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Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 L’O S S E RVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt Ano LI, número 23 (2.650) Cidade do Vaticano terça-feira 9 de junho de 2020 No Angelus o pensamento pelas vítimas da pandemia, pelos doentes e por quantos cuidam deles Próximo das populações que ainda sofrem por causa do vírus NESTE NÚMERO Pág. 2: Mensagem para o cinquentenário da promulgação do Rito da Consagração das virgens; pág. 3: Audiência geral de quarta-feira; págs. 4-5: Carta ao clero de Roma; pág. 6: Antropologia nos tempos da rede, por Marko Ivan Rupnik; pág. 7: Mensagem do Papa para o próximo Dia missionário mundial; págs. 8/9: Conversa com Andrea Acutis, por Andrea Monda; A quinta estação, por Giuseppe Buffon; pág. 10: Mensagem do Pontífice para a vigília mundial de Pentecostes organizada online por Charis; pág. 11: Mensagem em vídeo ao movimento Thy Kingdom Come; Oferecida pelo Papa uma ambulância para os desabrigados de Roma; págs. 12 e 13: Entrevista ao cardeal Tagle sobre a mensagem às Pom, por Alessandro Gisotti; pág. 14: Ajuda concreta à Amazónia; A santa inquietação de António; pág. 15: Informações; Intenção de oração para o mês de junho.

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L’O S S E RVATOR E ROMANOEDIÇÃO SEMANAL

Unicuique suum

EM PORTUGUÊSNon praevalebunt

Ano LI, número 23 (2.650) Cidade do Vaticano terça-feira 9 de junho de 2020

No Angelus o pensamento pelas vítimas da pandemia, pelos doentes e por quantos cuidam deles

Próximo das populaçõesque ainda sofrem por causa do vírus

NESTE NÚMEROPág. 2: Mensagem para o cinquentenário da promulgação do Rito da Consagração das virgens; pág. 3: Audiência geral dequarta-feira; págs. 4-5: Carta ao clero de Roma; pág. 6: Antropologia nos tempos da rede, por Marko Ivan Rupnik; pág. 7:Mensagem do Papa para o próximo Dia missionário mundial; págs. 8/9: Conversa com Andrea Acutis, por Andrea Monda; Aquinta estação, por Giuseppe Buffon; pág. 10: Mensagem do Pontífice para a vigília mundial de Pentecostes organizada onlinepor Charis; pág. 11: Mensagem em vídeo ao movimento Thy Kingdom Come; Oferecida pelo Papa uma ambulância para osdesabrigados de Roma; págs. 12 e 13: Entrevista ao cardeal Tagle sobre a mensagem às Pom, por Alessandro Gisotti; pág. 14:Ajuda concreta à Amazónia; A santa inquietação de António; pág. 15: Informações; Intenção de oração para o mês de junho.

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página 2 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 9 de junho de 2020, número 23

L’OSSERVATORE ROMANOEDIÇÃO SEMANAL

Unicuique suumEM PORTUGUÊSNon praevalebunt

Cidade do Vaticanoredazione.p ortoghese.or@sp c.va

w w w. o s s e r v a t o re ro m a n o .v a

ANDREA MONDAd i re t o r

Giuseppe Fiorentinov i c e - d i re t o r

Redaçãovia del Pellegrino, 00120 Cidade do Vaticano

telefone +390669899420fax +390669883675

TIPO GRAFIA VAT I C A N A EDITRICEL’OS S E R VAT O R E ROMANO

Serviço fotográficotelefone +390669884797

fax +390669884998p h o t o @ o s s ro m .v a

Assinaturas: Itália - Vaticano: € 58.00; Europa: € 100.00 - U.S. $ 148.00; América Latina, África,Ásia: € 110.00 - U.S. $ 160.00; América do Norte, Oceânia: € 162.00 - U.S. $ 240.00.

Administração: telefone +390669899480; fax +390669885164; e-mail: assinaturas.or@sp c.va

Para o Brasil: Impressão, Distribuição e Administração: Editora santuário, televendas: 0800-160004, fax: 00551231042036, e-mail: [email protected]

Publicidade Il Sole 24 Ore S.p.A, System Comunicazione Pubblicitaria, Via Monte Rosa, 91,20149 Milano, [email protected]

Mulheres da misericórdiaperitas em humanidade

Mensagem para o cinquentenário da promulgação do Rito da Consagração das virg e n s

«Aquilo que se passa no mundoincita-vos: não fecheis os olhos, nemfujais; cruzai com delicadeza atribulação e o sofrimento; perseverai naproclamação do Evangelho da vida emplenitude para todos». Escreveu oPapa Francisco numa mensagem, coma data de domingo, 31 de maio edifundida no dia seguinte,1 de junho, por ocasião docinquentenário da promulgação do Ritoda Consagração das virgens. O Paparefere-se à pandemia da Covid-19, queobrigou a Congregação para osinstitutos de vida consagrada e associedades de vida apostólica a adiar oencontro internacional convocado parafestejar a celebração. A seguir, o textopontifício.

Queridas irmãs!1. Há cinquenta anos, a Sacra Con-gregação para o Culto Divino, pormandato de São Paulo VI, promulga-va o novo Rito da Consagração dasV i rg e n s . A pandemia em curso obri-gou a adiar o encontro internacionalconvocado pela Congregação paraos Institutos de Vida Consagrada eas Sociedades de Vida Apostólicapara celebrar este relevante aniversá-rio. Contudo desejo de igual modounir-me ao vosso agradecimento poresta «dúplice dádiva do Senhor àsua Igreja», como vos disse SãoJoão Paulo II por ocasião do vigési-mo quinto aniversário: o Rito re n o -vado e uma Ordo fidelium « re s t i t u í d aà Comunidade Eclesial» (Discurso àsparticipantes no Encontro Internacionalda «Ordo virginum», 2/VI/1995).

A vossa forma de vida encontra asua primeira fonte no Rito, tem asua configuração jurídica no cân.604 do Código de Direito Canónico e,desde 2018, na Instrução EcclesiaeSponsae imago. A vossa vocação evi-dencia a riqueza inexaurível e multi-forme dos dons do Espírito do Res-

suscitado, que renova todas as coisas(cf. Ap 21, 5). Ao mesmo tempo, éum sinal de esperança: a fidelidadedo Pai continua ainda hoje a colocarno coração de algumas mulheres odesejo de serem consagradas ao Se-nhor na virgindade, vivida no seuambiente social e cultural comum,radicadas numa Igreja particular, nu-ma forma de vida antiga e simulta-neamente nova e moderna.

Acompanhadas pelos Bispos,aprofundastes a especificidade davossa forma de vida consagrada, ex-perimentando que a consagração vosconstitui na Igreja numa Ordo fide-lium particular. Continuai por estecaminho, colaborando com os Bis-pos, para que existam percursos sé-rios de discernimento vocacional ede formação inicial e permanente.Com efeito, o dom da vossa vocaçãomanifesta-se na sinfonia da Igreja,que se constrói quando pode reco-nhecer, em vós, mulheres capazes deviver o dom da «sororidade».

2. Cinquenta anos depois do Ritorenovado, gostaria de vos dizer: nãoextingais a profecia da vossa voca-ção! Não é por mérito vosso, maspela misericórdia de Deus que soischamadas a fazer resplandecer navossa vida o rosto da Igreja, Esposade Cristo, que é virgem porque ela,apesar de composta por pecadores,guarda íntegra a fé, concebe e fazcrescer uma humanidade nova.

Unidas ao Espírito, à Igreja intei-ra e a quantos ouvem esta Palavra,sois convidadas a entregar-vos aCristo e a dizer-Lhe: «Vem!» (Ap 22,17), para habitar na força dada pelasua resposta: «Sim. Virei brevemen-te» (Ap 22, 20). Esta visita do Espo-so é o horizonte do vosso caminhoeclesial, a vossa meta, a promessaque se deve guardar cada dia. Assim,«podereis ser estrelas que orientam ocaminho do mundo» (BENTO XVI,

Discurso às participantes no Congressoda «Ordo virginum», 15/V/2008).

Convido-vos a reler e meditar ostextos do Rito, onde ressoa o sentidoda vossa vocação: sois chamadas aexperimentar e testemunhar queDeus, em seu Filho, nos amou pri-meiro, que o seu amor se estende atodos e tem a força de transformaros pecadores em santos. De facto,«Cristo amou a Igreja e entregou-Sepor ela, para a santificar, purifican-do-a, no banho da água, pela pala-vra» (Ef 5, 25-26). A vossa vida farátransparecer a tensão escatológicaque anima a criação inteira, que im-pele toda a história e nasce do con-vite do Ressuscitado: «Levanta-te, óminha bela amada, e vem!» (cf. Ct2, 10; ORÍGENES, Homilias sobre oCântico dos Cânticos II, 12).

3. A Homilia proposta pelo Ritode Consagração exorta-vos: «Amai atodos, mas objeto das vossas prefe-rências sejam os pobres» (n. 29). Aconsagração reserva-vos para Deus,sem vos alienar do ambiente ondeviveis e sois chamadas a dar o vossotestemunho com o estilo da proximi-dade evangélica (cf. Ecclesiae Sponsaeimago, 37-38). Com esta específicaproximidade aos homens e mulheresde hoje, a vossa consagração virginalajude a Igreja a amar os pobres, aidentificar as pobrezas materiais eespirituais, a socorrer os mais frágeise indefesos, todos os que padecemdoenças físicas e psíquicas, os pe-queninos e os idosos, quantos cor-rem o risco de ser postos de lado edescartados.

Sede mulheres da misericórdia, peri-tas em humanidade. Mulheres queacreditam «na força revolucionáriada ternura e do afeto» (FR A N C I S C O,Exort. ap. Evangelii gaudium, 288).A pandemia ensina-nos que «é tem-po de remover as desigualdades, sa-nar a injustiça que mina pela raiz asaúde da humanidade inteira»

(FR A N C I S C O, Homilia na Missa daDivina Misericórdia, 19/IV/2020).Aquilo que se passa no mundo inci-ta-vos: não fecheis os olhos, nem fu-jais; cruzai com delicadeza a tribula-ção e o sofrimento; perseverai naproclamação do Evangelho da vidaem plenitude para todos.

A Oração de Consagração, ao in-vocar sobre vós os multiformes donsdo Espírito, pede que possais vivernuma casta libertas (Rito da Consa-gração das Virgens, 38). Seja este ovosso estilo de relacionamento, paraser sinal do amor esponsal que uneCristo à Igreja, virgem mãe, irmã eamiga da humanidade. Com a vossabondade (cf. Flp 4, 5), tecei tramasfeitas de relações autênticas, que res-gatem da solidão e do anonimato osbairros das nossas cidades. Sede ca-pazes de desassombro, mas afastai atentação da murmuração e da male-dicência. Tende a sabedoria, a de-senvoltura e a credibilidade da cari-dade, para vos opordes à arrogânciae evitar os abusos de poder.

4. Na Solenidade de Pentecostes,desejo abençoar cada uma de vós,bem como as mulheres que estão apreparar-se para receber esta consa-gração e todas aquelas que a vão re-ceber no futuro. «O Espírito Parácli-to é dado à Igreja como princípioinexaurível da sua alegria de esposade Cristo glorificado» (S. PAU L O VI,Exort. ap. Gaudete in Domino, 41).Como sinal da Igreja Esposa, pos-sais vós ser sempre mulheres da ale-gria, a exemplo de Maria de Nazaré,mulher do Ma g n i f i c a t , mãe do Evan-gelho vivente.

Roma, em São João de Latrão,na Solenidade de Pentecostes,

31 de maio de 2020.

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número 23, terça-feira 9 de junho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 3

Não se deve ter medode discutir com Deus

Sobre a prece de Abraão

C AT E Q U E S E

Também «discutir» e «zangar-se» com Deus pode ser «uma forma deoração», pois só um filho é capaz de se zangar com o pai e depois reencontrá-lo». Afirmou o Papa Francisco na audiência geral de quarta-feira, 3 de junho,realizada na Biblioteca particular do Palácio Apostólico do Vaticano, devido àsmedidas de segurança adotadas para impedir o contágio do coronavírus.Prosseguindo o ciclo de catequeses iniciado a 6 de maio, o Pontífice concentro ua sua meditação na prece de Abraão.

em fidelidade incessante àquela Pa-lavra, que periodicamente se mani-festava ao longo do seu caminho.Em síntese, podemos dizer que navida de Abraão a fé se faz história.A fé faz-se história! Aliás, com asua vida, com o seu exemplo,Abraão ensina-nos este caminho,este itinerário em que a fé se fazhistória. Deus já não é visto unica-mente nos fenómenos cósmicos,como um Deus distante que podeincutir terror. O Deus de Abraãotorna-se o “meu Deus”, o Deus daminha história pessoal, que orientaos meus passos, que não me aban-dona; o Deus dos meus dias, ocompanheiro das minhas aventuras;o Deus da Providência. Pergunto-me e pergunto-vos: temos esta ex-periência de Deus? O “meu Deus”,o Deus que me acompanha, oDeus da minha história pessoal, oDeus que guia os meus passos, quenão me abandona, o Deus dosmeus dias? Temos esta experiência?Pensemos nisto!

Esta experiência de Abraão étambém testemunhada por um dostextos mais originais da história daespiritualidade: o Me m o r i a l , deBlaise Pascal. Começa assim:«Deus de Abraão, Deus de Isaac,Deus de Jacob, não dos filósofosnem dos sábios. Certeza, certeza.Sentimento. Alegria. Paz. Deus deJesus Cristo». Este Memorial, es-crito num pequeno pergaminho, eencontrado após a sua morte cosi-do dentro de uma veste do filóso-fo, exprime não uma reflexão inte-lectual que um homem sábio comoele pode conceber acerca de Deus,mas o sentido vivo, experimentado,da sua presença. Pascal anota até omomento exato em que sentiuaquela realidade, tendo-a finalmen-te encontrado: a noite de 23 de no-vembro de 1654. Não se trata doDeus abstrato, nem do Deus cós-mico, não! É o Deus de uma pes-soa, de uma chamada, o Deus deAbraão, de Isaac, de Jacob, o Deusque é certeza, que é sentimento,que é alegria!

«A oração de Abraão exprime-se, antes de mais, em atos: homemde silêncio, constrói em cada etapaum altar ao Senhor» (Catecismo da

Igreja Católica, n. 2.570). Abraãonão edifica um templo, mas espa-lha pelo caminho pedras que recor-dam a passagem de Deus. UmDeus surpreendente, como quandoo visita na figura de três hóspedes,que ele e Sara recebem com genti-leza, e que lhes anunciam o nasci-mento do filho Isaac (cf. Gn 18, 1-15). Abraão tinha cem anos e a suaesposa, mais ou menos noventa. Eacreditaram, confiaram em Deus. ESara, sua esposa, concebeu. Comaquela idade! Este é o Deus deAbraão, o nosso Deus, que nosacompanha.

Assim, Abraão familiariza comDeus, é capaz até de discutir comEle, mas sempre fiel. Fala comDeus e debate. Até à suprema pro-vação, quando Deus lhe pede quesacrifique precisamente o filhoIsaac, o filho da velhice, o únicoherdeiro. Aqui Abraão vive a sua fécomo um drama, como se cami-nhasse às apalpadelas na noite, sobum firmamento desta vez sem es-trelas. E com frequência tambémnós caminhamos na escuridão, mascom fé. O próprio Deus deterá amão de Abraão, já pronta para fe-rir, porque viu a sua disponibilida-de verdadeiramente total (cf. Gn22, 1-19).

