Pos Desenvolvimento, Indicadores e Culturas de Auditoria_Radomsky

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  • 7/25/2019 Pos Desenvolvimento, Indicadores e Culturas de Auditoria_Radomsky

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    Resumo

    O artigo explora trs dimenses do debate recente sobre o desenvolvimento. Primeiro,analisa-se brevemente a crtica do desenvolvimento na proposta que se tornou conhecidacomo ps-desenvolvimento. Em segundo, examina-se a possvel conexo entre o ps-desenvolvimento e a anlise crtica de indicadores, rankings e metas padronizadas dedesenvolvimento e de governana. Por fim, analisa-se a complexa e disputada relaoentre colonizao e desenvolvimento. Como concluses, faz-se uma reflexo sobre ateoria social contempornea e questes relacionadas aos estudos de desenvolvimento,tais como agncia e auditoria, desejo/repulsa dos projetos de desenvolvimento e crticada modernidade.

    Palavras-chave: ps-desenvolvimento, colonialismo, indicadores, Objetivos do Milnio.

    Abstract

    The article explores three dimensions of the recent debate on development. Firstly, itbriefly analyzes the critique of development in the proposal that became known as post-development. Secondly, the possible connection between post-development and the criticalanalysis of indicators, rankings and standardized goals for development and governanceis examined. Finally, we analyze the complex and disputed relationship between coloniza-tion and development. As a conclusion, the article rethinks contemporary social theoryand related issues from development studies, as agency and auditing, peoples desire/repulsion for development projects and the critique of modernity.

    Key words:post-development, colonialism, indicators, Goals of the Millennium.

    Guilherme Francisco Waterloo [email protected]

    Ps-desenvolvimento, indicadores eculturas de auditoria: reflexes crticas

    sobre governana e desenvolvimento

    1Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Av.Bento Gonalves, 9500, Sala 103, IFCH Campusdo Vale, Porto Alegre, RS, Brasil.

    Post-development, indicators and audit cultures:Critical reflections on governance and development

    Cincias Sociais Unisinos49(2):155-163, maio/agosto 2013 2013 by Unisinos - doi: 10.4013/csu.2013.49.2.03

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    Ps-desenvolvimento, indicadores e culturas de auditoria: reflexes crticas sobre governana e desenvolvimento

    Introduo

    Para fornecer uma imagem precisa de como opera odesenvolvimento enquanto conjunto de prticas, programas,projetos, suas ideologias e representaes o antroplogo KnutNustad o compara a um dilogo de Michel Foucault com o mili-tante Victor sobre o tema justia popular. Nessa conversa, publi-cada na seleo de entrevistas e escritos Power/Knowledge (emportugus com o ttulo Sobre a justia popular na coletneaMicrofsica do Poder, editada no Brasil), o filsofo afirma que

    julgamentos populares, caso reproduzam uma forma burguesade justia, no obtm jamais a vontade do povo acabando pro-fundamente anti-judiciais. Conforme Foucault, [...] o tribunalno expresso natural da justia popular mas, pelo contrrio,tem a funo histrica de reduzi-la, domin-la, sufoc-la [...](Foucault, 2004, p. 39). Essa forma de organizar o ato do julga-mento estranha e acaba, de algum modo, imposto s classes

    populares.Explorando a analogia, Nustad (2007) entende que a for-

    ma como o desenvolvimento foi pensado e suas polticas ela-boradas por intelectuais e gestores adquiriu uma contradiosemelhante, uma vez que se realiza por meio da delegao daadministrao (trusteeship) na forma de conjunto de prticasque se deslocam de um centro (organizador) para um pblicoque alvo, mas em sua representao ocorre algo distinto. A in-dstria do desenvolvimento se fortalece ao sugerir que ela ape-nas facilita e executa aquilo que nasce no mago das prpriaspessoas (querer se desenvolver). O problema reside na assimetria,na compreenso de Nustad (2007), o que no torna a questo

    menos intrigante: existe, de fato, um lcus de onde emana avontade do desenvolvimento e, a partir dele, contagia outrosespaos e populaes? Alm dessa indagao, faz-se relevanteainda perguntar: se o desenvolvimento se associa moderni-dade e se difunde por meio de formas corporativas de pensara mudana social (Merry, 2011), a relao entre modernos eoutros aps a metade do sc. XX pode ser sintetizada na noode colonizao pelo desenvolvimento?

    Neste artigo, exploro trs dimenses do debate recentesobre o desenvolvimento, e o objetivo do trabalho o ma-peamento do debate e das diferentes perspectivas tericasimplicadas. Primeiro, analiso brevemente a crtica do desen-volvimento na proposta que se tornou conhecida como ps-desenvolvimento e que recupera a virada textual nas cinciassociais e seus desdobramentos, a saber, a emergncia do ps-estruturalismo, do feminismo e do ps-colonialismo (Crush,1995; Escobar, 1995). Grande parte da interpretao oriunda

    dessas produes centrou-se em programas capitaneados porgrandes organizaes de atuao global, com nfase no BancoMundial (The World Bank).

