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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC/SP OLÍVIA CAROLINO PIRES Questão nacional no pensamento crítico da América Latina DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SÃO PAULO 2015

Questão nacional no pensamento crítico da América Latina Carolino... · do pensamento crítico da classe trabalhadora em nível mundial. A América Latina, a partir das contradições

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC /SP

OLÍVIA CAROLINO PIRES

Questão nacional no pensamento crítico

da América Latina

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO

2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC /SP

OLÍVIA CAROLINO PIRES

Questão nacional no pensamento crítico

da América Latina

Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência

para a obtenção do título de Doutora em Ciências

Sociais, sob a orientação do Professor Doutor Lúcio

Flávio Rodrigues de Almeida.

SÃO PAULO

2015

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OLÍVIA CAROLINO PIRES

Questão nacional no pensamento crítico da América Latina

Data de aprovação: ____________

Banca examinadora:

Prof. Dr. _____________________________________________________________

Instituição: ____________________________ Assinatura:____________________

Prof. Dr. _____________________________________________________________

Instituição: ____________________________ Assinatura:____________________

Prof. Dr. _____________________________________________________________

Instituição: ____________________________ Assinatura:____________________

Prof. Dr. _____________________________________________________________

Instituição: ____________________________ Assinatura:____________________

Prof. Dr. _____________________________________________________________

Instituição: ____________________________ Assinatura:____________________

Prof. Dr. _____________________________________________________________

Instituição: ____________________________ Assinatura:____________________

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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução

total ou parcial desta Tese por processos de fotocopiadores ou eletrônicos.

Assinatura: ________________________________

Local e data: _______________________________

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DEDICATÓRIA

À minha avó Maria Valeiras Carolino.

Ao Professor Vito Antonio Letizia.

(in memorian)

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AGRADECIMENTOS

Ao professor doutor Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, pela orientação do

trabalho.

Aos professores doutores Àquilas Mendes e Igor Fuser, pela colaboração no

exame de qualificação.

Aos meus pais, Célia e Antônio, ao meu irmão Lucas, à Helô, ao Nicolás e à

minha filha Luísa, por todo apoio e compreensão.

Aos professores e colegas do Programa de Pós Graduação em Ciências

Sociais da PUC SP.

Aos colegas do Departamento de Economia da PUC SP.

Aos companheiros e companheiras da Consulta Popular, de Interludium

reflexões anticapitalistas e do CEPIS.

Ao Fernando Martinez Heredia e à Ester Perez

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Poetas y mendigos, músicos y profetas, guerreros y malabaristas, todas las criaturas de

aquella realidad desaforada, tuvimos que pedir muy poco a la imaginación, porque el

desafío mayor para nosotros fue la insuficiencia de recursos convencionales para hacer

que nuestra vida fuese creíble. Este es, amigos, el nudo de nuestra sociedad. Porque si

estas dificultades nos entorpecen, a nosotros que somos de su esencia, no es difícil

entender que los talentos racionalistas de este lado del mundo, extasiados en la

contemplación de sus propias culturas, se hayan quedado sin un método válido para

interpretarnos. Es incomprensible que insistan en medirnos con las misma vara con que

miden a si mismos, sin recordar que los estragos de la vida no son iguales para todos y que

la búsqueda de una identidad propia es tan ardua y sangrenta como lo fue para ellos. La

interpretación de nuestra realidad con esquemas ajenos sólo contribuye a tornarnos cada

vez más desconocidos, cada vez menos libres, cada vez más solitarios.

Gabriel García Marquez, 1991.

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Pires, Olívia Carolino. A questão nacional no pensamento crítico da América Latina. 2015. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo.

RESUMO

Esta tese tem como fenômeno de interesse a " questão nacional no pensamento crítico

da América Latina” e como objetivo examinar a questão nacional como desdobramento das

contradições que movem o processo histórico na América Latina.

Nos marcos do referencial de análise do método do materialismo histórico dialético,

tratando-se de um processo histórico diferente do que aconteceu na Europa, é de se supor que

o pensamento crítico sobre as determinações dessa realidade tenha um conteúdo sobre a

questão nacional, com especificidades próprias às formações sociais de passado colonial, em

relação ao assumido nas formulações do marxismo clássico, que reflete as contradições que

movem o processo histórico europeu (não homogêneo) e se universalizou como o fundamento

do pensamento crítico da classe trabalhadora em nível mundial.

A América Latina, a partir das contradições de seu processo histórico de

desenvolvimento capitalista, apresenta peculiaridades na questão das formações nacionais, das

quais procuramos examinar dois aspectos, a saber: um desenvolvimento capitalista específico,

amplamente abordado nos estudos sobre capitalismo dependente; e um aleijume na formação

do Estado Nação.

Nossas análises conduzem à ideia de que em formações nacionais dependentes, ao

buscar identificar as forças sociais cujas contradições puseram em movimento cada momento

sucessivo do processo histórico, como no caso da América Latina, encontramos nos

movimentos de libertação nacional nos anos 1960-70 um momento de desfecho dessas

contradições, ao relacionar a questão da libertação nacional ao anti-imperialismo e à transição

socialista. A questão nacional relacionada às lutas por libertação nacional é uma contribuição

de um momento do pensamento crítico na América Latina para o marxismo.

Palavras-chave: Nações; Marxismo; Libertação Nacional; América Latina.

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ABSTRACT

This thesis is about "The national question at the Latin American critical thought”. The

research analyzed the national question as a consequence of the paradoxes which features the

historical process in Latin America.

On the issue of analytical reference method of dialectical historical materialism, in

a historical process of what happened in Europe, it is assumed that critical thinking on this

reality have content about national question with specific characteristics to the social

formations of past colonial, relative to assumed in the formulations of classical Marxism,

which reflects the contradictions that drive the European historical process and universalized

as the foundation of critical thinking of the working class worldwide.

Latin America, from the contradictions of capitalist development, has peculiarities in

the matter of national training, which try to examine two aspects: a specific capitalist

development; and aleijume of the nation state.

Our analysis leads the idea that in Latin America to identify the social forces whose

contradictions set in motion each successive moment of the historical process, met the national

liberation movements in the years 1960-70 an outcome of these contradictions to link the issue

of national liberation to anti-imperialism and socialist transition. The national question related

to the fight for national liberation is contributed by a moment of critical thinking in Latin

America for Marxism.

The national question related to the struggle for national liberation is contributed by a

moment of critical thinking in Latin America for Marxism.

Keywords: Nations; Marxism; National Liberation; Latin America.

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RESUMEN

Esta tesis tiene como fenomeno de interés “la cuestión nacional en el pensamiento

crítico de América Latina” y como objetivo examinar la cuestión nacional como consecuencia

de las contradicciones que mueven el proceso histórico en América Latina.

En los marcos del referencial de análisis del método del materialismo histórico

dialéctico, tratándose de un proceso histórico diferente del que sucedió en Europa, se supone

que el pensamiento crítico sobre las determinaciones de esa realidad tenga un contenido sobre

la cuestión nacional con especificidades propias de las formaciones sociales del pasado

colonial, en relación al asumido en las formulaciones del marxismo clásico, que reflexiona

sobre las contradicciones que mueven el proceso histórico europeo (no homogéneo) y se

universalizó como el fundamento del pensamiento crítico de la clase trabajadora en nivel

mundial.

América Latina, a partir de las contradicciones de su proceso histórico de desarrollo

capitalista, presenta peculiaridades en la cuestión de las formaciones nacionales, de las cuales

buscamos examinar dos aspectos, a saber: un desarrollo capitalista específico ampliamente

abordado en los estudios dependientes; y un aleijume en la formación del Estado Nación.

Nuestro análisis conduce a la idea de que en formaciones nacionales dependientes, al

buscar identificar las fuerzas sociales cuyas contradicciones pusieron en movimiento cada

momento sucesivo del proceso histórico, como en el caso de América Latina, encontramos en

los movimientos de liberación nacional en los años 1960-70 un momento de desenlace de esas

contradicciones al relacionar la cuestión de la liberación nacional al anti-imperialismo e a la

transición socialista. La cuestión nacional relacionada a las luchas por liberación nacional es

una contribución de un momento del pensamiento crítico en América Latina para el marxismo.

Palabras-clave: Naciones; Marxismo; Liberación Nacional; América Latina.

