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Poliana Moça-Eleanor H. Porter

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Capítulo1:Dellaabreocoração

Della Wetherby subiu a imponente escada da casa de sua irmã, na

avenidaCommonwealth,eacionouacampainhaelétrica.Doaltodochapéuenfeitadodeplumasatéa soladosapatode saltobaixo, amoça irradiavasaúde e disposição. Mesmo sua voz, quando cumprimentou a criada queabriuaporta,vibravacomaalegriadeviver:

—Bomdia,Mary.Minhairmãestáemcasa?—Sim,senhora—respondeu,hesitante,acriada.—AsenhoraCarew

está,masnãoquerverninguém.—Verdade?—Dellasorriu.—Comonãosouninguém,elavaimever.

Não se preocupe... — E acalmou a criada, que parecia amedrontada. —Ondeéqueelaestá?Nasala?

—Sim,senhora.Mas...Della Wetherby, porém, já estava no meio da escada. E a criada,

olhandoemdesesperoparatrás,tornouaentrar.Novestíbulodoandardecima,semvacilar,avisitantedirigiu-seauma

portaentreabertaebateu.—Estábem,Mary...—disseumavozdesanimada.—Eunãodisse...É

você,Della!—Avoz,agora,denotavasurpresae carinho.—Querida!Deondeestávindo?

—Soueumesma.—Dellajáhaviaatravessadometadedoaposento.—Estouvindodeumdomingoetantonapraia,comduasoutrasenfermeiras,e vou voltar para o Hospital. Por isso é que vim aqui,mas não pretendodemorar.Vimparaisto.—Ebeijouadonadavozdesanimada.

AsenhoraCarewfranziuorostoerecuou,comfrieza.Aexpressãodealegriaemsuafacesumiu,substituídaporumardedesalento:

—Ora,eujádeviasaber.Vocênuncasedemoraaqui.—Aqui!—exclamouDella,rindoeerguendoosbraços.De repente, o tomde suavoz e sua atitudemudarame ela encaroua

irmãcomternura.— Ruth, querida, não posso... Não posso morar aqui. Você sabe —

concluiu,comcarinho.—Eunãosei.Nãosei,mesmo!—Airmãpareciairritada.— Sabe sim, querida. Sabe que não concordo com isso tudo: essa

tristeza, essa falta de interesse, essa insistência no sofrimento e naamargura.

—Eusouassimmesmo...—Sóquenãodeviaser.—Eporquenão?—Escuteaqui.—Dellanãoconteveumgestodeimpaciência.—Você

tem33anos,boasaúde...outeria,sesecuidasse,edispõedemuitotempoemuitíssimo dinheiro. Aposto que todomundo concordaria em que vocêdeveriaencontraralgopara fazer,numamanhã tão lindacomoadehoje,emvezde icartrancadaemcasaepediràempregadaparadizerquenãoquerverninguém.

—Maseunãoestouquerendomesmo...—Poiseuvimvê-la,àforça.RuthCarewsorriufracamenteevirouorosto:—Serápossívelquenãoentenda,Della?Eusoudiferentedevocê.Não

consigoesquecer...— Já sei. Está se referindo a Jamie, é claro — cortou Della. — Eu

também não esqueço, querida. Mas o desespero não vai nos ajudar aencontrá-lo.

—Duranteoitoanostenteiencontrá-lo,semmedesesperar!—Ruthseesforçouparaconterochoro.

— Sei que você tentou, querida— disse Della.— E nós duas vamoscontinuaraprocurá-lo.Essedesânimoéquedenadaadianta.

—Não tenho vontadede fazer outra coisa—murmurouRuth, comavozabafada.

Fez-sesilêncioeDellasesentou,olhando,contrariada,paraairmã.Atéquevoltouafalar:

—Ruth,medesculpese insisto,masseráquevocênãovaisairdisso?Seique icouviúva,mas,a inaldecontas,suavidadecasadaduroupouco,só um ano, e seu marido era bem mais velho que você, que era quasecriançaquandosecasou.Tempotãocurtodeveservistoporvocêcomoumsonho.Nãoépossívelquevocêdestruasuavida,ora!

—Não...—murmurouRuth,sempreabatida.—Querdizerquevocêvaicontinuarassim?—Bem...seconseguisseencontrarJamie...—Eusei,eusei...Mas,querida,seráquenãoháoutracoisanomundo

quepossafazê-lafeliz?SóJamie?—Nãovejooutracoisa.—Ruthdeuumsuspiro.—Ruth!—exclamoua irmã, irritada,para logoacrescentar,comuma

risadinha: — Querida! Gostaria de lhe dar uma dose de Poliana. Nãoconheçoninguémmaisnecessitadodisso.

—NãoseioqueéPoliana.—Ruthfechouacara.—Massejaoquefor,nãome faz falta. Isto aquinãoéo seuqueridoHospital e eunão sou suapaciente.Lembre-sedisso.

Dellapareceusorrirpelaexpressãomaisdosolhosquedoslábios:—Poliananãoéremédio,querida,emborahajaquemaconsidereum

tônico.Polianaéumamenina.—Menina?Comoqueriaqueeusoubesse?Você temasuabeladona e

pode ter também a suapoliana. Além do mais, você está sempre mepedindopara tomar alguma coisa.Ouvimuito bemvocêdizerdose, e issosignificaalgumaespéciederemédio.

— Bem, Poliana é uma espécie de remédio. — Della sorriu. — Osmédicos do Hospital acham mesmo que ela é melhor que qualquerremédio. É umamenina de 12 ou 13 anos, Ruth. Esteve no Sanatório noúltimoverãoeamaiorpartedoinverno.Sóestivecomelaunsdoismeses,pois ela saiu logo depois que cheguei. Mas foi o bastante para icarencantadacomela.OHospitaltodoaindafaladePolianaejogaoseujogo.

—Quejogo?!—Éojogoqueelainventou,ojogodocontente—respondeuDella.—

Jamais esquecerei como o aprendi. Havia, no tratamento de Poliana, umcurativobemdesagradável edoloroso.Tinhade ser feito todasas terças-feiras de manhã e, logo que comecei a trabalhar no Sanatório, chegouminha vez de aplicar o tal tratamento. Eu me senti apavorada: pelaexperiência com outras crianças, sabia o que me esperava. Irritação echoro, na melhor hipótese. Para minha surpresa, Poliana me recebeusorrindo, dizendo que tinha prazer emme ver. Pode acreditar: dos seuslábios saiu só um gemido, durante o doloroso tratamento. Acho que eudissequalquercoisa,manifestandominhasurpresa,eelaseapressouemexplicar: “Eu também achava isso e tinhamuitomedo, até que pensei: ‘ÉcomoosdiasdeNancylavarroupa,edevomesentirfeliztodaterça-feira,poisvoupassarumasemanainteiralivredessetratamento.’”

—Fantástico!— exclamouRuth.— Só que não estou vendo nenhumjogoaí!

—Eutambémnãovia,atéqueelamecontou.Polianaeraórfã, ilhadeum pobre pastor do Oeste. Foi educada pela Auxiliadora Feminina eganhavacestasdedonativosdosmissionários.Quandoaindaerapequena,quis ganhar uma boneca e esperava, con iante, que o presente viesse napróximacesta.Oquechegou,porém, foiumpardemuletas.Ela choroueentão seu pai lhe ensinou o jogo do contente: icar feliz com tudo o queacontecesse, mesmo se esperasse outra coisa. E lhe explicou que devia

icaralegrecomasmuletas,porquenãoprecisavadelas.Issofoiocomeço.Polianaachouo“jogo”muitodivertidoepassouapraticá-lo.Equantomaiseradifícildescobriroladoagradável,maisinteressantesemostravaojogo.

—Issoéimpossível!—exclamouRuth,sementender.— Não acharia impossível! se visse os resultados daquele jogo no

Sanatório — continuou Della. — O doutor Ames me contou que ouviradizerquePolianahaviarevolucionadoacidadedeondevieracomaquelainvenção.EleconheceodoutorChilton,maridodatiadePoliana.Porfalarnisso, achoqueavida conjugaldosdoisdevemuitoaPoliana.Briguinhasdocasal foramapaziguadasporela.Ouça isso:hádoisou trêsanos,opaidePolianamorreueelafoimorarcomatia,no lestedopaís.Emoutubro,foiatropeladae icousabendoquenuncamaispoderiaandar.Emabril,odoutorChiltonmandou-aparaoHospital,ondeelaficouatémarço,durantequaseumano.Voltouparacasapraticamentecurada.Vocêprecisavaveramenina. Nada perturbava sua felicidade. Poder andar era a felicidadecompleta.Ouvidizerqueacidadezinhafoirecebê-la,combandademúsicae tudo.Não adianta, porém, falar sobre Poliana; é preciso conhecê-la. FoiporissoqueeudissequevocêdeveriareceberumadosedePoliana.

— Peço licença para discordar de você — disse Ruth, erguendo acabeça.— Não preciso ser “revolucionada” e aqui não há briguinhas decasal.Naverdade,nadameseriamaisinsuportáveldoqueterameuladoumameninota compenetradae convencida, ame lembrar semprequantoeudeveriasergrata.Nãosuportaria...

— Ora, Ruth! — interrompeu-a uma sonora gargalhada de Della. —Poliana compenetrada e convencida! Essa não! Se você conhecesse amenina! Bem que eu disse. Não adianta falar dela, é preciso conhecê-la.Polianacompenetradaeconvencida?Essanão!

Della não conteve outra risada. Em seguida, encarou a irmã, de novopreocupada:

—Falandoseriamente,nãosepodefazeralgumacoisa?Vocênãodeviadesperdiçar a vida assim. Por que não sai um pouco... por que nãoconversacomoutraspessoas?

—Paraquê?—estranhouRuth.—Você sabemuito bemque jamaisgosteidemuitaconversa,muitafofoca.

—Quetalalgumaatividade?Assistênciasocial,porexemplo?— Já falamos sobre issomuitas vezes,Della.Doudinheiropara obras

de caridade.Muito dinheiro, nem sei bem quanto,mas émuito. Não vejovantagememsairporaívisitandoospobres.

—Ora, você bem que podia dar um pouco de simesma, querida!—

disseDella,afetuosamente.—Sepudessese interessarporalgumacoisa,alémdesuavida,issosólhefariabem,e...

—Escute,Della—interrompeuaoutra,impaciente.—Gostomuitodevocê, e sua visita me deixou contente. Mas o que não tolero é ouvirsermões. Pode ser bom para você transformar-se num anjo e andarfazendocurativos,lavandoferidasetc.etal.Talvezvocêpossaseesquecerde Jamie dessemodo. Eu não posso. Isso sóme faria pensar aindamaisnele, imaginando se ele também não estará sofrendo. Depois, não tenhoestômagoparaisso...mexercomessaespéciedegente.

—Játentou?—Claroquenão,ora!AvozdeRuthdenotava,aomesmotempo,desprezoeindignação.— Como é que pode saber, se nunca tentou? — Della parecia

desapontada. — Bem, tenho que ir, querida. Vou me encontrar com asmoçasnaestação.Otremparteàsdozeetrinta.Desculpetê-laincomodado—acrescentou,beijandoairmã.

— Você não me incomodou— protestou Ruth.— Só queria que mecompreendesse!

Umminutodepois,Dellaatravessouossombriosaposentosechegouàrua. Sua isionomia já não era a mesma que mostrava quando chegou,menos de uma hora antes, como se tivesse desaparecido sua disposição,vivacidade e alegria de viver. Andou passo a passo meio quarteirão,cabisbaixa.Depoisergueuacabeçaerespiroufundo.

—Uma semananaquela casamemataria—murmurou.—AchoquenemmesmoPolianaiaconseguiracabarcomaquelatristeza.Aúnicacoisaquepoderiaalegrá-laseriaacertezadequenãoficarialáparasempre.

AconfessadadescrençanacapacidadedePolianamudarparamelhoro lardeRuthCarewnãoera,no íntimo,aconvicçãodeDella,como icariaprovado em pouco. Logo que chegou ao Hospital icou sabendo de umacoisaqueafezpercorrerdevoltaosoitentaquilômetrosatéBoston,nodiaseguinte.

Encontroutudoigualnacasadairmãe,semdemora,tratoudeexplicar,anteasurpresadaoutra:

—Tivedevoltar,Ruth,evocêvaiterdefazeroqueeuquero.Escute!Polianapodeficaraqui,ésóvocêquerer.

—Maseunãoquero!—respondeuRuth,friamente.MasDellaprosseguiu,entusiasmada:—Ontem, quando voltei, iquei sabendo que o doutorAmes recebera

uma carta do doutor Chilton, o marido da tia de Poliana. Ele vai à

Alemanha, no inverno, para fazer um curso de especialização, e levará aesposa,seconseguirconvencê-laadeixarPoliananuminternato,enquantoestiverem fora. A tia de Poliana, porém, não está disposta a deixar amenina em qualquer colégio e, assim, não poderia viajar. Surgiu a nossaoportunidade, Ruth. Podemos icar com Poliana durante o inverno e elafrequentariaumcolégioaqui.

—Queideiamaisabsurda!—protestouRuth.—Nãoqueronenhumacriançaaquiparameimportunar!

—Elanãovaiimportuná-la.Jádeveterfeito13anos,eéameninamaisadiantadaquejáconheci.

— Não gosto de crianças “adiantadas” — replicou Ruth, dando umarisada,oquefezsuairmãtomarnovoalento.

Talveztenhasidooinesperadopedido.Talveztenhasidoofatodequeo caso de Poliana tivesse, de algummodo, tocado o coração de Ruth. Ouapenas sua incapacidade de recusar os apelos da irmã. O fato é quequando, meia hora mais tarde, Della Wetherby saiu, às pressas, levavaconsigoapromessadeRuthdereceberPolianaemsuacasa.

—Masnãoseesqueça—advertiraRuthaodespedir-sedairmã.—Nomomentoemqueatalmeninacomeçaramefazersermões,euamandodevolta.Evocêpodefazerdelaoquequiser.

— Não vou me esquecer e nem ico preocupada — disse Della,despedindo-seepensandoconsigomesma:“Metadedatarefajáestáfeita.Restaaoutrametade: fazercomquePolianavenha.Elavirá,sim.Vou lhefazerumacartairresistível”.

Capítulo2:Velhosamigos

Em Beldingsville, naquela noite de agosto, a senhora Chilton esperou

quePoliana fosseparaa cama,antesdeconversar comomaridosobreacarta que recebera pelamanhã. Ela teria de esperar, de qualquermodo,pois as trabalhosas horas no consultório e as longas cavalgadas pelasmontanhas não permitiam que sobrasse muito tempo ao médico para odiálogodoméstico.Quasenoveemeiadanoiteomaridochegouàsaladesua casa, onde a esposa o aguardava. Tinha um ar de cansaço, masiluminou-se ao avistar amulher. A seguir, uma expressão de surpresa ecuriosidadeserefletiuemseusolhos:

—Aconteceualgumacoisa,Paulina?Oquefoi?— É uma carta que recebi — explicou a esposa, sorrindo. — Nem

imagineiquevocêirianotar,sódeolharparamim.—Eu adivinho seus pensamentos— brincou omarido.—De que se

trata?— Vou ler a carta — disse a senhora Chilton, depois de pequena

hesitação.—ÉdeDellaWetherby,doHospital.—Podeler.—Omédicoespichou-senosofá.AsenhoraChiltonnãocomeçoulogoaleracarta.Levantou-seecobriu

omaridocomumcobertor.Haviaapenasumanoqueelasecasara.Tinha,agora, 42 anos e parecia, às vezes, que em tão curto período de vidaconjugal ela procurasse concretizar as demonstrações de amor e carinhoqueacumularaemvinteanosdesolidãoecarênciadeafeto.Omédico—que se casara aos 45 anos e que nenhuma recordação tinha a não sertambémsolidãoecarênciadeafeto—nãoseopunhaaessaconcentrada“compensação”. Até parecia apreciar aquilo, embora tivesse o cuidado denãomanifestar tal contentamento de formamais entusiástica: descobriraqueasenhoraPaulina forasenhoritaPaulinadurantetantotempoquesemostrava inclinada a entrar empânico e reter suaspiegasmanifestaçõesde carinho se elas fossem recebidas com muito reconhecimento. Assimlimitou-seabater-lhedelevenamão,quandoPaulinapassoualeracartadeDella:

PrezadasenhoraChilton,Já comecei a escrever-lhe seis vezes, sempre rasgando a carta iniciada.

Agora, resolvi não “começar” e passar diretamente ao assunto. Estou

querendoPoliana.Podeser?Conheci a senhora e seu marido em março último, quando levaram

Polianapara casa,masachoquenão se lembram demim. Pedi ao doutorAmes (queme conhece bem) para escrever a seumarido, a fim de que asenhora(espero)nãotenhareceiodenosconfiarsuasobrinha.

Sei que pretende ir à Alemanha com seu marido, mas terá de deixarPoliana.Assim,ousopedirquenospermitatomarcontadela,evou lhedizerporquê.

Tenhouma irmã,a senhora Carew, uma pessoa solitária e infeliz. Vivenummundosombrio,ondenãoentraumraiodesol.Achoqueseháalguémcapazdefazerentrarumraiodesolnosombriomundodeminha irmãésuasobrinhaPoliana.Elaresisteaqualquerumque tenteajudá-la.Estou certade que a senhora concordará comigo: se Poliana entrar em cena, tudomudará.Éporissoquedesejolevá-laparapertodeminhairmã.Claroqueelafrequentaria um colégio. Estou convencida de que seria o único remédiocapazdecuraraferidaquehánocoraçãodeminhairmã.

Nãoseicomoterminarestacarta: émaisdifícildoque começar.Talvezeu não esteja querendo terminá-la. Queria continuar falando sem parar,para não lhe dar chance de dizer “não”. De qualquermodo, se a senhoraestiver inclinada a dizer a terrível palavra, lembre-se de que ainda estoufalandoelhedizendoquantoprecisamosdePoliana.

Atenciosamenteeesperançosa,DellaWetherby— É isso aí— disse Paulina Chilton, ao terminar a leitura.— Já leu

algumacartaparecidacomestaoujáouviuumpedidomaisabsurdo?— Não sei — respondeu o médico, sorrindo. — Não acho assim tão

absurdoquererficarcomPoliana.—Eamaneiracomoelafala?Curarocoraçãoferidodairmã!Comose

Polianafossealgumremédio!—Bem...—Omédico deu uma risada.—Acho que ela émesmo um

remédio. Eu já disse que gostaria de poder receitá-la e comprá-la comouma caixinhade comprimidos. CharlieAmesmedisse queosmédicosdoHospital costumavamdaraospacientesumadosedePolianaomais cedopossível,depoisdeinternados,duranteoanoemqueelaestevelá.

—Ora!—protestouPaulinaChilton.—Vocêachaentãoqueelanãodeveir?— Claro que não! Acha que vou deixar a menina com gente

desconhecida... e que gente! Só faltava essa! Quando voltássemos da

AlemanhaaquelaenfermeiraestariacomPolianaengarrafadaecomumaetiquetadoladodefora,ensinandocomoa“dose”deveserministrada!

O médico tornou a rir, mas só por um momento. Sua isionomia semodificouquandoenfiouamãonobolsoetirouumacarta,dizendo:

— Eu também recebi uma carta do doutor Ames, hoje de manhã.Chegouaminhavezdelerumacarta.

Eleu:CaroTom,DellaWetherbypediu-mepararecomendá-la,assimcomosua irmã,oque

façocomprazer.Elaspertencemaumadistintafamíliaeeuasconheçodesdequeeramcrianças.Nãosepreocupequantoaisto.

Eram três irmãs, Doris, Ruth e Della. Doris se casou com um rapazchamado JohnKent, contraa vontadeda família. Kent era de boa família,mas ele próprio não era grande coisa: esquisitão e bem pouco simpático.Ficou furioso comaatitudedosWetherby easduas famílias quase não secomunicaram,atéquenasceuummenino.OsWetherbyadoravamacriança,James,ou Jamie,comoochamavam.Amãe,Doris,morreuquandoomeninotinhaquatroanoseosWetherbyseesforçaramparaqueacriança lhes fosseentregue em definitivo. De repente, Kent desapareceu, levando o menino.Nuncamaissesoubedele,emboraotivessemprocuradoportodaaparte.

Aquelaperdaprovocouamortedosenhor eda senhoraWetherby— osdoisfalecerampoucodepois.Ruthjáhaviasecasadoeenviuvado.SeumaridosechamavaCarew,riquíssimoebemmaisvelhoqueela.Viveuapenasumanoapósocasamento,deixando-acomum filhinho,quetambém faleceuantesdecompletarumano.

Desdeque Jamie desapareceu, Ruth e Della não tiveram outro objetivosenão encontrá-lo. Gastaram dinheiro, moveram céus e pedras, semresultado. Algum tempo depois, Della resolveu ser enfermeira e temtrabalhado esplendidamente: tornou-se uma mulher alegre, eficiente esaudável, sem contudo esquecer o sobrinho desaparecido e sem nuncadesprezarqualquerindícioquesurgissearespeitodomenino.

RuthCarewédiferente.Depoisdeperdero filho,pareceter concentradotodo seu afeto maternal no filho da irmã. Como é fácil imaginar, ficoudesvairadaquandoeledesapareceu,háoitoanos.Longosanosdesofrimento,de tristeza e amargura. Naturalmente, tem a seu alcance tudo o que odinheiropode comprar.Todavia,nada lhe interessa,nada lhe agrada. Dellaachaqueéhoradetirá-ladessavidasombriaequePoliana,asobrinhadesuaesposa,éachavemágicaqueabriráaportadeumanova existênciaparaa

infelizmulher.Assim,esperoquevocêsedisponhaasatisfazerseupedido.Eutambém lhe ficariamuitograto:afinal,RuthCarew e sua irmã sãoamigasmuitoqueridasdeminhamulher,eminhastambém,equalquer favor feitoaelasécomosenosfossefeito.

Comaamizadedesempre,CharlieAo im da leitura da carta fez-se longo silêncio, até que o médico

perguntou:—Eentão,Paulina?O silêncio continuou, e omédico, encarando a esposa, notou que seus

lábios, habitualmente irmes, tremiam. Tranquilamente esperou que elafalasse.Finalmente,Paulinaperguntou:

—Paraquandovocêachaqueelasaesperam?— Quer dizer que você vai deixá-la ir? — indagou o doutor Chilton,

surpreendido.— Que pergunta, Thomas Chilton.— A esposa parecia indignada.—

Vocêachaque,depoisdeumacartadessas,eupoderianegar?EodoutorAmes tambémpediu...Depoisdoqueele fezporPoliana, achaqueeu lherecusariaalgumacoisa?

—Bem,querida.SóesperoqueAmesnãotenhaaideiadepedi-la...—murmurouomarido,comumsorrisomalicioso.

—PodeescreveraodoutorAmesdizendoquevamosmandarPoliana— disse Paulina, com um olhar desdenhoso. — E peça-lhe para dizer aDellaparanos enviar as instruções.Temde ser antesdodiadezdomêsquevem,quandovocêvaipartir,eéclaroque,antesdeembarcar,querodeixartudoprovidenciado.

—EquandovaifalarcomPoliana?—Amanhã,provavelmente.—Eoquevaidizeraela?— Ainda não sei, só o necessário. Aconteça o que acontecer, não

podemos deixar que Poliana ique convencida, julgando-se importante.Toda criança se prejudica quandomete na cabeça a ideia de que é umaespéciede...de...

—Devidroderemédio,comasinstruções,nãoé?—Issomesmo—admitiuaesposa.—Vocêsempreencontraapalavra

certa,nãoé,querido?—Bem,pelomenosmeesforço.—Ora,euevocê,emetadedoshabitantesdacidade,fazemoscomelao

jogodo contente, e temosnosdadomuitobem.Mas, sePolianadeixardefazercomnaturalidadeabrincadeiraqueopailheensinou,epensarqueémuitoimportante,vai icarinsuportável.Assim,nãovoudizeraelaquevaiicar com Ruth Carew para animá-la ou curá-la. — Paulina se levantou,decidida.

—Achoquevocêestácerta—concordouomédico.Nodiaseguinte,Polianafoiinformadadetudo.— Queridinha... — começou a tia, quando as duas icaram a sós,

naquelamanhã.—GostariadepassaroinvernoemBoston?—Comvocê?—Não.VouàAlemanha comseu tio.Mas a senhoraCarew, amigado

doutor Ames, quer que você ique em sua casa durante o inverno. Achoquevoupermitir.

—Mas emBoston não vou ver Jimmy, nem o senhor Pendleton, ou asenhoraSnow.—Poliananãoescondiaatristeza.—NãoconheçoninguémemBoston,tiaPaulina!

—Ora,querida.Vocênãoconhecianinguémantesdevirparacá.—Émesmo, tia!—exclamouPoliana, comum sorriso.—E issoquer

dizerque,quandochegaraBoston,estarãoàminhaesperaoutrosJimmies,senhoresPendletonesenhorasSnowqueaindanãoconheço,nãoé?

—É,sim,minhaquerida.—Sabe, tiaPaulina?Aprendi a fazero jogodo contenteaindamelhor

do que antes. Nunca tinha pensado nas pessoas que não conheço e vouicarconhecendo.Elátambémhágentesimpática.Conhecimuitaspessoasquando estive lá dois anos atrás, coma senhoraGray. Foramduas horasde viagem... — Poliana recordava: — Na estação havia um homemsimpático,quememostrouondeeupodiabeberágua.Seráqueeleaindaestá lá?Ehaviaumasenhoraencantadora, comuma ilhinha...moramemBoston,segundomedisseram...AmeninasechamaSusieSmith,etalvezeuas encontredenovo.Havia tambémummenino e outra senhora comumbebê. Só que esses moram em Honolulu, e é di ícil vê-los de novo. Dequalquermaneira, há a senhora Carew. Quem é ela, tia Paulina? Algumaparentanossa?

— Não, meu bem. — Paulina parecia meio preocupada, ainda quesorridente.—AsenhoraCarewéirmãdeDellaWetherby,aquelamoçadoHospital.Lembra-sedela?

—Irmãdela?—Poliana icouentusiasmada.—Irmãdela?Entãodeveser um encanto. Eu adorava Della Wetherby, com umas ruguinhasengraçadasemtornodosolhosedaboca,quandosorriaecontava lindas

histórias! Só convivi comela doismeses... foi para oHospital pouco antesde eu sair de lá. A princípio iquei triste,mas depois iquei contente comisso, porque senão iria icarmuitomais triste quando fosseme despedirdela.Agora,vouvê-ladenovo,imagine!

—Ora,Poliana.—Paulinamordeuoslábios.—Nãováachandoqueasduasseparecemmuitoumacomaoutra...

— Mas elas são irmãs, tia Paulina! Irmãs sempre se parecem. NaAuxiliadoraFemininahaviadoisparesde irmãs.Duaseramgêmease tãoparecidasqueagentenemsabiaquemeraasenhoraPeckequemeraasenhora Jones.Atéquenasceuumaverruganonarizdasenhora Jonese,então, icoufácil.Aprimeiracoisaquesefaziaeraolharparaaverruga,efoioqueeulhedisse,umavezemqueelasequeixavadequeaspessoasachamavamde senhoraPeck. Então, eudisse que, se as pessoas olhassemparaaverruganãoiriamconfundir.Elanãogostoumuitodoqueeudisse,nem sei por quê. Até pensei que ela ia icar satisfeita, a inal era apresidente da Auxiliadora Feminina e, naturalmente, queria ser tratadacomrespeito:osmelhores lugares,atençãoespecial,essascoisas.O fatoéqueelanãogostoue,temposdepois,ouviasenhoraWhitedizeràsenhoraRawsonqueasenhoraJonesestavadispostaafazertudoparaselivrardaverruga, atémesmobotar salno rabodeumaave.Uma tolice.A senhoraacha,tiaPaulina,quebotarsalnorabodeumaavefazverrugacair?

— Claro que não, menina! Quanta bobagem você aprendeu comaquelassenhorasdaAuxiliadora,nossa!

— A senhora acha, tia Paulina? Não quero aborrecê-la de formaalguma,masfoibomterestadocomassenhorasdaAuxiliadoraemesintofelizquandome lembrodaquele tempo: estou livredelas emorando comumatiamuitoboa.Nãoémotivoparamesentirfeliz?

—Claro,querida—concordouPaulinasemconterorisoesentindoumcerto remorso ao se dar conta de que ainda experimentava a velhairritaçãoemfacedapermanentealegriadePoliana.

Nosdiasseguintes,quandosecruzavamnocaminhocartastratandodaestada de Poliana em Boston, durante o inverno, amenina se preparavapara a viagem, despedindo-se dos amigos de Beldingsville. A essa altura,todos os habitantes da cidadezinha de Vermont conheciam Poliana efaziamojogodocontente.

Poliana foi de casa em casa, anunciando que passaria o inverno emBoston.Nãohouvequemnãosemostrassetristepelaausênciadamenina,desdeNancy,nacozinhadetiaPaulina,aténacasadomorroondemoravaJohnPendleton.

Nancydizia a todomundo—menosà suapatroa—queachavaumaloucura aquela viagem a Boston. Em sua mansão na montanha, JohnPendleton pensava o mesmo e não hesitava em dizer isso à própriasenhora Chilton. Quanto a Jimmy— omenino de 12 anos que Pendletonacolhera em casa a pedido de Poliana e que acabara por adotar—, esteficouindignado.

—Vocêmalacaboudechegar!—disseaPoliana,notomdevozdeummeninoquetentaesconderquetemumcoração.

—Queéisso?—retrucouPoliana.—Estouaquidesdemarço.Alémdomais,éporpoucotempo.Sóvoupassaroinverno.

— Bem, você icou fora daqui um ano inteiro e se eu soubesse quepretendia sairdenovo logodepois, aprimeira coisaqueeu fazia eranãorecebervocêcombandeirasebandademúsica,quandovoltoudoHospital.

—Ora, Jimmy!Não lhepediparame receber combandeiras ebandademúsica. Ainda por cima, você cometeu dois erros.Não devia dizer “eufazia”e“era”,esim“eufaria”e“seria”.

—Issonãotemimportância!— Tem, sim. Você mesmo me pediu para corrigi-lo quando falasse

errado.OsenhorPendletonquerquevocêfalecerto.— Fique sabendo que, se você tivesse sido criada em um asilo, sem

parentesquese interessassemporvocê,emvezdevivercercadaporumbando de velhas que só faziam ensiná-la a falar direito, acho que não iafalarmelhordoqueeu!

— Fique sabendo, Jimmy Bean, que as senhoras da Auxiliadora nãoeramumasvelhas...Bem,muitasdelaserammesmoidosas—apressou-sePoliana em corrigir, levada pelo hábito de dizer a verdade, mesmo nosmomentosderaiva.—E...

—EfiquesabendoquenãomechamoJimmyBean!—Émesmo?Queestáquerendodizer?—Fuiadotadolegalmente.Hámuitotempoelequeriafazerisso.Agora,

meadotou.PasseiamechamarJimmyPendletonetenhoquechamá-lodetioJohn.Bem,quantoaisso...querdizer...aindanãomeacostumei.

Omenino continuava a falar, já desfeita a expressão de raiva em seurosto.Polianabateupalmas,entusiasmada:

— Ótimo! Agora vocês são parentes! Parentes que se amam, querodizer. Você não precisa nemmesmo explicar que ele não é seu parente,porqueosobrenomeéigual.Estoufelicíssima!

Omeninopuloudomuroondeestavamsentadoseseafastou,coradoecom os olhos úmidos. Devia aquilo a Poliana, sabia muito bem. E, no

entanto,tinhaacabadodedizeraela...Chutouumapedrinha,depoisoutraemais outras. Pensou que as lágrimas que lhe umedeciam os olhos iamacabar descendo pelas faces. Chutou outra pedra, mais outra, depoisapanhou uma terceira e atirou-a longe. Um minuto depois, voltou parajuntodePoliana,nomuro.

—Apostoquechegocorrendoatéaquelepinheiroali,nasuafrente—desafiou.

—Apostoquenãochega!—Ameninasepôsdepé.Acorridanãochegouaserealizar:Polianaselembrouatempodeque

apostar corrida era um dos prazeres que lhe estavam proibidos. Jimmynão se incomodou — as lágrimas já não ameaçavam escorrer-lhe pelorosto.Jimmysereencontrara.

Capítulo3:UmadosedePoliana

Aproximava-se o dia 8 de setembro — Poliana chegaria —, e Ruth

Carewsesentiacadavezmaisnervosa.Diziaquesósearrependeraumavezdeterconcordadoemreceberamenina.Umaúnicavez,atéagora.Defato,antesdesepassaremvinteequatrohoras,escreveraàirmãpedindoque a liberasse da promessa. Della respondera que era tarde demais:tantoelaquantoodoutorAmesjáhaviamescritoaosChilton.

Recebera,poucodepois,umacartadeDellainformandoqueasenhoraChilton havia concordado e chegaria a Boston em breve para asprovidênciasquantoaocolégio.Assim,nadamaisrestavaaser feito.Ruthcompreendeue curvou-seao inevitável.Naverdade,procurouseromaisdelicadapossível quandoDella e Paulina Chilton chegaram. E icoumuitocontentecomo fatodePaulinanãopodersedemorar,pelapremênciadotempo.

Talvez tenha sido bom que a chegada de Poliana tivesse de ser,maistardar, nodia8, pois apassagemdo tempo, emvezde fazerRuthCarewacostumar-secomaperspectivadetermaisumapessoaemcasa,tornava-amaisimpacienteeirritadacomaquele“desfechoabsurdodoplanolouco”deDella.

Esta, por sua vez, não ignorava o estado de espírito da irmã. Se semostrava, na aparência, muito con iante, estava no íntimo com medo deque o resultado não fosse grande coisa. Mantinha, porém, sua fé emPolianaeadotouaousadaresoluçãodedeixaramenina travarsozinhaaferoz batalha. Fez com que Ruth fosse recebê-las na estação, no dia dachegada. Terminados os cumprimentos, afastou-se apressadamente,alegando compromisso anterior. Ruth se viu, de repente, sozinha comPoliana.

— Oh, Della! Você não deve... Eu não posso...—murmurou, nervosa,enquantoaenfermeiraseafastava,fingindonãoouvir.

Visivelmenteaborrecida,Ruthtevededaratençãoàmenina.—Quepena!—exclamouPoliana.—Elanãoouviu,nãofoimesmo?Eu

nãoqueriame separardela tão cedo.Mas, agora, iquei coma senhora eestoualegreporisso.

— Bem, você está comigo... e eu com você. Venha por aqui — disseRuth,semmuitoentusiasmoeapontandoparaadireita.

Poliana seviroue caminhouao ladodeRuth,pelaestação ferroviária.

Olhouumaouduasvezesparaorostopoucoamigáveldaoutra.Depoisdealgumahesitação,falou:

—Achoqueasenhorapensouqueeufossebonita...—Bonita?—repetiuRuth.—Sim...decachos...essascoisas.Asenhoraimaginavacomoeuseria,e

eu também imaginava como a senhora seria. Só que eu sabia que asenhora tinhade serbonitae simpática,por causade sua irmã.Eupodiafazer a comparação com ela, mas a senhora não tinha com quem mecomparar. Sei que não sou bonita, tenho sardas, e é muito desagradávelesperarumameninabonitaemever...

— Que bobagem, menina! — atalhou Carew, um tanto irritada. —Venha.Temosdeapanharsuabagagemedepoisvamosparacasa.Penseique minha irmã fosse conosco. Parece que ela não vai icar... nem estanoite.

—Eusei.—Polianasorriu.—Elanãopodia.Deveteridoseencontrarcomalguém.NoHospital,semprehaviaalguémquerendofalarcomela.Aspessoasnão lhedão folga.Masdeve serbomsaberque se é tãoqueridaportodos.

Não houve resposta, talvez porque, pela primeira vez na vida, RuthCarewperguntasseasimesmasehaveriaalguémnomundoquequisessea sua companhia. Não que ela izesse questão disso, pensou, olhando decarafechadaparaamenina.

Poliananãonotou a cara fechada:não tiravaos olhosdamultidão emtorno.Etevededizer,muitofelizdavida:

—MeuDeus!Quantagente!Hámaisgentehojequedaoutravezemqueestiveaqui.Masaindanãovinenhumconhecido.Asenhorasimpáticacomobebêmora emHonolulu enãopodiamesmoestar aqui.Mashaviauma menina, Susie Smith, que mora em Boston. Será que a senhoraconheceSusieSmith?

—NãoconheçonenhumaSusieSmith—respondeuRuth,seca.— Pois ela é um encanto! E muito bonitinha. Tem cabelos pretos e

anelados,comoumanjodocéu.Masnãofazmal.Seeumeencontrarcomela, a senhora ica conhecendo.Nossa!Queautomóvel lindo!Vamosnele?— quis saber Poliana, quando pararam perto de uma limusine, cujomotorista,fardado,mantinhaaportaaberta,debonénamãoesorrindo.

RuthCarewrespondeucomoalguémqueachavaqueautomóvelnãoéparapasseios,masummeiodelocomoçãodeumlugardesagradávelparaoutro,provavelmentenãomenosdesagradável:

— Sim, vamos de carro para casa. — E voltou-se para Perkins, o

motorista.—Então,oautomóveléseu?Quelindo.Asenhoradevesermuitorica,

muitomais do que essas pessoas que têm carpetes em todos os quartos,como os White. A senhora White é uma das minhas senhoras daAuxiliadora. Sempre pensei que eles eram ricos, mas agora sei que só émesmo rico quem tem anéis de brilhantes, empregados, casacos de pele,vestidosdesedaeveludoeumcarroigualaeste.Asenhoratemtudoisso?

—Bem...—respondeuRuth,semjeito.—Achoquesim...—Então,asenhoraémuitorica.MinhatiaPaulinatambémtem,sóque

o carro dela é um cavalo. Eu adoro andar nisto! A senhora sabe? Nuncatinhaandadodeautomóvel,anãosernaquelequemeatropelou.Elesmepuseramnocarro,depoisdemetiraremdebaixodele.Masnempercebienão pude aproveitar. Depois, nunca mais andei em um. Tia Paulina nãogosta. Tio Tom, sim, gosta, e tem vontade de ter um. Diz que vai ter um,para o seu trabalho. Ele émédico e os outrosmédicos da cidade já têm.Não sei como vai ser. Tia Paulina tem medo. A senhora sabe: ela quermuito que tio Tom tenha tudo quanto deseje, mas só o que ela tambémqueira.Estáentendendo?

— Claro, querida. — Ruth não pôde deixar de rir, com um brilhosurpreendentenosolhos.

— Sabia que ia entender— disse Poliana, contente. — De qualquermodo, achei que tinha dito uma coisameio esquisita. Tia Paulina diz quenãose importariadeterumautomóvel,desdequefosseoúnicoexistentenomundo, para não haver perigo de algum passar por cima dela. Mas...Deus!Quantas casas!—E olhava em torno, admirada.—Bem, é precisoque hajamuitas casas, para caber aquela gente toda que vi na estação emais todas aspessoasque andampelas ruas.Naturalmente, quantomaisgentehouver,maisgentepodemosconhecer.Gostodeconhecerpessoas.Asenhoranãogosta?Gostodosoutros.Easenhora?

—Gostardosoutros?—Sim,dosoutros.Qualquerpessoa...todas.— Não, Poliana, não posso dizer que gosto — respondeu Ruth

friamenteecerrandoassobrancelhas.Seus olhos tinham perdido o brilho, voltados, com descon iança, para

Poliana. E a si mesma, Ruth dizia: “Aí vem, se nãome engano, o sermãonúmero um sobre o meu dever de amar o próximo, à maneira da irmãDella!”

— Não gosta?— espantou-se Poliana.— Eu gosto muito. As pessoassão tão simpáticas e diferentes! Aqui deve haver muita gente assim. A

senhora nem imagina comome sinto feliz em ter vindo. Sabia que ia serassim logo que me disseram que a senhora era irmã da senhoritaWetherby. Adoro aquelamoça, e sabia que ia adorar a senhora também.As irmãssempreseparecem,mesmosenãosãogêmeas,comoasenhoraJonesea senhoraPeck.Elasnãoeram iguaizinhas,porcausadaverruga.Masseiqueasenhoranãoestáentendendooqueeudigo,evouexplicarmelhor.

Assim aconteceu: Ruth Carew, que esperava um sermão sobre éticasocial, tevedeouvir,comsurpresaeumcertodesconforto,ocasodeumaverruga no nariz da senhora Peck, uma das senhoras da Auxiliadora.Quando Poliana acabou de contar o caso, a limusine tinha chegado àavenida Commonwealth e a mocinha começou a manifestar entusiasmocom a beleza do lugar. Havia um “jardim tão bonito em toda a suaextensão” e tudo era lindo, “depois de tantas ruazinhas estreitas”.Completou,comentusiasmo:

—Achoquetodomundogostariademoraraqui!—Sóquenãoseriapossível—retrucouRuthCarew.InterpretandoerroneamenteaexpressãoestampadanorostodeRuth,

como se ela tivesse manifestado o desgosto pelo fato de não morar, elaprópria,nabelaavenida,tratoudecorrigir:

— Eu não quis dizer que as ruas estreitas não são também muitobonitas. Talvez seja até melhor morar lá, porque não se tem de andarmuitopara fazer compras...Oh!Mas a senhoramora aqui?—perguntou,quandoocarroparoudiantedoportãodacasadeRuth.

—Claroquemoroaqui—confirmouaviúva.—Imaginocomodevesesentir feliz,morandonumlugartãolindo!—

exultouamenina,descendodocarro.—Nãoémesmo?Ruthnãorespondeue,pelasegundavez,Polianaemendou:—Eu não quis dizer que a senhora seja orgulhosa. Talvez a senhora

tenhapensado,comoàsvezestiaPaulinapensa.Nãoquismereferiraessaalegria de ter algo que os outros não têm, mas à alegria de viver que agente sente e dá vontadede sair gritando.—E se pôsnaponta dos pés,comoseestivessedançando.

Enquanto o motorista virava as costas e mexia em alguma coisa nocarro,asenhoraCarewsubiunafrenteaescadadepedra.

Cinco dias depois, Della Wetherby recebeu uma carta da irmã, aprimeiraquerecebiadepoisquePolianachegaraaBoston:

Queridairmã,

PeloamordeDeus,por que nãome deu uma ideia do que eu poderiaesperar dessamenina que vocême impingiu? Já estou quase louca e nãopossomandá-laembora.Tenteitrêsvezes,massempre,antesqueeu fale,elaarrancaaspalavrasdeminhaboca,dizendoque se sente feliz, satisfeitadeestaraqui e como foibomque eu tivessedeixadoque viessemorar comigoenquantosuatiaestánaAlemanha.Como,diantedisso, eupoderia replicar“Porquenãovoltaparasuacasa?Nãoaqueroaqui”?Omaisabsurdoéquenão creioque jamais tenhapassadopela cabeçadela a ideia de que não aqueroaqui.Nãoseicomofazerparaqueelaentenda.

Éclaroque,quandoelacomeçarcomossermões,ouamedarconselhossobrecomoserfeliz,euamandareiandar.Vocêsabe—eeu já lhedisse isso—quenãopermitirei tal coisa.Duas ou três vezespenseique ela estivessecomeçandoumsermão,massempreterminacomalgumcaso idiotasobreastaissenhorasdaAuxiliadora.Porsortedela,deixade lado o sermão, se estáquerendoficar.

Polianaé impossível,Della.Emprimeiro lugar, está entusiasmada comacasa.Desdequechegou,pediupara ver todos osaposentos enão se satisfezenquantonãoacabou com todasas sombras da casa, para poder admirar“essas coisas lindíssimas” que, segundo pensa, sãomais bonitas que as dosenhor Pendleton, acho que o nome é esse, alguém de Beldingsville. Pelomenos,otalnãoéumaDamadeCaridade.Jáestoufartadelas.

Depois, como senãobastasseme fazerandardequarto em quarto, eisquedescobreumvestidodebailedecetimbrancoqueeunãousoháanos einsistecomigoparavesti-lo.Acabei fazendo isso,poismevi impotentediantedesuainsistência.

Issofoisóocomeço.Fezquestãodevertudoemecontouumcasoacercadas “cestasdosmissionários”.Nãopudedeixarde rir,mesmo que estivessecomvontadedechorar,pensandonasroupashorríveisqueacoitadatinhadeusar.Depoisdosvestidos,vieramasjoiaseelaficoutãoadmiradacomosdoisoutrêsanéis,quecometia loucurade tirardo cofre, e tivea impressãodeque seus olhos iam pular das órbitas, de tão arregalados. Pode acreditar,Della,penseiqueelativesseficadodoida.Fez-meusartodososanéis,broches,pulseirase colares e colocou emminha cabeçaasduas tiarasdebrilhantes(descobriu onde estavam), até que fiquei por ali, sentada, carregada depérolas,diamanteseesmeraldas, comoumadeusapagãnum templohindu.Especialmente,quandoamaluquinha começouadançar em volta demim,batendo palmas e cantando: “Que lindo, que lindo. Tinha vontade dependurarasenhoranajanela.Seriaumbelíssimoprisma!”

Já iaperguntara ela o que queria dizer,mas amenina caiu no chão,

corando.Sabeporquê?Porquesesentia felizporter olhosquepodiam ver!Queachadisso?

Nãoétudo,sóocomeço.Polianaestáaquiháquatrodias—osdiasmaischeiosque já vivi. Já conta entre os seusamigos o limpadorde chaminés, opolicialde serviço e o jornaleiro,paranão falardos criadosda casa.Todosestãoencantadoscomela.Masnãopensequeeutambémestou.Seriacapazdemandá-ladevolta, imediatamente,senãomesentisseobrigadaacumprirapromessadehospedá-ladurante o inverno. Quanto ame fazer esquecerJamie eacabar com omeu sofrimento, é impossível. Ela só serve paramefazer sentiraperdamais intensamente, pois é ela que está comigo e nãoJamie.Comodisse, vou ficar comPoliana,até ela começara fazer sermões.Entãoamandareiparavocê.Sóque,porenquanto,elaaindanãofezisso.

Afetuosaepesarosamente,Ruth—Elaaindanãopregousermões...—murmurouDellaconsigomesma,

enquanto dobrava a carta da irmã. — Ah, Ruth, Ruth! No entanto, vocêconfessaqueabriutodososquartos,deixouosolentraremsuacasaeseenfeitoudesedaejoias...EnãofazaindaumasemanaquePolianachegou!Sóquenãofezsermão,nãofezsermão!

Capítulo4:OjogodocontenteeRuthCarew

Se Boston era uma experiência nova para Poliana, para a cidade a

meninaeratambémumanovaexperiência.AindaquegostassedeBoston,Polianaachavaacidadegrandedemais.