Irmãos e irmãs, aprendamos deAbraão, aprendamos a rezar comfé: ouvir o Senhor, caminhar, dialo-gar até debater. Não tenhamos me-do de discutir com Deus! Direitambém algo que parece heresia.Muitas vezes ouvi dizer: “Sabes, is-to aconteceu comigo e zanguei-mecom Deus” — “Tiveste a coragemde ficar zangado com Deus?” —“Sim, zanguei-me!” — “Mas esta éuma forma de oração”. Pois só umfilho é capaz de se zangar com opai e depois voltar a encontrá-lo.Aprendamos de Abraão a rezarcom fé, a dialogar, a discutir, massempre dispostos a aceitar a pala-vra de Deus e a pô-la em prática.Com Deus, aprendamos a falar co-mo um filho com o seu pai: ouvi-

lo, responder, debater. Mas de for-ma transparente, como um filhocom o pai. É assim que Abraão nosensina a rezar. Obrigado!

O racismo é um «pecado» que «nãopodemos tolerar»: recordou o Papano final da audiência, na saudaçãoaos fiéis de língua inglesa,manifestando a sua preocupação pelosviolentos protestos nos EstadosUnidos da América depois da mortede George Floyd.

Amados irmãos e irmãs dos Esta-dos Unidos, acompanho com gran-de preocupação as dolorosas desor-dens sociais que nestes dias se veri-ficam na vossa Nação, após a trági-ca morte do senhor George Floyd.Caros amigos, não podemos tolerarnem fechar os olhos diante dequalquer tipo de racismo ou de ex-clusão, e devemos defender a sacra-lidade de cada vida humana. Aomesmo tempo, devemos reconhecerque “a violência das últimas noitesé autodestrutiva e autolesiva. Nadase ganha com a violência e muitose perde”. Hoje uno-me à Igreja deSaint Paul e Minneapolis, bem co-mo de todos os Estados Unidos,para rezar pelo descanso da almade George Floyd e por todos osoutros que perderam a vida devidoao pecado do racismo. Oremos pe-la consolação das famílias e dosamigos consternados, e rezemospela reconciliação nacional e pelapaz a que aspiramos. Nossa Senho-ra de Guadalupe, Mãe da América,interceda por quantos labutam pelapaz e pela justiça na vossa terra eno mundo. Deus abençoe todosvós e as vossas famílias!

Dirijo uma cordial saudação aosfiéis de língua portuguesa, encora-jando-vos a procurar e encontrarDeus na oração: assim experimen-tareis a guia do Espírito Santo, quefará de cada um de vós verdadeirastestemunhas da fé cristã na socie-dade. De bom grado abençoo avós e aos vossos entes queridos!

Prezados irmãos e irmãs, bom dia!Há uma voz que ressoa repentina-mente na vida de Abraão. Umavoz que o convida a enveredar porum caminho que parece absurdo:uma voz que o impele a desarrai-gar-se da sua pátria, das raízes dasua família, para partir rumo a umnovo futuro, um futuro diferente.E tudo com base numa promessa,na qual é necessário apenas confiar.E confiar numa promessa não é fá-cil, é preciso ter coragem. EAbraão confiou.

A Bíblia nada diz sobre o passa-do do primeiro patriarca. A lógicada situação sugere que ele adoravaoutros deuses; talvez fosse um ho-mem sábio, acostumado a perscru-tar o céu e as estrelas. Com efeito,o Senhor promete-lhe que os seusdescendentes serão tão numerososcomo as estrelas que pontilham océu.

E Abraão parte. Ouve a voz deDeus e confia na sua palavra. Istoé importante: confia na palavra deDeus. E com esta sua partida nasceum novo modo de conceber a rela-ção com Deus; é por este motivoque o patriarca Abraão está presen-te nas grandes tradições espirituaisjudaica, cristã e islâmica como ho-mem de Deus perfeito, capaz de sesubmeter a Ele, até quando a suavontade se revela árdua, ou incom-p re e n s í v e l .

Portanto, Abraão é o homem daP a l a v ra . Quando Deus fala, o ho-mem torna-se receptor daquela Pa-lavra e a sua vida transforma-se nolugar onde ela pede para se encar-nar. Esta é uma grande novidadeno percurso religioso do homem: avida do crente começa a conceber-se como vocação, ou seja, comochamada, como lugar onde se cum-pre uma promessa; e ele move-seno mundo não tanto sob o peso deum enigma, mas com a força da-quela promessa, que um dia se háde cumprir. E Abraão acreditou napromessa de Deus. Acreditou epartiu, sem saber para onde ia —assim diz a Carta aos Hebreus (cf.11, 8). Mas confiou!

Lendo o livro do Génesis, desco-brimos que Abraão viveu a oração

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página 4 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 9 de junho de 2020, número 23

Ao clero de Roma o Papa pediu que se deixe surpreender pela graça do Ressuscitado e pela força humilde do povo

Profetas de um novo futuroCoragem, discernimento, esperança e respostas criativas à crise da pandemia

O Papa chama os sacerdotes de Romaa «anunciar e profetizar o futuro»,recordando que a fase do pós-pandemiarequer coragem, discernimento eesperança para «instaurar um temposempre novo: o tempo do Senhor».Francisco dirige-se diretamente ao cleroda sua diocese — com o qual este ano,precisamente devido à pandemia, nãose pôde encontrar no período quaresmal— com a seguinte carta divulgada natarde de sábado, 30 de maio.

Amados irmãos!Neste tempo de Páscoa, eu pensavaem encontrar-me convosco e celebrarjuntos a Missa crismal. Uma vez queuma celebração de caráter diocesanonão é possível, escrevo-vos esta car-ta. A nova fase que iniciamos pede-nos sabedoria, clarividência e com-promisso comum, para que todos osesforços e sacrifícios feitos até agoranão sejam inúteis.

Durante este tempo de pandemia,muitos de vós partilharam comigo,por e-mail ou por telefone, o signifi-cado desta situação imprevista e des-concertante. Assim, sem poder sairnem ter contacto direto, permitistesque eu soubesse “de primeira mão”o que estáveis a experimentar. Estapartilha alimentou a minha oração,em muitos casos para agradecer otestemunho corajoso e generoso querecebia de vós; noutros, foi a súplicae a intercessão confiante no Senhor,que sempre estende a sua mão (cf.Mt 14, 31). Embora fosse necessáriomanter o distanciamento social, istonão impediu de reforçar o sentimen-to de pertença, de comunhão e demissão que nos ajudou a garantirque a caridade não fosse posta emquarentena, especialmente para comas pessoas e comunidades mais des-favorecidas. Nestes diálogos since-ros, pude constatar que a distâncianecessária não era sinónimo de fuganem de fechamento em si mesmoque anestesia, adormece e apaga amissão.

Encorajado por estes intercâm-bios, escrevo-vos porque quero estarmais próximo de vós para acompa-nhar, partilhar e confirmar o vossocaminho. A esperança depende tam-bém de nós e exige que nos ajude-mos uns aos outros a mantê-la viva eativa; aquela esperança contagiosaque é cultivada e reforçada no en-contro com os outros e que, comodom e tarefa, nos é dada para cons-truir a nova “normalidade” que tan-to desejamos.

Escrevo-vos, olhando para a pri-meira comunidade apostólica, queviveu também momentos de confina-mento, isolamento, medo e incerte-za. Passaram cinquenta dias entre aimobilidade, o fechamento e o anún-cio incipiente que iria mudar parasempre a sua vida. Os discípulos ti-nham fechado as portas do lugar on-de estavam, por medo dos judeus.Jesus veio e «pôs-se no meio deles edisse-lhes: “A paz seja convosco”.Dito isto, mostrou-lhes as suas mãos

que não encontre eco no seu cora-ção» (Gaudium et spes, 1). Como co-nhecemos bem tudo isto! Todos nósouvimos os números e as percenta-gens que, dia após dia, nos assalta-vam; tocamos com as próprias mãosa dor do nosso povo. Não eram da-dos distantes: as estatísticas tinhamnomes, rostos, histórias partilhadas.Como comunidade sacerdotal nãoéramos alheios a esta realidade e nãoa víamos pela janela; encharcadospela tempestade que enfurecia, esfor-çastes-vos para estar presentes eacompanhar as vossas comunidades:vistes o lobo que chegava e não fu-gistes nem abandonastes o rebanho(cf. Jo 10, 12-13).

Sofremos a súbita perda de fami-liares, vizinhos, amigos, paroquia-nos, confessores, pontos de referên-cia da nossa fé. Vimos os rostos des-consolados daqueles que não pude-ram acompanhar e dizer adeus aosseus entes queridos nas suas últimashoras. Vimos o sofrimento e a impo-tência dos profissionais de saúdeque, exaustos, se consumiram em in-termináveis dias de trabalho, preocu-pados por fazer face a tantas urgên-cias. Todos sentimos a insegurança eo medo dos trabalhadores e voluntá-rios que se expunham diariamentepara garantir a prestação de serviçosessenciais; e também para acompa-nhar e cuidar daqueles que, devido àsua exclusão e vulnerabilidade, so-friam ainda mais com as consequên-cias desta pandemia. Ouvimos e vi-mos as dificuldades e inconvenientesdo confinamento social: a solidão eo isolamento, especialmente dos ido-sos; a ansiedade, a angústia e o sen-timento de não-proteção face à in-certeza do emprego e da habitação;a violência e o desgaste nas relações.O medo ancestral do contágio vol-tou a atingir duramente. Partilhamostambém as preocupações angustian-tes de famílias inteiras que não sa-bem o que pôr na mesa na próximasemana.

Experimentamos a nossa própriavulnerabilidade e impotência. Talcomo o forno testa os vasos do olei-ro, também nós fomos postos à pro-va (cf. Sr 27, 5). Desnorteados portudo o que acontecia, sentimos deforma amplificada a precariedade danossa vida e dos nossos compromis-sos apostólicos. A imprevisibilidadeda situação pôs em evidência a nos-sa incapacidade de viver e de enfren-tar o desconhecido, com aquilo quenão podemos governar ou controlare, como todos, sentimo-nos confu-sos, assustados, indefesos. Vivemostambém esta raiva saudável e neces-sária que nos exorta a não abaixaros braços perante a injustiça e nosrecorda que fomos sonhados para aVida. Como Nicodemos, à noite,surpreendidos porque «o vento so-pra onde quer e ouvimos a sua voz,mas não sabemos de onde vem nempara onde vai», perguntamo-nos:«Como pode isto acontecer?»; e Je-sus respondeu-nos: «Tu és mestre deIsrael e não sabes estas coisas?» (cf.Jo 3, 8-10).

A complexidade do que tínhamosde enfrentar não tolerava receitasnem respostas de manuais; exigiamuito mais do que exortações fáceisou discursos edificantes, incapazesde criar raízes e de assumir conscien-temente tudo o que a vida concretaexigia de nós. A dor do nosso povoferiu-nos, as suas incertezas atingi-ram-nos, a nossa fragilidade comumdespojou-nos de qualquer falsa com-placência idealista ou espiritualista,bem como de toda a tentativa de fu-ga puritana. Ninguém é alheio a tu-do o que acontece. Podemos dizerque vivemos comunitariamente a horado pranto do Senhor: choramos dian-te do túmulo do amigo Lázaro (cf.Jo 11, 35), perante o fechamento doseu povo (cf. Lc 13, 14; 19, 41), nanoite escura do Getsémani (cf. Mc14, 32-42; Lc 22, 44). É também a ho-ra do pranto do discípulo perante omistério da Cruz e do mal que atin-

ge muitos inocentes. É o choroamargo de Pedro depois da negação(cf. Lc 22, 62) e de Maria Madalenadiante do sepulcro (cf. Jo 20, 11).

Sabemos que, nestas circunstân-cias, não é fácil encontrar o caminhoa seguir, nem faltarão vozes para di-zer tudo o que poderia ter sido feitoface a esta realidade desconhecida.As habituais formas de nos relacio-narmos, organizarmos, celebrarmos,rezarmos, convocarmos e até enfren-tarmos conflitos foram alteradas edesafiadas por uma presença invisí-vel, que transformou a nossa vidaquotidiana em adversidade. Não setrata apenas de um dado individual,familiar, de um determinado gruposocial ou de um país. As caraterísti-cas do vírus fazem desaparecer as ló-gicas com que estávamos acostuma-dos a dividir ou classificar a realida-de. A pandemia não conhece adjeti-vos, não conhece fronteiras e nin-guém pode pensar em escapar impu-ne. Somos todos atingidos e envolvi-dos.

Foi posta em questão a narrativade uma sociedade de profilaxia, im-perturbável e sempre pronta para oconsumo indefinido, revelando a fal-ta de imunidade cultural e espiritualdiante dos conflitos. Uma série dequestões e problemas antigos e no-vos (que muitas regiões considera-vam ultrapassados e algo do passa-do) ocupou o horizonte e a atenção.Perguntas que ficarão sem uma res-posta unicamente com a reaberturadas diversas atividades; pelo contrá-rio, será indispensável desenvolveruma escuta atenta mas cheia de es-perança, serena mas tenaz, constantemas não ansiosa, que possa preparare facilitar o caminho que o Senhornos chama a percorrer (cf. Mc 1, 2-3). Sabemos que, da tribulação e dasexperiências dolorosas, não saímoscomo antes. Temos que estar vigilan-tes e atentos. O próprio Senhor, nasua hora crucial, orou por isto:«Não peço que os tires do mundo,mas que os livres do mal» (Jo 17,15). Pessoal e comunitariamente ex-postos e atingidos na nossa vulnera-bilidade e fragilidade e nas nossas li-mitações, corremos o grave risco denos retirarmos e de “remo ermos” adesolação que a pandemia nos apre-senta, bem como de nos exasperar-mos num otimismo ilimitado, inca-pazes de aceitar a dimensão real dosacontecimentos (cf. Exortação Apos-tólica Evangelii gaudium, 226-228).

As horas de tribulação põem emquestão a nossa capacidade de dis-cernimento para descobrir quais sãoas tentações que ameaçam aprisio-nar-nos numa atmosfera de perplexi-dade e confusão, para depois nosdeixar cair num caos que impediráas nossas comunidades de promovera nova vida que o Senhor Ressusci-tado nos quer conceder. Há muitastentações, típicas desta época, quepodem cegar-nos e fazer-nos cultivarcertos sentimentos e atitudes quenão permitem ter esperança para es-timular a nossa criatividade, o nossoengenho e a nossa capacidade de

e o seu lado. E os discípu-los regozijaram-se ao ver oSenhor. Jesus disse-lhesnovamente: “A paz sejaconvosco! Como o Pai meenviou, também Eu vosenvio”. Dito isto, soprousobre eles e disse-lhes:“Recebei o Espírito San-to!”» (Jo 20, 19-22). Tam-bém nós nos deixemoss u r p re e n d e r !

«Os discípulos tinham fe-chado as portas do lugaronde se achavam, por medodos judeus» (Jo 20, 19).

Tanto hoje como ontem,sentimos que «as alegrias eas esperanças, as tristezase as angústias dos homensde hoje, sobretudo dos po-bres e de todos aquelesque sofrem, são tambémas alegrias e as esperanças,as tristezas e as angústiasdos discípulos de Cristo; enão há realidade algumaverdadeiramente humana

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número 23, terça-feira 9 de junho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 5

resposta: querer assumir honesta-mente a gravidade da situação, masprocurar resolvê-la apenas com ativi-dades de substituição ou paliativas,esperando que tudo volte ao “nor-mal”, ignorando as feridas profundase o número de pessoas que entretan-to faleceram; e permanecer imersosnuma certa nostalgia paralisante dopassado recente que nos faz dizer“nada voltará a ser como antes” enos torna incapazes de convidar osoutros a sonhar e a desenvolver no-vos caminhos e novos estilos de vi-da.

«Chegou Jesus, pôs-se no meio deles,e disse-lhes: “A paz seja convosco”. E,dizendo isto, mostrou-lhes as suas mãose o seu lado. Os discípulos alegraram-se, vendo o Senhor. Disse-lhes, pois, Je-sus novamente: “A paz seja convos-co!”» (Jo 20, 19-21).