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SUMÁRIO

Apresentação da Pesquisa......................................................................................................13

(I) Apresentação ..................................................................................................................13

(II) Trajetória da pesquisadora..............................................................................................22

(III) Inquietações e motivações.............................................................................................28

(IV) Nossos propósitos e escolhas........................................................................................31

(V) Metodologia de pesquisa................................................................................................32

(VI) Objetivo e questão de pesquisa......................................................................................38

(VII) Estrutura do texto.........................................................................................................39

Capítulo 1: Formas de apropriação da questão nacional .............................................................. 41

1.1 Introdução ................................................................................................................................ 41

1.2 O que é uma nação?.................................................................................................................. 45

1.2.1 Nação: umplebiscito de todos os dias ................................................................................. 46

1.2.2 Nação: unidade política e nacional congruente ................................................................... 51

1.2.3 Significado político de nação: equaliza nação - estado - povo ............................................. 54

1.2.4 Nação: comunidade política imaginada como inerente limitada e soberana ......................... 62

Capítulo 2: Reflexões sobre o vazio da questão nacional na formação do Estado Nação na América Latina ............................................................................................................................... 71

2.1 Introdução ................................................................................................................................ 71

2.2 A questão nacional como desdobramento das contradições que movem o processo histórico na América Latina ............................................................................................................................. 77

2.2.1Primeira contradição: “contradição absoluta” entre Sociedade Ocidental e Sociedades Nativas ..... 81

2.2.1 Segunda contradição: contradição entre forças sociais internas às colônias ................................ 89

2.2.3 Terceira contradição: contradição entre forças sociais no comando da emancipação ................... 93

2.2.4 Quarta Contradição: contradição entre forças sociais internas nos novos Estados Independentes .102

2.2.5 Quinta contradição: desenvolvimento capitalista dependente ................................................. 105

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2.3 Questão nacional em formações sociais dependentes ....................................................... 108

2.3.1 Modo de agir com violência ............................................................................................. 109

2.3.2Vazio da questão nacional na formação do Estado Nação .................................................. 121

2.3.3 Desenvolvimento capitalista dependente e Imperialismo .................................................. 133

2.4 Tarefas nacionais transmitidas a épocas posteriores ......................................................... 150

Capítulo 3: A questão nacional no marxismo da América Latina ................................................ 153

3.1 Introdução .............................................................................................................................. 153

3.2 Nossa América e Pensamento Crítico ..................................................................................... 154

3.2.1 Matriz própria e autônoma de pensamento ....................................................................... 155

3.2.2 O significado da expressão “pensamento crítico” ............................................................. 168

3.2.3 Pensamiento Critico: a crítica em tempo de Revolução .................................................... 173

3.3 Libertação Nacional – socialismo e anti-imperialismo como legado do período revolucionário.181

3.3.1 O legado do período revolucionário dos anos 1920 – 1930 ............................................... 182

3.3.2 O legado do período revolucionário dos anos 1960 – 1970 ............................................... 195

3.4 Questão nacional no Pensamento Crítico da América Latina relacionado às Lutas de Libertação Nacional ...................................................................................................................................... 211

Considerações finais ....................................................................................................................... 235

Bibliografia ................................................................................................................................... 238

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APRESENTAÇÃO

(I) Apresentação

O problema de pesquisa do presente trabalho parte da compreensão de que a América

Latina, a partir das contradições de seu processo histórico de desenvolvimento capitalista,

apresenta peculiaridades na questão das formações nacionais.

Na ciência econômica essas especificidades do desenvolvimento capitalista na América

Latina são amplamente abordadas nos estudos do subdesenvolvimento, capitalismo periférico

e dependente. Essas teorias se constituem a partir da formulação de que o capitalismo sempre

foi um modo de produção mundial, de valorização em escala internacional e universal, mas

que se desenvolve em formações socioeconômicas específicas.

Tomamos esse pressuposto como ponto de partida para uma reflexão na Ciência

Política sobre a questão nacional, com vistas a reunir elementos para examinar a hipótese de

que dessa especificidade deriva um sentido nacional próprio, em se tratando de uma formação

socioeconômica dependente.

Para apoiar essa reflexão trazemos a contribuição de Vito Antonio Letízia1, por meio

de documentos bibliográficos e entrevistas a respeito dessa temática. Nas contribuições de

Letízia vamos destacar o que ele chama de aleijume de nascença da formação nacional nas ex-

colônias do continente a oeste do Atlântico. O aleijume na formação nacional coloca ao

pensamento crítico marxista no caso latino-americano, o tema da Libertação Nacional,

fundamental para maior parte dos povos e que não era uma proposição original de Marx. Para

nos ajudar a sustentar essa hipótese trazemos também as contribuições de Fernando Martinez

Heredia2. A elaboração criativa do marxismo produzido em processos de luta na América

1Vito Antonio Letízia (1937- 2012) foi professor de Economia da PUC SP autor de A Grande Crise Rastejante, Editora Caros Amigos 2012; e de Contradições que movem a história do Brasil e do continente americano, Editora Alameda, 2014.

2 Fernando Martinez Heredia: Doutor em Direito e professor titular adjunto da Universidad de La Habana, onde dirigiu o Departamento de Filosofia. Trabalha como investigador titular no Centro Juan Marinello, do Ministério de Cultura de Cuba. Ensaísta e historiador, foi diretor da revista cubana Pensamiento Crítico, e se dedicou às

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Latina tem como pressuposto a superação das tendências e dilemas entre um particularismo

hipostasiado e um dogmatismo universalista que aponte para uma unidade dialético-concreta

entre o especifico e o universal. Para abordar essa posição metodológica nos apoiamos nas

contribuições de Michael Löwy3 em sua elaboração sobre o marxismo na América Latina.

O objetivo da presente pesquisa é examinar a questão nacional como desdobramento

das contradições que movem o processo histórico na América Latina. Nos marcos do

referencial de análise do método do materialismo histórico dialético, tratando-se de um

processo histórico diferente do que aconteceu na Europa4, com uma base material e social

distinta, é de se supor que o pensamento crítico sobre as determinações dessa realidade tenha

um conteúdo com especificidades próprias, em relação ao assumido nas formulações sobre as

classes sociais em Marx, que reflete a contradição que move o processo histórico europeu (não

homogêneo) e se universalizou como o fundamento do pensamento crítico da classe

trabalhadora em nível mundial.

Em Classes Sociais na América Latina (1971), Florestan Fernandes faz referência à

preocupação com relação às categorias da sociologia que precisam ser adequadas às realidades

da América Latina. (FERNANDES, 2009, p.42).

Segundo Florestan, a dificuldade não está na coexistência e superposição de diferentes

realidades “anteriores a era das sociedades de classe sociais”, mas sim na relação sociológica

entre capitalismo e sociedade. Na América Latina essa relação deve levar em conta que o

capitalismo e a sociedade de classes não são produtos de uma evolução interna e deve-se

considerar que o capitalismo evoluiu na América Latina sem contar com a condição de

desenvolvimento autossustentável e autônomo. Portanto, as classes e relações de classes

pesquisas sobre a revolução, a historia cubana e aos movimentos populares latino-americanos. É autor de uma dezena de livros e de mais de 200 ensaios e artigos publicados em numerosos países. É membro da Unión de Escritores y Artistas de Cuba.

3Michel Löwy: graduado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, doutoramento na Sorbone. É diretor do Centre National de la Recherche Scientifique y foi professor na Ecole des Hautes Etudes em Sciences Ssociales. Autor de Marxismo na América Latina: Uma antologia de 1909 aos dias atuais (2ª edição). Editora Perseu Abramo 2006,.

4Ponderamos que a Europa não é um processo homogêneo. Mas tomamos aqui a referência de conjunto a partir do qual foram elaboradas as categorias de análise do marxismo que se universalizou.

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carecem de dimensões estruturais e de dinamismos societários que são essenciais para a

integração, a estabilidade e a transformação equilibradas da ordem social inerente à sociedade

de classes. O fato de que não existe o modelo pressuposto nas várias descrições clássicas de

“ordem social competitiva” não significa que ela não tenha emergido socialmente na América

Latina. Significa, apenas, que é preciso usar conceitos, categorias analíticas e interpretações

clássicas tendo em vista uma situação histórica peculiar, na qual a realidade se apresenta de

outra maneira. (FERNANDES, 2009, p.42)

Florestan adverte ainda que a ausência de certas dimensões estruturais e de certos

dinamismos faz com que as contradições de classe sejam amortecidas, anuladas e em regra

pouco dramatizadas graças à opressão sistemática, à omissão generalizada e à anomia das

massas despossuídas. Isso acarretou uma impossibilidade teórica evidente: o conceito de

classe social não se configura como uma categoria perceptiva e cognitiva que organiza as

orientações do comportamento coletivo e suas impulsões de negação e destruição da ordem

existente. Todavia, seria falso presumir que os dinamismos de classes sufocados são

suprimidos. As insatisfações de uma classe potencial são mais perigosas para uma sociedade

de classes em formação que o querer coletivo numa sociedade de classes plenamente

desenvolvido. Enquanto na Europa a sociedade de classes pode absorver diferentes tipos de

tensões e de conflitos de classes, preservando dentro de certos limites sua estabilidade e

capacidade de renovação, a América Latina não pode fazer isso face às tensões e conflitos

emergentes que eclodem graças ao aparecimento das relações de classes, sem por em risco sua

estabilidade e, mesmo, sem destruir-se. Portanto, estruturas de classes em formação e

dinamismos de classes ineficientes favorecem a obliteração da “história possível”.

(FERNANDES, 2009, p.42)

Destacamos em Florestan a formulação de que na América Latina a sociedade de

classes que emerge não consegue absorver e orientar as forças sociais da transformação da

ordem social. As sociedades da América Latina nascem condenadas à crise permanente e ao

colapso total e são sociedades em convulsão que estão em busca do seu próprio patamar e

tempos históricos. (FERNANDES, 2009, p.43)

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O exemplo da Revolução Cubana sugere que a explosão pode preceder à formação de

consciência revolucionária propriamente dita, em particular, sua universalização.

(FERNANDES, 2009, p. 44)

Para formulação de nosso problema de pesquisa é fundamental essa ideia desenvolvida

por Florestan Fernandes ao mostrar que não são as classes sociais que são diferentes na

América Latina. O que é diferente é o modo pelo qual o capitalismo se objetiva e se irradia

historicamente como força social. (FERNANDES, 2009, p.47)

Assim como o modo pelo qual o capitalismo institucionalizou -se e desenvolveu-se na

América Latina, atribui especificidade à classe social, nosso propósito é examinar a

especificidade atribuída à questão nacional.

