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Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 L’O S S E RVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt Ano LI, número 30 (2.657) Cidade do Vaticano terça-feira 28 de julho de 2020 Levar a paz a Donbass No Angelus o Papa falou do cessar-fogo na região NESTE NÚMERO Pág. 2: Chico Mendes, defensor da Amazónia, por Silvia Gusmano; Saúde e esperança para os povos indígenas; pág. 3: O San- to Padre visitou de surpresa um grupo de crianças reunidas na sala Paulo VI; Proximidade do Pontífice aos “curas villeros” de Buenos Aires; págs. 4/5: Coletânea de contribuições e reflexões da Consulta científica do Pátio dos gentios, por Emma Fattori- ni; Publicada uma nota da pontifícia Academia para a vida; pág. 6: A tarefa da literatura, por Annie Proulx; pág. 7: Informa- ções; Testemunho do arcebispo da Beira em Moçambique; pág. 8: Angelus de domingo 26 de julho.

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L’O S S E RVATOR E ROMANOEDIÇÃO SEMANAL

Unicuique suum

EM PORTUGUÊSNon praevalebunt

Ano LI, número 30 (2.657) Cidade do Vaticano terça-feira 28 de julho de 2020

Levar a paz a Donbass

No Angelus o Papa falou do cessar-fogo na região

NESTE NÚMEROPág. 2: Chico Mendes, defensor da Amazónia, por Silvia Gusmano; Saúde e esperança para os povos indígenas; pág. 3: O San-to Padre visitou de surpresa um grupo de crianças reunidas na sala Paulo VI; Proximidade do Pontífice aos “curas villeros” deBuenos Aires; págs. 4/5: Coletânea de contribuições e reflexões da Consulta científica do Pátio dos gentios, por Emma Fattori-ni; Publicada uma nota da pontifícia Academia para a vida; pág. 6: A tarefa da literatura, por Annie Proulx; pág. 7: Informa-ções; Testemunho do arcebispo da Beira em Moçambique; pág. 8: Angelus de domingo 26 de julho.

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página 2 L’OSSERVATORE ROMANO terça-feira 28 de julho de 2020, número 30

L’OSSERVATORE ROMANOEDIÇÃO SEMANAL

Unicuique suumEM PORTUGUÊSNon praevalebunt

Cidade do Vaticanoredazione.p ortoghese.or@sp c.va

w w w. o s s e r v a t o re ro m a n o .v a

ANDREA MONDAd i re t o r

Giuseppe Fiorentinov i c e - d i re t o r

Redaçãovia del Pellegrino, 00120 Cidade do Vaticano

telefone +390669899420fax +390669883675

TIPO GRAFIA VAT I C A N A EDITRICEL’OS S E R VAT O R E ROMANO

Serviço fotográficotelefone +390669884797

fax +390669884998p h o t o @ o s s ro m .v a

Assinaturas: Itália - Vaticano: € 58.00; Europa: € 100.00 - U.S. $ 148.00; América Latina, África,Ásia: € 110.00 - U.S. $ 160.00; América do Norte, Oceânia: € 162.00 - U.S. $ 240.00.

Administração: telefone +390669899480; fax +390669885164; e-mail: assinaturas.or@sp c.va

Para o Brasil: Impressão, Distribuição e Administração: Editora santuário, televendas: 0800-160004, fax: 00551231042036, e-mail: [email protected]

Publicidade Il Sole 24 Ore S.p.A, System Comunicazione Pubblicitaria, Via Monte Rosa, 91,20149 Milano, [email protected]

A plenos pulmõesChico Mendes, defensor da Amazónia

SI LV I A GUSMANO

«Este é um livro que acaba mal, a22 de dezembro de 1988, em Xapuri:uma pequena aldeia no Brasil, preci-samente no meio da floresta amazó-nica. Vista de cima, é apenas um pu-nhado de cabanas que surge ondeum rio com o mesmo nome, Xapuri,se funde com outro muito maior: oAcre. É um lugar remoto, difícil dealcançar e de onde é difícil fugir.Precisamente por este motivo, é umlugar onde a lei não chega. E a pala-vra “justiça” perde o seu significado.Este é um livro que acaba mal, nodia 22 de dezembro de 1988. Mascomeça algum tempo antes. Comuma família. E com uma mudançapara a floresta».

É publicado em homenagem aChico Mendes (1944-1988) o novovolume da coletânea SemplicementeEroi [“Simplesmente Heróis”] de Ei-naudi Ragazzi Chico Mendes, difenso-re dell’Amazzonia (Trieste, 2020, 128páginas), dedicada a histórias verda-deiras e fortes de mulheres e ho-mens, modelos para o nosso tempo.A vida do sindicalista e ativista bra-sileiro, grande paladino da Amazó-nia e dos povos que ali vivem, na li-nha da frente contra a ganância decriminosos dispostos a queimar oplaneta para obter lucros, é narradapor Davide Moronisotto, tambémautor das biografias de Franco Basa-glia e Peppino Impastato.

A história é narrada através davoz e do olhar de Zuza, um serin-gueiro muito jovem que se transferepara a floresta com a sua família.

E a floresta é a primeira grandeprotagonista desta história. A flores-ta com os seus animais e cores, comas suas estações, a sua vegetação, umconjunto de vida e vidas que sobre-vive graças e através da presençaharmoniosa de todos os elementos.Zuza aprende os seus segredos e pe-rigos, potencialidades e armadilhas,mas acima de tudo compreende oimenso valor desta floresta que per-mite ao mundo inteiro respirar. Comefeito, são as árvores — descobre omenino — que fabricam ar e produ-zem oxigénio, oferecendo às pessoasa possibilidade de viver.

Entre as árvores da floresta, é aseringueira que garante o sustentoda família de Zuza: as páginas deMoronisotto oferecem aos jovens lei-tores um interessante panorama domodo como se obtém um elementode uso diário. «“É uma árvore daborracha, explicou o pai, imediata-mente debaixo da sua casca escorrelátex, a substância que devemos re-colher e que no final da estação va-mos vender em Xapuri” (...) Zuzapensou no pneu de um carro eolhou para a árvore ao seu lado. Eraincrível que estas duas coisas pudes-sem estar ligadas».

Mas o pulmão verde do planeta,tão precioso e vital, é ameaçado porhomens poderosos que não hesitamem destruí-lo para obter lucro. E es-pezinhar quantos vivem graças a ele,no mais profundo respeito peloequilíbrio da natureza.

Zuza descobre a violência sem es-crúpulos, os abusos, o ódio contraos fracos, mas descobre também pes-soas que não abaixam a cabeça. Poisé na floresta que o menino conheceum homem, apesar de ter crescidoem condições de semiescravidão, queaprendeu a ler, a compreender o quelia, a entender o significado de pala-vras como justiça e direitos, e a lutarpara as ver aplicadas.

Ao criar o sindicato, Chico Men-des, um daqueles que chamavam aatenção do mundo para a Amazónia,ofereceu aos habitantes da florestauma direção, um sentido de perten-ça, um objetivo comum, a força quevem de se sentir parte de uma co-munidade em luta e a caminho, ealém de tudo isto uma clínica e umaescola («Zuza aprendeu que cada ra-bisco do livro correspondia a um

som. E os sons reunidos formavampalavras. Foi uma invenção extraor-dinária, uma magia. Era suficienteconhecer as letras e depois criar to-das as palavras do mundo. E compalavras surgiam novas ideias. Pen-samentos novos»).

Porque o que Chico Mendes ensi-na é o valor da responsabilidadepessoal para com os filhos e as gera-ções futuras. O dever de defender«o direito de crescer, trabalhar e per-

manecer na floresta (...) É por issolutamos aqui. Pois bem, disse o pai,quero que esta seja também a minhabatalha».

O livro acaba mal, Mendes — co-mo se sabe — será assassinado e dé-cadas depois daquele 22 de dezem-bro de 1988, a Amazónia continua aser saqueada. Mas Chico Mendes se-meou muito e bem. A sua luta pelajustiça e pelo respeito é íngreme,mas respira a plenos pulmões.