O Senhor não escolheu nem pro-curou uma situação ideal para entrarna vida dos seus discípulos. Certa-mente teríamos preferido que tudo oque aconteceu não tivesse ocorrido,mas aconteceu; e assim como os dis-cípulos de Emaús, também nós po-demos continuar a murmurar comtristeza pelo caminho (cf. Lc 24, 13-21). Ao aparecer no Cenáculo comas portas fechadas, no meio do isola-mento, do medo e da insegurançaem que viviam, o Senhor foi capazde transformar toda a lógica e darum novo sentido à história e aosacontecimentos. Qualquer tempo éadequado para a proclamação dapaz, nenhuma circunstância está des-provida da sua graça. A sua presen-ça no meio do confinamento e dasausências forçadas anuncia, tantopara os discípulos de ontem comopara nós hoje, um novo dia capaz dequestionar a imobilidade e a resigna-ção, e de mobilizar todos os dons aoserviço da comunidade. Com a suapresença, o confinamento tornou-sefecundo, dando vida à nova comuni-dade apostólica.

Digamo-lo com confiança e semmedo: «Onde abundou o pecado,superabundou a graça» (Rm 5, 20).Não temamos os cenários complexosem que vivemos porque neles, entrenós, está o Senhor; Deus fez sempreo milagre de produzir bons frutos(cf. Jo 15, 5). A alegria cristã nasceprecisamente desta certeza. No meiodas contradições e incompreensõesque temos de enfrentar todos osdias, esmagados e até atordoadospor tantas palavras e conexões, es-

conde-se a voz do Ressuscitado quenos diz: «A paz seja convosco!».

É consolador ler o Evangelho econtemplar Jesus no meio do seupovo, enquanto Ele acolhe e abraçaa vida e as pessoas na medida que seapresentam. Os seus gestos dão cor-po ao bonito cântico de Maria:«Dissipou os soberbos no pensa-mento dos seus corações. Depôs dostronos os poderosos e elevou os hu-mildes» (Lc 1, 51-52). Ele próprioofereceu as suas mãos e o seu ladoferido como forma de ressurreição.Ele não esconde nem dissimula assuas feridas; pelo contrário, convidaTomé a tocar com a mão como umlado ferido pode ser fonte da Vidaem abundância (cf. Jo 20, 27-29).

Em várias ocasiões, como acompa-nhador espiritual, pude testemunharque «a pessoa que, vendo as coisascomo realmente estão, se deixa tres-passar pela aflição e chora no seucoração, é capaz de alcançar as pro-fundezas da vida e ser autenticamen-te feliz. Esta pessoa é consolada,mas com a consolação de Jesus enão do mundo. Assim pode ter a co-ragem de compartilhar o sofrimentoalheio, e deixa de fugir das situaçõesdolorosas. Desta forma, descobreque a vida tem sentido socorrendo ooutro na sua aflição, compreendendoa angústia alheia, aliviando os ou-tros. Esta pessoa sente que o outro écarne da sua carne, não teme aproxi-mar-se até tocar a sua ferida, compa-dece-se até sentir que as distânciassão superadas. Assim, é possível aco-lher aquela exortação de São Paulo:“Chorai com os que choram” (Rm12, 15). Saber chorar com os outros:isto é santidade» (Exortação Apos-tólica Gaudete et exsultate, 76).

«“Assim como o Pai me enviou,também eu vos envio a vós. Dito isto,soprou sobre eles e disse-lhes: “Recebeio Espírito Santo”» (Jo 20, 21-22).

Caros irmãos, como comunidadesacerdotal somos chamados a anun-ciar e profetizar o futuro, como asentinela ao anunciar a aurora quetraz um novo dia (cf. Is 21, 11): ouserá algo novo, ou será mais, muitomais e pior do que o habitual. ARessurreição não é apenas um acon-tecimento histórico do passado a serrecordado e celebrado; é mais, muitomais: é o anúncio da salvação de umnovo tempo que ressoa e que já hojecomeça: «a qual já começa: não avedes?» (Is 43, 19); é o ad-vir que oSenhor nos chama a construir. A fé

permite-nos uma imaginação realistae criativa, capaz de abandonar a ló-gica da repetição, da substituição ouda conservação; convida-nos a ins-taurar um tempo sempre novo: otempo do Senhor. Se uma presençainvisível, silenciosa, expansiva e viralnos colocou em crise e nos pertur-bou, que esta outra Presença discre-ta, respeitadora e não intrusa noschame novamente e nos ensine anão ter medo de enfrentar a realida-de. Se uma presença impalpável foicapaz de perturbar e subverter asprioridades e as agendas globaisaparentemente inamovíveis, que tan-to sufocam e devastam as nossas co-munidades e a nossa irmã terra, nãotemamos que seja a presença doRessuscitado a traçar o nosso cami-nho, a abrir horizontes e a dar-nos acoragem de viver este momento his-tórico e único. Um punhado de ho-mens temerosos conseguiu iniciaruma nova corrente, uma proclama-ção viva do Deus connosco. Não te-mais! «A força do testemunho dossantos consiste em viver as bem-aventuranças e a regra de comporta-mento do juízo final» (ExortaçãoApostólica Gaudete et exsultate, 109).

Deixemo-nos surpreender maisuma vez pelo Ressuscitado. Que doseu lado ferido Ele seja sinal dequão dura e injusta é a realidadeque nos exorta a não virarmos ascostas à dura e difícil realidade dosnossos irmãos. Que Ele nos ensine aacompanhar, curar e enfaixar as feri-das do nosso povo, não com medomas com a audácia e a prodigalida-de evangélica da multiplicação dospães (cf. Mt 14, 15-21); com a cora-gem, a preocupação e a responsabili-dade do samaritano (cf. Lc 10, 33-35); com a alegria e a festa do pastorpela ovelha reencontrada (cf. Lc 15,4-6); com o abraço reconciliador dopai que conhece o perdão (cf. Lc 15,20); com a piedade, doçura e ternu-ra de Maria de Betânia (cf. Jo 12, 1-3); com a mansidão, a paciência e ainteligência dos discípulos missioná-rios do Senhor (cf. Mt 10, 16-23).Que as mãos chagadas do Ressusci-tado consolem as nossas tristezas,elevem a nossa esperança e nos im-pulsionem a procurar o Reino deDeus para além dos nossos refúgioshabituais. Deixemo-nos surpreenderinclusive pelo nosso povo fiel e sim-ples, muitas vezes provado e dilace-rado, mas também visitado pela mi-sericórdia do Senhor. Que este povo

nos ensine a plasmar e temperar onosso coração de pastor com mansi-dão e compaixão, com a humildadee a magnanimidade da resistênciaativa, solidária, paciente e corajosa,que não permanece indiferente, masnega e desmascara qualquer ceticis-mo e fatalismo. Quanto devemosaprender da força do povo fiel deDeus, que encontra sempre uma for-ma de socorrer e acompanhar quan-tos caíram! A Ressurreição é o anún-cio de que as coisas podem mudar.Deixemos que a Páscoa, que não co-nhece fronteiras, nos conduza deforma criativa aos lugares onde a es-perança e a vida lutam, onde o sofri-mento e a dor se tornam um espaçofavorável à corrupção e à especula-ção, onde a agressividade e a violên-cia parecem ser a única saída.

Como presbíteros, filhos e mem-bros de um povo sacerdotal, cabe anós assumir a responsabilidade pelofuturo e projetá-lo como irmãos. Co-loquemos nas mãos feridas do Se-nhor, como oferta santa, a nossa fra-gilidade, a fragilidade do nosso po-vo, a fragilidade de toda a humani-dade. O Senhor é Aquele que nostransforma, que se serve de nós co-mo pão, carrega a nossa vida nassuas mãos, abençoa-nos, parte-nos epartilha-nos, oferecendo-nos ao seupovo. E deixemo-nos ungir com hu-mildade pelas palavras de Paulo, pa-ra que se difundam como óleo per-fumado nos diversos recantos danossa cidade e assim despertem adiscreta esperança que muitos — ta-citamente — conservam no seu cora-ção: «Em tudo somos atribulados,mas não esmagados; perplexos, masnão desanimados; perseguidos, masnão desamparados; abatidos, masnão destruídos Trazemos sempre nonosso corpo os traços da morte doSenhor Jesus, para que também a vi-da de Jesus se manifeste no nossocorpo» (2 Cor 4, 8-10). Participemoscom Jesus na sua paixão, a nossapaixão, para viver também com Elea força da Ressurreição: a certeza doamor de Deus, capaz de mover asentranhas e de sair às encruzilhadaspara anunciar «a Boa Nova aos po-bres, para anunciar a libertação aoscativos e, aos cegos o recobrar davista, para mandar em liberdade osoprimidos e proclamar um ano degraça do Senhor» (cf. Lc 4, 18-19),com a alegria que todos podem par-ticipar ativamente com a sua digni-dade de filhos do Deus vivo.

Tudo isto, que pensei e senti du-rante este tempo de pandemia, que-ro partilhá-lo fraternalmente convos-co, para que nos ajude no caminhodo louvor ao Senhor e do serviçoaos irmãos. Espero que seja útil a to-dos nós para “amar e servir mais”.

Que o Senhor Jesus vos abençoee que a Santíssima Virgem vos pro-teja. E, por favor, peço-vos que nãovos esqueçais de rezar por mim!

Fr a t e r n a l m e n t e ,

FRANCISCO

Roma, São João de Latrão,31 de maio de 2020,

Solenidade de Pentecostes.

Um encontro do Papacom os sacerdotes de Roma

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página 6 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 9 de junho de 2020, número 23

Antropologia nos tempos da rede

Os riscos de uma relacionalidade virtual

«Desejo dedicar a Mensagem deste ano ao tema da narração,pois, para não nos perdermos, penso que precisamos de respirar a verdadedas histórias boas: histórias que edifiquem, e não as que destruam;histórias que ajudem a reencontrar as raízes e a força para prosseguirmos juntos»

(Papa Franciscopara o dia mundial das comunicações sociais de 2020)

MA R KO IVA N RUPNIK

Este ano a Mensagem do Papa Francisco parao Dia mundial das comunicações sociais dizrespeito a uma das questões fundamentais dodevir do homem. Após séculos de uma culturaquase inteiramente centrada no indivíduo, che-gamos praticamente a um subjetivismo tãoagravado que parece que estamos realmentepróximos do declínio de uma civilização.

Por exemplo na arte, precisamente como rea-ção ao formalismo de certas épocas do passado,

ou seja, as relações com os outros; por outrolado, é precisamente a urgência de fazer emer-gir a liberdade humana manifestada nas rela-ções, que dá vazão a um certo subjetivismoque acaba por prejudicar a capacidade de co-municar. Com efeito, neste contexto a lingua-gem está mais ligada à forma de se apresentardo que à verdade da comunicação, ou seja, àforça do amor que impele a abrir-se ao outro,realizando deste modo o homem à semelhançada comunhão trinitária.

Há algumas décadas, uma exposição na Bie-

nou um modo de ser e de existir — mas é cer-tamente claro que existe uma relação entre amudança que está a decorrer no homem e osistema de comunicações que faz do homem oseu marketing.

A relacionalidade vivida na rede, de umamaneira mais ou menos virtual, implica certa-mente mudanças profundas no modo de existirdo homem e também na consciência que eletem de si mesmo.

Pois bem, a identidade do homem está liga-da à sua corporeidade. E a corporeidade dohomem é tão essencial e preciosa que até Deus— na pessoa do Verbo — se encarnou e se fezhomem. Se Jesus Cristo nunca mais será sem ocorpo, e se a sua pessoa existe com a corporei-dade humana na glória eterna da comunhãotrinitária, então a virtualidade apresenta umaquestão que deve ser tratada.

Qual é a corporeidade do homem na virtua-lidade contemporânea? Quem é o homem como corpo virtual na realidade contemporânea?Cristo encarnou-se, assumiu a natureza huma-na e viveu-a segundo Deus, reconduzindo coma sua Páscoa a humanidade à glória de Deus.Portanto, Ele permanece eternamente com acorporeidade humana, com a natureza huma-na. Então, qual é o desígnio da vida humana,se as realidades mais expostas ao cosmo, às in-tempéries, à mortalidade e à vulnerabilidadesão compreendidas e apresentadas sobretudovirtualmente? Quem transmite a vida?

Mas ainda mais urgente é a pergunta: quevida passa através destas redes, que vida setransmite, que vida podemos realmente comu-nicar uns aos outros? Dado que a vida é sem-pre uma narração, qual é a narração deste cli-ma cultural? Existe? Se assim não for, admite asua falta de vida? Quando se ouve a narração,quando se lê, quando se contempla verifica-seuma comunicação de fecundação. Onde fecun-da hoje a narração, quem a ouve, quem a aco-lhe? E qual é o seu enriquecimento? Que sedeé saciada pela narração que hoje passa entre asp essoas?

Precisamente sobre este tema, penso que nóscristãos somos interpelados e é provavelmenteum ponto sobre o qual, talvez, não estejamospreparados. Porque — como disse o cardealCarlo Maria Martini e muitos outros com ele —o nosso atraso cultural é muito grave. Nós de-víamos estar na vanguarda quando a humani-dade, cansada de um certo individuocentrismo,pedia ajuda para sair de si mesma e redescobriro outro.

verificou-se a urgência de contestar, para afir-mar com vigor o que é mais tipicamente huma-no e que durante séculos foi subestimado ouaté não considerado. Portanto, no final da mo-dernidade assistimos à explosão de uma arteque queria mostrar a unicidade de cada pessoa,chamando a atenção para as dimensões da exis-tência humana que uma modernidade muito ra-cionalista, organizada e cientificamente estrutu-rada não tinha considerado. Com efeito, esteprotesto, forte e às vezes quase violento — so-bretudo através das artes figurativas — anun-ciou também o fim de uma determinada época.

Por um lado, faz-se sobressair o que é verda-deiramente humano, de modo especial sob oaspeto vital, isto é, o que torna o homem vivo,

A partir da mensagem para o Diamundial das comunicações sociais

No caminho indicado pelo Papa na sua Mensagem para o 54º DiaMundial das Comunicações Sociais, para que possais contar e fi-xar na memória (Êxodo 10, 2). O livro La vita si fa storia ( B re s c i a ,Edição Scholé, 2020, 190 páginas) — editado por Vincenzo Corra-do e Pier Cesare Rivoltella — reúne comentários e reflexões deaprofundamento que pretendem ser uma "reverberação" das pala-vras de Francisco, numa perspetiva multidisciplinar destinada aenvolver teólogos e intelectuais, académicos e jornalistas, artistasinternacionais e testemunhas ilustres do compromisso civil. O vo-lume foi realizado em colaboração com o Gabinete Nacional dasComunicações Sociais da Conferência Episcopal Italiana e o Cre-mit (Centro de Pesquisa sobre Educação para a mídia, Inovação eTecnologia da Universidade Católica do Sagrado Coração de Mi-lão) e a Ucsi (União Italiana da Imprensa Católica). Publicamosexcertos da reflexão do teólogo jesuíta.

nal de Arte de Veneza mostroude maneira clara como é necessá-rio ajudar o homem a sair do seufechamento, de uma existênciaisolada na própria individualida-de. As obras expostas pareciamexpressar a consciência madurade que, se o homem não desco-bre o outro, chega ao epílogo dasua sua existência.

Mas depois tudo mudou, auma velocidade impressionante.Com o advento explosivo de ummundo comunicativo, onde osmeios de comunicação estão cadavez mais à disposição da humani-dade inteira, de repente cadapessoa passou a dispor de umarede de comunicação planetária.Isto aconteceu de modo tão rápi-do que provavelmente ninguémconseguiu acompanhar o querealmente estava a acontecer aohomem, arremessado para umsistema de comunicação e infor-mação sem precedentes. É im-possível que tal novidade cultu-ral, tão revolucionária, não in-

fluencie a própria visão antropológica, a visãodo homem e da sua existência.