—Sabe,tinhavontadedeconhecertodosaqui,enãoépossível—disseelaaRuthnodiaseguinteaodesuachegada.—ÉcomoosjantaresdetiaPaulina emdia de festa.Há tanta coisapara se comerque a gente acabasemcomerdireito... icaescolhendoenãosedecide.Claroqueagente icafeliz vendo tanta coisa, quer dizer, tanta coisa boa, e não coisas comoremédios e enterros,Deusme livre!Aomesmo tempo, eu semprequeriaqueos jantaresde festade tiaPaulina seprolongassemmais, até osdiasemquenãohácoisasgostosas,comobolosetortas.Sintoamesmacoisaarespeito de Boston. Queria levar uma parte dela comigo, paraBeldingsville... assim eu teria alguma coisa no próximo verão. Claro queissonãoépossível.Cidadesnãosãocomoosboloscomglacêqueagenteguarda. Para falar a verdade,mesmo comosbolosnão é fácil. Já tentei enãodeucerto:oboloficaduro,atéoglacê.Masaindavouaprender!

Ao contrário das pessoas que achamque, para se conhecer omundo,deve-se começar pelos lugares mais afastados, Poliana começou a“conhecerBoston”comcuidadosaexploraçãodoambientequearodeava:abelamansãodaavenidaCommonwealth.Issoocupoutodooseutempoeatenção,durantealgunsdias,juntamentecomsuastarefasescolares.

Haviamuitacoisaparavereaprenderetudoeramaravilhoso—desdeos aposentos sempre iluminados até o grande e silencioso salão de baile,com paredes forradas de quadros e espelhos. E quanta gente simpática!Além da senhora Carew, havia Mary, que se encarregava da limpeza,atendia à porta quando a campainha soava, levava Poliana ao colégio e atraziadevolta.HaviaBridget, cozinheira, quenão se afastavada cozinha,Jennie, que servia a mesa, e Perkins, o motorista. Todos eram muitosimpáticose,noentanto,tãodiferentes!

Poliana chegara numa segunda-feira e, assim, passou-se uma semanaatéodomingo seguinte.Namanhãdessedia, eladesceuparaoandardebaixo,exclamando,radiante:

—Adoroosdomingos!—Émesmo?—perguntouRuth,comvozdequemnãogostavanemde

domingosnemdequalquerdiadasemana.

— Claro! Por causa da igreja e da escola dominical. De que é que asenhoragostamais?Daigrejaoudaescola?

—Realmente...—começouRuth,querarasvezesforaàigrejaenuncaàescoladominical.

—Édi ícildizer,nãoé?—atalhouPoliana,séria.—Naverdade,achoquegostomaisda igreja,porcausademeupai.Eleerapastor,asenhorasabe,eagoraestánocéu,comminhamãeeosoutrosdafamília.Àsvezesimagino que ele está vivo, e é melhor na igreja, quando o pastor estáfalando.Fechoosolhosepensoqueémeupaiqueestáali.Ajudamuito.Asenhoranãoachaqueébomagenteimaginarascoisas?

—Nãosei,Poliana.—Ora,pensecomoascoisasque imaginamossãomelhoresdoqueas

reais...Querdizer,nãoéoseucaso,poisassuascoisasreaissãotãoboas!Ruth Carew, irritada, abriu a boca para replicar,mas Poliana não lhe

deutempo:—Comigo,ascoisasreaisestãobemmelhoresdoqueeram.Duranteo

tempo em que estive doente, quando não podia andar, eu icavaimaginandootempotodo.Aindahoje icoimaginando,muitasvezes,sobremeupaietc.Hojevou imaginarqueémeupaiqueestánopúlpito.Aquehoranósvamos?

—Vamos?!—Sim,àigreja.—Poliana,eunão...istoé,eu...Ruthlimpouagargantaetentoudizerquenãofrequentavaaigreja,ou

que raramente ia até lá.Mas não conseguiu, diante da expressão que seestampavanorostodePoliana.Edisse:

—Bem...Láparaasdezeumquarto...seformosapé.Assim aconteceu que, naquela bela manhã de setembro, Ruth Carew

ocupou, pela primeira vez emmeses, o banco reservado à sua família notemplofrequentadopelaaltasociedade,omesmoquefrequentavaquandomeninaeparaoqualcontribuíacomdinheiro.

ParaPoliana,ocultodaquelamanhãfoimotivodeadmiraçãoealegria.Amaravilhosamúsicaquevinhadocoro,osraiosdesolvarandoosvitrais,avozsonoradopastoreosussurrodaspreces, tudoadeixouemêxtase,quase sem voz. Só quando já estavam perto de casa, de regresso,desabafou:

—SenhoraCarew,euestavapensandocomosou felizporqueagentesóviveumdiadecadavez.

Ruth fechou a cara — não queria ouvir sermão. Já fora obrigada a

aturar a pregação do púlpito — pensou, furiosa — e não suportaria odaquela menina espevitada. Depois, aquela história de “viver um dia decadavez”eraumadas teorias favoritasdeDella.Quantasvezes sua irmãlhe dissera: “Mas você só tem que viver umminuto de cada vez, Ruth, etudopodedurarumminutodecadavez!”

—Émesmo?—perguntou,tensa.— Claro. Já imaginou a gente viver ontem, hoje e amanhã aomesmo

tempo?Tantacoisaboaaomesmotempo.Eutiveontem,estoutendohoje,vou ter amanhã e o próximo domingo. Francamente, senhora Carew, sehoje não fosse domingo e eu não estivesse no meio da rua, ia sairdançando,cantandoegritando.Nãopossoresistir.Comoédomingo,tenhodeesperaratéchegaremcasae,então,cantarumhino,omaisalegrequehouver.Qualéohinomaisalegrequeexiste?Asenhorasabe?

—Nãoseidizer—respondeuRuth,emvozbaixa.Para alguém que esperava ouvir sempre que as coisas eram más,

escutarquedeveriaviverumdiadecadavezeraestranho,paranãodizercoisapior. Imaginem:ouvirque tinhamuita sortededesfrutarumdiadecadavez,porquetudoerabom!

Namanhãseguinte, segunda-feira,Poliana foiaocolégiopelaprimeiravez, sozinha. Já conheciao caminhoeo trajetoera curto.Estavagostandodocolégio—umpequenocolégioparticularparameninas—,expe-riêncianovanogênero.MasPolianagostavadeexperiênciasnovas.

Ruthnãogostavadenovasexperiênciaseenfrentaramuitasnaquelesdias. Para uma pessoa cansada de tudo, teria de ser um aborrecimentoconviverdeperto comalguémqueviaem tudo fascínioenovidade.Alémde aborrecida, Ruth estava exasperada. Tinha de confessar a si mesma,porém,que,selheperguntassemacausadasuairritação,aúnicarespostaseriaesta:“ÉporquePolianaétãoalegre.”Eelapróprianãoteriacoragemderesponderumacoisadessas.

Escreveu a Della para dizer que a palavra “alegre” lhe fazia mal aosnervos e às vezes desejava nunca ouvi-la de novo. Ainda admitia quePoliananãopregarasermões,nemmesmotentarafazerojogodocontente.Oqueameninafaziaeraconsiderarnaturaleprovadaa“alegria”deRuth—verdadeiraprovocaçãoparaquemnãoadmitiaaalegria.

FoinasegundasemanadePolianaemBostonqueoaborrecimentodeRuth transbordou para manifesta irritação. A causa imediata foi aconclusãodeumdos casos contadosporPoliana a respeitodas senhorasdaAuxiliadora.

—Estávamos jogando—explicou.—Mas a senhora talvez não saiba

comoéojogo.Voumostrarcomoé.Éumjogomuitointeressante.— Não é preciso, Poliana— disse Ruth, erguendo o braço. — Já sei

tudoarespeitodessejogo.Minhairmãmecontou.Edevolhedizerquenãoestou...nãoestouinteressadanele.

—Claro que não, senhora Carew.—Poliana parecia se desculpar.—Euialheensinarcomojogar.Maséclaroqueasenhoranãopode!

—Nãoposso?!—indagouRuth,que,emboranãoestivessedispostaafazeraquelejoguinhoidiota,tambémnãosedispunhaaouviralguémdizerquenãopodiajogá-lo.

—Nãopode, a senhoranãovê?O jogo consiste emdescobrirque emtudoháumladobom.Asenhoranãopoderiaprocuraroladobomdeumacoisa ruim, pois tudo o que lhe acontece é bom! Não pode jogar, estávendo?

Ruth Carew icou tão irritada que não se conteve, perguntandofriamente:

— Você acha? Pois ique sabendo que não vejo nada que possa sermotivodealegriaparamim.

A menina icou sem entender um instante e depois exclamou,estarrecida:

—Oquê,senhoraCarew?—Istomesmoquevocêouviu—disseaviúva, esquecidadequenão

estavadispostaaouvirsermõesdePoliana.—Mas...—murmurouamenina,incrédula.—Estacasaétãolinda!—Ora,éapenasumlugarparacomeredormir...enãogostodecomer

edormir.—Hátantascoisasmaravilhosas!—Estoucheiadelas.—Eoseucarro,quepodelevá-laaondequiser?—Nãoqueroiralugaralgum.—Mas pense nas coisas e pessoas que a senhora vê!—Polianamal

conteveumgritodeespanto.—Nãomeinteressam.—Nãoentendo,senhoraCarew.—Poliana,maisumavez,arregalouos

olhos.—Antessemprehaviacoisasruinsparaaspessoas fazeremo jogodocontente,equantopioresfossem,maisengraçadoeraojogo,querdizer,descobriroladobomdascoisas.Mas,senãohácoisasruins,nãoseicomosepoderiajogar.

Durantealgumtempo fez-sesilêncio.Ruth icousentada,olhandopelajanela,masaexpressão irritadade seu rosto, aospoucos, transformou-se

emardetristeza.Virou-seedisse:—Penseiquenãodevia falar istocomvocê,Poliana.Masresolvi falar.

Voulhedizerporquenadamealegra.E passou a contar a história de Jamie, o menino que, há oito anos,

partiraparaooutromundo,deixandofechadaaportaentreosdois.—Asenhoranãooviununcamais?—indagouPoliana.—Nunca.—Vamosencontrá-lo,senhoraCarew.Tenhocerteza.—Ora,jáprocureiportodaparte,aténoexterior.—Eledeveestaremalgumlugar.—Talveztenhamorrido,Poliana.— Não! — protestou Poliana. — Por favor, não diga isso! Vamos

imaginar que ele está vivo. Podemos imaginar, e isso faz bem. Depois deimaginarmosqueeleestávivo,podemos imaginarquevamosencontrá-lo.Eissoajudaráaindamais.

—Receioqueeleestejamorto—murmurouRuth.—Sóquenãotemcerteza,nãoé?—Certeza,não.—Querdizerqueasenhorasóimaginouisso.Esepodeimaginarque

ele está morto, pode muito bem imaginar que ele está vivo, e será bemmelhor.Tenhocertezadequeumdiaasenhoraoencontrará.Estávendo?Agoraasenhorapodefazerojogodocontente!PodejogarcomJamie.Podesesentirfeliztodososdias,poiscadadiaatornamaispertododiaemquevaiencontrá-lo.Viusó?

RuthCarewnão“viu”.Levantou-se,exclamando:—Não,menina!Vocênãoentende.Vábrincarouler,oufazerqualquer

coisa.Estoucomdordecabeçaevoumedeitar.Muito séria e visivelmente perturbada, Poliana saiu da sala sem se

apressar.

Capítulo5:Polianadáumpasseio

Na tarde do segundo sábado Poliana fez seu memorável passeio. A

meninaaindanãohaviasaídosozinha,anãoserparairaocolégio. JamaisRuthpoderiaadmitirqueela tentasseexplorarporcontaprópriaas ruasdeBoston e, por isso, nem se preocupou emproibir-lhe que o izesse. SóqueemBeldingsvilleumdosprazeresdameninaeracaminharpelasruasda pequena cidade, em busca de amizades novas e aventuras. Naquelesábadoàtarde,RuthCarewdissera,comotantasvezesantes:

—Váparaondequiser,façaoquequiser.Mas,porfavor,nãomefaçamaisperguntashoje!

Até então,quando icava sozinha,Polianaachavamuita coisa comquesedistrairsemsairdecasa.Seascoisasinanimadasnãobastassem,haviaMary, Jennie,BridgetePerkins.Naqueledia,porém,Maryestavacomdordecabeça,Jennieocupadaemajeitarumchapéu,Bridgetfazendotortademaçã ePerkinsnão foi encontrado.Odia era lindo enadahavia emcasatãoconvidativocomoobrilhodosolealevezadoarláfora.Assim,Polianasaiu.

Por algum tempo, contemplou em silêncio as pessoas bem-vestidas,homens,mulheresecriançasqueandavamdiantedacasaoupelo jardimquehavianomeiodaavenida.Depois,acaboudedesceraescadadacasaeparou,olhandoparaadireitaeaesquerda.

Decidiu-seporumpasseio.Odiaestavalindoeconvidativoeelaaindanãotinhafeitoumpasseiodeverdade:sóotrajetodacasaparaocolégioedocolégioparaacasa,oquedavanamesma.AsenhoraCarewnão ia seimportar se ela desse um passeio naquele dia. Pois não lhe dissera parafazeroquequisesse,menosperguntas?Tinhaatardetodaparapassearequantacoisapoderiavernumatardeinteira?!Bem,iria...porali.Comumapirueta de alegria, Poliana saiu caminhando, e decidida, pela avenida.Sorriaparatodosesesentiadesapontada—masnãosurpreendida—aoverqueninguémcorrespondiaaoseusorriso: já seacostumaracom isso,emBoston.Continuavaa sorrirna esperançadeque, de repente, alguémcorrespondesseaoseusorriso.

AcasadeRuthCarew icavanocomeçodaavenidae,assim,empoucotempo, Poliana se viu diante de uma rua que lhe cortava o caminho emânguloreto.Dooutroladodarua,emtodaasuaglóriadeoutono, icavaoque Poliana considerou o mais belo parque que já vira em sua vida: o

PasseioPúblicodeBoston.Poruminstante,hesitou,olhando ixamenteparaabelezadapaisagem

à sua frente. Nem por um segundo duvidou que fosse propriedadeparticular de algum milionário. Certa vez, no Hospital, conhecera umasenhora, que o doutor Ames dissera morar numa bela casa cercada deárvores e jardins, como aquele parque. Poliana teve vontade de cruzar aruaeentrarnoparque,masachouquenão tinhaessedireito.Éverdadequehaviaoutraspessoasandandoporali,masdeviamserconvidadosdodono do parque. Depois, viu duas mulheres, um homem e uma meninaatravessaremoportãoeconcluiuqueelatambémpoderiafazeromesmo.Então,cruzouagilmentearuaeentrounoparque.

Deperto,aindaeramaisbonito.Passarinhosesvoaçavamacimadesuacabeça e um esquilo lhe cortou os passos. Homens, mulheres e criançassentavam-seembancos,emmeioàsárvores,eraiosdesolfaziamasgotasde águamais luzidias. Ouviu gritos de crianças e o som demúsica. Maisuma vez, hesitou. Depois, com certa timidez, aproximou-se de umamoçabem-vestida,quevinhaemsuadireção,eperguntou:

—Porfavor...éalgumafesta?—Festa?—Amoçaolhou-a,espantada.—Querodizer...Nãofazmaleuestaraqui?—Queideia!Claroquenão.Éparatodomundo,ora!—Obrigada,então—dissePoliana.—Estoucontenteportervindo.AmoçanãorespondeueolhouaindaespantadaparaPoliana,enquanto

se afastava.Amenina continuou seu caminho achandonatural o donodoparque ser tão generoso a ponto de dar uma festa para quem quisesseentrar.Numacurvadotrajeto,encontrouumameninaqueempurravaumcarrinho de boneca. Parou, sorrindo, e não chegou a dizermeia dúzia depalavrasquando,nemviudeonde,surgeumajovem,andandodepressaefalandoemtomirritado:

—Venha,Gladys!Mamãejánãolhedisseparanãofalarcomcriançasdesconhecidas?

—Maseunãosouumacriançadesconhecida!—protestouPoliana.—Moroaqui,emBoston.

Sóqueamoçaeamenina jáestavamlonge.Porummomento,Polianaicouemsilêncio,desapontada.Depois,ergueuacabeçaeseguiucaminho.Pensou:“Dequalquermodo,posso icaralegrecomisso,etalvezencontrealguém mais simpático. Quem sabe, Susie Smith ou o Jamie da senhoraCarew...Sejacomofor,possoimaginarqueosestouencontrandoe,senãoencontrá-los, conhecerei alguém!” E olhou esperançosa para as pessoas

quepassavam,cadaumapreocupadaconsigomesma.Éverdade,Polianasesentiasolitária.Criadapelopaiepelassenhoras

da Auxiliadora de uma pequena cidade do Oeste, passara a considerartodasascasasdalocalidadecomoseularetodasaspessoascomoamigas.Tendo idomorar coma tia emVermont, aos11 anos, logodeduziuque asituaçãosóiriamudarporqueascasaseosamigosseriamnovose,assim,mais interessantes — seriam “diferentes”, e ela gostava de coisas epessoas “diferentes”. Desde o começo, o que mais a entusiasmava emBeldingsvilleeramaslongascaminhadaspelacidadeeasvisitasaosnovosamigos.Eranatural,poisàprimeiravistaBoston lhepareceraaindamaispromissoraemrelaçãoanovaspossibilidades.

Agora, porém, Poliana tinha de admitir que Boston era, sob certoaspecto,decepcionante:estavaláháduassemanaseaindanãoconheciaaspessoas,mesmoasquemoravamemfrenteouaolado.Maisincrível:RuthCarewnão conheciamuitas delas nem tinha relações comqualquer uma,sempre indiferente aos seus vizinhos. Para Poliana, isso era quaseinacreditávelenãopareciaquesepudessefazeralgumacoisaparamudaraatitudedaviúva.

—Nãomeinteressam,Poliana—diziaRuth,sempre.Poliana — que se interessava, ao contrário — era obrigada a se

conformar.Naquele dia, a menina iniciara o passeio cheia de esperança e, até

agora, continuava decepcionada. Havia ali pessoas que deviam sersimpáticas—seaomenospudessetravarconhecimentocomelas.Opioréquenãopareciahaveramenorpossibilidadedeviraconhecê-las,poiselasnão davam sinal de interessar-se por isso. Depois, Poliana ainda estavapreocupadacomaqueladuraadvertênciasobre“criançasdesconhecidas”.Disseconsigomesma:

— Está bem. Vou tratar de mostrar que não sou uma “criançadesconhecida”.—Esepôsaandarcomdecisão.

Pondoempráticaa ideia, sorriuamavelmenteparaaprimeirapessoaqueencontrouedisse:

—Quedialindo,nãoémesmo?—Oquê!...Ah!Émesmo...—resmungouasenhoraaquemsedirigira

equetratoudeaceleraropasso.Por mais duas vezes, Poliana tentou, sempre colhendo resultados

decepcionantes. Empouco, chegou àmargemde uma lagoa, que brilhavacom os raios de sol iltrados por entre as árvores. Era linda e por elapassavam pequenos botes com crianças, que riam e gritavam de alegria.

Enquantoolhava,Polianafoisesentindocadavezmaisinsatisfeita.Avistou,então,umhomemsentadopertodalagoaefoiemsuadireção,indosentar-senaoutrapontadobanco.Emoutraocasião,elateriaseaproximadosemhesitar e puxado conversa. Os maus acolhimentos recentes lhe tinhamtrazido, contudo, uma descon iança rara. Olhou com discrição para ohomem.

Não tinha um aspecto agradável. A roupa, embora nova, estavaempoeirada e exibia muito desmazelo. Era igual (embora Poliana nãosoubesse)àroupaqueoEstadocostumadaraosprisioneirosqueacabamdecumprirpena.Ohomemtinhaorostopálidoenãofaziaabarbahápelomenosumasemana.Comasmãosen iadasnosbolsos,permaneciaimóvele de cabeça baixa. Poliana icou em silêncio durante bastante tempo, atéquetentou,comesperança:

—Quediabonito,nãoémesmo?—Hein?... O que foi que você disse?—perguntou o homem, como se

elanãotivessesedirigidoaele.—Eudissequeéumdia lindo.Masnãomepreocupomuitocomisso.

Querodizer,naturalmentegostoquandoodiaébonito,masésóummeiode começar as coisas, e trato logo de falar de outros assuntos... qualquerassunto.Eusóestavaquerendoconversarcomosenhor... sobrequalquercoisa.

Ohomemdeuumarisadinha,umtantoesquisitaparaPoliana,quenãosabia(comoohomemsabia)quehámuitotemponãoescapavaumarisadadaqueleslábios.

— Está dizendo que quer que eu converse com você? — Odesconhecidopareciaumtantotriste.—Estábem.Nãoseicomo,masvoutentar. Acho que uma mocinha elegante como você pode conversar comgentemelhorqueumvelhopé-rapadocomoeu.

—Maseugostodevelhospés-rapados!—protestouPoliana.—Querdizer, gosto de pessoasmais velhas, e não sei o que é pé-rapado. Assim,não posso não gostar de pé-rapado.Mas, se o senhor é pé-rapado, estouvendoquegostodepé-rapado—concluiu,convicta.

—Ficomuitolisonjeado!—Ohomemsorriu.Embora sua isionomia expressasse certa dúvida, o fato é que ele se

aprumouepareceumaisconfiante.Perguntou:—Sobreoquevamosconversar?— Sobre qualquer coisa, o assunto não importa. Tia Paulina diz que,

sejasobreoqueforqueeufale,nofimacabofalandosobreassenhorasdaAuxiliadora. A inal, foramelas queme criaram. Podemos falar sobre esta

festa.Euestouachandoótima!—Quefesta?—O senhor sabe. Essa gente toda aqui, isso é uma festa, não é?Uma

senhora me disse que era para todo mundo e então eu iquei, emboraaindanãotenhavistoacasadequemdáafesta.

— Bem, senhorita... — O homem apertou os lábios para não rir. —Talvez seja mesmo uma festa. Mas o “dono da casa” que dá a festa é aPrefeitura deBoston. Isto aqui é o Passeio Público, umparque para todomundo,compreende?

— Verdade? Quer dizer que posso vir todas as vezes que quiser? Émuitomelhor do que pensei! Eu estava commedo de nuncamais podervoltaraqui.Masficocontentedenãotersabidodissoantes,senãonãoteriasentidoaalegriaquesintoagora.Ascoisasboas icammelhoresquandoagentetemmedodeelasnãoaconteçam,nãoacha?

—Bem, se icaremmelhoresmesmo...—admitiuohomem,comcertamelancolia.

— Sem dúvida. — A menina não parecia notar a tristeza dodesconhecido. — Não acha lindo este lugar? Será que a senhora Carewsabe que o parque é para todos? Creio que todos devem ter vontade deficaraquiomáximopossível,admirandoestabeleza.

— Algumas pessoas têm de trabalhar— disse o homem, fechando acara. — Têm que fazer outra coisa, não podem icar o tempo todoadmirandoabelezadascoisas.Maseunãosouumadelas.

— Então você deve icar contente, não é mesmo? — disse Poliana,interessada emacompanhar comosolhos as evoluçõesdeumbarquinhoquesingravaolago.

Os lábios do desconhecido se moveram, mas ele nada disse. Estavavisivelmenteirritado.Polianacontinuou:

—Eugostariadenão ternadapara fazer.Mas tenhode iraocolégio.Gostomuito de lá, mas há tantas coisas de que gostomais! De qualquermodo, sinto-me feliz de poder ir ao colégio, principalmente quando melembro que, o inverno passado, eu pensava que nunca mais ia poderfrequentar um colégio em minha vida. Sabe? Fiquei sem andar durantealgum tempo. E a gente só entende como certas coisas são importantesquando elas nos faltam. Pernas são importantes. E os olhos, então? Jápensoucomoébomagentepoderenxergar?Nunca tinhapensadonisso,atéquefuiparaoHospital.Láhaviaumasenhoraque icaracegaumanoantes. Tentei fazer com que ela praticasse o jogo, isto é, tentar descobriruma coisa que nos dê alegria. Ela me disse que não podia e que, se eu

quisessesaberporquê,cobrisseosolhoscomumlençoduranteumahora.Eufizissoefoihorrível.Jáexperimentou?

— Como? Não... nunca, ora.— O desconhecido parecia espantado, ouconstrangido.

— Pois não experimente... é simplesmente horrível. A gente nãoconseguefazernada.Eu iqueicomosolhosvendadosumahorainteirinha.Depois, sempreme sinto feliz quando vejo alguma coisa linda, como istoaqui, tão feliz que sinto vontade de chorar, porque posso ver. Agora elaestáfazendoo jogo,aquelasenhoraque icoucega.AsenhoritaWetherbymecontou.

—Ojogo?—Sim.Ojogodocontente,eunãolhedisse?Descobriralgoquenosdê

alegria. Agora, ela descobriu uma coisa. Seu marido é político e ela lhepediuparafazerumaleideproteçãoaoscegos,especialmenteàscriançascegas. E foi conversar com os deputados, explicando a eles o que é sercega. A tal lei foi aprovada, a inal, e todos dizem que, se não fosse peloesforçodesenvolvidoporela,nãohaveriaa lei.Aquelasenhoradizquesesente felizpor ter icadocega—assimpôdeajudar tantagente.Comovê,ela está fazendo o jogo do contente.Mas estou vendo que o senhor nadasabearespeitodessejogo.Voulhecontarcomocomeçou.

EPoliana,animada,sepôsacontarasuadecepçãoquando,emvezdeuma boneca, havia ganhado um par de muletas. Quando terminou suahistória,fez-seumsilêncioprolongado.Depois,odesconhecidoselevantou,ab-ruptamente.

—Jávaiembora?—perguntouPoliana,desapontada.—Já—respondeuohomem,sorrindomeiosemjeito.—Masvaivoltarmaistarde,nãoé?— Não... espero que não.— O homem ainda sorria.— Sabe de uma

coisa, mocinha? Hoje iz uma grande descoberta. Pensei que estavaliquidado,quenãohaviamais lugarparamimempartealguma.Descobriagora que tenho dois olhos, dois braços e duas pernas. E agora sei comousá-losevoufazercomquealguémcompreendaqueseiusá-los!

— Que tipo estranho! — exclamou Poliana, enquanto o homem seafastava.—Maserasimpático...emuitodiferentetambém.

Polianaselevantouecontinuouopasseio,sentindo-sedenovoalegreecon iante. O homem não tinha dito que aquele era um parque público eque todos tinham o direito de entrar lá? Aproximou-se do lago eatravessouumapontequelevavaaopontoondeosbarquinhosatracavam.Ficou olhando, feliz da vida, para as crianças, na esperança de avistar os

cachosnegrosdeSusie.Gostariadedarumpasseiodebarco,masviunumletreiroquecustavacinquentacentavoseelaestava semdinheiro. Sorriupara várias moças e, por duas vezes, tentou iniciar uma conversa.Ninguém,entretanto, lhedirigiuapalavra,easpessoascomquemfalouaolharamfriamente,malresmungandoumaresposta.

A menina tomou outro caminho e, então, avistou um menino muitopálido,numacadeiraderodas.Quisfalarcomele,masogarotoestavatãointeressadona leituradeum livro que ela achoumelhor se afastar. Logoencontrouumamoça,bonita,masumpoucotriste,sentadasozinha,comoolharperdido,comoodesconhecidodeantes.Comumgritinhodealegria,Polianaseaproximou:

— Bom dia! Tenho muito prazer em encontrá-la. Eu a estavaprocurandohámuitotempo.—Esentou-senaextremidadelivredobanco.

— Oh! — exclamou a moça, surpresa e com uma expressão deexpectativa nos olhos. — Pensei... Que está dizendo? Nunca vi você emminhavida.

— Eu também nunca vi você. — Poliana sorriu. — Mas estavaprocurandopor você.Querdizer, não sabia comovocê seria, exatamente.Sóprocurava alguémqueestivesse só, querendo companhia.Assim comoeu.Hátantagenteaqui,estávendo?

—Estou vendo, sim—disse amoça, indiferente.—Mas é umapenaquevocêtenhadescobertoissotãocedo,coitada!

—Descobertooquê?—Queo lugardomundoondehámais solidãoé entre aspessoasde

umacidadegrande.—Émesmo?—Polianasepôsapensar.—Nãoseicomoalguémpode

sesentirsolitárioquandohátantaspessoasemvolta.Mas...—Hesitouumpoucoeacrescentou:—Eumesmaestavasolitáriahojeehaviagenteemtornodemim.Sóqueninguémsepreocupavacomigooumenotava.

— É assim mesmo. — A moça sorriu com amargura. — Não sepreocupam,nãonotam...Amultidãonãovê.

—Ora,algumaspessoasveemesepreocupam—contestouPoliana.—Devemosficaralegresporisso.Quandoeu...

— Sim, algumas notam... demais.— A moça estremeceu, assustada eolhandoparaocaminhoqueseabriaalémdePoliana.

A menina baixou a cabeça, acabrunhada. Os sucessivos mausacolhimentosdatardeahaviamtornadomuitosensível.

— Está se referindo a mim? — gaguejou. — Queria que eu não ativessenotado?

—Não é isso. Estoume referindo a alguémmuito diferente de você.Alguém que não deveria notar. Até que gostei muito de você ter faladocomigo.Mas,aprincípio,penseiquevocêfossealguémdeminhaterra.

—Entãovocênãomoraaqui?Eutambémsoudefora.—Bem,vivoaquiagora—disseamoça.—Seéquesepodechamar

deviveroquefaço.—Eoqueéquefaz?—indagouPoliana,interessada.— Vou lhe dizer — começou a moça. — De manhã à noite, vendo

rendas e itas paramocinhas que conversam, riem e conhecem umas àsoutras.Depois, voupara casa...moronumquartinhonos fundos... e tenhodesubirtrêslancesdeescada.Nomeuquartosócabeumvelhocatre,umamesinha com uma moringa, uma cadeira capenga e... eu mesma. É umafornalha no verão e uma geladeira no inverno. Foi o único lugar queencontrei e é lá que tenho de icar, quando não estou trabalhando. Hoje,saí.Nãoquispermanecernoquartoenemmeen iaremalgumabibliotecaparaler.Hojeéonossoúltimoferiadodesteano.Evouaproveitar,umavezna vida. Sou ainda jovem e gosto de me divertir, como as outras moças.Hojevouriremedivertir.

— E fazmuito bem!— aprovou Poliana.— Fico satisfeita vendo quevocê pensa assim, como eu. Depois, a Bíblia diz para nos alegrarmos, dizisso umas oitocentas vezes. Você deve conhecer os trechos da Bíblia quenosmandarejubilar...

—Não,nãoconheço—disseamoça,secamenteecomumaexpressãoestranha.—NãoestavapensandonaBíblia.

—Entendo.Eusei...Masmeupaierapastor...—Pastor?—Sim.Oseutambémera?—perguntouPoliana.—Era,sim—respondeuamoça,corandoligeiramente.—Ah!Eestá,comoomeu,juntodeDeusedosanjos?—Aindavive.Voltouparacasa—disseamoça.—Então, você deve icar feliz!— exclamouPoliana com inveja.—Às

vezes icopensandoque,sepudessevermeupaiaomenosumavez...Vocêvêseupai,nãoémesmo?

—Nãofrequentemente.Sabe?Agoraestoumorandoaqui.—Mas você pode vê-lo. Eu não posso ver o meu. Ele foi para o céu,

encontrar-secomminhamãeeosoutrosdafamília.Vocêtemmãeaquinaterra?

—Tenho—respondeuamoça,dandosinaisdequequeriairembora.— Nesse caso, você pode ver os dois!— exclamou Poliana.— Como

devesesentiralegre!Nãoháninguémdequeagentegostemaisdoquedosnossospais,nãoé?Eusei,poisperdimeupaiquandotinha11anos.Esendojáórfãdemãe, iqueicomassenhorasdaAuxiliadora,atéirparaacasa de tia Paulina. As senhoras da Auxiliadora sãomuito boas,mas nãosãoiguaisàsmães...emesmotiaPaulina...

Polianasesentiaàvontadefalando.Achavaacoisamaisnaturalexporoquepensavaecontarsuavidaaumapessoaestranha,comoaquelamoçaque encontrou num banco do Passeio Público de Boston. Para amenina,todasaspessoas—homens,mulheresou crianças, conhecidasounão—eramamigos.Egostavatantodeconversarcomdesconhecidosquantocomconhecidos, sem contar que havia sempre a excitação do mistério e daaventuraquandosetratavadealguémqueelanãoconhecia.

Assim,elacontouàmoçaqueviapelaprimeiraveztudooquelheveioàcabeçaarespeitodopai,datiaPaulina,desuapequenacidadenoOesteedesuaviagemparaVermont.Falousobrenovaseantigasamizadese,éclaro,explicouojogodocontente—semprefalavanisso,cedooutarde.

Desuaparte,amoçafaloupouco.Masjánãoconti-nuavaapática,comono começo. Ocorrera sensívelmudança em sua atitude. As faces coradas,testa franzida, olhos inquietos e ummovimento nervoso nos dedos eramevidentes sinais de que travava uma luta interior. Vez por outra olhavaparaocaminho,portrásdePoliana,efoidepoisdeumdessesolharesqueapertoucomforçaobraçodamenina,dizendo:

—Escute,nãováemborajá!Fiqueaímesmo.Estouvendoumhomemeseiqueestávindopara cá. Sejaoque forquediga,nãodêatençãoa ele.Ficoaqui,comvocê.Estáouvindo?

AntesquePolianasere izessedasurpresa,viu,paradodiantedesi,umjovemmuitobonito.

— Ah! Você está aqui! — disse ele, dirigindo-se à companheira dePoliana. — Acho que devo começar pedindo desculpas. Atrasei-me umpouco.

—Nãofazmal—respondeuajovem.—Decidinãoir.—Meubem,não iquecomraivademimsóporquechegueiumpouco

atrasado!—disseorapaz,comumarisadinha.—Nãoéporisso.—Amoçacorouligeiramente.—Eunãovoumesmo.—Bobagem!—exclamouorecém-chegado,agoracomvozáspera.—

Vocêdisse,ontem,queiria.—Mudeide ideia. Jádisseaestaminhaamiguinhaquevou icar com

ela.Ésóisso...—Eamoçavirouascostas.O homem tornou a falar, a princípio com bons modos, persuasivo,

depois furioso.Dissea inal,comvozbaixae irritada,algoquePoliananãoentendeu.Emseguida,afastou-se.Amoçaolhou-otensamente,atéperdê-lodevista.Depois,aliviada,apertoucomamãotrêmulaobraçodePoliana.Edisse:

—Obrigada,menina.Devo-lhemuitomaisdoqueimagina.Adeus!—Masvocênãopodeirembora!—protestouPoliana.—Tenhodeir.Elepodevoltare,quemsabe,dapróximavez,possonão

resistir.— Amoça deu um suspiro, levantou-se e disse, depois de certahesitação:— Você entende... ele é do tipo que nota demais... e que seriamelhornãonotar...nãomenotar!

—Quemoçaesquisita!—murmurouPoliana,olhandoparaamoçaque

seafastava.—Bem,émuitosimpática,mastambémmuitodiferente.Levantou-seesepôsaandarsempressa.

Capítulo6:Socorrooportuno

Poliananãotardouachegaràextremidadedoparque,nocruzamento

de duas ruas. Era uma esquina com grande movimento de carros,carruagens, carroças e pedestres. A vitrine de uma farmácia exibia umaenorme garrafa vermelha e ouvia-se o som de um realejo. Depois dehesitar um pouco, Poliana saiu do parque e começou a andar apressadapelarua,nadireçãodeondevinhaamúsica.Estavadeslumbrada.Aslojasexibiam objetos maravilhosos e, em volta do realejo, viu uma dezena decriançasdançando—umagracinha!Polianasepôsasegui-loadistância,só para ver as crianças dançando. E acabou numa esquina tãomovimentada que um homenzarrão, de capote azul e cinto, ajudava aspessoas a atravessar a rua. Por um instante, ela o observou em silêncio.Depois,timidamente,elaprópriatratoudecruzararua.

Foiumamagní icaexperiência.Ograndalhãodecapoteazullhefezumsinal e atémesmo foi ao seu encontro.Depois, por um largo espaço, commotoresbarulhentosecavalosindóceisdecadalado,elaconseguiuchegarà outra calçada. Isso lhe deu uma sensação tão deliciosa que, umminutomais tarde, voltou. Por duas vezes, de novo, após curtos intervalos,percorreuofascinantecaminhoque,magicamente,abria-separaelaaumsimplesacenodohomenzarrão.Sóque,daúltimavez,ohomemperguntou,cismado:

— Escute aqui, mocinha. Não foi você que atravessou a rua faz umminuto?Equejátinhafeitoomesmoantes?

—Foi,sim,senhor.Jáatravesseiaruaquatrovezes.—Émesmo?—Opolicialestavaprestesaexplodir.—Eacadavez,gostomais!—continuouPoliana.—Ah,éassim?Equeachaqueeu façoaqui?Passoodiaaajudá-laa

atravessararuadeumladoparaooutro?— Ora, é claro que o senhor não está aqui por minha causa! —

protestou Poliana. — Tem essa gente toda aí. Sei que o senhor é umpolicial. Conheço um, onde moro, na casa da senhora Carew, mas édaqueles que só icamandandode um ladopara o outro.O senhor sabe,nãoé?Penseiquevocêsfossemsoldados,comessesbotõesdouradoseosbonésazuis,masagoraestoumelhorinformada.Achoquesãoumaespéciede soldado, porque são valentes, ajudando as pessoas a cruzar a rua nomeiodessaconfusãotoda.

— Bem... bem... — murmurou o policial, sem jeito, corando como umcolegial.—Comose...—Mascortouafrasepelomeio,enquantolevantavaobraço.

Logodepois,escoltavaumavelhinhaapavorada.Seagoraestufavaumpouco mais o peito devia ser apenas um inconsciente tributo aos olhosatentos damenina, que permanecia onde ele a havia deixado.Momentosdepois,apósorientarcocheirosemotoristas,opolicialvoltouparajuntodePoliana.

— Esplêndido! — exclamou a menina. — Gosto de ver o senhortrabalhando.Pareceumdos ilhosdeIsraelatravessandoomarVermelho,não é? O senhor impedindo as ondas, para que as pessoas possamatravessar. E como deve icar alegre fazendo isso! Eu pensava que sermédico fosse o mais alegre trabalho do mundo, mas agora estou vendoque,a inal, serpolicial émelhorainda,poiseleajudaaspessoasque têmmedo.

O homem deu uma risadinha, embaraçado, e voltou para o centro darua,deixandoPoliananacalçada.Poralgumtempo,ameninacontemplouofascinante “mar Vermelho” e, em seguida, lançando para trás um olharsaudoso, virou as costas e se pôs a caminho. “Acho melhor voltar paracasa”,pensou.“Jádeveestarquasenahoradojantar.”Etentouencontrarocaminhodevolta.

Somente depois de confundir-se em algumas esquinas e de ter dadoduasvoltasquealevaramaomesmolugar,Polianapôdecompreenderque“voltar para casa” não era tão fácil como pensava que fosse. E somentequandochegoudiantedeumedi ícioquetinhacertezadejamaistervistoantesfoiquedescobriuqueestavaperdida.

Viu-se numa rua estreita e suja, margeada de pardieiros e algumascasas comerciais bem pobres. Homens e mulheres conversavam, masPoliana não entendia uma só palavra do que diziam. Notava que todos aolhavam,descon iados,comosesoubessemqueelanãoeradali.Pediupordiversasvezesquelheindicassemocaminho,masemvão.Ninguémsabiaonde morava a senhora Carew... E das duas últimas vezes, as pessoasresponderamcomumamisturadepalavrasque,depoisde re letir algumtempo, Poliana concluiu que devia tratar-se de holandês, a língua dosHaggermann,únicosestrangeirosquehaviaemBeldingsville.

Apavorada,ameninaandavaderuaemrua.Estavacomfomeemuitocansada. Os pés lhe doíam, e nos olhos ardiam as lágrimas que tentavaconter. O pior é que já escurecia. “De qualquer maneira”, pensou, “vouicar alegre porme encontrar perdida, já que vai sermuito bomquando

encontrarocaminhoeissovaimefazerfeliz”.Foinumaesquinamaismovimentadaqueelaa inalparou,desanimada.

Dessavez,nãopôdeconteras lágrimase,comonãotinha lenço,enxugou-ascomascostasdasmãos.

—Olá,menina!Porqueestáchorando?—perguntouumavozjovial.—Queéquehácomvocê?

Aliviada,Poliana se viudiantedeumgarotoque carregavaummontedejornaisdebaixodobraço.

—Quebomencontrarvocê!—exclamouela.—Estavaquerendotantoveralguémquenãofalasseholandês!

— Que holandês, nada! — O menino sorriu. — Aposto que sãocarcamanos.

— Bem, inglês é que não era. — Poliana fez uma cara deincompreensão. — E não souberam responder às minhas perguntas...Talvezvocêpossa.SabeondemoraasenhoraCarew?

—Nãosei,não!Podemerevistar.—Oquê?—perguntouPoliana,sementender.—Estou brincando.—Omenino sorriu de novo.—Nunca ouvi falar

nessadona.—Seráquealguémaquisabe?—indagouPoliana.—Saídecasapara

passearemeperdi.Jáandeimuitoenãoconsigodescobriracasa.Estánahoradojantareficandoescuro.Precisoencontraracasa...tenhodevoltar.

—Émesmo?Issomefazesquentaracuca!—AchoqueasenhoraCarewdeveestaraflita.—Escuteaqui—disseo jornaleiro.—Sabeaomenosonomedarua

ondeelamora?—Sóseiqueéumaavenida.—Avenida?Bem,jámelhorou.Sabeonúmerodacasa?Façaforçapara

selembrar.Poliana,desorientada,nãorespondeu.—Querdizerquevocênãosabenemonúmerodacasaondemora?—

admirou-seogaroto.—Sómelembroquetemumsete...—Essaéboa!Sabequetemumsete...equerqueeureconheçaacasa

quandoativervisto!— Se eu pudesse vê-la, ia reconhecer logo — disse Poliana,

esperançosa. — E acho que ia reconhecer a rua também, por causa dojardinzinhoquehánomeiodela.

Dessavezfoiomeninoquemfezcaradeespanto:

—Umaruacomumjardinzinhonomeio?—Sim,comárvoresegrama,umcaminhonomeioebancos...— Já sei! — quase gritou o jornaleiro. — Você mora na avenida

Commonwealth.Sabeocaminho,não?—Nãosei.Vocêsabe?— Claro. Eu levo você até lá. Mas espere aqui, até que eu acabe de

venderessesjornaistodos.—Querdizerquevocêmelevaparacasa?—perguntouPoliana,ainda

sementendermuitobem.—Ora,vaisercanja,sevocêreconheceracasa.— Conheço a casa, ora!— exclamou Poliana.—Mas que negócio de

canjaéeste?Ondeéquetemcanja?Omeninolançou-lheumolhardedesdémesumiunomeiodamultidão.

Logodepois,Polianaouviuosseusgritosestridentes:—Jornais!Herald!Globe!Querumjornal,senhor?Poliana deu um suspiro de alívio e encaminhou-se para um vão de

porta.Estavacansada,mascontente:apesardetodososcontratemposqueenfrentara, con iava no garoto e tinha certeza de que ele a levaria paracasa.“Éummeninosimpáticoebonzinho”,pensou,acompanhandocomosolhos a desenvoltura do pequeno jornaleiro por entre a multidão. “Falaumaspalavrasesquisitas,masfoibomtê-loencontrado.”

Orapazinhologovoltou,comasmãosvaziasedizendo:—Vamos,menina.Tocaobonde!Osdoiscaminharamemsilêncioamaiorpartedotempo.Pelaprimeira

vez na vida, Poliana se sentia cansada demais para falar e o meninoprocurava seguir o caminho mais curto para levá-la à casa. QuandochegaramaoPasseioPúblico,Polianaexclamou:

— Conheço este lugar! Passei uma tarde muito agradável aqui, hoje.Minhacasaficabempertinho.Agora,eusei.

— Não lhe disse que ia levar você até a avenida? Agora, trate deidentificaracasa.

—Euseiqualéacasa!—a irmouPoliana,certadequeseencontravaemlugarconhecido.

Eranoite fechadaquandoPolianasubiuaescadadacasa.O jornaleirotocouacampainha,aportaseabriuePolianaseviudiantedeMary,RuthCarew, Bridget e Jennie. As quatro estavam lívidas — a ansiedadeestampadanosolhos.

—Ondeéquevocêsemeteu,menina?—perguntouRuth.—Sófuidarumpasseioemeperdi—começouaexplicaramenina.—

Eestegaroto...— Onde foi que a encontrou? — atalhou a viúva, dirigindo-se ao

jornaleiro que, embasbacado, olhava para o vestíbulo, todo iluminado.—Ondefoiquevocêaencontrou?

Por um breve instante, o rapazinho encarou a viúva e, depois, seusolhosparecerampiscar.Respondeu,comseriedade:

—EncontreiameninanapraçaBowdoin,achoqueelavinhadaZonaNorte, pois me disse que os carcamanos não lhe tinham ensinado ocaminho.Então,tivedetrazê-laatéaqui,madame.

—EstameninasozinhanaZonaNorte!—exclamouRuth.— Não estava sozinha— disse Poliana.— Haviamuita gente. Não é,

menino?Masomenino,decarinhabrejeira,jáestavasaindo.Na meia hora seguinte, Poliana aprendeu muita coisa. Aprendeu que

meninas bem-educadas não andam sozinhas em cidades desconhecidas,nemsesentamembancosdepraçaparaconversarcomestranhos.Ficousabendotambémquetinhasidoporum“milagremaravilhoso”quevoltarapara casa naquela noite, que escapara de muitas consequênciasdesagradáveis, que Boston não era Beldingsville e que não podia, nuncamais,seesquecerdisso.

—Mas,senhoraCarew—argumentou—,estouaquienadaaconteceucomigo. Acho que devia estar muito alegre por isso, em vez de icarpensandoemcoisasruinsquepodiamteracontecido.

—Estábem,Poliana, achoque sim... achoque sim—admitiuaviúva.—Masvocêmepregouumsustotãograndequequerotercerteza,certezaabsoluta, de que não fará isso de novo. Agora venha, querida, você deveestarmorrendodefome.

Somente quando já caía no sono foi que Poliana murmurou, com vozarrastada:

—Opiordetudoéquenemaomenospergunteicomoaquelemeninose chama, nemonde elemora. Agora, não posso nemmesmodizer a ele:“Muitoobrigada!”

Capítulo7:Umnovoconhecido

Depoisdocomplicadopasseio,asandançasdePolianapassaramaser

vigiadas.Anãoserparairàescola,elanãopodiasairdecasa,somenteemcompanhia de Mary ou da própria Ruth. Para a menina, contudo, nadatinha de desagradável o fato: gostava tanto da senhora Carew como deMaryesedeleitavaemsuacompanhia.Easduasmostravamboavontade.Até a viúva passara a se esforçar para distraí-la, depois do susto quepassaraedasensaçãodealívioqueseseguira.

Assim,emcompanhiadeRuthCarew,Polianafoiaconcertosematinês,visitouaBibliotecaPúblicaeoMuseudeBelasArtes.E, acompanhadadeMary, fez muitos passeios “para conhecer Boston” e visitou o Palácio doCongressoeaVelhaIgrejadoSul.

Pormaisquegostassedoautomóvel,Polianapreferiaosbondes,como,surpreendida,RuthCarewdescobriucertavez.

