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Publicado em REIS, Daniel Aarão e ROLLAND, Denis (org.). Modernidades Alternativas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, pp. 277-294. Modernidade e atraso na luta de libertação angolana Marcelo Bittencourt Departamento de História Universidade Federal Fluminense Introdução Doutores e boçais. Esse poderia ser o título desse texto, numa alusão a alguns dos nomes utilizados pelas forças policiais e militares da Angola colonial, bem como pelos movimentos de libertação ao observarem os seus adversários na guerra de independência. Quem seriam os doutores e quem seriam os boçais? Quem causava mais temor ao regime colonial? Quem seria alvo das ações mais ferozes por parte das forças de repressão coloniais? As respostas a essas questões nos farão navegar por uma Angola pouco analisada, mas pertinente quanto à inteligibilidade de sua forma de tratar as permanências indesejáveis do colonialismo. A oposição estabelecida percorre o movediço terreno do imaginário do que à época essas forças em confronto acreditavam ser modernidade e atraso. Os próprios significados desses termos eram quase sempre diferentes entre os oponentes, que, por sua vez, nem sempre verbalizavam tais idéias através das palavras modernidade e atraso, moderno e atrasado. No entanto, tais contraposições podem ser percebidas pelos símbolos, práticas, exemplos e discursos que utilizavam e defendiam. Afinal, como entender que os colonos afirmassem estar levando o progresso para Angola e, consequentemente, modernizando os “boçais” angolanos, enquanto os movimentos de libertação envergavam armas e palavras de ordem contra o atraso do colonialismo português. O trajeto proposto se concentra sobre duas formas de olhar para a distinção entre modernidade e atraso, desdobrada muitas vezes na oposição quer entre instituições 1

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Publicado em REIS, Daniel Aarão e ROLLAND, Denis (org.). Modernidades Alternativas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, pp. 277-294. Modernidade e atraso na luta de libertação angolana Marcelo Bittencourt Departamento de História Universidade Federal Fluminense

Introdução

Doutores e boçais. Esse poderia ser o título desse texto, numa alusão a alguns dos

nomes utilizados pelas forças policiais e militares da Angola colonial, bem como

pelos movimentos de libertação ao observarem os seus adversários na guerra de

independência. Quem seriam os doutores e quem seriam os boçais? Quem causava

mais temor ao regime colonial? Quem seria alvo das ações mais ferozes por parte

das forças de repressão coloniais? As respostas a essas questões nos farão navegar

por uma Angola pouco analisada, mas pertinente quanto à inteligibilidade de sua

forma de tratar as permanências indesejáveis do colonialismo.

A oposição estabelecida percorre o movediço terreno do imaginário do que à época

essas forças em confronto acreditavam ser modernidade e atraso. Os próprios

significados desses termos eram quase sempre diferentes entre os oponentes, que,

por sua vez, nem sempre verbalizavam tais idéias através das palavras

modernidade e atraso, moderno e atrasado. No entanto, tais contraposições podem

ser percebidas pelos símbolos, práticas, exemplos e discursos que utilizavam e

defendiam. Afinal, como entender que os colonos afirmassem estar levando o

progresso para Angola e, consequentemente, modernizando os “boçais” angolanos,

enquanto os movimentos de libertação envergavam armas e palavras de ordem

contra o atraso do colonialismo português.

O trajeto proposto se concentra sobre duas formas de olhar para a distinção entre

modernidade e atraso, desdobrada muitas vezes na oposição quer entre instituições

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quer entre indivíduos considerados como doutores ou boçais. No primeiro

momento, o foco será direcionado para as imagens construídas pelos movimentos

de libertação angolanos. A sua auto-imagem e a de seus adversários, especialmente

no campo do nacionalismo angolano. No segundo momento nos debruçaremos

sobre as formas de percepção das forças de repressão coloniais acerca de seus

oponentes anticoloniais e as conseqüências dessas avaliações no terreno da

violência.

Modernidade e atraso na configuração dos movimentos de libertação

No caso angolano, a configuração de um movimento nacionalista fragmentado em

diferentes organizações, possuindo laços com e sendo municiado por diferentes

segmentos populacionais em luta armada contra os militares portugueses, mas

também entre eles, estabelece um quadro de maior complexidade para o

entendimento dos temas de atraso e modernidade. De forma um pouco mais

incisiva podemos questionar que angolanos compunham tais organizações e a

quem eles representavam.

A resposta mais fácil a tal questionamento é quase invariavelmente relacionada à

questão étnica. No entanto, o caso angolano nos aconselha a acrescentar ao vínculo

étnico outras variantes como a regional, a ideológica, a familiar, a racial, a

religiosa e a das solidariedades. A composição dos movimentos de libertação pode

ser melhor analisada se tivermos em atenção um leque mais amplo de variáveis. O

que não nos impede de reconhecer a força e em alguns casos a quase exclusividade

das ligações de caráter étnico para a consolidação de determinado movimento de

libertação.

Para dar conta dos objetivos propostos foram selecionados os dois movimentos de

libertação angolanos mais antigos e de maior atuação no correr da luta armada:

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FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e MPLA (Movimento Popular

de Libertação de Angola).

