Poesia Barroca - Antologia do Século XVII em Língua Portuguesa.pdf

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    POESIA BARROCA

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    POESIABARROCA

    Nadi Paulo Ferreira

    POESIA - SRIE RAZES

    EDITORAGORADA ILHA

    ANTOLOGIADOSCULO XVIIEM LNGUAPORTUGUESA

    DIREO: MARIADO AMPARO TAVARES MALEVAL

    Apoio: Fundao Cultural ede Pesquisa Noel Rosa, da UERJ

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    NADI PAULO FERREIRA

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    COPYRIGHT: NADI PAULO FERREIRA

    DIREODASRIE RAZES: MARIADO AMPARO TAVARES MALEVAL

    CONSELHO EDITORIALANDRA C. FRAZODA SILVA (UFRJ)CARLOS PAULO MARTNES PEREIRO (UNIVERSIDADE DA CORUNHA)

    FERNANDO OSRIO RODRIGUES (UFF)LEILA RODRIGUES ROEDEL (UFRJ)LNIA MRCIADE MEDEIROS MONGELLI (USP)DIETER KREMER (UNIVERSIDADEDE TRIER)NADI PAULO FERREIRA (UERJ)SUELY REIS PINHEIRO (UFF)YARA FRATESCHI VIEIRA (UNICAMP)

    CAPA: PAULO FRANA

    ILUSTRAODACAPA: PENITNCIA, DE VELSQUEZREVISO DOS TEXTOS COMPILADOS: ROBSON DUTRADIGITAO GERAL: LUCIANA BARBOSA DUARTE E MARCELO BASTOSMATOS, BOLSITAS DE INICIAO CIENTFICA DO INSTITUTO DE LETRASDA UERJEDITOR: PAULO FRANA

    RIO DE JANEIRO, MARO DE 2000

    EDITORA GORADA ILHATEL.FAX: 021 - 393 4212

    E-mail [email protected]

    FERREIRA, Nadi PauloPoesia Barroca - Antologia do sculo XVII emlngua portuguesa/ Nadi Paulo Ferreira

    204 pginas - Rio de Janeiro, maro de 2000

    Editora gora da Ilha - ISBN 86854Poesia portuguesa

    CDD - 869.1P

    Ficha catalogrfica

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    PSICANLISE E LITERATURA: CAMINHOS CRUZADOS -Srgio Nazar David................................................................9

    O BARROCO NA POESIA..............................................11Contexto histrico.............................................................13Movimento artstico-literrio..............................................21

    Poesia lrica.....................................................................26Poesia satrica..................................................................27Cancioneiros....................................................................28Formas poticas................................................................30Amor e sublimao...........................................................31Quadro sintico..................................................................39

    ANTOLOGIA.....................................................................41

    ANASTCIO AYRES DE PENHAFIEL..............................43Labirinto Cbico................................................................43

    ANTNIO BARBOSA BACELAR.....................................45Amoroso desdm num belo agrado (soneto)............................45A um bem perdido (soneto)..................................................46A um peito cruel (soneto)....................................................46A um sonho (soneto)..........................................................47

    A uma ausncia (soneto).....................................................47A uma despedida (soneto)...................................................48A umas saudades (soneto)....................................................48Conformando-se com a sua tristeza (soneto)..............................49

    Sumrio

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    De consoantes forados (soneto)............................................49Queixando-se (soneto)........................................................50

    ANTNIO SERRO DE CRASTO.....................................51A uma dama chamada Grcia muito interesseira (dcima)....51A uma dama que desmaiou de ver uma caveira (mote/glosa)....52

    BERNARDO VIEIRA RAVASCO........................................55Pelos mesmos consoantes aplicando-as a um cadver..............55

    D. FRANCISCO MANUEL DE MELO................................59Antes da confisso (soneto)..................................................59

    Aplogo da morte (soneto)..................................................60A uma N. de Lima, que no respondia s cartas (dcima).........60Contra as fadigas do desejo (soneto).....................................61Em dia de Cinza, sobre as palavras - Quia pulvis es (soneto).....61Escusa-se ao Cu com a causa do seu delrio (soneto).............62Memrias e queixas (soneto)...............................................62Mundo comdia (soneto)..................................................63Mundo incerto (soneto)......................................................63Ao descuido da vida (ode)...................................................64

    D. FRANCISCO DE PORTUGAL......................................67S contra vs pequei, Senhor divino (salmo)..........................67

    D. TOMS DE NORONHA..............................................71Amor me tem por vs negro ferrado (soneto)........................71A um casamento que fez em Lisboa um fulano de Mello com umafulana de Mello, ambos velhos.............................................72

    A uma freira que lhe mandou pedir meias e sapatos para entrar emuma comdia, e um vestido (cano)....................................72A uma mulher que sendo velha se enfeitava (cano)..............75A uns noivos, que se foram receber, levando ele os vestidosemprestados, e indo ela muito doente, e chagada...........................77A uma mulher acautelada em fechar a porta, mas diziam que andavacom o cura........................................................................78s poesias que se fizeram a uma queimadura da mo de uma senhora(soneto)...........................................................................78

    Figura do Entrudo (soneto).....................................................78O sofrimento meu cordeiro mudo (soneto).............................79Pragas se chorar mais por uma dama cruel (soneto)................80

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    EUSBIO DE MATOS......................................................81Retrato de uma Dama (oitavas)............................................81

    FRANCISCO DE PINA E DE MELO..................................85A uma esttua de Baco; em cima de uma pipa de gua com umacaneca na mo, que o escultor delineou rindo, e hoje com os golpesque lhe tinha dado o tempo parecia chorando (soneto).............85Ao mesmo assunto na circunstncia de a coroar depois de morta(soneto)..................................................................................86Delrios da natureza (soneto)................................................86

    FRANCISCO DE VASCONCELHOS COUTINHO.................87

    fragilidade da vida humana (soneto)......................................87A uma suspeita (soneto)......................................................88Aos gostos breves do mundo (soneto)......................................88Comoo do universo na morte de Cristo (soneto)..................89Comparando o seu amor ao Fnix (soneto)............................89Dor de Maria Madalena na paixo de Cristo (soneto)...............90Mais sente quem se queixa, que quem se cala (soneto)..............91Maria, a me-virgem (soneto)...............................................91

    FREI ANTNIO DAS CHAGAS (Antnio da Fonseca Soares).........................................................................................93A Santa Maria Madalena (soneto)........................................93A uma dama, que deu uma queda indo espevitar uma vela(romance).........................................................................94A uma caveira (soneto).......................................................95 vaidade do mundo (soneto)..............................................95Aos olhos de Flis enfermos com umas nvoas, e por isso ausentes

    (soneto)............................................................................96Fugida para o deserto e desengano do mundo.........................97

    GREGRIO DE MATOS GUERRA...................................101A Cristo crucificado (soneto)...............................................101A uma mulata por nome Catona..........................................102Agradecimento de uns doces a sua freira (soneto)...................103Ao desembargador Belchior da Cunha Brochado...................104Defende-se o bem que faltou nas nsias do esperado, pelos mesmos

    consoantes (soneto)...........................................................105Juzo anatmico dos achaques que padecia o corpo da repblica,em todos os membros, e inteira definio do que em todos os tempos

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    a Bahia (eplogos)..........................................................105 cidade da Bahia (soneto)................................................107Ao padre Loureno Ribeiro, homem pardo que foi vigrio da

    freguesia do Pass (stira)..................................................108Define a sua cidade (mote/glosa)..........................................110Conselhos a qualquer tolo para parecer fidalgo, rico e discreto(soneto)..........................................................................112Ao mesmo com presunes de sbio, e engenhoso (soneto)....112Segunda impacincia do poeta (soneto)...................................113A uma saudade (soneto)....................................................113Admirvel expresso de amor mandando-se-lhe perguntar comopassava (soneto)................................................................114Solitrio em seu mesmo quarto vista da luz do candeeiro porfia opoeta pensamentear exemplos de seu amor na borboleta (soneto)...115Definio do amor (romance)..............................................115A N. Senhor Jesus Cristo com atos de arrependido e suspiros deamor (soneto)..................................................................122Achando-se um brao perdido do menino Deus de N. S. dasMaravilhas, que desacataram infiis na S da Bahia (soneto)....123No sermo que pregou na Madre de Deus D. Joo Franco de Oliveira

    pondera o poeta a fragilidade humana (soneto)......................123Desenganos da vida humana metaforicamente (soneto)..........124Pretende o poeta moderar o excessivo sentimento de Vasco deSouza de Paredes na morte da dita sua filha (soneto)..............124Perguntou-se a um discreto (mote/glosa)..............................125Responde a um amigo com as novidades que vieram de Lisboa noano de 1658 (soneto)........................................................126Ao casamento de Pedro lvares da Neiva (soneto)................127

    JERNIMO BAA...........................................................129A uma crueldade formosa (madrigal)......................................129A uma formosa cruel (madrigal).............................................130A uma trana de cabelos negros (soneto).................................130Ao menino Deus em metfora de doce (romance)..................131Achando alvio nas suas penas (soneto)................................133Dando-lhe uma rosa (madrigal)...........................................133A uma rosa (soneto)..........................................................134A umas beatas (romance satrico burlesco)...........................135

    JORGE DA CMARA......................................................147Ao tempo (soneto)............................................................147

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    De um engenho a um cavaleiro em resposta de lhe perguntar deque cor era seu amor (soneto)............................................148

    MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA................................149Comparaes no rigor de Anarda (dcima)..........................149Pintura de uma dama conserveira Rosa e Anarda (soneto)......149Rosa e Anarda.................................................................151

    SROR MADALENA DA GLRIA...................................153A minha cega porfia (dcima).............................................153A uma caveira pintada em um painel que foi retrato (soneto)....154A uma saudade (soneto).....................................................154

    Tenho amor, sem ter amores (mote e glosa).............................155Como d vida o que mata (mote/glosa)....................................156Queixas da sorte (soneto)...................................................156Se meu peito ainda ferido (dcima).........................................157

    SROR MARIA DO CU.................................................159Amor perfeito amor de Deus (glosa) .......................................159Amoras amores (glosa)......................................................160Cntico ao Senhor pelas frutas............................................160Frutas novas mocidade......................................................162Mortal Doena (oitavas).....................................................163Madre Silva desdm de freira.............................................164Para pensar ao Menino Jesus.............................................164

    SROR VIOLANTE DO CU..........................................167Amor, se uma mudana imaginada (soneto)..........................167Corao, basta o sofrido (dcimas).........................................168