—Vamosdebonde?—perguntouPoliana.— Não. Perkins vai nos levar — respondeu a viúva que, notando o

desapontamento de Poliana, tratou de acrescentar: — E eu pensei,mocinha,quevocêgostassedeandardeautomóvel!

—Gosto—respondeuPoliana.—Sónãodisseporque,naturalmente,émaisbaratodoqueobonde...

—Mais barato que o bonde?!— espantou-se Ruth, interrompendo aoutra.

— E não é? O bonde custa cinco centavos por pessoa, e o carro nãocusta nada, pois é seu. É claro que gosto muito de andar de carro —acrescentou,antesqueasenhoraCarewpudessefalar.—Sóquenobondetemmuitagente,eédivertidoolharparaaspessoas.Asenhoranãoacha?

—Bem,Poliana,nãoconcordo.—Eaviúvaafastou-se.Aconteceu que, dois dias depois, ouviu falar de novo a respeito de

Polianaedosbondes,dessavezpelabocadeMary.—Éestranho,senhora—disseacriadaemrespostaaumapergunta

dapatroa.—AsenhoritaPolianaatraiaatençãodetodomundosemfazeromenoresforço.Nãoqueelafaçaalgumacoisa.Achoqueésóporqueelaétão alegre, tão satisfeita da vida. Só a senhora vendo! Quando ela entranum bonde, cheio de passageiros e até de crianças choronas, em cincominutos tudo ica diferente. As pessoas param de discutir e as criançasdeixam de chorar. Às vezes é alguma coisa que a menina me diz e eles

ouvem.Ouomodocomoelaagradeceaalguémqueinsisteemlhecederolugar... e estão sempre fazendo isso, quer dizer, agora... nos cedendo olugar.Ou entãoquandoela sorri parauma criançaouparaumcachorro.Oscãesabanamoraboparaela,eascrianças lhesorriemeprocuramseaproximardela.Umaalegria,asenhoranemimagina.Sóvendo.

—É...muitoengraçado...—murmurouaviúva,eseafastou.Naquele ano, o mês de outubro foi particularmente ameno, quase

quente,comdiaslindos,elogo icouevidentequeeraprecisomuitotempoe paciência para satisfazer a necessidade que Poliana tinha de passear,para apreciar o bom tempo. Se Ruth Carew dispunha de todas as horasquequisesse, faltava-lhe paciência, e nãopermitia queMary se ocupasseemacompanharoscaprichoseasfantasiasdamenina.

Naturalmente, seria impossível manter Poliana em casa, naquelasmaravilhosastardesdeoutubro.Assim,em pouco tempo, ela se viu de novo, e sozinha, no Passeio Público deBoston.Aparentemente,estava livre,mas,de fato,eraprisioneiradealtasmuralhasderegraseimposições:nãodeviaconversarcomestranhos,nembrincarcomcriançasdesconhecidase,emhipótesealguma,sairdoparque,a não ser para tornar à casa. Mary, que a levara ao Passeio Público,certi icara-se de que ela conhecia bemo caminhode casa, que começavaexatamente no cruzamento da avenida Commonwealth com a ruaArlington.Eela tinhadevoltarpara casaassimqueo relógioda torredaigrejamarcassequatroemeiadatarde.

Depois disso, Poliana foi muitas vezes ao Passeio Público. De vez emquando, comcolegasdeescola,mas,amaiorparte sozinha.Adespeitodealgumasrestrições,divertia-sebastante.Olhavaparaaspessoas,aindaquenão lhes dirigisse a palavra, mas podia conversar com os esquilos, ospomboseospardais,quesurgiamembandospararecebernozesegrãosde milho que ela lhes levava. Procurava sempre os velhos amigos doprimeirodia:ohomemque icara felizpor terolhos,braçosepernas,eamoça que não quisera acompanhar o rapaz bonito. Nunca mais os viu,porém.Comfrequência,viaomeninonacadeiraderodasetinhavontadede conversar com ele. O menino também alimentava os pombos,passarinhoseesquilos—eospomboschegavamapousaremsuacabeça,enquanto os esquilos procuravam nozes em seus bolsos. Mas Polianasempre notava uma circunstância estranha: a provisão de alimentos seesgotava logo e o menino não escondia sua decepção, a mesma dosesquilosquelherevolviamosbolsose,noentanto,nãotratavaderemediarasituação—levandomaisalimentonodiaseguinte.ParaPoliana,issonão

passavadedescuido.Quandonãoestavabrincandocomosbichinhos,omenino icavalendo,

sempre. Em sua cadeira de rodas havia sempre dois ou três livros, jáestragados,eumaouduasrevistas.Eleparavasemprenomesmolugar,ePoliana icou curiosa de saber como ele chegava até lá. A inal, num diainesquecível, descobriu. Era feriado escolar e ela foi mais cedo para oPasseio. Logo depois que chegou, viu o menino sendo empurrado nacadeiraderodasporoutromeninodenarizchatoecabeloslouros.Aovero rosto do menino louro, Poliana soltou um grito de alegria e foi ao seuencontro:

— É você?! Eu o conheço, embora não saiba o seu nome! Você meachou, lembra-se? Estou muito contente de encontrá-lo de novo. Queriatantolheagradecer!

— Puxa! É a menina da avenida que se perdeu! — exclamou orapazinho.—Eentão?Estáperdidadenovo?

—Não,ora!—Polianadançavadetantaalegria.—Nuncamaisvoumeperder, pois nãopossome afastar daqui. Tambémnãodevo falar comosoutros.Sóquecomvocêeuposso,émeuconhecido.Epossofalarcomeletambém, se você me apresentar— acrescentou, olhando para o meninoinválido,quesorria.

—Estáouvindo?—perguntou,dandoumtapinhanoombrodogaroto.—Elaestáquerendoserapresentadaavocê.Madame—eassumiuumaatitude pomposa —, este aqui é meu amigo,Sir James, lorde do becoMurphy...

—Deixedetolice,Jerry!—interrompeu-ooinválido,voltando-separaPoliana e acrescentando:— Já a vi aquimuitas vezes antes. Ficoolhandoquando você dá comida aos pombos e aos esquilos, e sempre traz tantacoisa! Acho que você também gosta mais deSir Lancelote. Claro que háLadyRowena,também,masontemelanãofoimuitoamávelcomGuinevere,tomando-lheojantar.Nãoacha?

Polianafranziuatesta,piscouosolhose icouolhandoparaumeparao outro, sem entender. Jerry deu uma risada e, depois, com um impulsomais forte na cadeira de rodas para colocá-la em sua posição habitual,preparou-separaseafastar,deixandooinválido.Antes,olhouparaPolianaedisse:

—Pode icarsossegada.Essecaranãoestábêbadonemédoido.Essessão os nomes que ele dá a seus amiguinhos — explicou, apontando osbichos que se aproximavam de todos os lados. — E nem ao menos sãonomesdegente,mastiradosdoslivrosquevivelendo.Sabedeumacoisa?

Ele prefere passar fome a deixar de dar comida aos bichinhos. Não éincrível? Divirta-se,Sir James — acrescentou, dirigindo-se ao pequenoinválido.—Atélogo!

Poliana continuava imóvel, apenaspiscandoosolhos.Então, o inválidolhedisse,sorrindo:

—NãoligueparaoJerry...eleéassimmesmo,gostadebrincarcomaspessoas.Ondefoiqueestevecomele?Eleaconhece?Comovocêsechama?

—MeunomeéPolianaWhittier.Eumeperdi,eelemeencontrouemelevouparacasa.—Ameninapareciaaindaatordoada.

—Jerryémuitoprestativo.Éelequemmetrazparacátodososdias.— Você não pode andar, mesmo, Sir James?— E uma expressão de

simpatiadesenhou-senorostodePoliana.—SirJames?!—Oinválidoriucomgosto.—IssoéumapiadadeJerry!

NãosouSircoisanenhuma,ora!—Não?—Polianaficoudecepcionada.—Nemlorde,comoelefalou?—Claroquenão.—Pensei que você fosse como o pequeno lorde Fauntleroy, sabe?—

explicouPoliana.—E...— Conhece o pequeno lorde Fauntleroy? — interrompeu o inválido,

entusiasmado. — E conheceSir Lancelote, o Santo Graal, o rei Artur e aTávolaRedonda,LadyRowena,eIvanhoéetodos?

— Bem... — Poliana não demonstrava o mesmo entusiasmo.— Achoquenãoconheçotodoseles...Estãotodosnoslivros?

—Estão,sim.Eutenhoalgunsaqui.Gostodelerereleresseslivros...Agente sempredescobreumanovidade.Alémdomais, sãoosmeusúnicoslivros,e foramdemeupai.Ei, ladrãozinho, largue isto!—ralhou,risonho,comumesquiloquepularaemseucoloeen iarao focinhoemseubolso.—Achomelhordarlogoojantardeles,senãoacabamcomendoagente!—brincou.—EsteéSirLancelote,sempreoprimeiroaaparecer.

O menino apanhou — e Poliana não viu de onde — uma caixa depapelão, que abriu com cuidado, ciente de que olhinhos brilhantesespreitavamcadagestoquefazia.Houveemtornoumfarfalhardeasasdepardais e pombos.Sir Lancelote, ágil e alerta, ocupava umdos braços dacadeira de rodas. Outro esquilo, menos atrevido, apoiava-se nas patastraseiras, a um metro de distância. Um terceiro, barulhento, estava noramodeumaárvorepróxima.Omeninotiroudacaixaalgumasnozes,umpãozinhoeumbiscoitoe,comumbrilhonosolhos,perguntouaPoliana:

—Trouxealgumacoisa?—Muita,aqui—respondeuamenina,mostrandoasacolaquelevara.

— Bem, nesse caso, acho que hoje vou comer o biscoito — disse omenino,devolvendoaguloseimaàcaixa.

Sementenderosigni icadodessegesto,Polianaen iouamãonasacolae o banquete começou. Para ela foi, de certo modo, a hora maismaravilhosa que já passara — encontrara alguém que falava maisdepressa e por mais tempo do que ela mesma. Aquele estranho jovemtinhauminesgotávelrepertóriodehistóriasdecavaleirosvalenteselindasdamas, de torneios e batalhas. E fazia descrições tão vivas que Polianatinha a impressão de estar vendo as façanhas, os cavaleiros cobertos dearmaduraeasdamascomseusvestidosenfeitadosdepedraspreciosas—embora, na verdade, estivesse olhando para um bando de pombas e depardais batendo as asas e para alguns esquilos correndo pela gramaensolarada.

Esquecidas icaramassenhorasdaAuxiliadora.Nemmesmoo jogodocontente foi lembrado.Comas facescoradaseosolhos faiscando,Polianaandavapelostemposantigos,pelaidadedeouro,levadaporumrapazinhosonhador—emboraelanãosoubessecompensarcomumarápidahoradeconvivênciaagradávelosterríveiseincontáveisdiasdesolidãoeangústia.

Somente quando chegou a hora ixada pela senhora Carew é que elavoltou apressadamentepara casa. Então, Poliana se lembroudequenemaomenosficarasabendoonomedomenino.

“Só sei que não éSir James”, pensou. “Mas não faz mal. Amanhã eupergunto.”

Capítulo8:Jamie

Poliananãoviuomeninoinválidonodiaseguinte.Chovia,eelanãofoi

aoPasseioPúblico.Achuvacontinuounooutrodiae,noterceiro, tambémnãooviu,pois,emboraosoltivessevoltadoabrilhareelativesseidoparaoparquelogonocomeçodatarde,elenãoapareceu.Noquartodia,porém,estava ele no lugar de costume e Poliana correu ao seu encontro,exclamando:

—Estou contente por ver você! Onde tem andado? Por que não veioontem?

—Nãopude—respondeuomenino.—Ontempasseimuitomal.Poliananotouqueomeninoestavapálidoetevepenadele:—Passoumal?Sentealgumador?—Sim,comosempre—disseo inválido,emtomnatural.—Emgeral,

posso suportar a dor e venho aqui. Só não venho quando a dor émuitoforte,comoontem.Então,nãoconsigo.

—Ecomovocêpodesuportarador...sempre?—Queposso fazer?—disseorapazinho.—Ascoisassãocomosãoe

não como devem ser. De que adianta icar pensando que podiam serdiferentes?Depois,quantomaisforteéadornumdia,maisagentesenteamelhoranodiaseguinte.

—Jásei!—exclamouPoliana.—Écomoojo...—Vocêtrouxealgumacoisaparaosbichos?—interrompeuomenino,

ansioso. — Hoje não trouxe nada. Jerry não pôde economizar nem umníquelestamanhã,enacaixanãohácomidanemmesmoparamim.

— Quer dizer que você não tem o que comer no almoço?— Polianaarregalouosolhos.

—Não—disseomenino, sorrindo.—Masnão sepreocupe.Não é aprimeira vez e nem vai ser a última. Estou acostumado. Ei! Lá vemSirLancelote.

SóquePoliananãoestavapreocupadacomosesquilos.—Nãohaviamaiscomidaemsuacasa?—quissaber.— Por lá nunca sobra comida.—Omenino deu uma risada.—Você

sabe: Mumsey trabalha fora, fazendo faxina, de modo que come ondetrabalha,eJerryarranjaqualquercoisaondepode,anãoserdemanhãeànoite.Então,comeconosco...quandotemosalgumacoisaparacomer.

Polianaficouchocadaeperguntou:

—Masoqueéquevocêsfazemquandonãotêmoquecomer?—Ora,ficamoscomfome!— Nunca ouvi falar de alguém que não tivesse nada para comer—

dissePoliana,comvozalterada.—Euemeupaiéramospobresetínhamosdenoscontentarcomfeijãoebolodepeixe,quandooquequeríamoseracomerperu.Massempretínhamosalgumacoisa.Porqueentãovocêsnãofalamcomosoutros,comessagentequemoranessascasas?

—Paraquê?—Paraquelhedeemalgumacoisa,naturalmente.—Ora,menina!—Omeninodeuumarisada,meioesquisitadessavez.

—Ninguémqueeuconheçadábifesebolosaquempede.Eseagentenãopassar fome de vez em quando, não pode avaliar como pão com leite égostoso.EnãopodeanotarissoemseuLivrodaAlegria.

—Livrodequê?—Nada!—exclamouomenino,agorasorrindosemgraça.—VocêfalouemLivrodaAlegria!—protestouamenina.—Querme

explicaroqueé?Temmuitoscavaleirosedamas?—Não—respondeuomenino,de cujosolhos tinha sumidoaalegria.

—Antestivesse!Quandoagentenãopodesequerandar,nãopodetravarbatalhas e conquistar troféus, nãopode receber sua espada e o galardãodasmãosdeumalindadama...

Os olhos do rapazinho brilharam e ele levantou a cabeça, como seobedecesseao toquedeumclarim.Depois, tãodepressa comochegara, oentusiasmopassoueelevoltouàsuaapatia.

— A gente não pode fazer nada — disse, abatido. — Tem de icarsentado, pensando. Às vezes, o pensamento pode fazer a gente sofrer. Omeu faz. Sempre tive vontade de frequentar a escola e aprendermuitascoisas,maiscoisasdoqueMumseypodemeensinar.Ficopensandonisso.Queria correr e jogar bola com os outrosmeninos. E penso nisso. QueriavenderjornaiscomoJerry.Epensonisso.Nãoqueriadependerdosoutrosavidatoda.Epensonisso.

—Eusei,eusei!—dissePoliana.—Eutambémnão iqueisempoderandardurantealgumtempo?

—Entãovocêcompreende.Sóquevocêpôdecaminhardenovo.Eeu,não.Estávendo?—replicouoinválido,triste.

—VocêaindanãomefaloudoLivrodaAlegria—lembrouPolianauminstantedepois.

— Não é nada de interessante, a não ser para mim — disse orapazinho.—Você não iria se interessar. Comecei faz um ano. Sentia-me

maisdesanimadodoquenunca,naqueledia.Nadadavacerto.Fiqueicomos meus pensamentos e, depois, apanhei um dos livros de meu pai,tentando me distrair. A primeira coisa que vi foram estes versos, quedecoreiepossorepetiragora:

Encontrarásprazerondemenosesperas;CadafolhaquedaárvorecainochãoAlgodealegretrazaonossocoração.Eoinválidocontinuou:—Fiquei furioso.Queriaqueo caraque escreveuos versos estivesse

em meu lugar, para ver que espécie de alegria poderia encontrar nasminhas “folhas caídas”. E resolvi provar que ele não sabia do que estavafalando. Comecei a procurar que alegrias eu tinha na vida. Peguei umcaderninhoque Jerrymederaecomeceiaanotá-las.Escrevia tudooquedebomaconteciacomigo.Eentãoverifiqueiquantas“alegrias”eutinha.

O inválido fez uma pausa para respirar, e Poliana semostravamuitointeressada.Elecontinuou:

—Nãoesperavaquefossemmuitas,mas,sabedeumacoisa?Arranjeibastantes.Aprimeirafoioprópriocadernoqueeutinhaganhado.Depois,alguémmedeuumvasocomuma loreJerryachounaruaumlivromuitoengraçado. Passei a achar divertido procurar e anotar. Às vezes eramcoisasbemcuriosas.AtéqueumdiaJerrydescobriuocadernoeleutudooqueeuhaviaescrito.Aí,pôsneleonomedeLivrodaAlegria.Ésóisso.

—Só isso?—exclamouPoliana.—Éomeu jogo!Vocêestá fazendoojogo do contente, sem saber. E jogandomelhor do que eu! E você não iaconseguir jogá-lo se não tivesse comida su iciente e não pudesse nuncamaisandar.

— Jogo?Que jogo?—perguntouomenino, intrigado.—Não seinadasobreotaljogo.

—Bem,vocênãosabe,mesmo.Éporissoqueestouadmirada.Escute.Voulhecontarcomoéojogo.

Econtou,comojáhaviafeitoantes,tantasvezes.—Sim,senhora!—exclamouo inválido,comadmiração.—Eagora,o

quepensadisso?— Bem, você está aqui jogando o meu jogo melhor do que qualquer

pessoa,eaindanãoseicomosechama.Querosabertudo.— Ora! Não há muito para saber. Além disso, lá estão o pobre Sir

Lanceloteeosoutrosàesperadojantar.

— É mesmo — disse Poliana, olhando para os bichos e, impaciente,virou a sacola de cima para baixo, espalhando o conteúdo aos quatroventos.—Agora—continuou—elesjáestãocomendo.Emprimeirolugar,como se chama?Hámuita coisa que preciso saber e podemos conversar.SeiquenãosechamaSirJames.

—Claroquenão—concordouorapazinho.—MasécomooJerrymechama,sempre.MumseyeosoutrosmechamamdeJamie.

— Jamie?—Poliana icouboquiabertaporum instante, um clarãodeesperança brilhando nos olhos, logo seguindo-se a dúvida: — Mumseyquerdizermãe?

—Issomesmo.A mocinha respirou, mais tranquila. Se Jamie tinha mãe não podia,

evidentemente,seroJamiedasenhoraCarew,cujamãefalecerahámuito.Dequalquermodo,eleeramuitointeressante.

— Onde você mora?— indagou. — Há alguém mais em sua família,além de sua mãe e de Jerry? Vem aqui todos os dias? Cadê o Livro daAlegria? Posso vê-lo? Os médicos acham que você vai poder andar denovo?Ondefoiquearranjouessacadeiraderodas?

—Nossa!Quantasperguntasquerqueeurespondaaomesmotempo?Vou começarpela última e depois respondo às outras.Arranjei a cadeirahá um ano. Jerry conhecia um jornalista e ele fez um apelo pelo jornal,dizendo que eu não podia andar e mais outras coisas... como o Livro daAlegria etc. O fato é que, quando eumenos esperava, apareceram umaspessoas empurrando esta cadeira de rodas e dizendo que era paramim.Tinhamlidoanotíciaetraziamaquilocomopresente.

—Vocêdeveterficadoumbocadocontente!—Se iquei?!GasteiumapáginainteiradoLivrodaAlegriaescrevendo

arespeitodacadeira.—Nuncamais você vai poder andar?—Poliana tinha os olhos rasos

d’água.—Achoquenão.Éoquedizem.—Ora,foioquemedisseramtambém,masdepoismemandarampara

odoutorAmes.Fiqueiláquaseumanoeelemepôscaminhandodenovo.Talvezelepossaajudarvocê.

—Nãopode—respondeuo inválido.—Nãopossometratarcomele,deve sermuito caro. Não fazmal, tento não pensar nisso. Sabe como é...quandoagentecomeçaapensar.

—Eusei,éclaro.Ecáestoueufalandodisso...—desculpou-sePoliana.— Já falei que você joga melhor do que eu o jogo do contente. Vamos

adiante. Você ainda nãome dissemetade do que perguntei. Onde é quemora?Temoutrosirmãos,ousomenteJerry?

—Bem...—EaexpressãodeJamiesealterou.—Elenãoé,realmente,meu irmão, nem meu parente. Mumsey também não é. Mas você nãoimaginacomotêmsidobonsparamim!

—Oquê?EntãoaquelaMumseynãoésuamãe?—Não,eoque...—Vocênãose lembrade suamãe?— interrompeuPoliana, cadavez

maisexcitada.—Não,nãomelembrodela.Meupaimorreuháseisanos.—Quantosanosvocêtinha?—Nãosei,erapequeno.Mumseyachaqueeudeviaterunsseisanos.

Foientãoqueelesficaramcomigo.—EvocêsechamaJamie?—Polianacontevearespiração.—Issomesmo.Jálhedisse.—Comoéoseusobrenome?—perguntouamocinha,tensa.—Nãosei.—Comonãosabe?!—Nãome lembro, eu eramuitopequeno.NemosMurphy sabem. Só

sabemquemechamoJamie.Uma expressão de desapontamento surgiu no rosto de Poliana, mas

umaideialheveioderepenteeeladisse:— Se você não sabe qual é o seu sobrenome, não pode saber, então,

quenãoéKent!—Kent?—perguntouorapazinho,intrigado.— Bem — continuou Poliana, excitada. — Há um menino chamado

JamieKentque...Calou-se subitamente, cerrando os lábios. Ocorrera-lhe a ideia de que

seriamelhor nada insinuar ainda a respeito da possibilidade de que elepodiamuito bem ser o Jamie desaparecido. Seriamelhor certi icar-se detudo, antes de alimentar uma expectativa. Do contrário, poderia causaraborrecimentos a Jamie, em vez de alegria. Nunca esquecera a decepçãode Jimmy Bean quando fora obrigada a lhe dizer que as senhoras daAuxiliadoranãoqueriamrecebê-lo,edenovo,quandoaprincípioosenhorPendleton também não queria acolhê-lo. Assim, assumiu um ar decompletaindiferençaedisse:

—DeixemosJamieKentdelado.Estouinteressadaemvocê.—Não tenhomuito o que contar, nada que valha a pena. Dizem que

meupaieraesquisitoenãogostavadeconversar.Nemaomenossabiamo

seunome.Todosochamavamde“oProfessor”.Mumseymedissequeeueelemorávamos num quartinho dos fundos da casa de cômodos onde elatambémresidia.Elaerapobre,masnão tãopobrecomoéagora.Naqueletempo,opaideJerryaindaeravivoetinhaumemprego.

—Continue!—pediuPoliana.—Mumsey disse quemeu pai era doente e ia icando cada vezmais

esquisito. Por isso, ela me levava para icar lá embaixo com sua família,cadavez commais frequência.Nessaépocaeuaindapodiaandar,mas játinha as pernas fracas. Ficava brincando com Jerry e com sua irmãzinhaquemorreu.Quandoperdimeupai,nãohavianinguémpara icarcomigo,e quiseram me levar para um orfanato. Mumsey disse que eu e Jerryembirramos.Bem,eles icarampaupérrimos.OpaideJerrytinhamorridoe, apesar de tudo, icaram comigo. Diga-me: existe gente melhor do queeles?

—Sãomuitobons,mesmo—concordouPoliana.—Tenhocertezadequeserãorecompensados!

Poliana estava jubilosa, certa de haver encontrado o Jamiedesaparecido. Só que ainda não podia falar. Antes, era preciso que RuthCarewo visse.Depois, então...Nemmesmoa imaginaçãodePoliana seriacapazdepreveraemoçãodasenhoraCarewseencontrasseJamie.Pôs-sede pé, sem se preocupar comSir Lancelote, que estava em seu colo, àesperadeganharmaisalgumasnozes.

—Agoratenhodeir—disse.—Amanhãeuvolto.Talveztragacomigouma senhora que você vai gostar de conhecer. Você vem amanhã, não émesmo?

—Seotempoestiverbom,venho.Jerrymetrazaquitodasasmanhãs.Eles se arranjam como podem e eu trago o almoço e ico até às quatro.Jerryémuitobomparamim!

—Eusei!—concordouPoliana.—Talvezumdiavocêpossaserbomparaeletambém.

Ecomaenigmáticainsinuação,amocinhasedespediu.

Capítulo9:Planoseprovidências

No caminho de casa, Poliana arquitetava altos projetos. Assim, no dia

seguinteouemoutroqualquer,convenceriaRuthCarewapassearemsuacompanhia. Não sabia como fazer,mas haveria de convencê-la. Afastou ahipótese de dizer abertamente aRuth que havia encontrado Jamie e quequeria que ela se encontrasse com ele. Bem, podia ser que ele não fosserealmenteo seu Jamie e, nesse caso—sobretudo se tivesse feito a viúvaalimentar esperanças — o resultado poderia ser um desastre. Polianasabia,poisMary lhehaviacontado,que,porduasvezes,asenhoraCarewpassaramal depois da decepçãode veri icar que não eram seu sobrinhonenhum dos dois meninos que as circunstâncias levavam a crer quefossem.Assim,sabiaquenãoconvinhadizeràviúvaporqueaquerialevaraoparque.Epensava:“Devehaverummeio!”

Maisumavezodestinointerveio,sobaformadeumachuvatorrencial.BastouaPolianaolharpela janela,namanhãseguinte,paracompreenderquenãopoderia ir aoPasseioPúbliconaquela tarde.Opior équenodiaseguinteviuqueasnuvensnãosehaviamdispersado,eelatevedepassartrêstardesandandodejanelaemjanelaeperguntandoatodoscomquemfalava:

—Nãoachaqueocéuestáclareandoumpouco?Tão estranho era seu comportamento e tão irritantes suas constantes

perguntas sobre o tempo que, a inal, Ruth Carew perdeu a paciência ereclamou:

— Pelo amor de Deus, por que está assim, menina? Nunca a vi tãopreocupadacomotempo.Quefezdofamosojogodocontente?

Embaraçada,Polianacoroueadmitiu:—Confessoqueatémeesquecidojogo.Seháalgumacoisaquepossa

mealegrar,tenhodeprocurá-la.Posso icaralegre,sabendoquevaipararde chover. Deus disse que não mandará outro dilúvio. Queria tanto quehojefosseumdiabonito!...

—Porquetantointeresse?— Só queria ir ao Passeio Público— disse Poliana, tentando parecer

natural.—Pensei...quetalvezasenhorameacompanhasse.Conseguiu, de fato, falar com naturalidade, embora estivesse tensa e

ansiosa.Aviúvaestranhou:—Eu? IraoPasseioPúblico?Não,obrigada,achoquenãovouquerer

—completou,sorrindo.—Asenhoranãopodeserecusar!—exclamouPoliana.—Jádissequenão.— Por favor, senhora Carew! — A menina empalideceu. — É tão

agradável.Vácomigo,sóumavez!A viúva fechou a cara. Ia repetir o “não”,mas a expressão de súplica

nos olhos de Poliana a fez mudar de ideia. Dos lábios, antes cerrados,saíramagorapalavrasdeaquiescência:

—Estábem,menina.Façacomoquiser.Prometoir,massósevocênãochegarmaispertodajanelaenemmeperguntarseotempovaimelhorar.

—Prometo!—apressou-sePolianaemdizer.Foientãoqueumapálidaluz,quaseumraiodesol,bateunavidraça,e

elanãoconteveumgritodesatisfação:—Achoqueotempoestámelhorando...Viva!Calou-seesaiucorrendoparaforadasala.Na manhã seguinte, o tempo de fato melhorou. Mas, embora o sol

brilhasse, fazia frio e, à tarde, quandoPoliana voltou da escola, havia umventoforte.Apesardosprotestos,porém,insistiuema irmarqueotempoestava ótimo e que icaria muito triste se a senhora Carew não fosse aoPasseioPúblicocomela.Ruth,sobprotesto,aacompanhou.

Masfoiumpasseioinfrutífero.Aimpacienteviúvaeaansiosamocinhaandaram, tremendo de frio, de um recanto para outro. (Não tendoencontrado o rapazinho no lugar de costume, Poliana empreendeufrenética busca por todos os recantos do parque. Era absurdo nãoencontrá-lo. A inal, ela viera e conseguira trazer a senhora Carew. Jamie,porém,nãoeravistoempartealgumae,naturalmente,nadadissopoderiaser dito à senhora.) Tiritando de frio e exasperada, a viúva insistiu emvoltarparacasa.Profundamentedecepcionada,Polianatevedeconcordar.

Osdias que se seguiram forammotivodemuita tristezaparaPoliana.Uma chuva que, para ela, parecia um segundo dilúvio, e que, para RuthCarew, não passava de uma “habitual chuva de verão”, trouxe um céucinza,cobertodenuvensescuras,eoraassumiaaformadeumachuvinhairritante, ora a de um verdadeiro aguaceiro. Se, por acaso, ocorria diaensolarado, Polianadisparavapara oPasseio.Mas emvão. Jamienão eraencontrado. Novembro ia pela metade e o próprio parque mudara deaspecto:asárvoresdesfolhadas,osgalhosquasesecosenãoseviaumsóbarconopequeno lago.Ospombos, éverdade, aindaestavam lá, comoospardaiseesquilos,masalimentá-lossócausavatristeza—cadamovimentodeSir Lancelote fazia lembrar aquele que lhe dera esse nome. E ele não

estavaali.“O pior é que não sei onde ele mora!”, lamentava-se Poliana,

repetidamente,enquantoosdiaspassavam.“EleéJamie,eusei.Vouterdeesperaravoltadaprimavera,atéqueotempo iquequenteeelepossaviraqui de novo. Então, talvez eu não possa vir. Que pena! Eu sei que ele éJamie!”

Oinesperadoaconteceu,numatardesombria.Aopassarpelovestíbulosuperior, Poliana ouviu vozes furiosas discutindo. Uma das vozes era deMaryeaoutra...aoutra.Essaoutradizia:

— De modo algum! Deixe de ser metida a besta! Está entendendo?Queroveraquelamenina,Poliana.Tenhoumrecadode SirJamesparaela.Tratedeirchamá-la!

Polianadeuumgritodealegriaedesceuaescada,correndoegritando:—Estouaqui!FoiJamiequemmandouvocê?—Emseuentusiasmo,já

estendera os braços para abraçar o mensageiro, no que foi contida porMary,muitoformal.

— Senhorita Poliana, por favor! Não vai me dizer que conhece essemendigo!—estranhouMary.

Furioso,Jerryabriuabocapararesponder,mas,antesqueelefalasse,Polianaretrucou:

—Elenãoémendigo.Vemdapartedeumdosmeusmelhoresamigos.Alémdisso,foielequemmeencontrouemetrouxeparacasa,quandomeperdi!—E,voltando-separaorapazinho,perguntou:—FoiJamiequemomandouaqui?

—Elemesmo.Deucomosburrosn’águaháummêsedesdeentãonãoselevantou.

—Deucomosburrosn’água–espantou-sePoliana.—Caiudecama—explicouJerry.—Estádoenteequervervocê.Você

vai?—Está doente? Que pena!— compadeceu-se Poliana.— É claro que

vou.Espereatéeuapanharochapéueocasaco.Jávolto.— Acha que a senhora Carew vai deixar a senhorita sair com um

desconhecido?—perguntouMary,horrorizada.—Mas ele não é desconhecido— reagiu Poliana.— Já o conheço há

muitotempo,etenhodeir.— Que está acontecendo aqui? — perguntou a viúva, aparecendo à

portadasala.—Queméessemenino,Poliana,eoquefazaqui?—Vaimedeixarir,nãovai,senhoraCarew?—indagouPoliana,quase

chorando.

—Iraonde?—Elavaivermeuirmão,senhora—atalhouJerry,esforçando-separa

ser cortês. — Ele não me deu sossego enquanto não vim procurá-la —acrescentou,apontandoparaPoliana.

—Possoir,nãoposso?—implorouPoliana,enquantoaviúvafechavaacara.

— Sair com esse menino? É claro que não, Poliana. Como é que issopodelhepassarpelacabeça?

—Euqueriaqueasenhoratambémfosse!—pediuPoliana.— Que absurdo, menina. Impossível. Pode dar algum dinheiro ao

meninosequiser...— Obrigado, senhora. Não vim atrás de dinheiro. — Jerry se sentiu

ofendido.—Vimatrásdela.—Ele se chama Jerry, JerryMurphy, omenino queme encontrou—

explicouPoliana.—Não se lembra? Eleme trouxe para casa quandomeperdi.Eentão,medeixair?

—Demodoalgum,Poliana—respondeuRuthCarew.—MaseledizqueJa...digo,queooutromeninoestádoenteequerme

ver.—Lamentomuito.— Eu o conheço, senhora Carew, é verdade. Ele lêmuitos livros, uns

livroslindos,comcavaleiros,lordesedamas,edácomidaaospombos,aospardais e aos esquilos, e põe nomes neles, só que não pode andar e icasem ter oque comer,muitas vezes. E jogao jogodo contenteháumano,sem saber. Joga melhor do que eu. Para falar a verdade, tenho de meencontrar com ele— insistiu, quase chorando.—Não posso perdê-lo devistanovamente!

Vermelhaderaiva,Ruthsentenciou:— Isso é uma loucura! Estou estarrecida, vendo que você teima em

fazer algo que desaprovo, Poliana. Não vou deixar você sair com essemenino.Porfavor,nãoinsista.

Nova expressão surgiu no rosto de Poliana. Com um olhar meioamedrontadoemeiodesa iador,ergueuacabeçaeencarouRuth,falando,comvoztrêmulamasresoluta:

— Nesse caso, tenho de lhe dizer. Não queria falar enquanto nãotivessecerteza.Queriaqueasenhoraovisseantes.Agoratenhoquedizer.Nãovouperdê-lodenovo.EuachoqueeleéJamie,senhoraCarew!

—Jamie?!MeuJamie!—exclamouaviúva,lívida.—Foioqueeudisse.

—Impossível!—Escute,porfavor.ElesechamaJamieenãosabeoseusobrenome.O

paimorreuquandoele tinha seisanoseelenão se lembradamãe.Deveter agora uns 12 anos. Esse pessoal tomou conta dele quando o paimorreu.Seupaieraesquisito,nemdisseàquelagenteoseunomee...

RuthCarewafezcalar-secomumgesto.Estavamuitopálida,masseusolhosbrilhavam.

— Vamos lá, agora mesmo — disse. — Mary, avise a Perkins paraprepararocarroomaisdepressapossível.Poliana,vábuscarochapéueocasaco.Menino,espereaí,porfavor.Vamoscomvocê.—Esubiuaescada,àspressas.

—Puxavida!—murmurouomenino.—Estou importante...Vouparacasadeautomóvel!QuediráSirJamesdisso?

Capítulo10:NacasadosMurphy

Com o rumor característico das limusines de luxo, o carro de Ruth

Carew deslizou pela avenida Commonwealth até a rua Arlington. Atrás,umajovemdeolhosbrilhanteseumasenhoramuitopálida.

Aoladodomotorista, ia JerryMurphy,desordenadamenteorgulhosoeinsuportavelmenteimportante.

Quandoocarroparoudiantedeumpardieiro,numbecoescuroesujo,omenino desceu e, imitando, desajeitado, a reverência que osmotoristasparticularesfazem,apressou-seemabriraportadocarro,esperandoqueasdamasdescessem.

Poliana arregalou os olhos, compadecida com o que via em torno.Depois, desceu a viúva, horrorizada ao ver crianças sujas,maltrapilhas edoentias,quesaíamfalandoegritandodossórdidoscasebres.Jerryagitouosbraços,furioso:

—Paremcomisso!—gritou,tentandoimpediraaglomeraçãoemvoltado carro.— Isto aqui não é um circo! Deixem a gente passar! Temos deentrar.AvisitaéparaJamie.

Quase em pânico, Ruth Carew pôs amão trêmula no ombro de Jerry,exclamando:

—Éaqui?!Nãoépossível.O menino não ouviu. À custa de cotoveladas e empurrões, abria

caminhoporentreamultidãodecriançase,antesqueaviúvapercebesseoqueestavaacontecendo,elaseviu,comJerryePoliana,aospésdeumaescadaquase em ruínas, no fundodeum corredor escuro emalcheiroso.Maisumavez,Ruthestendeuobraçotrêmulo,exclamandocomvozrouca:

— Esperem! Nenhum de vocês pode dizer uma só palavra sobre...sobre a possibilidade de encontrarmos o menino que estou procurando.Primeiro,querovereconversarcomele.

—Éclaro!—concordouPoliana.— Certo — disse Jerry. — Vou tratar de cair fora logo, para não

incomodar a senhora. Pode subir a escada, e cuidado com os buracos.Pode-se encontrar algum menino dormindo por aí. O elevador não estáfuncionandohoje—acrescentou ironicamente.—Agente temmesmodesubirapé.

Aviúvaencontrouos “buracos”— tábuasquebradasqueameaçavamcair a qualquer instante — e viu um “menino”, de uns dois anos, não

dormindo, mas brincando com uma lata vazia, que fazia rolar peloscarcomidosdegraus.Portasseabriamdetodososlados,orafurtivamente,ora com estrépito, sempre deixando ver mulheres descabeladas oucrianças imundas. Ouvia-se o pranto de uma criança e as ameaçasbradadasporumhomem.Portodaaparte,umcheirodebebidaordinária,derepolhopodreedegentequenãotomavabanho.Noaltodoterceiroeúltimo lance de escada, o menino parou diante de uma porta fechada,murmurando:

—SóestouimaginandooqueSirJamesvaidizer,aoveropresentequetragoparaele.SeioqueMumsey fará:vaichorardealegria,vendo Jamietãocontente.Aquiestamos,eémuitagente!—exclamou,escancarandoaporta.—Ei,SirJames!

O quarto era diminuto, frio e triste, dolorosamente vazio, mas muitolimpo. Não havia gente descabelada, nem crianças sujas, nem cheiro debebida barata ou de repolho podre. Havia dois catres, três cadeirasquebradas, um caixote servindo de mesa e um fogão evidentementeincapaz de aquecer sequer aquele pequeno aposento. Numa das camas,estavaummenino,comorostovermelhoeosolhosbrilhantesdefebre.Aolado, sentava-se uma mulher, magra, pálida, curvada e contorcida peloreumatismo. A senhora Carew entrou no quarto e, para se equilibrar,parouporummomento,encostando-seàparede.Polianaadiantou-se,comumgritinhoabafado,enquantoJerry,comoanúnciode“Agoratenhodeir,atélogo”,atravessavaaportaedesaparecia.

—Estoucontenteportê-loencontrado, Jamie!—exclamouPoliana.—Vocênãosabecomoandeiessesdiastodosàsuaprocura.Sintomuitoquevocêestejadoente.

—Eunão estou triste,mas satisfeito—disse Jamie, estendendoparaela a mão muito branca. — Por isso, você veio me ver, e já estou bemmelhor. Mumsey, esta aqui é a menina que me falou sobre o jogo docontente.Mumsey também já está jogando—acrescentou, entusiasmado.— Ela estava chorando, de tanta dor nas costas. Nem pôde trabalhar.Depois, quando eu piorei, ela icou alegre de não poder trabalhar, paraficartomandocontademim.

Então, a senhoraCarewaproximou-se, comuma expressão aomesmotempodetemoredeesperança.Chegoubempertodoinválido.

— Esta é a senhora Carew, que eu trouxe para ver você, Jamie.— EPolianaapresentouRuthaoenfermo.

Mumsey levantou-se, com esforço, e ofereceu uma cadeira à visitante,que aceitou sem lhe darmuita atenção: continuava com os olhos itos no

doente.Atéqueperguntou:—VocêsechamaJamie?—Sim,senhora—respondeuomenino,encarando-afirme.—Equaléoseusobrenome?—Nãosei.Pela primeira vez, a senhora Carew se dirigiu à outra mulher, que

continuava,agoradepé,juntodacama.Perguntou:—Éseufilho?—Não,senhora.—Asenhoranãosabeoseusobrenome?—Não.Nuncasoube.Comumgestodedesalento,Ruthvoltouainterrogarorapazinho:—Pensebem,façaumesforço.Nãoselembradealgumacoisasobreo

seunome,anãoserqueéJamie?—Não,nãome lembro—respondeuo inválido, intrigadocomaquela

insistência.— Você não tem nada que pertencia a seu pai, algo que possa ter o

nomedele?—indagouRuthCarew.—Nadahaviaquemerecesseserguardado,anãoserlivros—atalhou

aviúvaMurphy.—Quemsabeseasenhoranãoquervê-los?—Eapontoupara uma pilha de livros muito velhos, numa prateleira, acrescentando,semconteracuriosidade:—Asenhorasabealgumacoisaarespeitodele?

—Não...—murmurouRuth,comvozabafada.Atravessouoquarto até aprateleira.Nãoerammuitos livros, unsdez

ou doze, no máximo. Havia um volume com peças de Shakespeare, umIvanhoé, umaDama do Lago em péssimo estado, um com poemasescolhidos,umTennysonsemcapa,umOpequeno lorderasgadoedoisoutrêsdehistóriaantigaemedieval.Mas,emboraRuthtivesseprocuradoemcada um, não encontrou nada de particular em nenhum deles. Nenhumadedicatória, nenhuma anotação pessoal, nada. Com um suspiro, voltou-separaoenfermoeàoutramulher,queacompanhavaseusmovimentoscomcuriosidade.Edisse,sentando-se:

—Querosabertudoarespeitodevocês.OsdoisfalaramamesmahistóriaqueJamiehaviacontadoaPolianano

Passeio Público. Pouca coisa era novidade e nenhuma signi icativa, pormais perguntas que Ruth izesse. Então, Jamie lançou um olhar deansiedadeparaavisitanteeperguntou:

—Asenhoraconheceumeupai?—Nãosei,achoquenão.—Ruthfechouosolhoselevouamãoàtesta.

Poliana não conteve um gritinho de decepção, diante do olhar decensura de Ruth, que, horrorizada, examinava a miséria do ambiente.Afastando o olhar da visitante, Jamie se deu conta, de súbito, de seusdeveresdeanfitrião.DisseaPoliana:

— Que bom você ter vindo! Como vaiSir Lancelote? Continua aalimentá-lo?

EcomoPoliananãorespondesse, ixouosolhosnumcravomaltratado,enfiadonumvasoquebrado,nobeiraldajanela:

—Estávendominha lor?FoiJerryqueencontrou.Alguémajogouforaeeleapanhou.Élindaeaindatemperfume.

Poliananempareciaouvi-lo,apertandoasmãos,nervosa.—Nãoseicomovocêconseguefazerojogoaqui,Jamie—disse,a inal,

comvozalterada.—Creioquenãopodehaverlugarpiorqueesteparasemorar.

—Ora! Você precisa ver o quarto dos Pike, lá embaixo— respondeuJamie, em tomseguro.—Ébempiordoque isto aqui.Vocênem imaginaquantacoisaboahánestequarto.No inverno,aquibatesolmaisdeduashoras por dia, quando há sol, é claro. E da janela a gente pode ver umpedaço de céu. Seria ótimo se a gente pudesse continuar aqui. Estamoscommedodeterdesair...

—Sair?!— É que estamos com o aluguel atrasado. Mumsey anda doente e,

assim, não consegue ganhar nada — explicou Jamie, sem esconder apreocupação.— A senhora Dolan, lá de baixo, que guarda a cadeira derodas, tem nos ajudado esta semana, mas não vai poder ajudar sempre.Assim,vamosterdesair,anãoserqueJerry iquericoouaconteçaalgumacoisa...

—Bem,masnãopodemos...—começouPoliana,masparou logo,poisRuthCarewsepuseradepé,derepente.

—Vamos,Poliana—disseela.—Temosdeirembora.Masasenhoranãovaiterquesairdaqui—acrescentou,dirigindo-seàviúvaMurphy.—Voumandardinheiroecomidaeexporoseucasoaumadasorganizaçõesdecaridadeaquepertençoe...

Calou-se, surpresa. A pobre mulher de corpo deformado peloreumatismoquasesetornarapetrificada—tinhaosolhosluzindo:

—Não,muitoobrigada, senhoraCarew. Somosmuitopobres, sóDeussabe,masnãovivemosdecaridadealheia.

—Quetolice!—exclamouRuth,irritada.—Estãosendoajudadospelamulherládebaixo.Foioqueomeninodisse.

—Sóqueissonãoécaridade—insistiuamulher.—AsenhoraDolanéminhaamigaesabequeeupossolheprestarumfavoremtroca,comojáiz antes. Ajuda de amigos não é esmola. Os amigos se preocupam com agente,eisadiferença.Nãofomossempretãopobrescomosomosagora,eissonosfazsentirmaisascoisas.Obrigada,masnãopodemosaceitaroseudinheiro.

Ruth não gostou do que ouviu. Passara uma hora decepcionante edesagradável,queadeixaraexausta.Senuncaforapaciente,agoraestavaexasperadaeterrivelmentecansada.Disse:

—Bem, se prefere assim...—E acrescentou, comuma vaga irritação:—Mas então por que não procura o senhorio e exige que ele torne istoaquimaisdecente?Vocêstêmdireitoamaisalgumacoisaalémdejanelasquebradas,cobertascomjornaisemolambos!Eestaescadaporondeviméumbocadoperigosa.

A senhora Murphy deu um suspiro — voltara a ser doente e fraca.Disse,emtomdesanimado:

— Já tentamos, mas sem resultado. A única pessoa que vemos é oencarregado, e ele repete que o aluguel é muito baixo para que oproprietáriogastecomobrasdemelhoramento.

— É um absurdo! — exclamou Ruth Carew, furiosa, como seencontrasse um meio de desabafar. — Desaforo! Acho até que é umaviolaçãoda lei,pelomenosaquelaescadaé.Vou tomarprovidênciasparaque ele cumpra a lei. Como se chama o encarregado? E quem é o donodesta“confortável”residência?

—Nãoseionomedodono.OencarregadoéosenhorDodge.—Dodge?!—exclamouRuthCarew.—HenryDodge?—Sim,senhora.AchoqueelesechamaHenry.—Estábem—murmurouRuth, já se retirando.—Vouprovidenciar.

Vamosembora,Poliana.Poliana se despedia de Jamie e, comovida, prometeu, antes de correr

atrásdasenhoraCarew:—Euvoltodepois.Após terem descido, com cuidado, a arruinada escada e de terem

atravessadoaporçãodecriançasegentegrandequecercavaPerkinsealimusine,Poliana falou,quase implorando,enquantoPerkinsbatiaaportadocarro:

—Porfavor,senhoraCarew,digaqueeleéJamie!VaisertãobomparaeleseforJamie!

—ElenãoéJamie!