Detalhe da capa do livro de Davide Moronisotto (Einaudi Ragazzi, 2020)

Há um ano o navio-hospital “Papa Francisco” oferece assistência médica a 700.000 pessoas

Saúde e esperança para os povos indígenas

«Este navio já fez milagres, levando saúde e esperançaà vida dos povos ribeirinhos»: palavras do frei JoelSousa, membro da coordenação do navio-hospital inti-tulado ao Papa Francisco, que navega ao longo do rioAmazonas há cerca de um ano para prestar assistênciamédica e sanitária à população ribeirinha e da florestaamazónica, num total de 700.000 habitantes.

Numa entrevista publicada no site do Conselho epis-copal latino-americano (Celam), o frei Joel, sublinhan-do a emergência sanitária em que o Brasil se encontra,recordou: «Não podíamos evitar a luta contra a Covid-19, e por isso reorganizamo-nos especificamente paracombater a pandemia», com a ajuda de «profissionaisde saúde e assistência médica específica». A tripulaçãotambém contribui para a sensibilização da populaçãolocal, bem como para o tratamento ambulatorial naprimeira fase. «Lidamos principalmente com sintomasde gripe e casos leves de Covid-19», disse o religioso.Os médicos realizam as consultas, enquanto nós distri-buímos os medicamentos».

Com 32 metros de comprimento, o navio conta com23 profissionais de saúde, salas para serviços médicosde raios X, mamografia, ecocardiograma e testes ergo-métricos, uma sala de operações, um laboratório deanálises clínicas, uma farmácia, uma sala de vacinação,consultórios médicos especializados tais como oftalmo-logia e odontologia, além de leitos hospitalares. O cria-dor da iniciativa, com os religiosos da Fraternidade deSão Francisco de Assis na Providência de Deus, quedirige um hospital no Rio de Janeiro, foi D. BernardoBahlmann, bispo de Óbidos, em julho de 2019. Desdeentão, já foram prestados mais de 46.000 serviços nosmunicípios ao longo do rio Amazonas (Alenquer, Al-merim, Belterra, Curuá, Faro, Juruti, Monte Alegre,Óbidos, Oriximiná, Prainha, Santarém e Terra Santa).

Apoiou a iniciativa também o Papa Francisco que,através do esforço do seu esmoler, cardeal Konrad Kra-jewski, doou uma máquina de ultrassom ao navio.

Além disso, em agosto do ano passado, quando o na-vio atracou no porto de Belém, o Santo Padre enviouaos participantes no projeto uma carta na qual recorda-va que a Igreja é chamada a ser “hospital de campa-nha”, acolhendo todos, sem distinções nem condições eobservava que, com esta iniciativa, a Igreja agora tam-bém se apresenta como “hospital sobre as águas”. E as-sim, acrescentou, «como Jesus, que apareceu cami-nhando sobre as águas, acalmou a tempestade e forta-leceu a fé dos discípulos, este navio levará conforto es-piritual e serenidade às preocupações dos homens emulheres necessitados, abandonados à própria sorte».Por outro lado, indiretamente foi o próprio Papa Fran-cisco que sugeriu o projeto já em 2013, durante a suavisita ao hospital da Fraternidade de São Francisco deAssis na Providência de Deus, no Rio de Janeiro, porocasião da Jornada mundial da juventude. Nesse dia,24 de julho de 2013, o Papa perguntou aos religiosos seestavam presentes também na Amazónia e quando opadre fundador, frei Francisco Belotti, respondeu«não», ele respondeu: «Então, o senhor deve partir».

A construção do navio foi possível graças a um acor-do com o Estado do Pará, que destinou ao projeto oproduto da indemnização por danos morais coletivoscausados por algumas multinacionais da indústria pe-trolífera, na sequência de um acidente ambiental quecausou 60 vítimas e prejuízos consideráveis.

Entre as numerosas iniciativas promovidas pela Igre-ja no Brasil, recordamos a campanha “É tempo de cui-dar”, que mobilizou o país para ajudar as pessoas atin-gidas pela pandemia da Covid-19, e graças à qual fo-ram angariadas toneladas de alimentos, artigos de hi-giene, equipamentos de proteção pessoal, vestuário ecalçado, além de enormes contribuições financeiras.Continua-se a apoiar pessoas em situações de vulnera-bilidade socioeconómica e a realizar ações de solidarie-dade nas periferias, tanto geográficas como existen-ciais.

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número 30, terça-feira 28 de julho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 3

O Santo Padre visitou de surpresa um grupo de crianças reunidas na sala Paulo VI

Sozinhos não é divertidoNICOLA GORI

«As pessoas que só sabem divertir-sesozinhas são egoístas; para se diver-tir é preciso estar com os amigos».Com estas palavras, o Papa Francis-co dirigiu-se a uma centena de meni-nos e meninas que participam nainiciativa “Estate ragazzi in Vatica-no”. O diálogo teve lugar na manhãde 20 de julho, quando o Papa che-gou de surpresa à Sala Paulo VI, on-de as crianças estavam a tomar o pe-queno-almoço antes de se dedicar ajogos, aventuras e desporto. Falousobre isto o diretor da Sala de im-prensa da Santa Sé, Matteo Bruni,explicando que «depois de passarpelas mesas, o Papa visitou os espa-ços para as brincadeiras, instaladosno salão e conversou com os partici-pantes», regressando à Casa SantaMarta às 10h, não sem ter agradeci-do “individualmente” aos responsá-veis pelo trabalho.

Um animador presente no encon-tro, Sergio Garozzo, disse que viuFrancisco «muito feliz». «Felicitouos pequeninos - disse - pelo exce-lente trabalho, pelos resultados quealcançados, pela felicidade dascrianças e porque ouviu que todosfalam bem desta experiência, de talforma que pensa em repropô-la aolongo do tempo. Encorajou-os a fa-zê-lo cada vez melhor». As criançasacolheram o Papa com músicas,danças e o canto dos versos escolhi-dos para “Estate ragazzi”. Garozzodisse que uma menina estava curio-sa em saber o que o Papa fazia du-rante o dia e «ele respondeu que éum sacerdote e faz o que todos ossacerdotes fazem». Outra criançafalou do avô falecido e perguntouao Papa se o Paraíso era como lhetinham descrito: um lugar bonito,feliz e pacífico. O bispo de Romatranquilizou-a, benzendo um colarque a fazia lembrar o seu amadoavô.

Não poderia ter um epílogo me-lhor para este centro de verão quechega ao fim. Entre o mergulho napiscina, o futebol, o ténis, o basque-tebol e os torneios de ténis de mesa,mas também visitas guiadas nos Jar-dins do Vaticano, as crianças e os jo-vens puderam também aprender eformar-se no espírito de dom Bosco.Com efeito, a iniciativa foi animadapelos Salesianos, com a associação“Tutto in una festa”. Promovido pe-lo Governatorato do Estado da Ci-dade do Vaticano, contou com aparticipação de centenas de meninose meninas recebidos todas as sema-nas dentro dos muros leoninos desde6 de julho para se divertir, aprendere brincar em total segurança, apesarda epidemia de Covid-19. Fala sobreisto nesta entrevista a “L’O sservatoreRomano”, revivendo os momentosde admiração e gratidão pela visitado Papa, o padre Franco Fontana,coordenador do evento, superior dacomunidade salesiana no Vaticano ecapelão da Direção dos Serviços deSegurança e Proteção Civil e dosMuseus do Vaticano.

Como viveu a inesperada visita do Pa-pa Francisco?

Foi uma grande surpresa para nós.Eu não estava na Sala Paulo VI, masfui avisado sobre a chegada do Papae por isso voltei. O Papa deixou aCasa Santa Marta sozinho e foi à

Sala para saudar as crianças que es-tavam a terminar o pequeno-almoço.Passou entre as mesas, primeiro con-versou com os mais novos, depoiscom os da escola primária e média.Estava interessado no que fazem, co-mo passam o dia, e perguntou-lhesse se sentiam felizes.

Podemos imaginar a surpresa dascrianças...

Estavam tão admiradas que fica-ram completamente silenciosas.Três delas dirigiram-lhe as pergun-tas que já lhe tínhamos formuladona semana passada, porque era nos-sa intenção escrever-lhe. Ele res-pondeu-lhes de forma muito sim-ples. No final, dirigiu-nos uma sau-dação geral e depois agradeceu ca-lorosamente aos 22 animadores.Também tiramos uma fotografiajuntos. Em seguida, o Pontífice re-gressou a pé a Santa Marta. Ascrianças ficaram impressionadascom a familiaridade, a simplicidadee a paternidade do Papa, que quisviver este momento.