    Segundo, examino uma possvel articulao entre ops-desenvolvimento e a anlise crtica de indicadores, ndices,

    rankingse metas padronizadas de desenvolvimento e de gover-nana global. Na denominao de Ilcan e Phillips (2010), essesformatos de administrao e clculo agem como developmen-talities, fazendo referncia ao conceito de governamentalidadeaplicada ao desenvolvimento2. Os estudos nesse ramo muitasvezes versam sobre agncias internacionais e organizaes mul-tilaterais, tais como a ONU (Organizao das Naes Unidas), oPNUD (Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento) eseus indicadores e ndices. Ainda na mesma seo, exploro o fatode que a busca por indicadores e metas se alia ao que Ferguson eGupta (2005) chamam de governamentalidade neoliberal e quenos orienta a um modo de comportamento que favorece pr-

    ticas de controle, promoo da autonomia, valorizao do de-sempenho e da autorresponsabilizao, o que Strathern (2000)denominou de culturas de auditoria.

    Na terceira parte, analiso a relao entre colonizao edesenvolvimento em diferentes escritos recentes, bem como ascrticas a esta equao com algumas das respostas dadas aosautores vinculados perspectiva do ps-desenvolvimento. Aprioridade de algumas das interpretaes recentes est em es-tudos empricos sobre projetos e intervenes, afastando-se daanlise puramente textual que ganhou notoriedade ao revelararticulaes discursivas do desenvolvimento. Por fim, algumasconsideraes so tecidas e exploro a discusso sobre agncia

    e auditagem, os dilema do desejo e da repulsa pelo desenvolvi-mento, da participao e da possibilidade de (des)colonizaoepistmica no debate sobre desenvolvimento e modernidade.

    Ps-desenvolvimento,

    indicadores e auditorias

    Entre 1960 e meados dos anos 1970, a produo em cin-cias sociais sobre o tema do desenvolvimento foi substancial. Aver pelas teorias propostas pelos intelectuais latino-americanos(ou pesquisadores que tinham a Amrica Latina como alvo deinvestigao), o fenmeno marcou diferentes pases e tomoupapel crucial no iderio poltico e nas formas de interveno.Num primeiro momento, as cincias sociais viram-se envolvidasneste manto aurtico e de promessa redentora que os programasde desenvolvimento ofereciam. Entre teorias da modernizao

    2A governamentalidade foi trabalhada por Foucault, especialmente no seu curso no Collge de France de 1977/1978, em que o autor demonstraque o surgimento da poltica orientada arte de governar foi simultneo ao fato da noo de governo se espalhar por diferentes esferas do social(governo de pessoas, de crianas, de almas). Foucault reelabora o mesmo conceito no Curso do ano seguinte, tornando-o mais amplo e prximo aoque Inda (2005) entende por governo. Segundo Inda (2005, p. 1), governo [] generally refers to the conduct of conduct that is, to all those moreor less calculated and systematic ways of thinking and acting that aim to shape, regulate, or manage the comportment of others, whether these beworkers in factory, inmates in a prison, wards in a mental hospital, the inhabitants of a territory, or members of a population.

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    e, depois, a crtica marxista em diferentes verses, a esperanado desenvolvimento participava das perspectivas analticas semgrandes problemas.

    A partir de um determinado momento, com o aprofunda-mento da desigualdade e a percepo de reproduo da pobreza

    e igualmente com o crescente temor de destruio ambientale a reflexo sobre o contedo de violncia que marcavam aspropostas desenvolvimentistas , a crena no desenvolvimentopassou por abalos constantes.

    A partir do final dos anos 1970, com a absoro dos tra-balhos de Foucault (e a leitura de Said (1978) sobre os orien-talistas), o debate toma outro caminho, procurando demarcaro papel da mensagem e do significado do desenvolvimento(Dahl e Hjort, 1984) e da crtica ajuda tcnica que as cinciassociais, especialmente neste caso a antropologia (por exemplo,Cochrane, 1971), desempenhavam3. Entre 1985 e 1987 emergemdois trabalhos que se direcionam desconstruo do desenvol-

    vimento. Resultados de duas teses de doutorado e transformadasem livros, Ferguson (1990) e Escobar (1995) no procuram umbalano reflexivo que permita refundao a partir de resduospositivos do iderio do desenvolvimento, mas sua imploso. Evi-dentemente, no perodo entre 1980 e 1995, apareceram diversosoutros trabalhos que focavam na crtica ao desenvolvimento outangenciavam o assunto (ver Pantalen, 2002), sintoma do des-conforto de estudiosos com os rumos das formas de intervenoe dos fracassos de muitos projetos de desenvolvimento4.

    um momento peculiar: no cabia mais verificar as falhase lacunas sociais para ser possvel atingir um patamar superior.Tampouco verificar o que a sociedade tradicional necessitava emtermos psicossociolgicos e tecnolgicos para atingir a moderni-zao (postulado das teorias da modernizao) ou que tipos decontradies as polticas de desenvolvimento geravam em sua im-plementao (viso do marxismo). O foco estaria em demonstraro que o desenvolvimento faz, pois um instrumento poderoso detransformao e modelagem social. A crtica dos autores, inspi-rada nos trabalhos de Foucault, bastante dura. Nas palavras deFerguson (1990), o desenvolvimento uma mquina antipolticae ela age de modo acrtico. Para poder implementar projetos numespao qualquer, o aparelho estatal, os organismos e as agnciasmultilaterais precisam lidar e acomodare-se aos problemas so-ciais e conflitos locais; caso contrrio, no haver alianas (locaisou no) a fim de torn-los praticveis. Ademais, o que se processa

    em organismos e agncias propositoras de projetos tributriode um diagnstico que olha para os pases do terceiro mundoa partir da ideia de falta. Por isso, a eficcia do desenvolvimentodepende da representao de povos enquanto subdesenvolvidos.