Nos parece fundamental apontar, à partida, que os movimentos de libertação

correspondiam a mundos coloniais também diferentes e que essa pertença indicava

a forma com eram avaliados pelos demais movimentos, pelas forças de repressão

portuguesas e também por importantes atores do cenário internacional como sendo

modernos ou atrasados, revolucionários ou neocoloniais.

De início o MPLA. Sua gênese está ligada à agitação anticolonial iniciada em

finais da década de 1940 e ampliada nos anos 1950. Formou-se a partir de duas

correntes nacionalistas, constituídas pelos que estavam na colônia, principalmente

em Luanda e Benguela e nas suas proximidades – que ficariam conhecidos como

“os do interior” –, próximos, portanto, aos pontos mais antigos da colonização, e

pelos que estavam na metrópole ou em outros países da Europa ou ainda, mais

raramente, da África – “os do exterior”. Mostrava, portanto, desde o início, uma

composição que se revelaria explosiva em vários momentos de sua história.

Os grupos que militavam no interior traduziam caminhos e “vínculos de

solidariedade” diferenciados, divididos pela classificação de cor, pela ocupação

profissional, pela localização no espaço urbano, pela religião, além de outros filtros

menos explícitos. Limitavam-se quase sempre à publicação de panfletos

condenando o colonialismo português, à arregimentação de novos adeptos e a

reuniões entre células para a discussão de informações chegadas do exterior sobre

a movimentação independentista na África. Tais ações eram executadas por

indivíduos ligados a diferentes grupos que se mantinham distantes de qualquer tipo

de coordenação mais ampla. No entanto, a existência de estruturas de

sociabilidade, como as associações culturais, os clubes desportivos e as igrejas,

possibilitava a troca de impressões, gerando maior compreensão entre esses

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segmentos, o que, em início dos anos 1960, revelaria sua importância por facilitar a

união de muitos desses indivíduos sob a bandeira do MPLA.

As detenções realizadas pela polícia portuguesa nos anos de 1959 e 1960

acabariam por identificar a composição dos grupos urbanos: eles atuavam

basicamente em Luanda; do ponto de vista racial, contavam com a participação de

negros, mestiços e brancos; quanto à filiação religiosa, destacavam-se católicos e

protestantes; no que diz respeito à ocupação profissional, eram compostos

principalmente de funcionários públicos, empregados do comércio, enfermeiros,

estudantes, monitores agrícolas e operários.

Esse traço urbano seria adensado pelos jovens estudantes no exterior e seus

contatos com organizações internacionais, favorecendo a construção de uma

imagem desse movimento como nacional, anticolonial, a-racial e multi-étnico, que

com o passar do tempo e a internacionalização da luta angolana vai ganhando cores

mais fortes de um movimento de esquerda, pleiteando uma modernidade

alternativa para a Angola independente, chegando a assumir um discurso

recorrente em muitos países africanos nos anos 1960 e 1970 quanto à necessidade

de criação de um homem novo, que iria gerar uma nova sociedade.

Os angolanos que iriam organizar a UPA (União das Populações de Angola),

depois FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), muito vincados às

alianças de caráter étnico, baseadas nos bakongo, conheceram um caminho de vida

diferente do trilhado pelos demais angolanos (MESSIANT, 1989, p. 168). Sua

presença no norte de Angola possibilitou fortes ligações com a capital do Congo-

Léopoldville (ex-Congo-Belga), laços que as expropriações de terras impostas

pelos colonos portugueses, na ânsia pela exploração do café, iriam intensificar nos

anos 1940. Messiant (1989, p. 144) calcula que os bakongo angolanos em Luanda

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seriam 8 mil em 1960, enquanto em Léopoldville esse número poderia chegar a 60

mil.

A discrepância quanto à forma de exploração colonial sofrida, belga ou portuguesa,

resultou em condições sociais diferenciadas, o que pode ser demonstrado, entre

outros exemplos, através dos níveis de escolaridade. No Congo-Léopoldville, onde

a escolarização primária foi bem mais difundida, raramente se conseguia ter acesso

ao ensino secundário, enquanto em Luanda, apesar das inúmeras limitações, alguns

poucos conseguiram chegar à formação universitária.

Contextos diferentes que tiveram implicação direta na constituição dos

movimentos em questão. Bastaria lembrar que no primeiro Comitê Diretor do

MPLA (1960-1962) dos 7 nomes inscritos, 4 eram universitários e o presidente de

honra era o médico Agostinho Neto. Enquanto na FNLA, a cúpula dirigente do

movimento não possuía nenhum quadro universitário. Evidentemente, tal cenário

contribuiu para esse vasto e nuançado imaginário de modernidade e atraso que

atravessava os movimentos de libertação.

Por outro lado, as elites angolanas bakongo sofreram um processo de urbanização

mais tardia, o que lhes possibilitava maior ligação com o campo e com as tradições

de suas famílias, quando comparadas, principalmente, às famílias luandenses, há

bastante tempo urbanizadas, envolvidas em atividades comerciais diferenciadas e

mais próximas ao aparelho colonial montado por Portugal.