    Enfim fenece o dia (madrigal).............................................169Se apartada do corpo a doce vida (soneto)................................169Solilquio da alma com o Senhor crucificado em a ltima hora, e agoniada morte, para se ler, e dizer a qualquer agonizante (romance).....170Vida que no acaba de acabar-se (soneto)............................177Vozes de uma dama desvanecida de dentro de uma sepultura, quefala a outra dama, que presumida entrou em uma igreja com oscuidados de ser vista e louvada de todos; e se assentou a um tmulo,que tinha este epitfio que leu curiosamente (soneto)..............178

    TOMS PINTO BRANDO..............................................179A uma dama, que trazia uma memria no dedo, cuja pedra era

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    uma caveirinha (soneto).....................................................179A uma fonte, que secou, tendo em cima uma esttua de Cupido,foi assunto acadmico (romance)..........................................180

    A um relgio de areia que esta era das cinzas de um basalisco; e foiassunto acadmico (epigrama)...............................................181Queixam-se todos os defuntos, que houve na epidemia que padeceuLisboa, o ano de 1723 (soneto).............................................181

    GLOSSRIO................................................................... 183

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................199

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    Do mesmo modo que os estudos brasileiros perdem cada vezmais espaos no exterior, tambm aqui no Brasil temos observadoalgo bastante semelhante com relao aos estudos de literatura ede cultura portuguesas. Os argumentos para tal seguem os trilhasde um tacanho suposto realismo que quer reduzir o ensino a noesbsicas, j que o mercado de trabalho e a urgncia da vida modernano podem mais esperar o que dizem anos e anos por umaformao slida. Encurtam-se e pulverizam-se os cursos de

    graduao em Letras com reformas curriculares, e a palavra dahora enxugar. Nesta mar, vo-se ao ralo os estudos clssicos, aliteratura portuguesa, depois ir a brasileira tambm. Osresponsveis costumam posar depois na fotografias dos afeitosao seu tempo, que sempre existiram em todas as pocas.

    Nadi Paulo Ferreira, no entanto, decidiu remar contra a corrente.Dedica seu tempo aos estudos portugueses e difuso da culturaportuguesa. E como se isto j no fosse muito, opta por uma leituranada reconfortante, a partir da psicanlise. Digo isto, por acreditar,

    assim como Nadi, que a psicanlise um saber novo. Novo porconsiderar a singularidade, pondo em suspenso tudo que se soubeat ento. Novo tambm porque se articula experincia. E aindamais porque aqui preciso contar com o tempo. Portanto, tudo

    SRGIO NAZAR DAVID

    Psicanlise e Literatura -caminhos cruzados

    APRESENTAO

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    que se quiser construir sem implicao subjetiva para a psicanlisetem pouco ou nenhum valor.

    Nesta antologia comentada da poesia barroca, Nadi Paulo

    Ferreira insere-se numa tradio de estudiosos do perodo emsuas particularidades na literatura portuguesa, tradio que passapor Spina e Santilli, Natlia Correia e Maria Luclia GonalvesPires. Ao faz-lo preenche uma lacuna do ensino universitriobrasileiro, disponibilizando em livro ao estudante textos que nomomento circulam, na melhor das hipteses, xerocopiados.

    Em sua j longa trajetria como professora universitria epsicanalista, Nadi optou por defender e sustentar aquilo que uneliteratura e psicanlise. Jacques Lacan afirmava, ao falar aos seus

    pares psicanalistas, que preciso saber escutar os poetas. Freudformulou sob a forma de articulaes tericas vrios conceitosat ento ignorados, e para discuti-los no cansou de recorrer aShakespeare, Sfocles, Dostoivski, entre outros. No se trata,em hiptese alguma, de psicanalisar o escritor nem muito menoso personagem. Mas sim de observar sob que prisma este ou aqueledrama humano -nos apresentado. Sim, e no por qualquer um,mas por algum que pode s vezes mover pequenos mundos efundos atravs da palavra escrita.

    Portanto, esta antologia de poetas barrocos que a professora epsicanalista Nadi Paulo Ferreira nos apresenta singular, peloque defende a literatura portuguesa e a psicanlise e sobretudopelo modo pelo qual o faz, trazendo literatura barroca,especialmente poesia barroca, uma viso nova, fora da tradioestilstica, afeita ao estudo de tais autores sustentado naenumerao de figuras de linguagem simplesmente, e fora tambmda tradio culturalista, que costuma ver o texto como resultado

    da histria. A contribuio singular deste trabalho liga-se ao fato dereunir informaes bsicas e de somar a estas uma leitura nova,dialogando com um outro campo de saber a psicanlise , e abrindonos estudos literrios trilhas at aqui inexploradas.

    de se esperar que este trabalho cumpra ento o seu papel, ode auxiliar professores de literatura portuguesa no estudo da literaturabarroca, seja sob esta ou aquela perspectiva terica, mas tambm ode levar adiante aquilo que vem marcando ao longo do tempo ocaminho da professora Nadi, hoje ocupando mais do que

    merecidamente o posto de professora titular de Literatura Portuguesada Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    Srgio Nazar David - Professor de Literatura Portuguesa da UERJ.

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    AbsolutismoO sculo XVI j marcado pela tendncia ao regime absolutista,

    que atingir seu apogeu no sculo XVII, coincidindo, portanto, como barroco. O declnio desse regime poltico comea em 1789,estendendo-se, a partir da, at o sculo XIX, com exceo daInglaterra, onde entra em decadncia anteriormente.

    O que entendemos por Absolutismo? Vou responder a essaquesto, recorrendo definio de Jacques Bnigne Bossuet (1624-1704), em Poltica tirada das prprias palavras das SagradasEscrituras, quando define as quatro caractersticas ou qualidadesessenciais da autoridade real: sagrada, paternal, absoluta e estsujeita razo.

    A riqueza, advinda do comrcio martimo, permitindo aexpanso da mquina burocrtica, a criao de rgos destinados

    organizao militar e poltica exterior, as guerras internacionais,fortalecendo o poder do estado, e a Revoluo Protestante, rom-pendo com a unidade do catolicismo, foram as principais causas dofortalecimento do poder real (Absolutismo).

    Declnio econmico das cidades italianas (1600-1800)Depois do saque de Roma, em 1527, quando as tropas

    espanholas e alemes, sob o comando do rei espanhol Carlos V,saquearam a cidade de Roma, causando uma destruio lamentvel,

    a Itlia comea seu declnio econmico. Os prncipes italianos,favoritos de Carlos V, continuaram como governantes dos estadositalianos, presidindo suas cortes, protegendo as artes e ornamentando

    Contexto histrico

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    as cidades com edifcios suntuosos; mas na verdade eramverdadeiros tteres espanhis. A partir de 1600, esse declnio polticoliga-se ao econmico em funo do deslocamento das rotas comer-

    ciais do mediterrneo para o Atlntico, aps a descoberta da Amrica.As cidades italianas vo perdendo a supremacia como centros docomrcio mundial.

    Em Frana, supremacia de Richelieu (1624-1642)A Frana se envolve numa guerra com a Espanha enquanto,

    em seu territrio, se trava uma luta sangrenta entre catlicos ehuguenotes (calvinistas).

    Em 1593, Henrique IV (Henrique de Navarra, 1598-1610), o

    fundador da dinastia Bourbon, embora pertencesse facohuguenote, renuncia ao calvinismo e se converte ao catolicismo, jque tinha percebido que os franceses no aceitariam um rei que noseguisse Roma. Em 1598, com a promulgao do Edito de Nantes,Henrique IV garante a liberdade religiosa e os direitos polticos dosprotestantes. Apaziguadas as controvrsias religiosas, Henrique IVcomea um trabalho de reconstruo do seu reinado. Assassinadopor um fantico religioso, em 1610, deixa como herdeiro Lus XIII,que, na poca, tinha apenas nove anos de idade. A Frana governadapor sua me, Maria de Mdicis, at 1624. Lus XIII, livre da regnciamaterna, escolhe para a administrao de seu reino o clrigo Richelieu,a quem nomeia primeiro-ministro. Richelieu dedicou-se a doisobjetivos: fortalecer a autoridade real, eliminando todos os obstculos sua frente, e tornar a Frana uma grande potncia europia,libertando-a do que ele chamava o anel Habsburgo.

    A dinastia Bourbon, assegurada pelo poder divino, permaneceno governo at a queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789.

    Domnios dos Habsburgo e poderio espanholOs sculos XIV e XV, na Alemanha, foram marcados pela luta

    dos prncipes entre si e contra os imperadores. S a partir de 1450,os prncipes alemes acabaram com as disputas, o que possibilitouo fortalecimento dos Habsburgo da ustria, que teriam um papelpreponderante no sculo XVII.

    Enquanto Lus XI, na Frana, e Henrique VIII, na Inglaterra,fortaleciam o poder real, Fernando e Isabel faziam o mesmo em

    Espanha. As lutas entre Castela e Arago, na Idade Mdia tardia,chegaram ao fim com o casamento de Fernando, herdeiro de Arago,e Isabel, herdeira de Castela. Em 1550, a Espanha, unificada por

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    Isabel e Fernando, j era um reino forte e poderoso.Em 1516, o neto dos reis catlicos, Isabel e Fernando, se torna

    Carlos I, cujo pai pertencia ao ramo dos prncipes Habsburgo,

    herdando o reino de seus avs. Trs anos depois, Carlos I eleitoimperador do Sacro Imprio Romano como Carlos V (1519-1546),unindo, assim, a Espanha Europa central e ao sul da Itlia. CarlosV desejava ser o restaurador da unidade religiosa da Cristandade,rompida pela revoluo protestante, tornando-se, assim, o sucessorda Roma imperial.

    Aos 56 anos, abdica do reino e se retira para um mosteiro. Osprncipes alemes do ramo Habsburgo escolhem um irmo,Fernando I, para suceder Carlos V como imperador do Sacro Imprio

    Romano. As possesses espanholas e italianas e as colnias ultra-marinas passaram para seu filho, que se tornou rei da Espanhacomo Filipe II (1556-1598).

    Filipe II reina durante o apogeu da glria nacional e estimula aviolncia da Inquisio espanhola. Seu maior erro poltico foi aguerra contra a Inglaterra. Filipe II, enfurecido pelos ataques dosnavios ingleses ao comrcio espanhol, envia, em 1588, a invencvelArmada para destruir a esquadra da rainha Elisabeth I. A maiorparte dos navios espanhis foi afundada no Canal da Mancha e oreino nunca se recuperou inteiramente desta derrota.

    Em Portugal, D. Joo III e a Rainha D. Catarina, depois deassistiram morte de nove filhos, tiveram dois filhos quesobreviveram, D. Joo e D. Maria.

    A filha, D. Maria, se casou com o prncipe Felipe II, morrendologo depois do nascimento do seu filho, prncipe D. Carlos.