    Na tica de Escobar (1995), o desenvolvimento, aindaque falhando, produz disciplinas; a isso o autor chama de efeito

    de instrumento. O conhecimento local sacrificado em favor deum modo racional de governo com a constituio de programas.O ponto de vista de Escobar salienta que a violncia no umefeito do descaso, do acesso desigual a polticas e dos efeitosprometidos e no cumpridos dos programas. Isto significa que a

    violncia e a desigualdade no so resultados das contradiesda mudana social induzida, mas o resultado prprio do dispo-sitivo como um todo, ao movimentar, planejar, dispor e quanti-ficar a vida das pessoas.

    Como resultado, um conjunto de publicaes emergenos anos 1990 sobre os dilemas e as crticas aos projetos inter-vencionistas e de planejamento top-downdo desenvolvimento.Reconfigurando o campo de debate sobre o tema, essas pers-pectivas passaram a se tornar conhecidas pela denominaops-desenvolvimento. Numa coletnea importante da poca,Crush (1995) demonstra com preciso qual foi a mudana defoco nos estudos: o privilgio do exame reflexivo sobre o de-

    senvolvimento est em se concentrar nos textos e discursos queorientam prticas e como estes representam e constroem ooutro, o subdesenvolvido (o objeto da poltica do desenvol-vimento). Mas, segue o autor, a prpria prtica no se separadessa organizao textual, uma vez que diagnstico sobre povose programas de mudana social esto em constante interao.Mesmo assim, a abordagem se ajusta prioridade de anlise dodiscurso, orientao tambm obtida dos mtodos empregadospor Michel Foucault.

    O ps-desenvolvimento se difundiu nos anos 1990 e ga-nhou flego ao juntar ativistas do campo e uma gama de inte-lectuais preocupados com os efeitos das polticas de desenvol-vimento, a ver pelos escritos de diferentes autores (Rist, 2008;Escobar, 1995, 2008; Crush, 1995; Esteva, 1992). Ao buscar de-flagrar o fim da era orientada pelo iderio do desenvolvimento,esses estudos crticos geraram um nmero expressivo de respos-tas por parte de intelectuais que ainda percebem que proble-mas como pobreza e desigualdades devem ser combatidas comprogramas, projetos e intervenes (Pottier, 2003; Storey, 2000entre outros; para um balano do debate, ver Ziai, 2007). No ireime deter nos meandros dessas perspectivas e remeto o leitor aostextos originais e anlises (Rahnema e Bawtree, 1997; Radomsky,2011; De Vries, 2007).

    A literatura mais recente sobre o assunto indica que de-terminados problemas vinculados ao desenvolvimento ainda

    requerem tratamento das cincias sociais, assim como outrasquestes aparecem na medida que novos olhares adquirem rele-vncia. o caso da articulao entre feminismo e possibilidadesde descolonizao (Lugones, 2008), a crise e o renascimento dodesenvolvimento em distintos espaos do mundo, as novas te-orias ator-rede (Schmitt, 2011) e a mudana de enfoque sobre

    3O debate sobre desenvolvimento e colonialidade em cincias sociais assume diversos pontos de vista, tal como explorado em Radomsky (2011).4Embora no seja objetivo buscar origens da crtica ao desenvolvimento, a meno aos trabalhos de Escobar e Ferguson intencional pela influnciados autores nos estudos seguintes. No entanto, preciso sublinhar a convergncia e a relevncia de coletneas como os de Sachs (1992), Hobart(1993) e escritos diversos de Serge Latouche, Gustavo Esteva, Gilbert Rist, Majid Rahnema, Gudrun Dahl, entre outros.

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    Ps-desenvolvimento, indicadores e culturas de auditoria: reflexes crticas sobre governana e desenvolvimento

    projetos, poder, interfaces, ao e interveno (Mosse e Lewis,2006; Ribeiro, 2005).

    Neste cenrio global, o repensar do desenvolvimentoenquanto igualado a crescimento econmico crucial e, juntoa ele, compreender como aparecem dois aspectos articulados:

    num primeiro momento, o crescimento do uso de ndices e in-dicadores de desenvolvimento que no se fundamentem apenasem renda per capitaou PIB; num segundo, a crtica a esta vi-rada em direo a indicadores de toda a sorte. Mais que apenasmonitoramento do desenvolvimento, so ferramentas de gover-nana global, portanto, por sua capilaridade em instituies eorganizaes de todo o tipo, passaram a ensejar estudos crticosque so bastante aproximados problemtica iniciada pelos au-tores do ps-desenvolvimento.