A FNLA, diferentemente do MPLA, iria exaltar essa marca rural e espontânea – os

primeiros levantes, em 1961, no norte, foram especialmente violentos e

indiscriminados, assassinando muitos colonos, mas também angolanos mestiços e

negros pertencentes a grupos étnicos do centro-sul da colônia –, o que atraiu no

final dos anos 1950 e inicio dos anos 1960 Frantz Fanon, da FLN argelina, e outros

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políticos africanos que valorizavam tais sinais. No entanto, ao mesmo tempo, era

um movimento sem programa para o pós-independência. Nas inúmeras entrevistas

de seu líder, Holden Roberto, o destaque, recorrentemente, ficava por conta da

expulsão dos portugueses, da saída dos brancos. “Depois veremos o que fazer”.

Numa entrevista concedida a Robert Davezies (1965, p. 182-91) em Léopoldville,

em 1964, Holden Roberto, entre outros pontos esclarecedores sobre a sua forma de

encarar a luta de libertação em Angola, admite que sua organização tinha

assassinado alguns homens do MPLA que tentaram passar a fronteira do Congo-

Léopoldville com a colônia portuguesa. O então líder da FNLA, criada após a

associação entre a UPA e o PDA (Partido Democrático de Angola), justifica a

ausência de um programa político com o argumento de que, na concepção de sua

organização, uma tal linha de pensamento deveria ser fruto das decisões do povo

angolano. Destaca ainda que o objetivo era a independência e que essa meta

guiaria as ações da FNLA, independentemente de qualquer pretensão de conduzir o

povo angolano. Ele deixa clara a idéia de que o movimento ainda vivia muito

amarrado ao espontaneísmo popular, presente nos levantes de 1961, mesmo

passados três anos de luta e alguns mais de organização política. Essa seria uma

diferença substancial em relação ao seu principal rival, o MPLA.

É preciso destacar, ainda, que o processo de independência do Congo-Léopoldville

influenciou muito a luta dos angolanos bakongo exilados. A confrontação no

antigo Congo-belga desde logo tomou formas raciais muito agudas, e isso

forneceria argumentos importantes na luta entre a FNLA e o MPLA.

Entre o MPLA e a FNLA, as críticas seriam constantes e cada vez mais violentas.

O MPLA acusava a FNLA de ser um movimento tribalista, racista, agente de uma

solução neocolonial, em face do apoio norte-americano ou, no jargão grosseiro,

ainda hoje muito presente em Angola, “atrasado”, conduzido por “boçais”.

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Acrescentava ainda que os líderes da FNLA, de sotaque afrancesado, tinham

perdido ligação com Angola há muito tempo e que isso criava sérias dúvidas a

respeito da sua nacionalidade.

Já para a direção da FNLA, o MPLA era apenas um pequeno grupo de esquerdistas

universitários sem qualquer força militar, culturalmente mesclado e muito

arrogante, que falava um português de sotaque metropolitano. Os militantes da

FNLA não chegavam a referir o termo moderno, mas realçavam que os “doutores”

do MPLA exemplificavam a proximidade deste movimento com o colonialismo

português. Sua acusação mais feroz, no entanto, referia-se à composição racial do

MPLA. O fato de possuir um número elevado de mestiços, que a FNLA

identificava como “filhos de colonos”, serviria de argumento para que o

movimento de Holden Roberto colocasse em dúvida a disposição do MPLA em

alterar a situação vivida pelos negros em Angola.

A situação descrita é no mínimo curiosa: ainda que os dirigentes do MPLA fossem

tidos como radicais pela FNLA, por serem marxistas, isto não se traduziria, para os

últimos, numa perspectiva de ruptura ou numa modernidade alternativa. O

desdobramento é ainda mais complexo, afinal, ainda que comunista, o MPLA seria

neocolonial, pois, para a FNLA, ele era capitaneado por “filhos de colonos”.

Vale acrescentar que as definições mais exaltadas pela FNLA nas suas críticas ao

MPLA e que alcançavam repercussão nos demais países africanos, eram a racial e

a urbana/educacional. A presença de mestiços na direção do MPLA e a marca de

serem quadros formados em Luanda e Lisboa retiravam, ou no mínimo turvavam, a

imagem de ligação a uma África do interior, capaz de mobilizar um maior número

de combatentes. O componente ideológico, que assumiria contornos mais fortes na

história recente de Angola, cresceria com o tempo, com a maior presença da guerra

fria no continente. Nessa segunda fase, que podemos situar em finais dos anos

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1960 e, sobretudo, nos anos 1970, a acusação mais aguda ao MPLA passou a ser

sua vinculação ao bloco soviético.

A contrapartida dessas acusações é a imagem divulgada pelo MPLA a respeito da

FNLA. Esta era apontada como um movimento de frágeis raízes angolanas, dada a

vivência de seus dirigentes no país fronteiriço ao norte de Angola, o que

dificultaria uma perspectiva nacional. Sua base de apoio étnico, exaltada por

muitos como sinal de africanidade, era criticada como sendo mais uma

demonstração de seu sectarismo, ao qual poderia ser somado o racismo

demonstrado e exaltado por seus dirigentes. Sua mobilização apostaria no

espontaneísmo das massas subjugadas, sem o devido cuidado com a

conscientização para uma luta que se anunciava longa e violenta. A proximidade

ao governo de Mobutu, o ditador do Congo-Kinhsassa (ex-Congo-Léopoldville), e

suas relações com os EUA, dariam margem para as acusações de que suas

pretensões políticas não trariam benefícios aos angolanos, mas sim uma explosiva

mistura de posturas atrasadas: neocolonialismo e ditadura. Para o MPLA, em

resumo, a FNLA representava indiscutivelmente o atraso, ainda que tivesse

desferido o mais duro golpe militar ao colonialismo português na primeira fase da

luta e recebido por esse feito um apoio internacional consistente, como sendo a

principal organização político-militar angolana.