O problema de pesquisa do presente trabalho é, portanto, examinar o lugar das tarefas

nacionais e democráticas em formações sociais dependentes, ou seja, examinar a partir das

especificidades do aleijume de nascença das formações nacionais nas sociedades da América e

das contradições do desenvolvimento capitalista dependente, se a formulação política de um

horizonte de tarefas nacionais pendentes de serem realizadas na constituição enquanto povo -

nação contribui para a organização e lutas dos trabalhadores ou representa um retrocesso, um

rebaixamento de programa partidários ou até uma ameaça?

O lugar para as “tarefas nacionais nas formações dependentes” é um debate polêmico

no pensamento crítico e suas traduções nas estratégias políticas das organizações da classe

trabalhadora. Encontramos inspiração para examinar essa polêmica nos debates do início do

século passado, no âmbito da defesa da autodeterminação dos povos, na qual Lenin (1914) ao

distinguir “nacionalismo de nação opressora” e “nacionalismo de nação oprimida”, identifica

um conteúdo democrático geral em toda luta de nação oprimida.

A polêmica com relação ao lugar das “tarefas nacionais nas formações dependentes” é

sintetizada por ALMEIDA (1997) nos seguintes termos:

A ideia de que havia lugar para “tarefas” nacionais nas formações sociais dependentes apoiava-se, em grande parte, na avaliação de que era iminente uma revolução socialista internacional. Tal avaliação orientava uma estratégia definida em um contexto marcado principalmente por um centro imperialista em torno do qual se gestava um forte potencial revolucionário nas partes coloniais da periferia, assim como entre os povos submetidos no interior de vastos impérios multinacionais, como o austro-húngaro e o russo. Como não se evidenciavam

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grandes questões nacionais na América Latina (a grande exceção era o México), considerou-se que o colapso iminente do capitalismo aniquilaria os próprios fundamentos sobre os quais elas poderiam se apoiar.

O contexto subsequente foi assinalado pela sobrevivência e expansão do capitalismo e pela crescente substituição do colonialismo por formações estatais-nacionais. O resultado foi que, ao invés de sepultadas, as questões nacionais nas formações com Estado “próprio” tenderam a se reproduzir (embora redefinidas) inclusive — o que foi mais surpreendente — nas próprias formações capitalistas “centrais”. Nos processos de revolução nacional, a montagem do Estado tende a ser anterior às outras transformações estruturais, o que faz com que as “tarefas” de dissolução das antigas relações sociais e a constituição de todos os agentes como cidadãos costumem ser bastante árduas. Desta forma, abre-se a possibilidade de reposição de questões nacionais no interior das próprias fronteiras reivindicadas pelo novo Estado-nação, questões fortemente marcadas pela presença de conflitos de caráter étnico. (ALMEIDA, 1997, p. 95)

Na estratégia política de Lenin as tarefas nacionais tinham como pressuposto a

revolução mundial. Uma vez frustradas a expectativa de revolução mundial, qual seria o lugar

das tarefas nacionais nas formações dependentes numa perspectiva de acumulação de forças

para a classe trabalhadora?

Nosso propósito é examinar o lugar das tarefas nacionais a partir das contradições que

movem o processo histórico da América Latina, levando em conta que se por um lado as

formações nacionais dependentes têm um Estado Nação que contribuem para reproduzir a

dependência, por outro, o trinômio: Nação – Estado – Povo nas formações latino-americanas é

portador de contradições que podem apontar para um sentido histórico de superação do

capitalismo.

Esclarecemos que não se trata de um estudo do Estado-Nação em Marx, mas levando

em conta o método de Marx, compreender a partir das especificidades do aleijume de

nascença de formação nacional nas sociedades da América Latina e das contradições do

desenvolvimento capitalista dependente o lugar de tarefas de conteúdo nacional e democrático

pendentes de serem realizadas.

Florestan Fernandes ao se referir a essas especificidades das formações sociais latino-

americanas afirma que “a grande maioria dos países de origem colonial sofreu um

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desenvolvimento capitalista deformado e perverso5 (...) o processo de formação do capitalismo

brasileiro não conheceu as reformas típicas da revolução burguesa, descrita por muitos

historiadores como revolução agrícola, revolução urbana, revolução industrial, revolução

nacional e revolução democrática” (FERNANDES, 1981).

Recorremos a Florestan Fernandes como ponto de partida para pensar em qual seria o

conteúdo dessas tarefas nacionais e democráticas.

"As classes burguesas não se propõem as tarefas históricas construtivas, que estão na base das duas revoluções, a nacional e a democrática; e as classes trabalhadoras têm de definir por si próprias o eixo de uma revolução burguesa que a própria burguesia não pode levar até o fundo e até o fim, por causa de vários fatores (a persistência de estruturas coloniais e neocoloniais que afetam as relações de produção, a distribuição e o consumo; a aliança com burguesias externas imperialistas; o medo permanente de deslocamento, que atormenta os setores nacionais da burguesia - diante dos deserdados da terra e do proletariado, mas, também, diante dos centros imperiais).

Os que repudiam tais tarefas históricas do proletariado por temor do oportunismo e do reformismo ignoram duas coisas. Primeiro, que, sem uma maciça presença das massas destituídas e trabalhadoras na cena histórica, as potencialidades nacionalistas e democráticas da ordem burguesa não se libertam e, portanto, não podem ser mobilizadas na fase em transcurso de organização do proletariado como classe em si. Segundo, que o envolvimento político das classes trabalhadoras e das massas populares no aprofundamento da revolução dentro da ordem possui consequências socializadoras de importância estratégica. A burguesia tem pouco que dar e cede ao medo. O proletariado cresce com a consciência de que tem de tomar tudo com as próprias mãos e, a médio prazo, aprende que deve passar tão depressa quanto possível da condição de fiel da "democracia burguesa" para a de fator de uma democracia da maioria, isto é, uma democracia popular ou operária." (FERNANDES, 1981, p. 13)

No presente trabalho apresentamos uma revisão bibliográfica a fim de reunir

contribuições que permitam examinar a “ausência das massas destituídas e trabalhadoras da

cena histórica que impediu a liberação das potencialidades nacionalistas e democráticas da

ordem burguesa”, o que coloca ao pensamento crítico marxista o tema de tarefas pendentes a

5A despeito do uso do termo “perverso” que pode ser contestado, afinal não há desenvolvimento capitalista que não seja perverso, destacamos o uso por Florestan do adjetivo “deformado” ao se referir ao desenvolvimento capitalista em países de herança colonial, que vai ao encontro da ideia de aleijume de nascença na formação nacional que procuramos desenvolver inspirados em Letizia.

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serem realizadas na construção nacional, sem o qual não se pode pensar em democracia e nem

em uma esfera de desenvolvimento autônomo para povos que aqui habitam.

Para essa reflexão trazemos a contribuição de Letízia, Heredia e Löwy, por meio de

documentos bibliográficos e entrevistas a respeito dessa temática. Ainda que esses autores não

tenham se dedicado especificamente à questão nacional, esses autores partilham de uma

posição metodológica a partir da qual nos interessa compreender a questão nacional.

Nas contribuições de Letízia vamos destacar um método que busca identificar as forças

sociais cujas contradições puseram em movimento cada momento sucessivo do processo

histórico na América Latina. Destacamos ainda nas contribuições de Letizia o que, a partir

dessa análise, ele chama de aleijume na formação nacional das ex-colônias do continente a

oeste do Atlântico. A partir dessa formulação, desenvolvemos um entendimento de que o

aleijume na formação nacional coloca ao pensamento crítico marxista, no caso latino-

americano, o tema da Libertação Nacional, fundamental para maior parte dos povos. Para nos

ajudar a fundamentar o tema da Libertação Nacional relacionada a perspectiva emancipatória,

trazemos as contribuições de Fernando Martinez Heredia. Esse autor foi escolhido entre tantos

outros que se dedicam às formulações sobre a questão nacional na América Latina, por sua

participação efetiva e produção de reflexão crítica na Revolução Cubana que é, na nossa

perspectiva, o exemplo emblemático de Revolução Socialista de Libertação Nacional.

Buscamos identificar um legado do pensamento crítico na América Latina que articula

Libertação Nacional – Socialismo e anti-imperialismo no processo emancipatório. Nesse

sentido, a periodização apresentada por Löwy contribui para que possamos localizar nos

períodos revolucionários na América Latina, notadamente entre as décadas de 1920-30 e

1960-70, a elaboração de uma teoria vinculada com as práticas revolucionárias que, por um

lado, coloca em evidência as contradições profundas que movem a historia no continente, e

por outro lado, aponta para um marxismo criativo portador de um significado potencialmente

revolucionário da questão nacional.

Esses autores reunidos na pesquisa de doutorado foram muito importantes e me

acompanharam durante minha formação acadêmica e militante e, com certeza, devo à

reflexão feita junto a eles grande parte das inquietações desenvolvidas neste projeto de

pesquisa.

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O projeto de pesquisa foi acolhido no NEILS – Núcleo Estudos Ideologia e Lutas

Sociais da PUC SP, que possibilitou essas reflexões se ampliarem para além da minha

trajetória pessoal e militante. Sob a orientação do professor doutor Lúcio Flávio Rodrigues de

Almeida o tema foi ganhando seus contornos mais concretos e a produção teórica do

orientador, que é uma referência sobre questão nacional somada a sua contribuição crítica

junto aos movimentos sociais, se configurou como principal interlocutor crítico da nossa

hipótese de pesquisa.

