, a métrica e rima ficam perfeitas.

Sanhudo,(1) Inexorável(2) Despotismo,(3)Monstro que em pranto, em sangue a fúria cevas,(4)Que em mil quadros horríficos te enlevas,Obra da Iniqüidade(5) e do Ateísmo;

Assanhas o danado Fanatismo Porque te escore o tronco onde te enlevas; Porque o sol da Verdade envolva em trevas,E sepulte a Razão num denso abismo:

Da sagrada Virtude o colo pisas, E aos satélites vis da prepotência De crimes infernais o plano gizas:(6)

Glossário

1 - temível2 - inabalável3 - sistema de governo com poder absoluto e arbitrário4 - alimentar, nutrir5 - injustiça6 - delinear, traçar

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Mas, apesar da bárbara insolência, Reinas só no ext´rior, não tiranizas Do livre coração a independência.

Comentários: Esse é um soneto que reflete as idéias liberais da Revolução Francesa. No poema existe uma atitude prê-romântica, pois o Despotismo opressor não consegue atingir o coração que é livre. Vale lembrar que os autores do Romantismo, que estaria por vir, tinham posições políticas muito semelhantes a essas. Por isso, reforça-se ainda mais a antecipação romântica de Bocage.

Liberdade, onde estás? Quem te demora?Quem faz que o teu influxo em nós não caia? Por que (triste de mim)! por que não raia Já na esfera de Lísia(1) a tua aurora?

Da santa redenção é vinda a horaA esta parte do mundo, que desmaia: Oh! Venha... Oh! Venha, e trêmulo descaia Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal, que frio e mudo Oculta o pátrio amor, torce a vontade,E em fingir, por temor, empenha estudo:

Movam nossos grilhões tua piedade;Nosso nume tu és, e glória, e tudo, Mãe do gênio e prazer, oh Liberdade!

Glossário

1 - Esfera lísea - o contexto indica que se refere a Portugal

Comentários: Esse é outro soneto ideológico. Nele existe a defesa dos ideais liberais e a crítica ao Despotismo opressor. Por isso, o poema torna-se uma espécie de canto a liberdade, que possuí a função de acorda Portugal, uma terra que ainda está adormecida. Novamente temos o uso de iniciais maiúsculas para personificar idéias abstratas.

Importuna Razão, não me persigas; Cesse a ríspida voz que em vão murmura;Se a lei do Amor se força da ternura Nem domas, nem contrastas, nem mitingas:(1)

Se acusas os mortais, e os não abrigas, Se (conhecendo o mal) não dás a cura, Deixa-me apreciar minha loucura,Importuna Razão, não me persigas.

Glossário

1 - amansar, abrandar2 - vergonha, pudor3 - sofrer, chorar

Page 8: poemas de bocage

É teu fim, teu projeto encher de pejo(2) Esta alma, frágil vítima daquela Que, injusta e vária, noutros laços vejo:

Queres que fuja de Marília bela, Que a maldiga, a desdenhe; e meu desejo É carpir,(3) delirar, morrer por ela.

Comentários: Nesse soneto temos traços do Arcadismo e também do Romantismo. Marília está em outros laços, que pode ser entendido como outros braços. Essa visão real, essa "Importuna Razão" persegue o eu-lírico, que, aos invés de lhe dar ouvidos, prefere apreciar sua loucura. A Razão, personificada pelo uso de iniciais maiúsculas, pede para o eu-lírico fuja de sua amada, porém, seu desejo "É carpir, delirar, morrer por ela.". Nota-se claramente que nesse poema existe um conflito entre a razão Arcade e a emoção tipicamente Romântica.

Oh retrato da morte, oh Noite amiga Por cuja escuridão suspiro há tanto! Calada testemunha de meu pranto, De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga,Dá-lhes pio(1) agasalho no teu manto; Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, oh cortesãos da escuridade,Fantasmas vagos, mochos(2) piadores, Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;Quero a vossa medonha sociedade,Quero fartar meu coração de horrores.

Glossário

1 - piedoso2 - espécie de coruja

Comentários: Nesse soneto percebe-se claramente os traços prê-românticos de Bocage. A morte se faz presente, confunde-se com a noite e é amiga do eu-lírico, mais que isso, ela é a "Calada testemunha" do seu pranto. Além disso, surgem fantasmas e mochos, figuras noturnas, que como ele são inimigos da claridade. Claridade essa que não deve ser vista simplesmente como luz, mas sim como a luz do conhecimento e da razão, que se opõe a noite, ou seja, a incerteza, aos mistérios da alma. No entanto, esse clima Romântico, que envolve o eu-lírico, não chega até a mulher amada, que dorme tranqüilamente.

Meu ser evaporei na lida(1) insana Do tropel(2) de paixões, que me arrastava Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava

Glossário

Page 9: poemas de bocage

Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana(3) Existência falaz me não dourava! Mas eis sucumbe Natureza escrava Ao mal, que a vida em sua origem dana. (4)

Prazeres, sócios meus e meus tiranos! Esta alma, que sedenta em si não coube No abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roubeGanhe um momento o que perderam anos, Saiba morrer o que viver não soube.

1- Vida 2 - Grande confusão, desordem 3- Que se orgulha de algo

Comentários: Esse soneto, de tom confessional, é um dos poemas de Bocage mais reproduzidos no Brasil. Ele foi escrito pouco antes da morte de Bocage e é outro exemplo do pré-romântismo, porque a emoção, mais uma vez é contraída pela rigidez do verso. No poema, o eu-lírico nos mostra como a sua vida foi consumida em prazeres e amores. No último terceto ele invoca Deus, arrepende-se dos erros cometidos em vida e, mostrando que está totalmente reconciliado com a religião, espera encontrar na eternidade o perdão Divino.

Já Bocage não sou!... À cova escura Meu estro vai parar desfeito em vento...Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura Em prosa e verso fez meu louco intento; Musa!...Tivera algum merecimentoSe um raio da razão seguisse pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria Brade em alto pregão à mocidade, Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino(1) fui...A Santidade Manchei!...Oh! Se me creste, gente ímpia, Rasga meus versos, crê na eternidade.

Glossário

1 -Pedro Aretino famoso escritor satírico italiano que dosa desregramento, malevolência com humor

Comentários: Esse talvez seja um dos sonetos mais famosos de Bocage. Ele é o exemplo perfeito do termo prê-romântico porque as emoções são contraídas, ou seja, estão presas a rigidez do verso perfeito e a forma fixa de soneto. Esse poema foi escrito pouco antes da morte do poeta. Nele vemos um eu-lírico arrependido da sua vida desgarrada e reconciliado a vida religiosa. Ao dizer "Rasga meus versos, crê na eternidade" ele se desprende dos

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valores materiais e mostra-se totalmente voltado para a eternidade.