Quanto à formação política dos quadros dos dois movimentos de libertação, indício

importante nessa análise acerca dos embates pela construção da imagem de

modernidade ou atraso, vale referir um documento do MPLA, capturado pela

subdelegação da Pide na sanzala Catende, no distrito do Cuanza Norte, em agosto

de 1968. O material consiste num questionário do que o movimento chama de

“formação popular”, em que se busca explicar o fenômeno colonial a partir de uma

abordagem nova, nacional, revolucionária, repleta de indagações de ordem racial e

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econômica, mas sempre ligada à proposta do MPLA, como se pode observar

através das perguntas e suas respectivas respostas: “1. O que é Angola? Angola é um território africano situado no ocidente do continente africano. 2. Angola é o único país africano? Angola não é o único país africano. Em África há mais países africanos como: Congo-Kinshasa, o Congo Brazzaville, Argélia, Gana, Guiné, Moçambique, etc. (...) 4. Quem são os angolanos ou africanos que vivem em Angola? Os angolanos ou então africanos habitantes de Angola são os pretos e os mestiços nascidos em Angola. 5. Os brancos que vivem em Angola são angolanos? Os brancos que vivem em Angola não são angolanos. Eles são na sua maioria portugueses. (...) 33. Quem são os países socialistas? Os países socialistas são países da Europa, são portanto brancos. Mas são brancos diferentes dos portugueses e dos imperialistas. 34. Porque é que são diferentes? Porque eles querem que todo o mundo fique livre; viva bem; eles querem que o povo angolano fique independente, e seja o único dono do café, do cacau, do diamante e do petróleo que se encontra no território angolano. 35. Então todos os brancos não são maus? Não, todos os brancos não são maus, assim como todos os pretos não são bons. Por exemplo, os brancos que são contra a opressão e exploração são nossos amigos. Portanto são bons. Exemplo: os soviéticos, os cubanos, etc., são. Enquanto que a UPA, Holden Roberto é preto, mas é nosso inimigo, ou seja, do povo angolano.” (Lisboa, Torre do Tombo, Fundo PIDE/DGS, Delegação de Angola, NT 9089, Pasta 1, fls.588-92)

Ainda que marcadamente doutrinário, o questionário demonstra o didatismo

exigido pela situação colonial, dada a fragilidade de informações que possuíam os

candidatos a militantes e os próprios militantes do MPLA. O movimento, através

dessa cartilha, afirmava que sua luta pela independência pretendia instalar um

“regime de liberdade, de justiça e de igualdade entre os homens”, o que

poderíamos situar como uma perspectiva modernizante, enquanto para a FNLA o

principal agente mobilizador continuava sendo o embate racial e a fúria das massas

expropriadas. Mas será apenas isso? O que mais poderia o MPLA sugerir para

mobilizar a população? As perguntas e respostas não explicitam, mas não é difícil

admitir que as acusações à boa vida dos brancos traziam embutida a idéia de que a

situação, quando alterada pela independência, seria revertida em favor dos

angolanos, segundo o documento, os pretos e os mestiços, o que tende a esmaecer

o vinco conscientizador, modernizante e a-racial do movimento.

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Por outro lado, podemos acrescentar que essa discussão envolvendo os temas de

modernidade e atraso no que diz respeito às acusações recíprocas dos movimentos

de libertação não explicita todo o problema. Há ainda que ser mencionado o

silêncio que se estabeleceu em torno de um outro tipo de luta, não desenvolvida

pelos movimentos de libertação, mas também de enfrentamento com o

colonizador. Nem sempre se consegue atentar para uma luta sem uma perspectiva

nacional, longe dos principais centros urbanos, cotidiana, rural e direta, por vezes

classificada como étnica, sincrética, sempre frente a frente com a expropriação.

Essas iniciativas não saíram vencedoras em seu embate imediato. Talvez por isso

sua memória, se ainda existe, é de difícil recolha. Tais resistências cotidianas

foram atropeladas pela reação portuguesa ou encampadas pelos movimentos de

libertação. Quando fugiram a ambos, isolaram-se e enfraqueceram-se ainda mais.

Como explicar a concentração dos estudos sobre os grupos organizados? Não será

um certo vício da nossa parte, como afirma Mahmood Mandani, em olhar para os

embates de caráter moderno, urbano, nacional, tidos como progressistas e mais

consistentes politicamente, em detrimento das ações ocorridas em regiões não

urbanizadas, com posturas, projetos e delimitações locais, sem um discurso

reconhecido à partida por nós, e, por isso, carimbadas como étnicas, atrasadas,

camponesas e conservadoras? Não será também, enfim, mais um resultado da

força das concepções de modernidade e atraso?

De certa forma, a composição dos movimentos de libertação, após o início da luta

armada, em 1961, contribuiria para o silêncio em torno dessa luta pulverizada,

fazendo com que ela muito facilmente escape à nossa percepção. É evidente que

esse esquecimento terá sido conseqüência também de sua dispersão, da eficácia da

repressão, do resultado final favorável aos movimentos de libertação, do fato de

não ser capitaneada pelas elites africanas ou, ainda, mais provavelmente, da

mistura desses elementos.