—Asenhoratemcerteza?Quepena.Fez-seummomentode silêncio, eRuthCarewescondeuo rostoentre

asmãos.—Certeza,mesmo,nãotenho—murmurou.—Eissoéqueéterrível.

Acho que não é, estou quase convencida. Mas sempre há umapossibilidade...eissoestámematando.

—Nessecaso,nãopodeimaginarqueeleéJamieefazertudocomosefosse?—sugeriuPoliana.—Podíamoslevá-loparacasae...

Ruthinterrompeu,irritada:— Levar aquelemenino para aminha casa, como se ele fosse Jamie?

Nunca,Poliana!Nãoposso.—Sea senhoranãopuder cuidarde Jamie, achoque icaria contente

emcuidardealguémque,comoele,precisadeajuda—insistiuPoliana.—EseoseuJamieestivercomoesseaí,pobreedoente,asenhoranão icariacomele,paratratardelee...

—Não,não,Poliana,por favor...—gemeuRuth,movendoacabeçadeumladoparaooutro.—QuandopensoquetalvezonossoJamieestejaemalgumlugarsofrendocomo...—Nãopôdecompletarafrase.

—Éissooqueestouquerendodizer!—exclamouPoliana.—Nãoestávendo?SeaqueleforoseuJamie,claroqueasenhoravaiquerer icarcomele.Senãofor,issoemnadaprejudicaooutroJamie,querdizer,cuidandodesse aqui, e ele icaria muito feliz. E quando encontrasse o Jamieverdadeiro, a senhora não iria perder nada, pois teria feito doismeninosfelizes,emvezdeume...

—Cale-se,Poliana—interrompeu-adenovoasenhoraCarew.Polianaobedeceu,osolhosrasosde lágrimase,comesforço,manteve-

seassimporumminuto.Depois,nãoconseguiuconteraspalavras:— Nossa! Que lugar horrível aquele! Acho que o dono da espelunca

deviamorarlá,paraveroqueébom...Ruth levantou a cabeça, de súbito, com a isionomia transformada.

EstendeuobraçoparaPoliana,numgestoquepareciadesúplica,dizendo:— Talvez ela não soubesse, Poliana. Tenho certeza de que ela não

sabia... que era dona de um lugar igual àquele. Mas agora vai tomarprovidências...

—Ela?!—indagouPoliana.—Adonadaquelacasaéumamulher?Asenhoraaconhece?Econhecetambémoencarregado?

—Sim—disseRuth,comesforço.—Conheçoosdois.— Que bom! — exclamou Poliana, radiante. — Agora, tudo vai icar

bem.

— Pelo menos icará melhor — assegurou Ruth Carew, enquanto alimusineparavadiantedesuacasa.

AsenhoraCarewfalavacomoquemconheciaoassunto.Esabiamuitobemoquedizia,muitomaisdoquesepreocupouemtransmitiraPoliana.Antes de se deitar, naquela noite mesmo, escreveu uma carta a um talHenry Dodge, convocando-o com urgência para conversar com ela sobrecertosreparosemodi icaçõesquedeveriamser feitosnumadascasasdesua propriedade. Havia, na carta, frases duras a respeito de “janelasquebradas”e“escadaquasedesabando”,frasesque izeramHenryDodgesoltar algunspalavrõesemvozbaixa, semdeixar,porém,deempalidecerdemedo.

Capítulo11:UmasurpresaparaRuthCarew

Tendo solucionado adequadamente a questão dos reparos na casa, a

senhora Carew admitiu para si mesma que havia cumprido seu dever equeoassuntoestavaencerrado.OmeninonãoeraJamieenempodiaser.Aquele menino sujo, ignorante e inválido, ilho de sua irmã? Impossível.Podia esquecer o caso. Mas Ruth Carew esbarrou em um obstáculointransponível: não conseguia esquecer. Parecia ouvir sempre a mesmaindagação: “Eseele fosse Jamie?”Ehavia tambémapresençadePoliana,poisemboraRuthpudesse(comopôde)calarassúplicasdamocinha,nãopodialivrar-sedaangústiaedascensurasqueliaemseusolhos.

Porduasvezes,Ruthvoltouavisitaromenino,dizendoasimesmaquebastaria outra visita para convencer-se de que ele não era a pessoa queprocurava. Todavia, embora achasse que estava certa, na presença domenino renascia em sua consciência a mesma dúvida, assim que seafastava. A inal, desesperada, escreveu à irmã, expondo tudo o queacontecera.Depoisderelatarosfatos,encerrouacarta:

Nãoquerialhecontar,ouafligi-la,oualimentar falsasesperanças.Tenho

certezadequenãoéele,aomesmotempo,achoquenãotenhotantacertezaassim.Porisso,queriaquevocêviesse,éprecisoquevenhavê-lo.

Nãoseioquevocêvaidizer.Écertoquenão vemos Jamiedesdequandoeletinhaquatroanos.Otalmeninotem12,aoqueparece—elemesmonãosabesuaidade.Seuscabeloseseusolhosnãosãodiferentesdosde Jamie.Eleestáinválido,devidoaumaqueda,háseisanos,eoproblemaseagravouporcausa de outra queda, quatro anos mais tarde. Parece impossívelconseguir-seumadescriçãocompletadeseupai.Oquepudesabernão levaaqualquerconclusãopró ou contraahipótesedeque se tratadomaridodeDoris.Eleerachamadode“oProfessor”,um tipo esquisito equenadamaisdeixoudoquealguns livros. Issopode ounão significar alguma coisa. Semdúvida, JohnKenteramuitoestranhoetinhaumtemperamentodeboêmio.Nãomelembrosegostavaounãodelivros.Vocêse lembra?Naturalmente,otítulode“Professor”podiamuitobemaplicar-seaele,seoquisesse,oupodesimplesmente ter lhe sidodadopor outras pessoas. Quanto ao talmenino,nãoseidenadamaisetenhoesperançadequevocêdescubraquemé!

Suaangustiadairmã,Ruth

Della seguiu para Boston imediatamente e foi logo ver omenino. Não

chegou a qualquer conclusão. Como sua irmã, achou que não era Jamie,mas, admitia, havia a possibilidade de que fosse, a inal. Como Poliana,contudo, achava, que havia ummodo satisfatório de encarar o problema.Propôsàirmã:

—Porquenão icacomele,querida?Porquenãootrazparacasaeoadota?Seriaótimoparaele,coitadinho...

— Não posso! — interrompeu Ruth. — Quero o meu Jamie e maisninguém—acrescentou,emtomlamuriento.

Então Della encerrou o assunto e voltou à enfermagem. Mas se Ruthpensava que o caso terminara, enganava-se. Não tinha sossego de dia, osonolhecustavaavirdenoitee,quandovinha,eracheiodepesadelosemqueum“pode ser”, ouum “talvez seja” se confrontavamcomum“é sim”.Depois,suaconvivênciacomPolianasetornaradifícil.

Amocinhaestavacheiadedúvidaseinquietação.Pelaprimeiraveznavida,travaraconhecimentocomapobrezaeamiséria.Conhecerapessoasque não tinham o su iciente sequer para comer, que usavam andrajos eviviam em horríveis casas de cômodos, velhas e sujas, em quartinhosdiminutos,semmóveis.Seuimpulsoinicialfora“ajudar”.EmcompanhiadeRuth Carew, fez duas outras visitas a Jamie, e icou alegre ao ver que ascondiçõestinhammudado,depoisque“aqueleDodge”tinha“dadoumjeitonascoisas”.ParaPolianaissonãopassavadeumagotad’águanooceano.Arua era cheia de homens de aspecto doentio, de mulheres miseráveis,crianças esmolambadas — todos vizinhos de Jamie. Cheia de con iança,sugeriuàsenhoraCarewquetambémosajudasse.

— Como?!— exclamou Ruth, ao saber o que pensava a mocinha.—Você quer mesmo que a rua inteira ganhe pintura nas paredes de suascasaseescadasnovas?Maisalgumacoisa?

— Sim, senhora. Muitas coisas— disse Poliana. — Eles precisam detudo. E icariam alegres se conseguissem. Eu queria muito ser rica paraajudaressagente.Mas ico tãoalegre comoa senhora,porquea senhorapodeajudá-los.

A senhora Carew icou boquiaberta. Não perdeu tempo — emboratenha perdido um pouco a paciência — em explicar que não tinha aintençãodepromovermelhoramentoalgumno“BecodosMurphy”enemtinhamotivos para tal. Já fora bastante generosa pelo que izera na casaem que moravam Jamie e os Murphy. (Não achou necessário esclarecerque era a dona do imóvel.) Explicou a Poliana que havia instituições de

caridade, numerosas, com a inalidade de socorrer os pobres, e que elacontribuíacomliberalidadeparataisinstituições.

MasPoliananãosedeuporvencida:—Nãovejoemqueémelhoraspessoassereuniremnumaassociação

parafazeroquecadaumapodiafazerporcontaprópria.Seriamelhor,porexemplo, eu dar agora um bom livro a Jamie, do que deixar que umasociedade o izesse. E tenho certeza de que ele também icaria maiscontenteserecebesseopresentedemim.

— É provável — disse Ruth, um tanto enfastiada. — Mas é bempossívelqueseriamelhorparaJamieseolivrolhefossedadoporpessoasquesabemotipodelivroquemaislheconvém.

Issoalevouafalarmuito(semquePolianaentendesse)arespeitodosproblemas de “levar os pobres à mendicância”, dos “males da esmolaindiscriminada” e dos “efeitos perniciosos da caridade desorganizada”. Eacrescentou,diantedeumaPolianaperplexa:

—Depois, émuito provável que, se eu ajudasse aquela gente,muitosnão aceitariam a ajuda. Não viu com a viúva Murphy recusou meuoferecimentode lhemandarroupaecomida,emboraaceitasseos favoresdasuavizinhadoprimeiroandar?

—Bem,háumacoisaquenãoentendo...—replicouPoliana.—Nãomeparecedireitoquenóstenhamostantacoisaboaeelesnadaouquasenadatenham.

Àmedida que o tempopassava, tal sentimento se fortalecia namentedePoliana. E as perguntas e comentários que fazia emnada contribuíamparaaliviaroatribuladoespíritodaprópriaRuthCarew.Atémesmoojogodocontentepoucofuncionava,comoobservouPoliana:

—Nãovejonessaquestãodamisériaumacoisaquepossadaralegriaà gente. Claro que podemos icar contentes por não sermos miseráveistambém,masaomesmotempoemque icoalegrepor isso, ico tristeporcausa deles, que não podem ser alegres. E poderíamos icar alegressabendoquehápobres,porquepoderíamosajudá-los.Senãoosajudamos,oqueéquepodeseralegre?

EPoliananãoencontravaquemlhepudessedarumaresposta.FezaperguntadiretamenteaRuthCareweesta,aindaimpressionada

comasvisõessobreJamie,tornou--se mais nervosa, infeliz e desesperada. Nem sentiu alívio com aaproximaçãodoNatal.NãohaviamanifestaçõesdejúbiloealegriacapazesdeamenizarseusofrimentooudetornarmenosdolorosaafaltadeJamieeaincertezadeseudestino.

Então,uma semanaantesdoNatal,Ruth travou consigomesmaoquejulgou ser a última batalha. Com decisão, e sem que seu rosto re letisseuma alegria real, deu ordens aMary emandou chamar Poliana, a quemanunciou:

— Escute. Resolvi icar com Jamie. O carro está chegando e eu voubuscá-lo.Sevocêquiser,podeircomigo.

—Que bom!—A isionomia de Poliana trans igurou-se.— Estou tãofelizquesintovontadedechorar!Nãoaconteceomesmocomasenhora?

—Nãosei,nãotenhocerteza—disseRuth,distraídaesemsombradecontentamento,ainda,norosto.

Chegando ao quartinhodosMurphy, não levoumuito tempopara, empoucas palavras, contar a história do Jamie desaparecido e da esperançade que aquele Jamie pudesse ser o que procurava. Não fez segredo desuasdúvidase,emseguida,anunciouqueresolvera levá-loparasuacasaparacuidardele.Depois,semmaiorentusiasmo,expôsosplanosquetinhaem relação ao rapazinho. Aos pés da cama, a viúvaMurphy chorava emsilêncio. Do outro lado do quarto, Jerry soltava, vez por outra, umaexclamaçãodeespanto.

Quanto a Jamie, a princípio ouvira com ar de quem se vê de repentediantedeumaportaqueseabreparaosonhadoParaíso.MasnamedidaemqueRuth falava, uma expressãonova surgiu em seus olhos.Devagar,eleosfechouevirouorosto.

QuandoasenhoraCarewparoudefalar,fez-seumprolongadosilêncio,atéqueJamiesevoltouedisse,quasechorando:

—Muitoobrigado,senhoraCarew,masnãopossoir.—Nãopodeir?!—Ruthpareciaduvidardoqueouvia.—Jamie!—exclamouPoliana,desolada.—Que é isso,menino?— acudiu Jerry.— Você vai ver como é bom,

quandopuderver!—Jamie,pensebem.Pensenoqueissosigni icaparavocê—implorou

aviúvaMurphy,nospésdacama.— Já pensei— respondeu Jamie.— Acham que não sei o que estou

fazendo, do que estou desistindo?— E, depois de uma pausa, dirigiu osolhos úmidos para Ruth Carew:—Não posso deixar que a senhora façaissopormim.Seasenhoraquisesserealmente,estariabem.Masasenhoranãome quer. Quer o verdadeiro Jamie e não eu. A senhora acha que eunãosouoJamiequeprocura.Possoverissoemseurosto.

—Eusei—admitiuRuthCarew.—Mas...mas...—Enãoécomose...comoseeufosseigualaosoutrosepudesseandar

— interrompeu o inválido.— A senhora ia se cansar de mim em poucotempo e eu teria de entender. Não posso suportar a ideia de ser... umestorvoparaasenhora.Naturalmente,seasenhoraquisessemesmo,comoMumsey...—cortouafrase,estendeuobraçoe,contendoumsoluço,virouorostodenovo.—EunãosouoJamiequeasenhoraquer.Nãopossoir.

Dizendoistoorapazinhocerrouopunhocomtantaforçaqueosanguelhefugiudamão,fazendocomquesuaalvurasedestacassesobreoescuroeesfarrapadoxalequelheserviadecobertor.

O silêncio era tenso. Então, Ruth Carew se levantou, com as facesdescoloridas. Mas havia em seu rosto algo que sufocou o soluço quechegavaaoslábiosdePoliana.

—Vamosembora,Poliana!—foitudoquantodisse.— Vá ser burro assim no inferno!— resmungou JerryMurphy para

Jamie,logoqueaportasefechouàsaídadasvisitantes.Jamiesófaziachorar,comoseaquelaportafosseaqueseabriaparao

Paraísoequeagorasefechavaparasempre.

Capítulo12:Portrásdobalcão

Ruth Carew estava indignada. Era-lhe insuportável a ideia de que

chegaraaopontodeterquerido icarcomoinválidoedequeestesehaviarecusadoaaceitaraoferta.Nãoseincluía,emseushábitos,verrecusadosseus convites ou contrariados seus desejos. E tinha consciência do pavorque,nofundo,adominava:a inal,aquelerapazinhopodiaseroverdadeiroJamie.Ela conheciaomotivo realde terqueridoacolhê-lo:nãoporque seinteressasse por ele, nem porque desejasse ajudá-lo e fazê-lo feliz, masporque esperava que, cuidando dele, tranquilizaria sua consciência edeixariadesefazeraeternapergunta:“EseelefosseJamie?”

Ofatodeomeninoteradivinhadoseuestadodeespíritoeapresentado,comorazãodarecusa,afaltadeumverdadeirointeressedesuaparte,nãofacilitaria as coisas. E agora ela dizia, a si mesma, que de fato não seinteressava, que o inválido não era o ilho de sua irmã e que devia seesquecerdocaso.

Sóquenãoseesqueceu.Pormaisque,noíntimo,proclamassequenãotinhaqualquer responsabilidade, que omeninonão era seuparente, nãoconseguia livrar-se da dúvida que a atormentava. E se procurava afastarospensamentosmaus, eles voltavammais fortes. E ela parecia ter diantedos olhos a imagem de um rapazinho de olhar ansioso estendido numcatre,nummiserávelquartinho.

E ainda havia Poliana que, evidentemente, andava transtornada. E,atitude de todo estranha aos seus hábitos, passava os dias andando pelacasa,semseinteressarporcoisaalguma.

—Nãoestoudoente—respondia,quando lheperguntavamseestavasentindoalgumacoisa.

—Então,quehácomvocê?—Nada.SóestavapensandoemJamie,quenãodispõedetodasessas

coisasbonitas,tapetes,quadrosecortinas.Omesmoocorriacomacomida.Polianajánãotinhaapetitee,também

aí,diziaquenãoestavadoente.—Sóestousemfome.Logoquecomeçoacomer,pensoemJamie,que

ficafamintoquasetododia.Então,ficosemvontade.Ruth Carew se sentia presa de um sentimento que só confusamente

percebia, querendo, de qualquer modo, modi icar a atitude de Poliana.Assim, encomendou duas enormes árvores, dúzias de festões e muitos

enfeitesdeNatal.Pelaprimeiravezemmuitosanos,acasaresplandeceu.Verdadeira festa de Natal, até porque a viúva pediu a Poliana queconvidasse os colegas da escola para uma comemoração no dia 24 dedezembro.Aindaassim,asenhoraCarewsedecepcionou:emboraPolianasemostrasse grata e, às vezes, interessada ou entusiasmada, continuavatriste. No im, a festa de Natal acarretou mais pesar do que alegria: aoavistaraárvoredeNatal,Polianasepôsasoluçar.

—Queéisso,Poliana?—indagouRuthCarew.—Nãoénada—disseamenina,procurandocontrolar-se.—Équea

árvoredeNatalétãolindaquetivedechorar.FiqueipensandocomoJamieteriagostadodevê-la.

Dessavez,asenhoraCarewperdeuapaciência:— Jamie, Jamie, Jamie! Não pode parar de falar daquele menino,

Poliana?Vocêsabemuitobemquenãoéporminhaculpaqueelenãoestáaqui. Eu o convidei, e ele não quis. Onde anda o seu famoso jogo docontente?Seriamuitobomquevocêojogasseagora.

—Estoujogando—desculpou-sePoliana.—Eéissoquenãoentendo.Nuncame senti tão esquisita. Sempre iquei satisfeita com as coisas quetinha.Agora, a respeitode Jamie, icoalegrede ter tapetesequadroseomelhorparacomer,edepoderandarecorrer,deiraocolégio,tudoisso!...Mas, quanto maior é a alegria que sinto, mais triste ico por causa dele.Nunca vi o jogo sair tão estranho, e não sei por quê. Será que a senhorasabe?

Ruthnãorespondeu:comumgestodeimpaciência,deuascostasesaiusemdizerumasópalavra.

Nodia seguintedoNatal, aconteceu algo tãomaravilhosoquePoliana,poralgumtempo,quaseseesqueceudeJamie.AsenhoraCarewsaíracomela para fazer compras e, enquanto Ruth tentava decidir-se entre umaecharpeeumagargantilhaderendas,Polianateveaimpressãodequevia,por trás do balcão, um rosto familiar. Ficou olhando por um instante,procurando lembrar-se. Depois, com um gritinho de alegria, correunaqueladireção.

—Ah, é você!—exclamou,dirigindo-se aumamoçaque arrumava amercadorianummostruário.—Estoucontentedevê-la!

Espantada, a moça ergueu a cabeça e olhou para Poliana. Quaseimediatamente,seurostomorenoassumiuumarsorridente:

—Ora!ÉameninadoPasseioPúblico!—exclamou.—Eumesma.Ficoalegredevocêterselembrado.Porquenuncamais

voltou?Euaprocureimuitasvezes.

—Nãopude, tenhomeu trabalho—explicou amoça.—Naquele diativemosmeioexpedientee...Cinquentacentavos,senhora—interrompeu,atendendo a uma senhora simpática que apontava para algumas itas nomostruário.

— Cinquenta centavos? Hum... — disse a senhora, examinando amercadoria.—Émuitobonito,minhafilha.—Efoi-seembora.

Logo em seguida surgiram duas moças falando alto e rindo.Examinaram uma blusa de veludo e outra de seda e seguiram adiante,semprerindoefalandoalto.Polianaacompanhou-ascomosolhos:

— É assim o dia todo? Você deve gostar muito desse emprego. Estásatisfeita,nãoémesmo?

—Satisfeita?!—Deve sermuito divertido... Tanta gente, pessoas diferentes. E você

podeconversarcomtodos,éo seu trabalho.Vocêdeveadorar.Achoque,quando crescer, vou ser balconista. Deve ser divertido ver o que essagentetodacompra.

— Divertido! Satisfeita! — exclamou a moça. — Menina, se vocêsoubesse a metade... É um dólar, senhora... — Interrompeu o que diziaparaatenderauma jovemsenhoraque, comrudeza,perguntavaopreçodeumvistosolaçodeveludoornadodecontas.

—Estábem.Jáeratempodemedizer!—disseairritadafreguesa.—Tivedeperguntarduasvezes.

—Desculpe,nãoouvi.—Avendedoramordeuoslábios.—Erasuaobrigaçãoouvir.Paraissoéquevocêestáaqui.Nãoépaga

paraisso?Quantocustaolaçopreto?—Cinquentacentavos.—Eesteazul?—Umdólar.—Nãosejaatrevida,moça!—ameaçouafreguesa.—Temdetrataras

pessoascomconsideração,ouquerqueeuprocureagerência?Queroveraqueleslá,oscor-de-rosa.

A balconista ia falar, mas, em silêncio, mostrou a mercadoria pedida.Seusolhos faiscavameasmãos tremiam.A freguesaapanhoucinco laços,perguntouopreçodequatrodelesedeuascostas.

—Nãogosteidenada—limitou-seadizer.—Eentão?—perguntouavendedoraaPoliana.—Queachaagorado

meutrabalho?Muitodivertido,nãoémesmo?— Nossa!— foi só o que Poliana pôde dizer, meio sem jeito.— Que

dona impertinente! Mesmo assim, você pode icar alegre... porque as

outrasfreguesasnãosãoiguaisaesta.— É o que você pensa.— A vendedora sorria com tristeza.— Fique

sabendo que o tal jogo do contente, de queme falou no Passeio Público,pode ser muito bom para você, mas... Cinquenta centavos, senhora.— Emaisumavezinterrompeuoquediziaparaatenderanovafreguesa.

— Você é sempre triste, assim? — indagou Poliana, interessada,quandoafreguesaseretirou.

— Bem... Não posso dizer que dei seis ou sete festas depois que aconheci...—respondeuamoça,comsarcasmo.

—MasoNatalfoibom,ounão?— Ótimo. Fiquei deitada, com os pés doendo, li quatro jornais e uma

revista.Ànoite, fuiaumrestaurantee tivedepagar35centavos,emvezde25,porumatortadegalinha.

—Porqueseuspésestavamdoendo?—Ora, iqueidepéodia todo! Já imaginouomovimentodesta lojana

vésperadeNatal?—Que pena...— compadeceu-se Poliana.—Você não teve árvore de

Natal,nãofoianenhumafesta,nada?—Etinhadeir?—Teria gostadomuito se tivesse ido àminha festa. Foi linda e...Mas

aindaháumjeito.Vocêpodeverosenfeites,nãoforamretiradosatéhoje.Seráquepodeirlá,hojeànoite,ouamanhã?

—Poliana!—interrompeuasenhoraCarew,contrariada.—Quequerdizer isso?Ondeéquesemeteuesse tempo todo? Jáaprocureipor todaparte.Fuiduasvezesàseçãodeartigosdetoalete,enada.

Polianasevoltou,rindo:— Foi bom a senhora ter chegado! Esta aqui é... Bem, ainda não sei

como se chama, mas sei quem é. Estive com ela no Passeio Público háalgum tempo. Vive muito sozinha, não tem amigos. O pai dela também épastor, como o meu, só que o pai dela está vivo. A pobrezinha não teveárvoredeNatal, só os pésdoendo e uma torta de galinha.Queroque elavejaaminhaárvoredeNatal.Convidei-aparairhojeànoiteouamanhã.Easenhoravaimedeixariluminaraárvoreoutravez,nãovai?

—Bem...querdizer...—começouRuth.—Nãosepreocupe,minhasenhora.Nãotenhoamenorintençãodeir.—Porfavor!—implorouPoliana.—Queromuitoquevocêváe...—Achoqueestasenhoranãoestánemumpoucointeressadanisso—

observouabalconista,maliciosamente.Ruthcorouequisseafastar,masPolianaareteve:

—Claroqueelaestáinteressada.Seiqueelaquerquevocêvá.Éumasenhoramuitoboa edámuitodinheiro às associaçõesde caridade, ajudamuitagente.

—Poliana!—advertiuasenhoraCarew,asperamentee,maisumavez,quisseafastar,sendodessavezdetidapelavendedora:

—Euseiquemuitaspessoasdãodinheiroparaobrasassistenciais.Hásempremãoscaridosasestendidasàsqueerraram.Nãovejonadademaisnisso. Só ico imaginandoporquenãopensamemajudar asmoças antesde cometeremumerro. Por que não dar àsmoças ajuizadas belas casas,com livros, quadros, tapetes e música, e alguém por perto interessadonelas?Talvez,então,nãohouvessetantas...SantoDeus,queestoudizendo?

Amoçasecalou,voltando-separaumajovemque,paradaàsuafrente,examinavaumlençoazul.

— Custa cinquenta centavos, senhora... — Ruth Carew ouviu-a dizer,enquantoPolianasaíaapressadamente.

Capítulo13:Umaesperaeumtriunfo

Foiumplanoetanto.Polianaomontouemcincominutoseorevelouà

senhoraCarew,quenãoachou,comodeixouclaro,nadadeextraordinárionele.

—Tenhocertezadequevaidarcerto—disseamocinha,emrespostaàs objeções de Ruth. — Pense só como poderemos fazer tudo comfacilidade!Aárvoreestácomoestava,sóretiramosospresentes,eagentepode arranjar outros.Não vai demorarmuito até a véspera do ano-novo.Ela icaráalegredevir.Asenhoratambémnão icaria,sesótivessetidonoNatalospésdoendoeumatortadegalinha?

— Você é impossível, menina! Já se esqueceu de que nem aomenossabemosonomedaquelamoça?

—É,nãosabemos.Issoéengraçado,poiseuaconheçoemuitobem—replicou Poliana, sorrindo. — Sabe? No Passeio Público conversamosbastante, um papo agradável, e ela me contou como vivia sozinha, e medissequeachavanãohavermaiorsolidãodoqueentreamultidãodeumacidade grande, porque ninguém dá atenção a ninguém, ninguém sepreocupa com as outras pessoas. Sim, havia um homem que prestavaatenção.Maseraatençãodemaiseelaachavaqueotaltiponãodevia lhedispensartantaatenção.Éengraçado,nãoé?OfatoéqueeleapareceunoPasseioequeriaqueelaoacompanhasseacertolugar.Sóqueelanãoquisir. Era ummoço bonitão. Então, ele começou a icar com raiva. É feio aspessoas icaremfuriosas,nãoé?Hojehaviaumafreguesalánalojaquefezummonte de grosserias àquela moça. Uma coisa feia. A senhora vai medeixar acender a árvore de Natal na véspera do ano-novo, não vai? Econvidar aquelamoça da loja e Jamie, não é? Jamie estámelhor e há degostar.Jerryterádetrazê-lonacadeiraderodas.TemosdeconvidarJerrytambém,éclaro.

— Sim, é claro, Jerry também! — ironizou Ruth. — Mas, e por queapenasJerry?Eledevetermuitosamigosquegostariamdevir.E...

—Oh,senhoraCarew!Euposso?—atalhouPoliana,entusiasmada.—Asenhoraémuitoboa!Euqueriatanto!...

Tomadadesurpresaedesorientada,Ruthcomeçouadizer:—Não,Poliana...Eu...Mas Poliana, não tendo entendido bem o sentido de suas palavras

anteriores,semostravacadavezmaisentusiasmada:

—Asenhoraémuitoboa,mesmo,enãoadiantadizerquenãoé.Achoque vou ter uma festamaravilhosa! Podem vir TommyDolan e sua irmãJennie, os dois ilhos dosMacdonald e trêsmeninas que não sei como sechamamequemoramabaixodosMurphy,emuitomaisgente, sehouverlugarpara todos. Imaginesócomovão icaralegres!Achoquenunca tivenadatãobomemtodaaminhavida,edevoissoàsenhora!Possocomeçarafazerosconvites,paraquefiquemsabendooquevãoter?

ERuth,queantes jamaispoderia crerque isso fossepossível, ouviuaprópriabocamurmurarum “pode”desenxabido—oque signi icavaquedaria uma festa na véspera de ano-novo para uma dúzia de crianças do“BecodosMurphy”eumabalconistaquenemsabiacomosechamava.

Talvez em sua memória ainda perdurasse a imagem daquela moçadizendo:“Nãopensamemajudarasmoçasantesdecometeremumerro.”TalvezemseusouvidosaindasoassemaspalavrasdePoliana,contandoocasodamesmamoça,queachavaasolidãodealguémemmeioàmultidãode uma cidade grande a pior de todas, e que recusara o convite de ummoço bonito “que a notara demais”. Talvez no coração de Ruth Carew seizesse sentir a vontade de encontrar en im a paz que há tanto buscava.Talvez tudo isso, combinado com a ansiedade no rosto de Poliana, tenhaprovocadoamudançadosarcasmode sua recusanaboavontadede seuassentimento. Fosse o que fosse, a mudança ocorreu. E Ruth se viuenvolvida num torvelinho de planos e projetos, cujo centro era semprePoliana. Para se distrair escreveu à irmã, contando tudo e assimconcluindo:

Oquevoufazernãosei.Masachoquevoucontinuara fazeroqueestou

fazendo. Não há outromeio. Naturalmente, se Poliana começar a pregarsermões... Até agora, não fez isso. Assim, não posso, de consciência leve,devolvê-laavocê.

Della deu uma risada ao ler a carta no Hospital. Pensou: “Ainda não

pregousermões!Deusseja louvado!Enoentanto,você,RuthCarew, jásedispôs a dar duas festas numa semana. E, pelo que se pode deduzir, suacasa,queviviaenvoltaemsombra,estárepletadeluzesedeenfeites.Eelanãopregousermões,ainda!”

A festa foi um sucesso, a própriaRuth teve de admitir. Jamie, em suacadeiraderodas, Jerrycomseuvocabuláriopitorescoeabalconista (quese chamava Sadie Dean) rivalizaram-se em divertir os convidados maistímidos. Para surpresa dos demais — e talvez dela própria — Sadie

mostrou perfeito conhecimento de brincadeiras de salão. Essasbrincadeiras, juntamente com as histórias de Jamie e o bom humor deJerry, izeram com que todos se distraíssem até a hora da ceia e dagenerosa distribuição de presentes, ao pé da árvore de Natal. Todosdeixaramacasacontentesejásaudosos.

Se Jamie (o último a sair, com Jerry) estava um tanto pensativo,ninguémnotou.Contudo,aodespedir-sedele,Ruthlhedisseemvozbaixa,meioimpacienteemeioembaraçada:

—Eentão,Jamie?Jámudoudeideia?Nãoquermesmovirparacá?O inválidohesitou, comum leve rubor lhe tingindoas faces.Olhouem

tornoe,depois,respondeupausadamente:—Sefossesempreigualaestanoite,atéqueeupoderia.Masnãoseria

igual. Amanhã, na próxima semana, no próximo mês, no próximo ano,talvezemumasemanaeusaberiaquenãodeveriatervindo.

SeRuthCarewpensouqueafestadavésperadeano-novofoioúltimoesforçodePolianaparaajudarSadieDean,estavaenganada.Namanhãdodiaseguinte,Polianacomeçou:

— Fiquei tão alegre por tê-la encontrado de novo! Mesmo se eu nãoconseguirencontraroJamieverdadeiroparaasenhora,encontreialguémdequemasenhorapodegostar.Asenhoravai icarsatisfeitadegostardeSadie.Afinal,éumamaneiradegostardeJamie.

Ruth custou a se conter. Aquela con iança inabalável na bondade doseu coração e a convicção de sua vontade de “ajudar todomundo” eramdesconcertantes,atémesmoirritantes,àsvezes.Maseradi ícildesiludiramocinha,especialmenteaoverafelicidadeestampadaemseurosto.Disse,com esforço e como se tentasse libertar-se de invisível corrente que aprendesse:

—Mas,Poliana...Eu...você...Aquelamoça,comovocêsabe,nãoéJamie...— Eu sei que ela não é Jamie— apressou-se em admitir Poliana.—

MaséoJamiedealguém,querdizer...elanãotemninguémaqui,ninguémque possa cuidar dela, não é verdade? Assim, sempre que a senhora selembrar de Jamie, icaria feliz em ter alguém que pudesse ajudar, damesmaformaquedesejaquehajaalguémqueajudeJamie,ondequerqueeleesteja.

Ruthsentiuumcalafrioenãoconteveumgemido:—Oh!...EuqueroomeuJamie.—Eusei—dissePoliana,comconvicção.—A“presençadacriança”.O

senhor Pendleton me falou a respeito. Mas a senhora tem a “mão damulher”.

—Amãodamulher?!Quequerdizercomisso?— Para fazer um lar. Ele dizia que era preciso a presença de uma

criançaouamãodeumamulherparafazer-seumlar.Issofoiquandoelequisqueeuficasseemsuacasa.

—EmvezdissoencontreiJimmy!— Em vez disso, encontrei Jimmy? — perguntou Ruth, com vaga

expressão de esperança nos olhos, a mesma que lhe vinha sempre queouviaqualquervariantedaquelenome.

—Sim.JimmyBean.—Ah,Bean!—Eaviúvaacalmou-se.—Jimmyestavanumorfanatoefugiu.Aoconhecê-lo,elemedisseque

queriaoutraespéciede lar,comumamãe,no lugardeumadiretora.Nãopude lhe arranjar uma mãe, mas arranjei o senhor Pendleton, que oadotou.AgoraelesechamaJimmyPendleton.

—MasosobrenomeeraBean.—AnteseraBean.—Oh!—exclamouRuth,comumprofundosuspiro.AviúvaestevecomSadieDeanváriasvezesnosdiasqueseseguiramà

festadeano-novo.Tambémviu Jamie.Dessaoudaquelamaneira,Polianaconseguia fazer com que eles sempre aparecessem em sua casa. E pormais surpresa e contrariada que icasse, Ruth não conseguia evitar queisso acontecesse. Poliana considerou evidências indiscutíveis o seuconsentimentoemesmosuasatisfação,eelaseviuincapazdecontestá-la.

Naverdade,quisesseelamesmaentenderounão,RuthCarewestavaaprendendo muitas coisas — coisas que jamais teria aprendido nopassado, trancada em casa e dizendo aMary que não deixasse ninguémentrar.Aprendiacomodeveseravidadeumajovemsozinhanumacidadegrande, tendo de ganhar a vida e semninguémque se preocupasse comela—anãoseraquelesquesepreocupamemdemasia.

—Quequis vocêdizer aqueledia, na loja, quando falouemajudar asmoças?—perguntoucertanoiteaSadieDean.

Ajovemficouvisivelmentecontrafeitaedesculpou-se:—Achoquefuimuitogrosseira.—Nãoseincomodecomisso—atalhouRuth.—Quequisdizer?Tenho

pensadomuitonisso,desdeaqueledia.Depoisdeguardarsilêncioporalgumtempo,amo-çafalou:— Estava pensando numa jovem que conheci. Veio da minha cidade,

eramuitobonitinhaemuitoboazinha,masnãotinhamuitojuízo.Moramosjuntas durante umano, nomesmoquarto, cozinhando os ovos nomesmo

bicodegásejantandoosmesmosbolosdepeixenumrestaurantebarato.À noite, só podíamos passear pela avenida ou ir a um cinema, quandotínhamos dinheiro para isso. O resto do tempo icávamos no quarto, queera quente no verão e bem frio no inverno. O gás, de tão fraco ebruxuleante,quasenãonospermitialeroucosturarquandooacendíamospara iluminar o cômodo. Por cima de nossas cabeças havia uma tábuarangedeira emquealguémsemprepisavae, embaixo,moravaumsujeitoque aprendia a tocar cornetim.A senhora já ouviu alguémaprendendo atocarcornetim?

—Achoquenão—murmurouRuthCarew.—Então,nãopodeimaginar—disseSadie,retomandosuahistória:—

Àsvezes,especialmentenoNatalenosferiados,costumávamosandarpelaavenida e outras ruas, olhando as vitrines. A senhora compreende,vivíamossozinhase,naquelesdias, tínhamosvontadedefrequentarcasasondepudéssemos conversar comoutraspessoas, ver criançasbrincando.Massabíamosquepensarnissoerapior,umavezquenãopodíamosteroque queríamos. Mais triste ainda era ver os automóveis cheios de gentealegre. A senhora compreende: éramos jovens e queríamos também nosdivertir...Poisbem...poucoapouco,minhacompanheiracomeçoutambémasedivertir.

Depoisdeoutrapausa,amoçaprosseguiu:—Paraencurtarahistória,umdiaresolvemosquecadaumairiapara

seu lado. Não podíamos continuar juntas. Eu não gostava de suascompanhiaselhedisseissofrancamente.Elanãogostouenosseparamos.Passeidoisanossemvê-la,atéquerecebiumbilheteefuiprocurá-la.Fazummês. Estava numa dessas casas de recuperação, um lugar agradável,comtapetes,quadros,folhagens,floreselivros,umpiano,umbomquartoetudoomais.Senhorasricasvinhamdecarroeaslevavamparapassear,oupara assistir a concertos. Minha companheira estava aprendendotaquigra ia e lhe haviam prometido um emprego, logo que estivesse emcondições de trabalhar. Todos erambons e queriam ajudá-la de todas asmaneiras. Elame contou isso tudo,mas disse outra coisa: “Sadie, se elastivessemtidoametadedotrabalhoquetiverametivessemmeajudadohámaistempo,quandoeueraumamoçahonesta,dignadorespeitopróprioedosoutros,nãoestariamprecisandomeajudaragora.”

Eajovembalconistacontinuou:— Nunca me esqueci disso. Não tenho nada contra o trabalho de

recuperação. É uma boa coisa e deve ser feita. Só acho que seria muitomelhor se essas senhoras manifestassem seu interesse um pouco mais

cedo.— Eu acho que há lares para as moças que trabalham,

estabelecimentos apropriados... essas coisas— disse Ruth, com uma vozquepoucasdesuasamigasteriamreconhecido.

—Há,sim.Asenhoraconhecealgumadelas?—Não.Sótenhocontribuídoparamantê-las—disseasenhoraCarew

emtomquasedesúplica,enquantoSadiesorria,cética.—Eusei.Muitassenhorasgenerosasdãodinheiroparacasasassime

nunca viramo interior de qualquer umadelas. Por favor, não pense quesoucontraessas instituições.Sãoquaseaúnicaajudaqueexiste.Masnãopassam de uma gota d’água no oceano do que se precisa. Conheci umadelas,certavez.Havia,ali,algumacoisa... sentialgumacoisa...Queadiantadizer? Talvez não sejam assim, talvez a culpa fosse minha. Se eu lhedissesse,asenhoranãoiaentender...nuncaviuumadelaspordentro.Masnãopossodeixardepensarporqueessassenhorasdebomcoraçãonãoseempenhamemevitaroquetratam,depois,derecuperar.Desculpe-me,eunãoqueriafalartanto.Masfoiasenhoraquemeperguntou:

—Perguntei,sim—disseRuth,afastando-se.Não foi apenas com Sadie Dean que Ruth aprendia o que jamais

aprendera antes. Aprendia também com Jamie, que desempenhavaimportantepapel.Polianagostavaqueeleavisitasse,eele tinhaomesmoprazer. A princípio, é certo, hesitou: mas não tardou a eliminar suasdúvidaseaprolongarasvisitas.

Frequentemente, Ruth Carew encontrava o rapazinho e Polianaacomodados empoltronaspertodabiblioteca, coma cadeirade rodas aolado.Àsvezes,liamumlivro(RuthouviraumdiaJamiedizeraPolianaquenão se incomodariamuito de ser inválido se tivesse tantos livros como asenhoraCarew).Emoutrasoca-siões,elecontavahistóriasePolianaouvia,atenta,masdeolhosfechados.

Ruthdescon iavadointeressedePoliana,atéqueumdiaelamesmasedeteveparaouvir.Depois,nãoduvidoumaisesetransformoutambémemouvinte. Pormais imprópria que fosse a linguagemde Jamie, era semprevivaepitoresca,tantoqueRuthCarewseviu,demãosdadascomPoliana,trilhando os caminhos da Idade do Ouro, guiadas pelo entusiasmadonarrador.

Ruth começava a compreender, também, o que signi icava ser, noespírito e na ambição, o centro de atos de bravura e aventurasextraordinárias. De fato, um menino inválido, preso a uma cadeira derodas.Oque,entretanto,elanãocompreendiaeraopapelqueorapazinho

jádesempenhavaemsuaprópriavida.Nãoentendiacomosuapresençasetornava importante, nem como se interessava em descobrir algumanovidade “para Jamiever”.Tampouco compreendia como, aospoucos, elesepareciamaiscomoJamieperdido,ofilhodesuairmã.

Fevereiro,marçoeabrilpassaramemaiochegou,trazendoparapertoadataemquePolianateriadevoltarparacasa.Desúbito,RuthCarewsedeucontadoqueaquilosignificavaparaela.

Ficou aterrorizada. Até então, acreditava que se regozijaria com apartida de Poliana, que a casa seria outra vez tranquila, que ela mesmaicariaempaz,podendodenovoesconder-sedomundoparase livrardocontato com importunos.Que iria, en im,poder icarpensandoapenasnoadorado sobrinho desaparecido. Tudo isso ia acontecer, quando Polianafosseembora.

AgoraquePoliana ia realmentepartir,oquadrosemodi icava.Acasatranquila ameaçava tornar-se sombria e insuportável. A tãodesejadapazseriaumasolidãoe,quantoaselivrardeimportunosepensarsomentenosobrinho desaparecido, era duvidoso que algo pudesse apagar alembrançadonovo Jamie(quetalvez fosseoantigo Jamie),comseuolharsúpliceetristonho.

Ruthpercebiaagoraque,semPoliana,suacasa icariavaziaeque,semJamie,seriaaindapior.Acertezanãoagradavaaoseuorgulho.Antes,erauma tortura para seu coração, já que o menino, por duas vezes, disseraquenãoqueria irpara lá.Poralgumtempo,nocursodosúltimosdiasdapermanência dePoliana, a luta travada foi encarniçada, sempre, contudo,comavitóriadoorgulho.Depois,quandosoubequeaquelaseriaaúltimavisita de Jamie, o coração triunfou e,mais uma vez, ela pediu ao inválidoque viesse para sua casa, para ser, em sua vida, o Jamie que ela haviaperdido.

Nunca se lembrou, depois, do que ela própria dissera. Mas jamaisesqueceuaspalavrasdogaroto,derestobempoucaspalavras.

Porumtempoque lhepareceumuito longo,eleaencarou,e logoseusolhoscomoqueseiluminaram:

—Sim!—exclamou.—Agora,asenhoraquermesmoqueeuvenha!

Capítulo14:Jimmyeomonstrodeolhosverdes

Dessa vez, Beldingsville não recebeu Poliana com banda de música,

talvezporqueahoradesuachegadasófossedoconhecimentodepoucoshabitantesdapequenacidade.Masnãofaltoualegriaporpartedosqueláestavam,desdequeeladesceudotrememcompanhiadesuatiaPaulinaedo doutor Chilton. Poliana não perdeu tempo e tratou de procurar osvelhosamigos.Nancyobservou:

—Eradi ícilagenteiratrásdela:quandosechegavaaumlugar,elajátinhasaído.

Por onde Poliana andava, ouvia a pergunta: “E então, o que achou deBoston?”TalvezelanãotenharespondidomaisplenamenteàperguntadoquequandorespondeuaosenhorPendleton:

—Gostei,sim.Dealgumacoisa.—Nãodetudo?—indagouPendleton.—Bem,houvecoisas...Gosteimuitode ter ido lá!—Poliana tratoude

se corrigir. — O tempo em que estive lá foi delicioso, mesmo com tantacoisaesquisita,osenhorsabe...assimcomojantarforadehora.Mastodosforam bons para mim e vi coisas maravilhosas: o Bunker Hill, o PasseioPúblico e os automóveis para “conhecer Boston”, e quadros, estátuas,vitrineseruas,alémdegente.Muitagente,mesmo.Nuncavitantagente.

—Penseiquevocêgostassedegente—dissePendleton.— E gosto — respondeu Poliana, séria. — Mas de que adianta ver

tantaspessoasseagentenãoconheceninguém?AsenhoraCarewnãomedeixava conversar com elas, e elamesma conhecia poucos. Dizia semprequeaspessoasdalinãoseconhecem.

Houveumapausa,edepoisPolianacontinuou,suspirando:—Foidissoquemenosgostei.Aquelaspessoasquenão se conhecem

uma às outras, quando seria melhor se se conhecessem! Imagine só,senhorPendleton:umaporçãodegentemorandoemruasestreitasesujasequesócomefeijãoebolodepeixe.Háoutras,comoasenhoraCarew,quemoramemlindascasasetêmmuitoparacomereparavestir...nemsabemoquefazercomtudoisso.Seessaspessoasconhecessemaquelasoutras...

— Você nunca imaginou, minha ilha — interrompeu o senhorPendleton com uma gargalhada —, que aquelas pessoas não fazemquestãodeconhecerasoutras?

—Algumasfazem!—protestouPoliana.—SadieDean,abalconistada

loja,temvontadedeconheceroutraspessoas.EeuaapresenteiàsenhoraCarew,levei-aàsuacasa.Ela,Jamieemuitosoutros.Comoasenhora icoualegrepor conhecê-los, issome fez pensar quemuitas pessoas, comoela,podiam conhecer gentequepassanecessidade. É claroque eunãopodialevar todos os pobres à casa dela. Eumesmonão conheçomuitos assim...Mas se se conhecessem uns aos outros, os ricos podiam dar aos pobresumapartedodinheiroquetêm...

— Poliana! — exclamou o senhor Pendleton. — Você precisa tomarcuidado.Acabavirandoumaperigosasocialista!

—Virando o quê?— indagou amocinha, sem entender.—Acho quenãoseioqueésocialista.Seioqueésociávelegostodegentesociável.Sesersocialistaécoisaparecida,nãomeimportodeser.Atégosto.

— Não duvido — admitiu Pendleton. — Mas ao pensar nesse planoparadistribuiçãodariqueza,vocêteráumproblemadifícilderesolver.

— Eu sei — concordou Poliana. — Era assim que a senhora Carewfalava. Ela dizia que eu não entendo, que isso iria empobrecê-la etc. Nãocompreendomesmoporqueumaspessoaspodemter tantoeoutrasnadatêm.Nãogostodisso.Sealgumdiaeuficasserica,dariaboapartedeminhafortunaaospobres,aindaqueissomeempobrecessee...

PolianariatantoqueosenhorPendletonsedeixoucontagiar,pondo-searirtambém,econcordando:

—Eusei,minha ilha.Eacho tambémqueninguémentende.Diga-meumacoisa:queméesseJamie,dequemvocêfalatantodepoisquevoltou?

