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Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais

Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais · Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 2a edição 2008 Paulo Dalgalarrondo Professor Titular de Psicopatologia

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  • Psicopatologiae semiologia dos

    transtornos mentais

  • Conhea Conhea Conhea Conhea Conhea tambmtambmtambmtambmtambm

    Uma das dimenses mais marcantese significativas da experincia humana co-tidiana, a religiosidade , seguramente,um objeto de investigao dos mais com-plexos.

    Em Religio, Psicopatologia e Sa-de Mental, livro sntese de mais de 15anos de pesquisa na rea, o doutor PauloDalgalarrondo aproxima-se do fenmenoreligio passando por disciplinas comopsicopatologia, psicanlise e psicologia,bem como antropologia e sociologia dareligio.

  • Psicopatologiae semiologia dos

    transtornos mentais2a edio

    2008

    Paulo DalgalarrondoProfessor Titular de Psicopatologia

    Departamento de Psicologia Mdica e Psiquiatria

    Faculdade de Cincias Mdicas

    Universidade Estadual de Campinas UNICAMP

    Verso impressa

    desta obra: 2008

  • Artmed Editora S.A., 2008

    Capa

    Paola Manica

    Preparao do originalCristiane Marques Machado

    Leitura finalLisandra Pedruzzi Picon

    Superviso editorialCludia Bittencourt

    Projeto e editoraoArmazm Digital Editorao Eletrnica Roberto Vieira

    Reservados todos os direitos de publicao, em lngua portuguesa,

    ARTMED EDITORA S.A.Av. Jernimo de Ornelas, 670 - Santana

    90040-340 Porto Alegre RS

    Fone (51) 3027-7000 Fax (51) 3027-7070

    proibida a duplicao ou reproduo deste volume, no todo ou em parte,

    sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrnico, mecnico, gravao,fotocpia, distribuio na Web e outros), sem permisso expressa da Editora.

    SO PAULOAv. Anglica, 1091 - Higienpolis

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    SAC 0800 703-3444

    IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

    D142p Dalgalarrondo, Paulo.

    Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais

    [recurso eletrnico] / Paulo Dalgalarrondo. 2. ed.

    Dados eletrnicos. Porto Alegre : Artmed, 2008.

    Editado tambm como livro impresso em 2008.

    ISBN 978-85-363-1493-8

    1. Psicopatologia. 2. Transtornos mentais. I. Ttulo.

    CDU 616.89-008

    Catalogao na publicao: Mnica Ballejo Canto CRB 10/1023

  • Para minha me, Maria Teresa, que me ensinou

    a curiosidade por tudo o que humano.

  • mais do que um forte interesse profissio-

    nal, e a Neury Jos Botega, psiquiatra cl-

    nico, estudioso dos mistrios da relao

    mdico-doente. Alm de colegas, ambos

    so meus companheiros no Departamento

    de Psicologia Mdica e Psiquiatria da Facul-

    dade de Cincias Mdicas da UNICAMP.

    Agradeo-lhes pela leitura do texto final e

    por suas correes e observaes decisivas.

    Sou igualmente grato professora Marisa

    Lajolo, do Instituto de Estudos da Lin-

    guagem da UNICAMP, que revisou pacien-

    temente o texto, discutiu a sua composi-

    o e fez correes e sugestes, sempre com

    aguda sensibilidade, humor e generosi-

    dade, marcas de seu esprito. As impreci-

    ses e os deslizes que permaneceram se

    devem, certamente, teimosia do autor em

    no acatar algumas das sugestes desses

    amigos.

    A psicopatologia uma tradio clni-

    ca. apenas no interior dessa tradio, no

    contato com o mestre, no ensino do aluno

    e, sobretudo, na vivncia daquilo que, de-

    corrente do contato com pacientes enig-

    mticos (quase todos), desafia nosso co-

    nhecimento e desencadeia a angstia da

    clnica ou, mais precisamente, a angs-

    tia da dvida clnica, que esta cincia pode

    se realizar de forma plena. Assim, um li-

    vro como este construdo a partir do

    aprendizado com um grande nmero de

    mestres, colegas, alunos e pacientes. Cit-

    los seria difcil; certamente seriam cometi-

    das injustas omisses. De qualquer forma,

    gostaria de destacar trs pessoas que, na

    fase de redao do livro, contriburam de

    forma especial. Agradeo, ento, a Mrio

    Eduardo Costa Pereira, psiquiatra e psica-

    nalista, que guarda pela psicopatologia

    Agradecimentos

  • Rigorosamente, todas estas

    notcias so desnecessrias para a compreenso

    da minha aventura; mas um modo de ir

    dizendo alguma coisa, antes de entrar em matria,

    para a qual no acho porta grande nem pequena;

    o melhor afrouxar a rdea pena, e ela que v andando,

    at achar entrada. H de haver alguma; tudo depende

    das circunstncias, regra que tanto serve para o estilo

    como para a vida; palavra puxa palavra, uma idia traz

    outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma

    revoluo; alguns dizem mesmo que assim

    que a natureza comps as suas espcies.

    Machado de Assis

    (em Primas de Sapucaia,

    Histrias sem data, 1884)

  • Prefcio 2a edio

    Muitos cursos de graduao, sobre-

    tudo de Medicina e Psicologia, e de ps-

    graduao (residncias de Psiquiatria e es-

    pecializaes em Psicologia Clnica) tm

    adotado este livro em todo o Brasil. Isso

    motivo de estmulo e satisfao, mas im-

    plica uma grande responsabilidade, a de

    aperfeioar e manter este trabalho atuali-

    zado. Tal atualizao, entretanto, nopode, de modo algum, faz-lo perder seu

    carter didtico. Eis o desafio desta segun-

    da edio.

    Soube, recentemente, que este livro

    tem sido bem-acolhido tambm em Portu-

    gal. Esse pas produziu brilhantes psicopa-

    tlogos como, por exemplo, Julio de Mattos

    (1884, 1923), muito lido no Brasil no in-

    cio do sculo XX, at Barahona Fernandes

    (1966) e Fonseca (1987), assim como, con-

    temporaneamente, Pio Abreu (1994). No

    contexto das tradies mdicas e psicolgi-

    cas de alguns pases e culturas (Alemanha,

    Frana, Espanha e pases da Amrica Lati-

    na), a semiologia e a psicopatologia consti-

    turam-se, assim como em Portugal, como

    uma disciplina central para a psiquiatria, a

    psicologia clnica e as neurocincias aplica-

    das. Desejamos que, tambm nos demais

    pases que falam o portugus, a psicopa-

    tologia geral continue a se desenvolver

    como cincia e instrumento privilegiado da

    clnica. Que ela permanea e progrida

    como a principal disciplina de fundamen-

    tao da psiquiatria e da psicologia clnica.

    Entre a primeira edio do livro e esta,

    surgiram alguns textos de psicopatologia

    em nosso meio, produzidos por autores

    brasileiros, que representam contribuies

    originais e enriquecedoras: o trabalho eru-

    dito de Francisco Martins (2005), Psicopa-

    thologia I e II; o texto didtico e terminolo-

    gicamente preciso de Elie Cheniaux (2005),

    Manual de psicopatologia; assim como

    obras que tratam das bases epistmicas da

    psicopatologia, a saber, Psicopatologia: ver-

    tentes, dilogos (organizada por David

    Calderoni, 2002) e Psicopatologia hoje (or-

    ganizada por Joo Ferreira da Silva Filho,

    2006). Alm disso, foi publicado recente-

    mente, do norte-americano Daniel Carlat

    (2007), Entrevista psiquitrica, livro prti-

    co e muito til aos estudantes.

    Foi necessrio, nesta segunda edio,

    realizar uma reviso de todo o livro. Houve

    um cuidado particular com a atualizao

    dos captulos da psicopatologia mais inti-

    mamente relacionados funo cerebral e

    s neurocincias (conscincia, ateno,

    orientao e, em particular, memria), pois

    estas reas tm apresentado rpido avan-

    o, gerando novos conceitos que, em par-

    te, modificam as abordagens tradicionais.

  • Prefcio 2a edio12

    Sou grato ao professor Othon Bas-

    tos, que reviu e corrigiu pacientemente

    alguns erros e imprecises que constavam

    na primeira edio. Alm disso, gentilmen-

    te ps minha disposio uma obra sua

    manuscrita, Vocabulrio psiquitrico popu-

    lar, trabalho cuidadoso de anos de entre-

    vistas e observaes com pacientes com

    transtornos mentais de estados do Nor-

    deste brasileiro. Com sua autorizao,

    pude acrescentar os vocbulos ao gloss-

    rio disponvel no final deste livro. Tam-

    bm foi incorporado ao glossrio um bom

    nmero de termos e expresses popula-

    res coletados por Marcelo G. Nucci, em

    trabalho laboriosamente organizado em

    sua dissertao de mestrado sobre formu-

    lao cultural em sade mental, realiza-

    do em um centro de sade de um bairro

    perifrico de Campinas.

    Sou grato tambm ao meu querido

    amigo professor Cludio E. M. Banzato, que

    revisou cuidadosamente o texto, atentan-

    do sobretudo para algumas imprecises

    conceituais.

    Quero, finalmente, expressar meus

    agradecimentos diretoria da Artmed. Seu

    estmulo, idias e sugestes foram funda-

    mentais para a realizao desta segunda

    edio, em relao tanto ao contedo como

    s solues de editorao para tornar o li-

    vro mais prtico e visualmente atraente.

  • Prefcio da 1a edio

    Por que escrever agora um texto de

    psicopatologia e semiologia psiquitrica?

    Ser que, a esta altura, no seria melhor

    deixar essas disciplinas para trs e nos ocu-

    parmos de temas emergentes e, aparente-

    mente, mais modernos? Por que insistir ne-

    las, to fora de moda no contexto atual?

    Os alunos de graduao, os residentes de

    psiquiatria, os iniciantes de ps-graduao

    precisam mesmo gastar horas e horas es-

    tudando psicopatologia? Ser mesmo ne-

    cessrio que aprendam a fazer um exame

    psquico detalhado e aprofundado?

    A semiologia a base, o pilar funda-

    mental da atividade mdica. Saber observar

    com cuidado, olhar e enxergar, ouvir e in-

    terpretar o que se diz, saber pensar, desen-

    volver um raciocnio clnico crtico e acura-

    do so as capacidades essenciais do profis-

    sional de sade. Na poca da Internet, de

    um volume fabuloso (e, de fato, muito til)

    de novas e sempre renovadas informaes,

    cabe aos professores no apenas fornecer

    informaes recentes aos alunos, mas, so-

    bretudo, ensin-los a observar cuidadosa-

    mente o paciente, a pensar sobre o que ouve

    e v, a analisar racionalmente, com crtica,

    e at com uma pitada de malcia, os dados

    brutos que a clnica nos fornece.

    Posto que o conhecimento nas reas

    mdicas renova-se em uma velocidade es-

    pantosa, faz-se necessrio, atualmente,

    concentrarmo-nos em ensinar mais o co-

    mo do que o contedo em si, mais os m-

    todos de aquisio de conhecimento do que

    as novas informaes. Assim, a semiologia

    mdica e psicopatolgica, bem como a

    psicopatologia geral, devem ser vistas como

    base de sustentao da formao do pro-

    fissional de sade (e, especialmente, de

    sade mental).