O que de alguma forma ficou comprometidoé que, exatamente no momento no qual, sob oponto de vista cultural, se ia tomando cons-ciência de ter que superar um individualismoexasperado — e, por conseguinte, havia a pos-sibilidade de se abrir diante de nós uma épocaem que o homem podia descobrir a sua dimen-são relacional — precisamente naquele momen-to a solução para tal subjetivismo fechado e su-focante acabou na proposta de uma relacionali-dade virtual.

Penso que ainda não somos capazes de deci-frar qual seja a extensão da mudança que estaforma de comunicar desencadeou — que se tor-

NARRAÇÃO — PA L AV R A D O ANO

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número 23, terça-feira 9 de junho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 7

A pandemia é um desafiopara a Igreja em saída

Mensagem do Papa para o próximo Dia missionário mundial que se celebra a 18 de o u t u b ro

«Neste ano, marcado pelos sofrimentose pelos desafios causados pelapandemia da Covid-19», o «caminhomissionário de toda a Igreja prossegueà luz da palavra que encontramos nanarração da vocação do profeta Isaías:“Eis-me aqui, enviai-me” (6, 8)»:escreveu o Papa Francisco namensagem — assinada a 31 de maio,solenidade de Pentecostes — para o 94ºDia missionário mundial, que secelebra a 18 de outubro de 2020.

«Eis-me aqui, enviai-me» (Is 6, 8)Queridos irmãos e irmãs!Desejo manifestar a minha gratidãoa Deus pelo empenho com que, emoutubro passado, foi vivido o MêsMissionário Extraordinário em todaa Igreja. Estou convencido de queisso contribuiu para estimular a con-versão missionária em muitas comu-nidades pela senda indicada no tema«Batizados e enviados: a Igreja deCristo em missão no mundo».

Neste ano, marcado pelas tribula-ções e desafios causados pela pande-mia da Covid-19, este caminho mis-sionário de toda a Igreja continua àluz da palavra que encontramos nanarração da vocação do profetaIsaías: «Eis-me aqui, envia-me» (Is 6,8). É a resposta, sempre nova, à per-gunta do Senhor: «Quem enviarei?»(Ibid.). Esta chamada provém do co-ração de Deus, da sua misericórdia,que interpela quer a Igreja quer ahumanidade na crise mundial atual.«À semelhança dos discípulos doEvangelho, fomos surpreendidos poruma tempestade inesperada e furi-bunda. Demo-nos conta de estar nomesmo barco, todos frágeis e deso-rientados mas, ao mesmo tempo, im-portantes e necessários: todos cha-mados a remar juntos, todos careci-dos de mútuo encorajamento. E,neste barco, estamos todos. Tal co-mo os discípulos que, falando a umasó voz, dizem angustiados “vamosp erecer” (cf. Mc 4, 38), assim tam-bém nós nos apercebemos de quenão podemos continuar a estrada ca-da qual por conta própria, mas só oconseguiremos juntos» (FR A N C I S C O,Meditação na Praça de São Pedro,27/III/2020). Estamos verdadeira-mente assustados, desorientados etemerosos. O sofrimento e a mortefazem-nos experimentar a nossa fra-gilidade humana; mas, ao mesmotempo, todos nos reconhecemos par-ticipantes dum forte desejo de vida ede libertação do mal. Neste contex-to, a chamada à missão, o convite asair de si mesmo por amor de Deus

e do próximo aparece como oportu-nidade de partilha, serviço, interces-são. A missão que Deus confia a ca-da um faz passar do «eu» medroso efechado para o «eu» resoluto e reno-vado pelo dom de si.

No sacrifício da cruz, onde se rea-liza a missão de Jesus (cf. Jo 19, 28-30), Deus revela que o seu amor épor todos e cada um (cf. Jo 19, 26-27). E pede-nos a nossa disponibili-dade pessoal para ser enviados, por-que Ele é Amor em perene movi-mento de missão, sempre em saídade Si mesmo para dar vida. Poramor dos homens, Deus Pai enviouo Filho Jesus (cf. Jo 3, 16). Jesus é oMissionário do Pai: a sua Pessoa e asua obra são, inteiramente, obediên-cia à vontade do Pai (cf. Jo 4, 34; 6,38; 8, 12-30; Hb 10, 5-10). Por suavez, Jesus — crucificado e ressuscita-do por nós —, no seu movimento deamor atrai-nos com o seu próprioEspírito, que anima a Igreja, torna-nos discípulos de Cristo e envia-nosem missão ao mundo e às nações.

«A missão, a “Igreja em saída”não é um programa, um intuito con-cretizável por um esforço de vonta-de. É Cristo que faz sair a Igreja desi mesma. Na missão de anunciar oEvangelho, moves-te porque o Espí-rito te impele e conduz» (FRANCIS-C O, Sem Ele nada podemos fazer,2019, 16-17). Deus é sempre o pri-meiro a amar-nos e, com este amor,vem ao nosso encontro e chama-nos.A nossa vocação pessoal provém dofacto de sermos filhos e filhas deDeus na Igreja, sua família, irmãos eirmãs naquela caridade que Jesusnos testemunhou. Mas, todos têmuma dignidade humana fundada navocação divina a ser filhos de Deus,a tornar-se, no sacramento do Batis-mo e na liberdade da fé, aquilo quesão desde sempre no coração deD eus.

Já o facto de ter recebido gratuita-mente a vida constitui um conviteimplícito para entrar na dinâmica dodom de si mesmo: uma semente que,nos batizados, ganhará forma madu-ra como resposta de amor no matri-mónio e na virgindade pelo Reinode Deus. A vida humana nasce doamor de Deus, cresce no amor e ten-de para o amor. Ninguém está ex-cluído do amor de Deus e, no santosacrifício de seu Filho Jesus na cruz,Deus venceu o pecado e a morte (cf.Rm 8, 31-39). Para Deus, o mal — in-cluindo o próprio pecado — torna-seum desafio a amar, e amar cada vezmais (cf. Mt 5, 38-48; Lc 23, 33-34).Por isso, no Mistério Pascal, a mise-ricórdia divina cura a ferida primor-dial da humanidade e derrama-se so-bre o universo inteiro. A Igreja, sa-cramento universal do amor de Deuspelo mundo, prolonga na história amissão de Jesus e envia-nos por todaa parte para que, através do nossotestemunho da fé e do anúncio doEvangelho, Deus continue a mani-festar o seu amor e possa tocar etransformar corações, mentes, cor-pos, sociedades e culturas em todo otempo e lugar.

A missão é resposta, livre e cons-ciente, à chamada de Deus. Mas estachamada só a podemos sentir, quan-do vivemos numa relação pessoal deamor com Jesus vivo na sua Igreja.Perguntemo-nos: estamos prontos aacolher a presença do Espírito Santona nossa vida, a ouvir a chamada àmissão quer no caminho do matri-mónio, quer no da virgindade consa-grada ou do sacerdócio ordenado e,em todo o caso, na vida comum detodos os dias? Estamos dispostos aser enviados para qualquer lugar afim de testemunhar a nossa fé emDeus Pai misericordioso, proclamaro Evangelho da salvação de JesusCristo, partilhar a vida divina do Es-pírito Santo edificando a Igreja? Co-mo Maria, a Mãe de Jesus, estamosprontos a permanecer sem reservasao serviço da vontade de Deus (cf.Lc 1, 38)? Esta disponibilidade inte-rior é muito importante para se con-seguir responder a Deus: Eis-meaqui, Senhor, envia-me (cf. Is 6, 8).E isto respondido não em abstrato,mas no hoje da Igreja e da história.

A compreensão daquilo que Deusnos está a dizer nestes tempos depandemia torna-se um desafio tam-bém para a missão da Igreja. Desa-fia-nos a doença, a tribulação, o me-do, o isolamento. Interpela-nos apobreza de quem morre sozinho, dequem está abandonado a si mesmo,de quem perde o emprego e o salá-rio, de quem não tem abrigo nemcomida. Obrigados à distância físicae a permanecer em casa, somos con-vidados a redescobrir que precisa-mos das relações sociais e tambémda relação comunitária com Deus.Longe de aumentar a desconfiança ea indiferença, esta condição deveriatornar-nos mais atentos à nossa ma-neira de nos relacionarmos com osoutros. E a oração, na qual Deus to-

ca e move o nosso coração, abre-nosàs carências de amor, dignidade e li-berdade dos nossos irmãos, bem co-mo ao cuidado por toda a criação. Aimpossibilidade de nos reunirmoscomo Igreja para celebrar a Eucaris-tia fez-nos partilhar a condição demuitas comunidades cristãs que nãopodem celebrar a Missa todos osdomingos. Neste contexto, é-nos di-rigida novamente a pergunta deDeus — «quem enviarei?» — e aguar-da, de nós, uma resposta generosa econvicta: «Eis-me aqui, envia-me»(Is 6, 8). Deus continua a procurarpessoas para enviar ao mundo e àsnações, a fim de testemunhar o seuamor, a sua salvação do pecado e damorte, a sua libertação do mal (cf.Mt 9, 35-38; Lc 10, 1-11).

Celebrar o Dia Mundial das Mis-sões significa também reiterar que aoração, a reflexão e a ajuda materialdas vossas ofertas são oportunidadespara participar ativamente na missãode Jesus na sua Igreja. A caridademanifestada nas coletas das celebra-ções litúrgicas do terceiro domingode outubro tem por objetivo susten-tar o trabalho missionário, realizadoem meu nome pelas PontifíciasObras Missionárias, que acodem àsnecessidades espirituais e materiaisdos povos e das Igrejas de todo omundo para a salvação de todos.

A Santíssima Virgem Maria, Estre-la da Evangelização e Consoladorados Aflitos, discípula missionária doseu Filho Jesus, continue a amparar-nos e a interceder por nós.

Roma, em São João de Latrão,na Solenidade de Pentecostes,

31 de maio de 2020.

Marc Chagall, «A chamada de Isaías» (1968)

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número 23, terça-feira 9 de junho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 8/9

Ninguém pode ser felizse estiver isolado dos outros

Conversa com Andrea Acutis

Uma empresa baseada numa integralidade eco-nómica

A quinta estação

Por exemplo, embora seja pouco pro-vável que possamos fazer alguma coisapara reduzir a produção e o comérciode armas, somos perfeitamente capazesde escolher quanto dos nossos recursosdedicamos para ajudar o próximo equanto, por exemplo, para cuidar donosso corpo. Será que estamos dispos-tos a desistir de alguma coisa? Ou seráque preferimos viver para além das nos-sas possibilidades à custa dos mais fra-cos, da natureza e da nossa alma, quecorremos o risco de sufocar no cestodas compras?

Cinco anos após a publicação da “Lauda-to si’”, considera possível um desenvolvi-mento económico sustentável que não esgo-te os recursos naturais da Terra?

Trata-se de um problema muito com-plexo e a solução pode ser unicamenteum gradual avançar para uma econo-mia circular. Para esta finalidade, pare-ce-me positiva a proposta que li sobreuma transição gradual para uma econo-mia de serviços em que as empresas,mediante uma taxa, ofereçam a dispo-nibilidade e a manutenção de bens dosquais continuam a ser proprietárias.Desta forma, as empresas teriam inte-resse em prolongar o ciclo de vida dosbens e poderíamos, pelo menos parcial-mente, libertar-nos do opressivo ciclodo “compra-deita fora”. Permanece ofacto de que, no atual estado da tecno-logia, não somos capazes de evitar oconsumo de recursos não renováveis.Uma solução possível é apresentadapelo economista Dieter Helm, que pro-põe que os operadores económicos pro-curem preservar o valor total do capitalnatural disponível, não eliminando asua utilização, mas comprometendo-sea compensar os danos causados peloesgotamento de certos recursos, atravésde investimentos noutros setores quebeneficiarão o nosso capital natural,por exemplo, através da reflorestação.

Não é um caminho fácil, mas temoso dever de o iniciar, cada um de nóscomprometendo-se com a própria par-te. A revolução começa com a nossamudança interior. Tudo está ligado,ninguém pode ser feliz se estiver isola-do dos outros.

Um seminário online«Casa comum e desenvolvimento local além do descarte» foi o temado web seminar realizado a 22 de maio, organizado pela PontifíciaUniversidade Antonianum e pelo Observatório das Políticastransdisciplinares internazionais, em sinergia com Laudato si’ Revolutione Gipc Ofm. Publicamos o texto do discurso de abertura do professorde História da Igreja e diretor do percurso profissional em EcologiaIntegral na mesma universidade.

PELO CUIDAD O DA CASA COMUM

ANDREA MONDA

Neste período, tão perturbado pelapandemia e pelo consequente bloqueioforçado da maioria das atividades eco-nómicas globais, é urgente como nuncapensar, uma vez superada a crise, comopodemos recomeçar e avançar parauma economia mais sustentável e à me-dida do homem. Mas as áridas exigên-cias da economia parecem muitas vezesinconciliáveis com as da fé e, por vezes,somos confrontados com oposiçõesideológicas estéreis; é como se faltasseum quadro de raciocínio comum, nabase das realidades económicas, que nosajudasse a dialogar sobre esta complexaquestão. Talvez as pessoas que têm emsimultâneo uma ligação com a fé e aeconomia, possam ajudar-nos. Ouvimoso ponto de vista de Andrea Acutis, Pre-sidente da Vittoria Assicurazioni e paido venerável Carlo Acutis, cuja causade beatificação está em curso.

Como se insere a economia nas relaçõeshumanas?

Nenhuma pessoa, sem Deus, podeser feliz como uma entidade solitária

interno bruto, é regulada por outrosprincípios.

Qual é o princípio que deveria regularuma boa economia?

O motor da economia é o estado denecessidade em que as pessoas se en-contram. Para satisfazer as nossas ne-cessidades, temos três possibilidades:ou convencemos alguém a dar-nos oque precisamos, ou o roubamos, ou,por fim, propomos uma troca de igualv a l o r.

Mantendo a nossa definição circuns-crita de economia, trata-se então de tro-cas interessadas, não gratuitas, mas nãopor isso negativas. Estamos na esferada justiça, que exige que a todos sejadado o que lhes é devido, cumprindosempre os seus compromissos.

O princípio da justiça não é respeita-do, por exemplo, se o produto ou oserviço fornecido não corresponder aoque foi prometido, ou se não forem re-conhecidas aos trabalhadores condiçõesdignas, talvez dando como desculpaque as leis ou as condições de mercadoo permitem, ou quando toda a comuni-dade for prejudicada devido à omissão

cação rígida e mecânica de um critériode justiça sem um mínimo de miseri-córdia que ajude, quando apropriado, afechar os olhos às fraquezas veniaisconduziria a um clima de inferno. Oque torna um local de trabalho positivoé o respeito pela dignidade de cada serhumano, o que não significa tolerar ocomportamento daqueles que não secomprometem com objetivos sociais oudaqueles que até os querem prejudicarativamente, mas significa saber reco-nhecer em cada pessoa a presença deum mistério que nos transcende e quenós, cristãos, sabemos que é Deus. Pre-sença de Deus, na fraqueza humana.Devemos então salientar que cada em-presa não deve ser considerada apenascomo uma máquina produtiva, mas so-bretudo como uma comunidade de pes-soas. No fim de contas, é uma questãode respeito pelo próximo.

É então o mesmo respeito que, sem-pre guiados pela misericórdia, nos levaa apoiar todos aqueles que não podemparticipar em atividades produtivas enão conseguem prover às próprias ne-cessidades.

Por conseguinte, podemos dizer queo primeiro e fundamental pilar subja-cente a uma boa economia é a soma detodas as atividades de homens e mulhe-res que fazem bem o seu trabalho, res-peitando as pessoas que encontram. Sedepois alargarmos este princípio do fa-zer bem a todas as atividades humanas,podemos constatar que, em geral, umaboa sociedade não é mais do que a so-ma de bons indivíduos.