Ao falar de Jamie, Poliana perdeu o ar de preocupação e dúvida.Gostavadefalarsobreele,eraalgodequeentendia.E,depois,nãodeveriaosenhorPendletonestarinteressadoemqueasenhoraCarewacolhesseomenor em sua casa, ele que compreendia a necessidade da presença dacriançanolar?

Na verdade, Poliana falava com todo mundo sobre Jamie e presumiaquetodosestivessemtãointeressadosquantoelaprópria.Quasenuncasedecepcionavacomareaçãodaspessoascomquemconversava.Certodia,porém, teve uma surpresa. E foi JimmyPendleton o responsável por issoquando,mal-humorado,lheperguntou:

—SeráquenãohaviamaisninguémemBoston.Sóele?— Que é isso, Jimmy Bean? Que está querendo dizer? — replicou

Poliana.— Não sou Jimmy Bean! — protestou o rapazinho. — Meu nome é

Jimmy Pendleton. O que estou dizendo é que, pela sua conversa, a gentetem de pensar que em Boston não existe mais ninguém, a não ser um

menino idiota que chama os pássaros e os esquilos deLady Lancelote ebobagensassim.

— Ouça aqui, Jimmy Be... Pendleton! — respondeu Poliana. — Jamienão é idiota, é muito inteligente, sabe? E já leu muitos livros, conhecemuitas histórias e muitas delas ele mesmo inventa, com sua própriacabeça! E não éLady Lancelote, éSir Lancelote. Sevocê soubessemetadedoqueelesabe,deviaficaralegre!

Jimmy Pendleton conseguiu falar com di iculdade, enciumado eesforçando-separaparecerzombeteiro:

— Acho ridículo esse nome, sabia? Jamie parece nome demaricas. Enãosoueusomente,não.Conheçoumapessoaquetambémacha.

— E quem é?— Não houve resposta, e Poliana insistiu, enérgica:—Queméatalpessoa?

—Meupai—respondeuorapazinho,comvozabafada.—Seupai?—estranhouamocinha.—ComoéqueconheceJamie?— Ele não conhece. Não falava a respeito daquele Jamie. Era a meu

respeito!—Ecalou-se,virandoorosto.Apesar de tudo, sua voz adquirira certa brandura, como ocorria

semprequeelesereferiaaopai.—Aseurespeito?— Sim. Foi pouco antes da morte dele. Passamos quase toda uma

semana numa fazenda. Papai ajudou no corte da alfafa e eu também. AmulherdofazendeiroeraboaparamimecomeçouamechamardeJamie.Nemseiporquê.Umdiameupaiouviue icouzangado,tantoquenemmelembroatéhojedoqueeledisse,aocerto.Falouque Jamienãoeranomedehomemenãoadmitiaqueseu ilhofossechamadoassim.Eraumnomedemaricas, que ele detestava. Acho que nunca o vi com tanta raiva. Nãoquis nem icar para acabar o serviço e naquelamesma noite deixamos afazenda.Fiqueitriste,poisgostavamuitodamulherdofazendeiro.

Polianasesentiu interessadaesolidária.AtéporqueraramenteJimmycontavaalgumacoisadoseupassado.Quissaber:

— Que aconteceu depois? — Poliana se esqueceu, no momento, doassuntoquederaorigemàcontrovérsia:Jamieparecerianomedemaricas.

Orapazinhosuspirou:—Andamosatéchegarmosaoutrafazenda—explicou.—Efoiláque

meupaimorreu.Entãomemandaramparaoorfanato.— E então você fugiu, e eu o encontrei naquele dia — completou

Poliana.—Eficamosamigos,nãoé?—Éverdade—concordouJimmy,numtomdevozdiferente.—Sóque

eunãosouJamie,vocêsabe—acrescentou,comosevoltasseaopresenteeàvelhamágoa.

Deu as costas acintosamente e se afastou, deixando Polianaconsternada.

—Bem, icosatisfeitaporqueseiqueelenãoésempreassim—disseameninaparasimesma,enquantooamiguinhoseafastava.

Capítulo15:OtemordetiaPaulina

Poliana já estava em casa há uma semana, quando Paulina Chilton

recebeuestacartadeDellaWetherby:Querolhecontaroquesuasobrinha fezporminha irmã,masreceionão

conseguir. A senhora precisava saber como ela era antes. A senhora aconheceuedeveternotadoamelancoliaeodesânimoqueadominavam.Masnãopode fazer ideiadaamarguraemseucoração,da faltade interessepelavida,de sua insistência em viver sofrendo e se queixando. Então, apareceuPoliana.Não lhedisseantes,maso fatoéqueminha irmã searrependeudapromessadeficarcomamenina,quasenomesmoinstanteemquea fez—eestavafirmementedispostaamandá-ladevolta, logoquePolianacomeçasseafazersermõesoudarconselhos.Poisbem,elanão fezsermões,minha irmãmedisse.Enoentanto...Bem,achomelhorcontaroquevi,quando fuivisitá-la ontem. Nada poderia dar uma ideiamelhor do que a sua maravilhosaPolianaconseguiufazer.

Para começar, logoque cheguei, viquequase todasas sombras haviamsumido. Ouvi música no vestíbulo: era um trecho do “Parsifal”. As salasestavamabertaseoarperfumado.

“AsenhoraCareweseuJamieestãonasalademúsica”,disseacriada.Eláestavam, ela e um rapazinho que acolheu em casa, diante de um dessesaparelhos modernos de som, capazes de conter toda uma companhia deópera,incluindoaorquestra.

O rapazinho estava numa cadeira de rodas, pálido, mas feliz da vida.Minha irmãpareciadezanosmaismoça,comas facesrosadase os olhosdeumbrilhobem raro neles. Depois de conversarmos algunsminutos com orapazinhoinválido,eueminha irmã fomosparaoandardecimae láelamefalou de Jamie. Não do antigo Jamie, como costumava falar, semprechorando,masdonovo Jamie, edessa veznãohouve lágrimas ou suspiros,apenasamanifestaçãodeumentusiásticointeresse.

“Eleémaravilhoso,Della”,começou.“Tudooquehádemelhornamúsica,nasbelas-artes ena literaturaparece exercer sobre eleatração irresistível.Naturalmente, ele precisa de orientação e aprendizagem. Estou tratandodisso.Amanhã vemaquiumpreceptor.Mas ele já leu tantos livrosque seuvocabulário é fantástico, e vocêprecisa ouvirashistóriasque inventa! Suaculturageralédeficiente,claro,mastemenormevontadedeaprender.Como

gostademúsica, vou convencê-lo a fazer um curso, o que ele escolher. Jáarranjeialgunsdiscosselecionados.Queriaque vocêpudesse ver sua reaçãoquandoouviupelaprimeiravezaquelamúsicado SantoGraal. Sabe tudoarespeitodoReiArturedaTávolaRedonda,edoséquitodecavaleiros, lordesedamas,tantoquantonóssabemosa respeitodenossa família...Às vezesatémeatrapalho:nãoseiseSirLancelote é o cavaleiro ou o esquilodoPasseioPúblico.Acredito,Della,queelevoltaráaandar.VoumandarodoutorAmesexaminá-lo,e...”

Ela falava, e falava, e eu, estarrecida emuda,me sentia feliz. Conto-lhetudo isso,senhoraChilton,paraqueasenhoravejaquantominha irmã estáinteressadanomenino equantomudou suamaneirade encarar a vida. Oqueelaestáfazendoemfavordaquelemeninoé,naverdade,omesmoquefazem seu próprio benefício. Estou certa de que jamais ela voltará a ser amulhertristeedesanimadadeantes.

EtudoporcausadePoliana!Omelhordetudoéqueamocinhanãotemamenor ideiadoqueocorreucomminha irmã.EnãocreioqueRuth estejacompreendendoperfeitamenteoquesepassa em seupróprio coração e emseumododeviver.OqueseiéquePolianaignoraopapelquerepresentouemtãograndemudança.

Agora,senhoraChilton,comopossoagradecer-lhe?Sabequenãopossoe,assim,nemvoutentar.Acreditoque,emseucoração,sabequantosougrataàsenhoraeaPoliana.

DellaWetherby—Muitobem!—exclamouodoutorChiltonquandoaesposaterminou

aleitura.—Parecequehouveumacuracompleta.— Por favor, Thomas! — Paulina fez um gesto que surpreendeu o

marido.— Que é isso, Paulina? — indagou o médico. — Não está satisfeita

porqueoremédiofezefeito?—Lávemvocêoutravez,Thomas!—dissePaulina.—Éclaroque ico

satisfeita sabendo que aquela mulher compreendeu, en im, que estavaerradaetratoudecorrigir-se.MasnãogostodeverPolianatratadacomosefosseumfrascoderemédio,umacura.Vocênãoentende?

— Tolice! Que mal há nisso? Chamei Poliana de tônico desde que aconheci,ora!

—Você temdeaceitarqueela jáestábemcrescidinha,Thomas.Querestragá-la? Até agora Poliana não tem noção do poder que possui. Nomomento em que ela se meter, conscientemente, a mudar o

comportamento de uma pessoa, vai icar insuportável. Deus me livre deque algumdia entre em sua cabeça a ideia de que ela é uma espécie depanaceiaparatodososmalesdapobre,enfermaesofredorahumanidade.

—Tolice!—repetiuomédico,rindo.—Eunãomepreocupocomisso.—Maseumepreocupo,Thomas.—Lembre-sedoqueelajáfez,Paulina!Lembre-sedasenhoraSnowe

deJohnPendleton,detantosoutrosquehojesãodiferentesdoqueeram.EagoraasenhoraCarew.FoiPolianaquemfezissotudo!

—Euseiquefoiela—admitiuPaulina.—SónãoqueroéquePolianasaibaquefoiela!Bem,éclaroqueelasabe,decertomodo.Sabequelhesensinou o jogo do contente, o que as tornou mais felizes. É umabrincadeira,umjogoquepraticamjuntos.Paravocê,euadmitoquePoliananospregouumdosmaiscandentessermõesquejáouvi,masnomomentoemque ela souberdisso... Bem, nãoqueroque ela saiba, só isso. E agoravou lhe dizer que resolvi ir comvocê àAlemanhano outono.A princípio,penseiemnão ir,nãoqueriadeixarPoliana.Enãovoudeixá-laagora.Elavaicomigo.

—Vailevá-laconosco?Estábem.Porquenão?— Isso mesmo. Quero ver Poliana longe de Beldingsville por uns

tempos. E sobretudo quero que ela continue simples emodesta. Ou vocêpreferequeelasetransformenumacriaturaconvencidaeinsuportável?

—Claroquenão—respondeuomédico.—Naverdade,nãocreioquecoisa ou pessoa alguma consiga torná-la convencida e insuportável. Essaideiadelevá-laàAlemanhaconoscomeagradabastante.Vocêsabequesóvim embora por causa de Poliana. Assim, quanto mais cedo voltarmos,melhor.Seriabomdemorarmosláalgumtempo,paradescansaretambémestudar.

—Estácombinado,então!—EtiaPaulinadeuumsuspirodealegria.

Capítulo16:ÀesperadePoliana

Em Beldingsville a excitação era geral. Nunca, desde que Poliana

Whittier voltara doHospital,andando, houve tantos comentáriosnas ruasou nos fundos de quintais. Ainda dessa vez era Poliana o centro dointeresse. De novo, voltava ela para casa, uma Poliana diferente e umachegadatambémdiferente.Amoçatinhaagoravinteanose,duranteseis,passara os invernos na Alemanha e os verões viajando com o doutorChilton e sua mulher. Somente uma vez, nesse período, estivera emBeldingsville, apenas durante um curto mês de verão, quando tinha 16anos.Agora,voltavaparaficar.ElaesuatiaPaulina.

Omédico não viera com elas. Seismeses antes, entristecida, a cidadetivera notícia de que o médico havia falecido e todos em Beldingsvilleesperaramquea senhoraChiltonePoliana regressassem imediatamente.Mas não voltaram. Soube-se que a viúva e a sobrinha continuariam noexterior por algum tempo: a senhora Chilton buscava distração e alívioparaaperdaquesofrera.

Depois, vagos rumores (não tão vagos) começaram a correr pelacidade:nemtudoiabem, inanceiramente,paraasenhoraPaulinaChilton.Certasaçõesdeempresasferroviáriasdequeocasaldispunha,depoisdeoscilarem bastante, tiveram uma queda violenta. Outros investimentos,segundoosboatos,estavamemcondiçõesprecáriasedosimóveispoucosepoderiaesperar.Omédico jamais foraricoe tiverapesadasdespesasnosúltimosanos.Assim,nãocausousurpresaemBeldingsvilleanotíciadeque,seis meses depois da morte do médico, a senhora Chilton e Polianaestavamderegresso.

A velha casa, por tanto tempo fechada e silenciosa, uma vez maismostrava as janelas abertas e as portas escancaradas. Mais uma vezNancy, agora senhora Timothy Durgin, varreu e escovou e esfregou, atéquetudoficouemordem.

— Infelizmente, nãopodementrar— repetiaNancy aos curiosos quechegavamaoportão.—Minhasograestá coma chaveeveiover se tudoestáarrumado.AsenhoraChiltonescreveudizendoqueelaeasenhoritaPolianachegamnapróximasexta-feira,emandouarejaracasa,deixando,depois,achavedebaixodocapacho.

E Nancy pensava, como se falasse consigomesma: “Imagine, deixar achave sobo capacho!Asduas entraremna casa sozinhas e eu emminha

própriacasa,asomenteumquilômetrodedistância,sentadacomosefosseumaricaçaenãotivessecoração!Coitadas!VoltaremparacásemodoutorChilton,queDeusotenha.Esemdinheiro!Épossívelumacoisadessas?JáimaginaramPaulina,querdizer,asenhoraChiltonpobre?Nãoépossível!”

TalvezNancynunca tivesse falado commais interessedoquequandose dirigiu a um jovem alto e bonito, que parou diante da casa o puro-sangue que cavalgava, às dez horas da manhã de quinta-feira. E jamaisfaloucomtantoembaraço,poischegouagaguejar,aoterminar:

— Seu Jimmy... Senhor Bean... quer dizer, senhor Pendleton... SeuJimmy!

—Nãosepreocupe,Nancy.—Orapaznãoconteveoriso.—Falecomoformaisfácil!FicomuitocontentesabendoqueasenhoraChiltonePolianachegamamanhã.

— Chegam, sim— con irmou Nancy.—Mas que pena! Bem, é claroque estou alegre com o regresso delas, mas, entende, é amaneira comoestãovoltando.

—Euentendo—disseorapaz,sério,olhandoparaacasa.—Éclaro,paraissonãoháremédio.Vocêestáajudandocomopode,Nancy.

Voltando à porta, ela olhou para o cavalheiro que se afastava emurmurou consigo mesma: “Não me admira que seu Jimmy estejaperguntando pela senhorita Poliana. Sempre achei que isso ia acabaracontecendo. Ele é ummoçobembonito. Tenho fé emDeus que tudo vaidar certo. Que diferença daquele Jimmy Bean de antes! Nunca vi umapessoamudartanto!”

Pensamento igualdeve terocorridoa JohnPendleton,naquelamesmamanhã, quando, da varanda de sua casa, via aproximar-se o mesmocavaleiro. Seus olhos tinham uma expressão semelhante à dos olhos deNancy.Edeseuslábiosescapouumcomentário,assimqueojovemapeoujuntoàestrebaria:

—Palavra!Quebelopar!Cincominutos depois, Jimmy contornava a casa e subia a escada que

levavaàvaranda.— E então? — perguntou Pendleton, interessado. — Elas chegaram

mesmo?—Vãochegar.—Quando?—Amanhã—disseomoço,sentando-senumacadeira.A tensão que a resposta continha tornou John Pendleton pensativo.

Olhouparaorostodorapaz,hesitouumpoucoe,depois,perguntou:

—Queéquehá,meufilho?—Nada,ora.— Há, sim. Não adianta esconder. Eu o conheço. Você saiu daqui faz

uma hora, alegre e bem-disposto, e volta assim, desanimado. Até parecequenãoestácontentecomachegadadasnossasamigas.

Pendletonfezumapausa,esperandoqueooutrodissessealgumacoisa.Mas,diantedosilêncio,insistiu:

—Comoé,Jimmy?Nãoestácontentecomachegadadelas?—Claroqueestou.—Orapazsorria,nervosamente.—Estásevendo...Ojovemsorriudenovoechegouaficarcorado:—Bem...ÉqueeuestavapensandoemPoliana.—VocênãotemfeitooutracoisasenãofalarsobrePoliana,desdeque

veio de Boston e icou sabendo que ela vai voltar. Pensei que estivessemorrendodevontadedevê-la.

—Eestoumesmo... querdizer, atéontem, euestava—disseo rapaz.—Hoje,quandoseiqueelavaichegarmesmo,estoucommedo.

—Ora,Jim!EmfacedaincredulidadedePendleton,orapazsorriu:—Seiquepodeparecertoliceenemseiseosenhorvaientender.Mas

acho que, no fundo, eu queria... que Poliana não tivesse crescido. Ela eratão engraçadinha, tão encantadora quando menina! Penso na última vezqueavi,comseurostinhosardento,astrançaslouras,dizendo“Sim,estoualegredeir,masachoquevouficarmaisalegreaindaquandovoltar”.Foiaúltima vez que a vi. O senhor se lembra de que estávamos no Egito, háquatroanos,quandoelaesteveaqui?

— Claro. Entendo o que você está querendo dizer — retrucou JohnPendleton.—Eutambémsentiaamesmacoisa,atémeencontrarcomelaemRoma,noinvernopassado.

—Então,osenhoraviu!Conte-mecomofoi—pediuojovemcomumaexpressãodeinteressenorosto.

—PenseiquevocênãoiaseinteressarporPolianadepoisqueela icoumoça—dissePendleton,irônico.

—Elaestábonita?—quissaberJim.— Sim, senhor! — replicou Pendleton, ingindo-se escandalizado. —

Sempreamesmapergunta:“Elaestábonita?”—Está?—insistiuorapaz.—Émelhorquevocêmesmo julgue.Sevocê...Bem,pensandomelhor,

voudizerjáparaquenãosedecepcione.Poliananãoébonita...noquediz

respeitoafeições,cabelosepele.Agrandecontrariedadenavidadaquelamoçaéacertezaqueelatemdequenãoébonita.Hámuitotempo,elamedissequeteriacabelosnegrosecacheadosquandofosseparaocéu.Enoano passado, em Roma, elame disse outra coisa. Que tinha vontade quealguémescrevesseumromancecujaheroínativessecabeloslisosesardasnonariz...porqueasheroínasdosromanceseramassim.

—Polianaéassimmesmo.—Vocêvaivê-la—dissePendletoncomumsorrisoenigmático.—Eu

acho, no inal de contas, que ela é bonita. Tem os olhos lindos e vendesaúde. Seu rosto se ilumina a tal ponto, quando fala, que a gente seesqueceatédeversesuasfeiçõessãobonitasounão.

—Elaaindafazojogodocontente?— Ainda gosta do jogo.— Pendleton sorria.—Mas não falamuito a

respeito disso. Pelo menos, não falou comigo nas duas ou três vezes emqueestivecomela.

Depoisdeumsilêncio,ojovemdisse:— Era uma das coisas que me preocupavam. Aquele jogo tem

signi icado muita coisa para a gente da nossa cidade. Não posso meconformarque ela tenhadesistidodele, quenãoo joguemais.Aomesmotempo,nãopossoimaginarumaPolianajáadultaeaconselhandoosoutrosadescobrir como icaremalegres... Acho... Bem, no fundo achoque é issomesmo.NãomeconformocomPolianaterficadomoça...

—Eunãomepreocupariacom isso—retrucouovelhoPendleton.—Poliana vai continuar a mesma que foi na infância, apenas de maneiradiferente. Coitada, acho que ela vai precisar do jogo do contente paratornaravidasuportável,pelomenosdurantealgumtempo.

—EstásereferindoaofatodePaulinaChiltontertidoprejuízos?Achaqueelasficarampobres?

— Creio que sim. A situação inanceira das duas é calamitosa. Tomdeixou poucos bens, e os que lhe deviam estão insolventes. Muitosdeixaramdelhepagarosserviçospro issionais.Tomnãosabiadizernão,eoscaloteirosdacidadesabiamdissoeseaproveitaram.Poroutro lado,asdespesasque ele tinhade fazer erammuitopesadasnosúltimos tempos.EleesperavaganharumbomdinheiroquandoconcluísseseusestudosnaAlemanha. E pensava que os rendimentos das aplicações que faria nomercado de capitais assegurariam uma vida tranquila a sua mulher e aPoliana.Assim,nãosepreocupavamuito.

—Hum,hum!Eusei...—murmurouJimmy.—Nãoétudo.DoismesesdepoisqueTomfaleceu,quandoestivecoma

senhora Chilton e Poliana em Roma, a viúva se encontrava num estadoterrível.Apesardopesarpelamortedomarido, começavaa sedar contada situação precária de suas inanças, e icoumuito nervosa. Não queriavoltar,nuncamaisverBeldingsvilleoupessoaalgumadaqui.Sabecomoé:sempre foiorgulhosae se sentiahumilhada.Polianamedisseque sua tiase atormentava coma ideia de que o povodeBeldingsville não aprovaraseucasamentocomodoutorChilton,porcausadaidadedele,e,agoraqueomaridomorrera,achavaqueiriaenfrentaraquiamaiscompletafaltadesolidariedade em sua dor. Também se sentia acabrunhada como fato dequetodossabiamqueelaestavaviúvaearruinada.Emresumo:tornara-sepresa de uma preocupação mórbida, despropositada e terrível. PobrePoliana!SeasenhoraChiltoncontinuouassim,acoitadinhadeveestaremfrangalhos.Porissoéqueeudigoque,sealguémestáprecisandoagoradojogodocontente,essealguéméPoliana!

— Que coisa! Acontecer isso logo com Poliana!— exclamou o jovemPendleton,comavozalterada.

—Vocêpode verque as coisasnão estãobempelomodo comoestãovoltando, as duas, sem que ninguém tivesse sido avisado. Sou capaz dejurarqueé issomesmoqueasenhoraChiltonestáquerendo.Seiqueelanão escreveu para ninguém, a não ser para a senhora Durgin, que estácomaschavesdacasa.

— Nancy me disse. Ela abriu a casa, que mais parece o túmulo dasesperançasealegriasmortas.Oterrenoestábem-cuidadopelovelhoTom.É de cortar o coração... Mas acho que elas não podem chegar sem terninguémpararecebê-las.

—Euvouàestação.—Querdizerquesabeemquetremelaschegam?—Nãosei.NemNancysabe.—Comoéquevaifazer,então?—Voupara lá,pelamanhã,eespero todosos trensquechegarem—

disse o rapaz. — Timothy também vai, com o carro da família. Chegammuitostrenspordia.

—Bem...—disseJohnPendleton.—Admiroseucoração,masnãosuacabeça.Gostodeverquevocêestáagindodeacordocomocoraçãoenãocomacabeça.Desejo-lheboasorte.

—Obrigado—agradeceuJimmy.—Precisomesmodemuitasorte.

Capítulo17:AchegadadePoliana

Quando o trem chegava a Beldingsville, Poliana olhou para a tia.

Duranteodia,asenhoraChiltonsetornavacadavezmaisnervosaemaistriste.Polianatemiaqueascoisaspiorassemquandochegassemàestaçãode sua cidade. Olhando para a tia, Poliana sentia um aperto no coração.Incrível como alguémpodiamudar e envelhecer tanto em seismeses. Osolhos da senhora Chilton tinham perdido o brilho, as faces estavam semcor, a testa enrugada, a boca caída nos cantos dos lábios e o cabelo,penteadopara trás, formavaumcoque frouxo, omesmoquePolianaviraalguns anos antes. O vigor e a disposição que lhe tinham vindo com ocasamento haviamdesaparecido, fazendo comque reaparecesse a antigadureza do tempo em que ainda era a senhorita Paulina Harrington, quenãoamavaninguémenemeraamada.

—Poliana!—AvozdePaulinaChiltoneraincisiva.Amoçaestremeceu,comumasensaçãodeculpa,easensaçãodequea

tialeraseuspensamentos.Perguntou:—Oqueé,titia?—Ondeestáamalinhapreta?—Estáaqui.—Então,tireomeuvéupreto.Estamoschegando.—Masestáfazendomuitocalor!—Poliana,estoulhepedindoovéupreto!Sevocê izessesempreoque

lhe peço, seria bemmais fácil paramim. Estou querendo o véu. Ou achaque estou disposta a deixar que essa gente de Beldingsville veja comoestou?

—Ora,titia,ninguémvainosaborrecer—dissePoliana,tirandoovéudamaleta.—Depois,nãodevehaverninguémnaestaçãoànossaespera.Nemavisamosqueíamoschegar...

— Eu sei. Mas mandamos dizer à velha Durgin para arejar a casa edeixarachaveembaixodocapacho.AchaqueMaryDurginnãobateucomalínguanosdentes?Metadedacidadejádevesaberquechegamoshoje,ehaveránomínimodezpessoasnaestação.Conheçoessagente!VãoquerersabercomoestáapobrePaulinaHarrington.Vão...

—Porfavor,titia!—implorouPoliana.— Se ao menos eu não estivesse tão sozinha! Se Thomas ainda

estivessecomigo...—começouPaulina,logocortandoafraseparaindagar:

—Ondeestáovéu?— Está aqui, titia — respondeu Poliana. — E já estamos quase

chegando.QueriamuitoverovelhoTomouTimothynaestação.— Para que nos levassem até em casa de carruagem, como se ainda

tivéssemos condições de manter cavalos e carruagens? Sabemos queteremosdevendertudoissoamanhã.Não,Poliana.Pre irotomarumcarrodepraça.

— Eu sei... — Poliana foi interrompida pela chegada do trem àplataforma.

Quandoasduasdesceramdotrem,Paulina,ovéuescondendoorosto,nãoolhouparaoslados.MasPolianatevedesevoltaremváriasdireções,sorrindoecumprimentando.Derepente,viu-sediantedeumrostoquelheparecia conhecido e, ao mesmo tempo, parecia que não era. Então,exclamou:

—Nãopodeser!ÉJimmy!—Eestendeuamão.—Bem,achoquedevodizersenhorPendleton.—Edeuumsorrisoencabulado.—Estátãoaltoeelegante!

— Como está, Poliana? — A seguir, o rapaz se voltou paracumprimentar a senhora Chilton. Esta, porém, já andava à sua frente, eJimmy tornoua sedirigir aPoliana:—Poraqui.Timothyestáesperando,comacarruagem.

—Ótimo!—dissePoliana,olhandopreocupadaparaa tia,queseguianafrente,ovéulhetapandoorosto.—Titia—falou,tocandotimidamenteno braço de Paulina—, Timothy está aqui e trouxe a carruagem. Venha,titia.EsteéJimmyBean.Lembra-sedele?

Em seu nervosismo, Poliana nem notou que chamava o amigo pelonomedemenino.AsenhoraChilton,entretanto,percebeu.Comrelutância,virou-separaorapaze,inclinandoacabeça,disse:

— Foi muita gentileza ter vindo nos receber. Lamento ter dado todoessetrabalhoaosenhoreaTimothy.

— Foi um prazer! — respondeu o jovem. — E agora, se a senhoraquisermeentregarosbilhetes,vouretirarsuabagagem.

—Obrigada,achoquepodemos...—começouPaulinaChilton.Mascomumaliviado“Muitoobrigada!”,Polianajáentregaraosbilhetes

aorapaz.AboaeducaçãonãopermitiaqueasenhoraChiltonreclamasse.O trajetoaté a casa foi feito emsilêncio.Um tantoofendido coma fria

recepção que tivera de parte da antiga patroa, Timothy estava de carafechada, teso na boleia. Paulina Chilton, depois de um frio “Está bem,menina,vamosparacasa”,voltaraàhabitualrispidez.Poliana,porém,nada

tinha de tensa ou de ríspida e, com olhos ternos, ainda que lacrimosos,contemplava com emoção cada trecho do caminho que percorriam. Só semanifestouparadizer:

—Jimmyestámuitobem,nãoémesmo?Comomelhorou!Osolhoseosorriso sãomuito bonitos, não acha?— Esperou algum comentário, mas,comonadaouviu,contentou-seemmurmurar,elamesma:—Euachoquesão.

Timothy não lhe dissera o que a esperava em casa. Assim, as portasescancaradas e as lores espalhadas pelos cantos, além da recepção deNancyàentrada,foramparaelaeparaPolianaumasurpresacompleta.

—Quebeleza,Nancy!—exclamouamoça,descendodacarruagem.—Veja,titia,Nancyestáaqui.Enotecomoelaarrumoutudo,olhequebeleza!

AvozdePolianaera jovial,masdeixava transparecera tristezaqueaperturbava.Nãoera fácil livrar-sedeumaemoção, ao voltar àquela casa,parasempreprivadadapresençadomédicoquerido.Eseasaudadetantoamargurava,erafácilentenderoqueestariasentindosuatia.Polianasabiaque o que Paulina mais temia era demonstrar seu desespero diante deNancy.Portrásdovéunegro,seusolhosestavamsemicerradoseoslábiostremiam. A moça sabia ainda que, para ocultar tudo isso, sua tiaaproveitaria a primeira oportunidade para ter uma explosão de raiva e,assim, evitarquedescon iassemdeque tinhao coraçãoempedaços.Nãose surpreendeu, pois, quando ouviu Paulina, depois de cumprimentarNancycomfrieza,acrescentarcomrispidez:

—Foimuitabondadesua,Nancy.Maseupreferiaquevocênãotivessefeitoisso.

—Ora, senhora Paulina... quero dizer, senhora Chilton, achei que nãopodiadeixarasenhora...—começouNancy.

—Estábem,estábem—interrompeuPaulina.—Nãoqueromaisfalarnisso.—E,levantandoacabeça,saiudasala.

Logo a seguir ouviu-se a batida da porta de seu quarto, no andar decima.Nancyeraapersonificaçãododesalento:

—Senhorita Poliana, o que é isso?Que foi que eu iz? Pensei que elafossegostar.Fizapenasoquedevia!

—Efezmuitobem,Nancy—dissePoliana, tirandoumlençodabolsaparaenxugaraslágrimas.—Tudoestálindo!

—Maselanãogostou.—Gostou,sim.Sónãoquerconfessar.Ficoucommedodedemonstrar...

outras coisas e... Ora, Nancy! Estou tão alegre que sinto vontade até dechorar.—E,sempoderconter-se,PolianasoluçounoombrodeNancy.

—Calma,minha ilha—murmurouNancy,afagandoamoçacomumadasmãos,enquantocomaoutraerguiaoaventalparasecarsuasprópriaslágrimas.

—Vocêsabe—dissePoliana.—Eunãopodiachorarnafrentedela.Efoidifícilchegaraqui.Seioqueelasente.

—Eutambém,coitada!—admitiuNancy.—Efui fazer logooqueelanãoqueriaquefossefeito!

—Éclaroquequeria,sim.Sónãoquisquevissemcomoestáabatida...porcausadomarido.Paraesconderisso,aproveitaqualquerpretexto.Fezamesmacoisacomigo,sabia?

—Éumapena...—compadeceu-seNancy.—Masestoucontentedetervindoporsuacausa.

—E eu também.—Poliana afastou-se, enxugando os olhos.—Agoraestoumelhor. Emuito obrigada, Nancy, você foi um anjo. Não precisa sepreocuparmaisconosco.Podeir,quandoquiser.

—Oquê?!Penseiqueiaficarparafazeroserviço.—Ora,Nancy.Vocêestá casadaeprecisa cuidardeTimothy,ou já se

esqueceudisso?—Maselenãoseincomoda,querqueeufiquetrabalhandoaqui.—Nãopodemos icarcomvocê,Nancy—dissePoliana.—Eumesmo

meencarregodetudo,atésabermoscomoestãoascoisas.Temosdefazereconomia,comodiztiaPaulina.

—Nãofaçoquestãodedinheiro...—começouNancyadizer,masparoudiantedaexpressãonorostodePolianae,apressadamente,foiveratortadegalinhanoforno.

Depois do jantar, e quando tudo icou arrumado, a senhora TimothyDurgin concordou em sair, em companhia do marido. E o fez comrelutânciaepedindoqueadeixassemvirdevezemquando,“sóparadarumamãozinha”.

Assim que Nancy se retirou, Poliana entrou na sala de estar ondePaulinaChiltonseachava,sentadaesozinha,cobrindoosolhoscomamão.

—Comoé,titia?Possoacenderaluz?—indagouamoça.—Pode,sim.—Nancyfoimuitoboaarrumandotudodireitinho,não?Nãohouveresposta.—Sónãoseiondefoiqueelaarranjouessas lores—insistiuPoliana.

—Espalhoufloresportodasassalasenosdoisquartos,também.Omesmosilêncio.Polianasuspirouevoltouainsistir:—Estive como velhoTomno jardim.O coitado está cada vezpior do

reumatismo.Andacurvado,parecedobradonomeio.Perguntoumuitopelasenhora.

PaulinaChiltonainterrompeu,bruscamente:—Queéquevamosfazer,Poliana?—Quevamosfazer?Oqueforpossível,titia,omelhorquepudermos.—Ora,Poliana!—A tianãoconteveumgestode impaciência.—Seja

séria uma vez na vida! Ou não acha que a situação é di ícil? Meusrendimentos estão reduzidos a quase nada. É claro que ainda tenhoalgumas coisas valiosas, mas o senhor Hart diz que não encontrariacompradoresagora.Temosumpoucodedinheironobancoealgumacoisaa receber. E temos esta casa. Mas de que adianta a casa? Não podemoscomê-la nemvesti-la. E não conseguiremos vendê-la nempelametadedoque vale, a menos que encontrássemos alguém que quisesse realmentecomprá-la.

—Não,titia!Venderacasa,não!—protestouamoça.—Estacasatãobonita,cheiadecoisaslindas!Não,porfavor!

—Infelizmente,vaiserpreciso.Temosquecomer...—Eusei...—lamentou-sePoliana,comumsorrisotriste.—Eumesma

comoemexcesso.Masficoalegreportertantoapetite.— Você sempre acha algo para se sentir alegre, não é? Mas o que

vamos fazer, minha ilha? Queria que você falasse com seriedade, aomenosumavez.

—Estouséria,tiaPaulina—dissePoliana,comvisívelalteraçãoemsuaisionomia. — Estou pensando. Acho que posso trabalhar para ganharalgumdinheiro.

— Menina, nem quero ouvir isso! — reagiu Paulina Chilton. — UmamoçadafamíliaHarringtonterdetrabalharparacomer?!

—Edaí?A senhoradevia até icar satisfeita. Se umamoçada famíliaHarrington for capaz de trabalhar para ganhar o pão, tudo bem. Não édesgraçanenhuma,tiaPaulina.

—Talveznãoseja...Masnãoéagradávelparaoorgulho,paraaposiçãoquesempreocupamosemBeldingsville.

—Seeusoubessefazeralgumacoisa...—Poliana,comosenãotivesseouvidoaobservaçãodatia, ixavaosolhosnoespaço.Murmurou:—Seeusoubesse fazer alguma coisamelhor do que qualquer pessoa! Sei cantarumpouco,bordarumpoucoecerzirumpouco,masnadadisso façobemou su icientementebempara ganhardinheiro...—Ficoupensativa algumtempo e, depois, comentou:— O quemais gosto é cozinhar e arrumar acasa.Lembra-sedecomoeugostavadisso,nosinvernosquepassamosna

Alemanha, quando Gretchen não aparecia? Só não quero é ir para acozinhadeoutraspessoas.

— Como se eu fosse consentir isso, Poliana! — exclamou a tia,estremecendodehorrordiantedahipótese.

—É claroque trabalhando emnossa cozinhanão iame fazer ganhardinheiro.Eédedinheiroqueprecisamosagora.

—Defato...—concordouPaulina,suspirando.Houveumlongosilêncio,quebradoporPoliana:—Pensarque,depoisdetudooqueasenhorafezpormim,titia...Seeu

tivesseoportunidadedeajudá--la...Masnãotenho.Porquenãoconseguinavidaalgumacoisaquevalessedinheiro?

—Ora,minhafilha!Naturalmente,seThomas...— Não ique assim, titia! — exclamou Poliana, pondo-se de pé e

erguendo a cabeça, numa completa mudança de atitude. — Talvez eupossa revelar um talento maravilhoso algum desses dias... Quem sabe?Depois, acho que tudo isso é excitante. Há muita incerteza em tudo. E édivertido querer as coisas e esperar que elas aconteçam. Viver sempresabendooquevaiacontecerétão...tãomonótono!—concluiu,dandoumarisadinha.

A senhora Paulina Chilton, entretanto, não sorriu. Deu um suspiro edisse:

—Vocênãotemjeitomesmo,Poliana!

Capítulo18:Umcasodeadaptação

Os primeiros dias em Beldingsville não foram fáceis para Paulina e

paraPoliana.Foramdiasdeadaptaçãoeaadaptaçãonemsempreé fácil.Depois da excitação da viagem, tinham de atentar para o preço damanteigaeparaaespertezadoaçougueiro.Haviasempreumproblemaàesperadesolução.

Vizinhos e amigos apareceram e, embora Poliana os recebesse comcordialidade,asenhoraChiltonseescusava,semprequepodia,queixando-seàsobrinha:

—ÉsóacuriosidadedevercomoéPaulinaHarringtonsemdinheiro...Falava pouco sobre omarido,mas Poliana sabia que ela não o tirava

nuncadopensamento: namaiorpartedas vezes, seu silêncio era apenasummantoparaesconderaemoçãoquenãoqueriaexibir.

AmoçaestevealgumasvezescomJimmyPendletonduranteoprimeiromês. Logo no começo, ele apareceu com John Pendleton para uma visitacerimoniosa, isto é, cerimoniosa e compenetrada depois que a senhoraChilton entrouna sala. Fossequal fosseomotivo, daquela vez tiaPaulinadecidiu receber os visitantes. Depois, Jimmy apareceu sozinho, uma veztrazendo lores, outra um livro para Paulina e duas vezes sem qualquerpretexto. Poliana o acolhia com o prazer de sempre. Depois da primeiravisita,Paulinanãooviumais.

ComamaioriadosamigosPolianapouco falavadasituaçãoemqueseencontravam.Mas com Jimmy conversava abertamente e seu comentárioerasempreomesmo:

—Se eu pudesse fazer alguma coisa para ganhar dinheiro! Estoumetransformando na criatura mais interesseira que já vi!— brincou, certodia. — Sempre calculava tudo em dólares, e agora faço as contas emcentavos.TiaPaulinasesentetãopobre!

—Éumapena!—exclamouJimmy.—Seidisso—concordouPoliana.—Mas,francamente,achoqueelase

senteumpoucomaispobredoqueé.Sópensanisso.Oqueeufariaparaajudá-la!

—Que é que você gostaria de fazer... se pudesse?— indagou Jimmy,comovido.

— Ora, cozinhar, arrumar casa. Gosto de bater ovos com açúcar, deouvir o bicarbonato borbulhar numa xícara de coalhada. Gosto de fazer

bolos.Masnadadissodádinheiro,anãoserse forparacozinharnacasadosoutros.Eparaissonãomesintodisposta.

— Claro — disse Jimmy, olhando para o expressivo rosto que tinhabem perto de si e dizendo, ligeiramente corado: — Naturalmente, vocêpodesecasar.Jápensounisso?

Polianadeuumarisadinha,naatitudedeumamoçanemdelevetocadapelassetasdoCupido:

— Não penso emme casar. Em primeiro lugar, não sou bonita, vocêsabe.E,depois,tenhodecuidardetiaPaulina,nãoé?

— Não é bonita, hein?— E Jimmy sorriu. — Já imaginou que possahaveropiniãocontráriaaesserespeito,Poliana?

—Nãopodehaver.Afinal,tenhoumespelho.Parecia mero coquetismo. Em outra moça, talvez, pensou Jimmy. Mas

bastavaolharparaorostodePolianaparasesaberque,emseucaso,nãoera.Derepente,elecompreendeuporquePolianaeradiferentede todasasmoçasqueconhecia.Ainda faziapartedelaalgodesuamaneiraantigadeencararascoisas.

—Porquedizquenãoébonita?—perguntou.Aofazerapergunta,ecertodequeconheciabemocaráterdePoliana,

o jovemquasesearrependeuda temeridade.Nãopôdedeixardepensarquequalquer outramoça icariamagoada comaquela tácita con issãodeque aceitava o fato de não se achar bonita. Mas o que lhe disse Polianamostrouqueseutemorerainfundado:

—Porquê?Ora,simplesmenteporquenão.Talvezvocênãoselembre,masquandoeuerameninasempreacheiqueumadasboascoisasqueocéumedariaquandoeuchegasseláseriamcabelosnegroseanelados.

—Éoqueaindadeseja,Poliana?—Achoquenão.—Amoçahesitouumpouco.—Continuoagostarde

cabelosnegroseanelados.Masnão tenhocílioscompridos,eomeunariznão é grego ou romano... não tem “estilo”. É só um nariz. Tenho o rostocurtooucomprido,atémeesqueci.Euomediumavez,paramecompararcom um desses “padrões de beleza”, e vi que émeio torto. Dizem que alargura do rosto deve ser igual a quatro vezes o tamanho dos olhos e alarguradosolhosiguala...Nemmelembromaisaquê...Ofatoéquenãoéomeucaso.

—Nossa!Quequadrolúgubre!—brincouJimmy,perguntandodepoisde se ixar nos expressivos olhos damoça:— Você já se viu no espelhoquandofala,Poliana?

—Claroquenão,ora!

—Poisdevia.— Que ideia!— exclamou Poliana, rindo.— Imagine só! E o que eu

devia falar?Uma coisa assim, talvez: “Bem,Poliana, se seus cíliosnão sãocompridos e seu nariz não tem estilo, você deve icar muito contente,porque,afinaldecontas,temcíliosenariz!”

O rapaz acompanhou-a no riso,mas seu rostomudou de expressão eeledisse,umtantohesitante:

—Querdizerquecontinuaafazerojogodocontente?—Claro, Jimmy!—Polianaoencaroucomcertoespanto.—Achoque

não poderia ter vivido, nos últimos seismeses, se não fosse esse benditojogo.—Esuavoztremiaumpouco.

—Vocênãomefaloudisso—observouorapaz.—Eu sei.— Polianamudou de cor.—Acho que estou commedo de

falar demais com pessoas que não se importem. Você sabe. Agora quetenho vinte anos não seria amesma coisa, paramim, comono tempo emqueeutinhadez.Compreendiisso.Aspessoasnãogostamdeconselhos.

—Éissomesmo—concordouorapaz.—Mas,àsvezes, icopensandosevocêrealmenteentendeuaquelejogoouoqueelesignificaparaaquelesqueojogam.

—Euseioqueele fezpormimmesma—falouPolianaemvozbaixa,olhandoparaooutrolado.

—Estávendosó?—disseJimmy,apóscurtosilêncio.—Realmente,eledá resultado, se você o joga. Alguém certa vez disse que o jogorevolucionariaomundosetodosopraticassem.Euacreditonisso.

—Estácerto.Masalgumaspessoasnãoqueremserrevolucionárias—observou Poliana. — No ano passado, conheci na Alemanha um homemque havia perdido todo o seu dinheiro e andava na pior. Alguém tentoureanimá-lo,dizendo: “Oqueé isso?Ascoisaspodiamserpiores!”Poisemvezdeconsolar-se,ohomem icouuma fera.Edisse: “Seháalgumacoisanomundo queme dá raiva é alguémme dizer que as coisas podiam serpioresequedevo icarfelizcomoquemeresta.Nãotoleroessagentequesofreesairindo,dizendoqueéfelizporqueaindapoderespirar,comerouandar. Não quero respirar, comer ou andar só para continuar nestasituação.Equandomedizemquedevoserfelizporpodercomereandar,tenhovontadededarumtiroemquemfalaassim!”Imagineseeutivesseensinadoojogodocontenteàquelehomem!

— Acho que ele estava precisando muito de você — disse Jimmy,sorrindo.

—Podeser.Masnãometeriaagradecidooensino.

—Escute,Poliana.Aquelehomem,comsua iloso iaemaneiradeviver,fazia a infelicidade dele mesmo e dos outros, não é verdade? Pois bem.Suponhamos que ele estivesse fazendo o jogo do contente. Enquantoprocurassealgocomquepudessesealegrar,nãoestaria,aomesmotempo,resmungandosobreos seusmales, e ganhariamuito com isso. Seriamaisfácil para os outros conviverem com ele, e ele próprio viveria melhor.Enquantoisso,asortedohomemnãopiorariaporterdeixadodeladosuaslamúrias. Devia até melhorar, pois, na pior hipótese, icaria em melhordisposição.

—Issomefazpensar—dissePoliana,concordando—noqueeudisseaumacertasenhoraquetrabalhavaparaassenhorasdaAuxiliadora,umadessas pessoas que têm prazer com o sofrimento e com as causas dosofrimento. Devia ter uns dez anos e tentava ensinar a ela o jogo docontente. Sem muito sucesso, aliás, e acabei, embora inconscientemente,compreendendo a razão do insucesso. E disse a ela, entusiasmada: “Dequalquermodo,asenhoradevesesentirfelizportertantacoisaqueafazsofrer.Afinal,asenhoragostadosofrimento.”

—Eela?—quissaberJimmy.— Acho que icou com tanta raiva como teria icado o tal homem na

Alemanha,seeutivessetentadoensinaraeleojogodocontente.—Mastodosdeviamaprender!Evocêdeviadizer...—Orapazcortoua

frase,comestranhaexpressãonorosto.—Oquefoi,Jimmy?—perguntouPoliana,surpresa.— Nada. Só estava pensando. Percebi que queria que você izesse o

mesmoque,antes,eutinhamedoquevocê izesse.Istoé,antesdevê-la,euestavacommedodeque...que...

—Vamos,continue—pediuPolianaantesuaindecisão.—Nãoénadademais...— Estou esperando — murmurou Poliana, com atitude calma e

confiante,traídaapenaspelaexpressãodosolhos.Jimmy hesitou, olhou para o rosto sorridente da moça e se deu por

vencido:—Não sei o que você vai achar. Só que eu estava preo-cupado... um

pouco,comaquelejogodocontente,comreceiodequevocêcontinuasseapraticá-lo,vocêsabe,e...

— Que foi que eu lhe disse?— indagou Poliana, dando uma gostosarisada.—Vocêsempresepreocupou,commedodequeeufosse,aosvinteanos,exatamenteoqueeraquandotinhadez!

— Não... eu não quis dizer... — gaguejou Jimmy Pendleton. — Pode

acreditar,Poliana.Eupensei...Éclaroquesabia...Polianalimitou-seataparosouvidos,rindosemparar.