    Developmentalities e culturasde auditoria

    Tal como visto at esta parte, as cincias sociais teste-munharam debates e polmicas luz de problemas como re-presentao, significado e ideologias do desenvolvimento. Seobservarmos atentamente, poderamos citar pelo menos doisaspectos que sugerem inflexo no debate j h algumas dca-das. Primeiro, a emergncia de toda a sorte de pontos de vistasobre a sustentabilidade ambiental que passaram a ter fora apartir dos nos anos 1970 que veio a colocar limites noo derecursos inesgotveis (um balano dessas mudanas nas cinciaseconmicas est em Veiga, 2006). Segundo, a reviso das teoriasdo crescimento econmico que, fundamentando-se em medidas

    tais como o Produto Interno Bruto (PIB) ou renda per capita,eram at ento pouco questionadas e situavam quais posiespases ocupavam em termos de desenvolvimento. Sobre este l-timo problema que me concentro nesta parte.

    A inadequao do PIB ou da renda como medida nicado patamar de desenvolvimento passou a fomentar um conjuntode pesquisas sobre quais elementos poderiam compor indicado-res ou ndices mais precisos. Ou seja, pesquisadores engajaram-seem uma busca para medidas mais refinadas de comparao entrenaes sem perder o objetivo de constituir rankings e escalas nu-mricas. Na criao do ndice de Desenvolvimento Humano (IDH)da ONU, provavelmente o mais divulgado ndice que conhecemos

    criado por Mahbub ul Haq e que contou com a contribuio deAmartya Sen , o desafio era empreender um nmero sintticoque possibilitasse comparaes em escala global em trs dimen-ses agrupadas: educao, sade e renda. A partir do sucesso doIDH, um nmero espantoso de ndices e indicadores foi lanadoem todas as partes do mundo com diferentes propostas, atributos,componentes e formas de clculo (para uma anlise das gera-es de indicadores, ver Veiga, 2006). Essa avalanche de indica-dores expressa bem o que Merry (2011) denomina de virada [turn]em direo a indicadores para governana global.

    Publicaes recentes apontam que a virada para indica-dores, ndices e rankings de desenvolvimento representa uma

    forma renovada de governamentalidade (Lwenheim, 2008;Merry, 2011). Assim sendo, em que domnio essas avaliaes cr-ticas se diferenciam dos primeiros estudos sobre a governamen-talidade do desenvolvimento?

    Se desenvolvimento e suas prticas, processos e discursos

    sempre foi um tipo de soluo que oportunizava pases centraisensinarem aos perifricos como se modernizarem, os indica-dores exacerbam o problema de um mundo comum em que huma corrida entre esses atores para atingir metas globais e, maisimportante, coloca em cena a existncia de centros de clculoque gerenciam o desenvolvimento a distncia (Merry, 2011).Centros de clculo conceito trabalhado por Merry, derivadoda obra de Bruno Latour e expe a produo de conhecimentotranslocal, mas que parte de um ncleo de poder. Para o desen-volvimento ser medido e gerenciado, grandes agncias, bancose organizaes internacionais precisam monitorar e controlarprojetos de modo que estes possam ser comparveis em relat-

    rios (Merry, 2011). Sob este ponto de vista, gestores (e doadoresde recursos monetrios) precisam apenas ser informados acercada evoluo das estatsticas e monitoram programas a distncia(tambm examinado em De Vries, 2007, p. 31-32).

    Como efeito, est-se diante de um cenrio que experi-menta nmeros e estatsticas de modo a substituir a discussopoltica sobre desenvolvimento (Merry, 2011); o saber tcnicodos especialistas tem forte papel, sobretudo, daqueles lotadosem instituies que produzem ndices (Pantalen, 2002). Poressas e outras razes, Lwenheim (2008, p. 256) insiste no pro-blema de esta configurar um novo tipo de governamentalidade,em que estes indicadores e relatrios constituem um sistemacompleto de exame que estipula e/ou reafirma a estrutura dehierarquia e autoridade no sistema internacional. Ainda assim, amultiplicao dos indicadores numricos e ndices diversos espe-lha, por outro lado, a incessante elaborao dessas ferramentasem nvel local, pois as que geralmente se aplicam em matriade governana global parecem no responder a preocupaesregionais particulares. Pesquisadores e formuladores de polticasempreendem estudos que avaliam os prprios indicadores paraformar novas ferramentas adequadas a lugares ou processos/problemas especficos (ambiental, social, econmico, tecnolgi-co, etc., a depender da finalidade).

    Este princpio de medir e monitorar o desenvolvimentoprivilegia a calculabilidade de metas. Converge a este ponto o

    que Ilcan e Phillips (2010, p. 850) ironicamente sublinham: [...]um mundo novo e melhor precisa de novos tipos de dados, in-formao, conhecimento e orientaes para cumprir estas metasde prazo estabelecido. Sob esse ponto de vista, h certo fetichecom os nmeros, pois, aparentemente, s eles expressam com aobjetividade necessria as metas a serem atingidas. Merry (2011)refere-se a esse fenmeno atravs da expresso aura de objeti-vidade. E observe-se que, quando se fala de objetivos, o desafio fazer pases to diferentes buscarem fins comuns, tal comoest dado nos Objetivos do Milnio da ONU.