Qual é o lugar do lucro numa economiavirtuosa?

O lucro é a diferença entre os rendi-mentos e os custos sustentados poruma atividade económica. Quando seganha honestamente, fazendo algo útilpara o bem da sociedade, com respeitopelas pessoas, é, naturalmente, umacoisa boa. Uma empresa saudável esustentável gera lucros que podem serreinvestidos na mesma atividade econó-mica ou distribuídos aos sócios que,por sua vez, terão de prestar contas pe-lo seu uso.

Como podemos melhorar a economia e,consequentemente, o nosso mundo?

A economia não é um fim, mas ummeio para o bem do homem. Ou seja,a economia deve estar ao serviço dohomem, de todos os homens. Mas setenho a responsabilidade de conduziruma atividade económica e não respei-to o outro, estou a poluir toda a econo-mia. Só há uma forma de melhorar aeconomia, ou seja, que os indivíduoscomecem a fazer uma escolha de res-peito pelo próximo. Se outros não o fi-zerem, eu tenho de o fazer de qualquermaneira. Talvez algumas pessoas pen-

sem que, como por magia, a soma dosmaus comportamentos produza frutospositivos, graças à melhoria da eficiên-cia do sistema e à eliminação dos maisfracos. Mas, graças a Deus, não há for-ça natural que, através da livre concor-rência de pessoas egoístas que ignoramo destino dos outros, conduza a umbem maior, tal como a humanidadenão avança automaticamente para ummundo melhor através de guerras e re-voluções. Por outro lado, até os econo-mistas clássicos, a começar por AdamSmith, nunca defenderam que uma boaeconomia pudesse prescindir das regrasmorais.

Esta opção pelo bem é a cruz a su-portar pelos empresários honestos, ata-cados pelos concorrentes que, ao con-trário, não têm escrúpulos e, graças acomportamentos incorretos, conse-guem, por exemplo, obter custos maisbaixos e, por conseguinte, a capacidadede vender a preços mais baixos. Quan-do os Estados agem para facilitar a li-vre concorrência, devem sempre preverrestrições adequadas, tendo em contaque um objetivo asséptico de máximaeficiência só pode conduzir a uma si-tuação insuportável de exploração dopróximo. A melhoria da eficiência, ne-cessária para o progresso económico,deve ter lugar no respeito pelas pes-soas.

Não esqueçamos, portanto, o grandepoder de influenciar a economia para obem daqueles que possuem riqueza ma-terial suficiente para fazer escolhas na-quilo que compram. Esta é a condiçãoda maioria dos cidadãos dos paísesmais ricos. Devemos estar conscientesde que não basta dizer que as empresasnão devem explorar os trabalhadores eque devem respeitar a natureza; de fac-to, esta exploração conduz frequente-mente a um preço mais baixo do qualsomos beneficiários enquanto consumi-dores. A consequência imediata e práti-ca é que devemos estar preparados parapagar preços mais elevados e, conse-quentemente, ter menos mercadorias.Consideremos também que, enquantoconsumidores, cada um de nós temuma responsabilidade na forma comoos recursos disponíveis são atribuídos.

bém incluir as atividades do chamadoterceiro setor. Estas são as relações quetornam a vida digna de ser vivida.

Mas, em geral, as relações concer-nentes à produção, distribuição e con-sumo de bens e serviços e, por conse-guinte, as relações económicas, não fa-zem parte destas relações desinteressa-das: esta parte da economia não é im-pulsionada pela caridade.

A economia, portanto, se limitarmosa sua esfera ao que flui para o produto

das precauções necessárias para limitaros danos ambientais. Do mesmo modo,o princípio não é respeitado se o traba-lhador não desempenhar bem a suafunção. Em todos estes casos, foi impli-citamente decidido escolher o atalho dofurto.

No entanto, há que ter presente queo único critério de justiça não é sufi-ciente para tornar humana uma ativida-de económica e, por conseguinte, viví-vel, em suma, a justiça não é suficientepara fazer uma boa economia. A apli-

GIUSEPPE BUFFON

A Covid-19 inaugurou uma quintaestação, que se apresenta diversadaquelas que conhecemos. É dife-rente porque parece tê-las coloca-do a todas num impasse, forçan-do-nos a uma estase invernal, quese prolonga, atravessando a prima-vera e correndo depressa para overão, com a previsão de que po-derá chegar ao outono, e prolon-gar-se pelo inverno. E depois ain-da não sabemos o que pode acon-tecer. Trata-se de uma estaçãotransversal que é o resultado da es-tação da empresa.

De facto, desde o século XIX,precisamente a empresa inauguroua sua estação, tornando também oinverno produtivo, que até entãoera uma espécie de “não estação”.A estação sem trabalho, o períododa estagnação. A criação de um lo-cal de trabalho artificial, a monta-gem de um laboratório para usoda empresa, tornou também o in-verno produtivo. Exceto ter de in-ventar depois uma fábula de gra-tuidade para responder à obsessãoda eficiência. É Dickens quem nosensina isto, com A Christmas Carol(Um Conto de Natal), nada me-nos do que a grande invenção co-mercial do Natal.

Precisamente o planeamento in-dustrial, com o encorajamento damonocultura, quebrou o equilíbriodos ecossistemas, abalou o tempodas estações, produzindo a criseno campo da saúde que estamos av i v e r.

Esta é a quinta estação de umanatureza doente, que adoece oscorpos e obriga ao inverno atéaquela indústria que pensava po-der criar uma estação própria. Po-derá a empresa aceitar o regressodas estações naturais? Será capazde se adaptar às estações ritmadas

pela harmonia cósmica? Poderáimaginar-se dentro de um períodosazonal?

Na realidade, Gilles Clément, ocriador do terceiro jardim (Mani-festo da Terceira paisagem, 2005,Quodlibet), pensa num híbrido.Não considera proponível um re-gresso à natureza pura, não um re-gresso ao deserto incontaminado,libertado da intrusão da mão hu-mana. Ele pensa numa espécie deintegração, onde o ser humano, noquadro da sua proposta técnica,reconhece o espaço à natureza epermite-lhe desenvolver-se de for-ma autónoma. «O homem-jardi-

dade ambiental deve ser um fardoa suportar, só porque a atual criseno campo da saúde o impõe à for-ça. O ambiente deve começar a fa-zer parte do planeamento empre-sarial. Aliás, o ambiente deve tor-nar-se o espaço educativo a partirdo qual se deve recomeçar a recon-figuração da empresa. Se a empre-sa pretende realmente renovar-separa responder a esta emergência,é necessário encontrar novas coor-denadas educativas, novos cânonespara apoiar uma criatividade quepermita o novo. E que modelomelhor do que o ambiente natural,que em milénios de história forjou

neiro observa-as, compreende osseus mecanismos e acaba por agirno sentido de favorecer uma espé-cie de pousio domesticado”. Nãomais um hortus conclusus, um jar-dim selado para a única utilidadedo monge camponês, mas um jar-dim aberto, sem paliçadas, ondecrescem ervas incultas, para a con-templação pura da beleza, sem aansiedade do utilitarismo.

Este é o jardim de Francisco deAssis, um espaço lúdico não prote-gido por direitos de propriedadenem restrições funcionalistas. E émuito semelhante ao de Clément:«É muito importante aceitar quenão se controla tudo, porque destaforma podemos descobrir coisasque nunca seríamos capazes decompreender sozinhos, que nuncapoderíamos imaginar nem inven-tar. Porque estes lugares são muitocomplexos, são compostos por se-res vivos que se encontram e criamsituações novas e imprevisíveis».

Em Paris, Clément criou um jar-dim (Museu do Quai Branly) parao encontro entre diferentes cultu-ras e religiões. Um jardim que setorna um ambiente educativo. Umjardim, uma biodiversidade perfor-mativa, que educa para o pluralis-mo social, para a assimetria hospi-taleira, onde as relações entre asdiferentes pessoas entoam umaverdadeira harmonia, uma demo-cracia criativa, capaz de inovaçãosocial e empresarial.

Restaurar a primazia do am-biente e não apenas resignar-se aprestar atenção às suas necessida-des. Não só um ambiente toleradoe inserido à força num planeamen-to empresarial que colidiu com apandemia. O ambiente não deveser um lastro, nem a sustentabili-

a casa onde o ser humano foi aco-lhido?

Também as neurociências, porexemplo, dizem que o nosso co-nhecimento provém da experiênciamotora, que partilhamos com asespécies animais. De facto, os ma-cacos foram ocasião, diria umaoportunidade, atrevo-me até dizer,um lugar educativo para os cientis-tas que conseguiram chegar à des-coberta dos neurónios-espelho.Portanto, na reconfiguração daempresa pós-pandémica, o am-biente natural não deve ser consi-derado apenas como central, mascomo um verdadeiro lugar educati-vo, a partir do qual se pode reco-meçar de uma nova visão da reali-dade, do ser humano, das suas re-lações e da sua atividade laboral.

A empresa deveria, antes demais, estabelecer como objetivo adefesa do direito ao ambiente, queé um bem primário para o ser hu-mano. Se faltar a salubridade doambiente, como vemos nos diasque correm, nenhum outro bemproduzido pela indústria humanao pode compensar. Sem o ambien-te saudável para salvaguardar asaúde, qualquer outro bem produ-zido pelo homem perde a sua uti-lidade, o seu benefício. Por conse-guinte, a integração ambiente-eco-nomia é um imperativo. Aliás,uma visão integral da realidade,uma “economia integral”, é umacondição essencial para planearum futuro verdadeiramente susten-tável. A quinta estação da empresaterá de ser construída com basenuma integridade eco-nómica, por-que o pensar da ecologia e o cons-truir da economia são ambos ne-cessários para a edificação da casacomum.

isolada de todos. PoisDeus é Trindade, nãosolidão.

Também do ponto devista material, para viverbem precisamos de cola-borar com os outros. Naverdade, se cada um denós suprisse autonoma-mente a todas as suasnecessidades, viveríamosisolados dos outros e emcompleta miséria. Emtodas as sociedades po-demos constatar a ne-cessidade de dividir astarefas de acordo comdiferentes capacidades eatitudes. Cada um preci-sa do outro.

A maioria das rela-ções dizem respeito àesfera do amor e nadaexigem em troca, comono caso da mãe que cui-da dos filhos ou dequalquer outro serviçogratuito e altruísta. Nes-ta esfera podemos tam-

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Vigília mundial de Pentecostes organizada online por International Catholic Charismatic Renewal Service (Charis)

Das grandes provas é preciso sair melhores

seus discípulos: «Esperai o cumpri-mento da promessa do meu Pai, queouvistes da minha boca, porqueJoão batizou com a água, mas daquia poucos dias sereis batizados no Es-pírito Santo» (v. 4). E, no versículo8, diz-lhes: «O Espírito descerá so-bre vós e fortalecer-vos-á; e sereisminhas testemunhas em Jerusalém,em toda a Judeia e Samaria, até aosconfins do mundo».

Testemunho de Jesus. O EspíritoSanto leva-nos a este testemunho.Hoje o mundo sofre, está ferido; vi-vemos num mundo muito ferido,que sofre, sobretudo nos mais po-bres, que são descartados, quandotodas as nossas seguranças humanasdesapareceram, o mundo tem neces-sidade de que lhe ofereçamos Jesus.Precisa do nosso testemunho doEvangelho, do Evangelho de Jesus.Só podemos dar este testemunhocom a força do Espírito Santo.

Temos necessidade de que o Espí-rito nos dê novos olhos, abra a nos-sa mente e o nosso coração para en-frentar este momento e o futuro coma lição aprendida: somos uma só hu-manidade. Não nos salvamos sozi-nhos. Ninguém se salva sozinho.Ninguém! Na Carta aos Gálatas,São Paulo diz: «Já não há judeunem grego, nem escravo nem livre,nem homem nem mulher, pois todosvós sois um só em Cristo Jesus» (cf.3, 28), unidos pelo poder do Espíri-to Santo. Através deste batismo doEspírito Santo que Jesus anuncia.

Sabemo-lo, sabíamo-lo, mas estapandemia que vivemos no-lo fez ex-perimentar de maneira muito maisdramática.

Temos à nossa frente o dever deconstruir uma realidade nova. É oSenhor que o fará; podemos colabo-rar: «Eis que Eu renovo todas ascoisas», diz (Ap 21, 5).

Quando sairmos desta pandemia,não podemos continuar a fazer oque fazíamos, nem como o fazíamos.Não, tudo será diferente! Todo o so-frimento terá sido inútil, se nãoconstruirmos entre todos uma socie-dade mais justa, mais equitativa,mais cristã, não de nome, mas narealidade, uma realidade que nosconduza a uma conduta cristã. Senão trabalharmos para acabar com apandemia da pobreza no mundo,com a pandemia da pobreza no paísde cada um de nós, na cidade ondecada um de nós vive, este tempo te-rá sido vão.

Das grandes provações da huma-nidade, e entre elas da pandemia,sai-se melhor ou pior. Não se saiigual.

Pergunto-vos: como quereis sair,melhores ou piores? E é por isso quehoje nos abrimos ao Espírito Santo,a fim de que Ele possa transformaro nosso coração e nos ajude a sairm e l h o re s .

Se não vivermos para ser julgadossegundo o que Jesus nos diz: «Por-que tive fome e me destes de comer,

estive na prisão e me visitastes, eraperegrino e me acolhestes» (cf. Mt25, 35-36), não sairemos melhores.

E esta tarefa cabe a todos, a todosnós. E também a vós de Charis, quesois todos os carismáticos unidos.

O terceiro documento de Malinas,escrito nos anos 70 pelo CardealSuenens e pelo Bispo Hélder Câma-ra, intitulado: Renovação carismáticae serviço ao homem, indica este cami-nho para a corrente da graça. Sedefiéis a este apelo do Espírito Santo!

Agora vêm-me à mente as pala-vras proféticas de João XXIII, quan-do anuncia o Concílio Vaticano, eque a Renovação carismática valori-za de modo especial: «Digne-se oEspírito Divino ouvir da forma maisconsoladora a oração que a Ele as-cende de todos os recantos da terra.Que Ele renove no nosso tempo osprodígios, como que de um novoPentecostes, e conceda que a SantaIgreja, permanecendo unânime emoração com Maria, Mãe de Jesus, esob a guia de Pedro, dilate o Reinodo Divino Salvador, Reino de verda-de e de justiça, Reino de amor e depaz».

Nesta Vigília, desejo a todos vós aconsolação do Espírito Santo. E aforça do Espírito Santo, para sairdeste momento de dor, tristeza eprovação que é a pandemia; parasairdes melhores.

O Senhor vos abençoe e a VirgemMãe vos ampare!

Quando chegou a festa de Pentecos-tes, todos os fiéis estavam reunidosno mesmo lugar. Assim começa o se-gundo capítulo do livro dos Atosdos Apóstolos, que acabamos de ou-vir. Também hoje, graças aos pro-gressos técnicos, estamos reunidos,crentes de várias partes do mundo,na véspera de Pentecostes.

A narração continua: «De repenteveio do céu um grande ruído, comose soprasse um vento impetuoso, eencheu toda a casa onde eles se en-contravam. Então apareceu-lhes umaespécie de línguas de fogo, que serepartiram e pousaram sobre cadaum deles. E todos ficaram cheios doEspírito Santo» (vv. 2-4).

O Espírito pousa sobre cada umdos discípulos, sobre cada um denós. O Espírito prometido por Jesusvem para renovar, converter, purifi-car cada um de nós. Vem para curaros nossos medos — quantos medostemos! — as nossas inseguranças;vem para sarar as nossas chagas, asferidas que também nós causamosuns aos outros; e vem para nostransformar em discípulos, discípu-los missionários, testemunhas cheiasde coragem, de parrésia apostólica,que são necessários para a pregaçãodo Evangelho de Jesus, como lemosnos versículos seguintes que aconte-ceu com os discípulos.