Quantos par ticiparam nesta iniciativa?

Mais de uma centena de meninose meninas participaram na iniciativa,envolvendo cerca de 140 famílias.Todas as semanas havia 125 crianças.Algumas apenas por uma semana, amaioria por duas e um certo númeropor três. Algumas participarão du-rante todo o mês de julho, nas qua-tro semanas de programação. Quan-to à proveniência, posso dizer queelas vêm dos vários lugares onde vi-vem os seus pais que trabalham noVa t i c a n o .

Quais foram os objetivos da iniciativa?

O principal objetivo foi fazer comque as crianças descobrissem a belezade estar juntas, de brincar, mas de“brincar em grupo, mesmo à distân-cia de um metro”, de partilhar entu-siasmos, emoções e sorrisos. A men-sagem que gostaríamos de passar éque a Igreja, desde sempre, não fe-cha e não abandona as crianças a sipróprias, especialmente nesta fasehistórica. Com a paixão educativaque a carateriza, a Igreja não quer fa-lhar no seu compromisso típico no

crescimento e formação das novas ge-rações, especialmente neste momentoem que o cuidado das crianças e dosadolescentes não pode depender ape-nas da responsabilidade das famílias.

Quanto do ensino de São João Boscopodemos encontrar no esquema educati-vo?

Dom Bosco era um sonhador eportanto somos filhos de um sonha-dor. Seguimos algumas linhas, frutodos esforços de uma equipe de so-nhadores e de pessoas apaixonadaspela educação, que tiveram em men-te o sistema preventivo do nossofundador. Se o Papa nos encoraja asonhar alto e em grande estilo, nãorecuamos. Assim, embora seja umperíodo de férias, as crianças recebe-ram uma oferta de atividades atraen-tes e intensas. Grande ritmo e vigor,para acompanhar o espírito dos maispequeninos, sempre curiosos echeios de energia! Assim, o “pátio”de Dom Bosco torna-se o jogo, masao jogar experimentam novas regrase novas dinâmicas, sem nunca per-der a ideia da brincadeira e o desejode brincar. Por fim, atenção às estru-turas e aos ambientes. O ambientetambém educa as crianças, e por issoprocurou-se tornar acolhedora e co-lorida cada área utilizada.

Que tema inspirou esta experiência deverão?

O tema escolhido para este anofoi “Felicidade e bem-aventuranças”.Foi identificado um caminho peda-gógico educativo, baseado numa his-tória fascinante, ambientada nomundo do desporto para falar daimportância da verdadeira felicidadecomo meta e estilo de vida para to-dos, em todas as idades. A felicidadenão se compra no supermercadonem na Internet, mas conquista-se equando é alcançada dá alegria. Eaqui entra em jogo o desporto quesignifica empenho, esforço, perseve-rança, gestão das derrotas e partilhade todos estes aspetos com os outrosmembros do grupo. O desporto re-quer o compromisso do indivíduo eo apoio de toda a equipe para alcan-çar uma vitória e, quando a derrotachega, enfrentá-la todos juntos e nãosozinhos. Todos os dias, para viver“uma vida de campeão”. A ligaçãoentre felicidade e bem-aventurançanasceu quando Jesus de Nazaréusou oito frases que começavam com“b em-aventurados”. A mensagem erasimples: sê sereno, não tenhas medo,pois Eu estou ao teu lado até quan-do tudo parece perdido. Sê feliz,pois estou ao teu lado!

Quanto a epidemia de Covid-19 influiuno desenvolvimento desta iniciativa?

Certamente exigiu uma atençãoespecial. Trabalhamos e continua-mos a trabalhar para pôr em práticatodas as diretrizes do Estado. O ob-jetivo é praticar ações para garantir asegurança das crianças e do pessoal.Dispositivos de segurança, distancia-mento, medição de temperatura,máscaras, gel desinfetante, higieniza-ção dos ambientes e equipamentos,com a formação de animadores e asensibilização das crianças. Apesarde tudo e conscientes dos obstáculosque inevitavelmente tínhamos de en-frentar, até agora estas atenções per-mitiram e hão de permitir gerir emsegurança as várias fases do verãodas crianças.

Proximidade do Pontíficeaos “curas villeros” de Buenos Aires

Francisco está próximo dos párocos que exercem o ministério nos bair-ros mais pobres de Buenos Aires e reza por quantos foram atingidospelo vírus. O Pontífice transmitiu a sua solidariedade através de umamensagem de vídeo enviada a 9 de julho, aos “curas villeros” atravésde D. Eduardo Horacio García, bispo de San Justo.

«Quero estar próximo de vós neste momento em que sei que lutais.Três dos párocos que trabalham entre vós estão doentes. Penso princi-palmente no padre “Bachi”, pioneiro da Villa Palito, e que depois tra-balhou em San Petersburgo, Puerta de Hierro, todos os bairros aosquais dedica a sua vida. Neste momento, luta». Trata-se do padre Ba-silicio Brítez, hospitalizado a 21 de junho na clínica São Camilo emBuenos Aires, depois do resultado positivo ao teste para a Covid-19.Vive e desempenha a sua atividade pastoral na paróquia de San RoqueGonzález e Companheiros Mártires no bairro de Almafuerte. «Elecombate porque não está bem. Quero dizer-lhe que estou próximo devós, rezo por vós e acompanho-vos neste momento».

Depois, o Papa assegurou a solidariedade da comunidade eclesialaos seus pastores e, em especial, aos “curas villeros” que, na linha dafrente, enfrentam diariamente a emergência da pandemia entre dificul-dades e carências de todos os tipos: «Todo o povo de Deus está comos seus párocos doentes. É tempo de dar graças a Deus pelo testemu-nho destes sacerdotes, de rezar pela saúde e de seguir em frente».Francisco concluiu o vídeo com a bênção e o pedido de rezar por ele.

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número 30, terça-feira 28 de julho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 4/5

Coletânea de contribuições e reflexões da Consulta científica do Pátio dos gentios

Será que sairemosrealmente melhores da situação atual?

A “Humana communitas”que a Covid-19 nos faz redescobrir

Publicada uma nota da pontifícia Academia para a vida

Um profissional da saúdeprepara um teste de Covid-19

em Miami, nos Estados Unidos (AFP)

dora: criar as condições ma-teriais e relacionais para aprocriação deve tornar-seuma espécie de “direito hu-mano” fundamental. Sabe-mos que o trabalho das mu-lheres não está apenas emdesacordo com a maternida-de mas, pelo contrário, empaíses onde as mulheres tra-balham mais, a taxa de nata-lidade cresce por muitos mo-tivos, económicas, psicológi-cas, relacionais. A mulher e amaternidade já eram penali-zadas antes da Covid-19 eagora correm o risco de vol-tar ao modelo familiar femi-nino dos anos 50, mais nomal do que no bem: sem estadinâmica procriadora e sem aenergia do trabalho femininofora de casa.

Todos a lerEdward Snowden

A rastreabilidade, o cresci-mento do controle sobre a vi-da particular já não só domercado e dos indivíduos,mas do Estado, faz-nos re-pensar em “qual liberdade”nos espera no futuro. O digi-tal, cada vez mais indispensá-vel (e, espera-se, estendido àsclasses mais pobres), propõede novo as margens de auto-nomia do “cidadão-vassalo”

a eficiência. É questãode compreender maisprofundamente que a in-certeza e a fragilidadesão dimensões constituti-vas da condição huma-na. Este limite deve serrespeitado e tido emconsideração em todosos projetos de desenvol-vimento, cuidando, cadaum e todos, da vulnera-bilidade dos outros, por-que somos confiados unsaos outros. O horizontede uma fraternidade glo-bal — o grande “re m o v i -do” da revolução moder-na — surge agora como ocaminho mais realista doprogresso humano.