    O filho, D. Joo, desde o nascimento era muito fraco e doente.Seus pais resolveram, ento, providenciar seu casamento o mais

    rpido possvel. Com quatorze anos de idade, D. Joo se casa coma prima, D. Joana, morrendo de uma crise de diabetes, antes donascimento de seu filho, D. Sebastio. Segundo os historiadores,D. Joo amava intensamente sua jovem esposa e eles foram sepa-rados, assim que souberam que D. Joana estava grvida. A mortedo marido foi escondida at que seu filho nascesse.

    D. Sebastio morre sem deixar herdeiros, em Alccer Quibir(batalha contra Marrocos), em 4 de agosto de 1578. Dois anosdepois, Portugal incorporado ao reinado de Filipe II, permanecendo

    at 1640 (dinastia filipina em Portugal: Filipe II - 1580/1598, FilipeIII - 1598/1621 e Filipe IV - 1621/1640).

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    A Reforma (revoluo religiosa)A revoluo religiosa contra o catolicismo est diretamente ligada

    formao de uma conscincia nacional no norte da Europa e ao

    fortalecimento do Absolutismo.Em 1521, na Alemanha, que ainda pertencia ao Sacro ImprioRomano, sob o reinado de Carlos V, Martinho Lutero (1483-1546)rompe com o poder eclesistico de Roma, recusando-se a se retratardas crticas que vinha fazendo venda de indulgncias, e excomun-gado como herege pelo papa Leo X. A partir da, at sua morte, em1546, Lutero se empenhou por uma igreja alem, autnoma eindependente do Catolicismo.

    O sul da Alemanha permaneceu fiel ao catolicismo e o

    Protestantismo, criado por Lutero, ir se espalhar pela Dinamarca,Noruega e Sua.O grande lder da revoluo protestante na Sua foi Ulrich

    Zwingli (1484-1531), que organizou as foras anti-catlicas, fazendocom que, em 1528, quase todo o norte da Sua j tivesseabandonado o Catolicismo e aderido ao Protestantismo.

    Joo Calvino (1509-1564), de nacionalidade francesa, depoisde ter estudado na Universidade de Paris, vai estudar direito emOrlans, onde se converte aos ensinamentos de Lutero, tornando-se suspeito de heresia, o que fez com que fosse se refugiar, em1534, na Sua. Em 1541, passa a governar a cidade de Genebraat a sua morte, em 1564.

    Na Inglaterra, o golpe Igreja Romana dado por HenriqueVIII, que se elege, em 1531, chefe da Igreja Anglicana, independentede Roma e submetida exclusivamente sua autoridade. Os conflitosentre Henrique VIII e o papa encontraram receptividade na maioriada populao, que simpatizava com as revolues religiosas contra

    o Catolicismo. Alm disso, nos meio intelectuais, tnhamos a forteinfluncia do humanista Thomas More, que condenava uma sriede rituais catlicos, considerando-os meras supersties.

    A ruptura entre Inglaterra e Roma tem como cenrio a demorado papa Clemente VII em responder ao pedido de anulao docasamento de Henrique VIII com Catarina de Arago, com quemestava casado h dezoito anos. O rei estava apaixonado por AnaBolena e no tinha tido um filho homem para suced-lo no trono.Irritado, Henrique VII, em 1531, convoca uma assemblia de

    prelados, onde reconhecido como chefe da igreja inglesa. Emseguida, o Parlamento decreta uma srie de leis, cortando todos ospagamentos feitos a Roma e proclamando a Igreja Anglicana inde-

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    pendente e submetida, exclusivamente, ao poder do rei.

    Contra-Reforma ou Reforma Catlica (Conclio de Trento,

    1545-1653)A Contra-Reforma ou Reforma Catlica se caracterizou pelareao do Catolicismo s revoltas religiosas, que comearam aameaar a sua hegemonia.

    Apesar das reaes ao Protestantismo terem comeado com ospapas Adriano VI (o nico no italiano em quase um sculo e meio,e o ltimo at 1978) e Clemente VII (um Mdici), com Paulo III,1434-1549, e seus trs sucessores (Paulo IV, 1555-1559; Pio V,1556-1572; e Sisto V, 1585-1590) que o Catolicismo sofrer uma

    grande reformulao: administrao severa das finanas papais,preenchimento dos cargos eclesisticos com padres austeros ecombate aos clrigos que insistiam na ociosidade e no vcio.

    com o objetivo de redefinir as doutrinas da f catlica que opapa Paulo III faz a convocao de um conclio, em 1545, que serene na cidade de Trento. Este conclio, conhecido como o Concliode Trento, passou a se reunir, entre alguns intervalos, desde aprimeira convocao at 1653.

    Uma das principais deliberaes desse Conclio foi a censuraestabelecida oficialmente: o ndice dos Livros Proibidos, cujaprimeira lista foi publicada em 1564.

    Um dos efeitos mais imediatos da Reforma foi o aumento daperseguio religiosa e a instaurao de julgamentos em toda aEuropa. Giordano Bruno, um dos principais defensores da teoriaheliocntrica de Coprnico, foi julgado pela Inquisio romana, fun-dada em 1542, e queimado na fogueira em 1600.

    A fundao da Companhia de Jesus (1534)A Reforma Catlica contou com o apoio incansvel dos jesutas,os membros da Companhia de Jesus.

    Essa instituio religiosa, fundada, em 1534, por Incio deLoyola, nobre espanhol da regio basca, foi aprovada pelo papaPaulo III, em 1540. A Companhia de Jesus foi a mais militante dasordens religiosas e teve um papel importantssimo na expanso docatolicismo. Alm do trabalho de catequizao dos povos desco-bertos, foram os principais responsveis pela volta ao catolicismo,

    em lugares que tinham aderido ao Protestantismo, como a Polniae algumas regies do sul da Alemanha.

    Os jesutas se consideravam os soldados de Cristo e tinham

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    uma disciplina rgida, que se baseava na mais absoluta obedinciaao princpios da Igreja. No se contentavam em defender a f ecombater os protestantes e hereges. Desejavam propag-la at os

    mais longnquos recantos do mundo: converso ao catolicismo dosbudistas, dos muulmanos, dos persas da ndia (antigos persaszoroatristas, que, para escapar perseguio dos muulmanos, serefugiaram na ndia) e dos povos indgenas dos continentes recm-descobertos. Os missionrios jesutas se espalharam na frica, noJapo, na China, na Amrica do Norte e do Sul, fundaram colgios eseminrios na Europa e na Amrica. At o sculo XVIII, a Companhiade Jesus teve o monoplio da educao na Espanha e grande influn-cia na Frana.

    Revolta dos Pases Baixos (1567-1609)Os pases baixos, hoje conhecidos como Blgica e Holanda,

    continuavam sendo governados pela coroa espanhola. A Holandatinha se tornado refgio dos judeus peninsulares, dos dissidentesingleses aos Stuarts e dos huguenotes franceses (protestantes). Como correr do tempo, os calvinistas foram aumentando e passaram aconstituir maioria dos citadinos nas provncias holandesas do norte.Filipe II, rei da Espanha, insistia em tratar os Pases Baixos comomeras provncias e considerava todos os protestantes como traido-res. Alm disso, contriburam para a revolta de 1565 razeseconmicas, tais como a tributao elevada e a restrio ao comrcioem benefcio dos espanhis. Com o objetivo de erradicar os protes-tantes dos territrios sob o seu domnio, Filipe II enviou, em 1567, oduque de Alba com dez mil soldados para acabar com a revoltadeflagrada em 1565. A guerra, sangrenta e violenta por ambas aspartes, prosseguiu at 1609 e terminou com a vitria dos protestantes.

    Como resultado temos a fundao de uma repblica holandesa inde-pendente, compreendendo os territrios hoje includos na Holanda eo retorno ao domnio espanhol das provncias do sul ou belgas, nasquais a maioria da populao era catlica.

    Guerra dos 30 anos (1618-1648)Os Habsburgos dominavam a Bomia h mais de um sculo,

    embora os tchecos conservassem seu prprio rei. Quando o trono daBomia ficou vago, em 1618, Matias, imperador do Sacro Imprio

    Romano, resolveu que devia subir ao trono um parente seu, o duqueFernando de Estria. Mediante presses induziu eleio de FernandoII como rei da Bomia. O resultado foi a invaso do palcio do

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    imperador, em Praga, por nobres tchecos, e a proclamao da Bomiacomo um estado independente, tendo como rei Frederico, o eleitorcalvinista do Palatinado. Estoura a guerra, os Habsburgos vencem,

    Frederico punido e suas terras do vale do Reno so tomadas.A vitria dos Habsburgos provoca a reao dos governantesprotestantes da Europa setentrional. Os prncipes alemes, os reisCristiano IV da Dinamarca e Gustavo Adolfo da Sucia, se unem edeclaram guerra aos Habsburgos. A Frana se torna aliada dos pro-testantes. O conflito no mais religioso mas uma disputa entre osBourbons e os Habsburgos pelo domnio do continente europeu. Osprotestantes e os franceses aliados vencem a guerra, que teve a pazestabelecida pelo Tratado de Vestflia, em 1648. O Sacro Imprio

    Romano reduziu-se a uma mera fico: a Frana tem confirmada aposse de antigos territrios alemes na Lorena e na Alscia, a Suciaganhou territrios na Alemanha, reconhecida a independncia daHolanda e da Sua. Os prncipes alemes so reconhecidos comogovernantes com autonomia para governar os seus estados e compoder de fazer guerra e firmar paz, fazendo com que o Sacro ImprioRomano se tornasse uma fico.

    Apogeu do mercantilismo e afirmao do comrcio(1600-1700)

    O mercantilismo nada mais do que um conjunto de prticas quedepois foram seguidas por doutrinas, visando organizao dasatividades comerciais e industriais, para promover o fortalecimento dopoder do estado.

    As principais mudanas, na vida social europia do sculo XVII,foram marcadas pela revoluo comercial, o que se deuconcomitante ao fortalecimento do poder real (Absolutismo) e

    formao dos grandes imprios coloniais. A principal causa dessatransformao so os efeitos dos sucessos das navegaes, tendoos portugueses como pioneiros.

    O comrcio se expande e sai dos limites do Mediterrneo. Opequeno e slido monoplio do comrcio mantido pelas cidadesitalianas desfeito. Gnova e Veneza so substitudas pelo portosdas cidades de Lisboa, Bordus, Liverpool, Bristol e Amsterd.Alm das especiarias, passamos a ter o fumo (Amrica do Norte),o melado e o rum (ndias Ocidentais), o cacau, a quina e a cochonilha

    (Amrica do Sul), o marfim, os escravos e as penas de avestruz(frica ). Alm desses produtos, aumentou o comrcio do caf, doacar, do arroz e do algodo, que deixaram de ser mercadorias de

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    luxo. Sem falar no aumento de suprimento dos metais preciosos(ouro e prata).