Hoje, mais do que nunca, precisa-mos que o Pai nos envie o EspíritoSanto. No primeiro capítulo dosAtos dos Apóstolos, Jesus diz aos

Milhares de fiéis de mais de cem países rezaramjuntos, unidos através dos meios tradicionais e dasredes, na grande vigília de Pentecostes organizadapor Charis, serviço único internacional para aRenovação carismática católica, que nasceu há umano por vontade do Papa Francisco. Erigido a 8 de

dezembro de 2018 pelo Dicastério para os leigos, afamília e a vida, como organismo de comunhão, osseus estatutos entraram em vigor no Pentecostes de2019, quando a Fraternidade católica dascomunidades carismáticas de aliança, conhecida comoCatholic Fraternity, e International Catholic

Charismatic Renewal Services (Iccrs) cessaramdefinitivamente a sua atividade. O encontro onlineestava marcado para a noite de sábado, 30 de maio,às 22h00, hora de Roma para uma vigíliaecuménica na qual interveio também o Pontífice coma seguinte mensagem em vídeo.

Um momento da ligação durante a vigília de Pentecostes de Charis

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número 23, terça-feira 9 de junho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 11

Mensagem em vídeo ao movimento Thy Kingdom Come

Investir em saúde, trabalhoe luta às desigualdades

Para que os cristãos sejam maisprofundamente unidos como«testemunhas de misericórdia para ahumanidade duramente provada», oPapa Francisco gravou um vídeo emapoio do movimento Thy KingdomCome, querido pelo arcebispo deCanterbury, Sua Graça Justin Welby,como um apelo à unidade. Publicamosa seguir a nossa tradução damensagem em vídeo que foi transmitidaa 31 de maio como parte do serviçolitúrgico do primaz da Comunhãoanglicana, por ocasião da solenidadede Pentecostes.

Amados irmãos e irmãs!Uno-me com alegria ao ArcebispoJustin Welby e a todos vós para par-tilhar o que tenho no meu coração.É Pentecostes: lembramo-nos do diaem que o Espírito de Deus desceucom poder. Desde aquele dia, a vidade Deus difundiu-se entre nós, tra-zendo-nos uma nova esperança, umapaz e uma alegria anteriormente des-conhecidas. No Pentecostes Deuscontagiou o mundo com a vida.Quanto contrasta tudo isto com ocontágio de morte que há meses sealastra na Terra! Então, nunca comohoje é necessário invocar o EspíritoSanto, para que Ele possa derramara vida de Deus, o amor, nos nossoscorações. Na verdade, para que o fu-turo seja melhor, é o nosso coraçãoque deve melhorar.

No dia de Pentecostes, encontra-ram-se povos que falavam línguasdiferentes. Nestes meses, porém, so-mos chamados a observar medidascorretas e necessárias para nos dis-tanciarmos. Mas podemos compre-ender melhor dentro de nós o queos outros sentem. Partilhamos o me-do e a incerteza. Precisamos de er-guer tantos corações atribulados.Penso no que Jesus disse quando fa-lou do Espírito Santo: usou uma pa-lavra específica, P a rá c l i t o , ou seja,C o n s o l a d o r. Muitos de vós sentistes oseu consolo, aquela paz interior quenos faz sentir amados, aquela forçasuave que dá sempre coragem, mes-mo na dor. O Espírito dá-nos a cer-teza de que não estamos sós, massustentados por Deus. Caríssimos,devemos dar o que recebemos: so-mos chamados a difundir a consola-ção do Espírito, a proximidade deDeus.

Como podemos fazer isto? Pense-mos no que gostaríamos de ter ago-ra: conforto, encorajamento, alguémque cuide de nós, alguém que rezepor nós, que chore connosco, quenos ajude a enfrentar os nossos pro-blemas. Portanto, tudo aquilo quequisermos que os outros nos façam,façamo-lo nós primeiro (cf. Mt 7,12). Queremos ser ouvidos? Ouça-mos. Precisamos de encorajamento?Encorajemos. Queremos que alguémcuide de nós? Cuidemos daquelesque não têm ninguém. Precisamosde esperança para amanhã? Demosesperança agora. Assistimos hoje auma trágica c a re s t i a de esperança.Quantas feridas, quantos vazios porcolmar, quanta dor sem consolo! Se-jamos intérpretes da consolação do

Espírito, transmitamos esperança e oSenhor abrirá novos percursos nonosso caminho.

Sinto que partilho algo no nossocaminho. Como gostaria que nós,como cristãos, fôssemos cada vezmais e juntos, testemunhas de miseri-córdia para a humanidade duramenteprovada. Peçamos ao Espírito o domda unidade, porque só difundiremos

a fraternidade se vivermos como ir-mãos entre nós. Não podemos pedirà humanidade que se mantenha uni-da se enveredarmos por caminhosdiferentes. Portanto, rezemos unspelos outros, sintamo-nos responsá-veis uns pelos outros.

O Espírito Santo dá sabedoria econselho. Nestes dias, invoquemo-losobre aqueles que são obrigados a

tomar decisões delicadas e urgentes,para que possam proteger a vida hu-mana e a dignidade do trabalho. In-vista-se nisto: na saúde, no trabalho,na eliminação das desigualdades eda pobreza. Nunca como agora pre-cisámos de um olhar cheio de huma-nidade: não podemos recomeçar aperseguir os próprios êxitos sem nospreocuparmos com aqueles que fi-cam para trás. E mesmo que muitoso façam, o Senhor pede-nos quemudemos de rumo. Pedro, no dia dePentecostes, disse com a p a r ré s i a doEspírito: «Convertei-vos» (At 2, 38),ou seja, mudai de rumo, invertei adireção. Precisamos de voltar a ca-minhar para Deus e para o nossopróximo: não separados, não aneste-siados perante o grito do planeta es-quecido e ferido. Devemos estar uni-dos para enfrentar as pandemias quese estão a propagar: a do vírus, mastambém a fome, as guerras, o des-prezo pela vida, a indiferença. Sócaminhando juntos conseguiremos irlonge.

Caros irmãos e irmãs, vós difundiso anúncio do Evangelho da vida esois um sinal de esperança. Agrade-ço-vos de coração. Peço a Deus quevos abençoe e peço-vos que rezeispara que Ele me abençoe.

O brigado.

Uma ambulância para os desabrigados de RomaOferecida à Esmolaria Apostólica pelo Pontífice que a benzeu no Pentecostes

A ambulância que o Papa Franciscoofereceu à Esmolaria Apostólica estádestinada “exclusivamente” ao socorrodas pessoas mais pobres de Roma, paraajudar os necessitados que permanecemquase invisíveis aos olhos das institui-ções. O Papa abençoou a ambulância —na presença do Cardeal esmoler KonradKrajewski — nas proximidades do Arcodos Sinos, na manhã de domingo, 31 demaio, antes de celebrar a Missa de Pen-tecostes na Basílica de São Pedro.

O veículo de socorro, com a matrícu-la S C V, está ao serviço, em particular,dos desabrigados que vivem as dificul-dades da rua e procuram refúgio pertodo Vaticano ou em abrigos improvisa-dos em Roma. Acompanhará as outrasiniciativas de assistência médica da Es-molaria que estão ativas há alguns anos:como a clínica ambulatorial móvel, uti-lizada principalmente nos subúrbios deRoma; ou a Clínica Mãe da Misericórdia que, sob acolunata Bernini, oferece uma primeira assistência mé-dica a quem não a tem, e que continuou a desempe-nhar o seu trabalho mesmo durante o longo períodode encerramento por causa da emergência da Covid-19.

A ambulância doada pelo Santo Padre é uma dasutilizadas dentro do Estado da Cidade do Vaticano efoi disponibilizada pelo Governatorato, em memóriada trágica história de Modesta Valenti, a desabrigada —a quem a cidade de Roma também dedicou uma rua —que se tornou um símbolo de todos aqueles “m á r t i re sda indiferença” que morrem de privações no meio darua nas grandes cidades, esquecidos por todos.

Era o início de 1983 e Modesta tinha setenta anos.Vinda de Trieste com uma história marcada tambémpela dolorosa experiência do internamento num hospi-

tal psiquiátrico, tinha sido notada naquele frio Invernoromano por alguns jovens de Santo Egídio enquantomendigava em Santa Maria Maior. Ela disse aos volun-tários que a ajudaram que gostava de caminhar até SãoPedro porque o Papa estava lá; e uma vez ela tambémteve a alegria de visitar a Basílica do Vaticano com umamigo da Comunidade de Trastevere. Infelizmente, a31 de janeiro, depois de uma noite passada ao frio per-to da Estação Termini, a idosa sentiu-se mal: algunstranseuntes chamaram uma ambulância, mas quandochegaram não a quiseram socorrer porque ela tinhapiolhos. Durante quatro longas horas, vários hospitaisnão assumiram a responsabilidade de a socorrer. Mo-desta permaneceu no chão, continuando a sofrer e,quando finalmente se decidiram a socorrê-la, já estavamorta.

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Francisco pede para redescobrir a missãona vida cristã diária

Entrevista ao cardeal Tagle, prefeito de Propaganda Fide, sobre a mensagem às Pom

ALESSANDRO GISOTTI

Um choque benéfico para dar novoimpulso ao compromisso missionárioda Igreja. Uma semana após a pu-blicação da Mensagem do PapaFrancisco às Pontifícias Obras Mis-sionárias (Pom), o cardeal Luis An-tonio Tagle comentou com “L’O sser-vatore Romano” e Vatican News ospontos-chave do documento, que te-ve um amplo eco no âmbito eclesiale não só. Segundo o prefeito daCongregação para a evangelizaçãodos povos, é necessário pôr em prá-tica o que o Papa pediu: redescobriro autêntico espírito missionário, semconfiar em práticas que, sob a apa-rência de eficiência e sucesso, se dis-tanciam do coração da missão: oanúncio da Boa Nova a todos os po-vos.

A mensagem de Francisco às PontifíciasObras Missionárias (Pom) teve amplodestaque muito além do horizonte da-queles a quem se destinava. Mais umavez o Papa sublinhou como a missãoestá no centro da vida e da identidadeda Igreja. O que o impressionou parti-cularmente desta mensagem?

Há muitas coisas que me fascina-ram na mensagem do Papa Francis-co às Pontifícias Obras Missionárias.Gostaria de mencionar algumas. Emprimeiro lugar, o Santo Padre aceita-ra o convite para se dirigir aos Dire-tores nacionais das Poms durante aassembleia geral, que se deveria rea-lizar no mês de maio deste ano. De-vido à pandemia, a assembleia foicancelada. Mas em vez de aproveitar

o cancelamento de uma audiênciacomo uma oportunidade para des-cansar, o Papa decidiu escrever e en-viar uma mensagem. Para mim, estedocumento contém não só as pala-vras e as intuições do Papa, mastambém a sua paixão pela missão ea sua solicitude pelas Poms. Ao ler-mos o documento, devemos ouvir asua alma, o seu entusiasmo, as suasesperanças e as suas preocupações.Em segundo lugar, embora a mensa-gem seja dirigida especificamenteaos Diretores nacionais das Poms,acho que o Papa deseja que toda aIgreja, todo o Povo de Deus a leia,a estude e medite sobre ela. Serviráde guia para os Diretores nacionais.Contudo, servirá também como ins-trumento para um exame de cons-ciência de toda a Igreja, no que dizrespeito ao espírito e compromissomissionário.

O Papa frisou fortemente que a missãoé um dom gratuito do Espírito Santo,não o resultado de estratégias que imi-tam “modelos de eficiência mundana”.O que pensa que deve ser feito paraevitar este risco de funcionalismo, deeficientismo nos novos projetos dasPoms?

É importante afirmar que o PapaFrancisco não é contrário à eficiêncianem a métodos que possam tornar anossa missão frutuosa e transparente.Mas alerta-nos para o perigo de“medir” a missão da Igreja utilizan-do apenas normas e resultados pre-determinados por modelos ou esco-las de gestão, por melhores e maisúteis que sejam. Instrumentos de efi-

ciência podem ajudar, mas nuncadevem substituir a missão da Igreja.A organização mais eficiente daIgreja pode acabar por ser a menosmissionária. Afirmando que a missãoé um dom do Espírito Santo, o PapaFrancisco leva-nos de novo a algu-mas verdades fundamentais como: afé em Deus é um dom do próprioDeus; o Reino de Deus é inaugura-do e realizado por Deus; a Igreja écriada por Deus; a Igreja despertapara a sua missão, proclama o Evan-gelho e vai até aos extremos confinsda terra, porque o Senhor ressuscita-do envia o Espírito Santo do Pai.Na origem da Igreja e da sua missãohá um dom de Deus, não um proje-to humano. Jesus vem ao nosso en-contro como Amor do Pai. Mas te-mos um papel a desempenhar: rezar,discernir o dom divino, recebê-lo nafé e agir sobre ele como o Senhordeseja. Separadas desta raiz de gra-ça, as ações da Igreja e os projetosdas Poms são reduzidos a merasfunções e esquemas específicos deação. As surpresas e os “incómo dos”de Deus são considerados destruido-res dos nossos projetos programa-dos. A meu ver, a fim de evitar o ris-co do funcionalismo, devemos voltarà fonte da vida e da missão da Igre-ja: o dom de Deus em Jesus e noEspírito Santo. Sem esta fonte gera-dora de vida, o nosso trabalho árduocausaria fadiga, tédio, ansiedade,competição, insegurança e desespe-ro. Firmemente enraizados no domdo Espírito Santo, poderemos en-frentar a nossa missão e os seus so-frimentos com alegria e esperança.

Com uma imagem muito forte, Francis-co exortou as Poms a “quebrar os espe-lhos de casa”. As tentações do narcisis-mo e da autossuficiência são “doenças”que preocupam o Santo Padre. Comonos podemos “vacinar” contra este ví-rus, que faz adoecer a Igreja?

O narcisismo é o resultado deuma visão puramente pragmática oufuncional da missão. A missão torna-se lentamente mais focada em mim,no meu nome, no meu sucesso, naminha realização, na minha fama enos meus seguidores e menos naBoa Nova da misericórdia de Deus,na compaixão de Jesus, nos movi-mentos surpreendentes do EspíritoSanto. E quando chegam os bonsresultados, o narcisismo e o egocen-trismo levam-nos a sentir-nos autos-suficientes. Os meus resultados mos-tram que posso contar com as mi-nhas capacidades. Por conseguinte,precisar de Deus e de outras pessoasé um insulto às minhas capacidadesilimitadas. Esta autossuficiência re-força o narcisismo. Esta dinâmicaaprisiona uma pessoa ou uma insti-tuição num pequeno mundo de au-to-isolamento, que é o oposto damissão. É este o espelho que o PapaFrancisco quer que quebremos: oegocentrismo. Devemos usar um vi-dro transparente que nos permita verpara além de nós mesmos e não umespelho onde olho apenas para omeu rosto e para o ambiente que merodeia. Ou melhor ainda, como su-gere o Papa, abramos as janelas e asportas, olhemos para fora, saiamosrumo à criação de Deus, ao próxi-mo, aos cantos das ruas, aos sofredo-res, àqueles que estão desorientados,aos jovens e aos feridos. Olhandopara eles, esperamos ver-nos tam-bém a nós mesmos. Vemos Deus.Eles são os verdadeiros espelhos quedeveríamos fitar. A vacina contra onarcisismo e a autossuficiência con-siste em sairmos de nós mesmos. Avacina chama-se “Igreja em saída”.Só então nos encontraremos real-mente a nós mesmos. Trata-se demudar os espelhos.

O Papa pede-nos também que pense-mos nos mais pobres e não na autopro-moção. Ele pede para ir ao encontrodas pessoas “onde e como elas estão nomeio da própria vida” e para confiarno “sensus fidei” do povo de Deus. Es-tarão as Poms prontas para se interro-gar sobre um novo impulso na suamissão fundamental ao serviço da Igre-ja?