    Bons e mais aprofundados livros do

    que este sobre psicopatologia geral e semio-

    logia psiquitrica esto disposio do lei-

    tor. A Psicopatologia geral, de Karl Jaspers

    (1979), primeiramente editada em 1913,

    , certamente, a obra maior da psicopato-

    logia. o grande tratado, cuja fora pri-

    mordial ter lanado as bases metodo-

    lgicas da disciplina: bases a um s tempo

    clinicamente rigorosas e filosoficamente

    muito bem embasadas. Embora no seja,

    de modo algum, um texto hermtico, para

    o estudante em fase inicial obra relativa-

    mente difcil, no voltada diretamente para

    questes prticas do exame do paciente.

    Na esteira de Jaspers, temos a Psicopato-

    logia clnica, de Kurt Schneider (1976), e a

    Psiquiatria, de Weitbrecht (1973).

    Na Frana, entre as muitas obras pu-

    blicadas, deve-se citar a interessante Semio-

    logie psychiatrique, de Paul Bernard e Si-

  • Prefcio da 1a edio14

    mone Trouv (1977), pois se trata de um

    dos poucos trabalhos que d nfase psico-

    patologia da esfera instintivo-pulsional,

    como o comportamento alimentar e o se-

    xual, o sono e a experincia corporal. Os

    trabalhos de Henri Ey (1950, 1973, 1976),

    propondo uma viso unicista em seu orga-

    nodinamismo e a abordagem fenomeno-

    lgico-existencial de Eugne Minkowiski

    (1966, 1973), que coloca no centro da

    psicopatologia o tempo e o espao vivido,

    so com certeza obrigatrios para um es-

    tudo psicopatolgico aprofundado.

    No contexto anglo-saxo, Andrew

    Sims (1995) publicou recentemente o exce-

    lente livro Symptoms in the mind, o qual

    abrange os principais tpicos da psicopato-

    logia geral. Nos EUA, desde o famoso tra-

    balho de Sullivan (1954), uma produo es-

    pecfica de trabalhos sobre o que se con-

    vencionou chamar de a entrevista psiqui-

    trica (MacKinnon e Michels, 1987; Mac-

    Kinnon e Yudofsky, 1988; Othmer e Othmer,

    1994) representam, em um certo sentido,

    uma contribuio valiosa semiologia psi-

    quitrica. O extenso tratado de Kaplan &

    Sadock (1995), apesar de no reservar gran-

    de espao para a semiologia psiquitrica e

    para a psicopatologia geral, de muita uti-

    lidade por suas variadas descries clnicas

    e ricas informaes epidemiolgicas e neu-

    robiolgicas dos diversos transtornos men-

    tais. Como descrio pormenorizada de

    sndromes psicopatolgicas raras, vale citar

    a obra de Enoch e Trethowan (1979).

    Os espanhis Mira y Lopez (1943),

    Vallejo Njera (1944), Lpez Ibor (1970),

    Carmelo Monedero (1973) e Alonso

    Fernandes (1977) produziram obras psico-

    patolgicas do mais alto nvel, consubs-

    tanciando um importante desenvolvimen-

    to (e, em alguns temas, um aprofunda-

    mento) psicopatologia de lnguas alem

    e francesa. Na Amrica hispnica temos,

    pelo menos, duas obras memorveis: o

    Curso de psiquiatria (volume 1), do pro-

    fessor peruano Honorio Delgado (1969),

    e Semiologa y psicopatologa de los proces-

    sos de la esfera intelectual, do argentino

    Carlos R. Pereyra (1973).

    Em nosso meio, textos valiosos e

    aprofundados foram produzidos. O livro de

    Augusto Luiz Nobre de Melo (1979) deve

    ser destacado pela sua erudio, escrita

    elegante e, sobretudo, pela abrangncia e

    profundidade de alguns captulos. , en-

    tretanto, um pouco difcil para o aluno

    iniciante, que pode atrapalhar-se com o

    estilo de Nobre de Melo, s vezes rebusca-

    do. O Curso de psicopatologia, de Isaas

    Paim (1993), outra obra de valor. Mais

    enxuta que a anterior, um texto concei-

    tualmente bastante rigoroso, permanecen-

    do como importante fonte de consulta.

    Contudo, Paim utiliza uma terminologia

    antiga e, eventualmente, pouco acessvel

    ao aluno iniciante.

    Embora no sejam tratados comple-

    tos de psicopatologia, o livro de Leme Lopes

    (1980), Diagnstico em psiquiatria, assim

    como o Conceito de psicopatologia, de

    Sonnenreich e Bassitt (1979), representam

    importantes contribuies delimitao do

    campo psicopatologgico. Um trabalho

    bastante didtico, de orientao neuropsi-

    quitrica, Para compreender a psicopa-

    tologia geral, de R.J.Cabral (1982), de Belo

    Horizonte. Mais recentemente, Luiz Salva-

    dor de Miranda S Junior (1988), de Cam-

    po Grande, e Cludio Lyra Bastos (1997),

    de Niteri, publicaram dois excelentes tex-

    tos didticos de psicopatologia e semiologia

    psiquitrica.

    A psicopatologia tem uma complexa

    e elaborada tradio histrica, de difcil

    acesso ao estudante. Os magnficos traba-

    lhos de German Berrios (1996), The history

    of mental symptoms e A history of clinical

    psychiatry, assim como a bem feita reviso

    de Paim (1993), Histria da psicopatologia,

    podem servir de auxlio na recuperao

    dessa rica tradio de conhecimentos.

    O presente texto tem algumas especi-

    ficidades em relao s obras supramen-

  • Prefcio da 1a edio 15

    cionadas. Tem por objetivo ser didtico,

    claro, acessvel ao aluno de graduao e

    ao residente que se inicia na arte. Sem

    transgredir demais o rigor conceitual ne-

    cessrio, quer ser, a um s tempo, um tex-

    to de utilidade prtica para o estudante que

    precisa aprender a examinar acuradamente

    o paciente e uma fonte introdutria de re-

    flexo em relao ao conhecimento psico-

    patolgico.

    Ao invs de ser um trabalho doutri-

    nrio, representante desta ou daquela es-

    cola, este texto busca a integrao de im-

    portantes reas e conhecimentos psicopato-

    lgicos. Assim, procurei apresentar concei-

    tos da psicopatologia mdica clssica, da

    psicopatologia fenomenolgico-existencial

    e da psicanaltica. Da mesma forma, esfor-

    cei-me por trazer ao aluno alguns dados

    fundamentais de neurocincias e da neuro-

    psicologia moderna, principalmente daqui-

    lo que, a meu ver, enriquece sobremaneira

    a psicopatologia.

    Sem desconhecer os riscos de um

    ecletismo selvagem, optei por recusar al-

    ternativas essencialmente (e, sobretudo,

    exclusivamente) biolgicas, cognitivo-

    comportamentais, psicanalticas ou so-

    cioculturais. Busquei, antes, recolher e

    aproveitar o que h de esclarecedor e til

    nessas diversas abordagens. Reconhecen-

    do as especificidades epistemolgicas de

    cada concepo, bem como a complexida-

    de e a assimetria das relaes interdiscipli-

    nares, no considero as diferentes teorias

    como fechadas e acabadas, nem aceito

    qualquer pretenso ditatorial desta ou

    daquela corrente. A psicopatologia, campo

    dos mais complexos, exige uma atitude aber-

    ta, despreconceituosa e multidisciplinar.

    Cabe salientar que, na maior parte dos

    captulos, acrescentei um item denomina-

    do semiotcnica, o qual visa a fornecer

    ao estudante, iniciante na prtica psicopa-

    tolgica, questes formuladas, testes, es-

    calas, tcnicas de exame, que facilitem e

    enriqueam a avaliao dos diferentes qua-

    dros clnicos. Obviamente, faz parte do es-

    prito da psicopatologia e da semiologia

    psicopatolgica que tais ferramentas sejam

    utilizadas de forma flexvel, de modo a

    enriquecer a avaliao e no aprision-la a

    um instrumento asfixiante. A escolha das

    questes e dos testes baseou-se, alm de

    em minha experincia pessoal, nos livros de

    Vallejo Ngera (1944), de Andreasen e Black

    (1991) e de Othmer e Othmer (1994). Os

    testes sugeridos (para ateno, memria, in-

    teligncia, etc.), simplificados na maior par-

    te, devem ser usados com certa cautela e

    interpretados dentro do contexto clnico, j

    que para muitos deles no dispomos nem

    da validao nacional nem de resultados

    normativos para a populao brasileira.

    Finalmente, merece uma palavra o

    uso que fiz, talvez um tanto abusivo, de

    poemas, citaes e trechos literrios. O lu-

    gar estrategicamente fundamental da arte

    como fonte de conhecimento psicopato-

    lgico j foi vislumbrado e bem descrito

    por Freud:

    Poetas e romancistas so nossos precio-sos aliados, e seu testemunho deve ser al-tamente estimado, pois eles conhecemmuitas coisas entre o cu e a terra comque nossa sabedoria escolar no poderiaainda sonhar. Nossos mestres conhecema psique porque se abeberaram em fon-tes que ns, homens comuns, ainda notornamos acessveis cincia.

    Freud

    (O delrio e os sonhos naGradiva de Jensen, 1906)

    Assim, aproprio-me da formulao

    freudiana, reconhecendo que o artista per-

    cebe antes e mais profundamente do que

    o cientista; este ltimo organiza melhor,

    cria sistemas, hierarquias, enfim, arma

    uma lgica para a natureza. Mas do gran-

    de artista o privilgio da percepo mais

    fina, mais profunda e contundente, daqui-

    lo que se passa no interior do homem, suas

    misrias e grandezas.