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Não obstante essa diferenciação entre luta enquadrada pelos movimentos de

libertação e luta dispersa, encontrada também em outros casos de confronto pela

independência na África, devemos insistir um pouco mais nesse tema da

polarização entre propostas caracterizadas como nacionais, socialistas e modernas

ou étnicas, conservadoras e atrasadas para pensar o próprio embate entre os

movimentos de libertação angolanos. Mais ainda, podemos questionar até que

ponto essa contraposição nacional/socialista/moderno versus étnico/conservador

/atrasado moldou a percepção que se construiu dos dois principais movimentos de

libertação angolanos. Nesse sentido, vale destacar, no que diz respeito às imagens

construídas pelos e sobre os movimentos de libertação, a habilidade do MPLA de

fazer valer sua posição e de conseguir parecer mais forte e organizado que seu

oponente. Acima de tudo, pelo impressionante descompasso na primeira fase da

luta anticolonial, balizada a grosso modo pelos anos de 1961 e 1965, entre o perigo

militar mais evidente e o temor gerado nas forças de repressão.

A FNLA até 1964, atuando no norte de Angola, foi a organização militar mais

ameaçadora, com capacidade de provocar mortes entre os colonos, paralisar a

produção agrícola e mobilizar o maior número de militantes. Nesse mesmo período

o MPLA possuía dois pequenos grupos de homens no interior de Angola: o

primeiro, na floresta do Mayombe, no enclave de Cabinda, isolado, sem apoio da

população e muitas vezes lutando também contra essa; o segundo, na região dos

Dembos, distante cerca de 350 quilômetros da capital, mas também isolado e sem

capacidade militar.

Seguindo essa trilha, é preciso destacar, sem dúvida, a impressionante capacidade

demonstrada pelo MPLA em divulgar suas ações efetivas, criar algumas e

amplificar outras, demonstrando grande eficácia em seu propósito de obter o

reconhecimento internacional como força militar de oposição ao colonialismo

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português nos mesmos moldes do alcançado pela FNLA. Todavia, como seria de

imaginar, nessa operação de propaganda e convencimento existe o outro lado: o

receptor. Nesse caso, a comunidade internacional, sobretudo os países africanos já

independentes, todos balizados pela lógica da Guerra Fria.

Assim, podemos estabelecer novamente conexões entre as difusas idéias de

modernidade e atraso, presentes no cenário internacional da época – afinal vivia-se

o momento da descolonização do continente africano e a discussão sobre que

projeto seguir estava na pauta do dia – e o embate entre MPLA e FNLA. É a

definição ideológica do MPLA, acompanhada por seu talento em esgrimir as idéias

nuançadas e difusas sobre modernidade e atraso, apresentando-se como um

movimento de libertação à esquerda, radical e defensor de uma modernidade

alternativa para Angola, que o permite sobreviver a um período de grandes

dificuldades políticas e militares, para em seguida alçar vôos mais altos. Dessa

forma, o MPLA seria reconhecido pela Organização da Unidade Africana e a partir

de 1966 se transformaria no oponente militar mais destacado do colonialismo

português.

À FNLA caberia a marca – em parte construída pelo MPLA – de movimento

étnico, regional, conservador, racista e atrasado, da qual não conseguiu se

desvincular. Muito pelo contrário, a própria FNLA, durante muito tempo, insistiu

em algumas dessas caracterizações como definidoras de sua maior africanidade

face ao seu oponente no campo do nacionalismo angolano.

Tais definições conflitantes conheceriam um momento decisivo com a

proclamação da independência angolana pelo MPLA em 11 de novembro de 1975,

que se tornaria um marco dos mais importantes no campo de batalha da memória.

A vitória do MPLA contribuiria decisivamente para apagar ou, quando não,

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descredenciar a atuação da FNLA no embate anticolonial e, ao mesmo tempo,

congelar as percepções construídas acerca dos dois movimentos de libertação.

As implicações das atribuições de modernidade e atraso pelas forças de

repressão.

Dentre os vários relatórios militares consultados a respeito da luta anticolonial

angolana, destaca-se o elaborado pelo comandante do 1º Esquadrão de Dragões

acerca da “ação punitiva de pacificação” na sanzala Mihinjo. A crueldade e a

violência causam tão forte impacto que, provavelmente devido a isso, os militares

tenham tentado a todo o custo recuperar o documento já em poder da Pide, a

polícia política portuguesa, que não cedeu e até mesmo negou o pedido feito pelo

próprio comandante para que o relatório fosse destruído, assim como todas as suas

cópias.

Datado de 27 de abril de 1961, o relatório narra com certo sarcasmo a prisão, dois

dias antes, de cinco africanos que teriam participado de um ataque a dois europeus.