Ao reconduzir a missão à ação doEspírito Santo, o Papa Franciscolembra-nos o que é a Igreja, o Tem-plo do Espírito Santo, o Povo deDeus, o sujeito ativo da missão. ÀsPoms e a outros grupos orientadospara a missão recorda-se que a mis-são não é da sua competência exclu-siva, nem são eles os únicos promo-tores da missão. Como edifício vivoFrancisco com o cardeal Tagle durante a viagem às Filipinas (janeiro de 2015)

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número 23, terça-feira 9 de junho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 13

Nas fontesde uma missão quenão é obra nossa

ANDREA TORNIELLI

A mensagem do Papa Francisco àsPontifícias Obras Missionárias é umtexto forte, concreto nas suas indica-ções, que aponta para a única fontereal da ação missionária da Igreja eao mesmo tempo quer evitar, cha-mando-as pelo nome, algumas pato-logias que correm o risco de detur-par a própria missão.

A missão, explica Francisco, não éo fruto da aplicação de «sistemas elógicas mundanas de militância oucompetência técnico-profissional»,mas nasce da «alegria transbordan-te» que «o Senhor nos dá» e que éfruto do Espírito Santo. É uma gra-ça, esta alegria que ninguém podedar a si mesmo sozinho. Ser missio-nário significa reverberar o grande eimerecido dom que recebemos, istoé, refletir a luz do Outro, como faza lua em relação ao sol. «Em qual-quer situação humana — escreve oPapa — as testemunhas são aquelesque atestam o que foi feito por outrapessoa. Só neste sentido podemosser testemunhas de Cristo e do seuEspírito». Trata-se daquele mysteriumlunae, querido aos Padres da Igrejados primeiros séculos, que compre-enderam claramente que, instanteapós instante, a Igreja vive da graçade Cristo. Tal como a lua, também aIgreja não brilha com a própria luze quando olha demasiado para simesma ou confia nas suas capacida-des, acaba por ser autorreferencial ejá não transmite luz a ninguém.

A origem desta mensagem é oconteúdo da exortação Evangeliigaudium, o texto que traçou o cami-nho do atual pontificado. Franciscorecorda que o anúncio do Evangelhoe a confissão da fé cristã são diferen-tes de qualquer proselitismo político,cultural, psicológico ou religioso. AIgreja cresce no mundo por atraçãoe «quando uma pessoa segue felizJesus, porque se sente atraída porEle, os outros dão-se conta disso; epodem maravilhar-se».

Partindo da mensagem às Poms, éevidente a intenção do Papa de im-pedir a tendência a considerar a mis-são como algo elitista, a ser orienta-da e dirigida através de programasteóricos, aplicando estratégias queobtenham uma “tomada de cons-ciência” através de raciocínios, ad-vertências, militâncias, treinos. Dotexto pontifício, é igualmente evi-dente que o bispo de Roma conside-ra que se trata de um risco atual, epor conseguinte as suas palavras têmum valor que vai muito além dasPontifícias Obras Missionárias, àsquais se dirige. Para evitar a autorre-ferencialidade, a ansiedade de co-mando e a delegação da atividademissionária a «uma classe superiorde especialistas» que consideram opovo dos batizados uma massa iner-te a reanimar e mobilizar, Franciscorecorda alguns dos traços distintivosda missão cristã: gratidão e gratuida-de, humildade, proximidade à vidadas pessoas lá onde se encontram etal como são, predileção pelos pe-queninos e pelos pobres.

do Espírito Santo a Igreja é missio-nária desde as suas origens históri-cas. O Papa recorda com razão asorigens das Poms na assistência, naoração e nas obras de caridade paracom as pessoas simples. As Pomsnasceram graças a mulheres e ho-mens que viveram a santidade nasua vida quotidiana, uma santidadeque os levou a partilhar o dom deJesus com quantos precisam d’Ele.Utilizaram os meios que lhes foramconcedidos pelo Espírito Santo: aoração e os gestos de caridade. OSanto Padre encoraja as Poms e aIgreja a reconduzir o sentido e ocumprimento da missão à normali-dade da vida cristã, a fazer da mis-são uma parte simples e sem com-plicações da vida cristã nas famílias,nos locais de trabalho, nas escolas,nas empresas, nos escritórios e nasparóquias. Penso que um grandedesafio é o modo de ajudar os nos-sos fiéis a reconhecer que a fé é umgrande dom de Deus, não um far-do. Se formos felizes e enriquecidospela nossa experiência de fé, parti-lharemos este dom com os outros.A missão torna-se a partilha de umdom, e não uma obrigação a cum-prir. Unidos aos nossos irmãos e ir-mãs, percorremos o mesmo cami-nho chamado missão. Missão e si-nodalidade encontram-se.

Uma parte importante da Mensagemé dedicada às doações. Segundo o Pa-pa, é necessário superar a tentação deir em busca de “grandes doadores”,transformando as Pontifícias ObrasMissionárias em Ongs centradas naangariação de fundos. Como serãoconcretamente implementadas estasexortações do Papa?

Na visão coerente do Papa Fran-cisco, os donativos são vistos comoofertas de caridade que acompa-nham a oração pela missão. Estaperspetiva faz dos donativos ou daangariação de fundos uma parte dodom da fé e da missão. Quando o

horizonte da doação é substituídopelo da eficiência na gestão de umaorganização, as doações tornam-seapenas fundos ou recursos a ser uti-lizados, em vez de sinais tangíveisde amor, oração e partilha dos fru-tos do trabalho humano. O perigoé que o dinheiro seja recolhido emnome da missão, mas sem se tornaruma expressão de caridade missio-nária por parte do doador. Então, oobjetivo poderia limitar-se a atingira quantia de dinheiro desejada, emvez de despertar a consciência e aalegria missionária. Com o olharconcentrado num objetivo monetá-rio, torna-se forte a tentação deconfiar em grandes doadores. Sugi-ro que dediquemos mais tempo eenergia para dar às pessoas a opor-tunidade de encontrar Jesus e o seuEvangelho e de ser missionárias navida quotidiana. O nosso melhorrecurso são aqueles que se tornammissionários empenhados e alegres,não o dinheiro. É bom recordartambém aos nossos fiéis que até assuas pequenas ofertas, em conjunto,se tornam uma expressão tangívelda caridade missionária universaldo Santo Padre para com as Igrejasnecessitadas. Nenhum dom é dema-siado pequeno quando é oferecidopara o bem comum.

Não há Igreja sem missão, Franciscorepete-nos mais uma vez com esta for-te Mensagem que recorda a “Evangeliigaudium”. Qual é a sua esperança,como prefeito da Congregação que tema missão no seu Adn?

A Mensagem de Francisco aosDiretores nacionais das Poms reto-ma os principais temas da Evangeliigaudium. Creio que a Evangelii gau-dium é a forma original do PapaFrancisco de articular para o nossotempo a herança eclesiológica e amissiologia do Concílio Vaticano II.Exprime também a influência daEvangelii nuntiandi, de São Paulo VIna sua visão missionária. Nos últi-

mos sessenta anos, ouvimos afirmarem voz alta que a identidade e a ra-zão de ser da Igreja é a missão. Amissão da Igreja é partilhar o domque ela recebeu. Lembro-me da Pri-meira Carta de São João, onde selê: «O que era desde o princípio, oque temos ouvido, o que temos vis-to com os nossos olhos, o que te-mos contemplado e as nossas mãostêm apalpado no respeitante aoVerbo da vida... Escrevemo-vos es-tas coisas para que a vossa alegriaseja completa» (1 Jo 1, 1-4). Esperoque possamos regressar a estas ori-gens simples e alegres da Igreja eda sua missão apostólica.

De que modo incide sobre tudo istoum momento extraordinário como oque vivemos hoje por causa da pande-mia?

A pandemia da Covid-19 trouxemuito sofrimento e medo à famíliahumana. Não podemos nem deve-mos ignorar o seu impacto sobre aIgreja e a missão. Ainda poderia le-var muito tempo para compreen-dermos melhor este acontecimentona nossa vida. Mas podemos dizerque, entre as incertezas, o isolamen-to, o desemprego, a perda de rendi-mentos e muitos outros efeitos dapandemia, o Espírito Santo efundiuabundantemente os dons da com-paixão, do heroísmo, do amor à fa-mília, da oração fervorosa, da redes-coberta da Palavra de Deus, da fo-me de Eucaristia, do regresso a ummodo de vida simples, do cuidadopela Criação, para citar apenas al-guns. Quando a Igreja se sentiu li-mitada nas suas atividades habi-tuais, o Espírito Santo continuou asua missão sem qualquer limitação.A Igreja é chamada a olhar e a ad-mirar-se com as surpreendentesobras do Espírito Santo. Aprecia-mos tal dom e contaremos as histó-rias da ação do Espírito Santo du-rante a pandemia ao longo de mui-tos anos no futuro.

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página 14 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 9 de junho de 2020, número 23

Carta pelos oitocentos anos da sua vocação franciscana

A santa inquietação de António

Pietro Liberi, «Glória de Santo António» (1665)

Há oitocentos anos, em Coimbra, «o jovem cónego re-gular agostiniano Fernando, natural de Lisboa, ao sa-ber do martírio de cinco franciscanos, mortos por cau-sa da fé cristã em Marrocos a 16 de janeiro daquelemesmo ano, decidiu fazer uma mudança na sua vida».O Papa Francisco recordou-o numa carta enviada aoministro-geral dos Frades menores conventuais, padreCarlos Alberto Trovarelli, por ocasião do oitavo cente-nário da vocação franciscana de Santo António de Lis-b oa.

No texto, o Pontífice retomou brevemente as etapasdo percurso espiritual e profissional de António. Re-cordou que o jovem português «deixou a sua pátria eempreendeu um caminho, símbolo do próprio itinerá-rio espiritual de conversão». Primeiro foi a Marrocos,«determinado a viver corajosamente o Evangelho naspegadas dos mártires franciscanos», mortos por ódio àfé. Proveniente do Norte de África, encontrou-se no li-toral da Sicília por causa de um naufrágio, «comoacontece hoje com tantos dos nossos irmãos e irmãs».Da Sicília, escreveu o Papa, «o providencial desígniode Deus levou-o ao encontro com a figura de SãoFrancisco de Assis nas estradas da Itália e da França».Por fim, chegou a Pádua, «uma cidade que estará sem-pre ligada de uma forma especial ao seu nome e que

conserva o seu corpo». Os auspícios do Pontífice sãopor que esta comemoração desperte — esp ecialmentenos filhos espirituais de São Francisco e nos devotosde Santo António espalhados pelo mundo — «o desejode experimentar a mesma santa inquietação que o le-vou pelos caminhos do mundo, através da palavra e daação, e de testemunhar o amor de Deus». O seu exem-plo de partilha das «dificuldades das famílias, dos po-bres e dos desfavorecidos», assim como «a sua paixãopela verdade e pela justiça, ainda hoje pode suscitarum generoso compromisso de doação, em sinal de fra-ternidade», deseja o Pontífice, que dirige um pensa-mento particular aos jovens: este santo «antigo, mastão moderno e genial nas suas intuições», escreveu,«pode ser um modelo a seguir pelas novas geraçõespara tornar frutuoso o caminho de cada um».

O Pontífice une-se espiritualmente àqueles que parti-ciparem nas diversas iniciativas promovidas para viverna oração e na caridade o oitavo centenário antoniano.Por fim, desejou que todos possam repetir com SantoAntónio: «Vejo o meu Senhor!». De facto, é necessário«ver o Senhor» no rosto de cada irmão e irmã, concluia carta, «oferecendo a todos consolação, esperança epossibilidade do encontro com a Palavra de Deus naqual ancorar a própria vida».

Campanha de solidariedade dos religiosos latino-americanos a favor dos povos indígenas atingidos pelo coronavírus

Ajuda concreta à AmazóniaChegou o momento de agir e levarajuda concreta aos mais vulneráveis:com base nesta exortação articula-se«Somos todos Amazónia», a campa-nha de solidariedade que a Confede-ração Latino-americana de Religio-sos e Religiosas (Clar) lançou há al-guns dias no âmbito da “Semana daLaudato Si’” a fim de angariar fun-dos para a compra de material hos-pitalar e kits de saúde para as comu-nidades indígenas duramente atingi-das pela pandemia do coronavírus epara convidar profissionais da áreamédica a oferecerem voluntariamen-te os seus cuidados em regiões des-providas de assistência de saúde. Es-ta iniciativa surgiu também após orecente apelo da Rede eclesial pan-amazónica (Repam), que evidenciouos efeitos devastadores da Covid-19na vasta região geográfica, ao falarde uma “enorme onda de choque”,capaz de provocar uma tragédia hu-mana e ambiental.

«Somos testemunhas do grito damãe terra e dos pobres da Amazó-nia, diante de uma crise de propor-ções sem precedentes», declararamos dirigentes da organização numdocumento que pede a «todas asformas de vida religiosa do conti-nente e às pessoas de boa vontade»uma ação urgente e comum que sematerialize num grande gesto de so-lidariedade. «Há ânforas vazias à es-pera da nossa água», escrevem os re-ligiosos latino-americanos, «e o com-promisso com o sofrimento dos nos-sos irmãos na Amazónia pode apro-ximar-nos de um milagre», graças ao«fluir de redes de solidariedade ecooperação significativa a favor davida ameaçada».

Uma missão de caridade cristã,uma das muitas à qual a Clar dá asua contribuição, que tem comoprincipal objetivo a animação e a co-ordenação de conferências nacionaisde superiores presentes em 22 paísesda América Latina e do Caribe.Através de experiências culturais ecarismáticas, seguindo as linhas dosprocessos de formação dos missioná-rios, a organização promove tambéma revitalização da vida religiosa entreas novas gerações.

Um caminho que deu e continuaa dar os seus frutos tendo em vista apresença constante de sacerdotes nascomunidades amazónicas, pobresmas ricas de cultura e coragem, co-mo sublinhou Gloria Liliana FrancoEcheverri, presidente da Clar, daOrdem da Companhia de Marianossa Senhora, na assembleia espe-cial do Sínodo dos Bispos para a re-gião Pan-Amazónica. «Nós, religio-sos e religiosas, estamos convencidosde que, como consagrados, devemos“armar a nossa tenda” na Amazó-nia», afirmou. «Hoje é verdadeira-mente urgente retomar essa vocaçãoprofética que temos como consagra-dos e compreendemos que somoschamados a uma vida que tem trêscaraterísticas fundamentais: a inter-cultura, isto é, a capacidade de reali-zar a pedagogia do encontro e dodiálogo; a itinerância num mundoque se move, tanto geográfica comoexistencialmente; e a dimensão inter-congregacional, porque hoje deve-mos praticar o caminho da comu-

nhão, da sinodalidade e isto exigeque nos comprometamos a trabalharjuntos como irmãos e irmãs. É istoque todos os religiosos deste conti-nente são chamados a fazer, porquea vida continua a gritar e precisa denós», concluiu. Especialmente emtempos de pandemia, em que a pro-ximidade com o outro leva a umadedicação ainda mais intensa àquelesque se encontram numa emergênciade saúde e não dispõem dos meiospara a combater.