  • Sumrio

    parte

    ASPECTOS GERAIS DA PSICOPATOLOGIA

    1. Introduo geral semiologia psiquitrica .................................................................... 23

    2. Definio de psicopatologia e ordenao dos seus fenmenos ................................... 27

    3. O conceito de normalidade em psicopatologia ............................................................... 31

    4. Os principais campos e tipos de psicopatologia ............................................................ 35

    5. Princpios gerais do diagnstico psicopatolgico .......................................................... 39

    6. Contribuies de algumas reas do conhecimento psicopatologia ........................... 45

    parte

    AVALIAO DO PACIENTE E FUNES PSQUICAS ALTERADAS

    7. A avaliao do paciente ................................................................................................... 61

    8. A entrevista com o paciente ........................................................................................... 66

    9. As funes psquicas elementares e suas alteraes ................................................... 85

    10. A conscincia e suas alteraes .................................................................................... 88

    11. A ateno e suas alteraes ......................................................................................... 102

    12. A orientao e suas alteraes .................................................................................... 109

    1

    2

  • Sumrio18

    13. As vivncias do tempo e do espao e suas alteraes ................................................ 114

    14. A sensopercepo e suas alteraes(incluindo a representao e a imaginao) ................................................................. 119

    15. A memria e suas alteraes ........................................................................................ 137

    16. A afetividade e suas alteraes ..................................................................................... 155

    17. A vontade, a psicomotricidade e suas alteraes ......................................................... 174

    18. O pensamento e suas alteraes ................................................................................... 193

    19. O juzo de realidade e suas alteraes (o delrio) ....................................................... 206

    20. A linguagem e suas alteraes ..................................................................................... 232

    21. Funes psquicas compostas e suas alteraes:conscincia e valorao do Eu, personalidade e inteligncia ..................................... 245

    22. A personalidade e suas alteraes ............................................................................... 257

    23. A inteligncia e suas alteraes ................................................................................... 277

    parte

    AS GRANDES SNDROMES PSIQUITRICAS

    24. Do sintoma sndrome ................................................................................................. 293

    25. As grandes sndromes psiquitricas ............................................................................ 301

    26. Sndromes ansiosas ...................................................................................................... 304

    27. Sndromes depressivas ................................................................................................. 307

    28. Sndromes manacas ......................................................................................................314

    29. Sndromes neurticas (fobias, quadrosobsessivo-compulsivos, histeria, somatizaes) .......................................................... 319

    30. Sndromes psicticas (quadros do espectroda esquizofrenia e outras psicoses) ............................................................................. 327

    31. Sndromes de agitao e de estupor e lentificao psicomotoras ............................. 334

    32. Sndromes relacionadas ao consumo de alimentos .................................................... 339

    33. Sndromes relacionadas a substncias psicoativas .................................................... 344

    34. Sndromes relacionadas sexualidade ........................................................................ 352

    3

  • Sumrio 19

    35. Sndromes relacionadas ao sono ................................................................................. 362

    36. Sndromes mentais orgnicas ...................................................................................... 368

    37. Demncias ..................................................................................................................... 376

    38. Sndromes relacionadas cultura ................................................................................ 389

    Glossrio de denominaes populares ................................................................................ 395

    Referncias ............................................................................................................................ 417

    ndice ..................................................................................................................................... 432

  • parte

    1ASPECTOS GERAIS

    DA PSICOPATOLOGIA

  • tolgica , por sua vez, o estudo dos si-nais e sintomas dos transtornos mentais.

    Embora esteja intimamente relacio-

    nada lingstica, a semiologia geral no

    se limita a ela, posto que o signo transcen-

    de a esfera da lngua; so tambm signos

    os gestos, as atitudes e os comportamen-

    tos no-verbais, os sinais matemticos, os

    signos musicais, etc. De fato, a semiologia

    geral como cincia dos signos foi postula-

    da pelo lingista suo Ferdinand de

    Saussure [1916] (1970), que afirmou:

    Pode-se, ento, conceber uma cincia queestude a vida dos signos no seio da vidasocial; [...] cham-la-emos de Semiologia(do grego semeion, signo). Ela nos ensi-nar em que consistem os signos, que leisos regem.

    Charles Morris (1946) discrimina trs

    campos distintos no interior da semiologia:

    a semntica, responsvel pelo estudo dasrelaes entre os signos e os objetos a que

    tais signos se referem; a sintaxe, que com-

    O QUE SEMIOLOGIA (EM GERAL,MDICA E PSICOPATOLGICA)

    A semiologia, tomada em um sentido ge-ral, a cincia dos signos, no se restrin-

    gindo obviamente medicina, psiquia-

    tria ou psicologia. campo de grande

    importncia para o estudo da linguagem

    (semitica lingstica), da msica (semio-

    logia musical), das artes em geral e de to-

    dos os campos de conhecimento e de ativi-

    dades humanas que incluam a interao e

    a comunicao entre dois interlocutores

    por meio de um sistema de signos.

    Entende-se por semiologia mdicao estudo dos sintomas e dos sinais das doen-

    as, estudo este que permite ao profissio-

    nal de sade identificar alteraes fsicas e

    mentais, ordenar os

    fenmenos observa-

    dos, formular diag-

    nsticos e empreen-

    der teraputicas. Se-miologia psicopa-

    Semiologia psico-

    patolgica o estu-

    do dos sinais e sinto-

    mas dos transtornos

    mentais.

    1Introduo geral

    semiologia psiquitrica

    Um dia escrevi que tudo autobiografia, que a vida de cada um de ns a estamos contando em

    tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e

    olhamos, como viramos a cabea ou apanhamos um objeto no cho. Queria eu dizer ento que,

    vivendo rodeados de sinais, ns prprios somos um sistema de sinais.

    Jos Saramago (Cadernos de Lanzarote, 1997)

  • Paulo Dalgalarrondo24

    preende as regras e as leis que regem as

    relaes entre os vrios signos de um siste-

    ma de signos; e, finalmente, a pragmti-ca, que se ocupa das relaes entre os sig-nos e os usurios, os sujeitos que os utili-

    zam concretamente.

    O signo o elemento nuclear dasemiologia; ele est para a semiologia as-

    sim como a clula est para a biologia e o

    tomo para a fsica. O signo um tipo de

    sinal. Define-se sinal como qualquer est-mulo emitido pelos objetos do mundo. As-

    sim, por exemplo, a fumaa um sinal do

    fogo, a cor vermelha, do sangue, etc. O sig-

    no um sinal especial, um sinal sempreprovido de significao. Dessa forma, nasemiologia mdica, sabe-se que a febre

    pode ser um sinal/signo de uma infeco,

    ou a fala extremamente rpida e fluente

    pode ser um sinal/signo de uma sndrome

    manaca. A semiologia mdica e a psicopa-

    tolgica tratam particularmente dos signos

    que indicam a existncia de sofrimento

    mental, transtornos e patologias.

    Os signos de maior interesse para apsicopatologia so os sinais comporta-mentais objetivos, verificveis pela obser-vao direta do paciente, e os sintomas,isto , as vivncias subjetivas relatadas pe-los pacientes, suas queixas e narrativas,

    aquilo que o sujeito experimenta e, de al-

    guma forma, comunica a algum. S Junior

    (1988) apresentam uma definio de sinto-

    ma e sinal um pouco diferente. Ele discrimi-

    na os sintomas objetivos (observados pelo

    examinador) dos sintomas subjetivos (per-

    cebidos apenas pelo paciente). Os sinais,

    por sua vez, so definidos como dados ele-

    mentares das doenas que so provocados

    (ativamente evocados) pelo examinador (si-

    nal de Romberg, sinal de Babinski, etc.).

    Segundo o lingista russo Roman

    Jakobson [1962] (1975), j os antigos es-

    ticos desmembraram o signo em dois ele-

    mentos bsicos: signans (o significante) e

    signatum (o significado). Assim, todo sig-

    no constitudo por estes dois elementos:

    o significante, que o suporte material, oveculo do signo; e o significado, isto ,aquilo que designado e que est ausente,

    o contedo do veculo.

    De acordo com o filsofo norte-ame-

    ricano Charles S. Peirce [1904] (1974), se-

    gundo as relaes entre o significado (con-

    tedo) e o significante (suporte material)

    de um signo, h trs tipos de signos: o cone,

    o indicador e o smbolo. O cone um tipode signo no qual o elemento significante

    evoca imediatamente o significado, isso gra-

    as a uma grande semelhana entre eles,

    como se o significante fosse uma fotogra-

    fia do significado. O desenho esquemtico

    no papel de uma casa pode ser considerado

    um cone do objeto casa. No caso do indica-dor, ou ndice, a relao entre o significantee o significado de contigidade; o signi-

    ficante um ndice, algo que aponta para o

    objeto significado. Assim, uma nuvem um

    indicador de chuva, e a fumaa, de fogo.

    O smbolo, por sua vez, um tipo designo totalmente diferente do cone e do

    indicador; aqui o elemento significante e o

    objeto ausente (significado) so distintos

    em aparncia e sem relao de contigida-

    de. No h qualquer relao direta entre

    eles; trata-se de uma relao puramente

    convencional e arbitrria. Entre o conjun-

    to de letras agrupadas C-A-S-A e o obje-

    to casa no existe qualquer semelhana

    (visual ou de qualquer outro tipo), o que

    constitui uma relao totalmente conven-

    cional. Por isso, o sentido e o valor de um

    smbolo dependem necessariamente das re-

    laes que este mantm com os outros sm-

    bolos do sistema simblico total; depende,

    por exemplo, da ausncia ou presena de

    outros smbolos que expressam significa-

    dos prximos ou antagnicos a ele.

  • Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 25

    DIMENSO DUPLA DO SINTOMAPSICOPATOLGICO: INDICADORE SMBOLO AO MESMO TEMPO

    Os sintomas mdicos e psicopatolgicos

    tm, como signos, uma dimenso dupla.

    Eles so tanto um ndice (indicador) como

    um smbolo. O sintoma como ndice in-

    dica uma disfuno que est em outro

    ponto do organismo ou do aparelho ps-

    quico; porm, aqui a relao do sintoma

    com a disfuno de base , em certo sen-

    tido, de contigidade. A febre pode

    corresponder a uma infeco que induz

    os leuccitos a liberarem certas citocinas

    que, por sua ao no hipotlamo, pro-

    duzem o aumento da temperatura. Assim,

    o sintoma febre tem determinada relao

    de contigidade com o processo infeccio-

    so de base.

    Alm de tal dimenso de indicador,

    os sintomas psicopatolgicos, ao serem

    nomeados pelo paciente, por seu meio cul-

    tural ou pelo mdico, passam a ser sm-

    bolos lingsticos no interior de uma lin-

    guagem. No momento em que recebe um

    nome, o sintoma adquire o status de sm-

    bolo, de signo lingstico arbitrrio, que

    s pode ser compreendido dentro de um

    sistema simblico dado, em determinado

    universo cultural. Dessa forma, a angs-

    tia manifesta-se (e realiza-se) ao mesmo

    tempo como mos geladas, tremores e aper-

    to na garganta (que indicam, p. ex., uma

    disfuno no sistema nervoso autnomo),

    e, ao ser tal estado designado como ner-

    vosismo, neurose, ansiedade ou gastura,

    passa a receber certo significado simbli-

    co e cultural (por isso, convencional e ar-

    bitrrio), que s pode ser adequadamen-

    te compreendido e interpretado tendo-se

    como referncia um universo cultural es-

    pecfico, um sistema de smbolos deter-

    minado.

    A semiologia

    psicopatolgica, por-

    tanto, cuida espe-

    cificamente do estu-

    do dos sinais e sin-

    tomas produzidos

    pelos transtornos

    mentais, signos que

    sempre contm essa

    dupla dimenso.

    DIVISES DA SEMIOLOGIA

    A semiologia (tanto a mdica como a

    psicopatolgica) pode ser dividida em duas

    grandes subreas: semiotcnica e semio-gnese (Marques, 1970).