Sem qualquer preocupação em comprovar a ligação política dos supostos

agressores, o capitão de cavalaria e comandante do esquadrão informou que, após a

detenção dos homens, provocada pela denúncia do regedor e apoiada pelo soba1

teve início a “cerimônia” de execução por fuzilamento, a qual não terminou após

os disparos: “Avançaram os cortadores de cabeça. Cumpriram a sua missão. Avançou o soba. Colocou as cabeças nos paus. Ficaram dois sem cabeça. As cabeças ficaram espetadas pela boca, submissamente viradas para o chão. Clarim tocou: ombro arma, apresentar arma. Depois: Marcha de continência, e terminou a cerimônia. O soba falou ao povo, explicando a razão porque tinham ficado dois paus sem cabeça, à espera dos futuros não respeitadores da lei. Ao soba eu disse: Os corpos podem ser enterrados, as cabeças ficam sete dias, os paus ficam para sempre. O Esquadrão regressou ao Quartel. [segue-se ainda, ao final do relatório, uma série de pequenos comentários do capitão sobre o acontecido] (...) o nosso pessoal militar: de uma maneira

1 Soba é o termo utilizado em quase toda Angola para designar o chefe africano local. Em alguns casos, sua autoridade era reconhecida pela administração portuguesa, que lhe atribuía a função de controle das populações africanas de sua área. Ele passava, então, a exercer o papel de ligação com a autoridade administrativa mais próxima.

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geral, pálidos. Cerca de 20% com o olhar incerto e assustado. Cerca de 10% prestes a desmaiar. O resto portou-se bem. As catanas têm de estar bem afiadas (não estavam), saltavam ao bater, como se fosse em borracha. O corte da catana requer a sua técnica, não deve ser em pancada direta e seca. A lâmina deve bater em movimento de translação ao longo do fio.” (Lisboa, Torre do Tombo, Fundo PIDE/DGS, Serviços Centrais, CI (2) GU, NT 7966, Dossier 17, fls. 44-6).

Essa violência aterradora e cruel seria reproduzida inúmeras vezes, nem sempre

com o mesmo detalhamento, em outros relatórios, com outros personagens e

justificativas, quase sempre no interior, em pontos mais afastados dos centros

urbanos, onde com maior facilidade as situações de enfrentamento, ou de puro

terror como a que foi descrita, ganhavam cores mais fortes.

A questão da tortura e dos assassinatos indiscriminados é incontestável quando se

estuda o tema das guerras de libertação. Os relatos sobre as práticas de tortura

utilizadas pela Pide e pelos militares para obtenção de informações relacionam,

entre várias agressões físicas, a estátua (manter o prisioneiro em pé

ininterruptamente), a fome e a tortura do sono – todas também utilizadas pela Pide

na metrópole contra os militantes da esquerda portuguesa – como as ações mais

frequentes.

No caso angolano, registra-se certa escassez de relatos produzidos por militantes

dos movimentos de libertação que foram presos e sujeitos aos ditames brutais da

Pide. Não se produziram obras coletivas como no Brasil, em que as vítimas da

tortura e que presenciaram execuções perpetradas pelo Estado apresentam seus

relatos, o que também seria uma tentativa de exorcizar seus fantasmas, e discutem

as razões e os envolvidos. As referências mais conhecidas são sempre gerais, no

sentido de se acusar tal comportamento por parte dos serviços de repressão

portugueses, sem se preocupar em reunir num documento de maior circulação as

acusações e os envolvidos. Os registros mais contundentes que conseguimos

encontrar são os de José Ervedosa, Mário Pádua e Alberto Pinto, todos ex-militares

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portugueses que desertaram do Exército colonial e que descrevem as cenas de

tortura de que tomaram conhecimento. Sessões em que se derramava azeite

fervente nos ouvidos dos interrogados e se cortava as orelhas dos mesmos. Por

vezes, os presos eram obrigados a comer as orelhas de outros detentos. Os estupros

também seriam apresentados por esses desertores como uma das torturas impostas

aos prisioneiros2.

Também Mário Tomé, major reformado do Exército português que teve quatro

comissões nas guerras coloniais na África, relembra as torturas executadas pelos

militares “mais ambiciosos” e afirma que estes mesmos militares “atiravam

indiscriminadamente contra populações, ou por medo, ou porque no meio delas

poderia estar o inimigo, ou porque os mortos da população também contavam para

o relatório e, portanto, para a qualificação operacional” (TOMÉ, 2001, p. 74).

Ainda sobre a violência em relação à população que habitava as pequenas aldeias

do interior é possível afirmar que esta sofreu alterações ao longo do tempo, mas foi

constante. Nos casos de evidente contato com a guerrilha as opções eram a

destruição e os assassinatos indiscriminados. Com o passar do tempo e a evidência

de que o confronto seria prolongado, ganha força uma nova perspectiva no meio

colonial: os chamados “aldeamentos estratégicos”. Neles as autoridades

administrativas, contando com o auxílio das forças militares, reuniam e

monitoravam dezenas de famílias camponesas, que passavam a viver sob sua

alçada. O objetivo era afastar os guerrilheiros da população que os alimentava e ao

mesmo tempo os camuflava. A descrição de Mário Tomé não deixa dúvida quanto

ao caráter de tal empreitada:

2 Documento consultado em Coimbra, Portugal, no Centro de Documentação 25 de Abril, onde está arquivado sob a cota: “325.3 (1960-1974) CON”. Mário Pádua, que depois de desertar do exército português atuaria durante a guerra colonial como médico no Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), reforçaria recentemente seu testemunho, acrescentando que muitos militares portugueses passaram a compreender a luta pela independência ao tomarem conhecimento da exploração e dos atos de tortura a que estavam sujeitos os angolanos (TEIXEIRA, 2001, p. 194).