*Arcebispo presidenteda pontifícia Academiapara a vidaCO N T I N UA NA PÁGINA 6

EMMA FAT T O R I N I *

“Nada será como an-tes” e realmente“sairemos melho-

res desta situação”? A liçãoda História — como sabemos— não nos diz isto, mas aocontrário indica o risco desairmos piores. Ou com osmesmos vícios, se não tiver-mos visão e pragmatismo. Adefesa da terra comum, oapelo da Laudato si’, o senti-mento de estarmos mais uni-dos num único destino pla-netário, prontos para a empa-tia e a benevolência, tudo is-to será muito difícil de com-preender para aqueles quetêm de lutar com a misériamaterial, a solidão e a degra-dação social. Por experiênciaexistencial e espiritual, esta-mos profundamente conven-cidos de que ex malo bonum;“o bem pode sair do mal”não é, contudo, um axiomadeterminista, como o próprioSanto Agostinho argumenta-va: o mal só faz sair o bemse “trabalharmos nele”, comconsciência. E o esforço vo-luntarista, embora seja neces-sário, nunca será suficiente.Tal como quando passamospor uma grande doença,também este vírus funcionacomo um reagente químico:exalta, acentua, “re a l ç a ” a es-sência do que, no fundo, éaquela pessoa específica,aquela comunidade, aquelanação. E a mesma aborda-gem ou linguagem bélica, deatacar, resistir, derrotar, so-brepujar, são inadequadas.Não sofremos fome nem tive-mos o terror das bombas so-bre as nossas cabeças, comonas guerras, nem sentimos ogrande alívio pelo fim daque-la ameaça, que trazia espe-rança e desejo de reconstruirsobre os escombros, com pro-jetos para o futuro. Aliás, nós

teremos que viver com estemedo penetrante que dividiuo país e as suas regiões jádurante a pandemia; levá-lo-emos dentro, deverá ser ela-borado ao longo do tempo.Não será um evento isolado,não será um “cisne negro”.

Afinal, das pandemias, as-sim como das guerras mun-diais (só nisto são iguais)nunca se saiu melhor do queantes. Pensemos na grandeguerra, o verdadeiro divisorde águas do século XX, umséculo curto porque começouali, com o fim dos grandesimpérios e a descoberta deuma subjetividade frágil nabusca ambivalente de umaidentidade. Assim, o primeiroperíodo pós-guerra teve umcaráter vitalista omnipotentee depressivo, e portanto osanos 20 baseavam-se no res-sentimento vingativo aplaca-do nos totalitarismos, que ca-nalizaram a “mo dernização”para uma versão autoritária,até que os problemas não re-solvidos da primeira guerra,adormecidos no período e n t redeux guerres eclodiram na se-gunda. E é para este segundoperíodo pós-guerra que mui-tas pessoas olham como ummodelo possível para o pós-Covid-19. Então, o impulsoreconstrutivo foi confiado afatores menos patológicos doque após o primeiro períodopós-guerra, ou seja, a forçaque derivava da unidade detodos contra o inimigo co-mum, pelo menos até 1947.Com a guerra fria esta “ener-gia unitária” foi traduzida nadeslegitimação de um campocontra o outro, cimentandoas duas identidades, coletivis-ta e capitalista. E a sociedadeviveu plenamente estas espe-ranças, a nível subjetivo, nafamília e no crescimento de-mográfico e, a nível de na-ções, no desejo comum de

não cair na terceira guerramundial. Tudo isto foi possí-vel graças à decisiva ajudaamericana. Um planoMarshall, o verdadeiro. Ha-via uma visão, um projeto,uma ideia de futuro. Sabere-mos encontrá-lo novamente,ou afundaremos nas enormesfragilidades em que o novocoronavírus nos surpreendeu?

Os nossos vícios

As duas novidades absolu-tas desta pandemia, quer emcomparação com as guerrasmundiais quer com as pande-mias anteriores, são o seu ca-ráter verdadeiramente “glo-bal-universal” e agora a co-municação-informação “glo-bal-ramificada”, com o con-sequente controle sobre anossa vida. Portanto, a radi-calidade do desafio é enormee talvez também por esta ra-zão corremos o risco de osci-lar ainda mais entre duas vi-sões extremas: a “a l t ru í s t a ” ea “cínica”.

Precisamente porque gos-taríamos muito que o resulta-do fosse o de uma resiliênciatransformadora, contudo,tentamos não confundir dese-jo com realidade e, por isso,estamos atentos às expetati-vas palingenéticas: os tonscorteses que frequentementeouvimos à nossa volta sãoenganosos. As nossas bússo-las para o futuro, ou seja,subsidiariedade, cultura, liga-ções, formação e sentido deresponsabilidade serão cadavez mais necessárias, só se fo-rem adaptadas a um contextomuito diferente e não pude-rem ser propostas simples-mente como alternativas aum mercado descontrolado, afim de perseguir um “d e c re s -cimento feliz” em oposição à

globalização. Agora compre-endemos que o desenvolvi-mento sustentável tem neces-sidade de mais pesquisa, tec-nologia, competências. Por-tanto, é na formação de umanova classe dominante queprecisamos pensar, não comomantra repetido demasiadasvezes, mas como necessidadeprioritária. Sem ilusões, deve-mos trabalhar em conjuntocom homens e mulheres deboa vontade, para ajudar aação pública, bloqueada e in-capaz de decidir, devido auma visão de gestão impró-pria. E devemos retomar umcaminho reformista virtuosonum mundo que será dife-rente. Pois o ingresso do pe-sadelo do contágio já revelouos nossos vícios, exasperandoos nossos limites: o assisten-cialismo na infinita variedadede contribuições lançadas àmãos-cheias, o corporativis-mo na fragmentação desarti-culada dos subsídios, o buro-cratismo na quantidade e nopeso das medidas, a falta degestão na lentidão e incom-petência, a distância da reali-dade, o justicialismo populis-ta e iliberal no controle dafase de lockdown e, dulcis infundo, a magistratura comosubstituto das escolhas políti-cas. Males que se insinuamtambém na nossa relaçãocom a Europa, que vemos al-ternadamente sob as vestesde mãe benevolente ou demadrasta cruel: todos obses-sivamente concentrados naquantia de dinheiro disponí-vel (certamente é precisomuito dinheiro e com condi-ções que, clara ou oculta-mente, não subjuguem) mascom pouco cuidado no mo-do de o gastar. Ninguém quelembre como ainda não con-seguimos gastar os fundoseuropeus já utilizáveis háanos!

As novasdiscriminações

Desigualdades e empobre-cimento levarão a uma des-vantagem que não será “ap e-nas” económica: uma dispari-dade que atinge a própriadignidade das pessoas porserem idosas, doentes, sozi-nhas. Os idosos como metá-fora do “descarte”. Será difí-cil honrar concretamente,sem retórica, o respeito pelorecurso formativo que os ido-sos teriam, teoricamente re-descoberto, pelo sentimentode culpa do massacre da Co-vid-19. As mulheres correm orisco de ser ainda mais pena-lizadas, tanto em termos decondições de trabalho comode funções (pela dupla e tri-pla carga de trabalho, pelapresença cada vez mais es-sencial que a mulher terá nodifícil equilíbrio familiar, naformação dos filhos que emgrande parte voltará a pesarsobre os seus ombros). Oconceito de generatividade,no sentido amplo social eeconómico, que nos é tão ca-ro, não pode abstrair-se doseu caráter original e literal,ou seja, não pode fazer-nosesquecer a geração principal,que consiste em gerar filhos.Se durante anos as mulheresdeixaram de ter filhos, no fu-turo tornar-se-á prioritário in-verter esta tendência devasta-

«Estou convicto de que só através de uma abordagem multidisci-plinar, dialógica e orientada ao progresso mas também à salva-guarda da dignidade humana, poderemos enfrentar este difícil mo-mento histórico, olhando para o futuro com esperança»: as pala-vras do cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do pontifício Con-selho para a cultura, escritas na introdução do volume “Pandemiae resilienza. Persona, comunità e modelli di sviluppo dopo la Co-vid-19” (Cnr Edizioni, Roma, 2020) expressam o significado dotrabalho realizado nestas semanas pela Consulta científica do Pá-tio dos gentios, presidido por Giuliano Amato. O volume, editadopor Cinzia Caporale e Alberto Pirni, gira em torno do documentoque lhe dá o título. É uma coletânea de contribuições escritas coma intenção de “ir além do primeiro ato da crise provocada pelo

contágio do novo coronavírus”. Giuliano Amato escreve no prefá-cio: «Há muitas propostas que fazemos para que estes fins sejamalcançados e estamos satisfeitos por constatar que não estamos so-zinhos em várias delas. Aqui cito apenas uma delas, tirada daexperiência que acabamos de viver. Nos longos dias que passamostrancados em casa, com saídas restritas e aprendendo a usar amáscara para se encontrar com os outros, aprendemos também quea coordenação de muitas pequenas escolhas individuais pode con-tribuir para o bem comum. É um ensinamento que deve ser pre-servado e praticado em grande escala no futuro». Entre as váriascontribuições reunidas no volume, “L’Osservatore Romano” publicaa que se intitula “Reflexões sobre o futuro”.