    A revoluo comercial, em funo da expanso ultramarina,

    originou a ascenso do capitalismo, na medida em que se produzemradicais transformaes nos processos de produo. A manufatura,criada pelo sistema de corporaes de ofcio na Idade Mdia tardia,dominadas pelo mestre, entra em decadncia e tende a desaparecerpara dar lugar a novas indstrias.

    Para ilustrar essa transformao, vou dar como exemplo o processode industrializao da l. O empresrio comprava a matria-prima (ofio) e distribua, primeiro, aos fiandeiros e, depois, sucessivamente,aos teceles (os que trabalhavam na mquina de tear), aos pisoeiros

    (os que apertavam e batiam o pano com o piso, mquina em que seaperta e bate o pano para torn-lo mais consistente) e aos tingidores.Todos esses trabalhadores recebiam um salrio, estando, agora, sujeitosao desemprego e aos acidentes de trabalho. Quando o pano estavapronto, o empresrio o vendia no mercado livre pelo mais alto preoque conseguisse.

    Alm das mudanas no processo de produo, a revoluoindustrial propiciou, tambm, o desenvolvimento da atividade bancriaque, em funo do pecado da usura, estava restrita aos judeus, e acriao da sociedade por aes. Esta ltima se caracterizava pelareunio de um grupo de investidores que compravam aes. Estes,por sua vez, podiam ou no tomar parte dos negcios da companhia,mas eram co-proprietrios, tendo o direito de participar dos lucros naproporo do capital investido em quotas.

    Movimento artstico-literrioPara a maioria dos historiadores, a Reforma no faz parte do

    Renascimento. Os humanistas esto para o Renascimento assimcomo os reformadores esto para o Barroco.

    O protestantismo no teria se difundido tanto, no norte da Europa,se no estivesse associado ao desenvolvimento do comrcio, formao de uma conscincia nacional e ao fortalecimento do poderdo Estado.

    nesse contexto de profundas mudanas, contestaes e reaesque nasce a arte barroca. Entre os catlicos e os insurrectos aopoder eclesistico de Roma no h lugar para temperana. A religiose torna o palco de guerras fratricidas, que se tecem em um cenrio

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    onde o crescimento do comrcio e o aparecimento da indstriaacionam uma acirrada luta pela hegemonia econmica e poltica. AIgreja e o Estado fazem alianas e agenciam guerras, polarizando

    uma tomada de posio. Estamos diante de um tempo em que oamor e o dio explodem e a arte se inscreve na ordem do excesso.O golpe decisivo no pensamento humanista dado por

    Coprnico. A terra deixa de ser o centro do universo e o homemno mais visto como a criao mais importante de Deus. O universopassa a ser concebido como sendo constitudo por partes iguaissubmetidas s suas leis (uma mquina de relgio ideal) e o homemse apresenta como um fator pequeno e insignificante. Diante de ummundo em contnua transformao que escapa ao saber humano,

    resta a f e o desencanto com a existncia. A Igreja, ao mesmotempo que reage violentamente s idias de Coprnico, tem quecombater os protestantes que ameaam a unidade catlica naEuropa, colocando em cheque o poder eclesistico de Roma. Nessepanorama, necessria a unio entre a Igreja e o poder secular, quetende para o absolutismo monrquico, numa tentativa de salvaruma ordem que vem se constituindo h muitos sculos. Dessa alianasurge a necessidade de apoiar uma arte cuja funo social deveriaser a propagao do catolicismo. O barroco a arte que irdesempenhar essa funo.

    Srgio Nazar David, lendo esse texto para fazer a apresentaodo livro, lembrou-me de que o fato de a Igreja ter se apropriado efeito do Barroco uma espcie de arte contra-reformista no significaque o Barroco seja a arte da contra-reforma. claro que no. Noh dvida de que o Barroco desempenhou a funo de propaga-o do catolicismo, principalmente, atravs dos grandes oradores,como o caso do Padre Antnio Vieira. Entretanto, preciso deixar

    bem claro que abraar a f catlica em escritos e sermes no sinnimo de estar a servio daqueles que detm o poder. O prprioVieira um exemplo disto, terminando por se exilar entre ns.

    No sculo XVI, a palavra barroco, tanto em portugus quantoem castelhano, pertence ao campo semntico da ourivesaria,designando as prolas que apresentavam uma forma no redonda eque, justamente por isso, eram consideradas de valor inferior aodas prolas perfeitas.1 S a partir do sculo XVIII que o termobaroque comea a ser usado para designar uma criao artstica.

    Inicialmente, essa nomeao empregada para identificar um tipode msica, transferindo-se, depois, para a arquitetura e para asartes plsticas. Esse deslocamento do significante produz um novo

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    sentido, fazendo com que a palavra adquira um sentido pejorativo.Chamava-se de arquitetura barroca s construes que eramconsideradas ridculas e bizarras, e de pintura barroca aos quadros

    que eram avaliados como decadentes em relao ao padro estti-co do Renascimento. Segundo os estudos de Vtor Manuel de Aguiare Silva, somente em 1860 Carducci aplica pela primeira vez ovocbulo e o conceito de barroco histria literria.2

    Em sntese, no sculo XVIII, o termo barroco com sentidopejorativo, significando desmedido, confuso e extravagante, usadopara designar as produes artsticas que rompiam com o idealesttico da Renascena. At hoje este sentido pejorativo se mantm.Quando se diz que os filmes de Glauber Rocha e o estilo de Jacques

    Lacan so barrocos, o que se est querendo dizer que so hermticose pecam por falta de clareza.A identificao do barroco como um estilo, que predominou na

    literatura do sculo XVII, inicialmente, define este estilo como umdiscurso que se caracteriza pelo pictrico, pela acumulao e pelacoordenao de motivos. Estes procedimentos so compreendidoscomo a continuao de uma das tendncias do classicismo3 .Hauser4 , discordando radicalmente de Wlfflin, considera suaposio dogmtica, antissociolgica e antihistrica, j que o barrocoassinala uma mudana radical de discurso, contrapondo-se no sao classicismo mas tambm viso humanista do Renascimento.Para Hauser, o barroco no tem uma unidade estilstica, existindouma diferena fundamental entre o barroco das comunidadesburguesas e protestantes e o barroco dos ambientes cortesos ecatlicos. O barroco romano, como o gtico francs, se internacio-nalizou. O papa Urbano VIII transformou Roma numa cidadebarroca, que deixa de ser o centro desta arte, quando, em funo

    do empobrecimento dessa cidade, o centro da arte barroca se des-loca para as monarquias absolutistas e catlicas. As estreitas rela-es, no sculo XVII, entre as literaturas portuguesa e espanhola ea importncia dos domnios poltico e econmico dos Habsburgos,na formao de um imprio colonial, contribuem para a importnciado barroco ibrico, um dos principais representantes da vertentebarroca cortes e catlica. Segundo Vtor Manuel Aguiar e Silva, obarroco na literatura portuguesa se situa entre a segunda e a terceiradcadas do sculo XVII, portando durante o domnio filipino.

    Os espanhis, Jos Luis Velsquez e Juan Lpez de Sedano5apontam para a existncia de duas tendncias estilsticas no barrocodas monarquias catlicas: o cultismo (ou culteranismo), tambm

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    chamado de gongorismo, porque um dos principais representantesseria o poeta espanhol Gngora (1561-1627)6 e o conceptismo,que tinha como principal representante Quevedo (1580-1645).7 O

    cultismo (culteranismo ou gongorismo) se caracteriza pelavalorizao do olhar (imagens cromticas), pela descrio dosobjetos, pelos neologismos e pelos arcasmos. O conceptismo apre-senta uma lgica discursiva que privilegia os silogismos8 , as anttesesideativas e os equvocos. Vtor Manuel no concorda com essaabordagem, considerando-a simplista e inexata. Esta classificaoimplica, inclusive, para este autor, na suposio de que existiramduas escolas barrocas ibricas, engendrando dois estilos antagnicos.Gngora, por exemplo, se apresenta ora conceptista ora cultista.

    O trao estilstico predominante, portanto, presente tanto nocultismo quanto no conceptismo, a ornamentao do discurso e ovirtuosismo com o emprego da palavra. Para o psicanalista JacquesLacan, o barroco se caracteriza por apresentar corpos gloriosos emartirizados a servio da escopia, corpos exuberantes que expressamtudo que desaba, tudo que delcia, tudo que delira9 . Estamosdiante de representaes que so testemunhas de um sofrimentomais ou menos puro10 , e de corpos que gozam um gozo paraalm do falo (ou seja um gozo no sexual).

    Saber fazer poesia para o poeta seiscentista saber fazerconcatenaes com a palavra, esgarando a distncia que separa osignificante do significado, criando uma proliferao de sentidosque permitir, atravs dos sculos, sempre uma nova leitura.Convencionou-se chamar esse fazer potico de construtivismo.

    O construtivismo implica, tambm, numa concepo do lrico.Os poetas romnticos, por exemplo, entendem o lrico como umaexpresso anmica que brota da inspirao (sentimento). A poesia

    como retrato da alma humana a expresso da Verdade, ou seja,entrelaa-se noo de Bem. O Realismo, o Naturalismo e o Neo-realismo abandonam essa noo de inspirao anmica, maspermanecem fiis ao compromisso romntico com a Verdade. Sque, para os realistas, os naturalistas e os neo-realistas, a Verdadedo corao substituda pela Verdade da Razo, da Cincia e doSocial, respectivamente.