    A semiotcnica refere-se a tcnicase procedimentos especficos de observao

    e coleta de sinais e sintomas, assim como

    descrio de tais sintomas. No caso dos

    transtornos mentais, a semiotcnica con-

    centra-se na entrevista direta com o pa-

    ciente, seus familiares e demais pessoas

    com as quais convive. A coleta de sinais e

    sintomas requer a habilidade sutil em for-

    mular as perguntas mais adequadas para

    o estabelecimento de uma relao produ-

    tiva e a conseqente identificao dos sig-

    nos dos transtornos mentais. Aqui so fun-

    damentais o como e o quando fazer as

    perguntas, assim como o modo de inter-

    pretar as respostas e a decorrente formu-

    lao de novas perguntas. Fundamental,

    sobretudo para a semiotcnica em psico-

    patologia, a observao minuciosa, aten-

    ta e perspicaz do comportamento do pa-

    ciente, do contedo de seu discurso e do

    seu modo de falar, da sua mmica, da pos-

    tura, da vestimenta, da forma como reage

    e do seu estilo de relacionamento com o

    entrevistador, com outros pacientes e com

    seus familiares.

    A semiologia psico-

    patolgica cuida es-

    pecificamente do es-

    tudo dos sinais e sin-

    tomas produzidos

    pelos transtornos

    mentais, signos que

    sempre contm essa

    dupla dimenso.

  • Paulo Dalgalarrondo26

    A semiognese, por sua vez, ocampo de investigao da origem, dos me-

    canismos, do significado e do valor diag-

    nstico e clnico dos sinais e sintomas. Fi-

    nalmente, alguns autores utilizam o termo

    propedutica mdica ou psiquitrica paradesignar a semiologia. Propedutica, de

    modo geral, termo empregado em vrias

    reas do saber para designar o ensino pr-

    vio, os conhecimentos preliminares neces-

    srios ao incio de uma cincia ou filoso-

    fia. Prefiro o termo semiologia pro-

    pedutica, mas reconheo que a semiologia

    psicopatolgica (como propedutica) pode

    ser concebida como uma cincia prelimi-

    nar, necessria a todo estudo psicopato-

    lgico e prtica clnica psiquitrica.

    SNDROMES E ENTIDADESNOSOLGICAS

    Na prtica clnica, os sinais e os sintomas

    no ocorrem de forma aleatria; surgem

    em certas associaes, certos clusters mais

    ou menos freqentes. Definem-se, portan-

    to, as sndromes como agrupamentos re-lativamente constantes e estveis de deter-

    minados sinais e sintomas. Entretanto, ao

    se delimitar uma sndrome (como sndrome

    depressiva, demencial, paranide, etc.),

    no se trata ainda da definio e da identi-

    ficao de causas especficas e de uma na-

    tureza essencial do processo patolgico. A

    sndrome puramente uma definio des-

    critiva de um conjunto momentneo e re-

    corrente de sinais e sintomas.

    Denominam-se entidades nosolgi-cas, doenas ou transtornos especficosos fenmenos mrbidos nos quais podem-

    se identificar (ou pelo menos presumir com

    certa consistncia) certos fatores causais(etiologia), um curso relativamente homo-gneo, estados terminais tpicos, meca-nismos psicolgicos e psicopatolgicoscaractersticos, antecedentes gentico-familiares algo especficos e respostas atratamentos mais ou menos previsveis.Em psicopatologia e psiquiatria, trabalha-

    se muito mais com sndromes do que com

    doenas ou transtornos especficos, embo-

    ra muito esforo tenha sido (h mais de 200

    anos!) empreendido no sentido de identifi-

    car entidades nosolgicas precisas. Cabe

    lembrar que o reconhecimento dessas enti-

    dades no tem apenas um interesse cient-

    fico ou acadmico (valor terico); ele ge-

    ralmente viabiliza ou facilita o desenvolvi-

    mento de procedimentos teraputicos e pre-

    ventivos mais eficazes (valor pragmtico).

    Questes de reviso Estabelea um paralelo entre os conceitos de semiologia, semiologia mdica

    e semiologia psicopatolgica.

    Quais os signos de maior interesse para a psicopatologia?

    Explique a dupla dimenso do sintoma psicopatolgico.

    Como se subdivide a semiologia mdica/psicopatolgica?

  • Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 27

    lgico; o conhecimento que busca est per-

    manentemente sujeito a revises, crticas

    e reformulaes.

    O campo da psicopatologia incluium grande nmero de fenmenos huma-

    nos especiais, associados ao que se deno-

    minou historicamente de doena mental.So vivncias, estados mentais e padres

    comportamentais que apresentam, por um

    lado, uma especificidade psicolgica (as

    vivncias dos doentes mentais possuem

    dimenso prpria, genuna, no sendo ape-

    nas exageros do normal) e, por outro,

    conexes complexas com a psicologia do

    normal (o mundo da doena mental no

    um mundo totalmente estranho ao mundo

    das experincias psicolgicas normais).

    A psicopatologia tem boa parte de

    suas razes na tradio mdica (na obra dos

    grandes clnicos e alienistas do passado),

    que propiciou, nos ltimos dois sculos, a

    observao prolongada e cuidadosa de um

    considervel contingente de doentes men-

    tais. Em outra vertente, a psicopatologia

    nutre-se de uma tradio humanstica (filo-

    sofia, literatura, artes, psicanlise) que sem-

    Campbell (1986) define a psicopatologia

    como o ramo da cincia que trata da natu-

    reza essencial da doena mental suas cau-

    sas, as mudanas estruturais e funcionais

    associadas a ela e suas formas de manifes-

    tao. Entretanto, nem todo estudo psi-

    copatolgico segue a rigor os ditames de

    uma cincia sensu strictu. A psicopatologia,

    em acepo mais ampla, pode ser definida

    como o conjunto de conhecimentos refe-

    rentes ao adoecimento mental do ser hu-

    mano. um conhecimento que se esfora

    por ser sistemtico, elucidativo e des-mistificante. Como conhecimento que visaser cientfico, no inclui critrios de valor,

    nem aceita dogmas ou verdades a priori.

    O psicopatlogo no julga moralmente o

    seu objeto, busca apenas observar, identifi-

    car e compreender os

    diversos elementos

    da doena mental.

    Alm disso, rejeita

    qualquer tipo de

    dogma, seja ele re-

    ligioso, filosfico,

    psicolgico ou bio-

    O psicopatlogo no

    julga moralmente o

    seu objeto, busca ape-

    nas observar, iden-

    tificar e compreender

    os diversos elementos

    da doena mental.

    2Definio de psicopatologia

    e ordenao dos seus fenmenos

    Um fenmeno sempre biolgico em suas razes

    e social em sua extenso final. Mas ns no nos

    devemos esquecer, tambm, de que,

    entre esses dois, ele mental.

    Jean Piaget

  • Paulo Dalgalarrondo28

    pre viu na alienao mental, no pathos do

    sofrimento mental extremo, uma possibi-

    lidade excepcionalmente rica de reconhe-

    cimento de dimenses humanas que, sem

    o fenmeno doena mental, permane-

    ceriam desconhecidas. Apesar de se bene-

    ficiar das tradies neurolgicas, psicol-

    gicas e filosficas, a psicopatologia no se

    confunde com a neurologia das chamadas

    funes corticais superiores (no se resu-

    me, portanto, a uma cincia natural dos

    fenmenos relacionados s zonas associa-

    tivas do crebro lesado), nem hipottica

    psicologia das funes mentais desviadas.

    A psicopatologia , pois, uma cincia aut-

    noma, e no um prolongamento da neuro-

    logia ou da psicologia.

    Karl Jaspers (1883-1969), um dos

    principais autores da psicopatologia, afir-

    ma que esta uma cincia bsica, que ser-

    ve de auxlio psiquiatria, a qual , por

    sua vez, um conhecimento aplicado a uma

    prtica profissional e social concreta.

    Jaspers muito claro em relao aos

    limites da psicopatologia: embora o ob-jeto de estudo seja o homem na sua totali-

    dade (Nosso tema o homem todo em

    sua enfermidade. [Jaspers, 1913/1979),

    os limites da cincia psicopatolgica con-

    sistem precisamente em que nunca se pode

    reduzir por completo o ser humano a con-

    ceitos psicopatolgicos. O domnio da

    psicopatologia, segundo ele, estende-se a

    todo fenmeno psquico que possa apre-

    ender-se em conceitos de significao cons-

    tantes e com possibilidade de comunica-

    o. Assim, a psicopatologia, como cin-

    cia, exige um pensamento rigorosamente

    conceptual, que seja sistemtico e que pos-

    sa ser comunicado de modo inequvoco. Na

    prtica profissional, entretanto, participam

    ainda opinies instintivas, uma intuio

    pessoal que nunca se pode comunicar. Des-

    sa forma, a cincia psicopatolgica tida

    como uma das abordagens possveis do

    homem mentalmente doente, mas no a

    nica.

    Em todo indivduo, oculta-se algo que

    no se pode conhecer, pois a cincia requer

    um pensamento conceitual sistemtico,

    pensamento que cristaliza, torna evidente,

    mas tambm aprisiona o conhecimento.

    Quanto mais conceitualiza, afirma Jaspers,

    quanto mais reconhece e caracteriza o t-

    pico, o que se acha de acordo com os prin-

    cpios, tanto mais reconhece que, em todo

    indivduo, se oculta algo que no pode co-

    nhecer. Assim a psicopatologia sempre

    perde, obrigatoriamente, aspectos essen-

    ciais do homem, sobretudo nas dimenses

    existenciais, estticas, ticas e metafsicas.

    O filsofo Gadamer (1990) postula que:

    diante de uma obra de arte, experimenta-mos uma verdade inacessvel por qualqueroutra via; isso o que constitui o significa-do filosfico da arte. Da mesma forma quea experincia da filosofia, tambm a expe-rincia da arte incita a conscincia cient-fica a reconhecer seus limites.

    Dito de outra forma, no se pode com-

    preender ou explicar tudo o que existe em

    um homem por meio de conceitos psico-

    patolgicos. Assim, ao se diagnosticar Van

    Gogh como esquizofrnico (epilptico, ma-

    naco-depressivo ou qualquer que seja o di-

    agnstico formulado), ao se fazer uma an-

    lise psicopatolgica de sua biografia, isso

    nunca explicar totalmente sua vida e sua

    obra. Sempre resta algo que transcende

    psicopatologia e mesmo cincia, perma-

    necendo no domnio do mistrio.

    FORMA E CONTEDO DOS SINTOMAS

    Em geral, quando se estudam os sintomas

    psicopatolgicos, dois aspectos bsicos

    costumam ser enfocados: a forma dos

    sintomas, isto , sua estrutura bsica, rela-

    tivamente semelhante nos diversos pa-

    cientes (alucinao, delrio, idia obsessiva,

    labilidade afetiva, etc.), e seu contedo, ou

    seja, aquilo que preenche a alterao estru-

  • Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 29

    tural (contedo de culpa, religioso, de per-

    seguio, etc.). Este ltimo geralmente

    mais pessoal, dependendo da histria de

    vida do paciente, de seu universo cultural e

    da personalidade prvia ao adoecimento.

    De modo geral, os contedos dos sin-

    tomas esto relacionados aos temas cen-

    trais da existncia humana, tais como so-

    brevivncia e segurana, sexualidade, temo-

    res bsicos (morte, doena, misria, etc.),

    religiosidade, entre outros. Esses temas re-

    presentam uma espcie de substrato, que

    entra como ingrediente fundamental na

    constituio da experincia psicopatolgica.