No NEILS, sob a orientação do Professor Doutor Lúcio Flavio, tomei contato e pude

estudar a obra de Nicos Poulantzas e autores poulantzanos que agregaram um conjunto de

temas sobre as implicações da ideologia nacional na reprodução do modo de produção

capitalista e passaram a ser interlocutores sobre a questão da Libertação Nacional e o

contraponto de como no marxismo há diversas apropriações da questão nacional.

Ao enunciarmos o objetivo de nosso trabalho de estudar a “questão nacional no

pensamento critico da América Latina”, como desdobramento das contradições que movem o

processo histórico nesse continente, tal enunciado nos coloca um desafio que é compreender a

relação entre conteúdo e contingente histórico. Justificando esse título, o que estamos

chamando de “questão nacional” diz respeito ao conteúdo que tende a se universalizar. É usual

falar em questão nacional na América Latina, na Ásia ou na África sem grandes explicitações.

Falar em questão nacional é tão amplo e impreciso como falar, por exemplo, em “questão

agrária”. São conteúdos amplos, que nos interessam à medida que sinalizam a existência de

uma questão pendente. A reforma agrária é uma questão, ao sintetizar uma série de conflitos

em torno da questão do acesso à terra.

Formulamos nosso problema de pesquisa em torno da questão nacional inspirados em

ALMEIDA (1997), que destaca a necessidade de aprofundamento no campo teórico do estudo

da questão nacional e da questão democrática, por meio do exame crítico das formulações

clássicas e a tentativa de desenvolver contribuições que consideramos fecundas.

Em suma, nos planos da prática e da análise política, os adversários do capitalismo encontram-se claramente na defensiva ao se depararem com duas questões cruciais: a questão nacional e a questão democrática. Qualquer tentativa de alterar esta correlação passa, no campo teórico, pelo aprofundamento dos estudos sobre ambos os temas, o que exige um duplo trajeto: o exame crítico das formulações clássicas, com vistas a aprender com os seus acertos e com os seus erros; e a tentativa de

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desenvolver as contribuições que considerarmos fecundas. Este percurso pode contribuir para o avanço das análises de como ambas as questões mencionadas se apresentam na atualidade." ( ALMEIDA, 1997, p. 83)

Para ALMEIDA (1997), é preciso fazer um reexame teórico da relação entre forma de

Estado e processos ideológicos de encenação da comunidade nacional. (ALMEIDA 1997, p.

83)

ALMEIDA (1997) destaca ainda que “isto é parte de um estudo mais amplo: o exame

da ideologia nacional e do seu papel na estruturação das relações sociais (especialmente as

jurídico-políticas) capitalistas”. No artigo “Nacionalitarismo e democracia: para um reexame

da questão nacional”, procura abordar um aspecto bem mais específico dessa relação: a

presença de conteúdos democráticos em determinados tipos de questão nacional, ou seja, das

questões nacionais que emergem em formações sociais dependentes. (ALMEIDA, 1997, p. 83)

Somamo-nos a essa tentativa de contribuir com um reexame da “questão nacional” e

seus desdobramentos nos planos da prática e da análise política dos adversários do

capitalismo, a partir do exame de contribuições do pensamento crítico da América Latina num

momento específico que são os anos de 1960 e 70, quando a Revolução esteve colocada no

continente relacionando libertação nacional – anti-imperialismo – transição socialista.

No que diz respeito ao uso da expressão “pensamento crítico”, a opção se deu em

função da leitura da Revista “Pensamiento Critico”, organizada por Heredia (1966-1971), em

Cuba, que dentro do amplo leque de produção marxista no continente, reuniu autores que

levam em conta o tema da libertação nacional nesse período. Nesse sentido, a libertação

nacional relacionada ao anti-imperialismo e à transição socialista, como ressonância da

Revolução Cubana no continente, configurar-se-ia como uma contribuição criativa e original

do marxismo latino-americano para o marxismo mundial.

Completando a justificativa do título, “América Latina” foi preferida a “Brasil” ou a

qualquer outro país, pelo contingente histórico no qual buscamos identificar elementos da

análise de longa duração histórica em comum nas formações sociais desses países e que foram

colocadas em evidência pelos diversos conflitos sociais nesse período em diversos países da

América Latina.

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A tensão entre o nacionalismo e o internacionalismo, quando se trata de uma

perspectiva emancipatória na luta de classes, tem efeitos práticos na política das organizações

populares que estão em luta na América Latina hoje. Ou seja, é um debate que vai além de um

embate teórico sobre o caráter contraditório entre uma perspectiva anticapitalista e

internacionalista e uma perspectiva anticapitalista nacionalista na obra política de Marx.

Com essa preocupação, tentamos contribuir com esse debate a partir de uma revisão

bibliográfica que nos ajude a colocar a questão nacional como uma questão contraditória. A

pesquisa procura identificar na produção de análises marxistas relacionadas a processos de

lutas anticapitalistas na América Latina, elementos para se pensar a centralidade do espaço

nacional na constituição do proletariado em classe e o internacionalismo como a vocação

dessa classe em confronto com o capital.

(II) Trajetória da pesquisadora

A especificidade do desenvolvimento capitalista na América Latina nos acompanha

desde o início de nossas pesquisas. Um recorte que acreditamos ser frutífero para analisar o

caráter contraditório do Estado Nação é a moeda.

Na peculiaridade do desenvolvimento econômico do capitalismo periférico um dos

recortes flagrantes que compromete a consolidação do Estado-Nação, a soberania e revela a

ausência de uma base material para o desenvolvimento desses povos, é que moeda não é “para

qualquer um”, para qualquer país. Ter moeda é uma primazia dos países centrais e dentre eles

do Estado-Nação hegemônico que emite a moeda mundial e exerce poder sobre as demais

nações, ao organizar o sistema financeiro e monetário mundial, baseado na exclusividade de

senhoriagem internacional.

Esse recorte é em grande medida desdobramento de um estudo da Moeda em Marx.

Desde a graduação em Ciências Econômicas, na PUC SP (2001-2005), eu me interesso por

esse tema que foi especialmente despertado no grupo de estudos da obra Marx, junto ao

professor Vito Antonio Letízia, durante a graduação6.

6 O grupo de estudos que se auto denominava “Sociedade Marxista Buarquista” era composto por estudantes da

graduação em ciências econômicas, no período de 2002 a 2005,, em torno do professor Vito Antonio Letizia

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Tive a oportunidade de aprofundá-lo com a realização da Iniciação Científica, como

bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (2005), sob

orientação Prof. Dr. Carlos Eduardo F. Carvalho, no grupo de pesquisa Moeda e Crédito, com

o tema: O Período Especial na Economia Cubana: a Dupla Moeda, um estudo sobre a

convivência de duas moedas na economia cubana como mecanismo adotado para superação do

chamado “Período Especial”, quando se instalou uma crise sem precedentes no início dos anos

90, como consequência da derrocada do Bloco Socialista, em 1989. Nossa pergunta era: é

possível um país periférico ter soberania econômica? Percebemos que o caso de Cuba,

configura-se como situação ímpar, especialmente se considerarmos a não ortodoxia das

medidas adotadas, a exigência de grande criatividade e resistência do povo cubano e também o

fato de que, nesse mesmo período, a maioria dos países periféricos e subdesenvolvidos

submete sua política econômica às orientações dos organismos financeiros internacionais.

Cuba nos apresenta a experiência de um país pequeno periférico, que ainda que submetido a

um bloqueio econômico, não abandonou a construção nacional e submeteu a questão

monetária ao crescimento econômico, ao pleno emprego e ao levar a cabo conquistas sociais

na construção do socialismo. O interesse em estudar a moeda em Cuba convergia os estudos

sobre moeda em Marx com a militância no Projeto BrasCuba (2001-2005), de intercâmbio

político, cultural e educacional entre Brasil e Cuba, realizado pela Associação Nossa América

(2002-2006). O tema da questão nacional na Revolução Cubana, que foi uma Revolução

Socialista de Libertação Nacional, me acompanha desde então e agora, no doutorado, é

traduzido em preocupação de pesquisa.

O aprofundamento dos estudos da Moeda em Marx se deu também no trabalho de

conclusão de Curso na Graduação em Economia na Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, monografia, sob a orientação Prof. Dr. Mario José de Lima: A Moeda: breve análise

sobre as moedas em países periféricos na década de 90 - um estudo de caso: Brasil e Cuba

(1937- 2012) para estudar Marx. Aos poucos, os marxistas buarquistas se formaram e o grupo de estudo seguiu nos anos de 2006 a 2008, no apartamento do Vito, em Santa Cecilia. No período de 2009 a 2012, a Sociedade Marxista Buarquista se engajou no projeto interludium_reflexões anticapitalistas com Vito Letizia e os companheiros da OSI (Organização Socialista Internacionalista). Em 2009, com o professor Dr. Áquilas Mendes, do departamento de Economia da PUC SP, e com os estudantes interessados em Marx, reativamos o grupo de estudos sob o nome de GEM – Grupo de estudos de Marx, a nova geração.

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(2005), uma comparação nos anos 90 da dupla moeda em Cuba com o Plano Real no Brasil.

Nossas atividades de pesquisa puderam ser aprofundadas no Mestrado em

Desenvolvimento Econômico - Área de História Econômica, do Instituto de Economia, na

Universidade Estadual de Campinas. Nossa dissertação, defendida em 2009, teve como tema

"Moeda e Desenvolvimento no Brasil, na passagem para o século XX" e foi orientada pelo

Professor Doutor José Ricardo Barbosa Gonçalves, buscando fazer uma análise da moeda em

perspectiva histórica, com vistas a compreender como o meio circulante nacional foi funcional

para o desenvolvimento econômico do Brasil no período de constituição de forças produtivas

capitalistas. Comparando as funções da Moeda em Marx com as condições do meio circulante

no Brasil a questão era compreender a moeda possível em países de desenvolvimento de

capitalismo periférico.