    O poeta como arteso da palavra marca uma das tendncias daliteratura atravs dos sculos. Na poca medieval, as leis de cortesia

    amorosa fabricaram o amor corts com a funo de sublimao.Trata-se de um amor que se inscreve na estrutura da privao.Justamente por isso, a Dama, enquanto objeto amado, est

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    interditada e s pode comparecer como inacessvel. A condiopara ingressar nas cortes literrias de Amor era o sofrimento escrito(morrer-de-amor) por um amor impossvel. As Leis dAmor nada

    mais eram do que um artifcio para a mestria do saber trovar.Na Idade Mdia, alm das cantigas de amor, podemos identificaro construtivismo em outros gneros lricos. As cantigas de mestria11galego-portuguesas so composies lricas ou satricas que visammostrar a arte de bem saber trovar. A poesia provenal cultivou otrobar clus,escurou cobert(poesia encoberta ou obscura) e otrobar ric (poesia rica feita com rimas raras), onde o trabalho coma palavra faz com que o poeta crie elipses e metforas que se originamem identificaes inesperadas. Esta forma de trovar no vamos

    encontrar nas cantigas galego-portuguesas. Mas, temos o descordo,que uma composio com um tipo mtrico complicado ecaprichoso pelos contrastes da medida versificatria12 .O descordode Nun Eanes Cerceo (Agora me quereu j espedir) , inclusive,considerado por Rodrigues Lapa uma pequena obra-prima, dignade um poeta moderno13 . Vale a pena citar um trecho dessa cantiga,onde a sntese levada ao ponto de reduzir, em algumas estrofes, overso a uma palavra:

    Pe[n]sardacharlogarprovarquereu, veer se poderei.O sm.dalguemou remde bem

    me valha, se o em mi ei!14

    A sntese (economia do significante: a produo da polissemiacom o menor nmero possvel de palavras) no lugar do discursivo um dos procedimentos que ir marcar o construtivismo namodernidade. Mallarm, 1842-1898 (Un Coup de Ds, 1897), oFuturismo, 1909, o Cubismo, 1913, o Cubo-futurismo, 1913,Apollinaire, 1880-1918, e seus caligramas, Maiakovsky, 1894-1930,Eliot, 1819-1880, Ezra Pound, 1885-1972, Cummings ilustram bem

    esta tendncia do construtivismo, a partir do modernismo. No Brasil,o poeta modernista Oswald de Andrade, 1890-1954, e os poetas quefizeram parte do Concretismo, 1958, seriam, entre outros, os repre-

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    sentantes do construtivismo. Na poesia portuguesa contempornea,essa tendncia pode ser encontrada em Alberto Pimenta, em AlexandreONeill, em Ana Hatherly, em Melo e Castro, entre outros. Em alguns

    poetas portugueses do sculo XIX, tais como Cesrio Verde, 1855-1886, e Camilo Pessanha, 1867-1926, vamos encontrar tambmuma poesia que opera no s um enxugamento do discurso, mastambm enfatiza a sintaxe em detrimento da adjetivao verborrgica.

    O construtivismo, alm de no associar o lrico inspirao(Romantismo), como j vimos, tambm se ope teoria poticado Acaso (Dadasmo, 1916) e formulao da Escrita Automtica(Surrealismo, 1924). No lugar da inspirao, a construo com apalavra.

    Alis, o material da poesia o significante verbal e no o signo. Oque difere um dizer da poesia no o que se diz mas o modo peloqual se diz. No outra concepo que vamos encontrar em FernandoPessoa, 1888-1935, quando define o poeta, no poemaAutopsicografia:

    O poeta um fingidor.Finge to completamenteQue chega a fingir que dorA dor que deveras sente.15

    Justamente por isto, ir dizer em outropoema, Isto:Dizem que finjo ou mintoTudo que escrevo. No.Eu simplesmente sintoCom a imaginao.No uso o corao.16

    O construtivismo barroco no se fundamenta na sntese. Muitopelo contrrio, construir com a palavra para o poeta seiscentistaimplica esmerar-se na ornamentao, no rebuscamento e naengenhosidade. A prolixidade o trao do construtivismo barroco.O requinte do dizer , sem dvida, a marca desse estilo. O apuroextremo com a palavra leva ao excesso e torcedura da disciplinaoutrora exigida em Nome-da-Razo pelo Renascimento. Alis, ogosto pela toro j vinha sendo realizado pelo Maneirismo

    quinhentista, tanto nas artes plsticas quanto na literatura17 . Aoquestionar o racionalismo humanista, o Maneirismo produz umasubverso s leis de unidade e de harmonia clssicas, dando

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    preferncia, na poesia, s imagens verbais que se constroem peloparadoxo18 , indicando, assim, uma tendncia ao rebuscamento dalinguagem, que atingir seu pice no barroco. O gosto maneirista

    pelo paradoxo substitudo no barroco pelo da anttese, onde aspalavras com significao antnima se sucedem umas s outras,num jogo verbal requintado, que tem como visada a engenhosidade.

    A palavra engenho vem do latim ingeniu e significa faculdadeinventiva. Para Baltasar Gracin (Agudeza e Arte de Ingenio), tododiscurso deve ser engenhoso, ou seja, deve visar beleza. E, paraisto, preciso que seja tecido por agudezas (sutilezas), que sesucedem umas s outras ou se ordenam em uma composiogeomtrica. Para Gracin, a agudeza a prpria alma do discurso,

    o estilo, o esprito de dizer. O artifcio indispensvel para arealizao do engenho, j que atravs dele que se podemestabelecer as relaes de similaridade por semelhana ou pordessemelhana, o que Gracin denomina de correspondncias. Estasconexes devem partir de algo raro, excepcional, porque no qualquer correspondncia que contm a sutileza. O artifcio deverecorrer s regras retricas para a construo das figuras que iroornamentar o discurso. Segundo esta concepo, para se produzirum discurso engenhoso preciso lanar mo dos artifcios daanttese19 , da hiprbole20 , do oxmoro21 , das aluses22 , dashomonmias23 e das paronmias24 .

    A ostentao, a teatralidade, a metfora, a hiprbole, ohiprbato25 , a anttese, o registo erudito da lngua (latinismos ehelenismos), as aluses, as perfrases26 e os neologismos marcama tessitura de um discurso que visa engenhosidade.

    Poesia lricaOs principais temas so o amor divino, o amor profano e a dor

    de existir num mundo em desencanto.

    Amor profanoO objeto amado dado como perdido para sempre. Sem

    esperanas, este objeto s pode ser recordado como um bem passado

    que anula o sentido de existir no mundo. O presente sem futuro,vivido sob a forma de um esvaziamento do ser (destituio de todosos significantes, o que impossvel), leva o sujeito a conviver comum vazio, que imaginado como a experincia da prpria morte. A

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    convocao da morte em vida se declina em sofrimento, do qual seretira uma experincia de gozo que no passa pelo sexual (um gozopara alm do falo).

    Amor divinoA matriz deste amor a paixo de Cristo. O homem, por ser

    pecador, divido entre a carne e o esprito, clama pela misericrdiadivina. Cristo flagelado e crucificado representa o padecimento deum corpo at a morte. Em nome do amor ao Pai, o sofrimento deCristo a prova cabal da misericrdia divina. Reviver o sofrimentode Cristo imaginado como um despojamento absoluto do ser(anulao dos significantes), onde o vazio, como metfora da prpria

    morte, conduz a uma experincia de gozo mstico, ou seja, umgozo no sexual. Religiosidade e erotismo se mesclam, fazendo comque todos os sentidos se tornem fonte de deleite e volpia. A Virgem,cultuada pelos devotos da Idade Mdia, substituda por Madalena,smbolo do pecado e do arrependimento humanos. O profano(erotismo) e o sacro contracenam, rompendo, assim, os limites entreo sublime e o mundano.

    A dor de existir no mundoUmculto ao sofrimento, onde o sacro se erotiza e o profano se

    diviniza, fazendo com que o sublime contracene com o grotesco,conduz valorizao de certos temas e smbolos que ora aparecemisolados, ora se articulam com o tema do amor, tanto divino quantoprofano. So eles: a fruio do tempo, onde as principais figurasemblemticas so o espelho, o relgio e a gua; a transitoriedade davida e das coisas (metamorfose); a beleza, como um dos smbolosmais dramticos da corroso imposta pelo tempo; o espetculo de

    um mundo em runas; o naufrgio como smbolo da precariedadeda vida humana; a caveira como espelho cruel do homem; e o mitode caro27 .

    Poesia satricaA ironia e o deboche so os tons que predominam nas poesias

    satricas. Critica-se no s a moral hipcrita da sociedade, adevassido, o clero, a nobreza e as frivolidades mundanas daaristocracia mas tambm o gosto pelo excesso do estilo barroco e omodo pelo qual o amor abordado na poesia. A tradio satrica

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    do trovador renasce em novas formas poticas que utilizam apardia28 para, atravs da ironia, colocar lado a lado o grotesco e osublime. A stira barroca chega inclusive a ser auto-corrosiva, na

    medida em que o poeta se utiliza do gosto ornamental e antitticodas imagens verbais para desconstituir o estilo com o qual seidentifica. A ironia, da qual nem o prprio autor escapa, expressa oluto pela morte dos ideais que tinham se constitudo at ento emtorno do homem. Aqui, em vez do registro erudito da lngua, temoso registro coloquial, incluindo o uso de expresses vulgares e gros-seiras. As freiras e os frades no escapam crtica virulenta dospoetas, assim como as beatas e as frivolidades excessivas da corte.

    CancioneirosAs antologias impressas mais conhecidas da poesia seiscentista

    portuguesa so Fnix29 renascida e Postilho de Apolo30 .Fnix renascida ou Obras poticas dos melhores engenhos

    portugueses compe-sede cinco volumes, organizados por MatiasPereira da Silva. O primeiro volume publicado em 1715 e os

    outros quatros so publicados, espaadamente, at 1728. Em 1746,sai uma nova publicao com acrscimos. Alm dos poetasseiscentistas, Vtor Manuel faz questo de ressaltar que figuramtambm, embora em pequeno nmero, obras de poetasquinhentistas31 .

    Vtor Manuel comentaque a principal dificuldade com que

    se defrontou Matias Pereira da Silvaconsistiu na averiguao da autoria dascomposies poticas includas na suacoletnea. Por um lado, havia a conside-rar o problema das obras que corriamannimas; por outro, o das obras comdiferentes atribuies de autoria ou comatribuio inexata.32

    Outras questes, tambm levantadas por esse estudioso do

    barroco portugus sobre essa antologia, so:1o) A representatividade: diversos poetas do sculo XVII noesto representados, ou esto-no apenas escassamente.

    2o) A no incluso de poesias dos poetas mais representativos:

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    Quanto a importantes poetas que es-to representados com relativaabundncia na Fnix renascida, tais como

    D. Tomas de Noronha, Antnio Bacelar eFrei Antnio das Chagas, verifica-se, pelaanlise de diversos cancioneirosmanuscritos, que a sua produo incomparavelmente mais extensa do quea coligida por Matias Pereira da Silva.33

    3o) A fidedignidade textual:Na breve advertncia ao leitor que

    figura no incio do tomo I da Fnixrenascida, Matias Pereira da Silvaconfessa que, perante o que ele consideroucorrupes ou alteraes dos textos origi-nais, introduzidas por incria ou ignorn-cia nos manuscritos, retocou esses textos,auxiliado pelo juzo, em seu entenderautorizado, de alguns amigos34 .

    Ainda, na referida advertncia, o organizador adverte que notem inteno de incluir em sua coletnea os poemas que ofendemos bons costumes. O mais grave no a excluso,

    pois a anlise comparativa de deter-minados poemas publicados na Fnixrenascida e de verses desses mesmospoemas conservados em manuscritosdemonstra irrefragavelmente que Matias

    Pereira da Silva no teve pejo em mutilar,por vezes profundamente, e em modificaraquelas composies poticas que, peloseu realismo, pela sua irreverncia emmatria de religio e pelo seu pendorertico ou obsceno, no tinham cabimentonos limites pedaggicos-moralsticos deantemo assinalados coletnea35 .