    Nesse sentido, apresentado a seguir um

    esquema simplificado de temas e temores

    bsicos do ser humano (Quadros 2.1 e 2.2).

    A ORDENAO DOS FENMENOSEM PSICOPATOLOGIA

    O estudo da doena mental, como o

    de qualquer outro objeto, inicia pela obser-

    vao cuidadosa de suas manifestaes. A

    observao articula-

    se dialeticamente

    com a ordenao

    dos fenmenos. Isso

    significa que, para

    observar, tambm

    preciso produzir, de-

    finir, classificar, in-

    terpretar e ordenar o observado em de-

    terminada perspectiva, seguindo certa l-

    gica.

    Quadro 2.1

    Temas existenciais que freqentemente se expressam no contedo dos sintomas psicopatolgicos

    Temas e interesses centrais para o ser humano O que busca e deseja

    Sexo Sobrevivncia e prazer

    Alimentao

    Conforto fsico

    Dinheiro Segurana

    Poder e controle sobre o outro

    Prestgio

    Quadro 2.2

    Temores que freqentemente se expressam no contedo dos sintomas psicopatolgicos

    Temores centrais do ser humano Formas comuns de lidar com tais temores

    Morte Religio/mundo mstico

    Continuidade atravs das novas geraes

    Ter uma doena grave Vias mgicas/medicina/psicologia, etc.

    Sofrer dor fsica ou moral

    Misria

    Falta de sentido existencial Relaes pessoais significativas

    Cultura

    O estudo da doena

    mental, como o de

    qualquer outro obje-

    to, inicia pela obser-

    vao cuidadosa de

    suas manifestaes.

  • Paulo Dalgalarrondo30

    essas experincias so basicamen-

    te semelhantes para todos.

    2. Fenmenos em parte semelhan-

    tes e em parte diferentes. So fe-

    nmenos que o homem comum

    experimenta, mas apenas em par-

    te so semelhantes aos que o doen-

    te mental vivencia. Assim, todo ho-

    mem comum pode sentir tristeza;

    mas a alterao profunda, avassa-

    ladora, que um paciente com de-

    presso psictica experimenta

    apenas parcialmente semelhante

    tristeza normal. A depresso

    grave, por exemplo, com idias de

    runa, lentificao psicomotora,

    apatia, etc., introduz algo qualita-

    tivamente novo na experincia hu-

    mana.

    3. Fenmenos qualitativamente

    novos, diferentes. So pratica-

    mente prprios apenas a certas

    doenas e estados mentais. Aqui

    incluem-se fenmenos psicticos,

    como alucinaes, delrios, turva-

    o da conscincia, alterao da

    cognio nas demncias, entre

    outros.

    Assim, desde Aristteles, o problema

    da classificao est intimamente ligado

    ao da definio e do conhecimento de

    modo geral. Segundo ele, definir indicar

    o gnero prximo e a diferena especfica.

    Isso quer dizer que definir , por um lado,

    afirmar a que o fenmeno definido se as-

    semelha, do que aparentado, com o que

    deve ser agrupado e, por outro, identificar

    do que ele se diferencia, a que estranho

    ou oposto. Portanto, na linha aristotlica,

    o problema da classificao a questo

    da unidade e da variedade dos fatos edos conhecimentos que sobre eles so pro-

    duzidos.

    Classicamente, distinguem-se trs ti-

    pos de fenmenos humanos para a psicopa-

    tologia:

    1. Fenmenos semelhantes em to-

    das as pessoas. De modo geral,

    todo homem sente fome, sede ou

    sono. Aqui se inclui o medo de um

    animal perigoso, a ansiedade pe-

    rante uma prova difcil, o desejo

    por uma pessoa amada, etc. Em-

    bora haja uma qualidade pessoal

    prpria para cada ser humano,

    Questes de reviso Defina psicopatologia e comente suas origens e seu campo de atuao.

    Discuta os dois aspectos bsicos dos sintomas psicopatolgicos: forma e contedo.

    Relacione os temas centrais da existncia humana com o contedo dos sintomas

    psicopatolgicos.

    Descreva a ordenao dos fenmenos psicopatolgicos em semelhantes, parcialmente

    semelhantes e qualitativamente novos.

  • Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 31

    exemplo a questo da delimitao dos n-

    veis de tenso arterial para a determina-

    o de hipertenso ou de glicemia, na de-

    finio do diabete. Esse problema foi cui-

    dadosamente estudado pelo filsofo e m-

    dico francs Georges Canguilhem (1978)

    cujo livro O normal e o patolgico tornou-

    se indispensvel em tal discusso.

    O conceito de normalidade em psico-

    patologia tambm implica a prpria defi-

    nio do que sade e doena mental.

    Esses temas apresentam desdobramentos

    em vrias reas da sade mental. Por

    exemplo:

    1. Psiquiatria legal ou forense. A

    determinao de anormalidade

    psicopatolgica pode ter impor-

    tantes implicaes legais, crimi-

    nais e ticas, podendo definir o

    O conceito de sade

    e de normalidade

    em psicopatologia

    questo de grande

    controvrsia (Al-

    meida Filho, 2000).

    Obviamente, quando se trata de casos ex-

    tremos, cujas alteraes comportamentais

    e mentais so de intensidade acentuada e

    de longa durao, o delineamento das fron-

    teiras entre o normal e o patolgico no

    to problemtico. Entretanto, h muitos

    casos limtrofes, nos quais a delimitao

    entre comportamentos e formas de sentir

    normais e patolgicas bastante difcil.

    Nessas situaes, o conceito de normali-

    dade em sade mental ganha especial re-

    levncia. Alis, o problema no exclusi-

    vo da psicopatologia, mas de toda a medi-

    cina (Almeida Filho, 2001); tome-se como

    O conceito de sade

    e de normalidade

    em psicopatologia

    questo de grande

    controvrsia.

    3O conceito de normalidade

    em psicopatologia

    Que loucura: ser cavaleiro andante

    ou segui-lo como escudeiro?

    De ns dois, quem o louco verdadeiro?

    O que, acordado, sonha doidamente?

    O que, mesmo vendado,

    v o real e segue o sonho

    de um doido pelas bruxas embruxado?

    Carlos Drummond de Andrade

    (Quixote e Sancho de Portinari, 1974)

  • Paulo Dalgalarrondo32

    destino social, institucional e le-

    gal de uma pessoa.

    2. Epidemiologia psiquitrica. Nes-

    te caso, a definio de normalida-

    de tanto um problema como um

    objeto de trabalho e pesquisa. A

    epidemiologia, inclusive, pode

    contribuir para a discusso e o

    aprofundamento do conceito de

    normalidade em sade.

    3. Psiquiatria cultural e etnopsi-

    quiatria. Aqui o conceito de nor-

    malidade tema importante de pes-

    quisas e debates. De modo geral, o

    conceito de normalidade em psico-

    patologia impe a anlise do con-

    texto sociocultural; exige necessa-

    riamente o estudo da relao entre

    o fenmeno supostamente patol-

    gico e o contexto social no qual tal

    fenmeno emerge e recebe este ou

    aquele significado cultural.

    4. Planejamento em sade mental

    e polticas de sade. Nesta rea,

    preciso estabelecer critrios de

    normalidade, principalmente no

    sentido de verificar as demandas

    assistenciais de determinado gru-

    po populacional, as necessidades

    de servios, quais e quantos servi-

    os devem ser colocados dispo-

    sio desse grupo, etc.

    5. Orientao e capacitao pro-

    fissional. So importantes na de-

    finio de capacidade e adequa-

    o de um indivduo para exercer

    certa profisso, manipular mqui-

    nas, usar armas, dirigir veculos,

    etc. Como, por exemplo, o caso de

    indivduos com dficits cognitivos

    e que desejam dirigir veculos,

    pessoas psicticas que querem

    portar armas, ou sujeitos com cri-

    ses epilpticas que manipulam m-

    quinas perigosas, etc.

    6. Prtica clnica. muito importan-

    te a capacidade de discriminar, no

    processo de avaliao e interven-

    o clnica, se tal ou qual fenme-

    no patolgico ou normal, se faz

    parte de um momento existencial

    do indivduo ou algo francamen-

    te patolgico.

    CRITRIOS DE NORMALIDADE

    H vrios critrios de normalidade e anor-

    malidade em medicina e psicopatologia. A

    adoo de um ou outro depende, entre

    outras coisas, de opes filosficas, ideo-

    lgicas e pragmticas do profissional

    (Canguilhem, 1978). Os principais critrios

    de normalidade utilizados em psicopato-

    logia so:

    1. Normalidade como ausncia de

    doena. O primeiro critrio que

    geralmente se utiliza o de sade

    como ausncia de sintomas, de

    sinais ou de doenas. Segundo ex-

    pressiva formulao de Ren Le-

    riche (1936): a sade a vida no

    silncio dos rgos. Normal, do

    ponto de vista psicopatolgico,

    seria, ento, aquele indivduo que

    simplesmente no portador de

    um transtorno mental definido.

    Tal critrio bastante falho e pre-

    crio, pois, alm de redundante,

    baseia-se em uma definio ne-

    gativa, ou seja, defini-se a nor-

    malidade no por aquilo que ela

    supostamente , mas, sim, por

    aquilo que ela no , pelo que lhe

    falta (Almeida Filho; Juc, 2002).

    2. Normalidade ideal. A normalida-

    de aqui tomada como uma certa

    utopia. Estabelece-se arbitraria-

    mente uma norma ideal, o que

    supostamente sadio, mais evo-

    ludo. Tal norma , de fato, social-

    mente constituda e referendada.

    Depende, portanto, de critrios

    socioculturais e ideolgicos arbitr-

  • Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 33

    rios, e, s vezes, dogmticos e dou-

    trinrios. Exemplos de tais concei-

    tos de normalidade so aqueles

    com base na adaptao do indiv-

    duo s normas morais e polticas

    de determinada sociedade (como

    nos casos do macarthismo nos EUA

    e do pseudodiagnstico de dissi-

    dentes polticos como doentes

    mentais na antiga Unio Sovitica).

    3. Normalidade estatstica. A nor-

    malidade estatstica identifica nor-

    ma e freqncia. Trata-se de um

    conceito de normalidade que se

    aplica especialmente a fenmenos

    quantitativos, com determinada

    distribuio estatstica na popula-

    o geral (como peso, altura, ten-

    so arterial, horas de sono, quan-

    tidade de sintomas ansiosos, etc.).

    O normal passa a ser aquilo que

    se observa com mais freqncia.

    Os indivduos que se situam esta-

    tisticamente fora (ou no extremo)

    de uma curva de distribuio nor-

    mal passam, por exemplo, a ser

    considerados anormais ou doen-

    tes. um critrio muitas vezes fa-

    lho em sade geral e mental, pois

    nem tudo o que freqente ne-

    cessariamente saudvel, e nem

    tudo que raro ou infreqente

    patolgico. Tomem-se como exem-

    plo fenmenos como as cries

    dentrias, a presbiopia, os sinto-

    mas ansiosos e depressivos leves,

    o uso pesado de lcool, fenme-

    nos estes que podem ser muito fre-

    qentes, mas que evidentemente

    no podem, a priori, ser conside-

    rados normais ou saudveis.