VINCENZO PAGLIA*

É necessário repensar os nossos mode-los de desenvolvimento e convivência,a fim de que sejam cada vez mais dig-nos da comunidade humana. Portanto,ao nível do homem vulnerável, nãoabaixo dos seus limites, como se nãoexistissem: com efeito, dentro de taislimites há homens, mulheres e criançasque merecem mais cuidados. Todos,não apenas nós. Se abrirmos as portasàs ameaças verdadeiramente globaiscontra a comunidade humana, pensan-do exclusivamente em salvar-nos a nósmesmos, nem sequer nós seremos sal-vos. Por fim, do “ensaio geral” destapandemia, esperamos um sobressaltode orgulho da Humana communitas. Épossível, se o quisermos.

Sobre este tema — a pandemia, assuas consequências, o futuro do mun-do — a pontifícia Academia para a vida(Pav) desenvolve uma reflexão específi-ca. A 30 de março publicamos um pri-meiro texto — “Pandemia e fraternida-de universal” — que hoje se completacom este segundo texto, intitulado “AHumana communitas na era da pande-mia. Reflexões inatuais sobre o renasci-mento da vida” (disponível emw w w. a c a d e m y f o r l i f e .v a ) .

Humana communitas é o título dacarta que o Papa Francisco enviou àPav em 6 de janeiro de 2019, por oca-sião do 25º aniversário da instituição.E já no título indica a perspetiva detrabalho: refletir sobre as relações queunem a comunidade humana e geramvalores, objetivos e reciprocidades par-tilhadas.

Esta pandemia torna extraordinaria-mente aguda uma consciência dupla.Por um lado, faz-nos ver como interde-pendentes todos nós somos: o queacontece algures na Terra agora envol-ve o mundo. Por outro lado, acentuaas desigualdades: estamos todos namesma tempestade, mas não no mes-mo barco. Aqueles que têm barcosmais frágeis afundam mais facilmente.

Em suma, a ética da vida torna-sedeveras global, precisamente num mo-mento em que nos estamos a habituarà sua gestão puramente individual: épor isso que no subtítulo há o adjetivo“inatuais”. Inatual é uma palavra quevem da tradição filosófica (Nietzsche,por exemplo), onde é usada como pro-vocação: refere-se a um pensamentoque seria muito atual, mas que já nãoestá na moda. Com efeito, num mo-mento em que a vida parece estar sus-pensa e somos atingidos pela morte deentes queridos e pela perda de pontosde referência para a nossa sociedade,temos que encontrar a coragem paranão nos limitarmos a discutir sobre ocusto dos cuidados e da abertura dasescolas. Deveríamos começar a questio-nar o “sistema” da nossa economia eeducação: que já não satisfaz as neces-sidades da comunidade, nem sequerdos indivíduos. É uma “p re t e n s ã o ” ele-vada, uma forte exigência das nossassociedades, da política, do mundo daeconomia e da cultura. Perante a emer-gência, pode parecer excessiva, mas édecisiva para ela e para todas as emer-gências vindouras. Eis o que significa“inatual”.

O elemento inédito desta crise é re-presentado pela rapidez e extensão dapropagação do vírus através da rede derelações e de transportes. Também énovo o papel dos meios de comunica-ção social, que decidiram como a cons-ciência da crise se deveria propagar: fa-lou-se justamente de “info demia”. Por-tanto, a novidade é a estranha misturade conformismo e de confusão, induzi-dos pelas reações à representação doperigo na era das sociedades “hip erco-nectadas”: que, no entanto, são tam-bém “hip erindividualistas”.

A debilidade da comunidade, quenos deve oferecer garantias de apoio eproteção no perigo, deixa-nos confusae angustiantemente expostos às nossasincertezas e vulnerabilidades. Esta é aprimeira lição “transmitida” pelo vírusao nosso individualismo despreocupa-do. Do ponto de vista dos cuidados desaúde, as nossas capacidades de inter-venção técnica e de gestão enganam-nos, levando-nos a pensar que pode-mos manter tudo sob controle. E, aocontrário, até nas sociedades mais abas-tadas, a pandemia excedeu a eficiênciadas estruturas médicas e dos laborató-rios. Foi difícil tomar consciência dofracasso da nossa eficácia e reconhecero nosso limite: foram atingidos acimade tudo os idosos; as crianças e os jo-vens foram forçados a ficar em casa eas consequências do longo lockdownsobre eles serão descobertas só nos pró-ximos meses e anos. As relações entreos adultos foram duramente provadas.Não há algum setor da vida coletivaque não tenha sido tocado. Pensemosna economia e nos muitos países ondeainda se morre e na falta de medidaspartilhadas a nível internacional.

Como aponta a Nota da Pav, a criseestá certamente ligada aos maus-tratosinfligidos ao nosso ambiente natural. Éum dos aspetos da interdependência:fenómenos perseguidos com intençõesespecíficas e particulares na agricultu-ra, indústria, turismo e logística so-mam-se uns aos outros e os efeitos decada um deles amplificam-se. A desflo-restação coloca os animais selvagensem contacto com os habitats humanosonde, além disso, a pecuária intensiva

os submete à lógica consumista da pro-dução industrial. Em suma, facilita osalto de microrganismos patogénicosde uma espécie para a outra, até che-gar aos seres humanos.

O documento salienta a importânciade um melhor equilíbrio entre a pro-dução e a distribuição dos recursos in-vestidos na prevenção de doenças e osdedicados aos tratamentos. Não é sufi-ciente prestar atenção aos grandes hos-pitais e centros especializados, mastambém às redes territoriais, à econo-mia familiar e à subsidiariedade asso-ciativa: tanto para a assistência comopara a educação sanitária. A saúde decada pessoa está intimamente ligada àsaúde de todos: na verdade, ela pró-pria é um “bem comum”. É necessárioum comportamento responsável não sópara proteger o próprio bem-estar, mastambém o dos outros. Só assim se po-de tornar efetivo o direito universal aosmais altos níveis de cuidados da saúde,como expressão da tutela da dignidadeinalienável da pessoa humana. Nestalógica, até a vacina, quando estiver dis-ponível, deve ser disponibilizada a to-dos (o patético caso das máscaras edos meios elementares de proteção,não deve repetir-se a este nível). E éindispensável uma organização quepossa ser apoiada por todos e que co-ordene as operações nas diferentes fa-ses de monitorização, contenção e tra-tamento das doenças, permitindo umacirculação prudente da informação. AOrganização mundial da saúde (Oms)parece ser indispensável, embora certa-mente tenha tido algumas falhas nestapandemia: deve aprender com os errose melhorar o seu funcionamento.