Focalizando o período de passagem do século XIX para o século XX, utilizou-se

pesquisa bibliográfica para identificar as referências estruturais desse período de transição

para o processo de produção capitalista, buscando evidenciar contradições colocadas aos

gestores das políticas monetárias na relação entre moeda e desenvolvimento. Utilizou-se

também pesquisa documental para abordar o pensamento de autores significativos na política

econômica nacional do período - Mayrink (1881), Rui Barbosa (1890), Joaquim Murtinho

(1890), Amaro Cavalcanti Soares de Brito (1893); João Pandiá Calógeras (1910); Leopoldo

Bulhões (1914), Ramalho Ortigão (1914); Carlos Inglez de Souza (1924), Pires do Rio (1925),

em suas distintas compreensões sobre o meio circulante e sua relação com desenvolvimento

nacional. Nas considerações finais, o estudo sugere colocar a questão do papel da moeda no

desenvolvimento na passagem para o século XX, numa perspectiva histórica, a partir de um

referencial de análise marxista.

Nesses trabalhos de pesquisa desenvolvidos no âmbito da ciência econômica, nos

inquietava uma sensação que encontramos formulada em Furtado, a saber: as interpretações

dos problemas econômicos por analogias ao que acontecia na Europa impunham um “corpo de

doutrinas” econômicas que, em confronto com a realidade do Brasil, dificultava a realização

de análises consequentes e profundas da moeda que não apenas a diagnosticassem como

“aberrativa e anormal”.

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Nas palavras de Furtado, constituindo a economia brasileira uma dependência dos

centros industriais, dificilmente se poderia evitar a tendência em “interpretar”, por analogias

com o que ocorria na Europa, os problemas econômicos do país. A ciência econômica

europeia penetrava por meio das escolas de direito e tendia a transformar-se em um “corpo de

doutrina”, que se aceitava independentemente de qualquer confronto com a realidade. Ali,

onde a realidade se distanciava do mundo ideal da doutrina, supunha-se que tinha início a

patologia social. Dessa forma, passava-se diretamente de uma interpretação idealista da

realidade para a política, excluindo qualquer possibilidade crítica da doutrina em confronto

com a realidade. Essa inibição mental para captar a realidade de um ponto de vista crítico-

científico é particularmente óbvia no que diz respeito aos problemas monetários. O político

brasileiro, com formação de economista, estava preso por uma série de preconceitos

doutrinários em matéria monetária, que eram as regras do padrão-ouro. Na moeda que

circulava no Brasil via-se apenas o aspecto “patológico”, ou seja, sua inconversibilidade.

(FURTADO, 1968, p. 168) 7

O “aspecto patológico do meio circulante nacional” ou o "aspecto patológico do

desenvolvimento econômico" é uma característica compartilhada pelas economias da América

Latina, que historicamente estiveram presos aos preceitos doutrinários desde as regras do

padrão ouro e, desse modo, não desenvolveram instrumentos de um ponto de vista crítico-

científico para captar na realidade o que diz respeito aos problemas monetários e suas

consequentes políticas econômicas, o que levou recentemente alguns países à dolarização da

economia nacional como é o caso do Equador (2000), ou ao currencyboard que, na Argentina

(1991-2001), levou a paridade peso-dólar.

A pesquisa de doutorado teve motivação em examinar “o outro lado da moeda”, para

além da “patologia do meio circulante nacional” o caráter contraditório, desforme e instigante

7 Ao historiador das ideias econômicas no Brasil não deixará de surpreender a monótona insistência com que se chama de aberrativo e anormal tudo que ocorre no país: a inconversibilidade, os déficits, as emissões de papel moeda. Essa “anormalidade” secular não chega, entretanto, a constituir objeto de estudo sistemático. Com efeito, não se faz nenhum esforço sério para compreender tal anormalidade, que em última instância era a realidade dentro da qual de vivia. Todos os esforços se gastavam numa tarefa que a experiência histórica demonstrava ser vã: submeter o sistema econômico às regras monetárias que prevaleciam na Europa. Esse enorme esforço de mimetismo – que derivava de uma fé inabalável nos princípios de uma doutrina que não tinha fundamento na observação da realidade – se estenderá pelos três primeiros decênios do século XX. (FURTADO, 1968, p.168)

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da “questão nacional”. A transição da pesquisa em ciência econômica para a ciência política

foi motivada pelo interesse em buscar mais elementos para examinar as contradições em torno

da questão nacional. Ou seja, relacionar o desenvolvimento econômico subdesenvolvido de

países periféricos à (de)formação do Estado nacional para reunir elementos que confiram

especificidade ao conteúdo da questão nacional na América Latina.

A violência que buscamos identificar como característica do tipo de contradição que

move o processo histórico na América está impressa nas formas e intensidade de exploração

da força de trabalho e também na imposição da não subordinação da economia aos interesses

de desenvolvimento dessas nações capitalistas, que se manifesta concretamente na

impossibilidade de ter moeda, ou na renúncia dessa dimensão da soberania nacional própria do

desenvolvimento capitalista. Em nações aleijadas predominam políticas econômicas exóticas

para o padrão de gestão da moeda nos países centrais, que revelam a fragilidade e dependência

dessas economias e sua subordinação ao Imperialismo, via o enquadramento nas políticas

ortodoxas e exigências das instituições internacionais como Fundo Monetário Internacional,

Banco Mundial e grandes corporações.

E o outro lado da moeda? Quantas vezes a classe operária do continente é vista como

débil ou inexistente nos processos de luta e resistência? Presos ao esquema: burguesia e

proletariado não se têm instrumentos de um ponto de vista crítico-científico para captar na

realidade o protagonismo popular, captar o tipo de contradição que coloca a classe em

movimento e que é a base para um pensamento crítico de conteúdo anticapitalista e anti-

imperialista no continente.

Desse modo, com o propósito de ampliar nossa formação e de dar continuidade ás

atividades de pesquisa, em 2011, ingressamos no Doutorado em Ciências Sociais do Programa

de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo e passamos a participar das atividades do NEILS - Núcleo de Estudos de Ideologias e

Lutas Sociais, coordenado por nosso orientador, o Professor Doutor Lúcio Flávio Rodrigues

de Almeida.

Paralelamente, iniciei minha carreira docente na PUC SP (2008), atuando como

professora no departamento de Ciência Econômica da PUC/SP, tendo trabalhado nas

disciplinas da área de história econômica, economia política e economia brasileira.

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Na militância, depois da experiência no movimento de solidariedade a Cuba na

Associação Nossa América, ingressei na Consulta Popular, organização da qual faço parte,

contribuindo nas tarefas de formação política dos militantes. Também contribuo como

professora na Escola Nacional Florestan Fernandes do MST. Essa experiência de processos

formativos junto aos movimentos sociais foram fundamentais para suscitar as indagações que

busco aprofundar na presente pesquisa. Destaco nas iniciativas de formação desse campo

político o Curso Realidade Brasileira, que cursei a primeira turma (Turma Paulo Freire),

realizada em São Paulo (2002 a 2003), que resgata um legado de interpretações teóricas, pelo

qual nos aproximamos desta pesquisa. Acrescento também o Curso Teoria Politica Latino-

americana realizado na Escola Nacional Florestan Fernandes, que cursei na primeira turma,

em 2007, (turma Ernesto Che Guevara) e que foi uma experiência fundamental para me

aprofundar em questões políticas na América Latina e fazer um estudo sistemático dos autores

selecionados no capítulo 3 dessa pesquisa.

Registro que grande parte das entrevistas com Fernando Heredia foram realizadas em

contextos de formação de militantes (2007, 2011, 2013 e 2014). E grande parte das entrevistas

com Vito Letizia foram realizadas no âmbito do projeto de Interludium - reflexões

anticapitalistas, entre 2011 e 2012, denominado inicialmente: “o balanço de Vito Letizia sobre

a experiência da “esquerda” dos quais foram elaborados coletivamente 4 roteiros de

entrevistas, respectivamente sobre : (1) A Revolução Francesa: a origem das aspirações

modernas de liberdade e igualdade; (2) A socialdemocracia europeia: as aspirações de

liberdade e igualdade nas mãos da classe trabalhadora; (3) A Revolução Russa: as aspirações

de liberdade e igualdade em poder do Partido Bolchevique; (4) O Partido dos Trabalhadores

(Brasil): o esvaziamento das aspirações de liberdade e igualdade. Em outubro de 2014, a

última parte dessas entrevistas foi publicada em forma de livro póstumo de Letizia

“Contradições que movem a história do Brasil e do Continente Americano” 8

8LETIZIA, Vito. Contradições que movem a história do Brasil e do Continente Americano” . Organização CEMAP / Interludium. 1º edição. São Paulo: Alameda, 2014.

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(III) Inquietações e motivações

Em decorrência de experiências acadêmicas e profissionais, como tese de doutorado

nos propomos a investigar o tema a "questão nacional no pensamento crítico da América

Latina", que representa um esforço de localizar um momento de contribuição do pensamento

crítico da América Latina sobre a questão nacional para o marxismo a partir da ressonância de

uma revolução socialista de libertação nacional que triunfou no continente em 1959.

Ponderamos que o desafio teórico de abordar o marxismo na América Latina está

menos situado na oposição entre eurocentrismo e reinvenções, e mais na contradição entre o

universal e o particular, ou seja, o desafio que é teórico e prático de universalizar a

particularidade e particularizar a universalidade.