Capítulo19:Duascartas

Nofinaldejunho,PolianarecebeuestacartadeDellaWetherby:Estou escrevendo para lhe pedir um favor. Espero que você possa me

indicar alguma casa de família, bem tranquila, aí em Beldingsville, ondeminhairmãpossasehospedarduranteoverão.Sãotrêspessoas:minha irmã,suasecretáriaeseufilhoadotivo,Jamie.(Vocêse lembrade Jamie,não?)Elesnãoqueremficarnumhotelounumapensão.Minha irmãandacansadaeomédicorecomendouquepassasseumatemporadanointerior,paramudardeambiente e repousar. SugeriuVermont ouNewHampshire. Pensamos logoemBeldingsvilleeemvocê,quepodenos indicaro lugaradequadopara elesficarem.PrometiaRuthque lhe escreveria.Elesquerem ir no princípio dejulho,seforpossível.Porfavor,responda-meomaisdepressapossível,dizendosepodearranjarolugar.Minha irmãestá internadanoHospitalháalgumassemanas,tratando-se.

Àesperadeumarespostafavorável,cordialmente,DellaWetherbyDepoisqueleuacarta,Poliana icouimóvelporalgumtempo,tentando

mentalmente localizar casas de família em Beldingsville que pudessemhospedarosviajantes.Achou,desúbito,asoluçãoe,comumaexclamaçãodealegria,foifalarcomPaulinanasaladeestar:

—Titia!Acabodeterumaideiaótima!Nãolhedissequealgumacoisaia acontecer para que eu pusesse em prática minhas aptidões? Poisaconteceu.LeiaestacartadeDellaWetherby, irmãdasenhoraCarew,emcujacasa iqueiaqueleinvernoemBoston,lembra-se?Elatemquepassaroverãono interioreDellamepediuparaconseguiraquialgumacasadefamíliaqueapudessehospedar.Aprincípio,nãomelembreidenenhuma.Masagoradescobri,tiaPaulina!Adivinhequalé?

—Comoéquevocêpodeserassim,minha ilha?—disseatiaemvezdetentaradivinhar.—Parecequeaindatem12anos.Sobreoque,mesmo,vocêestavafalando?

—SobreumacasadefamíliaparahospedarasenhoraCareweJamie.Jáencontrei!—respondeuamoça,comentusiasmo.

— Já? — indagou Paulina, desinteressada. — E por que todo esseentusiasmo?

—Porqueéaqui.Vamoshospedá-losaqui,titia.—Poliana!—exclamouPaulina,quaseempânico.— Por favor, titia! Não está vendo que é a oportunidade que eu

esperava?Pareceatéquecaiudocéu.Podemoshospedá-lossemamenordi iculdade. Temos muitos quartos, e a senhora sabe que sei cozinhar earrumar a casa. Vamos ganhar dinheiro, sei que a senhora Carew nospagarámuitobem.Sãotrêshóspedes;asecretáriatambémvirá.

—Não é possível, Poliana!— reclamou a tia.— Fazer da nossa casaumapensão?AmansãodosHarrington transformadanumahospedaria?!Essanão,Poliana!

—Nãovaiserumapensãoqualquer,esimumamuitoespecial.Depois,sãopessoas amigas. É como se fossem conhecidos que vêmnos visitar. Adiferençaéquevãopagar.Eestamosprecisandodedinheiro,titia!

UmespasmodeorgulhoferidocontorceuorostodePaulinae,comumgemido,elaafundounapoltrona.Depois,perguntou:

—Vocêpodeseencarregardetudo?Esozinha?—Claroquenão—admitiuPoliana,pisandoagoraemsolo irme,pois

conseguiravenceraresistênciadatia.—EupossocozinharedirigiracasaeumadasirmãsdeNancyfariaoresto.AsogradeNancylavariaaroupa,comovemfazendo.

—Maseunãoestoupassandobem,Poliana,vocêsabe,nãopossofazermuitacoisa.

—Claroquenão,titia.Enemprecisa.Nãoachaqueéumaideiaótima?Éumdinheirocaídodocéu!

— Vamos ver... — duvidou Paulina. — Você ainda tem de aprendermuito, Poliana. Fique sabendo que os hóspedes que pagam são muitoexigentes.Nãohá de ser pelos seus belos olhos que vão fazer o dinheirocairdocéu.Vocêvaiterumbocadodetrabalho,nãoseesqueçadisso.

—Podedeixar—respondeuamoça.—Agora,vouescreveraDellaepediraJimmyBeanparapôracartanocorreio,quandoeleapareceraquiestatarde.

— Por que é que você não chama aquele moço por seu nomeverdadeiro?— Paulina parecia nervosa.— Esse “Bean”me dá arrepios.VocêsabequeosobrenomedeleagoraéPendleton.

— Eu sei. Mas às vezes esqueço e falo Bean na frente dele, o que éhorrível.Elefoiadotado,seidisso.Estoutãoansiosa!—Esaiudasalacomoseestivessedançando.

A carta já estava pronta quando Jimmy apareceu, às quatro horas.Poliananãoperdeu tempoe,depoisdecontaraorapazoqueacontecera,

disse:— Quero que cheguem logo. Não vejo a senhora Carew nem Jamie

desdeaqueleinverno.JálhefaleisobreJamie,não?—Falou,sim...—Ojovempareciaconstrangido.—Nãoachaótimoqueelesvenham?—Bem,nãoseiseissoseráexatamenteótimo.— Então, não acha ótimo eu ter uma oportunidade de ajudar tia

Paulina,aindaqueporpoucotempo?Éótimo,Jimmy!— Vai ser muito duro para você — disse Jimmy, passando do

constrangimentoparaumacertairritação.—Bem,decertomodovaisermesmo.Mas icareialegreporcausado

dinheiroquevouganhar.Éumproblemaqueandamepreocupando.Estávendocomoestouficandointeresseira,Jimmy?

O rapaz icou calado durante certo tempo e, depois, perguntou, ab-ruptamente:

—QueidadetemotalJamie,agora?—Estou lembrando que você nunca gostou do nome dele.— Poliana

sorriu. — Jamie... não faz mal. Ele está adotado legalmente e recebeu osobrenomedeCarew.Podechamá-loassim.

—Vocênãomedissequeidadetemele—lembrouJimmy.—Ninguémsabeaocerto.Devetermaisoumenosasuaidade.Nãosei

comoeleestáatualmente,maspergunteitudonacarta.—Émesmo?—JimmyolhouparaacartaquePolianahaviaescrito.Chegouapensarquepoderiarasgá-laoujogá-lanolixo,fazerqualquer

coisa, menos pô-la no correio. Ele sabia que estava com ciúme daquelerapaz de nome parecido com o seu. Isso não queria dizer que estivesseapaixonadoporPoliana,eraoquediziaasimesmo.Claroquenãoestava.Sóquenão lheagradavaaperspectivadevero rapazdesconhecido, com“nome demaricas”, vir para Beldingsville e, sempre presente, atrapalharsuas visitas, agora tão agradáveis. Quase disse isso a Poliana,mas algo oimpediu.Logodepois,saiuelevouacarta.

OfatoéqueJimmynãorasgouacartanemjogou-afora,segundo icouevidenciadodiasdepois,quandoPolianarecebeuprontarespostadeDella.Jimmy, que apareceu depois, teve de ouvir a leitura da carta, ou pelomenosdepartedela,pois,antesdeler,Polianaexplicou:

—Nocomeço,elasódizquetodosestãoalegrescomaideiadevirem...essa coisa toda. Não preciso ler. Mas acho que você vai gostar do resto,porque já me ouviu falar a respeito deles muitas vezes. Em breve, vaiconhecê-los.Dependomuitodevocê,Jimmy,parafazercomquesesintam

bemaqui.—Émesmo?—Nãoseja irônico, Jimmy,sóporquenãogostadonomedeJamie.Sei

que simpatizará com ele, quando o conhecer. E vai adorar a senhoraCarew.

— Será?— disse, sempre sarcástico.— É uma séria perspectiva. Sóesperoqueaquelasenhorasejabastantebondosapararetribuiraminhaadoração.

—Evaiser—a irmouPoliana.—Ouçasóoquevouleraseurespeito.É uma carta deDella... DellaWetherby, você sabe, a doHospital, irmãdasenhoraCarew.

—Pode ler—disse Jimmy, esforçando-separademonstrar interesse,enquantoPoliana,sorrindo,começoualeitura:

Vocêmeperguntoutudoarespeitodetodomundo.Éumencargopesado,masvoutentarfazeromelhor.Paracomeçar,acho

quevocêvaiencontrarminha irmãmuitomudada.Novos interessesem suavidanosúltimosanos fizerammaravilhas.Estáumpoucomagra e cansadaporexcessodetrabalho,masumdescanso resolverá tudo.Vai ver como elaparecerámais jovem,bem-disposta e feliz.Eudisse feliz.Claroque issonãoquerdizeromesmoparamim,poisvocêeramuito jovemparacompreenderatéquepontoelaerainfeliz,quandoaconheceuemBoston,naquele inverno.Avida,paraela,eratristeepesada,então.Hojeelaestáinteressadapelavida.

Primeiro,aceitouJamiee,quandoosvirjuntos,ninguémteráde lhedizero que ele significa para ela. Ainda continuamos sem saber se ele é overdadeiro Jamie,masminha irmãgostadele comodeum filho, e oadotoulegalmente,achoquevocêjásabedisso.

Eháasmoças,também.Lembra-sedeSadieDean,abalconista?Poisbem,tendo se interessadopor ela eajudando-a para que tivesse uma vidamaisfeliz,minha irmã foi se esforçando, aos poucos, até passar a considerá-lacomo seuparticularanjobom.Criouum larparamoças que trabalham ecercade seispessoas ricas se associaram ao empreendimento.Mas ela é océrebrodetudoesededicadecoraçãoàsmoças,emgeral,ouacadaumaemparticular.Vocênãopode imaginara suaboa vontade, sua disposição. Seubraçodireitoéasecretária,amesmaSadieDean.Vocêvaivê-lamudada,mascontinuaaSadiedesempre.

QuantoaJamie,coitado!Opesardesuavidaéquesabequenuncapoderáandar. Durante algum tempo, tivemos esperança. Ele esteve no Hospital,tratando-se com o doutor Ames durante um ano e melhorou tanto que,

agora,podeandar com o auxílio demuletas.Mas vai ser sempre inválido,emborataldefeitonãoafetesuamentalidade.Depoisqueagente o conhecenuncasepensanelecomoinválido:seuespíritoélivreeforte.Nãoseiexplicardireito,masvocêentenderáoqueestoutentandodizer,quandoencontrá-lo.Ele conservou omesmo entusiasmo juvenil,aalegriade viver.Masháumacoisa,somenteuma,creio,capazde levá-loaodesespero:descobrirquenãoéJamieKent,nosso sobrinho.Ouviu falar nisso por tanto tempo e passou adesejar que fosse— tanto que acabou acreditando que émesmo o nossoJamie.Bem,senãoé,esperoqueelenuncavenhaasaber.

— É tudo — disse Poliana, dobrando a carta. — Mas não é

interessante?— Sem dúvida— concordou Jimmy, falando sinceramente, pensando

emcomoébomterpernasfortes,poderandar,chegandomesmoadesejarque o pobre inválido ocupasse parte dos pensamentos e atenções dePoliana,desdequenãoexcessivas,naturalmente.—Deveserduroparaopobrerapaz.

— Se é! Você nem pode imaginar, Jimmy. Eu sei. Já iquei sem poderandar.Eusei!

— Claro... — murmurou o jovem, mexendo-se nervosamente nacadeira.

VendoaexpressãoternanorostodePoliana,nãosesentiatãocertodequeJamiedevesseviràcidade,seeraparaPolianaficarassim.

Capítulo20:Oshóspedespagantes

Os poucos dias antes da chegada “daquela gente horrível”, como

Paulina Chilton se referia aos hóspedes pagantes de sua sobrinha, foramde trabalho e agitação para Poliana. Mas foram dias felizes: de algummodo,amoçasemostravaoraapreensivaoudesanimada,massobretudofeliz,nãosedeixandodominarpelosproblemasqueteriadeenfrentar.Elachamou Nancy e a irmã mais nova dela, Betty, para ajudá-la. Polianaarrumou a casa, de aposento em aposento, de forma a torná-la o maisconfortável e agradável possível para os seus hóspedes. Paulina poucopodia fazer: em primeiro lugar, não se sentia bem e, em segundo, suamaneiradeencarar as coisasnão facilitavaa colaboração. Falava sempredoorgulhodosHarringtoneamesmalamúriasaíadeseuslábios:

—Poliana!Imaginarquenossamansãoiachegaraisso!—Nãoénadademais, titia.SãoosCarewqueestãovindoparanossa

casa—tratoudeconsolá-laPoliana.MasPaulinanãosedeixavalevarfacilmenteePolianatinhadeassumir

todaaresponsabilidadenaarrumaçãodacasa.No dia da chegada, ela foi à estação com Timothy (agora dono dos

cavalos dos Harrington), para esperar o trem da tarde. E só tinha nocoração a con iança e uma alegre expectativa. Quando ouviu o apito dalocomotiva, porém, foi tomada de verdadeiro pânico, dúvida e desalento.Compreendeu,desúbito,oquetinhadefazer,sozinhaequasesemajuda.Lembrou-sedariqueza,daposiçãoedogostore inadodasenhoraCarew.Lembrou-se de que Jamie já era um adulto, diferente domenino ao qualestava acostumada. Por um momento, seu único desejo foi fugir paraqualquerlugar.

—Estoume sentindomal, Timothy—disse.—Voudizer a eles paranãoirem...

—Oquê?!—exclamouTimothy,estarrecido.Bastou olhar para o rosto de Timothy, e Poliana, com uma risadinha,

exclamou:—Nada!Toliceminha.Olhe!Estãoquasechegando!—Ecorreuparaa

plataforma,novamenteaPolianadesempre.Reconheceu-os imediatamente. Mesmo se tivesse tido alguma dúvida,

esta teria sidodesfeitapelasmuletasqueo rapaz alto trazia—ummoçode olhos castanhos. Por alguns instantes trocaram abraços e, depois,

Polianaseviunacarruagem,aoladodeRuthCarewetendoàfrenteJamiee Sadie Dean. Então, pela primeira vez, pôde ver os amigos e notar amudança que tinham sofrido nos últimos seis anos. A respeito de Ruth,teve logoumasensaçãode surpresa.Esquecera-sedequeelaerabonita,que tinha os cílios compridos e os olhos expressivos. Pensou com invejacomoaquelerostodeviaser igualaos“padrõesdebeleza”.Masregozijou-se coma ausênciade rugas, as antigas rugas resultantesda tristeza edaamargura.

Depois, Poliana olhou para Jamie e se surpreendeu, com razão. Jamietambém icarabonito,nãohaviadúvida,pensouamoça,atraídapelosseusolhos escuros, faces um tanto pálidas e cabelos escuros e ondulados.Depois,olhouparaasmuletasesentiuumapertonagarganta.

Chegou a vezde SadieDean. Sua isionomianãohaviamudadoquasenada desde a primeira vez que Poliana a conhecera no Passeio Público.Poliana logonotou,porém,umadiferençanomododevestirepentearoscabelos, na maneira de falar, na atitude descontraída e alegre. Era umaSadiebemdiferente.

—Foimuitabondadesuanosesperar—disseJamieaPoliana.—Sabeoquepensei,quandovocêescreveudizendoquepodíamosvir?

— Não... claro que não... — gaguejou Poliana, ainda olhando para asmuletasdorapazecomumnónagarganta.

— Lembrei-me da menina do Passeio Público, com seu saquinho deamendoins paraSir Lancelote eLady Guinevere. Eu sabia que você sóestavanoscolocandoemseulugar.Querodizer:sevocêtivesseumsacodeamendoins e nós não, só icaria satisfeita quando dividisse os amendoinsconosco.

—Umsacodeamendoins!Temgraça!—riuPoliana.— No caso presente, o seu saco de amendoins se transformou em

arejados quartos no campo, leite de vaca e ovos verdadeiros de umagalinha de verdade— explicou Jamie.—Mas dá nomesmo. Talvez sejabomadverti-la...LembracomoSirLanceloteeraguloso?

—Estábem.Assumoorisco—dissePoliana,pensandocomoerabomque Paulina não estivesse presente para ver tão cedo con irmadas suasprevisões. — Coitado deSir Lancelote! Será que alguém continua a darcomidaaele?Seráqueaindaestávivo?

— Está vivo e bem-alimentado — interveio Ruth Carew. — Esteengraçadinho aqui vai lá pelo menos uma vez por semana, levandoamendoinsenãoseimaisoquê.Quando faltacereal láemcasaéporque“seuJamielevoutudoparadaraospombos,madame!”.

—Issomesmo—confirmouJamie.—Voulhecontar.EPolianaouviu, comamesmaatençãoe fascíniodosvelhos tempos,a

história de um casal de esquilos no parque ensolarado. Mais tarde,compreendeuoqueDellaWetherbyquiseradizeremsuacarta.Assimquechegaramemcasa,teveumchoque:viuJamieapanharasmuletasedescerda carruagem com a ajuda dos outros. Em alguns minutos, ele a izeraesquecer-sedequeerainválido.

ParaalíviodePoliana,oprimeiroetemidoencontroentretiaPaulinaeo grupo dos Carew foi melhor do que esperava. Os recém-chegadosicaramtãoentusiasmadoscomacasaetudoquantohaviadentrodelaquefoi impossível à proprietária manter a atitude de forçada resignação emsua presença. Ficou também evidente, antes que se passasse uma hora,que a simpatia e o magnetismo de Jamie tinham vencido a couraça dedesaprovação de Paulina. Assim, Poliana viu que pelo menos um dosproblemas que a preocupavam deixava de existir: tia Paulina já semostravaumaanfitriãamávelparacomoshóspedes.

MasPolianatinhaoutrasdi iculdadespelafrente.Haviamuitotrabalhoaser feito.Betty,a irmãdeNancy,eraboazinhaesimpática,masnãoeraigual a Nancy. Tinha que aprender, e isso levava tempo. Poliana temiaalgumerrodela.Umacadeiraempoeiradaeraumcrimeeumbolosoladouma tragédia. Aos poucos, porém, depois de incessantes argumentos epedidos de Ruth e de Jamie, a moça passou a encarar o trabalho commenostensãoeacompreenderquecrimeetragédiaaosolhosdosamigosnão eram uma cadeira suja e um bolo solado, mas a expressão deansiedadeemseurosto.

— Acha que já não é bastante nos hospedar? É preciso se matar detrabalhoparanosalimentar?—perguntouJamie.

—Alémdomais,nãosomoscomilões—acrescentouRuth.Foimaravilhosaafacilidadecomqueostrêsmoradoresseintegraram

ao cotidiano da família. Antes de se passarem vinte e quatro horas, asenhoraChilton já fazia à senhoraCarewperguntas interessadas sobreonovo Lar paraMoças que Trabalham, e Sadie Dean e Jamie já discutiamsobreamelhormaneiradedescascarervilhasoudecolherflores.

Já fazia uma semana que os Carew estavam na mansão Harrington,quando John Pendleton e Jimmy apareceram, certa noite. Poliana pensouque eles apareceriam logo e os havia convidado, mesmo antes que oshóspedeschegassem.Fezasapresentaçõescomvisívelorgulho:

—Vocês sãomeusbonsamigos.Queroque se conheçame se tornembonsamigosentresi.

Nãoasurpreendeuo fatode JohnPendleton ter icado impressionadocom a beleza e a simpatia da senhora Carew, mas a maneira como estaolhou para Jimmy deixou-a impressionada. Parecia que ela o estavareconhecendo.

— Já não nos conhecemos, senhor Pendleton? — perguntou Ruth, eJimmyaencarousurpreso.

—Achoquenão.Oumelhor,tenhocertezadequenuncaaviantes.Docontrário,nãoteriaesquecidoasenhora.

Aalusãoeratãoóbviaquetodosriram,ePendletondisse:—Parabéns,meufilho.Vocêéumgalanteadorperfeito.Ruthcorouligeiramenteecontinuou:—Bem, sua isionomia nãome parece estranha... Devo tê-lo visto em

algumlugar,mesmosemnostermosconhecido.—TalvezemBoston—observouPoliana.—Jimmypassaos invernos

lá, cursando a Escola Técnica. Quando se formar, vai construir pontes erepresas. Isto é, quando crescer.—Eolhouparao jovemdeummetroeoitentaedoisdealtura,depédiantedeRuth.

Todosriramdenovo,menos Jamieque,emvezderir, fechouosolhoscomosealgootivesseaborrecido.SomenteSadie icousabendocomo—epor que — os presentes mudaram de assunto, pois foi ela mesma quetomoua iniciativademudar.Foi tambémelaquemaproveitouaprimeiraoportunidadeparaconversarsobrelivros, loresebichos,assuntosdesuapreferência,emvezdefalaracercadeponteserepresas,queJamiejamaispoderia construir. Mas ninguém percebeu o que Sadie izera, inclusive opróprioJamie.

Depois que os Pendleton saíram, Ruth voltou a falar sobre a curiosasensaçãoquetiveradehavervisto,antes,ojovem.

—Euoviemalgumlugar...—murmurou.—PodetersidoemBoston,mas...—Deixouafrasesemterminare,umminutodepois,acrescentou:—Dequalquermaneira,éumrapazmuitosimpático.Gosteimuitodele.

— Issome alegra!— aprovou Poliana.—Eu sempre gosteimuito deJimmy.

—Querdizerque jáo conheciahámuito tempo?—perguntou Jamie,umpoucotriste.

— Sim, há anos, quando eu ainda era menina. Naquele tempo ele sechamavaapenasJimmyBean.

—JimmyBean?—estranhouRuthCarew.—Elenãoé ilhodosenhorPendleton?

—Filhoadotivo.

—Ah!—exclamouJamie.—Entãonãoé ilholegítimocomoeu.—Suavozquasedenotavaalegria.

—OsenhorPendletonnãotem ilhos—explicouPoliana.—Nuncasecasou.Esteveparasecasarumavez,masnãodeucerto.

Poliana corou. Jamais esquecera que fora sua mãe que recusara apropostadecasamentodeJohnPendletonesetornara,assim,responsávelporseuslongosesolitáriosanosdecelibato.

Ruth e Jamie, porém, ignorando o fato e notando as faces coradas dePoliana, chegaram à mesma conclusão. “Será possível”, pensaram, “queJohn Pendleton tenha se apaixonado por Poliana, tão mais moça do queele?”.

Não traduziramopensamentoempalavras,demodoquenão tiveramresposta. Mas guardaram o pensamento em suas mentes, para futurareferência,casosetornassenecessário.

Capítulo21:Diasdeverão

Antes da chegada dos Carew, Poliana pedira a Jimmy para ajudá-la a

entreter os hóspedes.Na ocasião, Jimmynãomanifestou entusiasmopelaideia, mas, dias depois, mostrara-se disposto e ansioso, a se julgar pelasnumerosasvisitasquefaziaàmoçaesuasinsistentesofertasdecavalosecarros para servir aos forasteiros. Entre ele e Ruth irmou-se logo umacalorosa amizade, como se houvesse forte atração de um pelo outro.Passeavamjuntos,conversavamechegarammesmoadiscutiroprojetodoLar para Moças que Trabalham, a ser executado no próximo inverno,quandoorapazestivesseemBoston.Jamietambémfoialvodeatenções,eSadieDeannãofoiesquecida.ComoRuthCarewhaviadeixadoclaro,Sadieeracomosefossedafamíliaedeviasertratadacomotal.

Não era somente Jimmy que se mostrava gentil. John Pendletonaparecia na casa com frequência, sugerindo passeios e piqueniques. Astardes eramagradáveis na varandadamansão, todos falandode livros edearte.

Polianavibrava.Nãoapenasoshóspedesestavamlivresdesentirtédiocomo se tornaram amigos de seus outros amigos, os Pendleton. E elacuidavadetudo,fazendooqueestivesseaoseualcanceparaquetodossesentissemfelizes.

Nem os Carew nem os Pendleton, contudo, gostavam de ver Polianacomosimplesespectadoradesuasdiversõesequeriamqueelatambémsejuntasseaogrupo,enãoaceitavamsuasnegativas.

— Não vamos deixar você nesta cozinha quente como um forno! —insistiu Jamiemais uma vez.— Amanhã está linda e vamos almoçar noGeorge.Vocêvaiconosco.

—Nãoposso,Jamie—recusouPoliana.—Eporquenão?Nãopensenojantar.Comeremosfora.—Mastemoalmoço...— Ora, você vai almoçar conosco. Não precisa icar em casa

preparandoacomida.—Não,Jamie!—teimouamoça.—Tenhodepôroglacênobolo.—Obolonãoprecisadeglacê.—Evarreracasa.—Acasaestálimpa.—Eprovidenciartudoparaamanhã.

—Amanhãvocênosdá leitecombiscoito.Preferimosvocêcomleiteebiscoitodoqueumjantarcomperusemvocê.

—Nãopossolhedizertudooquetenhodefazerhoje.— Nesse caso, não diga. Trate de apanhar o chapéu e venha com a

gente.JáfaleicomBetty,eelavaifazertudodireito.—Que coisa, Jamie!—protestouPoliana, enquanto ele apuxavapelo

braço.Poliana foi, não somente naquele dia, mas muitas outras vezes. Não

podia resistir. Não era somente Jamie que insistia,mas também Jimmy eJohnPendleton,paranãosefalardeRuth,SadieeatédatiaPaulina.

—Claroqueeugostodesaircomvocês—disseela,certodiaemquetevededeixaro trabalhoparaacompanhá-los.—Masnuncavihóspedesquepagamquerendopassaraleiteebiscoitos.Enuncavidonadepensãoigualamim:deixandootrabalhoparapassear.

O clímax aconteceu quando, um dia, John Pendleton (e tia Paulinanuncaparoudedizerquetinhasidoelemesmo)sugeriuque izessemumaviagemdeduassemanas, indoacamparàmargemdeumalagoa,entreasmontanhas,acercadesessentaquilômetrosdacidade.

Aideiafoiaprovadaportodos,menosporPaulina.Esta,emparticular,disse a Poliana que era bom que John Pendleton tivesse se livrado daapatiaquemantiveraduranteanos,masqueissonãosigni icavaquedeviapassaraagircomosefosseumrapazdevinteanos,oque,nasuaopinião,eraoque andava fazendo.Empúblico, porém, limitou-se adizerquenãoestavadisposta aparticipardaquela loucurade acampamento, dormirnochãoúmido,àsvoltascombesourosearanhas,apretextodese“divertir”.Nãoeraprogramaparagentedemaisdequarentaanos...

Se John Pendleton icou ofendido com a recusa, não deixoutransparecer.Seuentusiasmonãoarrefeceu,pelomenosaparentemente,eos preparativos continuaram. Ficara decidido que, mesmo sem PaulinaChilton,osdemaissairiamparaacampar.

— A senhora Carew será a acompanhante de que precisamos —sentenciouJimmy.

Durante uma semana, não se falou senão em barracas, víveres,máquinas fotográ icas e material de pesca, e todos se ocuparam dospreparativosparaopasseio.

—Vaiserumpasseiocampestre—disseJimmy.—Nadaderefeiçõesnuma só barraca. Queremos fogueiras ao ar livre, assando batatas nasbrasasetodossentadosemvolta,contandocasosecomendomilhoassadonaespiga.

—Equeremosnadar, remar epescar!—exclamouPoliana.—E...—Parou, olhando para Jamie. — Quero dizer, não vamos fazer tudo aomesmo tempo. Hámuita coisa tranquila que se pode fazer também. Ler,conversar...

Jamie fechouos olhos e empalideceu. Entreabriu os lábios,mas, antesquepudessearticularumapalavra,SadieDeanjáestavafalando:

— Em piqueniques e acampamentos a gente tem de se divertirbastanteaoar livre.Noúltimoverão,estivemosnoMaine,evocêsdeviamter visto os peixes que o senhor Carew aqui pescou. Fale você mesmosobreisso—acrescentou,dirigindo-seaJamie.

—Ninguémiaacreditar.—Jamiesorriu.—Seriamaisuma“históriadepescador”,vocêsdiriam.

—Conteevejaseacreditamos—pediuPoliana.Jamie voltou a negar.Mas já havia recuperado a cor, e em seus olhos

não havia mais a expressão de tristeza. Olhando para Sadie, Polianaimaginouvagamenteporqueelapareciaagoratãoaliviada.

ChegouodiaetodospartiramnocarroenormedeJohnPendleton,comJimmyaovolante.Ouviram-seoruídodomotoreosgritosdedespedida,epartiram,enquantoJimmypressionavaabuzina.

Tempos mais tarde, Poliana se lembraria da primeira noite noacampamento—umaexperiêncianovaemmuitosaspectos.

Eram quatro horas quando o percurso de sessenta quilômetrosterminou. Desde as três e meia, o carro rompia uma estrada que,obviamente, não fora feita para automóveis de seis cilindros. Para oprópriocarroeparaomotorista,aquelapartedaviagemfoicansativa.Masparaospassageiros,quenemsepreocupavamcomosburacosnaestradaealamaacumuladanascurvas,aviagemerasensacional.Acadainstanteviamumapaisagemmaisbela.

John Pendleton escolhera para acampar um lugar que visitara anosantes.Aoavistá-lo,saudouoacontecimentocomalegriaerespiroucomumcertoalívio.

—Élindo!—repetiramemcoroosdemais.—Estoucontenteporvocêsteremgostado—dissePendleton.—Achei

que era um bom lugar,mas estava preocupado. Esses lugares costumammudarmuito,àsvezes.Omatocresceuumpouco,masnãofazmal.Éfácillimparissoaí.

Todos se ocuparam em limpar o terreno, ergueram duas pequenasbarracas, prepararam a fogueira e organizaram a “cozinha” e a“despensa”.

Poliana começouaprestarmais atenção em Jamie e a temerque algolhe acontecesse. Percebeu que o chão, cheio de buracos e de raízessalientes de árvores, não era, para umpar demuletas, exatamente comoumpiso coberto de tapetes, e viu que Jamie também se preocupava comisso. Mas, a despeito de sua invalidez, o rapaz insistia em participar dotrabalhocoletivo.Polianasesentiunervosae,porduasvezes,correuparaajudá-lo,tirando-lhedosbraçosocaixotequeeletentavacarregar.

—Deixequeeulevoisso—pediuamoça.—Vocêjáajudoubastante.Dasegundavez,sugeriu:—Porquenãosesentaporaíedescansaumpouco?Se o estivesse observando atentamente, teria notado que o rapaz

enrubescera.Mas,comonãooobservavadessemodo,nadanotou.Masviu,comsurpresa,Sadie,umpoucodepoisecarregandoumascaixas,gritar:

—Ei!SeuCarew!Quermedarumamãozinha?Logodepois, Jamieseaproximoudasbarracas,maisumavezàsvoltas

comoproblemadecarregaraomesmotempoalgumascaixinhaseumpardemuletas.PolianasevirouparaSadieDeaneiareclamar,masaintençãomorreu no nascedouro: viu Sadie pedindo-lhe silêncio, levando o dedoindicadoraoslábios.

—Seioqueestápensando—disse,emvozbaixa,aproximando-sedePoliana.—Nãoestávendo?Ele icasentido,achandoquenãopodefazeromesmoqueosoutros.Olhesó!Vejacomoagoraestácontente!

Poliana viu Jamie equilibrando o seu peso em uma das muletas ecurvando-separacolocar seu fardonochão.Viuaalegriaemseu rostoeouviu-odizer,displicentemente:

—ÉumacontribuiçãodasenhoritaSadie.Elamepediuparatrazeratéaqui.

Sadie já tinhaseafastadoePoliana icouobservando Jamieporalgumtempo,mas comcuidadoparaquenemelepróprio e os outrosnotassemsuaatenção.Chegouasentircompaixãoenquantooolhava.Porduasvezes,o viu tentando executar uma tarefa sem o conseguir. Uma vez, não pôdecarregar uma caixa mais pesada e, de outra, foi com uma mesadesmontável,quenãopodiaserarmadasemquesoltasseasmuletas.Dasduas vezes, Poliana notou como Jamie se virava, depressa, para ver se oseu fracasso fora percebido pelos demais. Era visível o cansaço em seurosto;adespeitodosorriso, empalidecia, comosenãoestivessepassandobem.

“Acho que devíamos ter pensado melhor!”, admitiu Poliana para simesma, comosolhosmarejados. “Devíamos terpensadomelhorantesde

deixar que ele viesse a um lugar como este. Acampar commuletas! Porquenãonoslembramosdissoantes?”

Uma hora depois, quando se sentaram em torno da fogueira, após ojantar, Poliana viu sua pergunta respondida. Enquanto contemplava aslabaredase sentiaoarembalsamadocomperfumesdocampo,maisumavezcaiusoboencantamentodashistóriasque luíamdos lábiosde Jamie.Maisumavezseesqueceudasmuletas.

Capítulo22:Camaradagem

Os seis formavam um grupo alegre e amigo. A cada dia apareciam

motivosnovosdeprazereumdeleseraacamaradagemqueosunia.Jamieobservou,quandosentaramcertanoiteemtornodafogueira:

—Jánotaram?Parecequeagente icaseconhecendomelhoraquinomato.Bastaumasemanaaquiparaagente icarmaiscamaradadoqueemumanonacidade.

—Émesmo—concordouRuthCarew.—Porqueserá?—Éalgumacoisanoar, euacho—dissePoliana.—Algumacoisano

céu,nasárvores,nalagoa...Achoqueéisso.— Você quer dizer que é porque estamos livres das imposições dos

outros—disseSadieDean,comentonaçãodiferentenavoz.(Sadie foraaúnicaquenãoriracomaconclusãoimprecisadePoliana).—Aqui, tudoéreal e a gente também. Aqui, a gente pode revelar nossa verdadeirapersonalidade. Não temos de fazer o que a sociedade nos dita porquesomos ricos ou pobres, importantes ou humildes. Aqui, somos nós,realmente!

—Achoque omotivo émuito prosaico—opinou Jimmy.—Aqui nãoexiste Dona Fulana de Tal e Seu Sicrano de Tal, sentados na varanda desuas casas, comentando cada um dos nossos movimentos e especulandosobre para onde vamos, o que vamos fazer e por quanto tempopretendemosficar!

— Nossa, Jimmy! Como você tira a poesia das coisas! — censurouPoliana,semprerisonha.

—Éaminha função.Comoéquevocêpensaquevoupoderconstruirponteserepresassenãoenxergaralgomaisqueapoesiadascachoeiras?

—Nãopode, Jimmy!Umaponteéa coisamais importantedomundo!—disseJamie,comumaentonaçãoquefezcomquetodossecalassem,sóporpoucotempo,éverdade,poisSadiequebrouosilêncio:

—Euprefiroumacachoeira,semnenhumaponteporcima!Todosriram,eoambientesedesanuviou.Ruthseergueu:— Está bem, pessoal. Na condição de acompanhante responsável,

anuncioqueéhoradeirparaacama!Ecomumalegrecorodeboas-noites,ogruposedesfez.OsdiassepassavameeramparaPolianamaravilhosos,sobretudopelo

encanto daquela camaradagem. Conversou com Sadie sobre o novo Lar

paraMoçaseotrabalhoqueRuthCarewcumpria.Etambémparalembrarosvelhostempos,quandoSadietrabalhavaportrásdobalcãoedetudooqueRuth izeraparaajudá-la.Sadiefaloudospais,“láemsuaterra”,edecomoavidadelesmelhoraracomasituaçãonovaemqueseencontravaafilha.

—Foiporsuacausaquetudocomeçou—disseSadie.—Tolice!—contestouPoliana.—AsenhoraCarew,sim,tudosedevea

ela.Com a própria Ruth, Poliana conversou a respeito do Lar e de outros

planosquetinhaemfavordasmoçasquetrabalhamfora.E,talcomoSadieDean,RuthCarewconcluiu:

— E tudo isso se deve a você... — O que fez Poliana mais uma vezprotestar, pondo-se então a falar de Jamie. — É um rapaz de ouro —admitiuRuth, comafeto.—Gostodelecomose fossemeu ilho, comonãogostariamaisdelesefossemesmoomeusobrinho.

—Achaentãoquenãoé?—Não sei. Nunca chegamos a uma conclusão. Às vezes, penso que é,

mas, depois, volto a duvidar. Acho que ele acredita que seja, e Deus oabençoe!Deumacoisatenhocerteza:Jamieédeboalinhagem.Vocêsabe,ele sempre foi ajuizado e tem a capacidade de aprender facilmente, nãoimportaoquê.

—Eusei—concordouPoliana.—Ejáqueasenhoragostatantodele,queimportaseeleéounãooverdadeiroJamie?

—Nãonoquemetoca—disseRuth,depoisdepequenahesitação.—Ficopensando:seelenãoéonossoJamie,onde,então,estaráJamieKent?Estará bem? Será feliz? Alguém o ama? Quando penso nisso, quaseenlouqueço. Daria tudo o que tenho para saber se esse rapaz é mesmoJamieKent.

Nasconversasqueteve,depois,comJamie,Polianaserecordoudessaspalavras.Confiante,Jamiedisseaela,certavez:

—Hácoisasqueagentesente.AchoquesouJamieKent.Acreditonissohábastantetempo,masachoquenãosuportariadescobrirquenãosou.AsenhoraCarewfezmuitopormim.Imagine,a inal,seela icarsabendoqueeusoumesmoumestranho!

—Maselagostadevocê,Jamie.— Sei disso, e é o queme aborrecemais. Iria fazê-la sofrer. Ela quer

queeu sejao Jamieverdadeiro, eu sei. Se eupudesse fazer alguma coisaporela,fazê-laorgulhar-sedemim!Seaomenoseupudessefazeralgumacoisaparamesustentar!Masquepossofazercomisto?—Jamiemostrou

asmuletas,aolado.Poliana icou chocada. Era a primeira vezqueouvia Jamie falar sobre

sua invalidez,desdequeeramcrianças.A lita, tentoudescobriroque lhepoderiadizer.Mas,antesdearticularumapalavra,orostodeJamiesofreucompletatransformação:

— Deixe isso de lado! — exclamou. — Não queria falar nisso; umaheresiadiantedo jogodocontente,nãoé?Estoufelizporquepossoandardemuletas.Émelhordoquesópoderandarnacadeiraderodas!

—EoLivrodaAlegria?—indagouPoliana.—Continuaaescrevê-lo?— Claro! Já tenho uma biblioteca de Livros da Alegria, todos

encadernados em couro vermelho escuro, menos o primeiro, que é omesmocaderninhodenotasqueJerrymedeu.

— Jerry! É o cúmulo! — exclamou Poliana. — Até agora não tinhaperguntadoporele!Porondeanda?

—EmBoston.Seuvocabuláriocontinuapitorescocomosempre,sóqueàsvezestemdemoderá-lo.Aindamexecomjornais,mascolhendonotíciasenãovendendo-as.Érepórter.Tiveoportunidadedeajudá-loeaMumsey,e você pode imaginar como isso me deixou alegre. Mumsey está noHospital,tratandodoreumatismo.

—Estámelhor?— Sim, vai ter alta em breve e voltará a morar com Jerry, que tem

estudado bastante ultimamente. Ele aceitou minha ajuda, mas só comoempréstimo.Fezquestãodequefosseassim.

— E fez bem — disse Poliana. — É muito desagradável dever sempoderretribuir.Seidisso.Nomeucaso,queroajudartiaPaulinaportudooqueelafezpormim.

—Bem,vocêatemajudadobastantenesteverão.— Só tenho cuidado de alguns hóspedes. Acho que não falhei, não é

mesmo?—Polianasorria,con iante.—Nuncahouveumadonadepensãoigualamim!Vocêdeviaouvirasprevisõesde tiaPaulinasobreosnossoshóspedes!

—Quaisforam?—Nãopossorevelar.Éumsegredomortal.Mas...—Parounomeioda

frase, comumsuspiro, edepois continuou:— Istonãovaidurar, sabe—disse Poliana.—Hóspedes de verão só icam durante o verão. Tenho dearranjaralgumacoisanoinverno.Bem...achoquevouescreverhistórias.

—Vaioquê?—perguntouJamie,surpreso.— Vou escrever histórias para vender. Não precisa icar espantado.

ConheciduasmoçasnaAlemanhaquefaziamisso.

—Jáexperimentoualgumavez?—indagouJamie.—Aindanão—admitiuPoliana.—Atéporque, agora, estouocupada

comoshóspedesenãosepodefazerduascoisasaomesmotempo.—Claroquenão—concordou Jamie,enquantoPoliana lhedirigiaum

olhardecensura.—Vocêachaquenãopossoescrever?—Nãodisseisso.—Mas pensou.Não sei por que não hei de poder.Não é como saber

cantar. Para isso tem se que ter boa voz. Não é, também, como uminstrumento,queagentetemdeaprenderatocar.

—Pareceumpoucoisso—disseJamie,semencararPoliana.— Que está dizendo?— quis saber amoça.— Ora, Jamie! Basta um

lápisepapel!Nãoécomoaprenderpianoouviolino!Fez-seumsilêncioe,depois,veioa respostanaquelavozabafadaeos

olhosvoltadosparaoutradireção:—O instrumento que você toca, Poliana, será o coração domundo e,

paramim, é omaismaravilhoso instrumento de todos. Com a sua ajuda,este instrumento farámilagres e, de acordo com sua vontade, produzirásorrisosoulágrimas.

— Oh, Jamie! — exclamou Poliana, com os olhos úmidos. — Você seexpressa com tantabeleza!Nuncapensei nisso.Mas é assimmesmo, nãoé?Eugostariamuitodepoderfazerisso!Talveznãosejacapaz,mastenholidoalgunscontosnasrevistaseacreditoquesoucapazdeescrevercontosiguais.Gostode contarhistórias.Repito sempreasquevocê contae rio echorodomesmomodoquandoévocêqueestácontando.

—Seráque eu iz você rir e chorar, Poliana?Verdade?—perguntouJamie,voltando-separaela.

— Claro, e você sabe disso— respondeu a moça. — Desde aquelestemposdoPasseioPúblico.Ninguémsabecontarhistóriascomovocê.Vocêéquedeviaescrever,enãoeu.Diga-meumacoisa:porquenãoescreve?

Não houve resposta: Jamie pareceu não ter ouvido, talvez porque,naquele instante, estivesse entretido com um esquilo que explorava umamoitaaliperto.

Não foi sempre com Jamie, ou com Ruth e Sadie, que Poliana fezcaminhadase travouconversas.Muitasvezes foi com Jimmyoucom JohnPendleton. Ela estava convencida agora de que não conhecera JohnPendleton até então. O antigomutismo e a tristeza haviam desaparecido,desdequechegaramaoacampamento.Eleandava,nadavaepescavacomomesmoentusiasmodeJimmy,quasecomigualvigor.Ànoite,emvoltada

fogueira,quaseque rivalizavacom Jamiecomocontadorde casos, fossemdivertidos ou emocionais, acontecidos com ele em suas viagens aoestrangeiro.

Melhor que isso, segundo Poliana, era quando John Pendleton, a sóscom ela, falava de sua mãe, que conhecera e amara no passado. IssocausavaalegriaesurpresaaPoliana,pois jamais JohnPendletonhaviasereferido com tanta franqueza àmulher que havia amado em vão. Talvezeleprópriosesentisseadmirado,poiscertavezdisse,pensativo,àmoça:

—Nemseiporquefalodissoavocê...—Foibomosenhorterconversadocomigo.— Eu sei. Só que nunca pensei em falar. Deve ser porque você se

parece com ela, no tempo em que a conheci. Vocême lembramuito suamãe,minhafilha.

—Como?!—exclamouPoliana.—Penseiqueelafossemuitobonita.—Eera—dissePendleton,sorrindocomcertaironia.—Então,comoéquedizqueelasepareciacomigo?— Bem, Poliana, se algumas moças tivessem dito que... — Pendleton

sorriu.—Ora, fazdecontaqueeunãodisse.Coitadinha, tão feia, tãosemgraça!

— Por favor!— exclamou Poliana, séria.— Não brinque comigo. Eugostaria de ser bonita, embora seja tolice dizer isso. E tenho um espelho,sabe?

— Então, eu a aconselho a se olhar no espelho — retrucou JohnPendleton,emtomsentencioso.

—Jimmymedisseamesmacoisa!—lembrouPoliana.—Então,omalandrojálhefalou.—EPendletonacrescentou,mudando

de tom:—Você temos olhos e o sorriso de suamãe, Poliana. Paramim,vocêélinda.

Polianaemudeceuelágrimaslhechegaramaosolhos.Pormaisagradáveisquefossemaquelasconversas,nãoeramemnada

semelhantes às quemantinha com Jimmy. De fato, Poliana e o rapaz nãoprecisavam falarpara se sentiremalegresquandoestavam juntos. Jimmysemostrava semprebem-disposto epouco importava se conversavamounão—eleerasemprecompreensivo.Oafetoqueamoçasentiaporelenãose toldava com dó ou preocupação — Jimmy era forte e feliz. Não seimaginava um sobrinho desaparecido, não tinha de se morti icararrastando um par de muletas. Com Jimmy, tudo podia ser alegre edespreocupado. Jimmy era um encanto. E sempre era o mesmo, sempreeraJimmy!

Capítulo23:Presoaumpardemuletas

Olamentávelfatoocorreunoúltimodiadeacampamento.ParaPoliana,

foi a primeira nuvem que lhe toldou o coração durante o passeio,tornando-a triste e fazendo-a murmurar para si mesma: “Por que nãovoltamosparacasaontem?Issonãoteriaacontecido...”

Só que não tinham voltado na véspera. Eis o que houve: pelamanhãdaquele último dia, os excursionistas iniciaram uma caminhada de poucomaisdemeialégua,unsquatromilmetros,atéaBacia.

— Pescaremos mais uma vez antes de irmos embora — sugeriraJimmy,etodosconcordaramdeboavontade.

Depois da primeira refeição e levando seus caniços, partiram cedo,seguindo o estreito caminho por entre os bosques e guiados por Jimmy,queoconheciamelhor.

Poliana, a princípio, seguia ao lado de Jimmy, mas, aos poucos, foiicando para trás, juntando-se a Jamie, o último da ila. Amoça notou norostodo inválidoamesmaexpressãoqueviraantes,quandoele faziaumesforçomaior.Sabiaquenadaoofenderiamaisdoquedeixá-loperceberisso.Etambémsabiaquedela,maisquedeoutro,eleaceitariaumaajudaocasional.Assim,naprimeiraoportunidade,começouaretardarospassos,até alcançar o seu objetivo, que era Jamie. Sentiu-se imediatamenterecompensadapela alegria re letidanosolhosdo rapaz epela segurançacomqueeleenfrentouevenceuumobstáculorepresentadoporumtroncocaí-do no meio do caminho, com a lisonjeira observação (estimulada porPoliana)dequeaestava“ajudandoapassar”.

Saíram do bosque e seguiram ao longo de um velho muro de pedra,avistando ensolaradas pastagens subindo pelas encostas enquanto aolongesurgiaumapitorescacasadefazenda.Emcertoponto,Poliananotoualgumasfloresdocampoegritou:

— Veja, Jamie! São lindas! Vou apanhá-las para enfeitar a mesa dopiquenique.—Epulouparaooutroladodomuro.

As loreseramatraenteseseespalhavamemquantidadepeloterreno.Pedindo a Jamie que icasse esperando, Poliana, que usava um suétervermelho bem-assentado, correu por entre as lores para aumentar acolheita.Tinhaasmãos cheiasquandoouviuomugidoapavorantedeumtouro,ogritoaflitodeJamieeotropeldoanimaldescendoaencosta.