    4. Normalidade como bem-estar. A

    Organizao Mundial de Sade

    (WHO, 1946) definiu, em 1946, a

    sade como o completo bem-es-

    tar fsico, mental e social, e no

    simplesmente como ausncia de

    doena. um conceito criticvel

    por ser muito vasto e impreciso,

    pois bem-estar algo difcil de se

    definir objetivamente. Alm disso,

    esse completo bem-estar fsico,

    mental e social to utpico que

    poucas pessoas se encaixariam na

    categoria saudveis.

    5. Normalidade funcional. Tal con-

    ceito baseia-se em aspectos fun-

    cionais e no necessariamente

    quantitativos. O fenmeno con-

    siderado patolgico a partir do

    momento em que disfuncional,

    produz sofrimento para o prprio

    indivduo ou para o seu grupo

    social.

    6. Normalidade como processo.

    Neste caso, mais que uma viso

    esttica, consideram-se os aspec-

    tos dinmicos do desenvolvimen-

    to psicossocial, das desestrutu-

    raes e das reestruturaes ao

    longo do tempo, de crises, de mu-

    danas prprias a certos perodos

    etrios. Esse conceito particu-

    larmente til em psiquiatria in-

    fantil, de adolescentes e geri-

    trica.

    7. Normalidade subjetiva. Aqui

    dada maior nfase percepo

    subjetiva do prprio indivduo em

    relao a seu estado de sade, s

    suas vivncias subjetivas. O ponto

    falho desse critrio que muitas

    pessoas que se sentem bem, mui-

    to saudveis e felizes, como no

    caso de sujeitos em fase manaca,

    apresentam, de fato, um transtor-

    no mental grave.

    8. Normalidade como liberdade.

    Alguns autores de orientao fe-

    nomenolgica e existencial pro-

    pem conceituar a doena mental

    como perda da liberdade existen-

    cial (p. ex., Henri Ey). Dessa for-

    ma, a sade mental se vincularia

  • Paulo Dalgalarrondo34

    s possibilidades de transitar com

    graus distintos de liberdade sobre

    o mundo e sobre o prprio desti-

    no. A doena mental constran-

    gimento do ser, fechamento,

    fossilizao das possibilidades

    existenciais. Dentro desse esprito,

    o psiquiatra gacho Cyro Martins

    (1981) afirmava que a sade men-

    tal poderia ser vista, at certo pon-

    to, como a possibilidade de dispor

    de senso de realidade, senso de

    humor e de um sentido potico pe-

    rante a vida, atributos estes que

    permitiriam ao indivduo relati-

    vizar os sofrimentos e as limita-

    es inerentes condio huma-

    na e, assim, desfrutar do resqu-

    cio de liberdade e prazer que a

    existncia oferece.

    9. Normalidade operacional. Trata-

    se de um critrio assumidamente

    arbitrrio, com finalidades prag-

    mticas explcitas. Define-se, a

    priori, o que normal e o que

    patolgico e busca-se trabalhar

    operacionalmente com esses con-

    ceitos, aceitando as conseqncias

    de tal definio prvia.

    Portanto, de modo geral, pode-se

    concluir que os critrios de normalidade

    e de doena em psicopatologia variam

    consideravelmente em funo dos fen-

    menos especficos com os quais se traba-

    lha e, tambm, de acordo com as opes

    filosficas do profissional. Alm disso, em

    alguns casos, pode-se utilizar a associa-

    o de vrios critrios de normalidade ou

    doena, de acordo com o objetivo que se

    tem em mente. De toda forma, essa uma

    rea da psicopatologia que exige postura

    permanentemente crtica e reflexiva dos

    profissionais.

    Questes de reviso Que reas da sade mental esto relacionadas com e implicadas no conceito de

    normalidade em psicopatologia?

    Quais so os principais critrios de normalidade interligados em psicopatologia e quais

    suas foras e debilidades?

  • Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 35

    histrico, um campo de conhecimento que

    requer debate constante e aprofundado.

    Aqui o conflito de idias no uma debili-

    dade, mas uma necessidade. No se avan-

    a em psicopatologia negando e anulando

    diferenas conceituais e tericas; evolui-se,

    sim, pelo esforo de esclarecimento e

    aprofundamento de tais diferenas, em dis-

    cusso aberta, desmistificante e honesta.

    A seguir, so apresentadas algumas

    das principais correntes da psicopatologia,

    dispostas de forma arbitrria, por motivos

    estritamente didticos, em pares antag-

    nicos.

    PSICOPATOLOGIA DESCRITIVAVERSUS PSICOPATOLOGIA DINMICA

    Para a psiquiatria descritiva, interessafundamentalmente a forma das alteraespsquicas, a estrutura dos sintomas, aquiloque caracteriza a vivncia patolgica comosintoma mais ou menos tpico. J para apsiquiatria dinmica, interessa o conte-do da vivncia, os movimentos internos deafetos, desejos e temores do indivduo, suaexperincia particular, pessoal, no neces-sariamente classificvel em sintomas pre-

    Umas das principaiscaractersticas da psi-copatologia, comocampo de conheci-mento, a multipli-cidade de aborda-gens e referenciaistericos que tem in-corporado nos lti-mos 200 anos. Talmultiplicidade vis-

    ta por alguns como debilidade cientfica,como prova de sua imaturidade. Os psicopa-tlogos so criticados por essa diversidadede explicaes e teorias, por seu aspectohbrido em termos epistemolgicos.

    Dizem alguns que, quando se conhe-ce realmente algo, se tem apenas uma teo-ria que explica cabalmente os fatos; quan-do no se conhece a realidade que se estu-da, so construdas centenas de teorias con-flitantes. Discordo de tal viso; querer umanica explicao, uma nica concepoterica, que resolva todos os problemas edvidas de uma rea to complexa emultifacetada como a psicopatologia im-por uma soluo simplista e artificial, quedeformaria o fenmeno psicopatolgico. Apsicopatologia , por natureza e destino

    Umas das principais

    caractersticas da

    psicopatologia, como

    campo de conheci-

    mento, a multipli-

    cidade de abordagens

    e referenciais teri-

    cos que tem incorpo-

    rado nos ltimos 200

    anos.

    4Os principais campos

    e tipos de psicopatologia

  • Paulo Dalgalarrondo36

    viamente descritos. A boa prtica em sa-de mental implica a combinao hbil eequilibrada de uma abordagem descritiva,diagnstica e objetiva e uma abordagemdinmica, pessoal e subjetiva do doente ede sua doena.

    Assim, logo na introduo de seu tra-tado de psiquiatria, Bleuler (1985, p. 1)afirma que:

    Quando um mdico se defronta com agrande tarefa de ajudar uma pessoa psi-quicamente enferma, v sua frente doiscaminhos: ele pode registrar o que mr-bido. Ir, ento, a partir dos sintomas dadoena, concluir pela existncia de um dosquadros mrbidos impessoais que foramdescritos. [...] Ou pode trilhar outro ca-minho: pode escutar o doente como sefosse um amigo de confiana. Nesse caso,dirigir a sua ateno menos para cons-tatar o que mrbido, para anotar sinto-mas psicopatolgicos e, a partir disso,chegar a um diagnstico impessoal, e maispara tentar compreender uma pessoahumana na sua singularidade e co-vivenciar suas aflies, seus temores, seusdesejos e suas expectativas pessoais.

    PSICOPATOLOGIA MDICA VERSUSPSICOPATOLOGIA EXISTENCIAL

    A perspectiva mdico-naturalista trabalhacom uma noo de homem centrada no cor-po, no ser biolgico como espcie natural euniversal. Assim, o adoecimento mental visto como um mau funcionamento do c-rebro, uma desregulao, uma disfuno dealguma parte do aparelho biolgico. Jna perspectiva existencial, o doente vis-to principalmente como existncia singu-lar, como ser lanado a um mundo que apenas natural e biolgico na sua dimen-so elementar, mas que fundamentalmentehistrico e humano. O ser construdo pormeio da experincia particular de cada su-

    jeito, na sua relao com outros sujeitos, naabertura para a construo de cada destinopessoal. A doena mental, nessa perspecti-va, no vista tanto como disfuno biol-gica ou psicolgica, mas, sobretudo, comoum modo particular de existncia, uma for-ma trgica de ser no mundo, de construirum destino, um modo particularmente do-loroso de ser com os outros.

    PSICOPATOLOGIACOMPORTAMENTAL-COGNITIVISTAVERSUS PSICOPATOLOGIAPSICANALTICA

    Na viso comportamental, o homem vis-to como um conjunto de comportamentosobservveis, verificveis, que so regula-dos por estmulos especficos e gerais, e porcertas leis e determinantes do aprendiza-do. Associada a essa viso, a perspectivacognitivista centra ateno sobre as repre-sentaes cognitivas conscientes de cadaindivduo. As representaes conscientesseriam vistas como essenciais ao funciona-mento mental, normal e patolgico. Os sin-tomas resultam de comportamentos e re-presentaes cognitivas disfuncionais,aprendidas e reforadas pela experinciasociofamiliar.

    Em contraposio, na viso psicana-ltica, o homem visto como ser determi-nado, dominado, por foras, desejos e con-flitos inconscientes. A psicanlise d gran-de importncia aos afetos, que, segundoela, dominam o psiquismo; o homem racio-nal, autocontrolado, senhor de si e de seusdesejos, , para ela, uma enorme iluso.Na viso psicanaltica, os sintomas e sn-dromes mentais so considerados formasde expresso de conflitos, predominante-mente inconscientes, de desejos que nopodem ser realizados, de temores aos quaiso indivduo no tem acesso. O sintoma encarado, nesse caso, como uma forma-

  • Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 37

    o de compromisso, um certo arranjoentre o desejo inconsciente, as normas eas permisses culturais e as possibilidadesreais de satisfao desse desejo. A resul-tante desse emaranhado de foras, dessatrama conflitiva inconsciente, o que seidentifica como sintoma psicopatolgico.

    PSICOPATOLOGIA CATEGORIALVERSUS PSICOPATOLOGIADIMENSIONAL

    As entidades nosolgicas ou transtornosmentais especficos podem ser compreen-didos como entidades completamente in-dividualizadas, com contornos e fronteirasbem-demarcados. As categorias diagns-ticas seriam espcies nicas, tal qual es-pcies biolgicas, cuja identificao preci-sa constituiria uma das tarefas da psico-patologia. Assim, entre a esquizofrenia eos transtornos afetivos bipolares e os deli-rantes, haveria, por exemplo, uma frontei-ra ntida, configurando-os como entidadesou categorias diagnsticas diferentes ediscernveis na sua natureza bsica. Emcontraposio a essa viso categorial, al-guns autores propem uma perspectivadimensional em psicopatologia, que se-ria hipoteticamente mais adequada rea-lidade clnica. Haveria, ento, dimensescomo, por exemplo, o espectro esquizo-frnico, que incluiria desde formas muitograves, tipo demncia precoce (com gra-ve deteriorao da personalidade, embota-mento afetivo, muitos sintomas residuais),formas menos deteriorantes de esquizo-frenia, formas com sintomas afetivos, che-gando at um outro plo, de transtornosafetivos, incluindo formas com sintomaspsicticos at formas puras de depresso emania (hiptese esta que se relaciona antiga noo de psicose unitria).