    O ttulo completo de Postilho de Apolo, ilustra de maneiraexemplar o gosto pelo excesso: Postilho de Apolo ou Ecos que oclarim da Fama d Postilho de Apolo, montado no Pgaso,

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    girando o Universo, para divulgar ao orbe literrio as peregrinasflores da Poesia Portuguesa, com que vistosamente se esmaltamos jardins da Musas do Parnaso Academia Universal em que se

    recolhem os cristais mais puros que os famigerados engenhoslusitanos beberam nas fontes de Hipocrene, Helicona e Aganipe.Trata-se de dois volumes ouEcos,organizados por Joseph Maregelode Osan, anagrama de D. Jos ngelo de Morais (supe-se quetenha sido cnego regrante de Santo Agostinho) e publicado em1761-62.

    Vtor Manuel considera essa antologia inferior Fnix renascidacom os seguintes argumentos:

    1o) no total, ocorrem no Postilho de Apolo oitenta e duas

    poesias que j estavam publicadas na Fnix renascidas, sendoapenas de sessenta e uma o nmero das poesias que naquelacoletnea no so comuns a esta;36

    2o) a maioria dos poemas, que no esto no Postilho de Apoloe so includos por Joseph Maregelo de Osan em sua antologia,pertencem j ao sculo XVIII e reflete um gosto esttico diferentedo gosto que consideramos extremamente barroco37 .

    Formas poticasVamos encontrar, alm do soneto38 , que a forma culta

    predominante; as seguintes formas poticas:1 - formas cultas do Renascimento italiano: cano clssica39 ,

    elegia40 , gloga41 , madrigal42 e ode43;

    2 - formas poticas tradicionais de origem popular: romance44 ,dcimas45 e redondilhas46 ;3 - formas com mote e glosa, herdadas da tradio medieval e

    cultivadas pelos poetas do Cancioneiro geral de Garcia de Resende47 ;4 - formas com mote e glosa, inovadas pelos maneiristas - um

    soneto considerado como mote e geralmente glosado em quatorzeoitavas (soneto de Francisco Rodrigues Lobo glosado por AntnioBarbosa Bacelar emFermoso Tejo meu, quo diferente) -, a prpriaoitava48 em verso decasslabo pode constituir um mote glosado emoitavas, como o caso da glosa de Bacelar (Fnix renascida, v. I) oitava camonianaEstavas, linda Ins, posta em sossego.

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    Amor & sublimaoDepois da literatura medieval (amor corts), vamos reencontrar,

    na literatura portuguesa, o amor com a funo de sublimao napoesia barroca. A fruio de tudo o que delciacomparece nadecantao de um objeto amado, que est para sempre perdido.Deste objeto perdido s restam as saudades, como o caso de Violantedo Cu, ou as lembranas de uma imagem petrificada, como o casode Jernimo Baa, onde a amada perde qualquer resqucio de vida,transformando-se numa esttua para ser admirada por um olhar, quese torna fonte de gozo. No h esperana para o amor no barroco,

    assim como tambm no h no amor-corts.Em Violante do Cu, o vazio da alma (um ser despojado designificantes) se torna gozo de uma fala, que demanda a mortepara conviver com a vida. Em Jernimo Baa, nos madrigais, AUma Crueldade Formosa e A uma Formosura Cruel, o objetoamado representado, tal qual a Dama das cantigas de amor, pelotrao da mais absoluta indiferena:

    Seja fria no amar, cruel no rgo,

    Fria, se toda jaspe, e toda neve,Cruel, se toda sangue, e toda fogo.

    Mas, ao contrrio do trovador, o amante em vez de se colocar aservio da Dama para com isto gozar, serve-se dela para gozar. Acoisa amada se reduz beleza de um corpo captado pelo olhar. Oque resta deste objeto, que se apresenta como a causa de todostormentos, seno um retrato para ser contemplado? Eis as imagensdespedaadas de uma mulher, sendo descritas por metforas queno s produzem um efeito de deslumbramento plstico-visual (ouro,prata, safira, rubi, prola, jaspe), mas tambm configuram o seucorpo interditado (mrmore, metais, pedras). Os significantesescolhidos no tm outra funo seno reiterar o carter desumanode um objeto, a fim de que se interponha uma barreira intransponvelentre aquele que ama e o objeto para quem esse amor dirigido. Masmesmo assim este objeto se torna a sua amada (a minha bela). Paraque se ama? Para sofrer? No, para gozar as delcias de um olhar.

    Em Jernimo Baa as imagens que descrevem o corpo da mulheramada metaforizam a beleza desse corpo pela via da metonmia, jque essa mulher reduzida a pedaos de uma esttua quebradasem reparao. E, justamente por isto, a indiferena da amada se

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    torna sinnimo de um Bem para sempre impossvel. Da contem-plao destes restos e do sofrimento surge um gozo para alm dofalo (gozo no sexual).

    Em Violante do Cu, a morte do objeto engendra uma demandapara que a morte contracene com a prpria vida, que, por seesvaziar de sentido, transforma-se em puro gozo. Um corpo sofridocom a alma vazia a verso que Violante do Cu nos apresentado amor. Um corpo dessignificantizado, sustentado no circuitopulsional, para fazer da escrita um ato que se traduz em uma falaque aponta para um furo com o qual se goza masoquisticamente.Por isto Lacan define o barroco como a regulao da alma pelaescopia corporal49 .

    Os milagres do amor operam pela via do discurso a unioentre um corpo real e um corpo imaginrio que chamado dealma, a fim de que pela via do simblico (linguagem, portanto leisdo significante) haja referncia castrao.50 Lacan, no SeminrioXX - Mais, Ainda, 1982, afirma que um corpo tomado peloque representa ser a alma e isto no outra coisa seno a iden-tidade suposta a esse corpo51 . neste sentido que ele afirmaque o homem pensa com sua alma. Se o homem pode dizer oque pensa porque h uma estrutura chamada linguagem. Ainsero do gozo no aparelho da linguagem pela inscrio do sig-nificante grava a letra que marca no prprio corpo o enigma semdecifrao da sexualidade humana. Deste corte sem costura emergea falta que engendra a suposio de um gozo-a-mais. Se existisseeste outro gozo, ele estaria para alm do falo, o que implicaria eexcluiria o significante. Se uma das vias para a experincia dogozo flico (gozo sexual) a cpula, isto no significa que eletenha alguma coisa a ver com a relao sexual. A relao sexual

    impossvel52

    porque o real no cessa de se inscrever. E onde elese inscreve? No Outro, enquanto lugar onde se engendra a fala ese funda a verdade, sob a forma de um furo que aponta para afalta de um significante, o do Outro-sexo53 .

    Um das verses dessa verdade para o barroco a experinciade um gozo, que se declina sob a forma de um amor que vem emsuplncia a esse impossvel da relao sexual. Eis uma modalidadede amor que imagina o que de real h no corpo de um ser que fala:um vazio e um falta-a-gozar que no suturam a estrutura do

    significante. Trata-se de uma concepo de amor em que oimaginrio tomado como meio do amor, o que no significa queesta modalidade se inscreva numa estrutura psictica. Trata-se da

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    convocao de um gozo para alm do falo independente de qualquerposio sexual identificada com a anatomia dos corpos. Os poetasbarrocos se situam do lado feminino e falam como mulheres.

    ___________________

    1 AGUIAR E SILVA, 1973, p. 364.2 AGUIAR E SILVA, 1973, p. 368.3 v. WLFFIN, 1952.4 v. HAUSER, 1965.5 v. SILVA, 1971.6 Principais obras de Luis de Gngora y Argote: Fbula de Polifemo e

    Galatia, Panegrico ao Duque de Lerma e o livro inacabado As soledades.7 v. SILVA, Vitor Manuel Pires de Aguiar.Maneirismo e barroco na poesia

    lrica portuguesa. Op. cit. id. ibid.8 Silogismo: Grego, syllogisms,conjunto, pelo latim sillogismu (m), a forma

    mais perfeita do raciocnio. O silogismo um dos preceitos do discurso oratrio,desenvolvidos, principalmente, pelo filsofo grego Aristteles, pelo orador latinoQuintiliano e pelo poeta latino Horcio, na antigidade clssica. O discurso oratrio,apesar de algumas diferenas entre os autores citados, deveria apresentar trspartes:

    1a) Exrdio (ou promio ou princpio), que se subdivide em duas partes: a

    proposio, que se caracteriza pela apresentao do assunto, e a diviso, queconsiste na enumerao do que ser seguido pelo orador.2a) Desenvolvimento, que se divide em narrao, a exposio minuciosa do

    que foi apresentado de forma sinttica na proposio, e em argumentao, a partemais importante do discurso. Esta parte, que j devia vir sendo preparada peloexrdio e pela narrao, se fundamenta no silogismo, podendo lanar mo doexemplo (prova trazida de fora, da histria exemplo histrico e da fbula exemplo potico).

    3a) Perorao (ou concluso ou eplogo) que, apesar da discordncia entre osautores, tem como funo essencial o convencimento e como virtude a brevidade.

    9 LACAN, 1982, p. 158.10 LACAN, 1982, p. 158.11 Cantiga de mestria, em oposio cantiga de refro, no tinha estribilho.12 LAPA, 1964, p. 137.13 LAPA, 1964, p. 137.14 GONALVES, RAMOS, 1985, p. 257.15 PESSOA, 1977, p.164.16 PESSOA, 1977, p.165.17 Nas artes plsticas, a serpentinata a figura de estilo que melhor representa

    o gosto pela virtuose e pelo excesso do Maneirismo quinhentista. Essa figura tema forma de uma chama ondulante, assemelhando-se letra S. Miguel Angelo, que

    descreve esta figura como sendo a contoro de uma cobra viva em movimento,multiplicou-a por trs, retomando o contraposto do clssico da antigidade (aspartes do corpo so representadas assimetricamente de modo que a rotao dacabea se ope rotao dos quadris).

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    18 Paradoxo: Gregopardoxon, contra opinio. um dos recursos lgicosusado para a argumentao de um discurso oratrio.

    19 Anttese: Grego ant, contra, thsis, afirmao. Figura de estilo na qual seaproximam dois sentidos opostos.

    20

    Hiprbole: Gregohyperbol, excesso. Figura de linguagem que visa outorgarao objeto uma nfase exagerada, que no sentido positivo, quer no sentido negativo.21 Oxmoro: Grego oxymoros, agudamente nscio. Figura de linguagem que

    consiste na fuso, em um s enunciado, de duas afirmaes antagnicas, portanto,duas declaraes que se excluem.