Por fim, a comunidade cristã deveiluminar exemplarmente o seu especialtestemunho de um amor que desenvol-ve uma proximidade responsável aténas condições mais extremas da vulne-rabilidade humana: afinal de contas, araiz humanista da compaixão e da in-tercessão pelos mais pequeninos e ex-cluídos nasceu disto. Todos nós pode-mos ajudar os nossos irmãos e irmãsdo planeta a interpretar a crise nãoapenas como um dado organizacional,que pode ser ultrapassado melhorando

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em relação ao “Po der”. Além do his-toriador e cientista Frank Snowden,que avisou sobre o risco de epidemiamundial, mais recentemente em2019, citado por Stefano Zamagnino ensaio contido neste volume,muitos, nos dias de lockdown, tam-bém leram outro Snowden, Edward,o famoso cientista informático ame-ricano que abriu a caixa de Pandorada nossa rastreabilidade total. Já vi-vemos numa sociedade “vigiada”(através do Google, Facebook e so-bretudo dos nossos iPhones) e coma rastreabilidade para fins de saúdecontinuarão a existir novos riscospara a privacidade e a liberdade.Outrora tínhamos uma ideia inter-minável dos limites da liberdade. Te-remos que voltar à raiz dos direitoshumanos. A procura indistinta dedireitos cresceu de modo exponen-cial, alimentada quantitativamentenuma abundância de reivindicaçõesmuitas vezes sem distinção nemprioridade. E sustentadas pelo dese-jo individual, pela dilatação da sub-jetividade e liberdade sem responsa-bilidade, de modo que cada desejose tornou um direito. Num esqueci-mento de deveres agora denunciadopelas consciências mais sentidas aténo mundo liberal e por ambientesque eram tudo menos que conserva-dores e puritanos. A questão dos di-reitos já não era desde há muitotempo um tema que dividia leigos ecatólicos, mas preocupava todas etodos porque aludia a uma visão an-tropológica comum. Portanto, nestetipo de direitismo havia perigos quese apresentam hoje em dia de formapreponderante, a primeira questão éa separação-divisão entre o direitoindividual e o direito social, e a se-gunda a proteção da dignidade daspessoas. As liberdades individuais ea justiça social devem caminhar jun-tas. E para que isto aconteça é es-sencial ter uma visão positiva da co-munidade. Ou seja, sair de um hori-zonte apenas individualista. Massem idealizações: a família não éaquele paraíso imaginado pelo nossofamilismo, muitas vezes pode ser umverdadeiro inferno, como o demons-

tram as numerosas relações violentasque aí se aninham; tal como a pe-quena comunidade civil não é umagarantia de controle e proteção dian-te de abusos contra os mais fracos,numa visão totalmente fechada esem identidade. Portanto, o proble-ma não é opor o enraizamento daidentidade à globalidade cosmopoli-ta, nem as famílias tradicionais a ou-tros laços afetivos.

O corpo em temposdo novo coronavírus

Como irá mudar a noção do nos-so corpo? Acentuar-se-á a tendênciajá predominante para o viver desli-gado da mente e dos sentimentos(também como resultado da biotec-nologia aplicada à vida e à morte),ou compreenderemos que alcançaruma unidade integrada das váriaspartes da pessoa torna a vida maisharmoniosa, além de defender e cu-rar o próprio corpo de forma maiseficaz? Na modernidade líquida, se-gundo Zygmunt Bauman, o corpo é«a única certeza que resta, a ilha datranquilidade íntima e confortávelnum mar de turbulência e inospitali-dade... o corpo tornou-se o últimorefúgio e santuário de continuidadee duração... daí a preocupação raivo-sa, obsessiva, febril e nervosa peladefesa do corpo... a fronteira entre ocorpo e o mundo exterior é uma dasfronteiras mais vigiadas e por isso osorifícios do corpo (os pontos de en-trada) e as superfícies corpóreas (ospontos de contacto) são hoje osprincipais, e talvez os únicos, focosde terror e ansiedade gerados pelaconsciência da mortalidade». Relerestas linhas escritas há muitos anosfaz-nos refletir enquanto manipula-mos de modo desajeitado as nossasmáscaras para evitar que os orifíciossejam expostos ao contágio. O cor-po sacralizado como santuário queconserva um indivíduo-mónade den-tro de uma comunidade fechada: énesta série de matrioscas que se con-servaria o simulacro desta segurançade identidade cancelada pela liqui-dez e que agora, numa era de possí-

veis pandemias, parece tornar-seuma condição normal e normativa.O corpo, os seus cuidados, o seubem-estar obcecavam-nos, cobríamo-lo com tatuagens e mimávamo-lo ca-da vez mais frequentemente, comose fosse uma realidade isolada, desli-gada das outras partes do nosso eu,da nossa mente e do nosso coração.Agora fazemo-lo por necessidade esobrevivência. Na cultura judaico-cristã o corpo não vive por si só,não está separado da alma nem damente. Só um espiritualismo exaustoou um materialismo banal poderiaafirmar isto. O cristianismo é a ne-gação de qualquer possível espiritua-lização ou idealização. Ao contrário,parece que, na pós-modernidade, es-ta unidade de mente-corpo evaporacada vez mais, e que se baseia maisna técnica, na experimentação e naliberdade, até atingir um poder téc-nico-científico que divide, por exem-plo, as várias partes do corpo femi-nino para conseguir uma gravidez(Sylviane Agacinski. L’uomo disincar-nato. Dal corpo carnale al corpo fab-bricato, Neri Pozza, 2020). Além dis-so, nos últimos anos, multiplicaram-se estudos que demonstram comonesta separação crescente entre men-te e corpo está a origem das diferen-tes formas de fragilidade da subjeti-vidade do indivíduo, que no futuropós-Covid-19 terá crescente necessi-dade de unidade e de consciência.

D ireitosesquizofrenia da Europa

Nas semanas de lockdown, im-pressionaram-me duas notícias apa-rentemente distantes: a Hungria ti-nha votado definitivamente contra aConvenção de Istambul, o que émuito importante porque, pela pri-meira vez, a violência doméstica nes-te tratado internacional é considera-da violação de um direito humano.A Convenção foi rejeitada com o ar-gumento de que o pátrio poder é in-tangível porque derivaria de Deus. Aoutra notícia veio de Kiev, onde cin-quenta recém-nascidos, dados à luzpor mães de aluguel, ficaram blo-

queados como “mercadoria em de-p ósito” num hotel em Kiev porque,devido ao novo coronavírus, as mãeseuropeias que os encomendaram nãopodiam ir buscá-los. Uma foto mui-to triste: no tapete gasto de um ho-tel anónimo, centenas de berços ali-nhados com muitos recém-nascidos.Compreensivelmente concentradosno destino de uma Europa incertadevido à grande crise que nos espe-ra, contudo não podemos esquecer asua fragilidade também no planodos direitos, que vê de um lado acompleta liberdade e do outro a ne-gação da mesma igualdade entre ohomem e a mulher. Sobre o futurodos direitos na Europa existe umaespécie de sombria heterogénese dosfins, que deve tornar-se uma oportu-nidade para refletir sobre os efeitosde dois grandes mal-entendidos: porum lado, uma cultura disfarçada decatolicismo nacionalista, que acabapor utilizar a identidade como umbastão, revelando a sua natureza xe-nófoba e misógina, e por outro umaequivocada ideia de direito que in-verte a própria noção de liberdade,que não é liberdade, mas reivindica-ção de direito para finalidades egoís-tas e de interesse.

Para concluir, recordo o estreitoconfronto que tivemos com muitoscolegas e amigos do Pátio dos gen-tios nos dias de lockdown, no entre-laçamento de planos e disciplinas,mantidos unidos, como bem disse ocardeal Gianfranco Ravasi, por estamesma resiliência transformadoraque moveu as nossas reflexões. Epor isso é essencial escolher as prio-ridades que, para a nossa Consulta,devem estar ligadas ao tema da for-mação e educação, tanto de umaclasse dirigente mais preparada co-mo de uma educação básica para to-dos, uma postura, uma atitude quedevemos manter inclusive para pro-mover esse “pacto entre gerações”que certamente requer conhecimentoe pesquisa, mas também um maiorsentido de responsabilidade.

*Docente de História contemporâneana Universidade “La Sapienza”

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 4

Será que realmente sairemos melhores da situação atual?