    Algumas polaridades dimensionaisem psicopatologia seriam, por exemplo:

    Esquizofrenia deficitria / Esquizofrenia

    benigna / Psicoses esquizoafetivas / Trans-

    tornos afetivos com sintomas psicticos /

    Transtornos afetivos menores

    ou

    Depresses graves (estupor, psictica) / Depres-

    so bipolar / Depresses moderadas / Distimia

    / Personalidade depressiva / Depresso

    subclnica.

    PSICOPATOLOGIA BIOLGICAVERSUS PSICOPATOLOGIASOCIOCULTURAL

    A psicopatologia biolgica enfatiza os as-pectos cerebrais, neuroqumicos ou neuro-fisiolgicos das doenas e dos sintomasmentais. A base de todo transtorno mentalso alteraes de mecanismos neurais e dedeterminadas reas e circuitos cerebrais.Nesse sentido, o aforismo do psiquiatra ale-mo Griesinger (1845) resume bem essaperspectiva: doenas mentais so (de fato)doenas cerebrais. Em contraposio, aperspectiva sociocultural visa estudar ostranstornos mentais como comportamen-tos desviantes que surgem a partir de cer-tos fatores socioculturais, como discrimi-nao, pobreza, migrao, estresse ocu-pacional, desmoralizao sociofamiliar, etc.Os sintomas e os transtornos devem ser es-tudados, segundo essa viso, no seu con-texto eminentemente sociocultural, simb-lico e histrico. nesse contexto de nor-mas, valores e smbolos culturalmenteconstrudos que os sintomas recebem seusignificado, e, portanto, poderiam ser pre-cisamente estudados e tratados. Mais queisso, a cultura, em tal perspectiva, ele-mento fundamental na prpria determi-nao do que normal ou patolgico, naconstituio dos transtornos e nos reper-trios teraputicos disponveis em cadasociedade.

  • Paulo Dalgalarrondo38

    PSICOPATOLOGIA OPERACIONAL-PRAGMTICA VERSUSPSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL

    Na viso operacional-pragmtica, as de-finies bsicas de transtornos mentais esintomas so formuladas e tomadas demodo arbitrrio, em funo de sua utilida-de pragmtica, clnica ou orientada pes-quisa. No so questionados a natureza dadoena ou do sintoma e tampouco os fun-damentos filosficos ou antropolgicos dedeterminada definio. Trata-se do mode-lo adotado pelas modernas classificaes

    de transtornos mentais; o DSM-IV, norte-americano, e a CID-10, da OMS. Por suavez, o projeto de psicopatologia fundamen-tal, proposto pelo psicanalista francsPierre Fedida, visa centrar a ateno da pes-quisa psicopatolgica sobre os fundamen-tos de cada conceito psicopatolgico. Almdisso, tal psicopatologia d nfase noode doena mental como pathos, que signi-fica sofrimento, paixo e passividade. Opathos, diz Berlinck (1977), um sofrimen-to-paixo que, ao ser narrado a um interlo-cutor, em certas condies, pode ser trans-formado em experincia e enriquecimento.

    Questes de reviso Cite e defina oito correntes da psicopatologia.

    Discuta as principais diferenas entre a psicopatologia mdica e a existencial, assim

    como entre a psicopatologia categorial e a dimensional.

  • Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 39

    ciente e seu sofrimento, nem escolher o tipode estratgia teraputica mais apropriado.

    A favor dessa viso pr-diagnstico,est a afirmao de Aristteles (1973), logonas primeiras pginas do livro alpha de suaMetafsica:

    A arte aparece quando, de um complexode noes experimentadas, se exprimeum nico juzo universal dos casos se-melhantes. Com efeito, ter a noo deque a Clias, atingido de tal doena, talremdio deu alvio, e a Scrates tambm,e, da mesma maneira, a outros tomadossingularmente, da experincia; masjulgar que tenha aliviado a todos os se-melhantes, determinados segundo umanica espcie, atingidos de tal doena,como os fleumticos, os biliosos ou osincomodados por febre ardente, isso da arte. [...] E isso porque a experincia conhecimento dos singulares, e a arte,dos universais.

    Entretanto, bom lembrar que o pr-prio Aristteles defende que somente o in-dividual real; o que se tem acesso dire-to apenas aos objetos concretos e particu-lares. O universal, afirmava o filsofo, noexiste na natureza, apenas no esprito hu-mano, que capta e constitui as idias a

    Discute-se muito sobre o valor e os limitesdo diagnstico psiquitrico. Pode-se iden-tificar, inclusive, duas posies extremas.A primeira afirma que o diagnstico em psi-quiatria no tem valor algum, pois cadapessoa uma realidade nica e inclassi-ficvel. O diagnstico psiquitrico apenasserviria para rotular as pessoas diferentes,excntricas, permitindo e legitimando opoder mdico, o controle social sobre o in-divduo desadaptado ou questionador. Essacrtica particularmente vlida nos regi-mes polticos totalitrios, quando se utili-zou o diagnstico psiquitrico para punire excluir pessoas dissidentes ou opositorasao regime. A segunda, em defesa do diag-nstico psiquitrico, sustenta que o valor eo lugar do diagnstico em psiquiatria soabsolutamente semelhantes ao valor e aolugar do diagnstico nas outras especiali-dades mdicas. O diagnstico, nessa viso, o elemento principal e mais importanteda prtica psiquitrica.

    A posio deste autor a de que, ape-sar de ser absolutamente imprescindvelconsiderar os aspectos pessoais, singularesde cada indivduo, sem um diagnsticopsicopatolgico aprofundado no se podenem compreender adequadamente o pa-

    5Princpios gerais do

    diagnstico psicopatolgico

  • Paulo Dalgalarrondo40

    partir do processo de abstrao e generali-zao. Assim Aristteles prossegue:

    Portanto, quem possua a noo sem aexperincia, e conhea o universal igno-rando o particular nele contido, enganar-se- muitas vezes no tratamento, porqueo objeto da cura , de preferncia, o sin-gular. No entanto, ns julgamos que hmais saber e conhecimento na arte doque na experincia, e consideramos oshomens de arte mais sbios que osempricos, visto a sabedoria acompanharem todos, de preferncia, o saber. Issoporque uns conhecem a causa, e os ou-tros no.

    Assim, h, noprocesso diagnsti-co, uma relao dia-ltica permanenteentre o particular,individual (aquelepaciente especfico,aquela pessoa em

    especial), e o geral, universal (categoriadiagnstica qual essa pessoa pertence).Portanto, no se deve esquecer: os diag-nsticos so idias (constructos), funda-mentais para o trabalho cientfico, para oconhecimento do mundo, mas no objetosreais e concretos.

    Tanto na natureza como na esferahumana, podem-se distinguir trs gruposde fenmenos em relao possibilidadede classificao:

    1. Aspectos e fenmenos encontra-dos em todos os seres humanos.Tais fenmenos fazem parte deuma categoria ampla demais paraa classificao, sendo pouco til oseu estudo taxonmico. De modogeral, em todos os indivduos a pri-vao das horas de sono causa so-nolncia, e a restrio alimentar,fome; ou seja, so fenmenos tri-viais que no despertam grandeinteresse psicopatologia.

    2. Aspectos e fenmenos encontra-dos em algumas pessoas, masno em todas.Estes so os fenmenos de maiorinteresse para a classificao diag-nstica em psicopatologia. Aqui,situam-se a maioria dos sinais, sin-tomas e transtornos mentais.

    3. Aspectos e fenmenos encontra-dos em apenas um ser humanoem particular.Tais fenmenos, embora de inte-resse para a compreenso do serhumano, so restritos demais, e dedifcil classificao e agrupamen-to, tendo maior interesse os seusaspectos antropolgicos, existen-ciais e estticos que propriamentetaxonmicos.De modo geral, pode-se afirmarque o diagnstico s til e vli-do se for visto como algo mais quesimplesmente rotular o paciente.Esse tipo de utilizao do diagns-tico psiquitrico seria uma formaprecria, questionvel e no pro-priamente cientfica. Funcionariaapenas como estmulo a precon-ceitos que devem ser combatidos.A legitimidade do diagnstico psi-quitrico sustenta-se na perspecti-va de aprofundar o conhecimento,tanto do indivduo em particularcomo das entidades nosolgicasutilizadas. Isso permite o avanoda cincia, a anteviso de umprognstico e o estabelecimentode aes teraputicas e preventi-vas mais eficazes. Alm disso, odiagnstico possibilita a comuni-cao mais precisa entre profissio-nais e pesquisadores. Sem o diag-nstico, haveria apenas a descri-o de aspectos unicamente indi-viduais, que, embora de interessehumano, so ainda insuficientespara o desenvolvimento cientfico

    H, no processo diag-

    nstico, uma relao

    dialtica permanente

    entre o particular, in-

    dividual, e o geral,

    universal.

  • Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 41

    da psicopatologia (revises sobrea questo do diagnstico em psico-patologia em Leme Lopes, 1980;Pichot, 1994; Abdo, 1996).

    Do ponto de vista clnico e especficoda psicopatologia, embora o processo diag-nstico em psiquiatria siga os princpiosgerais das cincias mdicas, h certamen-te alguns aspectos particulares que devemser aqui apresentados:

    1. O diagnstico de um transtornopsiquitrico quase sempre ba-seado preponderantemente nosdados clnicos. Dosagens labo-ratoriais, exames de neuroimagemestrutural (tomografia, ressonn-cia magntica, etc.) e funcional(SPECT, PET, mapeamento porEEG, etc.), testes psicolgicos ouneuropsicolgicos auxiliam de for-ma muito importante, principal-mente para o diagnstico diferen-cial entre um transtorno psiqui-trico primrio (esquizofrenia,depresso primria, etc.) e umadoena neurolgica (encefalites,tumores, doenas vasculares, etc.)ou sistmica. importante ressal-tar, entretanto, que os examescomplementares (semiotcnica ar-mada) no substituem o essencialdo diagnstico psicopatolgico:uma histria bem-colhida e umexame psquico minucioso, ambosinterpretados com habilidade.

    2. O diagnstico psicopatolgico,com exceo dos quadros psico-orgnicos (delirium, demncias,sndromes focais, etc.), no , demodo geral, baseado em poss-veis mecanismos etiolgicos su-postos pelo entrevistador. Baseia-se principalmente no perfil de si-nais e sintomas apresentados pelopaciente na histria da doena e no

    momento da entrevista. Por exem-plo, ao ouvir do paciente ou fami-liar uma histria de vida repleta desofrimentos, fatos emocionalmentedolorosos ocorridos pouco antes doeclodir dos sintomas, a tendncianatural estabelecer o diagnsti-co de um transtorno psicognico,como psicose psicognica, his-teria, depresso reativa, etc. Masisso pode ser um equvoco. A maio-ria dos quadros psiquitricos, sejameles de etiologia psicognica,endogentica ou mesmo org-nica, surge aps eventos estres-santes da vida. Alm disso, fre-qente que o prprio eclodir dossintomas psicopatolgicos contri-bua para o desencadeamento deeventos da vida (como perda docnjuge, separaes, perda de em-prego, brigas familiares, etc.). Mui-tas vezes o raciocnio diagnsticobaseado em pressupostos etiolgi-cos mais confunde que esclarece.Deve-se, portanto, manter duas li-nhas paralelas de raciocnio cl-nico; uma linha diagnstica, ba-seada fundamentalmente na cuida-dosa descrio evolutiva e atualdos sintomas que de fato o pacien-te apresenta, e uma linha etiol-gica, que busca, na totalidade dedados biolgicos, psicolgicos e so-ciais, uma formulao hipotticaplausvel sobre os possveis fatoresetiolgicos envolvidos no caso.

