Programa Escola Ativa, escolas multisseriadas do campo e ... · PDF fileEduc. Pesqui., São Paulo, v. 39, n. 1, p. 211-225, jan./mar. 2013. 213 Este artigo tem o propósito de discutir

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  • 211Educ. Pesqui., So Paulo, v. 39, n. 1, p. 211-225, jan./mar. 2013.

    Programa Escola Ativa, escolas multisseriadas do campo e educao matemtica

    Gelsa KnijnikI

    Fernanda WandererII

    Resumo

    O artigo discute o Programa Escola Ativa (PEA), uma poltica p-blica de mbito federal endereada s escolas multisseriadas do campo, enfocando a rea da matemtica. O referencial terico do estudo consiste em uma perspectiva etnomatemtica concebida na interlocuo com ideias da obra de maturidade de Wittgenstein e de Foucault. Deste, a principal noo utilizada a de governamentali-dade. O material de pesquisa abrange os documentos disponibiliza-dos pelo PEA e questionrios respondidos por professores respon-sveis pelos cursos de formao no Estado do Rio Grande do Sul. Sua anlise mostrou que h um tensionamento entre as orientaes pedaggicas oferecidas aos professores e as atividades propostas aos alunos na rea da matemtica, e que o programa conduz a conduta dos professores, dos alunos e, de modo mais amplo, da po-pulao camponesa. Ao regular essa populao, ele funciona como um dispositivo de governamento que institui uma viso despoliti-zada e romntica do campo, trivializa a necessidade de teorizao para informar os processos educativos e posiciona a forma de vida camponesa em um patamar inferior ao da forma de vida urbana. Isso se expressa, de modo especfico, na educao matemtica, so-bretudo na geometria: estratgias so postas em ao pelo PEA de modo a reforar esse processo hierarquizante que , no limite, um processo (re)produtor de desigualdades. Assim, a populao urbana e a do campo acabam por ser significadas no s como diferentes, mas como desiguais.

    Palavras-chave

    Programa Escola Ativa Escolas multisseriadas do campo Educao matemtica Governamentalidade.

    I-Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Porto Alegre, RS, Brasil. Contato: [email protected] Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. Contato: [email protected]

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    The Escola Ativa Program, multi-seriated country schools and mathematical education

    Gelsa KnijnikI

    Fernanda WandererII

    Abstract

    The article discusses the Escola Ativa (Active School) Program (EAP), a federal public policy addressed to multi-seriated country schools, which has special focus on the area of mathematics. The theoretical framework for the study consists in an ethnomathematics perspective developed in dialogue with ideas from the later works of Wittgenstein and with those of Foucault. From the latter, the main notion utilized here is that of governmentality. The research material includes documents made available by the EAP and questionnaires filled by teachers responsible for formation courses in the State of Rio Grande do Sul. The analysis discloses a tension between the pedagogical guidelines offered to teachers and the activities proposed to the pupils in the area of mathematics, and also that the program steers the conduct of teachers, pupils and, more broadly, of the local population. By regulating this population, the program works as a government device that institutes a depoliticized and romantic view of the countryside, trivializes the need for theorization in the conception of educative processes, and situates life in the countryside at a level inferior to that of urban life. This is expressed in a more specific way in the mathematical education, particularly in geometry: strategies are put in motion by EAP in order to reinforce this hierarchizing process, which ultimately is a process of (re)production of inequalities. Therefore, the urban and country populations are signified not only as different, but as unequal.

    Keywords

    Escola Ativa Program Multi-seriated country schools Mathematical education Governmentality.

    I-Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Porto Alegre, RS, Brazil.Contact: [email protected] Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brazil.Contact: [email protected]

  • 213Educ. Pesqui., So Paulo, v. 39, n. 1, p. 211-225, jan./mar. 2013.

    Este artigo tem o propsito de discutir uma das polticas pblicas educacionais que tm sido implementadas no pas em anos recentes. Mais es-pecificamente, examina o Programa Escola Ativa (PEA) endereado s escolas multisseriadas do campo , enfocando a matemtica escolar.

    Os aportes tericos que do sustentao ao estudo encontram-se no campo da etnomate-mtica, cuja emergncia data de meados da d-cada de 1970, a partir das formulaes iniciais de Ubiratan DAmbrosio (1990). Como apresen-tado em outro estudo (KNIJNIK, 2006b), vasta a literatura pertinente a esse campo, tanto em mbito nacional, quanto internacional. Tal lite-ratura destaca a relevncia do exame das (etno)matemticas produzidas pelos mais diversos grupos sociais, sobretudo suas formas de or-ganizar, gerar e disseminar os conhecimentos (matemticos) presentes em suas culturas.