«No Brasil, por exemplo, a situa-ção torna-se cada vez mais difícil dedia para dia», disse o padre DarioBossi, superior provincial dos Com-bonianos do Brasil e membro da Re-pam e da Rede Iglesias y Minería,numa entrevista ao Vatican News.«Em Piquiá de Baixo, no Estado doMaranhão, e na região amazónica,temos a situação mais delicada». Aliquase metade dos habitantes vivemcom cerca de noventa dólares pormês, juntamente com dificuldades

crónicas no acesso à água e a servi-ços de saneamento e de saúde dig-nos, com todas as consequênciasimagináveis para a saúde das popu-lações indígenas, que estão mais ex-postas ao contágio devido às baixasdefesas imunitárias. A rede de soli-dariedade ativada pela Igreja localestá a procurar resolver as falhas deuma situação complicada através deintervenções a um nível generaliza-do, explicou o religioso. «Precisa-mente no dia de Páscoa — afirmou —foi lançada uma campanha a longoprazo pela Cnbb em conjunto com aCáritas. E é uma campanha que pro-cura não só fazer face à emergênciaimediata, mas também estruturar asolidariedade de uma forma perma-nente». Uma presença de esperançaque se mantém também nas váriascelebrações online para não deixarsozinhas e fazer sentir às “igrejas do-mésticas” criadas nas várias famílias,“o sabor da Palavra de Deus” segun-do uma definição do padre Bossi.

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número 23, terça-feira 9 de junho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 15

INFORMAÇÕES

AudiênciasO Papa Francisco recebeu em audiên-cias particulares:

No dia 30 de maio

Os Senhores Cardeais Marc Ouellet,Prefeito da Congregação para osBispos; e Luis Antonio G. Tagle,Prefeito da Congregação para aEvangelização dos Povos.

Ereções de ProvínciasEclesiásticas

O Sumo Pontífice erigiu:

A 30 de maio

Província Eclesiástica de Pointe-Noi-re (República do Congo), elevandoa Diocese em questão a Igreja Me-tropolitana e atribuindo-lhe simulta-neamente, como Igrejas sufragâneas,as Dioceses de Dolisie e Nkayi.

Província Eclesiástica de Owando(República do Congo), elevando aDiocese em questão a Igreja Metro-politana e atribuindo-lhe simultanea-mente, como Igrejas sufragâneas, asDioceses de Impfondo e Ouesso.

RenúnciasO Santo Padre aceitou a renúncia:

No dia 29 de maio

De D. Camilo Fernando CastrellónPizano, S.D.B., ao governo pastoralda Diocese de Barrancabermeja (Co-lômbia).

No dia 30 de maio

De D. Gregorio Nicanor Peña Ro-dríguez, ao governo pastoral da Dio-cese de Nuestra Señora de la Alta-gracia en Higüey, na República Do-minicana.

No dia 1 de junho

De D. Jozef Maria Punt, ao governopastoral da Diocese de Haarlem-Amsterdam (Países Baixos).

De D. Joseph Maria Punt, ao cargode Administrador Apostólico “adnutum Sanctae Sedis” do Ordinaria-to Militar para os Países Baixos.

NomeaçõesO Papa nomeou:

A 29 de maio

Arcebispo Metropolitano da Arqui-diocese de Ibagué (Colômbia), D.Orlando Roa Barbosa, até esta dataBispo de Espinal, na Colômbia.

Bispo de Barrancabermeja (Colôm-bia), o Rev.do Pe. Ovidio GiraldoVelásquez, do clero da Diocese deLa Dorada — Guaduas, até agoraDiretor Nacional da Rede para aNova Evangelização (SINE).

D. Ovidio Giraldo Velásquez nasceua 27 de janeiro de 1963 em Montebo-nito, na Colômbia, e foi ordenado Sa-cerdote em 18 de fevereiro de 1989.

A 30 de maio

Primeiro Arcebispo Metropolitanoda Arquidiocese de Pointe-Noire(República do Congo), D. Miguel

Ángel Olaverri Arroniz, S.D.B., até àpresente data Bispo da mesma Sede.Primeiro Arcebispo Metropolitanoda Arquidiocese de Owando (Repú-blica do Congo), D. Victor AbagnaMossa, até hoje Bispo da mesma Se-de.Bispo da Diocese de Nuestra Señorade la Altagracia en Higüey, na Re-pública Dominicana, D. Jesús CastroMarte, até agora Bispo Titular deGiufi e Auxiliar de Santo Domingo.Bispo Auxiliar da Diocese deUmuahia (Nigéria), o Rev.do Pe. Mi-chael Kalu Ukpong, do clero deUmuahia, até esta data Chanceler damesma Sede e Pároco da “St. There-sa’s Parish”, simultaneamente eleitoBispo Titular de Igilgili.

D. Michael Kalu Ukpong nasceu nodia 15 de dezembro de 1964 emAmaekpu Ohafia, na Nigéria, e recebeua Ordenação sacerdotal em 7 de agostode 1993.

A 31 de maioBispo de Niigata (Japão), o Rev.do

Pe. Paul Daisuke Narui, S.V.D., atéesta data Secretário para a Justiça ea Paz na Cúria Geral da Sociedade

do Verbo Divino (Verbitas) S.V.D.,em Roma.

D. Paul Daisuke Narui, S.V.D.,nasceu a 24 de novembro de 1973 emIwakura, no Japão, e foi ordenado Sa-cerdote no dia 10 de março de 2001.

A 1 de junhoNúncio Apostólico na FederaçãoRussa, D. Giovanni d’Aniello, Arce-bispo Titular de Pesto, até hojeNúncio Apostólico no Brasil.Bispo da Diocese de Haarlem-Ams-terdam (Países Baixos), D. JohannesWillibrordus Maria Hendriks, até àpresente data Coadjutor da mesmaSede.Bispo da Diocese de Mont-Laurier(Canadá), D. Raymond Poisson,atualmente também Bispo da Dioce-se de Saint-Jérôme, no Canadá.Bispo da Diocese de Telšiai (Lituâ-nia), D. Algirdas Jurevičius, até ago-ra Bispo Titular de Materiana e Au-xiliar de Kaunas.Administrador Apostólico “ad nu-tum Sanctae Sedis” do OrdinariatoMilitar para os Países Baixos, D.Everardus Johannes de Jong, atual-mente Bispo Titular de Cariana eAuxiliar de Roermond.

Disposições especiaisSua Santidade:

No dia 1 de junhoUniu “in persona episcopi” a Dioce-se de Mont-Laurier (Canadá) à Dio-cese de Saint-Jérôme.

Prelados falecidosAdormeceram no Senhor:

A 25 de maioD. Paolo Mietto, da Congregação deSão José (Josefinos de Murialdo),Vigário Apostólico Emérito de Na-po, no Equador, depois de uma lon-ga doença que se complicou porcausa da Covid-19.

O saudoso Prelado nasceu no dia26 de maio de 1934, em Pádua (Itá-lia). Foi ordenado Presbítero no dia 30de março de 1963 e recebeu a Ordena-ção episcopal a 22 de outubro de1994.

A 1 de junhoD. Pedro Ercílio Simon, ArcebispoEmérito da Arquidiocese Metropoli-tana de Passo Fundo, no Brasil.

O ilustre Prelado nasceu em Ibiaçá,Diocese de Vacaria (Brasil), a 9 de se-tembro de 1941. Recebeu a Ordenaçãopresbiteral em 12 de dezembro de 1965e foi ordenado Bispo no dia 30 de de-zembro de 1990. Renunciou ao governopastoral da sua Arquidiocese Metropo-litana a 11 de julho de 2012.

A 2 de junhoD. Jacques Noyer, Bispo Emérito deAmiens (França).

O venerando Prelado nasceu a 17 deabril de 1927, em Le Touquet-Paris-Plage (França). Foi ordenado Sacerdo-te em 2 de julho de 1950 e recebeu aOrdenação episcopal no dia 13 de de-zembro de 1987.

Intenção de oração para o mês de junho

Compaixão para com o mundo

O vídeo da Rede Mundial de Oração do Papa para o mês de Ju-nho está cheio de acontecimentos atuais. Fotos de pessoas nas en-fermarias dos hospitais, enfermeiros e médicos na linha da frenteprocurando cuidar delas e sará-las. O nosso pensamento volta-seimediatamente para a emergência de saúde causada pela Covid-19.Neste contexto, a intenção do Papa para o mês de junho é aindamais significativa: “Compaixão pelo mundo”. O filme centra-se noCoração de Jesus ao qual o mês de junho é tradicionalmente dedi-cado: “Rezemos para que aqueles que sofrem possam encontrar ca-minhos de vida, deixando-se tocar pelo Coração de Jesus”, pedeFrancisco, enquanto vemos pessoas com máscaras no rosto que,apesar do coronavírus, nunca deixaram de trabalhar: profissionaisda saúde nas enfermarias dos hospitais, “riders” que circulam pelasruas de bicicleta e ciclomotores para entregar pacotes e comida adomicílio, e trabalhadores do transporte e distribuição. “Muitas pes-soas — observa o Pontífice — sofrem pelas graves dificuldades queestão a viver”. Por isso, acrescenta, “podemos ajudá-las acompa-nhando-as por um caminho cheio de compaixão que transforma avida das pessoas e as aproxima do Coração de Cristo, que nos aco-lhe a todos na revolução da ternura”.

Difundido através do site www.thepopevideo.org, o filme traduzi-do em nove línguas foi criado e produzido pela Rede Mundial deOração do Papa, em colaboração com a agência La Machi e o Di-castério para a Comunicação.

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página 16 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 9 de junho de 2020, número 23

Próximo das populaçõesque ainda sofrem

O Papa recordou as vítimas da pandemia

ANGELUS

O Papa está próximo das populações dos países nos quais o coronavírus«ainda causa tantas vítimas» e convida a rezar em particular pelos doentes epelos seus familiares. No final do Angelus de 7 de junho — recitado, como nodomingo anterior, da janela do Palácio apostólico na presença de numerososfiéis reunidos na Praça de São Pedro no respeito das distâncias de segurança— Francisco quis dirigir um pensamento especial às nações nas quais ocontágio de Covid-19 ainda está na fase aguda. Anteriormente o Pontíficecomentou o trecho evangélico de João (3, 16-18) na solenidade da SantíssimaTr i n d a d e .

e rico de graça e fidelidade (cf. Êx34, 6). O encontro com este Deusencorajou Moisés, o qual, comonarra o livro do Êxodo, não receoucolocar-se entre o povo e o Senhor,dizendo-lhe: «Somos um povo decerviz dura, mas perdoai-nos asnossas iniquidades e os nossos pe-cados e aceitai-nos como proprie-dade Vossa» (v. 9). E assim fezDeus enviando o seu Filho. Nóssomos filhos no Filho pelo poderdo Espírito Santo! Nós somos aherança de Deus!

Estimados irmãos e irmãs, a festade hoje convida-nos a deixarmo-nos fascinar mais uma vez pela be-leza de Deus; beleza, bondade everdade inesgotável. Mas tambémbeleza, bondade e verdade humildee próxima, que se fez carne paraentrar na nossa vida, na nossa his-tória, na minha história, na históriade cada um de nós, para que cadahomem e cada mulher possa en-contrá-la e ter a vida eterna. E istoé fé: acolher Deus-Amor, acolhereste Deus-Amor que se doa emCristo, que nos faz mover no Espí-rito Santo; deixar-se encontrar porEle e confiar n’Ele. Esta é a vida

cristã. Amar, encontrar Deus, bus-car Deus; e Ele procura-nos pri-meiro, Ele encontra-nos primeiro.

Que a Virgem Maria, morada daTrindade, nos ajude a acolher como coração aberto o amor de Deus,que nos enche de alegria e dá sen-tido ao nosso caminho neste mun-do, orientando-o sempre para ameta que é o Céu.

No final da prece mariana, o Paparecordou que o mês de julho édedicado em particular à devoção aoCoração de Cristo, e convidou àadoração eucarística e à oração.

Amados irmãos e irmãs!Saúdo todos vós, romanos e pere-grinos: cada um dos fiéis, as famí-lias e as comunidades religiosas. Ea vossa presença na praça é tam-bém um sinal de que, em Itália, afase aguda da epidemia está supe-rada, mesmo se a necessidade deseguir escrupulosamente as normasem vigor ainda permanece — mascuidado, não canteis vitória, nãocanteis vitória demasiado cedo! —porque são regras que nos ajudam

a evitar que o vírus se propague.Graças a Deus estamos a sair dafase aguda, mas sempre com asprescrições que as autoridades nosdão. Infelizmente, noutros países —penso em alguns —, o vírus conti-nua a fazer tantas vítimas. Na sex-ta-feira passada, num país, a cadaminuto morria uma pessoa! Terrí-vel. Gostaria de expressar a minhaproximidade a essas populações,aos doentes e às suas famílias, e aquantos cuidam deles. Com a nos-sa oração, aproximemo-nos.

O mês de junho é dedicado deuma forma especial ao Coração deCristo, uma devoção que une osgrandes mestres espirituais e aspessoas simples do povo de Deus.Com efeito, o Coração humano edivino de Jesus é a fonte da qualpodemos obter sempre de Deusmisericórdia, perdão e ternura. Po-demos fazê-lo refletindo sobre umtrecho do Evangelho, sentindo queno centro de cada gesto, de cadapalavra de Jesus, no centro está oamor, o amor do Pai que enviou oseu Filho, o amor do Espírito San-to que está dentro de nós. E pode-mos fazer isto adorando a Eucaris-tia, onde este amor está presenteno Sacramento. Então também onosso coração, pouco a pouco, setornará mais paciente, mais genero-so, mais misericordioso, à imitaçãodo Coração de Jesus. Há uma ora-ção antiga — aprendi-a com a mi-nha avó — que dizia: “Jesus, fazcom que o meu coração se asseme-lhe ao teu”. É uma bela oração.“Torna o meu coração semelhanteao teu”. Uma bela oração, breve,para rezar este mês. Vamos recitá-laagora juntos? “Jesus, faz com queo meu coração se assemelhe aoteu”. Mais uma vez: “Jesus, fazcom que o meu coração se asseme-lhe ao teu”.

Desejo a todos bom domingo. Iadizer “um bom e quente domin-go”. Bom domingo. Por favor, nãovos esqueçais de rezar por mim.Bom almoço e até à vista.

Amados irmãos e irmãs, bom dia!O Evangelho de hoje (cf. Jo 3, 16-18), festa da Santíssima Trindade,mostra — na linguagem sintética doapóstolo João — o mistério deamor de Deus pelo mundo, suacriação. No breve diálogo com Ni-codemos, Jesus apresenta-se comoAquele que cumpre o plano de sal-vação do Pai a favor o mundo.Afirma: «Deus amou de tal modoo mundo que deu o seu Filho úni-co» (v. 16). Estas palavras indicamque a ação das três Pessoas divinas— Pai, Filho e Espírito Santo — éum desígnio único de amor quesalva a humanidade e o mundo, éum desígnio de salvação para nós.

Deus criou o mundo bom e be-lo, mas depois do pecado, o mun-do está marcado pelo mal e pelacorrupção. Nós, homens e mulhe-res somos pecadores, todos, por is-so Deus poderia intervir para jul-gar o mundo, para destruir o mal ecastigar os pecadores. Em vez dis-so, Ele ama o mundo, apesar dosseus pecados; Deus ama cada umde nós, mesmo quando cometemoserros e nos afastamos d’Ele. DeusPai ama tanto o mundo que, parao salvar, doa o que tem de maisprecioso: o seu Filho único, o qualdá a sua vida pela humanidade,ressuscita, volta para o Pai e, junta-mente com Ele, envia o EspíritoSanto. Por conseguinte, a Trindadeé Amor, totalmente ao serviço domundo, que deseja salvar e recriar.Hoje, pensando em Deus Pai e Fi-lho e Espírito Santo, reflitamos noamor de Deus! E seria bom quenos sentíssemos amados. “D eusama-me”: este é o sentimento dehoje.

Quando Jesus afirma que o Paideu o seu Filho unigénito, pensa-mos espontaneamente em Abraão ena sua oferta do filho Isaac, doqual o Livro do Génesis fala (cf.22, 1-14): eis a “medida sem medi-da” do amor de Deus. E pensemostambém em como Deus se revela aMoisés: cheio de ternura, miseri-cordioso, piedoso, lento para a ira