    3. De modo geral, no existem sinaisou sintomas psicopatolgicos to-talmente especficos de determi-nado transtorno mental. Alm dis-so, no h sintomas patognom-nicos em psiquiatria, como afirmaEmil Kraepelin [1913] (1996):

    Infelizmente no existe, no domniodos distrbios psquicos, um nico

  • Paulo Dalgalarrondo42

    sintoma mrbido que seja total-mente caracterstico de uma enfer-midade [...] devemos evitar atribuirimportncia caracterstica a um ni-co fenmeno mrbido. [...] O quequase nunca produzido totalmentede forma idntica pelos diferentestranstornos mentais o quadro to-tal, incluindo o desenvolvimento dossintomas, o curso e o desenlace finalda doena.

    Portanto, o diagnstico psicopato-

    lgico repousa sobre a totalidade

    dos dados clnicos, momentneos

    (exame psquico) e evolutivos

    (anamnese, histria dos sintomas

    e evoluo do transtorno). essa

    totalidade clnica que, detectada,

    avaliada e interpretada com conhe-

    cimento (terico e cientfico) e ha-

    bilidade (clnica e intuitiva), con-

    duz ao diagnstico psicopatolgico.

    4. O diagnstico psicopatolgico ,em inmeros casos, apenas poss-vel com a observao do cursoda doena. Dessa forma, o padroevolutivo de determinado quadro

    clnico obriga o psicopatlogo a

    repensar e refazer continuamente

    o seu diagnstico. Uma das funes

    do diagnstico em medicina pre-

    ver e prognosticar a evoluo e o

    desfecho da doena (o diagnstico

    deve indicar o prognstico). Porm,

    s vezes, isso se inverte no contex-

    to da psiquiatria. No incomum

    que o prognstico, a evoluo do

    caso, obrigue o clnico a reformular

    o seu diagnstico inicial.

    5. Como salientou o psiquiatra bra-

    sileiro Jos Leme Lopes, em 1954,

    o diagnstico psiquitrico deveser sempre pluridimensional.Vrias dimenses clnicas e psicos-

    sociais devem ser includas para

    uma formulao diagnstica com-

    pleta: identifica-se um transtorno

    psiquitrico como a esquizofrenia,

    a depresso, a histeria, a depen-

    dncia ao lcool, etc., diagnosti-

    cam-se condies ou doenas fsi-

    cas associadas (hipertenso, cirro-

    se heptica, cardiopatias, etc.) e

    avaliam-se a personalidade e o n-

    vel intelectual desse doente, a sua

    rede de apoio social, alm de fa-

    tores ambientais protetores ou

    desencadeantes. O sistema norte-

    americano DSM, desde o incio

    dos anos 1980, tem enfatizado a

    importncia da formulao diag-

    nstica em vrios eixos. Tambm

    sumamente importante o esfor-

    o para a formulao dinmicado caso (conflitos conscientes einconscientes implicados no caso

    especfico, mecanismos de defe-

    sa, ganho secundrio, aspectos

    transferenciais, etc.) e a formu-lao diagnstica cultural (sm-bolos e linguagem cultural espe-

    cfica para aquele paciente, repre-

    sentaes sociais, valores, rituais,

    religiosidade, etc.).

    6. Confiabilidade e validade dodiagnstico em psiquiatria. Aconfiabilidade (reliability) de umprocedimento diagnstico (tcnica

    de entrevista padronizada, escala,

    teste, diferentes entrevistadores,

    etc.) diz respeito capacidade des-

    se procedimento produzir, em re-

    lao a um mesmo indivduo ou

    para pacientes de um mesmo gru-

    po diagnstico, em circunstncias

    diversas, o mesmo diagnstico. Ao

    mudar diferentes aspectos do pro-

    cesso de avaliao (avaliador ou

    momento de avaliao), o resulta-

    do final permanece o mesmo. As-

    sim, quando a avaliao feita por

    examinadores distintos (interrater

    reliability) ou em diferentes mo-

    mentos (test-retest reliability), ob-

  • Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 43

    tm-se o mesmo diagnstico. Tem-

    se um indicador de reprodutibi-

    lidade do diagnstico. A validade(validity) diz respeito capacida-

    de de um procedimento diagnsti-

    co conseguir captar, identificar ou

    medir aquilo que realmente se pro-

    pe a reconhecer. Para saber se um

    novo procedimento diagnstico

    vlido, preciso compar-lo com

    outro procedimento diagnstico

    prvio (padro ouro), que seja

    bem-aceito e reconhecido como

    mais acurado, capaz de identificar

    Quadro 5.1

    O diagnstico pluridimensional em sade mental (com base no sistema multiaxial do DSM-IV,

    acrescentando-se a dimenso psicodinmica e cultural)

    Exemplos de formulao diagnstica

    Eixo 1. Diagnstico do Transtorno Mental

    Esquizofrenia paranide, episdio depressivo grave, dependncia ao lcool, anorexia nervosa, etc.

    Eixo 2. Diagnstico de Personalidade e do Nvel Intelectual

    Personalidade histrinica, personalidade borderline, etc., retardo mental leve, retardo mental grave, etc.

    Eixo 3. Diagnstico de Distrbios Somticos Associados

    Diabete, hipertenso arterial, cirrose heptica, infeco urinria, etc.

    Eixo 4. Problemas Psicossociais e Eventos da Vida Desencadeantes ou Associados

    Morte de uma pessoa prxima, separao, falta de apoio social, viver sozinho, desemprego, pobreza extrema,

    deteno, exposio a desastres, etc.

    Eixo 5. Avaliao Global do Nvel de Funcionamento Psicossocial

    Bom funcionamento familiar e ocupacional, incapacidade de realizar a prpria higiene, no sabe lidar com

    dinheiro, dependncia de familiares ou servios sociais nas atividades sociais ou na vida diria, etc.

    Formulao Psicodinmica do Caso

    Que conflitos afetivos so mais importantes neste paciente? Conflitos relativos sexualidade? Dinmica

    afetiva da famlia? Conflitos relativos identidade psicossocial? Que tipo de transferncia o paciente

    estabelece com os profissionais de sade? Que sentimentos contratransferenciais desperta nos profissionais

    que o tratam? Que mecanismos de defesa utiliza preponderantemente? Qual o padro relacional do paciente?

    Qual a estrutura psicopatolgica, do ponto de vista psicanaltico (estrutura neurtica, obsessiva, histrica,

    fbica, etc.; estrutura psictica; estrutura perversa, autista, etc.)?

    Formulao Cultural do Caso

    Como o meio sociocultural atual do paciente (bairro de periferia, favela, morador de rua, de uma instituio,

    etc.)? Como o paciente e seu meio cultural concebem e representam o problema? Quais as suas teorias

    etiolgicas e de cura? Como a identidade tnica e cultural do paciente? Qual e como sua religiosidade?

    Como o paciente e seu meio cultural encaram o diagnstico e o tratamento psiquitrico oficial? O paciente

    migrante de rea rural? Como isso interfere no diagnstico e na teraputica? Qual a linguagem das

    emoes que utiliza? Qual o impacto das mudanas socioculturais pelas quais o paciente passou em seu

    transtorno mental?

  • Paulo Dalgalarrondo44

    O ideal de um proce-

    dimento diagnstico

    que ele seja con-

    fivel, vlido, com

    alta sensibilidade e

    especificidade.

    Questes de reviso Discuta o valor, os limites e as crticas em relao ao diagnstico em psicopatologia.

    Esclarea por que o diagnstico em psicopatologia baseado preponderantemente nos

    dados clnicos e no em possveis mecanismos causais supostos pelo entrevistador.

    Por que o diagnstico psicopatolgico , em muitos casos, apenas possvel com a

    observao do curso da doena?

    satisfatoriamente o objeto pesqui-

    sado (de certo modo, mais prxi-

    mo da verdade).

    A sensibilidade de um novo pro-cedimento diagnstico est rela-

    cionada capacidade desse pro-

    cedimento de detectar casos ver-

    dadeiros includos na categoria

    diagnstica. J a especificidadedo procedimento refere-se capa-

    cidade de identificar verdadeiros

    no-casos em relao catego-

    ria diagnstica que se pesquisa.

    Um procedimento com alta sensi-

    bilidade identifica quase todos os

    casos, mas pode falhar reconhe-

    cendo erroneamente um no-caso

    (falso-positivo) como caso. Outro

    procedimento com alta especi-

    ficidade pode ter a qualidade de

    apenas reconhecer casos verdadei-

    ros, mas pode falhar, deixando de

    reconhec-los, considerando-os

    como no-casos.

    Obviamente, o

    ideal de um procedi-

    mento diagnstico

    que ele seja confi-

    vel (reprodutvel),

    vlido (o mais pr-

    ximo possvel da

    verdade diagnstica), com alta sensibili-

    dade e especificidade.

  • Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 45

    A riqueza do crebro

    humano est basica-

    mente relacionada

    sua capacidade de

    receber, armazenar

    e elaborar informa-

    es, intimamente

    dependente das co-

    nexes neuronais via

    sinapses.

    nada sua capacidade de receber, arma-

    zenar e elaborar informaes, intimamen-

    te dependente das conexes neuronais via

    sinapses. Ele contm cerca de 10 bilhes

    de neurnios (109); cada neurnio indivi-

    dual, com seus axnios e dendritos, faz

    aproximadamente 60.000 a 100.000 cone-

    xes com outros neurnios. O total de cone-

    xes sinpticas est na faixa de 1027! Hoje

    se pensa que a unidade funcional do cre-

    bro no o neurnio isolado, mas os circui-

    tos neuronais. A percepo, a memria, as

    emoes e mesmo o pensamento surgem

    em conexo com a atividade desses circui-

    tos neuronais. O desenvolvimento de tais

    circuitos baseia-se, em parte, em uma pro-

    gramao gentica, mas intensamente de-

    pendente das experincias individuais do

    sujeito com o seu ambiente (Pally, 1997).

    A arquitetura e a organizao do c-

    rebro so produto de uma longa histria

    evolucionria. Podem-se distinguir trs eta-

    pas ancestrais bsicas nessa histria: de

    rpteis, mamferos inferiores e primatas

    (MacLean, 1990). As partes mais antigas e

    primitivas do crebro so o tronco cerebral

    e o diencfalo, responsveis pelas funes

    vitais, como respirao, batimentos car-

    dacos, temperatura c