A tarefa da literatura

Ter compaixão e compreensãopelos personagens

ANNIE PROULX

Como autora de ficção, ao longo dos anosaprendi que cada narração, quer seja complexa eampla, quer fortemente condensada e fechada emsi mesma, contém a sua verdade. E muitasverdades são disfarçadas de ficção. Uma narraçãoadquire vida através dos seus personagens, masnão é verdade que tais personagens são osfantoches do autor. Uma vez que é posto nopapel, uma vez que está dentro da história einfluencia os outros protagonistas e a forma danarrativa, cada personagem existe como algo quevai além da invenção literária. O personagemtorna-se tanto uma mensagem como um

mensageiro, cujo mínimo gesto se insere noenredo da narração. O autor pode acreditar queo personagem existe apenas para manter viva ahistória, geralmente pensa-se que esta é a tarefado personagem. Mas uma vez que aquelepersonagem aparece, tem uma existência que oautor deve respeitar. Se ao protagonista éimposta uma ação que não corresponde ao seumodo autêntico e natural de se comportar, anarração perde força. O autor deve desenvolvercompreensão e compaixão pelos personagens ehá de reconhecer as suas verdades individuais,bem como a sua função na engrenagem dahistória. Então, a verdade geral da história atrairátodos os personagens dentro de si e transmitirá asua mensagem diretamente aos nossos ouvidos.Annie Proulx

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número 30, terça-feira 28 de julho de 2020 L’OSSERVATORE ROMANO página 7

INFORMAÇÕES

Congregação para as causas dos santos

Promulgação de decretos

Testemunho do arcebispo da Beira em Moçambique

Os vírus da pobreza e da guerrasão mais assustadores do que a pandemia

No dia 10 de julho, o Papa Fran-cisco recebeu em audiência particu-lar o senhor cardeal Angelo Becciu,prefeito da Congregação para ascausas dos santos. Durante a au-diência, o Sumo Pontífice autori-zou a mesma Congregação a pro-mulgar os seguintes decretos, rela-tivos:

— ao milagre, atribuído à inter-cessão da venerável serva de DeusMaria Antonia Samà, fiel leiga;nascida a 2 de março de 1875 emSant'Andrea Jonio (Itália) e ali fa-lecida a 27 de maio de 1953;

— às virtudes heroicas do servode Deus Eusebio Francesco Chini(chamado Kino), sacerdote profes-so da Companhia de Jesus; nascidoa 10 de agosto de 1645 em Segno(Itália) e falecido em Magdalena(México) a 15 de março de 1711;

— às virtudes heroicas do servode Deus Mariano José de Ibar-güengoitia y Zuloaga, sacerdotediocesano, cofundador do Institutodas Servas de Jesus; nascido a 8 desetembro de 1815 em Bilbau (Espa-nha) e ali falecido a 31 de janeirode 1888;

— às virtudes heroicas da servade Deus Maria Félix Torres, funda-dora da Companhia do Salvador;nascida a 25 de agosto de 1907 emAlbelda (Espanha) e falecida emMadrid (Espanha) no dia 12 de ja-neiro de 2001; e

— às virtudes heroicas do servode Deus Angiolino Bonetta, fielleigo da Associação dos silenciososoperários da Cruz; nascido a 18 desetembro de 1948 em Cigole (Itá-lia) e ali falecido no dia 28 de ja-neiro de 1963.

NomeaçõesO Santo Padre nomeou:

No dia 18 de julho

Diretor do Fundo de AssistênciaMédica, o Dr. Giovanni Battista Do-glietto.

No dia 20 de julho

Administrador Apostólico «sede va-cante e ad nutum Sanctae Sedis» daEparquia de Mukachevo de rito bi-zantino (Ucrânia), D. Nil YuriyLushchak, O.F.M., atualmente BispoAuxiliar da mesma CircunscriçãoEclesiástica.

No dia 23 de julho

Bispo da Diocese de Kabinda, naRepública Democrática do Congo, oR e v. do Pe. Félicien Ntambue Kasem-be, C.I.C.M., até agora Conselheiro-Geral da Congregação do CoraçãoImaculado de Maria (Missionáriosde Scheut).

D. Félicien Ntambue Kasembe,C.I.C.M., nasceu no dai 8 de setembrode 1970, em Kabinda (República De-mocrática do Congo), e foi ordenadoPresbítero em 12 de agosto de 2001.

Prelados falecidosAdormeceram no Senhor:

A 17 de julho

D. Pierre-Marie Coty, Bispo Eméritode Daloa (Costa do Marfim).

O venerando Prelado nasceu no dia22 de novembro de 1927 em Anyama,Arquidiocese de Abidjan, na Costa doMarfim. Foi ordenado Sacerdote em 19de julho de 1955 e recebeu a Ordena-ção episcopal a 6 de janeiro de 1976.

A 18 de julho

D. Henrique Soares da Costa, Bispode Palmares, Pernambuco (Brasil),de covid-19.

O ilustre Prelado nasceu em Penedo,Alagoas, no Brasil, a 11 de abril de1963. Recebeu a Ordenação sacerdotalno dia 15 de agosto de 1992 e foi or-denado Bispo em 19 de junho de2009. Muito conhecido no campo dojornalismo, era apresentador de umprograma de rádio e colaborava comdiários católicos locais como articulistae colunista.

D. Manuel Cruz Sobreviñas, BispoEmérito de Imus, nas Filipinas.

O venerando Prelado nasceu no dia7 de abril de 1924, em Dinalupihan,Diocese de Balanga (Filipinas). Foiordenado Presbítero a 10 de março de1955 e recebeu a Ordenação episcopalno dia 25 de maio de 1979.

PAT R I Z I A CA I F FA

Em Moçambique, o impacto social e económicoda Covid-19 é mais assustador do que a própriapandemia. Com 30 milhões de habitantes e umapobreza generalizada, desde o início da emergên-cia houve poucos casos de contágios e mortes, tal-vez em parte porque mais de metade da popula-ção tem menos de 20 anos e vive em áreas ruraisisoladas.

No entanto, as consequências serão muito gra-ves. O fechamento das escolas corre o risco deprejudicar o nível de educação de uma geraçãointeira. Dezenas de milhares de migrantes mo-çambicanos que trabalham nas minas da Áfricado Sul tiveram que regressar. Agora estão desem-pregados e não poderão continuar a sustentar asrespetivas famílias. No norte, na província de Ca-bo Delgado, grupos armados que há anos perpe-tram ataques violentos aproveitam-se da crise paraconsternar a população.

Esta é a situação descrita por D. Claudio DallaZuanna, arcebispo da Beira em Moçambique. Na-tural de Vicenza (Itália), mas nascido na Argenti-na, pertence à Congregação dos sacerdotes do Sa-grado Coração de Jesus. Ele conhece bem o paísafricano: depois de um período como jovem mis-sionário, de 1985 a 2003, regressou ao país comobispo em 2012. A sua ordenação episcopal foi sin-gular: no estádio de basquetebol do clube ferro-viário da Beira. Governa uma diocese de 550.000habitantes, e entre os seus sacerdotes há tambémtrês fidei donum vicentinos. No ano passado tive-ram que enfrentar a emergência causada pelo fu-

racão Idai, que causou 1.000 mortes e dezenas demilhares de deslocados.

E agora a Covid-19. «O impacto aqui foi muitodiferente — diz em ligação vídeo da Beira — apropagação do vírus foi mais lenta porque 60%da população vive da agricultura de subsistênciaem áreas muito isoladas. Em cidades como a Bei-ra e Maputo os efeitos foram mais evidentes». EmMoçambique era impossível aplicar um lockdownrígido, como na vizinha África do Sul. Nos acam-pamentos não há água corrente nem serviços desaúde, as pessoas têm que se dedicar ao comércioinformal para sobreviver e, portanto, necessaria-mente são obrigadas a sair. Poucas pessoas rece-bem o salário no fim do mês porque muitas pe-quenas empresas tiveram que reduzir o número detrabalhadores ou fechar. «Sem o salário, muitos jánão compram no mercado informal — explica oarcebispo da Beira — por isso, em cadeia, há umempobrecimento geral».

No sul de Moçambique, o impacto foi maisforte devido à falta de remessas de dezenas de mi-lhares de mineiros. Foram obrigados a regressarda vizinha África do Sul por causa do fechamentode todas as atividades económicas, e esta situaçãodurará muito tempo, pois ainda enfrentam umaenorme emergência.

Um país jovem, com as escolas fechadas há trêsmeses — o ano letivo tinha começado há pouco,em meados de fevereiro — será fortemente afetadono campo da educação. Na Beira, por exemplo,já no ano passado os estudantes perderam impor-tantes meses de estudo por causa do furacão.Muitas famílias ainda vivem nos acampamentos:

«À distância de um ano, muitos edifícios públicosainda não foram recuperados, vai-se à escola ao arlivre, com chuva ou sol». «O governo estuda me-didas para reabrir as escolas», relata o bispo,«mas a desinfeção e o espaçamento são inaplicá-veis em turmas de 60/90 alunos. Das 600 escolassecundárias, 300 não dispõem de água corrente enas outras as instalações sanitárias são precárias.Não há bastantes salas de aula nem professores.O ano letivo já está comprometido».