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“Os aldeamentos (...), por mais entusiasmo que tenham despertado em muitos militares que se sentiam a dar humanidade à guerra, não passam, em rigor, de campos de concentração de populações deportadas, roubadas às suas terras, afastadas dos seus totemes ou dos seus antepassados, separadas dos seus familiares, pais sem filhos, filhos sem pais, alguns deles caídos varados pelas balas ou estilhaçados por granadas em muitas ações de ‘recuperação de populações’, que arrasam culturas e incendeiam as habitações. Na verdade, para que queriam umas e outras se iam ser acolhidos à sombra amiga da bandeira verde-rubra, em aldeamentos chapeados a zinco e cercados de arame farpado, para evitar que o inimigo molestasse as populações aldeadas?” (TOMÉ, 2001, p. 74).

Longe de cairmos numa discussão macabra e infrutífera a respeito da quantificação

da tortura e dos assassinatos, pois o fato é que estes aconteceram, é importante

tentarmos analisar tais práticas relacionadas aos seus objetivos. Assim sendo,

diante do quadro até agora traçado, qual a relação possível de ser estabelecida entre

a tortura e os assassinatos e a forma como as forças de repressão coloniais

portuguesas encaravam os angolanos? Os indícios até o momento levantados

sugerem que as atrocidades assumiram patamares quase indescritíveis nas áreas

mais remotas de Angola, atingindo aqueles que estavam longe de qualquer

possibilidade de divulgação. Enquadrados numa qualificação difusa por parte dos

colonizadores como atrasados ou boçais, estes homens e mulheres não tinham a

possibilidade de se fazer ouvir nem mesmo pelos movimentos de libertação.

Evidentemente, os movimentos de libertação também sofreriam as violentas

ofensivas das forças de repressão portuguesas. Basta lembrar um dos casos mais

conhecidos, em se tratando de perseguição militar na guerra angolana, que foi o da

coluna Bomboko, no leste do país, que seria dizimada pelo exército português,

numa verdadeira caça aos homens do MPLA. Ou ainda as mortes ocorridas nas

prisões do Tarrafal, em Cabo Verde, e São Nicolau, em Angola.

Portanto, o que se pretende aqui é perceber quais as implicações de uma leitura por

parte das forças de repressão portuguesas a respeito do enquadramento de seus

inimigos como sendo doutores ou boçais, relacionada aos objetivos militares

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pretendidos. Devemos estar cientes, no entanto, que essas caracterizações não

diferenciavam os que estavam dentro ou fora dos movimentos, pelo contrário, elas

atravessavam os movimentos e podem ser observadas nos relatórios policiais e

militares.

Lembremos ainda que as atrocidades expostas pelos desertores do Exército

colonial foram infligidas a pessoas capturadas na área rural e dificilmente se

referiam a quadros de destaque dos movimentos de libertação, pois tal ênfase

certamente seria feita em tais testemunhos. É evidente, como afirmamos

anteriormente, tratar-se de um tema polêmico, mas ainda assim podemos buscar

relacionar as diferenciações sociais coloniais produzidas e reproduzidas pela Pide e

suas terríveis conseqüências, inclusive no tocante ao tratamento dos presos.

Seguindo a estratégia de vincular a prática da tortura e dos assassinatos com o seu

objetivo, iremos verificar que, nas áreas rurais onde a guerrilha conseguiu penetrar,

a localização do inimigo por parte dos militares e da polícia portuguesa assumiu

um significado muito preciso. A mobilidade da guerrilha por áreas muito extensas

e a sua possibilidade de retirada para os territórios vizinhos implicaria que as

informações pretendidas pela Pide tomassem outros contornos que não só o

especificamente ligado à localização dos guerrilheiros, que, vale dizer, eram

identificados pelas próprias ações promovidas por seus destacamentos. As forças

de repressão portuguesas demonstrariam estar também interessadas em controlar

ou, pelo menos, afastar as populações rurais das áreas de atuação da guerrilha,

criando aldeamentos.

Em tal cenário, surge uma outra variante dos atos de violência, que podemos

identificar como terrorismo de massa. Nesse caso, não há uma busca de

informações, apenas a necessidade de causar dor e sofrimento a uma população

que, por sua localização ou trajetória, poderia ceder algum tipo de apoio aos

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guerrilheiros. A terrível lógica desses atos parece indicar que quanto mais horror,

maior o temor e, conseqüentemente, melhor a prevenção. Em muitos casos, os atos

praticados sob essa ótica tendiam a privar as vítimas de sua humanidade,

reduzindo-lhes a capacidade de reação. Sem ousar muito pela seara alheia, o fato

de se cortar a orelha de jovens dessas regiões – o que foi descrito como uma das

brutalidades impostas a muitos dos populares detidos quer pela Pide quer pelos

militares portugueses em Angola, sem que qualquer ligação mais estreita com os

movimentos de libertação estivesse estabelecida –, para além de causar imensa dor

e marcar para sempre, também parece tentar bestializar o oponente. De qualquer

forma, o que sobressai nesses casos é o fato de não existir um objetivo militar

imediato de captura de um determinado grupo de guerrilha ou célula política. O

objetivo é estabelecer o terror generalizado como prevenção às ações de cooptação

empreendidas pela guerrilha.