Talvez o marxismo não tenha desenvolvido o suficiente para alcançar uma nova

universalização como foram às aspirações colocadas como pano de fundo da Revolução

Francesa. O desprestigio do socialismo com o fim da União Soviética (URSS) comprometeu

em grande medida o pensamento crítico, com o fim da URSS enquanto portadora de uma

perspectiva de revolução anticapitalista para o mundo. A ressonância da Revolução Cubana

coloca desafios e dilemas para o pensamento crítico da classe trabalhadora sobre a transição

socialista, os quais nos propomos a analisar na presente pesquisa, buscando qualificar nesse

debate a questão de soberania, autodeterminação dos destinos do povo e independência como

questões atuais da perspectiva dos interesses da classe trabalhadora.

Além disso, buscamos levar em conta que as organizações de trabalhadores de modo

geral esvaziadas de conteúdo de ruptura com o capitalismo e mantidas no terreno da defesa

dos interesses materiais imediatos dos trabalhadores, transformaram-se em agentes a serviço,

mais que do capitalismo em geral, da remuneração do capital fictício em todos os níveis, da

alta finança empresarial. Tempos de valorização do capital por dominância financeira nos

remetemos ao entendimento que Marx desenvolve na seção 5º do livro três de O Capital que

só como dinheiro mundial, capital fictício encontra a forma adequada ao conteúdo do dinheiro,

ou seja, em sua forma abstrata com vínculo tênue ou inexistente com o processo produtivo e

livre dos limites da forma de moeda emitida pelo “poder de senhoriagen” dos Estados

Nacionais.

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O Estado nação é condição para a reprodução capitalista, a medida que a emergência

do intervencionismo Estatal no poder aquisitivo do papel-moeda tornou possível o expediente

de rebaixamento de salário real por causas aparentemente impessoais, exteriores à relação de

trabalho. Com mediação do Estado na relação entre vendedores de força de trabalho e

capitalistas passam a ser vigentes formas de transferência de riqueza social para o capital, por

exemplo, por meio de depreciação monetária e pela da expansão da dívida estatal. Ou seja,

para o Estado, o papel-moeda significa um poder acrescido de criar valor fictício sob a forma

de dívida estatal, porque, não mais havendo obrigação de manter um lastro de metal precioso,

a quantidade de moeda posta em circulação é arbitrada com grande liberdade e a dívida estatal

se torna o principal instrumento de regulação do poder aquisitivo da moeda. Do ponto de vista

do capital, cresce a importância dos direitos de propriedade fundados sobre a moeda em

relação aos direitos fundados sobre o processo de produção e circulação. O papel-moeda

significa a abertura de possibilidades infinitas de expansão do capital portador de juro, com

base em moeda de crédito que cresce ao sabor dos gastos do estado, e não somente em função

da produção capitalista. Do ponto de vista dos trabalhadores, o papel-moeda significa o

descolamento do preço da força de trabalho dos preços das mercadorias porque a inflação de

preços controlada pelo Estado, sempre sem correção automática do poder aquisitivo do salário,

é um instrumento de política monetária e um fato normal da economia do papel-moeda.

Ao mesmo tempo em que o Estado nação é condição é também limite à reprodução

capitalista, à medida que o capital, com a força expansiva que lhe é própria, tende como papel

moeda invadir todo o espaço da circulação de valor, até, no limite, abolir a circulação de

valor-equivalente de mercadorias sob a forma de moeda manual, substituindo-a pela

circulação de valor-capital sob a forma de cheques ou meios eletrônicos de todo tipo, que só

transferem valor entre as instituições em que se acumula capital portador de juro. Nesse

sentido, compreendemos em Marx, que só como papel-moeda a forma dinheiro encontra a

forma adequada a seu conteúdo, ou seja, em sua forma abstrata “livre” do valor-equivalente de

mercadorias e dos limites das formas de moeda emitida pelo poder de senhoriagem dos

Estados nacionais.

Portanto, é possível reconhecer os limites do Estado Nação para a forma monetária do

valor à medida que só como dinheiro mundial a forma dinheiro-mercadoria consegue alcançar

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sua vocação de infinito. E, ao mesmo tempo, reconhecer o Estado Nação como condição para

a forma monetária do valor, na medida em que, a relação social de produção (explorador e

explorados) que corresponde à geração de mais-valia e a relação social jurídica de propriedade

entre quem comanda trabalho e quem não comanda trabalho, são relações sociais de produção

que dependem do direito de propriedade legitimado pela existência jurídico-política do Estado

Nação.

O capitalismo sempre foi um modo de produção mundial, de valorização em escala

internacional, universal, mas se desenvolve em formações socioeconômicas com contradições

específicas como motor da história. Desse modo, na modernidade a forma histórica de Nação é

condição e limite da valorização do Capital (o que se evidencia na atuação do Estado Nação

nos períodos de crise).

O outro lado da moeda: a forma histórica de Nação é condição e limite ao movimento

(processos de luta) e seu desdobramento como pensamento crítico da classe trabalhadora. Ou

seja, o outro lado da moeda, busca compreender o movimento das contradições da perspectiva

dos trabalhadores que produzem a riqueza no capitalismo periférico, reunindo elementos para

examinar o conteúdo anticapitalista do pensamento crítico marxista na América Latina, criado

historicamente a partir dos processos de luta e resistência da classe trabalhadora no continente,

com destaque para o período 1960-70 pós Revolução Cubana.

Nossa inquietação reside em examinar as contradições do desenvolvimento capitalista

na América Latina que, além de brindar o desenvolvimento econômico da impossibilidade de

ter moeda, coloca ao pensamento crítico marxista próprio do continente o tema das tarefas

pendentes de serem realizadas na construção nacional, sem o qual não se pode pensar em

nenhuma esfera de desenvolvimento autônomo e em função do desenvolvimento dos povos.

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(IV) Nossos propósitos e escolhas

Na história podemos identificar pelo menos dois tipos de apropriações da questão

nacional9. Uma delas é a que predomina a questão nacional como ideologia burguesa.

Exemplos dessa apropriação vão desde movimentos de massa em nome da questão nacional

que levaram a nazismo/fascismo ou processos que em torno da questão nacional foram feitas

alianças de classe entre a burguesia e os trabalhadores que comprometeram o avanço de nas

lutas desses últimos.

A segunda forma de apropriação pode ser caracterizada pela presença do apelo ao

"nacional" em siglas representativas de organizações, movimentos e partidos que não separam

libertação nacional de socialismo e anti-imperialismo em seus processos de lutas.10

Analisar a questão da apropriação do "nacional" é relevante, pois se trata de uma

temática presente em formulações como as do nacional desenvolvimentismo, e atualmente no

debate sobre o chamado neodesenvolvimentismo em alguns países da América Latina,

defendido com propostas ancoradas em ideologias e matizes políticas diversas. Esse debate,

em grande medida, coloca na ordem do dia a relação do Estado Nação com o desenvolvimento

capitalista dependente.

É nesse cenário de diversidade de apropriação do "nacional" que colocamos a

indagação que acreditamos ser importante para a classe trabalhadora, sobre se a formulação

9ALMEIDA (1997) se refere a um duplo caráter das lutas nacionais: “Uma fonte inesgotável de equívocos sobre o nacionalismo consiste em tratá-lo diretamente, sem considerar a estrutura ideológica que lhes confere pertinência política. É o estudo da ideologia nacional que possibilita a inteligibilidade teórica do nacionalismo. A ideologia nacional postula a existência de um igualitarismo específico que se constitui entre os membros de uma comunidade cuja soberania se expressa no Estado-Nação. Compartilho da tese de que esse igualitarismo, que apresenta a todos os membros da referida comunidade como indivíduos – sujeitos, é fundamental para a reprodução da dominação capitalista de classe. Daí o duplo caráter das lutas nacionais nos processos de revolução burguesa. Por um lado, existe um aspecto "progressista", pois estes processos se voltam para constituição de uma nova estrutura jurídico-política (burguesa) indispensável para a instauração desse igualitarismo específico: o igualitarismo nacional. Por outro lado, este igualitarismo se articula a um novo tipo de dominação de classe (a dominação capitalista), sendo fundamental para a reprodução desta”. (ALMEIDA, 1997, p. 86)

10 Exemplos: Ação Libertadora Nacional (Brasil, 1966), Frente Sandinista de Libertação Nacional (Nicarágua, 1979), Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (El, Salvador,1980), Exercito Zapatista de Libertação Nacional (México, 1994) etc. Também processos como no Vietnã, China, Coreia, Argélia e Estados na África que se qualificaram como socialistas nas primeiras décadas de sua existência enquanto tal, e foram marcados por movimentos políticos que desejavam unir a justiça social a busca de Libertação Nacional.

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política de um horizonte de tarefas nacionais pendentes de serem realizadas contribui para a

organização e lutas dos trabalhadores ou representa um retrocesso, um rebaixamento de

programa partidários ou até uma ameaça?

A busca de respostas para essa questão deve levar em conta necessariamente essa dupla

apropriação do "nacional" tanto em termos da primeira forma de apropriação, relacionada a

questão nacional como ideologia burguesa quanto em termos da segunda forma de apropriação

do "nacional", relacionado a processos emancipatórios11.

Nosso propósito é focalizar essa segunda apropriação do "nacional" por seu vínculo

umbilical com a história da América Latina, que por suas características trouxe novas

formulações e modos de pensar o desenvolvimento, a democracia e processos de transição

socialista com um conteúdo original em relação ao marxismo, especialmente na questão do

internacionalismo proletário.