    22 Aluso: Latim allusione (m), alludere,jogar com. Toda referncia, diretaou indireta, a uma obra, a uma situao, a um personagem, a um episdio, etc.

    23Homonmia: Homnimo vem do grego,homnymos pelo latim homonymus.Refere-se a uma palavra que se pronuncia da mesma forma que outra, mas cujosentido e escrita so diferentes (lao = laada, lasso = cansado), ou uma palavraque se pronuncia e se escreve do mesmo modo, mas cujo sentido diferente(falcia = qualidade de falaz, e falcia = falatrio).

    24 Paronmia: Parnimo vem do gregoparnymos, pelo latimparonymu.Refere-se s palavras que tm som semelhante ao de outras (descrio e discrio;onicolor e unicolor; vultoso e vultuoso).

    25 Hiprbato: Grego hyperbatn, que ultrapassa. Figura de linguagem que secaracteriza pela inverso dos elementos constituintes da frase.

    26 Perfrase: Gregoperfrasis,em torno da frase. Figura de estilo que consistena substituio de uma palavra por uma srie de outras, visando dizer, atravs deum rodeio frsico, o que possibilita a criao de vrias metforas. tambm no-meado de circunlquio.

    27 caro era filho de Ddalo e de Nucrates. Ddalo foi o artista ateniense maisfamoso da poca arcaica. Alm de arquiteto, era escultor e inventor. Exilado na ilhade Creta, construiu o famosoLabirinto,a pedido do rei Minos: o palcio de Cnossos,com um emaranhado de quartos, salas e corredores. Nucrates era uma escrava dopalcio do rei Minos. Ddalos, a pedido de Ariadne, filha do rei Minos que se apaixonoupor Teseu, ajudou este a matar o Minotauro (monstro antropfago, metade homeme metade touro) e sair do Labirinto. Teseu, depois de matar o Minotauro, fugiu coma princesa Ariadne. Minos, enfurecido, prende Ddalo e seu filho, caro, no Labirin-to. Ddalo inventa para si e para seu filho umas asas de penas, presas aos ombroscom cera. Os dois fogem, voando pelo cu. Ddalo aconselha o filho a no voar

    muito alto, porque o sol derreteria a cera, nem muito baixo, porque a umidade tornariaas penas pesadas demais. caro, fascinado com o cu, esquece o conselho do pai echega muito perto do sol. A cera derreteu-se e ele ficou sem as asas, caindo no marEgeu que, a partir da, passou a se chamar mar de caro. O livro de Ovdio (43 a. C.-18 p. C.),Metamorfoses,narra esse episdio. Junito Brando considera que Ddalorepresenta a engenhosidade, o talento, a sutileza. Construiu tanto o labirinto, ondea pessoa se perde, quanto as asas artificiais de caro, que lhe permitiram escapar,voar, mas que lhe causaram a runa e a morte (BRANDO, 1997, p. 590, v.1).

    28 Pardia: Gregoparoida, canto ao lado de outro. Caracteriza-se pelo seguinteprocedimento: incorporao de partes do objeto a ser criticado, usando como instrumento aironia.

    29 A palavra fnix no tem at agora uma etimologia incontestada. Comonome de ave, sua origem remete ao Egito (culto de Ra-Herakheti, isto , Sol vivo)para designar uma espcie de gara real. Segundo a verso do escritor Herdoto,tratava-se de uma ave originria da Etipia, de cor vermelho intenso, com as asas

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    cor de ouro, que visitava o Egito a cada quinhentos anos. Com porte semelhante aode uma guia, posteriormente descrita com plumagem de cores vermelha, azul-claro, prpura e ouro. Todas as verses mticas partem de sua morte e do seurenascimento, porque a nica ave de sua espcie. comum a todas estas verses

    o fato de que a fnix reuniu plantas aromticas e incenso para fazer seu ninho.Algumas verses contam que pe fogo em seu ninho ou o incendeia com seu prpriocalor, para renascer das cinzas. Outras verses contam que, a cada quinhentos anos,deita-se em seu ninho, solta sobre ele seu smen e morre. Do smen nasce a novafnix, que pega o corpo da fnix morta e o coloca num tronco oco de mirra e o levapara Helipolis. Chega a essa cidade, cercada por um bando de aves, que lhe prestavamhomenagem, e fica sobrevoando o altar do deus Ra, at a chegada de um sacerdote,quando o tronco de mirra queimado. Depois, retorna Etipia e fica se alimentandode prolas de incenso at chegar a hora da morte e do renascimento.

    30 Apolo faz parte da segunda gerao do Olimpo. filho de Zeus e da deusaoriental Leto e tem uma irm gmea, rtemis. Hera, com cimes do marido,proibiu a terra de acolher Leto, na hora do parto. Os filhos de Leto nasceram nailha flutuante Ortgia que, por no pertencer terra, no tinha que temer a ira deHera. luz da noite, nasceu rtemis, a Lua. E luz do dia, nasceu Apolo, o Sol.rtemis, nascendo primeiro, assistiu ao parto do irmo e ficou to horrorizada como sofrimento de sua me que pediu ao pai para ficar eternamente virgem. Conta-se, tambm, que Leto, para escapar do dio de Hera, se transformou em Loba,indo se esconder no pas dos Hiperbreos, onde teve seus filhos. Da um doseptetos de Apolo, Licgenes, nascido da Loba. As consultas ao Orculo deDelfos eram feitas, inicialmente, no dia sete do ms Bsio, a data do aniversrio deApolo (incio da primavera). Sua lira tinha sete cordas. Sua doutrina era constituda

    de sete mximas, atribudas aos sete sbios. Justamente por isso, squilo o chamouaugusto deus stimo, o deus da stima porta. Este deus oriental, atravs devrios sincretismos, se torna o detentor do Orculo de Delfos, o deus da cultura eda sabedoria. Alis, justamente em funo desses sincretismos que esse deusrecebe mais de duzentos eptetos e atributos, que vo desde o deus da vegetao,dos pastores, dos rebanhos, da famlia, dos lares, dos marinheiros, da luz at setransformar no deus da medicina, das artes, da msica e da poesia.

    31 SILVA, 1971, p. 76.32 SILVA, 1971, p. 87.33

    SILVA, 1971, p. 78.34 SILVA, 1971, p. 95.35 SILVA, 1971, p. 96.36 SILVA, 1971, p. 102.37 SILVA, 1971, p. 103.38 Soneto: Italiano sonetto, do Provenal sonet, som, melodia, cano.

    Composio potica, inventada, aproximadamente, entre os sculos XII e XIII. controvertida a atribuio de quem inventou essa forma potica. Pier della Vigna,1197-1249, ou Giacomo da Lentino, 1180-1190?, ambos poetas sicilianos da cortede Frederico II, imperador germnico da dinastia sueca dos Hohenstaufen e rei daSiclia. Caracteriza-se por ser forma potica constituda de quatorze versos, distri-

    budos em dois quartetos e dois tercetos. Dante, 1265-1321, e Petrarca, 1304-1374, foram, sem dvida, os poetas que imortalizaram essa forma, espalhando-apor toda a Europa. Em relao estrutura, temos o soneto estrambtico (ou deestrambote ou de cauda), o soneto petrarqueano, o soneto ingls ou shakespeariano

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    e o soneto spenserista. O estrambtico se caracteriza pelo acrscimo de umestrambote ao terceto final, isto , de uma estrofe de trs versos, dos quais oprimeiro verso rima com o ltimo verso do segundo terceto e os outros versosrimam entre si. O petrarqueano, mais conhecido entre ns, constitudo por duas

    quadras e dois tercetos. O shakespeariano composto de trs quadras e um dstico.Quanto concatenao de vrios sonetos, temos a seguinte classificao: seqnciade soneto, quando vrios sonetos esto articulados por um tema; coroa de sonetos,quando temos um conjunto de sete sonetos, onde o ltimo verso de um soneto setorna o primeiro verso do soneto seguinte, sendo que o ltimo soneto, portanto ostimo, repete o primeiro verso do soneto inicial; e soneto reduplicado, quando seligam quinze sonetos, de forma que cada verso do primeiro soneto se torna, repe-tidamente, o ltimo verso de cada um dos demais sonetos.

    39 Cano: Esta forma, cultivada por Dante, Petrarca e Cames, diferente daforma cultivada pelos trovadores (Cantigas), caracteriza-se por uma srie de estrofesde nmero regular (vinte versos no mximo e sete no mnimo), terminando com umaestrofe menor, chamada de ofertrio, onde o poeta dedica o poema sua amada ousintetiza o que vinha desenvolvendo no decorrer das estrofes.

    40 Elegia: Do grego elegeia, de origem obscura. Na Grcia antiga era umacomposio potica, acompanhada de flauta, e constituda por dsticos. Na Grciaantiga, apresentando os temas mais variados, esta forma lrica visava a um cartersentencioso, ou gnmico (gnme, sentena, pelo latim gnome (m). Com o sentidode mxima, o gnome consiste em um dizer conciso e breve. Assim, so definidos porversos gnmicos aqueles que encerram um aforismo, uma sentena ou provrbio.Podemos encontrar versos gnmicos em vrios gneros e formas poticas, tais como,o pico, o trgico e a elegia.). Os romanos acrescentaram elegia o tema do amor.

    Com o renascimento, a elegia, que estava esquecida, retomada e cultivada porPetrarca, Cames, S de Miranda, entre outros. A partir do sculo XVI, alm dodstico, segundo o modelo greco-latino, foram acrescentados a terza rima (terceto),o quarteto (estrofe erudita em quatro versos que se ope quadra, estrofe popularem quatro versos ) de rima cruzada (abab). As modificaes formais foram acom-panhadas da incluso de novos temas, que tinham como trao comum a tristeza. Apartir do final do sculo XVII, os temas buclicos foram tambm incorporados,dando origem elegia pastoril.

    41 gloga (ou cloga): Gregoeklog, seleo. Na antigidade clssica, o termogloga significava poema escolhido e estava associado poesia buclica (com-

    posio de tema pastoril e campestre). Com a Renascena, gloga se torna sinnimode idlico.42 Madrigal: Italiano, madrigale, de etimologia controvertida: matricale, no

    sentido popular de canto materno; materialis, no sentido de elemento poticoprofano; e matricalis, no sentido de canto polifnico que era executado nas igrejas.At o sculo XV, o madrigal se caracteriza por ser um poema de forma fixa: doisou trs tercetos seguidos de um ou dois dsticos, em versos decasslabos rimados.Evoluiu para uma forma livre quanto ao nmero de versos e de rimas, emboratenha predominado a tendncia para uma nica estrofe de aproximadamente dezversos, em que alternam o decasslabo (verso de dez slabas) e o hexasslabo(verso de seis slabas). A poesia satrica tambm se utilizou dessa forma potica.