Amoça não icou sabendo ao certo o que depois lhe aconteceu. Sabia

que tinha atirado fora as lores e corrido, como jamais acreditara que opudessefazer,emdireçãoaomuroeaJamie.Sabiaqueotropeldoscascosse aproximava, cada vez mais. Vaga e desesperadamente, e bem à suafrente, viu o rosto angustiado de Jamie e ouviu seus gritos de horror.Depois,avozdeJimmy,gritandoparainfundir-lhecoragem.

Poliana continuou a correr e, a certa altura, tropeçou e quase caiu.Equilibrou-se e prosseguiu em disparada. Sentia que as forças já lhefaltavamquando,de repente,pertodela,ouviudenovoavozestimulantedeJimmy.Logodepois,viu-seerguidadochãoesentindoalgoquepulsavacom força. Percebeu que eram as batidas do coração de Jimmy, que aapertavacontraopeito.Obarulhodaspatasestámaispróximo.Equandopensou que os cascos do animal iam esmagá-la, e sempre nos braços deJimmy,viu-seempurradaparaumlado,nãodistanteosu icienteparaquedeixasse de ouvir a respiração do touro enfurecido, ainda a investir. Emseguida, sentiu como se estivesse do outro lado do mundo, com Jimmydebruçadosobreelaeimplorando-lhequedissessequeestavaviva.

Rindohistericamenteesoluçandoaomesmotempo,desvencilhou-sedeseusbraçosesepôsdepé,dizendo:

— Estou viva, Jimmy! Graças a você. E estou bem. Você nem podeimaginarminhaalegriaquandoouvisuavoz!Comofoiqueconseguiufazerisso?

—Ora...—protestouJimmy.—Nãofoinada.Eusó...Umsoluçoabafadoquevinhadepertointerrompeu-o.Jimmysevoltou

eavistou Jamie,no chãoe como rostoescondido.Poliana já correraparaajudá-lo.

—Quefoi,Jamie?—perguntou,aflita.—Vocêcaiu?Estámachucado?Nãohouveresposta.— E então, meu velho? Você se machucou? — perguntou Jimmy,

examinando-odeperto.Aindadessaveznãohouveresposta.Depois,Jamiesentou-senochãoe

se virou. Quando lhe viram o rosto, Poliana e Jimmy icaram surpresos econsternados.

—Machucado?Seestoumachucado?—Jamieestendeuosdoisbraços.— Vocês acham que não machuca a gente ver uma cena daquelas sempoderfazercoisaalguma?Permanecerinerte,presoaumpardemuletas?Nãohánadanomundopiordoqueisso!

—Mas...mas...Jamie...—gaguejouPoliana.— Não fale, por favor! — pediu o inválido em tom quase áspero e

levantando-secomdificuldade.—Nãoqueriafazerumacenacomoesta.—

Etomouocaminhoquelevavaaoacampamento.—Foiduroparaele!—exclamouJimmy,logodepois.—Eunãore letieagradeciavocêdiantedele—lamentouamoça.—

Viucomoasmãosdelesangravam?Enterrouasunhasnacarne.—Esaiupelocaminhotropegamente.

—Ondeéquevai,Poliana?—perguntouJimmy.—ProcurarJamie.Nãopossodeixá-loassim.Vamos!Jimmydeuumsuspiro,quepor certonãoerapor causade Jamie, e a

seguiu.

Capítulo24:Jimmydesperta

Proclamou-sequeoacampamentofoiumsucesso.Masnaverdade...Às

vezes,Polianaimaginavaseforasócomelaousetodoshaviamsentidoumconstrangimentoinde inível.Quantoàcausadisso,semhesitarelaatribuiuaoqueaconteceranoúltimodia,comomalfadadopasseioàBacia.

Era verdade que Jimmy tinha alcançado Jamie e, depois de muitaconversa, convencera-o a voltar a reunir-se aos demais. E apesar dosesforços de todos para agirem como se nada de extraordinário tivesseocorrido,ninguémpôdeserbem-sucedidonaempreitada.Poliana,JamieeJimmy exageraram sua alegria. Os outros, sem saber o que haviaacontecido, sentiamquealgonãoandavabem, embora tentassem ingirocontrário. Assim, em tal situação, era impossível desfrutar-se detranquilidade e bem-estar. Mesmo o esperado jantar de peixe foi semgraça.Antesdahora,ogrupotratoudevoltarparaoacampamento.

De volta à casa, Poliana esperava que o episódio fosse esquecido. Sóquenãopodiadeixardese lembrardocasoe,assim,nãopodiacensurarosoutrosporse lembraremtambém.PensavanaquilosemprequeolhavaparaJamie.Viadenovoosofrimentoemseurosto,osangueemsuasmãos.Sofriaporcausadele,atalpontoquesuasimplespresençaeraumsuplícioparaela.Comremorso, tevedeadmitir, para simesma,que jánão sentiaprazer em conversar com Jamie, o que não a impedira de estar muitasvezes com ele. De fato, icava ao seu ladomais vezes do que antes. Commedodequeorapazpercebesseseuestadodeespírito,nãoperdiaocasiãode corresponder às suas manifestações de afeto. Às vezes, ela própriatomavaainiciativadeprocurá-lo.Nãoprecisavafazerissocomfrequência,até porque Jamie, com intensidade, tentava estreitar os laços de amizadecomela—oquedesuapartenãodeviaserestimulado.

Omotivode tudo, acreditavaPoliana, estavano incidente como tourobravo e no socorro que lhe fora prestado.Não que Jamie se referisse aocaso diretamente— não o faria jamais. Mostrava-se mais alegre que dehábito. Mas Poliana tinha a impressão de sentir, por trás daquelaexpansão,umaamarguraqueantesnãoexistia.Às vezes, Jamie evitava acompanhia dos outros e não continha um suspiro de alívio quando tinhaocasiãode icarasóscomPoliana.Estapensouquesabiaoqueolevavaaagir desse modo, depois do que ele lhe disse, um dia, quando viam osoutrosjogandoumapartidadetênis:

—Nãoháninguém,Poliana,capazdemecompreendercomovocê.—Compreender?—Amoçanãoentendeu,aprincípio,oqueeleestava

querendodizer.Faziacincominutosqueviamojogosemtrocarpalavras.—É isso, Poliana—disse Jamie.—Você também já icou sempoder

andar.—Ah!...sim...—gaguejouPoliana,percebendoqueaexpressãodeseu

rosto re letia perfeitamente o que lhe ia na alma, pois Jamie tratou demudardeassunto,dandoumarisada:

—Vamos,Poliana,porquenãomepedeparafazerojogodocontente?Eu teria pedido, em seu lugar. Desculpe-me. Fui um idiota, fazendo vocêficarassim.Esqueçaisso!

—Não,não!Porfavor!—protestouPoliana,esforçando-separasorrir.Não se “esqueceu”—nãopodia. E tudo a tornou aindamaisdesejosa

deficaraoladodeJamieeajudá-locomopudesse.“Deagoraemdiante,queromostrarquesó icosatisfeitaquandoestou

ao seu lado!”, pensou, quando, pouco depois, dispôs-se também aparticipardojogodetênis.

Poliananãoera aúnicadogrupo tocadapelo constrangimento. JimmyPendleton sentia o mesmo e procurava escondê-lo. De um jovemdescuidado que encarava o futuro com con iança, transformara-se nummoço ansioso que vê o rival lhe roubando a mulher que amava. Sabiaagora que estava apaixonado por Poliana e que isso já vinha de muitotempo:via-se,porém,abaladoeimpotentediantedoquetinhaacontecido.Sabiaquemesmoosseusprojetosdeserumgrandeengenheirodenadavaliamemfacedaexpressãodosolhosedaspalavrasquesaíamdoslábiosde umamulher. Compreendeuque amaior preocupação de sua vida eraaquelemisto de temor e de dúvida que surgira em seu caminho: dúvidaporcausadePoliana,temorporcausadeJamie.

Quando viu Poliana em perigo de vida, naquele dia no campo,compreendeu como omundo— o seumundo— icaria vazio sem ela. Eduranteaquelacorridadevidaoudemorte,comPoliananosbraços,pôdesentirquantoelalheerapreciosa.Poruminstante,apertando-lheocorpocontraoseu,sentiuquerealmenteelaerasua.Emesmonaquelemomentosupremodeperigoteveaemoçãodasupremaventura.Depois,maistarde,viraorostodeJamieesuasmãossangrando. Issosópodiasigni icarumacoisa:JamietambémamavaPoliana,etevequepermanecerinerte,“presoa duas muletas” — fora o que dissera. Jamie, inerte, “preso a duasmuletas”, enquanto outro homem socorria e salvava a mulher que ele

amava.Jimmyvoltaraparaoacampamento,naqueledia,comumturbilhãona

cabeça, mistura de temor e revolta. Imaginava se Poliana se interessavapor Jamie — disso vinha o seu temor. E mesmo que ela não estivesseinteressada, deveria ele próprio manter-se de lado, deixando que Jamie,semesforçoalgum,fizesse-ainteressar-seporelecadavezmais?Aíresidiaa origem da revolta. Não, não poderia resignar-se, decidiu. Entre os doisdeveriatravar-seumalutaleal.

Tendoa simesmocomoúnico interlocutor, Jimmynãopôdedeixardecorar.Poderiaser “leal”uma lutaentreelee Jamie?Sentiu-sede repentecomoanosantes,quandoaindameninodesa iaraoutrogarotonadisputadeumamaçãqueambosqueriam,eviuqueoadversário tinhaumbraçoaleijado: deixou, de propósito, que o aleijado o vencesse. Agora, porém, ocaso era diferente. Não estava em jogo uma maçã, e sim a felicidade deumavida.PodiasertambémafelicidadedavidadePoliana.Talvezelanãose interessassepor Jamiee simporele, Jimmy, seuvelhoamigo.Bastariaqueelelhemostrassequedesejavaoseuinteresse.Eeleiriamostrar...

Mais uma vez sentiu um fogo no rosto e fechou a cara, furioso. Se aomenos pudesse esquecer a desolação de Jamie quando lamentava viver“presoaduasmuletas”!Seaomenos...Dequeadiantava,porém?Nãoeraumalutaleal,eelesabiadisso.Oumelhor, icousabendoapartirdeentão.Sua decisão estava tomada: observar e esperar. Daria a Jamie umaoportunidade. E se Poliana mostrasse que se interessava mesmo, ele seafastaria de suas vidas e nenhum dos dois saberia quanto ele sofrera.Voltaria às suas pontes, como se elas pudessem se comparar a Poliana.Masfariaisso—tinhadefazê-lo.

Eraumadecisãoheroica,eJimmy icoutãoexaltadoquepareciaquasefeliz quando, a inal, adormeceu naquela noite. Mas o martírio em teoriadifere bastante do martírio na prática, como se sabe desde temposremotos.UmacoisaeraresolversozinhonaescuridãodoquartoqueJamiemerecia ter sua oportunidade. E outra, muito diferente, era aceitar quePoliana e Jamie estivessem juntos sempre que os via. Além disso, ele sepreocupavacomaaparenteatitudedelaparacomoinválido.Eracomoseelaseinteressassemuitopelorapaz,tãopreocupadacomoseubem-estare desejosa de demonstrar que gostava de lhe fazer companhia. Depois,comoparaesclarecerqualquerpossíveldúvidaporpartedeJimmy,SadieDeanlhefaloucertodiaarespeitodoassunto.EstavamnaquadradetêniseSadiesentada,sozinha,quandoJimmyseaproximoudelaeperguntou:

—VaijogarnapróximapartidacomPoliana,nãovai?

—Poliananãovaijogarmaisestamanhã—disseamoça.—Eporquê?—estranhouJimmy,queesperavadisputarumapartida

comPoliana.Sadie icousemresponderdurantealgum tempoedepois, comvisível

esforço,informou:—Elamedisseontemànoitequeestamos jogando tênisemdemasia.

NãoébomparaJamieCarew,quenãopodejogar.—Eusei,mas...— Jimmynãocontinuou,nãosabiaoquedizere, logo

em seguida, teve uma certa surpresa com a entonação da voz de SadieDean,quedizia:

—Maselenãoquerquenenhumdenósdeixede fazeras coisasporcausadesua invalidez.Éoquemaisoaborrece.Poliananãoentende!Eu,sim,compreendo.Elapensaquesabeoqueestádizendo.

Algo nas palavras de Sadie ou no modo de pronunciá-las provocousúbita compaixão em Jimmy. Quis fazer uma pergunta, hesitou e, a inal,falou:

—Acha, por acaso, que existe algum interesse especial entre os dois,umpelooutro,ounão?

—Aindanãonotou?—Amoçalhelançouumolharsarcástico.—Elaoadora!Oumelhor:osdoisseadoram.

Jimmynadadisse.Virouascostaseseafastou.NãodesejavacontinuaraconversarcomSadie.Enemreparouque tambémSadieDeanviraraascostasesepôsaolharagramaaseuspés,comosetivesseperdidoalgumacoisa.Eraevidentequetambémnãoqueriafalardaqueleassunto.

JimmysaiupensandoquenãoeraverdadeoqueSadiedissera.Ofatoéqueverdadeounão,aquilonãolhesaíadacabeça...Ediantedeseusolhospareciaumasombra—semprequeviaPolianaeJamiejuntos.Observavaa isionomia dos dois, prestava atenção ao tom de suas vozes. E concluiuque era verdade, sentindo no coração um peso mais forte. Fiel à suapromessa,afastou-se,resoluto.Asorteestavalançada—diziaasimesmo.Poliananãolheeradestinada.

Os dias seguintes não trouxeram sossego a Jimmy. Não se atreveu aafastar-sedetododamansãoHarrington,commedodeveroseusegredodescoberto, e mesmo sabendo que icar com Poliana era, agora, umatortura. Mesmo com Sadie era desagradável— não podia esquecer quefora ela que a inal lhe abrira os olhos. Jamie, é claro, poderia ser umacompanhia amena em tais circunstâncias. Restava apenas Ruth Carew, eJimmy só encontrava consolo em sua companhia. Alegre ou sisuda, elasempreachavaaatitudeadequadaeerasurpreendenteveri icarcomose

mostrava bem-informada a respeito de pontes, as pontes que ele iriaconstruir.Alémdomais,eraatenciosaecompreensiva,sabendosempreapalavracertaquedeviadizer.

Certodia, Jimmyquase lhe faloudo“embrulho”,mas JohnPendletonointerrompeu e a conversa mudou de rumo. Pendleton sempre osinterrompianoinstanteerrado,pensavaJimmy,àsvezes,umtantoirritado.Mas,aose lembrarde tudoque JohnPendletonhavia feitoporele, sentiaremorso.

O “embrulho” era uma coisa que vinha da infância de Jimmy e quenunca fora mencionada a ninguém, exceto a John Pendleton, e somenteuma vez, quando adotara o menino. O “embrulho”, na verdade, era umenorme envelope branco, gasto pelo tempo e fechado com um selovermelho. Fora entregue a Jimmypelopai e trazia, por fora, as seguintesinstruções,escritaspelamãodopai:

“Parameu ilho Jimmy.Não deve ser aberto senão no dia emque eleizer 30 anos, amenos no caso de suamorte, quando, então, deverá serabertoimediatamente.”

Emalgumasocasiões,Jimmysepunhaaimaginaroquehaveriadentrodaquele envelope. Outras vezes, esquecia se de sua existência. Quandoestavanoorfanato,viviacommedodequeoenvelope fossedescobertoefurtado. Guardava-o sempre no forro da roupa. Nos últimos anos, porsugestãodeJohnPendleton,o“embrulho”foirecolhidoaocofredacasa.

— Não sabemos se é valioso— explicara. — De qualquer modo, euqueriaquevocêoguardasse,enãosepodecorreroriscodeperdê-lo.

— Claro que não quero perdê-lo — concordou Jimmy. — Não acho,porém,quetenhagrandevalor.Meupainadatinha,eusei.

Fora aquele “embrulho” que Jimmy quase estivera a ponto demencionar à senhora Carew, certo dia. E o teria feito, se John Pendletonnãootivesseimpedido.

“A inal”,pensouJimmy,depois,quandovoltavaparacasa,“talveztenhasido bom não lhe ter falado. Ela podia pensar que meu pai procuravaesconder, em sua vida, algo que não fosse correto. Não quero que façamestejuízodemeupai”.

Capítulo25:OjogodocontenteePoliana

Antesquesetembrochegasseàmetade,osCareweSa-dieregressaram

a Boston. Embora sentindo separar-se deles, Poliana suspirou de alívioquandoviuotremseafas-tar,nãoquerendoqueninguémpercebessequese sen-tia aliviada.E tratoude sedesculpar,mentalmente: “Nãoéqueeunão goste deles”, pensou, enquanto o trem sumia de vista. “É que... eusofriaotempotodo,compenadeJamie...eestoucansada.Vaiserbom,poralgumtempo,voltaràtranquilidadedosvelhosdias,comJimmy.”

Nãovoltouà tranquilidadedosvelhosdias,comJimmy.Osdiasqueseseguiramàpartidadosvisitantesforamcalmos,éverdade,masnãoforampassados “com Jimmy”. Este raramente aparecia e, quando aparecia, nãoera omesmo Jimmy que Poliana conhecia.Mostrava-se calado, ou, então,alegre e falante, mas visivelmente nervoso, o que era intrigante. Poucodepois, Jimmy foi para Boston e, naturalmente, Poliana não o encontroumais.

Amoçaficousurpresaaoconstatarquesentiaasuafalta.Saberqueelese encontrava na cidade e que havia a possibilidade de vê-lo eramelhorque o vazio da ausência. E mesmo sua nova atitude de mutismo eexuberância alternados era melhor que o silêncio do afastamento. Certodia,derepente,ajovemsentiuquesuasfaces icaramencaloradas.Edissea si mesma: “Então, Poliana Whittier, não me venha dizer que estáapaixonadaporJimmyBeanPendleton!Seráquenãopodepensarnoutracoisa,senãonele?”

Daliemdiante, fezesforçospara icaralegreedespreocu-padaetirarJimmyBean Pendleton do pensamento. Embora sem intenção, tia Paulinaajudou-a.Éque,comapartidadosCarew,tambémforaemboraaprincipalfonte de receita da casa— e Paulina Chilton voltara a se preocupar comsuasituaçãofinanceira.

—Não sei, Poliana, o que vai ser de nós— dizia com frequência.—Ainda temos um dinheirinho e uma pequena renda, mas não sei atéquandoissovaidurar.Seagentepudessefazeralgoparaganhardinheiro!

Depoisdeterouvidomuitas lamentaçõessemelhantes,Poliana leuporacaso um anúncio sobre um concurso de contos. Era sedutor, comnumerosos e valiosos prêmios. Tinha-se a impressão de que ganhar oconcurso era a coisa mais fácil do mundo. O anúncio incluía um conviteespecial,quepareciatersidoexpressamentedirigidoaPoliana:

Atenção,vocêqueestálendoesteanúncio.Vocêjamaisescreveuumconto

antes?Issonãoquerdizerquevocênãopossaescreverum.Experimente, sóisso.Nãogostariadeganhartrêsmildólares?Doismil?Mil?Quinhentos, oumesmocem?Então,porquenãotenta?

—Ótimo!— exclamou Poliana.— Foi bom eu ter visto o anúncio, eu

também posso participar. Acho que posso, é só tentar. Vou dizer à tiaPaulinaquenãoprecisamosnospreocuparmais.

Já a caminho, outra ideia lhe deteve os passos: “Pensando, bem, émelhornãocontar”,re letiu.“Émelhorlhefazerumasurpresa!”Enaquelanoite, Poliana foi dormir projetando o que iria fazer com os três mildólares.

Começouaescreverocontonodiaseguinte.Cheiadesi,arrumouumaboaquantidadedepapel,fezapontaemmeiadúziadelápisesentou-seauma escrivaninha na sala de estar. Depois demorder as pontas de doislápis,escreveunopapeltrêspalavras.Deu,então,umsuspiro,atirouparaum lado o segundo lápis estragado, e apanhou um lápis verde, de pontabenfeita.Tinhaumaruganatesta.

“Que coisa!”, pensou. “Não sei como eles arranjam os títulos. Achomelhor escrever o conto antes e depois pensar num título. De qualquermaneira, não vou desistir.” Riscou as palavras que já havia escrito epreparouolápisparanovainvestida.

Nãorecomeçoulogo.Quandoofez,foiumfalsocomeço,pois,ao imdemeiahora,opapelestavacobertodepalavrasriscadas—apenasaquiealialgumaspoucasquehaviamsobradoparacontarahistória.Aestaaltura,tiaPaulinaapareceunasala:

—Queéquevocêestáaprontandoagora,Poliana?— Nada demais, titia— respondeu Poliana, rindo e desapontada. —

Por enquanto ainda não iz nada — admitiu com desalento. — É umsegredo,enãopossodizer.

— Pois ique à vontade — disse Paulina. — Mas se está querendodecifraralgodiferentenaquelasescriturasdehipotecaqueosenhorHartdeixou,éinútil.Jáasexamineiduasvezes.

— Não é nada disso. Trata-se de algo mais interessante. — A moçavoltouaotrabalho,estimuladapeloprêmiodetrêsmildólares.

Por uma meia hora, Poliana escreveu e rasurou o que havia escrito,mordendo alguns lápis. Depois, abatida mas não desanimada, juntoupapéiselápisesaiudasala,pensando:“Achomelhorescreverláemcima.

Pensei que seria bom usar a escrivaninha porque se tratava de umtrabalho literário. Mas isso de nada adiantou. Vou escrever em meuquarto.”

Mas o quarto não lhe proporcionoumaior inspiração, a se julgar pelonúmerode laudasrabiscadasede lápismastigados.LogoPolianaviuqueerahoradejantar.Epensou:“Émelhorprepararojantardoqueescreverumconto.Nuncaimagineiquefossetãodifícil!”

No mês seguinte, Poliana trabalhou bastante, mas cada vez seconvenciamaisque “escreverumconto”não era tarefa fácil. Amoçanãoeradessaspessoasquedesistemdiantedasdi iculdades.Ehavia trêsmildólaresemjogo,ouumdosprêmiosmenores,senãoconseguisseganharoprimeiro. Cem dólares, mesmo, já signi icavam alguma coisa. Assim, diaapósdia, elaescreveu, corrigiu, tornouaescrevere, inalmente, escreveuumconto.E,nãodetodoconfiante,levou-oaMillySnowparadatilografá-lo.

“Atéqueestábom,istoé,temsentido”,iapensandoPoliana,aindacheiadedúvidas,acaminhodacasadeMilly. “Éumahistóriaverdadeirasobreumamoçaencantadora.Masestoucommedo.Algumacoisanãomesoadetodobem.Dequalquermaneira,émelhornãocontarmuitocomoprimeiroprêmio,paranãoficardesapontadaseganharumdosprêmiosmenores.”

PolianasempreselembravadeJimmyquandoiaàcasadosSnow,queicava longe da cidade, pois fora naquela estrada que havia conhecido,anosantes,o fugitivodoorfanato.Pensouneledenovoesentiuocoraçãobater um pouco mais acelerado. Depois, num lance de orgulho, o quesempre ocorria quando pensava em Jimmy, apressou o passo, chegou acasaetocouacampainha.

Comodehábito,foirecebidadebraçosabertos,manifestaçõesdeafetoe, em pouco tempo, todos conversavam sobre o jogo do contente. Emnenhuma outra casa de Beldingsville o jogo era praticado com tantoentusiasmocomoali.

—Comovocêestáindo?—indagouPoliana,depoisdeexplicararazãodesuavisita.

— Muito bem! — exclamou Milly Snow. — É o terceiro serviço quearranjo esta semana. Agradeço muito você me ter feito aprenderdatilografia...possotrabalharemcasa!Devoissoavocê.

—Tolice!—protestouPoliana.— Tolice, nada. Em primeiro lugar, eu não poderia fazer isso se não

fosse o jogo do contente, pois mamãe melhorou e eu iquei com maistempo.Depoisquemeaconselhouaaprenderdatilogra ia,vocêmeajudou

acomprarumamáquina.Devoounãolhedevotudo?Polianamais uma vez a contestou,mas foi interrompida pela senhora

Snow,queestavapertodajanelaemsuacadeiraderodas:— Escute, minha ilha. Você nem sabe direito o que fez. Mas estou

vendo,hoje,umaexpressãoemseusolhosquenãomeagrada.Deveestarpreocupadacomalgumacoisa,estouvendo.Nãoéparamenos:amortedeseu tio, a situação de sua tia, eu entendo. Pre iro não falar disso.Mas háalgoquequerodizerevocêprecisaouvir,poisnãomeconformocomessaangústiaquevejoemseusolhossemtentarafastá-la,dizendo-lheoquefezpormim,porestacidadeepormuitaspessoasemtantoslugares.

—Queéisso,senhoraSnow?!—protestouPoliana.— Sei o que digo, e você sabe do que estou falando — insistiu a

inválida. — Olhe para mim. Quando a conheci, não era eu uma pessoalamurienta,queviviaquerendooquenãopodia teredesesperadacomoquetinha?Vocêentãomeabriuosolhosememostrouqueoqueeutinhacompensavaaquiloqueeunãotinha.

— Quer dizer que eu era tão impertinente assim? — perguntouPoliana.

— Claro que não, ora! Você não queria ser impertinente, eis adiferença. Você não queria pregar sermões, também. Do contrário, nãoteriaconseguidoqueeufizesseojogodocontente.Evejacomoissofoibompara mim e para Milly! Estou tão melhor que já posso me sentar numacadeira de rodas e andar por toda a casa. Isso é formidável, não só paramimcomo,também,paraMilly,quedispõedemaistempoparatrabalharerepousar.Omédicodisseque tudo issonósdevemosao jogodocontente.Muitas pessoas na cidade tiveram o mesmo resultado. Nellie Mahoneyquebrouobraço,e icoutãoalegrepornãoterquebradoaperna,também,que nem se incomodou. A senhora Tibbits icou surda, mas dá graças aDeuspornãoterperdidoavista.Lembra-sedaqueleJoe,apelidadodeJoeEncrenca por causa do seu mau gênio? Não briga mais com ninguém:ensinaram-lhe o jogo do contente, e ele agora é outro homem. Fiquesabendodeumacoisa,minha ilha.Nãoésóemnossacidade,não.OntemrecebiumacartademinhaprimadeMassachusettseelamefalousobreamulher do Tom Payson, que morava aqui. Lembra-se dela? Morava nocaminhoquelevaaomorrodosPendleton.

—Seiquemé—dissePoliana.— No inverno em que você foi para o Hospital, ele mudou-se para

Massachusetts, onde mora minha prima, essa que me escreveu dizendoqueasenhoraPaysonfalouaseurespeitoecontoucomovocêalivrarade

umdivórcio.Agora, o casalpraticao jogodo contenteeo temensinadoamuitagentede lá.Comovê,minha ilha,nãoésóaquiqueoseu joguinhoestáfazendobemàspessoas.Fizquestãoquevocêsoubesse,poisachoquepodelhefazerbemvocêmesmavoltarajogá-lodevezemquando.Nãohádeserdifícilparavocê...

Polianase levantou, sorrindo.Mas tinha lágrimasnosolhosquandosedespediu:

—Obrigada.Àsvezesédi ícil.Talvezeuprecisedealgumaajudaparapraticar o meu próprio jogo. Mas, se não conseguir jogar, icarei alegresabendoqueoutraspessoasopraticammelhordoqueeumesma!

Capítulo26:JohnPendleton

Uma semana antes do Natal, Poliana enviou o seu conto (agora bem-

datilografado)paraparticipardoconcurso.Segundoarevista,oresultadosóseriaconhecidoemabrilePolianasepreparouparaalongaesperacoma paciência de sempre, re letindo: “De qualquer maneira icarei alegredurantemuitotempo,naesperançadeganharoprimeiroprêmio.E,senãoganhar,tereipelomenos icadoalegreessetempotodoetambémpodereimealegrarporreceberumdosprêmiosmenores.”Emsuascogitaçõesnãoentrava a hipótese de não ganhar prêmio algum: parecia-lhe até que ocontojáestavapublicadonarevista.

ONatalnãofoialegrenacasadosHarrington,naqueleano,apesardosesforçosdePoliana.TiaPaulinanãopermitiuqualquercelebração,eassimamoçanãopôdedarpresentesaninguém.

Na véspera doNatal, John Pendleton apareceu. Paulina inventou umadesculpa para não recebê-lo, mas Poliana, cansada da enfadonhacompanhiadatia,acolheu-oefusivamente.Umanuvem,porém,lhetoldouaalegria. Pendleton trouxera uma carta de Jimmy que não falava de outracoisa senão dos planos que ele e Ruth Carew faziam para uma grandecelebração do Natal no Lar para Moças que Trabalham. Impedida defestejar ela própria o Natal, Poliana não estava disposta a ouvir falar decomemoraçõesfeitasporoutrapessoa,especialmentequandoessapessoaeraJimmy.SóqueJohnPendletonnãoencerrouoassuntodepoisqueleuacarta:

—Vaiserumafestaetanto!—comentou,guardandoacarta.—Imagino—concordouPoliana,sementusiasmo.—Éestanoite,não?Gostariadeestarlá.—Claro...—murmurouamoça.— A senhora Carew sabia o que estava fazendo quando convidou

Jimmyparaajudá-la—insistiuPendleton.—Jápensou?JimmybancandooPapaiNoelparacinquentamoçasdeumavez!

—Vaiadorar!—dissePoliana,comalgumesforço.— Pode ser. Só que é diferente de aprender a construir pontes, não

acha?—Achoquesim.—Jimmyéformidável.Apostoqueaquelasmoçasnuncasedivertiram

tantocomovãosedivertirhojeànoite.

—Semdúvida.—Poliananãogostoudeestargaguejando,enquantoseesforçava para não comparar sua situação emBeldingsville, conversandocomPendleton, à situação em que se encontravam Jimmy e as cinquentamoçasemBoston.

Fez-se um rápido silêncio e, olhando pensativo para a lareira,Pendletondisse,afinal:

—AsenhoraCarewémaravilhosa!—Concordo!—Edessavezoentusiasmodamoçaerareal.—Jimmymeescreveucontandooqueelatemfeitoporaquelasmoças

— continuou Pendleton, sempre itando a lareira.—Na última carta, elefaloumuitodeseuprópriotrabalhoetambémarespeitodela.Dissequeaadmirava desde que a conheceu, não tanto quanto agora, que a conhecemelhor.

—Realmente,asenhoraCarewéumamulherextraordinária—dissePoliana.—Gostomuitodela.

—Nãoésóvocê,minha ilha.—EJohnPendletonencarouamoçacomumaexpressãodiferentenafisionomia.

Poliana sentiu um aperto no coração, ferida por súbito pensamento.Jimmy! Estaria Pendleton insinuando que Jimmy se interessava daquelemodoporRuthCarew?

—Osenhorestáquerendodizer...—Masnãopôdeconcluirafrase.—Estoumereferindoàsmoças,naturalmente—esclareceuPendleton,

levantando-se.—Nãoachaqueaquelascinquentamoçasaadoram?Poliana murmurou algo mais pertinente em resposta à explicação de

Pendleton. Mas tinha os pensamentos tumultuados e deixou o resto daconversaporcontadovisitante,enquantodurouavisita.

Pendletonnãosedeuporsatisfeito.Andoupelasala,voltouasentar-see, quando falou, tornou ao mesmo assunto: a senhora Carew. Disse,olhandoparaPoliana:

—É engraçado... aquele Jamie, não é? Será que ele é o seu sobrinho,mesmo?—E,comoPoliananãorespondesse,continuou:—Eleéumbomrapaz. Fiquei gostando dele. Simpático, bem-educado. A senhora Carewgostamuito dele, seja ou não seu parente...— Fez-se nova pausa, e JohnPendleton prosseguiu, com a voz ligeiramente alterada: — É engraçadotambémqueelanão tenhasecasadodenovo,sendo tãobonita.Vocênãoacha?

—Émesmo—concordouPoliana.—Elaélinda.A voz da moça se modi icou. Poliana viu sua imagem re letida no

espelho,enãoseachava“linda”.

Pendleton continuou a falar, sem se preocupar em saber se estavasendo ou não ouvido, como se apenas quisesse falar. Até que, comrelutância,sepôsdepéesedespediu.FaziameiahoraquePolianaestavaansiosaparaque fosseemborae adeixasse sozinha.Mas,depoisqueelesaiu,desejouquevoltasse.Sentiuquenãopodia icarsozinhaapenascomosseuspensamentos.

Para a moça, tudo estava maravilhosamente claro: Jimmy seinteressavapelasenhoraCarew.Porissoéque icaranervosoquandoelapartira.Porissoéquepassaraavirtãopoucoasuacasa.Porissoéque...Pequenosepisódiospassadosafloravamàsuamemória,comotestemunhosquenãopodiamsernegados.

E por que não haveria de interessar-se por uma senhora tão linda eencantadora? É certo que eramais velha do que Jimmy,mas era comumrapazessecasaremcommulheresmaisidosas,desdequeseamassem...

NaquelanoitePolianachorouantesdedormir.Pela manhã, tratou de enfrentar a situação com coragem, pondo à

provaoseujogodocontente.Lembrou-sedealgoqueNancylhehaviaditoalgunsanosantes: “Hánamoradosquenão têm jeitopara fazero jogodocontente...vivembrigando.”EPoliana,então,pensou:“Nãoéqueestejamosbrigando ou mesmo que sejamos namorados, mas posso icar alegreporqueeleestácontenteeelatambém,mas...”Amoçaenrubesceu,enemmesmoparasiprópriapôdeconcluiropensamento.

Convencida de que Jimmy e Ruth Carew se interessavam um pelooutro, Poliana se tornou sensível a tudo que fosse capaz de fortaleceraquela crença e, sempre alerta a tal respeito, não deixou de encontrar oqueesperava.Primeiro,nascartasdeRuth.Numadelas,asenhoraCarewescrevera:

Tenhoestadomuitas vezes com o seuamigo, o jovemPendleton, e cada

vezgostomaisdele.Desejaria (sóde curiosidade)poderdescobrira origemdessaimpressãoqueguardodejátê-lovistoantesemalgumlugar.

Depois dessa carta, frequentemente Ruth se referia a ele e, para

Poliana, a casualidade de tais referências constituía prova indiscutível daassiduidade dos encontros entre os dois — não havia dúvida. Receberatambém cartas de Sadie Dean, falando de Jimmy e do que ele fazia paraajudarasenhoraCarew.OpróprioJimmy,queescreviadevezemquando,concorreu para aumentar a preocupação da moça. Em certa carta, eleescrevera:

Sãodezhorasdanoite.Estousozinho,esperandoasenhoraCarew.Ela e

Sadie, comode costume, ocupam-se com as suas obrigações de assistênciasocial,noLardasMoças.

Se era o próprio Jimmy que lhe escrevia assim, Poliana achava que

devia icarmuitoalegre.Maspensou:“Senãopodefalardeoutracoisaquenão sejam a senhora Carew e aquelas moças, é melhor que não meescreva!”

Capítulo27:OdiaemquePoliananãojogou

Um após um, os dias do inverno se passaram, com neve e granizo.

Março trouxe uma ventania que zunia em torno da velha casa, batendoportas e janelas. Poliana não achava fácil, naqueles dias, entregar-se aojogo do contente, mas ainda assim o praticava. Tia Paulina não seinteressava pelo jogo e isso não facilitava a Poliana fazê-lo. A tia andavaabatida,nãosesentiabemesedeixavadominarpelamelancolia.

Amoça ainda tinha esperança de ganhar o prêmio do concurso,mastransferiratalesperançadoprimeiroparaosprêmiosmenores.Escreveraoutros contos e a regularidade com que eram recusados pelas revistascomeçavaafazê-laduvidardeseuêxitocomoescritora.

“Assimmesmo, ico contente,porque tiaPaulinanão sabedisso”, diziaPoliana para si mesma, enquanto rasgava mais uma carta que devolviaseusoriginaiscomagradecimentos.“Elanãotemdesepreocuparcomisso,nãosabedenada.”

Naqueles dias, a vida de Poliana girava em torno de tia Paulina, masduvidava de que a própria senhora Chilton percebesse como a sobrinhalheeradedicada.Foinumsombriodiademarçoquea situaçãochegouaumpontoquase insuportável.Ao levantar-se, amoçaolharaparao céueicara desanimada. Em dias assim, tia Paulina piorava e se tornava maisdi ícil de ser tratada. Cantarolando, com forçada alegria, a jovem desceuparaacozinhaecomeçouapreparararefeiçãomatinal.

—Achoquevoufazerbolinhosdefubá—disseaofogão.—ÉacoisadequetiaPaulinamaisgosta.

Meiahoradepois,bateuàportadoquartodatia:—Queótimo!Jádepétãocedo.Ejásepenteou,asenhoramesma!— Não consegui dormir — respondeu a tia. — Tive de me levantar

cedoepentearocabelosozinha.Vocênãoestavaaqui.—Pensei que a senhora ainda estava deitada— explicou Poliana.—

Mas a senhora vai gostar quando souber o que eu estava fazendo nacozinha.

— Como é que posso gostar de alguma coisa numamanhã assim?—resmungouPaulina.—Olhe, jáestáchovendo!Éa terceiravezquechoveestasemana!

— Até que isso tem uma vantagem — observou Poliana. — Não hánadamaisbonitoqueumdiadesoldepoisdealgunsdiasdechuva.

Eenquantoajeitavaagoladoroupãodatia,acrescentou:—Agora,venhaverasurpresaquelhepreparei.Vaigostar.Nem mesmo os bolinhos de fubá entusiasmaram Paulina naquela

manhã.Queixava-sede tudo,semcessar.E foiprecisoquePoliana tivessemuitapaciênciaparasemostrarbem-humoradaatéofinaldarefeição.

Para piorar ainda mais a situação, surgiu uma goteira no sótão e ocorreio trouxe uma carta desagradável. Fiel ao seu credo, Poliana disseque,de suaparte, sentia-se feliz coma existênciadeum telhadona casa,mesmo com uma goteira quando chovia. E quanto à carta, já a esperavafazia uma semana. Agora, não tinha que se preocupar com o medo derecebê-la.

Tudo isso, além de outros contratempos, fez com que o trabalho damanhãfosseadiadoparaatarde,paradesgostodametódicatiaPaulina—habituadaaordenarsuavidadeacordocomosponteirosdorelógio.

—Sabeque jásão trêsemeia,Poliana?Evocêaindanãoarrumouascamas.

—Aindanão,titia,masvouarrumar.Nãosepreocupe.—Vocêouviuoqueeudisse?Olheparaorelógio,minha ilha.Jápassa

muitodetrêshoras!—Eu sei, tiaPaulina.Graças aDeus aindanão sãoquatrohoras. Isso

devenosdeixarcontentes.—Bem,vocêpodemesmoficarcontente—respondeuatia.—Sabedeumacoisa,titia?—EPolianadeuumarisada.—Osrelógios

sãobonsquandoagentesabecomoagircomeles.Descobriissohámuito,noHospital.Quandoeuestavaocupadacomalgumacoisaagradávelenãoqueria que o tempo passasse depressa, olhava o ponteiro das horas eachava que o tempo passava devagar. E quando eu fazia uma coisadesagradável,olhavaparaoponteirodosminutose tinhaa impressãodeque o tempo voava. Agora, estou olhandopara o ponteiro das horas: nãoqueroqueotempopassemuitodepressa.Compreendeu?—Esaiudasalaantesqueatiativesseoportunidadedereplicar.

Foi um dia duro, sem dúvida. Quando a noite chegou, Poliana estavapálidaeabatida.EissopreocupouPaulina:

—Vocêestámuitoabatida,minha ilha!Nãoseioquefazer.Achoquevaificardoente!

—Nãoénada, titia,quebobagem!—Poliana seestendeunodivã.—Sóestouumpoucocansada.Nossa!Quedivãgostoso!Estoualegredemesentircansada,poisémuitogostosodescansar!

— Alegre, alegre!— Paulina fez um gesto de impaciência.— É claro

quevocêestáalegre,poissópensaemsesentirassim.Éotal jogo,eusei.Só acho que você leva isso longe demais. Essa história de que “podia serpior” está mexendo commeus nervos. Para falar com franqueza, eu mesentiriaaliviadasevocênão icassecontentecomcoisaalguma,poralgumtempo,éclaro!

—Oquê,titia?!—espantou-sePoliana,levantando-se.—Issomesmoqueeudisse.Experimenteumavezeveja.—Mas,titia...Poliana não continuou e olhou para a tia, pensativa. Um leve sorriso

entreabriu-lhe os olhos. Paulina tinha virado as costas e voltado ao seutrabalho,desatenta.Umminutodepois,semvoltarafalar,Polianatornouasedeitarnodivã,comumsorrisozinhonoslábios.

ChoviadenovoquandoPolianaselevantounamanhãseguinte.Oventocontinuavaauivar.Amoçachegouàjanelaedeuumsuspiro.Logodepois,suafisionomiasealteroueeladisse:

— Estou tão feliz... — Levou as mãos aos lábios, apertando-os emurmurou:—MeuDeus!Jáiaesquecendo!Nãopossomeesquecer,paranãoestragartudo.Tenhoquenãoficarcontentehojecomcoisaalguma.

Não preparou bolinhos de fubá para a refeição matinal. Subiu aoquartodatia,queaindaestavanacama.

—Estáchovendo—dissePaulina,àguisadebom-dia.— Está, sim— con irmou Poliana. — É insuportável. A semana toda

chovendo!Detestochuva!Paulina se virou, surpresa, mas Poliana olhava para o outro lado.

Perguntouàtia,emtomindiferente:—Asenhoravaiselevantaragora?— Vou, sim — respondeu Paulina, ainda surpresa. — Por que

pergunta,Poliana?Estámuitocansada?—Estoucansadíssima.Nãodormidireitoeoquemaisodeioéperdero

sono.Éhorrívellevantarnodiaseguintesemterdormidoànoite.—Eusei—concordouPaulina.—Nãopregueioolho,também,desde

asduashorasdamadrugada.Eaquelagoteira!Quandoéqueagentevaipoderconsertarotelhado,comestachuvaquenãopara?

—Opioréqueapareceuoutragoteira!—dissePoliana.—Outragoteira!Sómefaltavaisso!Polianaquasedisseque,a inal,haviaavantagemdeconsertarasduas

goteirasdeumasóvez,masseconteveefalou:— Estou com medo de que o telhado desabe!— E deliberadamente

virandoo rosto para o outro lado, Poliana saiu do quarto para a cozinha,

dizendoasimesma:“Vouacabaraprontandoumaconfusão.Nãoéfácil.”Emseuquarto,Paulinaestavacadavezmaissurpresa.E teveocasião,

até às seis da tardedaquele dia, de observarPolianamuitas vezes.Nadadava certo com sua sobrinha: o fogo não acendia, o vento rasgou umacortinaeuma terceiragoteiraapareceuno telhadodosótão.Chegoupelocorreio uma carta para Poliana que a fez chorar (e, por mais queperguntasse, Paulina não conseguiu saber o que dizia a carta). Até oalmoço icouruime,à tarde,aconteceramcoisasqueprovocaramqueixaselamentos.

AsurpresanosolhosdePaulinafoisetransformandoemsuspeita.Masse notou isso, Poliana ingiu que não. Antes das seis horas, porém, asuspeita de Paulina se fez convicção. Só que, curiosamente, passou aestampar no rosto uma expressão um tanto irônica. Até que, depois deuma queixa particularmente lamurienta de Poliana, ela ergueu os braçosemgestodedesesperomeiocômico:

— Chega, minha ilha! Confesso-me derrotada em meu próprio jogo.Podeficaralegrecomisso,sequiser.

—Bem,titia,eusei.Masasenhoradisse...—Nãovoudizermais—interrompeuPaulina.—Quedia!Nuncamais

quero passar por outro igual. — Hesitou, corou um pouco, e depoisacrescentou, com di iculdade:— Além disso, quero... que você saiba quenão iz o jogo... muito bem, ultimamente. Agora, vou tentar... Cadê o meulenço?—concluiu,nervosa.

Polianaselevantouecorreuparaela:—TiaPaulina,eunãoqueria...Foisóumabrincadeira.Nãopenseique

asenhorafosseficarassim.—Claroquenão!—exclamouPaulinaChilton,comaasperezadeuma

mulher severa, reprimida, uma mulher que detestava cenas emanifestaçõesdesentimentalismoenãoadmitiaqueosoutrossoubessemqueoseucoraçãoforaafetado.—Achaqueeunãosabiamuitobemoquevocêqueria?Achamesmoque,seeusoubessequevocêsótentavamedarumalição,eu...eu...

Polianaaapertavanosbraçoseelanãopôdeterminarafrase.

Capítulo28:JimmyeJamie

Não era somente Poliana que achava que o inverno custava a passar.

Em Boston, Jimmy Pendleton, apesar dos esforços para ocupar tempo epensamentos, descobria que nada era capaz de apagar a visão de doisrisonhos olhos azuis e nada o faria esquecer o som de uma voz alegre emuitoquerida.Jimmydiziaasimesmoque,senãofosseasenhoraCareweo fato de poder ajudá-la, não suportaria uma vida tão castigada pelasaudade.MesmonacasadeRuthCarewnãoseconseguiasedistrair,poissempreJamieestavalá,eJamieofaziapensarcomtristezaemPoliana.

ConvencidodequeJamieePolianaseinteressavamumpelooutroedequeahonralheimpunhaodeverdenãoapelarparaasuasuperioridadesobre o rival e afastá-lo damulher amada, nunca lhe ocorreu a ideia demelhor se informar.Nãogostavade falaroudeouvir falar sobrePoliana.Sabiaque Jamiee a senhoraCarewrecebiamnotíciasdamoçae, quandoeles falavam a seu respeito, tinha de ouvi-los, apesar de seu sofrimento.Semprequepodia,porém,mudavadeassunto,eascartasqueescreviaaPolianaeramasmaisresumidaspossíveis.Para Jimmy,Poliananadamaiseraquemotivodemágoaedesespero.FicaracontentequandochegaraahoradesairdeBeldingsvilleeretomarseusestudosemBoston:eraumatorturaestarpertodePolianaesentir-setãolongedela,contudo.

EmBoston, com a excitação de umamente que procurava fugir de simesmo, dedicou-se a ajudar a campanha da senhora Carew em favor desuasqueridasjovenstrabalhadoras:otempoquepoupavadosestudoseraempregadonessatarefa,comagratidãodeRuthCarew.

AssimsepassaraoinvernoparaJimmyechegaraaprimavera,alegre,lorida,combrisassuaveserápidaspancadasdechuva,oarembalsamadopelo aroma das lores que brotavam. Mas no coração de Jimmy reinavaaindaoinverno.

“Se eles resolvessem as coisas, anunciando de uma vez o noivado!”,pensava. “Se eupudesseaomenos ter certezadealgumacoisa, achoqueseriamelhor!”