Como contraponto a essa desumanização encontramos inúmeros relatórios nos

arquivos da Pide, que destacam o fato de o MPLA possuir entre seus quadros uma

gama importante de indivíduos formados nas universidades portuguesas. O

cuidado que foi empregado na confecção dos processos de muitos desses

indivíduos – com as inclusões de diversos detalhes de suas vidas pessoais e

estudantis, referências ao grau acadêmico e, o que é mais importante, ao seu “grau

de civilidade” – permite-nos especular a respeito de comportamentos diferenciados

das forças de repressão em relação aos quadros com maior formação educacional e

exposição internacional. Não seria de surpreender que o imaginário de

modernidade e atraso, transposto para as caracterizações de doutores e boçais,

influenciasse as ações de militares e policiais portugueses.

Por último, é preciso afastar qualquer possibilidade de uma leitura mecânica, do

tipo: dirigente ou militante com alguma escolaridade, quando preso, sofreu menos

tortura que um camponês no interior, alvo da estratégia de prevenção. Em primeiro

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lugar, porque a detenção de dirigentes foi escasseando com o avançar da luta. Em

segundo lugar, porque o que se está ponderando aqui é a vinculação, sim, entre as

atribuições de modernidade e atraso pelas forças de repressão portuguesas e a

violência em relação aos angolanos, mas conectando tal relação com os objetivos

militares coloniais portugueses.

Dessa forma, o que podemos perceber através dos documentos pesquisados é que

as populações próximas às áreas de atuação da guerrilha foram expostas ao que

chamamos de terrorismo de massa, brutalmente torturadas pelas forças de

repressão coloniais portuguesas dentro de uma estratégia de impor terror

generalizado. Mais ainda, tais documentos apontam para a distinção, por parte

dessas forças de repressão, entre indivíduos e grupos mais ou menos afetados pelo

que consideravam ser modernidade. Todavia, não podemos deixar de conjugar

esses fatos com as estratégias pretendidas pelos militares e policiais portugueses.

No tocante às populações do interior, os comumente chamados de boçais, a meta

era evitar o contato com a guerrilha. Quanto aos presos dos movimentos de

libertação, uma outra série de elementos influenciaria a atitude das forças de

repressão, para além do fato de serem enquadrados, quando fosse o caso, como

doutores. O fato de serem dirigentes reconhecidos internacionalmente,

pertencentes a um determinado grupo étnico, enquadrados numa determinada

categoria racial, ou ainda a possibilidade de uso de sua imagem nas campanhas de

combate à guerrilha, todos esses fatores pesavam na forma como seriam tratados

pelos militares e policiais portugueses.

Conclusão

O mais sábio talvez fosse admitir que a discussão apresentada e a forma como foi

descrita não sugerem uma conclusão. Todavia, a tentação de buscar amarrar

algumas idéias que parecem ter ficado soltas é maior que a prudência.

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A tentativa de relacionar as idéias de modernidade e atraso à forma como os

movimentos de libertação angolanos – MPLA e FNLA – eram percebidos por eles

próprios e pelos militares e policiais portugueses buscou ressaltar as diferentes

concepções em jogo sobre modernidade e as implicações, também diferenciadas,

do enquadramento e da capacidade de operacionalizar sua imagem e do adversário

por parte, em especial, dos movimentos de libertação.

Entre as implicações desses embates de idéias acerca da modernidade e do atraso

poderíamos questionar qual a conseqüência para a luta anticolonial da leitura feita

pelas forças de repressão sobre o MPLA. Certamente pesou nesse sentido, a

avaliação desse movimento pela Pide e pelo exército como sendo uma organização

formada e, sobretudo, dirigida por quadros universitários, com grande capacidade

de articulação internacional. Afinal, o tratamento cerimonioso, formal, ainda que

raivoso ou incrédulo, por parte dos colonizadores nos relatórios policiais sugere

que esses homens comungavam da idéia de que uma melhor qualificação

educacional, uma maior proximidade ao que eles consideravam ser a civilidade

portuguesa, elevava os indivíduos e, consequentemente, seu movimento a uma

condição diferenciada, com maior potencial, não necessariamente de violência,

mas de sucesso na luta pela independência.

Até que ponto essa forma de encarar o MPLA teve implicações na utilização da

violência sobre os movimentos? Essa resposta não se encontra nesse texto, mas a

breve exposição sobre o tema sugere que às diferenças estabelecidas pelas forças

de repressão portuguesas, tendo em conta seus objetivos militares, devemos

acrescentar os enquadramentos de ordem mais difusa e nuançada que contrapõe

também o que eles nomeavam como sendo doutores e boçais.

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Cabe ainda ressaltar a permanência de algumas das imagens aqui analisadas como

formas de avaliar o oponente, em especial as elaboradas e empregadas pelo MPLA,

para além do período da luta anticolonial, alcançando ainda hoje grande

ressonância na arena política angolana. Evidentemente, para tal permanência pesou

decisivamente a trajetória dos movimentos em discussão no correr da luta pela

independência e no período posterior, mas o fato do MPLA ter sido o vencedor do

processo de luta pela independência não pode ser deixado de lado ao se buscar

entender a força da sua auto-imagem e das projeções feitas a respeito dos seus

adversários, com destaque para a FNLA.

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