    Portanto, o que os nmeros apontam um novo aspec-to da padronizao de condutas em escala mundial, atributo

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    que os estudos crticos sobre desenvolvimento j apontavam hmuito tempo. O que passa a ser novidade o modo de medire escalonar o desenvolvimento e simultaneamente estipular adireo das transformaes que so almejadas e constitudasde antemo nos centros de clculo atravs de procedimentos

    estatsticos e construo de ndices que contemplem mltiplasdimenses maisdireitos humanos5.

    Se o problema se situasse apenas na fidedignidade dasestatsticas que em todos os lugares enfrentam problemas deerros em coleta e processamento de dados seria contornvel.Contudo, definies e formas de clculo so arbitrrias. A etno-grafia de Merry (2011) sobre construo de indicadores mostracomo definies consideradas simples, tal como o que ca-samento, enfrentam calorosas discusses quando precisam darconta da realidade cultural em distintas naes. Essas definiesvm a expressar futuramente os componentes numricos queso lidos como objetivos, mas a luta pela definio conceitual

    processual, poltica e terica ao mesmo tempo e ela no apa-rece nos resultados finais. Ilcan e Phillips ilustram a tecnologiade subjetivao que investida nessa abordagem na seguintepassagem que exemplificam a partir da temtica do gnero:

    [] o sucesso da igualdade de gnero est sendo medida porsomente trs indicadores (paridade na educao primria, em-prego remunerado e participao na poltica formal), indicado-res que falam claramente o tipo de pessoa produtiva e liberalque os Objetivos do Milnio esto calculando para o futuro(Ilcan e Phillips, 2010, p. 855).

    Semelhante anlise pode ser feita do PNUD, conforme

    Pantalen (2002, p. 239), pois este consiste na [...] principalinstncia internacional de legitimao das categorias-chave danova gerncia social, presentes nos formulrios padronizadosque servem para elaborao de projetos [...] (nfase adicionada).Mais adiante, comentando a atuao de antroplogos, o mesmoautor entende que, para administrar o desenvolvimento, conhe-cer populao-alvo fundamental, mas de um modo particular:Quantificar essas populaes e medir suas necessidades consti-tuir uma das atividades principais desses especialistas (Panta-len, 2002, p. 241).

    Diferenas e semelhanas podem ser apontadas entre asprimeiras e as mais recentes anlises crticas (influenciadas peloarcabouo foucaultiano) sobre o desenvolvimento. Quero destacar,

    nesta parte, o problema da governamentalidade neoliberal, enten-dida como uma racionalidade de governo identificada no commenos governo, mas uma modalidade distinta. , de fato, nos anos1990 que o neoliberalismo emerge com intensidade. Se a conduodas economias e dos programas de desenvolvimento desalojadado monoplio dos Estados, a sua transferncia coloca entidadesno-estatais (tais como organizaes e agncias) tambm na con-

    duta da ao e na qual a lgica de mercado passa a fazer partedo modo de gesto (Ferguson e Gupta, 2005). Alm disso, novasdisciplinas entram em jogo, com responsabilizao de indivduos eempresas, valor moral da autonomia e gerncia de risco.

    Ferguson e Gupta (2005) salientam que as entidades no-

    estatais no esto acima ou abaixo dos Estado, mas ambos con-vivem. O mercado regula as aes sociais e passa a disciplinaresferas dos Estados, uma lgica empresarial de administrao.De modo que os Estados jamais perdem a soberania (embora al-guns podem ser mais fortes que outros), essa nova governamen-talidade est em coexistncia com os poderes estatais; portanto,essa racionalidade de governo conforma-se como transnacional(Ferguson e Gupta, 2005).

    Quando a racionalidade de governo refletida em tornodas developmentalities, a responsabilizao e o controle passama garantir metas nacionais e globais. Neste nterim, a noo deculturas de auditoria faz sentido. Strathern (2000) se ampara no

    livro de Power (1997) para mostrar que um conjunto de prticasde contabilidade, controle e auditoria extravasa o mundo dasfinanas e passa a orientar metas e procedimentos de avaliaode governos, organizaes e pessoas. Isso pode ser considera-do o mago do que significa a experincia de viver a culturade auditoria. Para o campo das polticas de desenvolvimento, oefeito direto. Na interpretao de Merry (2011), atingir bonsindicadores no questo mais de um pas ou uma entidade deatuao translocal forar o pblico-alvo ou a nao perifri-ca adotar modelos e condutas, mas eles prprios acompanhamsua evoluo por meio dos indicadores, verificando em quequesitos esto bem e em quais devem melhorar. Performance,autorresponsabilizao e autodisciplina so fatores chave, poisos nmeros espelham desempenho e asseguram se metas taiscomo os Objetivos do Milnio podem ou no ser cumpridas noprazo acordado pelos membros.

    Ao invs de depositar a responsabilidade no avaliador, aautoavaliao das entidades (que podem ser municpios, esta-dos, pases, grupos, pessoas) transferida para o avaliado. Merry(2011, p. s88) explica o que ocorre quando a autogerncia res-ponsvel se associa aos indicadores: o indicador faz ele prprioo trabalho de crtica e a pessoa governada procura se conformaraos termos do governo. O deslocamento do controlador para ocontrolado refora a incorporao do monitoramento.