    Desde sua emergncia, a etnomatemtica vem se constituindo como um campo vasto e he-terogneo, impossibilitando a enunciao de ge-neralizaes no que diz respeito aos seus aportes terico-metodolgicos, como mostram os traba-lhos de Knijnik (2006a, 2004), Conrado (2005), Ribeiro, Domite e Ferreira (2004) e Pinxten e Franois (2011), entre outros. Mesmo com essa pluralidade de temticas, os trabalhos investi-gativos da rea convergem para duas direes: por um lado, possibilitam identificar, reconhecer e valorizar as matemticas produzidas em dife-rentes formas de vida; por outro, problematizam a prpria linguagem matemtica transmitida e ensinada nas universidades e escolas, como demonstram os estudos de DAmbrosio (2004), Lizcano (2006) e Joseph (1996).

    Este artigo embasa-se em uma perspectiva que se insere no conjunto dos trabalhos que vm conformando o campo da etnomatemtica. Tal perspectiva concebida como uma caixa de fer-ramentas tericas advindas da obra de Foucault e das ideias tardias de Wittgenstein, que tm em Investigaes filosficas (WITTGENSTEIN, 2004) sua maior expresso.

    Por ser uma poltica pblica, imple-mentada nas diferentes regies do pas; por

    envolver aes que estabelecem vnculos entre universidades, secretarias de educao estaduais e municipais, assim como escolas multisseriadas; e por disseminar material pe-daggico que, por meio dos cursos de forma-o, discutido por professores e supervisores das escolas, o PEA tem mobilizado o interesse da comunidade educacional, como apontam os trabalhos de Gonalves (2009), Matos (2010) e Arago (2011). Este artigo, devido ao foco na educao matemtica e ao tratamento analti-co desenvolvido, busca apresentar novas refle-xes sobre o at aqui publicado.

    O programa atendia, no incio da dcada de 2010, mais de 10 mil escolas multisseriadas do campo.1 Ele abrange um conjunto de aes que envolvem a produo de materiais para alunos e professores, a promoo de cursos de formao continuada aos docentes e a imple-mentao, em cada municpio participante, de um microcentro que oportunize a criao de grupo de estudos. Os materiais distribudos s escolas so endereados aos alunos (cadernos de ensino e aprendizagem de diferentes reas do currculo escolar) e aos professores (um ca-derno de orientaes pedaggicas para forma-o de educadoras e educadores que passare-mos a denominar COP e outros com foco nas diferentes reas do currculo2). Alm disso, o programa distribui kits com materiais para uso em sala de aula.

    Informaes disponveis no Projeto base do PEA (BRASIL, 2010) destacam que o incio do programa ocorreu em 1997, com assistncia tcnica e financeira do Projeto Nordeste (MEC), e com abrangncia dos seguintes Estados: Bahia, Pernambuco, Paraba, Rio Grande do Norte, Cear, Maranho e Piau. Seu objetivo consis-tia, ento, em reduzir a repetncia e a evaso, com vistas a elevar as taxas de concluso dos anos iniciais do ensino fundamental nas reas

    1- O Censo Escolar de 2009 indica que, no Brasil, h em torno de 83 mil escolas denominadas rurais, sendo que 39 mil possuem classes multisseriadas, as quais atendem a 1 milho e 300 mil alunos do ensino fundamental.2- Neste artigo examinado somente o Caderno do educador: matemtica, indicado ao longo do texto por CEM.

  • 214214 Gelsa KNIJNIK; Fernanda WANDERER. Programa Escola Ativa, escolas multisseriadas do campo e educao...

    rurais. Em meados de 1999, com o encerramento do Projeto Nordeste, emerge o Programa Fundo de Fortalecimento da Escola (Programa FNDE ou Fundescola), organizado com recursos do Banco Mundial, que passou a coordenar as aes do PEA (GONALVES, 2009). Porm, em meados de 2008, ocorre uma ruptura dos vnculos do pro-grama com essa instituio de financiamento in-ternacional e sua transferncia para a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD). A partir de ento, o PEA passa a se constituir como uma das aes da po-ltica nacional de educao do campo.

    Crticas ao PEA tm sido formuladas desde o perodo em que ele esteve vinculado ao Programa Fundescola (GONALVES, 2009). Mais recentemente, o programa tem recebido contundentes crticas oriundas dos movimen-tos sociais e de pesquisadores envolvidos com a educao do campo.3 Em convergncia com essas reflexes, ao analisar os documentos do PEA, identificamos uma dissonncia entre as posies do movimento social Articulao por uma educao do campo (KOLLING; NERY; MOLINA, 1999) presentes em um grande n-mero de passagens do COP e as expressas no CEM. Exemplos dessa dissonncia so elucida-tivos. Eis duas passagens em que, de modo bas-tante claro, percebe-se um alinhamento do PEA com as posies do movimento Articulao por uma educao do campo:

    A escola do campo, includa cada vez mais na agenda das polticas pblicas, tem como desafio oferecer educao de qualidade so-cial para todos os povos que vivem nesse e desse espao. Se a escola do campo mudou porque o prprio campo est em movimento e do ca