A situação mais preocupante diz respeito à áreade Cabo Delgado, no norte do país, desestabiliza-da fortemente (e talvez de modo intencional). É aprovíncia mais pobre, onde foram assinados con-tratos bilionários para a extração de gás e maté-rias-primas. Nos últimos meses, em Pemba, capi-tal da região, há mais de 200.000 deslocados, queenfrentam enormes dificuldades de sobrevivência.

Aqui, onde a cólera é endémica, agora chegoutambém o coronavírus. «A partir de março, asações militares aumentaram — o bispo lança oalarme — e os grupos armados revelam uma capa-cidade de organização muito elevada. Ocuparamcidades inteiras e em abril as primeiras reivindica-ções começaram a ser feitas pelo Ei, que procuraaproveitar-se do mal-estar da população. Muitosjovens não veem perspetivas para o futuro e dei-xam-se aliciar facilmente».

Por todos estes motivos, conclui D. ClaudioDalla Zuanna, os moçambicanos resumem a suaposição diante da pandemia com uma frase sim-ples mas eficaz: «O velho vírus da pobreza e daguerra preocupa-nos mais do que o novo vírus».

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Gestos de ternurapara com os avós

Na memória dos Santos Joaquim e Ana o convite do Papa

ANGELUS

No dia em que a Igreja recorda os Santos Joaquim e Ana, «os “avós” deJesus», no final do Angelus de 26 de julho, o Papa Francisco convidou osjovens a terem a gestos de atenção e cuidado para com os idosos, «sobretudoos mais sozinhos». Ao meio-dia, da janela do estúdio particular do PalácioApostólico do Vaticano, antes de recitar a prece mariana com os fiéis presentesna praça de São Pedro — no respeito das medidas de segurança adotadaspara evitar a difusão do contágio da Covid-19 — e com quantos o seguiamatravés da mídia, o Pontífice aprofundou o Evangelho dominical dedicado àsparábolas do Reino de Deus.

Deus, mas também a disponibilida-de ativa do homem. A graça faz tu-do, tudo! Da nossa parte, apenas adisponibilidade de a receber, não aresistência à graça: a graça faz tu-do, mas é necessária a “minha” re s -ponsabilidade, a “minha” disp oni-bilidade.

Os gestos daquele homem e docomerciante que procuram, privan-do-se dos seus bens, para comprarrealidades mais preciosas, são ges-tos decisivos, são gestos radicais,diria apenas de ida, não de ida evolta: são gestos de ida. E, alémdisso, feitos com alegria, porqueambos encontraram o tesouro. So-mos chamados a assumir a atitudedestas duas personagens evangéli-cas, tornando-nos também nós sau-dáveis buscadores inquietos doReino dos Céus. Trata-se de aban-donar o pesado fardo das nossascertezas mundanas que nos impe-dem de procurar e construir o Rei-no: a luxúria da posse, a sede delucro e de poder, pensando apenasem nós próprios.

Nos nossos dias, todos sabemos,a vida de algumas pessoas pode sermedíocre e monótona porque pro-vavelmente não foram em busca deum verdadeiro tesouro: contenta-vam-se com coisas atraentes masefémeras, com brilho cintilante masilusório porque depois deixam na

escuridão. Ao contrário, a luz doReino não é um fogo de artifício, éluz: o fogo de artifício dura apenasum instante, a luz do Reino acom-panha-nos toda a vida.

O Reino dos Céus é o opostodas coisas supérfluas que o mundooferece, é o oposto de uma vidatrivial: é um tesouro que renova avida todos os dias e a expande pa-ra horizontes mais amplos. De fac-to, aqueles que encontraram estetesouro têm um coração criativo einvestigador, que não repete, masinventa, traça e segue novos cami-nhos, que nos levam a amar aDeus, a amar os outros, a amarverdadeiramente a nós próprios. Osinal daqueles que caminham poresta vereda do Reino é a criativida-de, procurando sempre mais. Ecriatividade é aquela que ganha avida e dá vida, dá, dá, dá e dá...Sempre à procura de tantas formasdiferentes de dar a vida.

Jesus, que é o tesouro escondidoe a pérola de grande valor, só podesuscitar alegria, toda a alegria domundo: a alegria de descobrir umsentido para a própria vida, a ale-gria de se sentir comprometidocom a aventura da santidade.

Que a Santíssima Virgem nosajude a procurar todos os dias o te-souro do Reino dos Céus, para quenas nossas palavras e gestos se ma-nifeste o amor que Deus nos deu,através de Jesus.

No final do Angelus, o Papaexpressou satisfação pela recentedecisão de um cessar-fogo na área deDonbass e, rezando pela «paznaquela martirizada região» desejouque este acordo «leve a um efetivoprocesso de desarmamento».

Estimados irmãos e irmãs!Na memória dos Santos Joaquim eAna, os “avós” de Jesus, gostariade convidar os jovens a fazer umgesto de ternura para com os ido-

sos, especialmente os que vivem so-zinhos, nos lares e residências,aqueles que não veem os seus entesqueridos há muitos meses. Queri-dos jovens, cada uma destas pes-soas idosas é o vosso avô! Não asdeixeis sozinhas! Recorrei à fanta-sia do amor, fazei-lhes telefonemas,chamadas em vídeo, enviai mensa-gens, ouvi-as e, se possível em con-formidade com as normas médicas,ide também visitá-las. Enviai-lhesum abraço. Elas são as vossas raí-zes. Uma árvore separada das raí-zes não cresce, não dá flores nemfrutos. Por isso são importantes aunião e a ligação com as vossas raí-zes. “O que a árvore tem de flores-cido vem das suas raízes”, diz umpoeta da minha pátria. É por issoque vos convido a dar uma grandesalva de palmas aos nossos avós,to dos!

Soube que um novo cessar-fogorelativo à área de Donbass foi re-centemente decidido em Minsk pormembros do Grupo de ContactoTrilateral. Ao agradecer-lhes poreste sinal de boa vontade que visatrazer a tão desejada paz àquela re-gião atormentada, rezo para que oque foi concordado seja finalmenteposto em prática, inclusive atravésde um processo eficaz de desarma-mento e desminagem. Esta é a úni-ca forma de reconstruir a confiançae lançar as bases para a reconcilia-ção, tão necessária e esperada pelap opulação.

Saúdo cordialmente todos vós,romanos e peregrinos de váriospaíses. Saúdo em particular os fiéisde Franca (Brasil), vejo ali a ban-deira, os jovens da Arquidiocese deModena-Nonantola e os da Paró-quia dos Santos Fabiano e Venan-zio de Roma. Estes são ruidosos,fazem-se ouvir!

Desejo a todos bom domingo.Por favor, não vos esqueçais de re-zar por mim. Bom almoço e até àvista!

Amados irmãos e irmãs, bom dia!O Evangelho deste Domingo (cf.Mt 13, 44-52) corresponde aos últi-mos versículos do capítulo queMateus dedica às parábolas doReino dos Céus. O trecho incluitrês parábolas mencionadas super-ficialmente e muito breves: a do te-souro escondido, a da pérola pre-ciosa e a da rede lançada ao mar.

Comento as duas primeiras, nasquais o Reino dos Céus é assimila-do a duas realidades «preciosas»diferentes, nomeadamente o tesou-ro escondido no campo e a pérolade grande valor. A reação de quemencontra a pérola ou o tesouro épraticamente a mesma: o homem eo comerciante vendem tudo paracomprar o que agora mais lhesagrada. Com estas duas semelhan-ças, Jesus propõe-se envolver-nosna construção do Reino dos Céus,apresentando uma caraterística es-sencial da vida cristã, da vida doReino dos Céus: aderem plenamen-te ao Reino aqueles que estão dis-postos a apostar tudo, que são co-rajosos. Na verdade, tanto o ho-mem como o comerciante das duasparábolas vendem tudo o que têm,abandonando assim as suas segu-ranças materiais. A partir distocompreendemos que a construçãodo Reino exige não só a graça de