    Colonizao, normalizao

    e desenvolvimento

    Elemento polmico e crucial para entender a disputa so-bre o que consiste o projeto de desenvolver os subdesenvolvidosreside na possvel equao entre colonizao e desenvolvimento.

    5Investigar o quanto esses indicadores se apoiam na noo de direitos humanos daria um trabalho parte e poderia mostrar o quanto podem serpersuasiva as novas metodologias afastando-se de uma fundamentao simplesmente em renda e PIB para incluir diferentes aspectos do quealguns chamam de desenvolvimento social e poltico. Sobre direitos humanos e religio, consultar Asad (2003).

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    Ps-desenvolvimento, indicadores e culturas de auditoria: reflexes crticas sobre governana e desenvolvimento

    Num texto importante de balano do ps-desenvolvimento, Bri-gg (2002) entende que os estudiosos crticos do desenvolvimen-to fizeram uso indiscriminado da metfora da colonizao. A erado desenvolvimento seria uma sequncia da era colonial atua-lizando o sistema de poder para um patamar diferente, mas sob

    uma mesma essncia de dominao. No seu livro EncounteringDevelopment, escreve Escobar (1995, p. 5): a realidade, ao fim,tem sido colonizada pelo discurso do desenvolvimento [...]. ParaBrigg (2002), esse argumento faz pouco sentido e o que est em

    jogo a interpretao sobre Foucault. Na leitura cuidadosa dosdiferentes momentos do pensamento de Foucault, possvel dis-tinguir poder enquanto soberania (poder do soberano), no qualo uso da violncia fsica era irrestrito, e enquanto biopoder, aforma que se conhece na modernidade. Ainda conforme Brigg(2002), a biopoltica, ao contrrio do efeito colonial, preocu-pada com a preservao da vida, a incluso, a administrao eo clculo6.

    Para Brigg, os autores do ps-desenvolvimento utiliza-ram, de maneira retrica, a relao de continuidade entre colo-nizao e desenvolvimento, no percebendo que o dispositivo dodesenvolvimento age de modo difuso e sem centro de irradiao,mais voltado a inculcar a vontade do desenvolvimento (signifi-cativamente em elites nacionais de pases perifricos) do que emimpor com violncia a adeso a programas e metas. A palavra-chave no arcabouo conceitual foucaultiano seria normalizao.Citando Foucault, Brigg (2002, p. 428) afirma: normalizaono opera excluindo sujeitos ou entidades, mas os integran-do assiduamente no regime de poder [...]. Desse modo, no o poder oposicional que se sustenta entre Estados (metrpole-colnia), continua Brigg, mas o poder est no dispositivo quecoloca entidades em condies de estar num mesmo patamareconmico, social e tecnolgico via desenvolvimento emborana realidade esse hiato nunca seja superado. Os programas dealavancagem econmica atuam diretamente na mobilizao deinteresses e aspiraes de pessoas localizadas no terceiro mun-do, aspiraes estas que fundamentam a chance de que a mo-dernizao ocorra. Normalizao implica que as pessoas ou na-es possam aspirar igualdade de fato, consequncia sem a qualo poder ideolgico do desenvolvimento no poderia funcionar.A normalizao age para incluir e administrar sob o domnio dopoder (sobre a vida, a populao, a economia, o pensamento).

    Essa situao converge para o problema da responsabi-

    lizao dos pases em atingirem patamares que so fornecidospor indicadores e rankings, colocando aos atores do sistemade relaes internacionais objetivos e metas que eles prprios

    podem checar se esto cumprindo, ou seja, a internalizao dadisciplina que a cultura de auditoria legitima somada capa-cidade de agncia e discernimento dos avaliados. A fase recenteque vivemos acentua o carter de autodisciplina dos processosditos de desenvolvimento; e a respectiva performance se verifica

    via ndices e indicadores.Como efeito, alguns elementos da crtica de Brigg (2002)

    encontram claros limites: se o momento histrico da era do de-senvolvimento no mmese do empreendimento colonial, aconstituio da modernidade tem relaes diretas com sistemasde conhecimento que continuam se sustentando como uni-versais e que balizam as premissas do desenvolvimento. Perrot(2008, p. 220) recorda um argumento de Gilbert Rist: a no-o do desenvolvimento est fundada em trs pilares prpriosao Ocidente: Aristteles, o judaicocristianismo e a ideologia doIluminismo. Funcionando ancorado no mito do progresso e naconcepo linear de histria, constitui-se como a crena numa

    srie de prticas que formam uma unidade apesar das contradi-es entre elas (Rist, 2008, p. 24).Amparados em Rist, poderamos devolver a crtica aos ar-

    gumentos de Brigg e, alm disto, perguntar se Perrot (2008, p.222) tem razo ao afirmar que o desenvolvimento no seria umacaixa vazia que poderamos encher ao gosto das identidades cul-turais, mas sim um conjunto de prticas fundadas em uma visode mundo especfica e particular ligada a uma histria das naesindustrializadas [...]. A leitura de Brigg refinada e detalhista;entretanto, um tropeo est no panorama a-problemtico do fioque se estabelece entre modernidade/colonialidade e desenvol-vimento7. De outro lado, Perrot parece conceder pouco espao capacidade inventiva e reformulao do que seja o desenvolvi-mento, feita muitas vezes em processos de resistncia local poratores engajados em prticas criativas. Recuperarei esses pontosnas concluses do texto ao sublinhar a interao entre a moderni-dade, sua dimenso epistmica e a narrativa do desenvolvimento.