Destacamos que o processo da pesquisa foi marcado por um momento importante na

conjuntura brasileira em meados de 2013, nas chamadas “Jornadas de Junho” em que a

questão dos símbolos nacionais, notadamente a disputa da bandeira por forças da esquerda e

da direita. A questão nacional concretamente colocada nas ruas nessa experiência de

movimentos de massa no país, com propósitos antagônicos e composições sociais distintas,

reforçaram nosso interesse pelo tema.

(V) Metodologia da pesquisa

Nossa pesquisa é de natureza exploratória e envolve levantamento bibliográfico e

análise de exemplos que estimulam a compreensão da problemática analisada, qual seja, a

questão nacional como desdobramento da contradição que move o processo histórico na

América Latina.

Essa modalidade de pesquisa, a exploratória, tem a finalidade básica de desenvolver,

esclarecer e modificar conceitos e ideias para a formulação de abordagens posteriores. Desse

11Uma fonte inesgotável de equívocos sobre o nacionalismo consiste em tratá-lo diretamente, sem considerar a estrutura ideológica que lhes confere pertinência política (ALMEIDA, 1997, p. 86)

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modo, visa proporcionar um maior conhecimento acerca de um assunto, a fim de que se possa

formular problemas mais precisos ou criar hipóteses que possam ser pesquisadas por estudos

posteriores (GIL, 1991, p. 43).

As pesquisas exploratórias, visando proporcionar uma visão geral de um determinado

fato, têm como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema com vistas a torná-

lo mais explícito ou a facilitar a construção de hipóteses. (GIL, 1991, p. 45).

Com relação à pesquisa bibliográfica, sabemos que qualquer estudo científico supõe e

requer uma prévia pesquisa bibliográfica, seja para sua necessária fundamentação teórica, ou

mesmo para justificar seus limites e para os próprios resultados.

Os autores Cervo e Bervian (1996, p. 48) afirmam que a pesquisa bibliográfica é meio

de formação por excelência. Como trabalho científico original, constitui a pesquisa

propriamente dita na área das Ciências Humanas. Como resumo de assunto, constitui

geralmente o primeiro passo de qualquer pesquisa científica. É por meio da pesquisa

bibliográfica que fazemos contato direto com tudo o que foi publicado, dito ou, de alguma

outra forma, registrado sobre determinado tema, inclusive por meio de conferências e debates.

A pesquisa bibliográfica muito se assemelha à pesquisa documental. Alguns detalhes,

porém, ajudam a evidenciar as sutis diferenças entre os dois tipos: a) as fontes de dados da

pesquisa documental são sempre primárias, algumas delas compiladas no momento do fato,

outras algum tempo depois, e que não foram tratadas com o foco específico para o tema em

estudo; b) a pesquisa bibliográfica, sempre utilizando fontes secundárias, compreende as obras

já editadas abordando o tema em estudo; c) os objetivos da pesquisa bibliográfica geralmente

são muito amplos, sendo, assim, indicada para gerar maior visão sobre o problema ou torná-lo

mais específico; enquanto isso, os objetivos da pesquisa documental são específicos, quase

sempre visando à obtenção dos dados em resposta a determinado problema.

Os dados obtidos de livros, revistas científicas, teses, relatórios científicos, cuja autoria

é conhecida, não se confundem com documentos, isto é, dados primários, que propiciam o

exame de um tema sob novo enfoque ou abordagem, possibilitando conclusões inovadoras,

por meio da análise de seu conteúdo. A principal característica da pesquisa documental está

relacionada com a sua fonte, a qual restringe-se a documentos escritos ou não-escritos, sempre

de fontes primárias.

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34

Além da pesquisa bibliográfica, usamos as entrevistas, como procedimento

metodológico. De acordo com Miguel (2010), a entrevista, nas suas diversas aplicações, é uma

técnica de interação social, interpenetração informativa, capaz de quebrar isolamentos grupais,

individuais e sociais, podendo também servir à pluralização de vozes e à distribuição

democrática da informação. Ainda para essa autora, em seus mais diversos usos no âmbito das

Ciências Humanas, constitui-se sempre um meio cujo fim é o inter-relacionamento humano.

Miguel (2010) salienta que muitos autores que tematizaram esse assunto atentaram

para o fato de a entrevista ser uma situação psicossocial complexa. E cita Garrett (1981) que

amplia o âmbito dessa prática humana ao afirmar que todas as pessoas, de uma maneira ou de

outra, são envolvidas na entrevista, seja entrevistando, seja ainda sendo entrevistadas. Em

ambas as situações, residiriam aspectos objetivos e subjetivos. Um ponto básico de sua

teorização é projetar a técnica para a arte da entrevista, identificando no ato de entrevistar,

acima de tudo, a arte de ouvir, perguntar e conversar.

Concordamos com Miguel (2010) quando afirma que entrevistamos porque temos

interesse nas histórias de outras pessoas. Este seria, segundo Seidman (1991), o principal

motivo de se realizar uma entrevista. Temos interesse pelo outro, por suas histórias, reflexões,

ordenamentos dos fatos e acontecimentos. O propósito da entrevista detalhada não seria,

portanto, o de fornecer respostas a perguntas específicas, nem mesmo o de testar hipóteses ou

avaliar algo específico, mas buscar tentativas de compreender a experiência de outras pessoas

e os significados que elas atribuem para essas experiências. Na maioria dos casos, como nos

alerta o autor, seria possível alcançar os resultados da nossa observação sobre o outro, embora

dificilmente nos seja possível ter acesso à compreensão subjetiva desse indivíduo.

Precisaríamos, então, reconhecer os limites dessa compreensão.

Para Schutz (apud SEIDMAN, 1991, p. 12-15), o caminho mais próximo dessa

compreensão subjetiva seria nossa capacidade – como pesquisadores – de colocar o

comportamento dentro do contexto1. Dessa forma, a entrevista possibilitaria acesso ao

contexto do comportamento das pessoas e promoveria um caminho para o pesquisador

compreender os significados desse comportamento. Miguel (2010) destaca que a hipótese

básica da pesquisa a partir da entrevista é a de que os significados que as pessoas atribuem a

suas experiências afetariam o modo como elas as executam.

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A entrevista, de acordo com Lüdke e André, “permite correções, esclarecimentos e

adaptações que a torna sobremaneira eficaz na obtenção das informações desejadas” (1994, p.

34).

Com essas reflexões sobre o uso desse procedimento metodológico, realizamos

entrevistas com o Professor Vito Antonio Letízia, no período de março de 2011 a maio de

2012, na cidade de Gramado, Rio Grande do Sul, a partir de roteiro semi-estruturado. Fizemos

as gravações áudio, para posterior transcrição. Também entrevistamos o professor cubano

Fernando Matinez Heredia, em suas estadas no Brasil, com uma primeira coleta em 2008 e

outra realizada em 2011 em 2013 e em 2014. Também nesse caso foram feitas gravações em

áudio para posterior transcrição convertida em língua portuguesa.

Vito Antonio Letizia estudou História Natural e Filosofia ao longo da primeira metade

dos anos 1960 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Geografia, em meados dos anos

1970, na Universidade de Paris VIII e Economia Política, ao longo dos anos 1980, na

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi professor de História Natural da rede

estadual de ensino de segundo grau do Rio Grande do Sul (1965-1968), professor de

Economia Política e Formação Econômica do Brasil junto à PUC-SP, entre 1988 e 2007,

diretor do Centro de Documentação do Movimento Operário Mário Pedrosa, desde 1984 e

articulista político frequente na imprensa militante no Brasil e na Europa de 1974-1987 e

eventual, a partir de então. Durante essas atividades, desenvolveu estudos próprios sobre

economia política, assim como formação econômica e desenvolvimento social do Brasil e de

países do terceiro mundo, particularmente da América Latina. Letizia foi um grande

observador e um excelente ouvinte, que não queria ditar regras, mas sim aprender a se

movimentar com os anseios e necessidades dos trabalhadores. A sua vontade férrea, superando

até mesmo os desafios de uma doença perversa nos últimos dois anos e meio de vida, seu

compromisso com os movimentos sociais e toda a sua vasta cultura e talento revolucionários,

que sempre estiveram postos a serviço dos pobres e oprimidos em sua luta contra o

capitalismo estão contidos nos inúmeros textos e artigos que ele produziu.

Fernando Martinez Heredia nasceu em Cuba, em 1939. Estudou na Universidade de La

Habana e de 1959 a 1963 graduou-se em Direito. Cursou inúmeras disciplinas da Licenciatura

em Ciências Sociais e Direito Público assim como da Licenciatura em História. Em 1961

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cursou o Plano Fidel para formar Professores da Secundária Básica e foi professor de Estudos

Sociais. Em 1962, foi enviado à Escola Raúl Cepero Bonilla. a um curso intensivo para formar

instrutores de Filosofía, Selecionado, passou a ser instrutor e logo professor no Departamento

de Filosofía da Universidade de La Habana, na qual permaneceu de 1963 a 1971. De 1966 a

1969 foi seu diretor e membro do Conselho Universitário. Realizou estudos posgraduados

sobre Filosofía durante nove anos. Realizou numerosas tarefas de análise de investigações

sociais de temas cubanos e de América Latina para instituições da Revolução durante esse

período. Foi o segundo responsável de Edição Revolucionária, que nasceu no Departamento

em 1965 e ali funcionou até 1966, quando passou a ser o Instituto Cubano do Livro. No

Departamento de Filosofía, realizou e participou de um número elevado e diversificado de

tarefas durante seus nove anos de existência. Heredia participou intensamente na maior parte

delas, destacando-se: a equipe de análise para a implantação de um novo sistema nacional da

economia, em 1966-1967; em todo processo de universalização do ensino universitário e

acesso dos trabalhadores à Universidade que foi impulsionada pelo Reitor José M. Miyar, a

partir de 1969.