    43 Ode: Grego oid,canto. De origem grega, a ode era uma composiopotica destinada ao canto (canto ao som da lira ou outro instrumento de cordasemelhante, que enaltecia o amor e os prazeres do vinho e da mesa ). Desenvolve-se para uma forma dedicada aos temas hericos, em que se enaltecem os vence-

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    dores da guerra e dos jogos olmpicos. A lira substituda pela flauta e a odeadquire uma forma mais ou menos definida. Divide-se em trs partes: o encmioinicial e final (que visa louvao de algum que realizou um ato herico, principal-mente, na guerra e nos esportes olmpico) e a narrao de episdios mticos.

    Esquecida, durante a Idade Mdia, essa composio potica redescoberta peloshumanistas do sculo XIV. A partir da, ode classificada em relao ao tema e forma. Quanto ao tema, classificada em: herica ou pindrica; filosfica emoral ou sfica; amorosa, pastoril, bquica ou anacrentica. Quanto forma classificada em: ode tripartite ou pindrica, em que a estrofe e a antstrofe (asegunda parte) apresentam versos organizados em um padro nico (isto , emestncias, termo que se emprega para nomear as estrofes regulares, que seorganizam com unidades mtricas uniformes, ou seja, so estrofes isomtricas) e apode ou epodo em um padro diferente; ode homostrfica ou horaciana em queas estrofes se organizam em um mesmo modelo; e a ode irregular ou livre.

    44 Romance: Provenalromans, do latimromanice, em lngua romnica, isto ,em oposio lngua latina. Aqui empregada com o sentido de composio poticapopular, tipicamente espanhola, na maioria das vezes constituda em redondilhasmaiores (versos de sete slabas).

    45 Dcima: Latim decima (m), dez partes. Designa a estrofe ou poema em dezversos. Da lrica trovadoresca at o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, adcima era constituda de duas quintilhas (estrofes de cinco versos) independentespela rima e separadas por uma pausa. A partir do sculo XVI, surge a dcimaclssica ou espinela (em homenagem a Vicente Espinel, a quem se atribui a inveno),constituda de uma quadra (estrofe em quatro versos) e de uma sextilha (estrofe emseis versos) em versos de sete slabas (redondilha maior), separados por uma pausa,

    apresentando, na maioria das vezes, os seguintes esquemas de rima: abba/accddc.Na dcima clssica ou espinela, a quadra constitui uma espcie de mote e a sextilhacorresponde a uma espcie de glosa.

    46 Redondilha: Os versos de redondilha esto ligado tradio popular. Osversos de cinco slabas so classificados de redondilha menor e os de sete slabasde redondilha maior.

    47 Formas com mote e glosa do Cancioneiro Geral: a cantiga ou glosa e ovilancete. Essas formas populares se caracterizam por uma estrofe inicial, chamadade mote ou cabea, que apresenta o tema a ser desenvolvido pelas voltas ou glosas.A glosa ou cantiga apresenta um mote de quatro ou mais versos, seguidos de glosas

    ou voltas. O vilancete tem por timo o espanholvillancete, villano,vilo, habitantede vila, da cantiga de vilo ou de vil. Esta forma constituda de uma estrofe,chamada de mote ou cabea, constituda de dois ou trs versos, seguida de umnmero variado de estrofes, chamadas de voltas ou glosas de cinco a oito versos,predominantemente de sete slabas (redondilha maior).

    48 Oitava: Latim octavu (m), oitavo. Designa a estrofe ou poema em oitoversos. Existem dois tipos: a oitava rima (ottava rima em italiano), tambmdenominada de oitava real, oitava herica ou oitava italiana, que constituda deversos decasslabos com um esquema fixo de rimas (abababcc); e a oitava ro-mntica ou oitava moderna, que apresenta uma variedade de metros e de rimas,podendo, inclusive, usar versos soltos.

    49 LACAN, 1982, p. 158.50 Castrao no usada no sentido corrente, isto , dicionarizado, onde significaato ou efeito de se castrar. O verbo castrar (do latim castrare) faz parte do cdigode nossa lngua com os seguintes significados, segundo a verso de Aurlio Buarque

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    de Holanda Ferreira: cortar ou destruir os rgos reprodutores; capar; impedir aproficuidade ou eficincia; anular ou restringir fortemente a personalidade; eliminaros estames de flor hermafrodita, antes que se abram para soltar o plen, a fim de seproceder ao cruzamento artificial. Estes significados so inteiramente antinmicos

    ao conceito de castrao em psicanlise. Ningum se castra, a condio para umser falante se constituir como sujeito se tornar um ser submetido s leis da linguagem,cuja estrutura, alm do simblico e do imaginrio, inclui o real, sob a forma de umafalta radical. Isto castrao para a psicanlise.

    51 LACAN, 1982, p. 150-151.52 Lacan, quando afirma que no h a relao sexual, embora isto possa soar

    estranho, est se referindo impossibilidade de se atingir um gozo sexual pleno, jque este gozo se localiza em uma parte determinada do corpo e no no corpo inteiro.Alm disso, numa cpula, o parceiro no goza com o corpo do outro, enquantorepresentante do Outro-sexo, mas sim com uma parte desse corpo. neste sentidoque se deve entender o aforismo lacaniano de que no h a relao sexual.

    53 O Outro-sexo para Lacan Mulher. O artigo feminino barrado, porque impossvel se definir a mulher, enquanto representante do Outro-sexo. Fala-sesobre as mulheres e na posio das mulheres. A diferena sexual, para a psican-lise, no se fundamenta numa diferena anatmica e sim numa posio discursivaem relao ao falo. Justamente por isto, pode-se dizer que os trovadores, quandocompunham as cantigas de amigo, falavam do lugar das mulheres.

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    CancioneirosPostilho de Apolo

    Fnix Renascida

    Barroco

    CO

    N

    T

    E

    X

    T

    O

    Religioso

    Poltico

    Econmico

    A Reforma (Revoluo Protestante)A Contra-Reforma tridentina (Conclio de Trento,1545- 1653)A fundao da Companhia de Jesus (1534)

    Apogeu do mercantilismoAfirmao do comrcioCriao de indstrias

    Estilos

    LI

    T

    E

    R

    A

    T

    U

    R

    A

    Cultismo

    Conceptismo

    Gneros

    lrico

    satrico

    amor divinoamor profanoa dor de existir

    AbsolutismoDeclnio das cidades italianasEm Frana, supremacia de Richelieu (1624-1642)Domnio dos Habsburgo e poderio espanhol

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    Antologia

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    Segundo os Cdices da Academia dos Esquecidos, trata-se deum poeta brasileiro. O poema escolhido se encontra na antologia Po-esia barroca, organizada por Pricles Eugnio da Silva Ramos.

    AO EXCELENTSSIMO SENHOR VASCO FERNANDESCSAR DE MENESES, VICE-REI DO ESTADO DO BRASIL

    LABIRINTO CBICO

    I N U T R O Q U E C E S A RN I N U T R O Q U E C E S AU N I N U T R O Q U E C E ST U N I N U T R O Q U E C ER T U N I N U T R O Q U E CO R T U N I N U T R O Q U EQ O R T U N I N U T R O Q UU Q O R T U N I N U T R O QE U Q O R T U N I N U T R OC E U Q O R T U N I N U T RE C E U Q O R T U N I N U TS E C E U Q O R T U N I N UA S E C E U Q O R T U N I NR A S E C E U Q O R T U N I

    Anastcio Ayres

    de Penhafiel (?)

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    Antnio Barbosa Bacelar(1610-1663)

    A maioria de sua produo potica foi publicada em Fnix renascidae Postilho de Apolo. Outros poemas se encontram dispersos em vrioscdices e antologias.

    Amoroso desdm num belo agrado,No mais duro ferir um doce jeito,

    Tirania suave em brando aspeito,Olhos de fogo em corao nevado.

    No vestir um asseio descuidado,Ingratido amvel no respeito,O brio, a graa, o riso em um sujeitoVariamente co grave misturado.

    Animado primor da fermosura,Luzido discursar de engenho agudo,Custosa luz, incndio pretendido,

    Alma no talhe, garbo na postura,Capricho no cuidado, ar no descuido,Armas so com que amor me tem rendido.

    (HATHERLY, 1997)

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    A UM BEM PERDIDO

    Eu me vi neste monte noutra idade

    Nos braos da ventura reclinado:Esta fonte, esta rocha, aquele pradoTestemunhas sero desta verdade.

    0h que tamanha mgoa a saudadeMe representa agora no cuidado!Mas quando durou mais um doce estado,Que tem a segurana na vontade?

    Para igualar a glria que ento tinha,dos Astros revestido o FirmamentoSe deu (oh quantas vezes!) por vencido.

    Mas que v ignorncia esta minha:To ocioso trago o pensamento,Que me ponho a cuidar num bem perdido.

    (Fnix renascida)

    A UM PEITO CRUEL

    O Bem passado que ? mal presente,O mal presente que ? dor esquiva,A dor esquiva que ? morte viva,A morte viva que ? inferno ardente,

    Com mal quem poder viver contente,

    Com dor quem haver que alegre viva,Com morte quem no tem pena excessiva,Com inferno quem vive alegremente?

    Por bem passado mal vou padecendo,Por alegria dor, por vida morte,Com glria o mesmo inferno estou sofrendo:

    Mas ah, peito cruel, que ainda mais forte

    A dura condio, que em ti estou vendo,Que bem, e mal, e dor, inferno, e morte.

    (Fnix renascida)

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    A UM SONHO

    Adormeci ao som do meu tormento,

    E logo vacilando a fantasia,Gozava mil portentos de alegria,Que todos se tornaram sombra e vento.

    Sonhava que tocava o pensamentoCom liberdade o bem que mais queria,Fortuna venturosa, claro dia.Mas ai! que foi um vo contentamento!

    Estava, Clori minha, possuindoDesse formoso gesto a vista pura,Alegres glrias mil imaginando.

    Mas acordei e, tudo resumindo,Achei dura priso, pena segura.Ah quem estivera assim sempre sonhando!

    (Fnix renascida)

    A UMA AUSNCIA

    Sinto-me, sem sentir, todo abrasadoNo rigoroso fogo que me alenta.O mal, que me consome, me sustenta,O bem, que me entretm, me d cuidado;

    Ando sem me mover, falo calado,O que mais perto vejo se me ausenta.E o que estou sem ver mais me atormenta.Alegro-me de ver-me atormentado;

    Choro no mesmo ponto em que me rio,No mor risco me anima a confiana,Do que menos se espera estou mais certo;

    Mas se de confiado desconfio, porque entre os receios da mudanaAndo perdido em mim, como em deserto.

    (Fnix renascida)

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