Emcertodia,quaseno imdeabril,satisfezoseudesejooupartedele.Eramdezhorasdamanhã,eMaryoconduziuàsalademúsicadasenhoraCarew,dizendo:

—Voudizeràsenhoraqueosenhorestáaqui.Elaestáàsuaespera.Na salademúsica, Jimmy, instintivamente, quase recuou ao ver Jamie

aoladodopiano,acabeçainclinadaparaafrente.Ovisitanteiaafastar-se,mas,antes,lheperguntou:

—Então,Carew,aconteceualgumacoisa?— Se aconteceu! — exclamou o inválido, com os braços abertos e,

agora,comumacartaabertaemcadamão.—Aconteceu,sim!Jáimaginoualguém que esteve a vida toda numa prisão e, de repente, vê abrir-se aporta da cela? Já imaginou se, de repente, a gente pode pedir emcasamento a mulher que ama? Pode imaginar se... Você deve estarpensandoque iqueidoido,masnão iquei.Talvezestejadoidodealegria.Querouvir?Tenhodecontaraalguém!

Jimmy Pendleton ergueu a cabeça como se estivesse preparando-separaogolpe.Pálido,faloucontudocomvozfirme:

—Claroquequeroouvir,meuamigo.Ecomprazer.JamieCarewnãoesperoupeloconsentimento,ejáfalava:—Podeserque,paravocê,issonãosigni iqueomesmoqueparamim.

Você temduaspernase todaa liberdade.Temas suasambições, as suaspontes.Paramim,porém, issoétudo.Éaoportunidadedevivercomoumhomem e de trabalhar comoumhomem, ainda que não seja construindoponteserepresas.Escute.Nestacartaveioacomunicaçãodequeumcontomeu ganhou o primeiro prêmio num concurso. Três mil dólares... Nestaoutra, uma importante editora informa que quer editar o meu primeirolivro. As duas cartas chegaram hoje. Não é mesmo para deixar a gentedoido?

—Claro!Parabéns,detodoocoração!—exclamouJimmy.—Obrigado.Hárazõesparacomemorar. Imaginesóoquerepresenta

paramimpoderganharavida, ser independente,poder,algumdia, fazercom que a senhora Carew se sinta alegre e orgulhosa de ter dado a umpobre inválido um lugar em seu lar e em seu coração. Imagine o quesignificaparamimpoderdizeràmulherqueamoqueeuaamo!

— É claro, meu velho! — A voz de Jimmy ainda era irme, mas eleempalidecera.

— Bem, talvez não deva fazer isso agoramesmo— continuou Jamie,comuma sombra de tristeza nos olhos.—Ainda estou preso a isto.—Emostrou as muletas. — É claro que não posso me esquecer do queaconteceunaqueledianocampo,noverãopassado,quandoviPoliana...Seiquesempretereidecorreroriscodeveramulherqueamoenfrentarumperigoeeunãopodersocorrê-la.

—Mas, Carew...— começou Jimmy,mas Jamie ergueu o abraço, numgestoenérgico:

— Já sei o que você vai dizer, mas não diga. Você não podecompreender,nãovivepresoaduasmuletas.Foivocêquemasalvou,nãoeu. Entendi, então, como será sempre comigo e Sadie. Tenho de icar deladoeverosoutros...

—Sadie?!—perguntouJimmy,espantado.—Elamesma, SadieDean!—exclamou Jamie.—Está surpreso?Não

sabia? Não descon iava de que eu gosto dela? Quer dizer que conseguiesconder tão bem? Sempre procurei esconder, mas... — Jamie se calou,sorrindoefazendoumgestoquetantopodiasigni icarumcertotemorouumadébilesperança.

— Sem dúvida, você soube esconder, e muito bem — disse Jimmyalegremente, recuperando a cor. — Então é Sadie Dean. Ótimo. Meusparabéns!

Jimmy não podia conter em si a alegria de descobrir que era Sadie enão Poliana a moça que Jamie amava. Este último, porém, balançou acabeçacomtristeza:

—Aindanãoécasoparaparabéns.Aindanão faleicomela.Claro,elatem que saber. Mas quem foi que você pensou que fosse... em vez deSadie?

— Pensei que fosse Poliana — disse Jimmy, depois de algumahesitação.

—Polianaéencantadora—Jamiesorriu.—Gostomuitodela,masnãoassim,enãomaisdoqueelagostademim.Depois,achoqueháumoutroquegostadela.

— É mesmo? — perguntou Jimmy, corando e tentando falar comnaturalidade.

—É,sim.JohnPendleton.—JohnPendleton?—exclamouJimmy,estarrecido.—QueéqueestãofalandoarespeitodeJohnPendleton?—perguntou

RuthCarew,entrandonasala.Jimmycustouaserefazereaarticularumcumprimento.Jamie,porém,

respondeuconfiante:—EstavadizendoquesóJohnPendletonpodedizersePolianagostade

outrapessoa...quenãosejaelemesmo.—Poliana! JohnPendleton!—exclamouRuthCarew,deixando-secair

sentadaemumacadeira.Se os dois rapazes não estivessem tão preocupados com os seus

próprios casos, teriam notado que o sorriso desaparecera dos lábios daviúvaequeumaexpressãoquasedetemorsurgiraemseusolhos.

—Éissomesmo—con irmouJamie.—Seráquevocêsestavamcegosnoverãopassado?Nãoviramcomoelenãoalargava?

—Ora,penseiqueaatitudedeleeraamesmaquetinhaemrelaçãoaqualquerumdenós—murmurouRuthCarew.

— Era muito diferente — insistiu Jamie, acrescentando: — Já seesqueceram que, certo dia, quando falávamos sobre a possibilidade deJohnPendleton se casar,Polianaenrubesceue, gaguejando,dissequeelehaviaqueridosecasarumdia?Deduziquehaviaalgumacoisaentreeles.Seráquenãoselembram?

— Sim! Estou me lembrando, agora que você falou — murmurou asenhoraCarew.—Sóquetinhameesquecido.

— Posso explicar isso — interveio Jimmy. — John Pendleton teverealmenteumapaixão,masfoipelamãedePoliana.

—PelamãedePoliana?!—exclamaramaomesmotempoosdois.— Foi apaixonado por ela,mas não recebia dela a contrapartida que

esperava.Gostavadeoutro,deumpastorcomquem,a inal,secasou.OpaidePoliana.

—Ah,foiporissoqueelenuncasecasou!—exclamouRuth.—Certo—disseJimmy.—Comoestãovendo,elenãogostadePoliana,

nãoéocaso.Gostavadamãedela.— Eu acho que isso quer dizer que ele gosta de Poliana — insistiu

Jamie.—Gostoudamãe enãopôde se casar comela.Não énatural queagoraameafilhaetenteconquistá-la?

—Ora,Jamie!—discordouasenhoraCarew.—Vocêéumincorrigívelinventordehistórias.Nãosetratadenovela,éavidareal.Polianaéjovemdemais para ele. Ele deve se casar comumapessoamais velha, não comumamocinha.Sequisersecasar...—corrigiu,corandodesúbito.

—Podeser.Maseseelaforamulherqueeleama?—continuouJamie.—Penseumpouco. Já viuuma só carta emque elanão falenele?E, porsuavez,elenãoestásemprefalandoarespeitodePoliana,emsuascartas?

RuthCarewsepôsdepéedisse, fazendoumgestocomoseestivessejogandoalgumacoisafora:

— Eu sei. Mas...— Não terminou a frase e logo depois retirou-se dasala.

Quando voltou, cinco minutos mais tarde, icou surpresa ao veri icarqueJimmytinhaidoembora:

—Penseiqueeleiaconoscoaopiqueniquedasmoças...— Também pensei— disse Jamie.— Mas ele se desculpou, dizendo

que tinha de fazer uma viagem inesperada. E me pediu para dizer à

senhoraquenãopodiaseguirconosco.Parafalaraverdade,nãodeimuitaatenção ao que ele disse, pois pensava em outra coisa... — E, jubiloso,mostrouasduascartas,queaindaconservavanasmãos.

—Quebom,Jamie!—exclamouasenhoraCarew,assimqueterminoudelê-las.—Sintomuitoorgulhodevocê!

Seusolhosseencheramdelágrimas,quandoviuaalegriaimpressanorostodeJamie.

Capítulo29JimmyeJohnUm jovem sério, de isionomia determinada, desembarcou na estação

ferroviáriadeBeldingsville,tardedanoitedesábado.Efoiomesmojovem,ainda mais sério e com aspecto mais enérgico, que atravessou as ruastranquilas da pequena cidade e se encaminhou para a mansão dosHarrington,antesdasdezhorasdamanhãdodiaseguinte.Divisandoumacabecinha loura que acabava de desaparecer no caramanchão, o jovemnãosedeuaotrabalhodesubiraescadadafrenteetocaracampainha—atravessouogramadoeojardimatéqueseviufrenteafrentecomadonadoscabeloslouros.

—Jimmy!—exclamouPoliana,espantada.—Deondeveio?—De Boston— respondeu o rapaz.— Cheguei ontem à noite e vim

paravê-la,Poliana.—Parame...ver?—indagouPoliana,tentandoserefazerdasurpresa

edaemoção.Jimmyeratãoalto,forteetãoquerido,ali,naentradadocaramanchão,

que ela teve medo de que seus olhos re letissem, com demasiadaevidência,aadmiração,oualgomais,queadominava.

—Bem,Poliana—disseo jovem.—Euqueria... isto é... pensei... querdizer, tive medo... Oh, Poliana! Não pude suportar mais. Tive de viresclarecerdeumavezportodas.Ésóisso.Sentiescrúpulosemfalarantes,mas agora não importa. Não preciso termedo de não ser leal. Ele não éinválido, como Jamie. Tem pernas e braços e cabeça, como eu, e, paraganhar,terádelutaremcondiçõesdeigualdade.Agora,eutenhodireito!

—JimmyBeanPendleton.—Polianaoencarou.—Queestáquerendodizercomisso?

— Não me admiro de você não ter entendido— admitiu Jimmy, um

tantodesapontado.—Achoquenãofuimuitoclaro,nãoé?Mascreioqueestouassimdesdeontem,quandofiqueisabendopelopróprioJamie.

—Ficousabendooquê,porJamie?—Foiporcausadoprêmio.Sabequeeleacabadeganharumprêmio

e...—Eujásabia—interrompeuPoliana.—Foiótimo,não?Imaginesó,o

primeiroprêmio!Trêsmildólares!Escreviparaeleontemànoite.QuandosoubequetinhasidoJamie,onossoJamie, iquei tãoexcitadaqueesquecideprocuraromeupróprionomenalistadospremiados.Equandoviquenão tinha ganhado prêmio algum, iquei tão contente por causa de Jamiequenemme importeide terperdido.Meesquecide tudo, aliás— tentoucorrigirajovemaconfissãoquefizeradehaverparticipadodoconcurso.

Só que Jimmy estavamuito preocupado com o seu próprio problemaparaseincomodarcomodela.Edisse:

—Éclaro.GosteideJamieterganhadooprêmio.Maseuestavafalandodoqueeledissedepois.Você, até então, euachavaque... bem,queele seinteressavapor...querodizer...quevocêsdoisseinteressassem...digo...

— Você pensou que eu e Jamie estivéssemos interessados um pelooutro?— atalhou Poliana.— Que ideia, Jimmy. Ele gosta de Sadie Dean.Falava comigo, horas seguidas, sobre aquelamoça. Achoque ela tambémgostadele.

—É o que espero,mas eu não sabia. Pensei que vocês dois, sabe... Eacheique,comoeleé inválido,vocêpodiaconsiderarumadeslealdadedeminhaparte...seeutentasseconquistarvocê.

Poliana abaixou-se e apanhou uma folha caída a seus pés. Ao selevantar, tinhao rostovoltadoparao rapaz ao lado.E Jimmycontinuouafalar:

—Agentenãopodedisputaruma corrida comalguémquenãopodecorrer.Então,eumeafastei,paradaraeleumaoportunidade,emboraissomecortasseocoração.Mas,namanhãdeontem, iqueisabendoaverdade.Jamieme disse que há um outro envolvido no caso. Com este, não possodeixardecompetir.Nãoposso,apesardetudooqueelefezpormim.JohnPendletontemasduaspernasparadisputaracorrida.Estáemigualdadedecondições.Sevocêseinteressaporele...seémesmoverdadequevocêseinteressaporele...

— John Pendleton?! — exclamou Poliana, estarrecida. — Que é queestá querendo dizer, Jimmy? Que foi que disse a respeito de JohnPendleton?

—Então,vocênãose interessa!—Eumaintensaalegriaapareceuna

fisionomiadeJimmy.—Viemseusolhos.Vocênãoseinteressaporele!Pálidaemuitotrêmula,Polianaperguntoudenovo:—Queestádizendoouquerendodizer,Jimmy?—Estouquerendodizerquevocênãose interessaportio John,dessa

maneira.Entende?Jamieachaquevocêseinteressaporeleeeleporvocê.Então, comeceiapensarque talvezele se interessemesmo...Está semprefalandosobrevocê.Ehouveocasocomsuamãe...

Polianaescondeuorostonasmãos.Jimmyseaproximou,pôsamãoemseuombro,acariciando-adeleve,maselaretraiu-se.

—Nãofaçaisso,Poliana!—implorouorapaz.—Vocênãoseinteressapormim?Éissoquenãoquermedizer?

—Vocêachaqueeleseinteressapormim...dessamaneira,Jimmy?—murmurouPoliana,encarando-o.

— Não pense nisso agora, Poliana — respondeu Jimmy, em tomimpaciente.—Éclaroquenãosei,comohaviadesaber?Oproblemanãoéesse, mas você. Se você não se interessa por ele e me der umaoportunidade... meia oportunidade de tentar fazê-la se interessar... —Tentouseguraramãodamoça,maselaoimpediudefazê-lo,dizendo:

—Não,Jimmy!Nãodevo!Nãoposso!— Está querendo dizer que se interessa por ele, Poliana? — Jimmy

empalideceuvisivelmente.—Não,ora!Nãodessamaneira—gaguejouPoliana.—Mas,seelese

interessapormim,precisosaberdealgummodo.—Poliana!—Nãomeolheassim,Jimmy!—Querdizerquevocêvaisecasarcomele?—Oh,não!...Querdizer...nãosei...achoquesim...—Nãofaçaisso,Poliana.Vocêmepartiráocoração!Poliananãoconteveumsoluçoeoutravezescondeuorostonasmãos.

Soluçouduranteuminstantee,depois,encarouJimmy:—Eusei,eusei!Voupartirmeucoraçãotambém.Mastenhoquefazer.

Vousofrermuito,vocêtambémvai,masnãopossofazê-losofrer.Jimmy levantou a cabeça, e seus olhos tinham um brilho diferente:

passara por rápida emaravilhosamudança. Com ternura, tomou Poliananosbraçoseapertou-adeencontroaoseupeito,murmurando:

—Agoraseiquevocêgostademim!Vocêdissequeiriasofrermuito.Entãovocêachaqueeudeixariaquevocêfossedequalquerhomemnomundo?Querida,vocênãoentendeumamorigualaomeusepensaqueeupermitireiqueissoaconteça.Diga

quemeama,Poliana!Queroouvirissodosseuspróprioslábios!Porumlongominuto,amoçaseentregousemresistiraosbraçosquea

cingiam. Depois, com um suspiro meio de contentamento e meio derenúncia,começouasedesvencilhardele,dizendo:

—Sim,Jimmy,euoamo.O rapaz tentou mais uma vez tomá-la entre os braços, mas algo na

expressãodorostodePolianaodeteve.Elarepetia:—Euamovocê,éverdade.Masnãopossoserfelizcomvocêepensar

que...Nãovê,querido?Preciso,antes,saber...sesoulivre.—Tolice,Poliana!—protestouJimmy.—Vocêélivre!— Não com essa preocupação me torturando, Jimmy. Você não

compreende?Foiminhamãe,hámuito tempo,que lheamargurouavida.Durante todos esses anos, ele viveu sozinho, sem amor, por causa deminhamãe.Semepediremcasamentoagora,nãopossorecusar.Vocênãovê?

Jimmy não via, não podia ver, por mais que Poliana argumentasse.Finalmente,amoçadisse:

— Jimmy, querido, temos de esperar. É o mínimo que posso fazer.Esperoqueelenãoesteja interessadopormim.Nãocreioqueesteja,maspreciso saber, ter certeza. Só temos que esperar um pouco, atédescobrirmos,Jimmy!

Emboraacontragosto,orapaztevequeseconformar:— Está bem, querida. Faça o que está desejando. Mas ique sabendo

que jamaisnomundoumhomem icouaguardandoarespostadamulherqueamava,eque tambémadmitiaamá-lo,atésaber,antes,queumoutrohomemarejeitava.

—Masesseoutrohomemdequevocêfalatalveznãotivessedesejadosecasarcomamãedela—argumentouPoliana.

— Vou voltar para Boston. Não pense que desisti de você — disseJimmy,comumolharquefezbatermaisforteocoraçãodePoliana.—Nãodesisti.

Capítulo30:JohnPendletonesclarece

Num estado em que se confundiam idelidade, esperança, irritação e

revolta,JimmyvoltouparaBostonnaquelamesmanoite.Poliananão icaraemsituaçãomais invejável: felizpor saberque Jimmya amava, sentia-se,porém,aterradaanteaperspectivadeseramadaporJohnPendleton.Eotemorestragavaqualquerpensamentoalegrequelheocorresse.

Felizmente,issonãoduroumuito.AconteceuqueJohnPendleton,únicocapaz de esclarecer as coisas,menos de uma semana depois da visita deJimmy,acaboucomadúvida.Natardedequinta-feiraeleprocurouPolianae,damesmaformaqueJimmy,encontrou-anojardimeencaminhou-seemsuadireção.

Aovê-lo,ajovemsentiuumapertonocoraçãoemurmurou:—É agora!—E involuntariamente virou as costas, como se quisesse

fugir.— Por favor, Poliana! Espere um pouco — pediu o visitante,

apressando o passo. — Vim à sua procura. Podemos conversar aquimesmo?Precisolhedizerumacoisa.

—Estábem...—gaguejouPoliana,fazendoforçaparapareceralegre.Tinha enrubescido e isso não lhe agradava, como também o fato de

John Pendleton ter resolvido conversar no caramanchão, local agorasagradoparaela—ligadoàlembrançadeJimmy.Pensava:“Porquehaviadeserlogoaqui?”Masdisseemvozalta:

—Éumalindatarde,nãoémesmo?Não houve resposta. Pendleton acomodou-se num banco, semmesmo

esperarquePolianasesentasse,oquecontrariavaseushábitos.Amoçaoolhouenotoutãogritantesemelhançacomaseveridadeetristezadeumaisionomia que conhecia desde que era criança que não conteve umaexclamação de espanto. O visitante não se deu conta: estava pensativo,cabisbaixo.Depois,ergueuacabeçaeencarouPolianabemnosolhos.

—Poliana...—Sim,senhorPendleton.—Vocêselembracomoeueraquandovocêmeconheceu?—Lembro,sim.—Eraumtipodehomemdepresençaagradável,nãoera?Aindaqueumtantoperturbada,Polianaconseguiusorrir:— Eu gostava do senhor... — E logo se arrependeu de ter dito isso,

tratando de corrigir-se, mas sem o conseguir: — Isto é, eu gostava dosenhornaquelaépoca.

Esperou, como coraçãoapertado.Aspalavras seguintesdePendletonnãotardaram:

— Eu sabia que você gostava demim,minha ilha! E foi isso quemesalvou.Nãoseisepoderialhemostrarcomoaamizadequevocêmetinha,acon iançaquedepositavaemmim,quandoeracriança,me izerambememeajudaramtantonavida.

Poliana tentou um confuso protesto, mas Pendleton, sorrindo, nãodeixouqueelafalasse:

—Éissomesmo!Foivocê,ninguémmais.Nãoseisevocêselembradeoutra coisa — acrescentou, enquanto Poliana olhava para a saída docaramanchão,demodofurtivo.—Nãoseisevocêselembradetermeditoumavezquesomenteamãodeumamulhereapresençadeumacriançapodemconstruirumlarverdadeiro.

—Sim...não...querdizer,eumelembro.—Polianatinhaorostocorado.—Agora, pensodeoutra forma.Querdizer... tenho certezadeque agorasuacasaéumverdadeirolare...

— É justamente sobreminha casa que estou falando— interrompeuPendleton,impaciente.—Vocêsabequeespéciedelarsempredesejeitere como minha esperança se desfez. Não estou censurando sua mãe. Elaapenasobedeceuaocoração,noqueandoucerta.E fezaescolhaque lhepareceumaissensata.Masnãoéengraçado,Poliana,quetenhasidoasuafilhaquememostrouocaminhodafelicidade?

—Mas,senhorPendleton...eu...eu...—EPolianamolhoucoma línguaoslábiossecos.

Pendletonainterrompeucomumgestoeumsorriso:— Foi você, minha ilha, e há muito tempo. Você, com o seu jogo do

contente.— Ah!— exclamou Poliana, aliviada e com a expressão de temor já

desaparecendodeseusolhos.— Durante todos esses anos — continuou Pendleton —, fui me

transformando num homem diferente. Mas numa coisa não mudei.Continuoaacharqueé indispensávelemumlarhaveramãoeocoraçãodeumamulhereapresençadeumacriança.

—Bem,apresençadeumacriançaosenhorconseguiu,comJimmy—dissePoliana,sentindoquelhevoltavaomedo.

—Eusei—respondeuPendleton,comumarisada.—Mashojenãosepodedizerqueapresençade Jimmysejaexatamenteapresençadeuma

criança.—Éclaroquenão...— Além disso, preciso também da mão e do coração da mulher —

acrescentouovisitante,baixandoavozque,agora,quasetremia.—É?—Polianatorceuasmãos,nervosamente.John Pendleton não denotou ter visto ou ouvido coisa alguma.

Levantara-seecaminhava,agitado,deumladoparaoutro.Depois,paroueencarouamoça,dizendo:

— Se você estivesse em meu lugar, Poliana, como pediria à mulheramadaparafazerdaminhavelhacasaumlardeverdade?

—Mas, senhor Pendleton...— E Poliana assustou-se.— Eu não fariacoisaalguma.Achoqueosenhorémaisfelizassimcomoé...

Pendletonficousurpresoedeuumsorrisotriste:—Vocêachaentãoqueomeucasoédesesperador?—Desesperador?—estranhouPoliana.—Issomesmo.Vocêsóestáquerendodourarapílula,estáquerendo,

emoutraspalavras,dizerqueelanãomeaceitaria,nãoéisso?—Não!...Não...—protestouPoliana,confusa.—Elaoaceitaria,sim.Eu

estavapensando...bem,pensavaque,seamoçanãooamar,osenhorseriamais feliz sem ela. E... — A jovem parou de falar ao ver a expressãoestampadanorostodePendleton.

—Seelanãogostardemim,claroquenãomecasareicomela.—Eusei...—articulouPoliana,denovomaisaliviada.— Ela não é mais uma mocinha, mas uma mulher madura e que,

naturalmente,sabemuitobemoquequer.—Oh!—exclamouPoliana,tomadadealegria.—Então,osenhorama

uma...—calou-seantesdeacrescentar“outramulher”.—Claroqueamoumamulher—a irmouPendleton.—Éoqueestou

lhedizendo.Quissabersuaopiniãoporquevocêaconhecetantooumelhordoqueeu...

— Émesmo? Claro que ela terá de gostar do senhor. Nós a faremosgostar.Ecapazatédejágostar.Queméela?

Fez-seumademoradapausaantesdeviraresposta.— É... é...— Pendleton hesitou.— Ainda não adivinhou? É a senhora

Carew.—Oh!—Poliana tinha amais intensa alegria estampada no rosto—

Queótimo!Estoutãoalegre!

Umahoramaistarde,PolianafezumacartaaJimmy.Umacartaconfusaeincoerente—frasesincompletas,semlógica,entusiásticas.Graçasaisso,Jimmy icousabendomuitacoisa:menospeloqueacartadiziaebemmaispeloquenãoestavaescritonela.A inal,nãoprecisava sabermaisdoqueisto:

Elenãogostademim, Jimmy.Gostadeoutra.Nãodevo lhedizerquem é

ela,masnãosechamaPoliana.Jimmy apressou-se para não perder o trem das sete horas para

Beldingsville.

Capítulo31:Longosanosdepois

PolianasesentiutãofeliznaquelanoiteemqueescreveraaJimmyque

nãoconseguiuguardarseusegredoconsigomesma.Semprepassavapeloquartodatia,antesdesedeitar,paraverseelaprecisavadealgumacoisa.Naquela noite, depois das perguntas habituais, já ia apagar a luz quandosúbitoimpulsolevou-adenovoàcamadatia.Ajoelhou-seàcabeceira,comarespiraçãoofegante.Disse:

— Estou tão feliz, tia Paulina, que tenho de falar com alguém. Possocontaràsenhora?

—Contaroquê?Claroquepode.Éboanotíciapa-ramim?—Achoqueé,titia.Esperoque iquefelizporminhacausa.Éclaroque

Jimmyvailhedizer,qualquerdia.Maseuquerofalarantesdele.—Jimmy?—AsenhoraChiltonteveligeiraalteraçãonafisionomia.—Sim,quandoelemepediremcasamento—dissePoliana, radiante.

—Estoutãofelizquetivedelhecontarlogo!— Ele vai pedir você em casamento?! — surpreen-deu-se Paulina

Chilton, erguendo-sena cama.—Estádizendoquehá alguma coisa sériaentrevocêeJimmyBean?

—PenseiqueasenhoragostassedeJimmy—murmurouPoliana,semesconderodesapontamento.

—Gosto,sim,masemseudevidolugar.Sermaridodeminhasobrinhanãoéolugardele.

—TiaPaulina!—Porqueesseespantotodo,minha ilha?Issotudoéumatolice,e ico

contentedeteracabado,antesqueficassesério.—Nessecaso,voulhedizerquejá icousério,tiaPaulina.Gostomuito

dele.—Poistratededeixardegostar,porquenãovoupermitirquevocêse

casecomJimmyBean.—Possosaberporquê,titia?—Bem,emprimeirolugarporquenadasabemosarespeitodele.—Comonãosabemos?Euoconheçodesdequeeracriança!— E o que era ele? Um menino sem eira nem beira, fugitivo do

orfanato!Nadasabemosdesuafamília,doseusangue,ora!—Nãovoumecasarnemcomafamíliadele,nemcomoseusangue.Comumgestodeimpaciência,tiaPaulinavoltouarecostaracabeçano

travesseiro,resmungando:—Você estáme fazendo sentirmal, Poliana.Meu coração disparou e

nãovouconseguirdormirestanoite.Nãopodiadeixarissoparaamanhã?—Estácerto.—Polianasepôsdepé.—Éclaro, titia.Amanhãvaiser

diferente,asenhorapensarámelhor.—E,esperançosa,foiapagaraluz.SóquetiaPaulinanãopensoumelhornamanhãseguinte.Suaoposição

aocasamentoparecia irme.EmvãoPolianapediueargumentou.Emvãomostrou até queponto estava envolvidano caso a suaprópria felicidade.Paulina se mostrava in lexível — não admitia a ideia e, com rispidez,advertiaasobrinhasobreospossíveismalesdahereditariedadeeoriscodesecasarcomalguémdefamíliadesconhecida.Apelouatéparaodeverde gratidão, lembrando-lhe osmuitos anos que ela passara em sua casa,recebendo amor e carinho, e lhe pediu que não lhe partisse o coração,insistindo naquele casamento, como sua mãe izera antes, casando-secontraasuavontade.

Quando Jimmy apareceu, às dez horas, encontrou Poliana abatida eamedrontada, tentando, com mãos trêmulas, mantê-lo a distância.Empalidecendo,masabraçandoajovem,Jimmylhepediuumaexplicação.

—Quesignificaisto,querida?— Oh, Jimmy! Por que você veio? — murmurou. — Ia lhe escrever

dizendoquenãoviesse.—Masvocêmeescreveu,querida.Recebisuacartadetarde,atempo

detomarotrem.—Ialheescreverdenovo.Eunãosabiaque...que...nãopodia.— Como não podia?! — exclamou Jimmy, com os olhos faiscando de

raiva.—Nãofoioquevocêmedisseemsuacarta,Poliana!—Porfavor,Jimmy!Nãomeolheassim.Nãosuportoisso.—Queaconteceu,então?Queéquevocênãopodefazer?—Nãopossomecasarcomvocê.—Vocêmeama,Poliana?—Sim.Emuito.—Então,vaisecasarcomigo!—insistiuJimmy,tomando-anosbraços.— Você não compreende, Jimmy. — Poliana tentou se desvencilhar

dele.—ÉtiaPaulina.—TiaPaulina?—Elanãoquerqueeumecase.—Ora!—exclamouJimmy,con iante.—Agentedáumjeito.Elapensa

que vai perder você, mas podemos lembrar-lhe que, ao contrário, vaiganharumnovosobrinho!

Polianacontinuousériaequasedesesperada:—Vocênãoestácompreendendo,Jimmy.Ela...comopossodizer?Elase

opõe...avocê...paramim.— Bem— disse Jimmy, afrouxando o abraço e com voz abafada. —

Talvez não devamos censurá-la por isso. A inal, não sou lá essas coisas!Mastentareifazê-lafeliz,querida!

—Eusei.Vocêmefariamuitofeliz—concordouPoliana,comlágrimasescorrendopelasfaces.

— Então, por que não me dar uma oportunidade, ainda que ela nãoconcorde a princípio? Talvez, depois que nos casarmos, poderemosconvencê-la.

—Não pode ser...— gemeu Poliana.—Depois do que ela disse, nãopossome casar semo seu consentimento. Ela fezmuito pormime agoradependemuitodeminhaajuda.Elanãoestábem,Jimmy.Ultimamentetemse esforçadomuito para praticar o jogo do contente, apesar de todas assuasdificuldades.

Depois de um pouco de silêncio, e tomada de súbita decisão, Polianadisse,febrilmente:

—Escute, Jimmy! Se aomenos você pudesse dizer alguma coisa a tiaPaulinaarespeitodeseupaiedesuafamília...

—Éisso?—perguntouorapazquasesemvozeempalidecendo.—É...—con irmouPoliana, segurandoseubraçocomtimidez.—Não

pense...Nãoéporminhacausa,Jimmy.Eupoucomeincomodo.Seiqueseupai e sua família devem ter sido gentemuito boa emuito nobre, porquevocêétãobometãonobre...Masela...Nãomeolheassim,Jimmy!

Com uma espécie de gemido abafado, Jimmy afastou-se dela. Umminuto depois, dizendo algumas palavras quase ininteligíveis, ele saiu dacasa. Seguiu à procura de John Pendleton e o encontrou na biblioteca.Perguntoulogoqueoviu:

—TioJohn,osenhorselembradoenvelopequemeupaimedeu?—Claro—respondeuPendleton.—Oquehá,meufilho?—Precisoabriraqueleenvelope,tioJohn.—Mas...eascondições?—Nadapossofazer.Precisofazerisso.Vaiabrir?—Bem...claroquesim,meu ilho,sevocêinsiste.Mas...—EPendleton

secalou,constrangido.—TioJohn—continuouJimmy—,osenhorjádeveteradivinhadoque

euamoPoliana.Pedisuamãoemcasamento,eelaaceitou.Pendleton ia soltarumaexclamaçãode surpresaealegria,mas Jimmy

nãolhedeutempo:— Aceitou,mas disse que ainda não pode se casar comigo, porque a

senhoraChiltonseopõe.Nãomequerparamaridodesuasobrinha.—Comoassim?!—reagiuJohnPendleton,furioso.—E iqueisabendoporquê,quandoPolianameperguntouseeupodia

revelaràsuatiaalgosobremeupaieminhafamília.—Oraessa!—admirou-sePendleton.—PenseiquePaulinafossemais

sensata. São todos assim... Os Harrington sempre foram orgulhosos emetidosa importantes,semprecomessaconversadefamíliaedesangue.EvocênãopodiaatenderaopedidodePoliana?

— Não podia? Já estava abrindo a boca para dizer a ela que nuncahouve um paimelhor do que omeu, quando, de repente,me lembrei doenvelope e de suas recomendações. Então, iquei com medo. Não direinada,atésaberoquehánaqueleenvelope.Háalgumacoisaquemeupainão queria que eu soubesse antes dos trinta anos, idade em que umhomem já pode enfrentar qualquer choque. Há um segredo em nossasvidas.Tenhodesaberqualéessesegredo,eagoramesmo.

—Não seja tãopessimista, Jimmy—dissePendleton.—Podeaté serumbomsegredo,talvezalgoquevocêvaigostardesaber.

—Podeser.Então,porqueelefaziatantaquestãodequeeuesperasseatéos trintaanos?Não, tio John!Deve seralgumacoisa tãodesagradávelque exigiria de mim bastante experiência para enfrentá-la. Não estoucensurando meu pai. Garanto que é alguma coisa de que ele não teveculpa.Tenhodesaberdequese trata.Váapanharoenvelope,por favor.Estánocofre,nãoémesmo?

—Voubuscar—dissePendleton,levantando-se.Trêsminutosdepois,oenvelopeestavanasmãosdeJimmy,masesteo

devolveuaPendleton:—Émelhorqueosenhormesmoleiaedigaoqueháaí.—Mas, Jimmy...—o tio começouaprotestar,mas se conteve.—Está

bem.Com uma espátula, John Pendleton abriu o envelope e espalhou o

conteúdonamesa.Haviamuitospapéisamarradosnumblocoeumafolhaisolada, que parecia uma carta. Pendleton leu-a em primeiro lugar. EravisívelaansiedadedeJimmy,quenãotiravaosolhosdorostodotio.Assim,pôde notar a expressão de surpresa, alegria e algo mais impressa nafisionomiadePendleton.

—Oqueé,tio?—perguntou,ansioso.—Leiavocêmesmo.—Pendletonlheentregouacarta.

Jimmyleu:Ospapéissãoaprova legaldequemeu filho Jimmy é,na verdade, James

Kent, filhode JohnKent,quesecasou comDorisWetherby, filhadeWilliamWetherby,deBoston.Háaindaumacartaemqueeuexplicoameu filhoporqueomantiveafastadoda famíliade suamãedurante todos estesanos. Seeste envelope for aberto por ele quando fizer trinta anos, então ele leráaquelacarta,eesperoqueperdoeseupaique,temendoperdero filho,tomouaquelasdrásticasmedidas para conservá-lo ao seu lado. Se o envelope forabertoporestranhos,emrazãodesuamorte,peçoquea famíliadesuamãe,em Boston, seja notificada imediatamente e os documentos lhe sejamentregues.

JohnKentJimmyestavapálidoe trêmulo, ao levantarosolhoseencontrarosde

Pendleton.—IssoquerdizerqueeusouoJamiedesaparecido?—Segundoacarta,hádocumentosnaquelemaçoqueprovamtudo—

lembrouooutro.—Eu...osobrinhodeRuthCarew.—Claro.— Não posso compreender... Por quê? — disse Jimmy, com o rosto

expressando alegria.— Agora sei quem eu sou! Posso contar à senhoraChiltonalgumacoisasobreminhafamília!

— Sem dúvida — concordou John Pendleton, secamente. — OsWetherbydeBostondescendememlinharetadosCruzadosenãoseimaisde quem do ano I da nossa era! Isso pode satisfazer a senhora Chilton.Quanto a seu pai, tinha bom sangue também, como a senhora Carewmedisse.Eraumhomemexcêntricoenãoagradavaàfamília,vocêsabedisso.

— Coitado de meu pai! Que vida levou todos aqueles anos, sempretemendoserperseguido.Agora,compreendooquetantoointrigava.Certavez,umamulhermechamoudeJamie.MeuDeus,comoele icouzangado!Agora sei por que eleme fez sair naquele dia, sem aomenos esperar acomida. Coitado! Logodepoisdisso ele adoeceu, icou comaspernas e osbraçosparalisadosesemfalardireito.Lembro-medeque,quandomorreu,tentavameexplicaralgoarespeitodesteenvelope.Achoqueelequeriamepedir para abri-lo e procurar a família deminhamãe.Na ocasião, penseique elemepedia para guardar o envelope com segurança. Prometi a eleque faria isso, mas vi que ele não pareceu se acalmar com a minhapromessa.Maseunãocompreendi.Coitadodemeupai!

— Vamos dar uma olhada nos papéis — sugeriu Pendleton, emseguida.—Háumacartadeseupaiparavocê.Nãoquerlê-la?

— Claro que sim — concordou Jimmy, para, depois, acrescentar,sorrindo e consultando o relógio:— Só estou pensando na hora em quepodereivoltarparajuntodePoliana.

— Já sei, meu ilho, e não o censuro por isso. Mas acho que, em taiscircunstâncias,vocêdeveriaprimeirofalarcomasenhoraCarewemostraraelaestespapéis.

Jimmypensouumpoucoe,resignado,concordou:—Temrazão.Éoquevoufazer.—Senãose importar,voucomvocê—dissePendleton.—Tenhoum

pequeno assunto pessoal e gostaria de ver... sua tia. Podemos seguir notremdastrêshoras.

—Ótimo!O tremdas três!Então, eu sou Jamie!Nempossoacreditar!— exclamou o rapaz, levantando-se e começando a dar passos peloaposento.—Qualseráaatitudeda...detiaRuth?

— E eu ico pensando em mim mesmo. — Havia uma expressão detristezano rostodePendleton.—Comovai ser?Agoraquevocêvai icarcomela,ondeéqueficoeu?

—O senhor?Acredita que alguma coisa nomundopossame separardosenhor?Elanãovaiseincomodar.TemJamiee...meuDeus!AgoraéqueestoumelembrandodeJamie.Vaificararrasado!

— Já pensei nisso — disse John Pendleton. — Mas ele está adotadolegalmente,nãoestá?

—Está.Masnãose tratadisso.Équeelenãoéo Jamiedeverdadee,ainda por cima, inválido... Coitado! Isso vai arrasá-lo, já lhe disse. Ouvi oque ele falou a respeito. E tanto Poliana como a senhora Carew medisseramque ele está certodeque émesmoo Jamie, sobrinhodela, e sesente feliz coma ideia.Nossa!Nãoposso fazerumacoisaassimcomele...Quefazer,então?

—Nãosei—respondeuPendleton.—Nãovejooutracoisa,anãoseroqueestamosfazendo.

HouveumdemoradosilêncioeJimmyvoltouàsuanervosacaminhada,deumladoparaooutro.Atéqueseurostoiluminou-se:

— Há um meio, e é o que eu vou fazer. Sei que Ruth Carew vaiconcordar. Não vamos contar! A ninguém, só a ela, a Poliana e a sua tia.Bem,aestasnãopodemosdeixardecontar.Éoquevoufazer.

—Certo,meu ilho— concordou Pendleton.—Quanto ao resto... nãosei...

—Nãoédacontadeninguém.—Não se esqueça de que você está se sacri icando. Pese bastante o

quequerfazer.—Jápesei tudo,enãohápesoqueresista... comJamienooutroprato

dabalança.Nãopossofazerumacoisadessas,sóisso.—Nãoocensuro,achoquevocêestácerto—dissePendleton.—Acho

queasenhoraCarewtambémvaiconcordarcomvocê,sobretudosabendoqueverdadeiroJamiefoiencontrado.

—Osenhordevese lembrardequeelasempredizia tera impressãodequemeconheciadealgumlugar—observouorapaz.—Aquehorasotremparte?Jáestoupronto.

—Mas eu ainda não estou.— JohnPendleton sorriu.—Ainda temosmuitotempo...Tempodesobraparameaprontar.

Capítulo32:UmnovoAladim

AindaquefossemmuitosevariadosospreparativosdePendletonpara

a viagem, todos foram feitos às claras, com duas exceções. Duas cartas,umadirigida àPoliana e outra à senhoraPaulinaChilton. Com instruçõescuidadosas e pormenorizadas, as cartas foram con iadas à governanta,Susan, para serem entregues depois que eles tivessem partido. Jimmyignoravatudoisso.

O trem já se aproximava de Boston, quando John Pendleton disse aJimmy:

— Quero lhe pedir um favor, ou melhor, dois favores. Primeiro: nãodiga nada à senhora Carew até amanhã de tarde. O segundo é que medeixe irsozinho,comoumaespéciede...deseuembaixador.Vocêsódeveentraremcenalápelasquatrohoras.Podeser?

—Claro— respondeu o jovem, sem hesitar.— Fico até satisfeito emfazer tudo assim. Estive imaginando como iria conversar com ela e lhefazerarevelação.Prefiroqueoutrapessoaofaçapormim.

— Ótimo! Amanhã cedo telefono para... para a sua tia e marco oencontrocomela.

Fiel à promessa, Jimmy não apareceu na casa dos Carew senão àsquatroda tardedodia seguinte.Assimmesmo, sentiu-se tãoembaraçadoque passou duas vezes diante da casa, antes de se animar a tocar acampainhadaentrada.UmaveznapresençadeRuthCarew,porém, icouà vontade, sobretudo em razão da atitude que a viúva adotou paraenfrentar a situação. A princípio, é verdade, houve algumas lágrimas eexclamações incoerentes. Até Pendleton foi forçado a tirar um lenço dobolso para enxugar as lágrimas. Em pouco, porém, tudo voltou ànormalidade — somente os olhares de ternura de Ruth e a alegria deJimmyedePendletondeixavam transparecer que algode extraordináriotinhaacontecido.

— E saber que Jamie tem vivido tão bem! — exclamou a senhoraCarew, depois de uma pausa. — Na verdade, Jimmy (é assim que voucontinuara chamá-lo,poisonome lheassentabem),pensoquevocê temrazão em agir assim. Eu também estou fazendo um sacri ício —acrescentou,semconteraslágrimas.—Teriamuitoorgulhoemapresentá-loatodoscomomeusobrinho.

— Bem, tia Ruth, eu... — começou Jimmy, sem todavia continuar em

facedeumaexclamaçãodeJohnPendleton.JamieeSadieDeantinhaacabadodeentrarnasala.Jamieestavalívido,

eexclamou:—TiaRuth!TiaRuth!Querdizer...JimmyeRuthtambémempalideceram,masPendletoncontinuoucalmo

edisse:— Istomesmo, Jamie,porquenão?Eu ia terde lhe contar tudo,mais

cedooumaistarde.Émelhorcontarlogo.Desconcertado,Jimmyfezmençãodeintervir,masPendletonoimpediu

comumgesto,acrescentando:—Hápoucotempo,asenhoraCarewmetornouohomemmaisfelizdo

mundo,quandodisse“sim”aumpedidoquelhe iz,e,seJimmymechamade“tioJohn”,porquenãoterádireitodechamá-la“tiaRuth”,deagoraemdiante?

— Oh! — exclamou Jamie, alegre, enquanto Jimmy tratava decomportar-sede acordo comas circunstâncias, atento aoolhar suplicantedeJohnPendletonenãorevelandosuaprópriasurpresaecontentamento.

Ruth Carew passou a ser o centro de todas as atenções, e o perigopassou. Somente Jimmy ouviu o que Pendleton lhe disse, pouco depois,falandoemvozbaixaaoseuouvido:

—Estávendo, seumalandro?Nãovouperdê-lo.Vocêéo sobrinhodenósdois,aomesmotempo.

Emmeio a exclamações de congratulações, Jamie, com os olhos aindamaisradiantes,dirigiu-seaSadieDean:

—Voulhescontaragora,Sadie!Antes de prosseguir, Sadie entendeu logo o que ia ocorrer. E novas

exclamações e congratulações se izeramouvir, numa alegria geral, todosrindoeapertandoasmãos.Jimmy,contudo,mostravaumacertatristeza:

— Tudo está bem para vocês. Os pares estão formados. Mas e eu?Possolhesdizerque,seumadeterminadamoçaestivesseaqui,tambémeuteriaalgumanovidadeparaanunciaratodos.

— Ummomento, Jimmy— disse John Pendleton.— Vamos imaginarque eu sou Aladim e vou esfregarminha lâmpadamaravilhosa. SenhoraCarew,possotocarasinetaparachamarMary?

—Claro—murmurouaviúva,tãoespantadaquantoosdemais.Logoaseguir,MaryapareceuàportaePendletonperguntou:—OuvidizerqueasenhoritaPolianachegou.Éverdade?—Sim,senhor—respondeuacriada.—Elaestáaqui.—Querfazerofavordechamá-la?

— Poliana, aqui!— exclamaram todos em coro, enquanto Mary saía.Jimmyempalideceuedepoisficoucorado.

— Ela está aqui, sim— explicou Pendleton. — Enviei-lhe ontem umbilhete por intermédio de minha governanta. Pedi a ela que viesse lhefazer companhia por alguns dias, senhora Carew. A pobrezinha estáprecisando de um descanso, umas férias... Minha governanta icoutomando conta da senhora Chilton. Também escrevi para ela —acrescentou, voltando-se para encarar Jimmy. — Naturalmente, elapermitiuquePolianaviesse.Tantoassimqueamoçaestáaqui.

Poliana surgiu à porta, corada, os olhos arregalados e com umaexpressãointerrogativanafisionomia.

— Poliana querida! — exclamou Jimmy, correndo para recebê-la e,numimpulso,abraçando-aebeijando-a.

—Jimmy!Navistadetodomundo!—protestouamoça.— Ora, querida! — disse o rapaz. — Eu a teria beijado mesmo se

estivessenomeioda ruaWashington.Olheparaaquelesoutros e veja seprecisasepreocuparcomeles,ouporcausadeles.

Polianaolhoueviu.Debruçadosnumajanela,decostas,estavamJamiee SadieDean. Emoutra janela, tambémde costas, JohnPendleton eRuthCarew.Então,Polianasorriu.EdeummodotãoadorávelqueJimmytornouabeijá-la.

— Jimmy, querido! Tudo émaravilhoso! Tia Paulina já sabe, está feliztambém.Dequalquermaneira,ascoisastinhamdeacabarbem.Elaestavacomeçando a icar triste porminha causa. Agora, estámuito alegre. E eutambém,neméprecisodizer.Jimmy,estoutãoalegre,tãoalegre,tãoALEGRE,agora,vocênemimagina!

Jimmyapertou-acommaisforçaentreosbraços.—PeçoaDeusquetudocontinuesempreassim—murmurou.— Vai icar sempre assim, tenho certeza — disse Poliana, os olhos

brilhantesecheiosdeconfiança.

Sobreaautora

EleanorHodgmanPorternasceuem1868emLittleton,EstadosUnidos,

e faleceu em 1920. Estudou no Conservatório de Música de NovaInglaterra e casou-se com John Lyman Porter. Sua primeira novela,Correntescruzadas, foipublicadaem1907, comgrandesucesso, enoanoseguinteAmaré.MissBillyeAdecisãodeMissBilly,romancessentimentais,alegres e jovens, tiveram grande repercussão popular. Seus romancesalcançaram grande êxito, mas nenhum deles conseguiu despertar tantaatenção em todo omundo comoPoliana ePolianamoça, commais de ummilhãodeexemplaresvendidosnaépocaemqueforamlançados.

Desencadearamnos EstadosUnidos e nomundo uma impressionanteonda de esperança, otimismo, boa vontade e sensibilidade às questõesalheias.

Hotéis, restaurantes, casasde chá, lojas e crianças receberamonomede Poliana, por causa damenina— e depoismoça— que simbolizava abondade,acapacidadedevencerobstáculos.

Aindahoje,passadostantosanos,estasobraspermanecemumsucessosingular,poisaintemporalidadedelasfazem-nasleiturasobrigatórias.