    Autores simpticos ao ps-desenvolvimento tambmpercebem que a interseco entre discursos e prticas precisaser mais bem examinada, caso de Nustad (2007). Vale recordarque Nustad no entende que a vertente de anlise textual devaser abandonada, uma vez que ela demonstrou como discursosorientaram programas de envergadura e aplicao em escalatransnacional (condicionando adequao para financiamentose projetos do Banco Mundial, por exemplo). O fulcro da ques-

    to apontado pelo autor diz respeito ao diagnstico social: paracontrolar e intervir na populao, os Estados produzem modelossimplificados e esquemticos da realidade.

    6Escobar (1995) nota que entre o discurso colonial e o do desenvolvimento existem diferenas, mas [...] o discurso do desenvolvimento governado pelosmesmos princpios; ele criou um dispositivo extremamente eficiente para produzir conhecimento e exercer poder sobre o Terceiro Mundo (Escobar, 1995,p. 09). Cabe recordar que biopoder jamais significa menos poder, a ver pelas instigantes e distintas anlises de Agamben (2002) e de Esposito (2008).7Se o poder soberano est vinculado prpria fundao da poltica ocidental moderna, a atividade poltica sobre a economia atravs de programasde desenvolvimento tambm poderia ser interpretada como deciso soberana sobre quais mudanas sociais so necessrias e/ou excepcionais.Agamben (2004, p. 37) recupera um discurso de Roosevelt: Pedirei ao congresso um nico instrumento que me resta para enfrentar a crise: amplospoderes executivos [...], poderes to amplos quanto os que me seriam atribudos se fssemos invadidos por um inimigo externo. Para Agamben, hum paralelismo no sc. XX entre a emergncia militar e a econmica (Agamben, 2004, p. 32).

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    Em outro ponto de vista, alguns analistas concordam queabertura ao eixo analtico semeado por Foucault de extremaimportncia (por exemplo, Mosse e Lewis, 2006), mas do pontode vista metodolgico. Por conseguinte, possvel sair do im-passe da pura anlise discursiva e ir ao campo das prticas. No

    se trata de abandonar a perspectiva crtica, porm, de ver deperto problemas e processos localizados de desenvolvimento.Em termos tericos, uma passagem da textualidade aos ato-res, interfaces e redes (Long, 2001; Mosse e Lewis, 2006). Nessepanorama, so fundamentais os estudos que avaliam megapro-

    jetos, construes e obras que pretendem levar o desenvolvi-mento aos recnditos, tal como Ribeiro (2005), em que o examein locode projetos, prticas e processos assume uma relevncia.Essa percepo pode revelar elementos simblico-culturais noapenas das populaes alvo dos projetos e das polticas, masigualmente dos outsiders (Ribeiro, 2005), tais como agentes deimplementao de projetos, formuladores de polticas pblicas e

    gerentes de ONGs nacionais e internacionais.Estudos aprofundados podem revelar processos e pro-blemas, tenses, interfaces, assimetrias e acordos. Se, em de-terminados contextos, developmenttornou-se paradoxalmentesinnimo de envelopment(Walsh, 2010), preciso saber quando,como e por que essa potencialidade se atualiza. Tema tpico en-tre pesquisadores que se dedicam a pensar em processos sociaislatino-americanos, dilemas do desenvolvimento na Amrica an-dina so fatalmente distintos daqueles que ocorrem nos pasesdo Conesul, haja vista processos de colonizao diferenciados emodos de apropriao que categorias tipicamente modernas eeurocntricas foram introduzidas, argumento de Mignolo (2000).

    Conhecer como discursos controem representaes e como estasocorrem na prtica evoca olhares que no abdiquem da anlisetextual/discursiva semeada pelo ps-desenvolvimento, mas queprovoquem essa mesma abordagem ao procurar examinar prti-cas, processos, redes, negociaes, arenas e mediaes.

    Consideraes finais

    Um dos dilemas ao se refletir a partir da noo de cul-turas de auditoria localizar os artifcios de poder, embora nohaja dvidas de que ele est presente. Na medida em que seevoca o papel da autodisciplina e da autogerncia conformista

    aos propsitos de governo e de programas de desenvolvimen-to por meio de indicadores, rankings e metas, a questo setorna complexa no campo da ao. No se trata de empreenderum olhar unilateral sobre tecnologias de subjetivao, porm, deperceber as armadilhas da capacidade de agncia e do seu mo-nitoramento reflexivo (como Giddens (2003) nos apresenta) emque os agentes se ajustam aos termos propostos por centros declculos. Autorresponsabilizao e conduta social reflexiva sotermos chave, as quais poderiam nos remeter a uma sociologiada agncia. No entanto, as developmentalitiesguardam signi-ficativa aproximao a uma espcie de monitoramento em quenos damos o trabalho de adaptao s convenes.

    ndices e indicadores formulados pelos centros mundiaisde clculo so os mais relevantes pela permeabilidade e pelo po-der de convencimento. Mas, alternativamente, iniciativas locaisde estudo, pesquisa e elaborao de ferramentas quantitativasde avaliao sugerem que os prprios instrumentos passam por

    reinveno e adaptao.No campo dos saberes, a questo se desloca para outras

    tenses. Sustenta-se aqui, seguindo o pensamento de Andre-asson (2005), que o ps-desenvolvimento procura equalizar acapacidade de diferentes culturas na produo de um conhe-cimento que pretende maior autonomia e representao de sifora da episteme moderna. Por essa razo, penso que as relaesentre modernidade e desenvolvimento so esclarecidas por au-tores como Rist, Perrot, Escobar, Blaser e outros, especialmenteporque categorias do conhecimento (ocidental) so levadas jun-to aos programas de interveno e desenvolvimento, com im-portante papel da mquina estatal (Blaser, 2004). Insurgncias e

    desobedincias podem redundar, ou tentar proceder, em desco-lonizao epistmica (Walsh, 2010; Mignolo, 2000) e, portanto,discutir colonizao ainda faz sentido para as cincias sociaispreocupada com polticas e programas de desenvolvimento.

    E a questo do desejo do desenvolvimento, afinal? A con-cepo de De Vries (2007) sugere existir um ncleo do desenvol-vimento que se prende de forma basilar ao desejo das pessoas e,eventualmente, como reparao histrica de promessas no rea-lizadas. A vontade no estaria apenas na indstria do desenvolvi-mento, porm, em todos ns. Mas o fundo inquestionvel do de-sejo encontraria problemas na formulao engenhosa de Nustad:

    [...] falar do desenvolvimento bottom-up confundir meios efins do desenvolvimento. Se o objetivo do desenvolvimento definido como ampliar as escolhas das pessoas, isso pressupe[citando Cowen e Shenton] desejo e capacidade de escolher,assim como conhecimento da escolha possvel (Nustad, 2007,p. 40).

    Nustad (2007) continua com o argumento dos autoresdizendo que esses fatores so geralmente implicados como pr-condies e fins do desenvolvimento; para ele, tal como apre-sentei na introduo, o que falta na conexo a delegao daadministrao (trusteeship): algum que tem a necessria van-tagem guia e controla o processo de desenvolvimento (Nustad,

    2007, p. 40), fato que repercute nas vontades das pessoas.De qualquer modo, a preocupao de De Vries (2007) vital na medida em que negar a legitimidade do desejo das pes-soas sacrificar a capacidade de discernimento e aspirao, etambm forma de traio das promessas que a mquina-dese-

    jante do desenvolvimento coloca em movimento.Destaco as leituras benjaminianas de John Dawsey e Mi-

    chael Taussig no modo como evitam uma posio unilateral. Apergunta o que o desenvolvimento cala? nos faz pensar que hum mundo de experincias no necessariamente aguardando aredeno via polticas de desenvolvimento. Inversamente, pode-ramos refazer a questo para o que a ausncia (de polticas e

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    Ps-desenvolvimento, indicadores e culturas de auditoria: reflexes crticas sobre governana e desenvolvimento

    programas) de desenvolvimento cala? e ento para a indagaode Dawsey, oriunda de outro contexto de discusso: o que dizerdos elementos no resolvidos da vida social que caem no esque-cimento, desaparecem em remoinhos, ou permanecem s mar-gens inclusive dos fluxos poderosos de dramas sociais? (Dawsey,

    2009, p. 352). Imagens do passado ganham sentido no presente quando o ocorrido encontra o agora (Benjamin, 2009) e si-nalizam a experincia do que ficou para trs, da qual irrompemesperanas ainda no realizadas (Dawsey, 2009, p. 358). Aindaque mantendo um olhar crtico, no h nada que se possa afir-mar antecipadamente sobre se polticas e programas de desen-volvimento devem ser afastadas dessas esperanas. A leitura deDe Vries (2007) acerca do assunto aponta uma direo at entopouco explorada e que, penso, pode encontrar em Benjamin umaverso igualmente profcua: no analisar apenas discursos ouprticas atualizadas, mas estudar tambm o virtual, aquilo que almejado e no alcanado, os desejos e a imaginao em torno

    do (que ) desenvolvimento.A cultura da auditoria parece sinalizar a implacvelconfiana nos nmeros como instrumental que faz a prpria cr-tica do (sub)desenvolvimento, e Merry (2011) sustenta que a elaabafa as tentativas de se produzir um conhecimento qualitativocom detalhes de contexto e histria. Haveria aqui um paralelocom o declnio da tradio narrativa e a perda da experincia(Benjamin, 1985)? Entre nmeros, rankingse indicadores, de umlado, e a complexidade social com negociaes, sonhos, interfa-ces e poderes em disputa dos projetos/programas de desenvolvi-mento, de outro, talvez faltem pesquisas realmente qualitativase ricas em contradies e problemas, aquilo que Dawsey (2009)

    denomina de descrio tensa.

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    Submetido: 19/03/2012Aceito: 10/07/2013