Foi um dos fundadores de El Caimán Barbudo, em 1966 e, no final desse ano fez parte

de grupo que criou a revista mensal Pensamiento Crítico, tendo sido seu diretor durante todo o

tempo em que foi publicada, de 1967 a 1971. Com o fechamento da revista e a dissolução do

Departamento passou a dedicar-se a tarefas de investigação superior na Reitoria da

Universidade de La Habana. Em 1976 passou para o Centro de Estudos sobre Europa

Ocidental, ligado ao Comitê Central do Partido Comunista Cubano onde foi investigador e

chefe de duas seções. O Departamento de América indicou ao Centro de Estudos sobre

América, em 1984, onde foi Investigador titular, chefe de Departamento e membro do

Conselho Científico, até que se transferiu em 1994, ao Centro de Investigações culturais Juan

Marinello, do Ministério de Cultura. Neste centro trabalha como investigador; é o presidente

da Cátedra de Estudos Antonio Gramsci desde sua criação em 1997, e membro do Conselho

Científico. Fernando Heredia realizou e participou de uma série de investigações sociais de

1964 até hoje, a maioria das realidades contemporâneas sobre a história de Cuba e inúmeras

questões da América Latina. Nos últimos vinte anos, ele continuou suas pesquisas e reflexões

sobre a realidade cubana, que se expandiu e sistematizou sua dedicação à história de Cuba, e

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também a questões sociais e políticas na América Latina.

Com o propósito de orientar nossa análise das contribuições coletadas por meio da

pesquisa bibliográfica e nas entrevistas, buscamos entender o que isso significaria.

Recorremos a estudos de Chartier (1998, 2009), para quem a leitura é sempre uma prática

criadora, inventiva e produtora, e que, portanto, as significações dos textos, quaisquer que

sejam, serão constituídas pelo leitor/analista diferencialmente pelas leituras que se apoderam

desses textos. O ato de ler dá ao texto lido significações plurais e móveis, situadas no encontro

das diversas formas de ler (coletivas ou individuais, herdadas ou inovadoras, íntimas ou

públicas) e dos “protocolos de leitura depositados no objeto lido” (2009, p.78) pelo autor que

busca indicar a compreensão de seu texto e também pelo impressor que compõe as formas

tipográficas em conformidade com os hábitos de seu tempo.

Buscamos então entender as contribuições da Análise Textual Discursiva (ATD) e

tomamos como base, os estudos de Moraes e Galiazzi (2003, 2006 e 2011) sobre a ATD, que a

caracterizam como uma metodologia na qual, a partir de um conjunto de textos (ou

documentos) é possível construir um “metatexto” que descreva e interprete os sentidos e

significados que o pesquisador/analista compreenda a partir do “corpus” desse material.

A ATD propicia uma pesquisa qualitativa envolvendo análises mais rigorosas e

criteriosas de textos diversos, e a partir daí uma melhor compreensão dos fenômenos

investigados, para em seguida culminarem no desenvolvimento de um metatexto que seja

representativo desse movimento.

O primeiro passo do ciclo de ATD é tido como um momento de intenso contato

e impregnação com o material de análise, envolvendo leituras e releituras desse material e

tendo por base o entendimento de que os textos não carregam um significado único a ser

identificado, trazem significantes que exigem que o analista construa significados a partir de

suas teorias, seu foco de pesquisa e pontos de vista, o que requer assumir-se como autor das

interpretações que constrói a partir dessa dinâmica de análise. Não existe uma leitura única,

neutra e objetiva, todo texto possibilita uma multiplicidade de leituras. Toda leitura já é uma

interpretação do analista do dito e do não dito no texto.

A partir desse processo de impregnação e intenso contato com as informações

provenientes do material analisado, é feito um reconhecimento do que é essencial para a

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emergência de novas compreensões. É um processo de constante desestabilização e

reestruturação da ordem a partir da desordem promovida pela unitarização, pois “o

estabelecimento de novas relações entre os elementos unitários de base possibilita a

construção de uma nova ordem” (MORAES e GALIAZZI, 2011, p.21), o que significa novas

compreensões em relação aos fenômenos investigados. Esse exercício de elaboração e

compreensão de sentidos deve levar em consideração a polissemia implícita em qualquer

texto, o que pode originar diferentes tipos de leituras e interpretações.

Com base nesse processo de impregnação das informações dos textos, passa-se ao

segundo momento da ATD, que é a busca pelo estabelecimento de relações/comparações entre

as unidades definidas no passo anterior, levando ao agrupamento de elementos semelhantes: a

categorização (MORAES, 2003). Entendemos ser este um processo de comparação constante

entre as unidades definidas no processo de análise, levando a agrupamentos de elementos

semelhantes. Entretanto, embora apresentem unidades conceituais homogêneas, esses

conjuntos podem se apresentar de forma que sejam analisados como complementares, ou seja,

a análise sobre as características gerais e amplas de cada complexidade dos conceitos

envolvidos podem promover ligações entre essas categorias selecionadas.

Para Moraes (2003), frente às múltiplas leituras de um texto, não será possível adotar-

se sempre o critério de exclusão única entre as categorias emergentes ou pré-definidas. De

acordo com pesquisas na área da linguística, “as categorias dificilmente apresentam

delimitações precisas” (MORAES e GALIAZZI, 2011, p.85).

(VI) Objetivos e questão de pesquisa

Mencionamos anteriormente as finalidades de nossa investigação e para melhor situar a

exploração da temática, reunimos objetivos da pesquisa como também formulamos questões

que orientam a investigação.

Objetivo geral da pesquisa: examinar a questão nacional como desdobramento das

contradições que movem o processo histórico na América Latina.

Objetivo específico da pesquisa: examinar a partir das especificidades do aleijume de

nascença das formações nacionais nas sociedades da América Latina e nos desdobramentos

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das contradições do desenvolvimento do capitalismo dependente uma formulação original

sobre a questão nacional que se desdobra dos momentos revolucionários na América Latina

quando essas contradições são acirradas, notadamente nos anos 60.

Questão de pesquisa: qual o lugar das tarefas de conteúdo nacional e democrático em

formações sociais dependentes?

(VI) Estrutura do texto

Procurando reunir essas ideias, comprometidas com o pensamento crítico de uma

perspectiva da classe trabalhadora e com as transformações sociais, estruturamos a

apresentação de nossa pesquisa nos seguintes capítulos:

O Capítulo 1, intitulado “Formas de apropriação da questão nacional”, nos dedicamos

a uma revisão bibliográfica sobre autores referência sobre a questão nacional. Reunimos em

Renan (1882), Gelnner (1983), Anderson (1991) e Hobsbawm (1990), contribuições sobre o

tema da nação e nacionalismos, a partir das quais buscamos examinar o que seria o conteúdo

de movimentos nacionalistas e as determinações do Estado Nação moderno. Buscamos

examinar nessa revisão bibliográfica elementos que contribuam para mostrar o caráter

contraditório da questão nacional.

O Capítulo 2: Reflexões sobre o vazio da questão nacional na formação do Estado

Nação na América Latina tem o objetivo de examinar “a questão nacional como

desdobramento da contradição que move o processo histórico na América Latina.” Nesse

capítulo, reunimos elementos para compreender as especificidades do Estado Nação e do

desenvolvimento capitalista dependente na América Latina, por meio da metodologia sugerida

por Letizia (2012) de identificar as forças sociais, cujas contradições puseram em movimento

cada momento sucessivo do processo histórico na América Latina. Nossa abordagem prioriza

um recorte que é identificar as especificidades da questão nacional que se desdobram desse

processo histórico. No item “a questão nacional em formações sociais dependentes” a partir

das contradições que movem o processo histórico na América Latina identificadas por Letizia,

desenvolvemos o desdobramento das especificidades que são colocadas à questão nacional

nesse processo, com destaque para a violência como desdobramento da rejeição absoluta das

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sociedades nativas negadas; o vazio da questão nacional no Estado Nação como

desdobramento do aleijume de nascença do Estado Nação na América Latina; e o padrão da

luta de classes como desdobramento do desenvolvimento capitalista dependente e da relação

de com a dominação imperialista. Concluímos o capítulo com “tarefas nacionais transmitidas

a épocas posteriores”, relacionando nosso problema de pesquisa com as problemáticas

referentes à dimensão política do Estado Nação e a dimensão econômica do desenvolvimento

capitalista dependente que se desdobram desse método de análise que identifica as forças

sociais cujas contradições puseram o processo histórico em movimento em cada momento

sucessivo do processo histórico.

No Capítulo 3, "Questão nacional no marxismo da América Latina” buscamos

examinar a questão nacional relacionado às lutas de libertação nacional. Num primeiro

momento reunimos elementos para caracterizar o que estamos chamando de pensamento

crítico na América latina tomando como referência o significado da revista Pensamiento

Critico, la critica en tiempo de revolución, publicada de 1967 a 1971 em Cuba. Em seguida,

examinamos o tripé: libertação nacional – socialismo – anti-imperialismo como legado do

período revolucionário dos anos 1920-30 e 1960-70. Buscamos mostrar que uma contribuição

dos processos de luta da América Latina para o marxismo é a abordagem da questão nacional

relacionada com lutas por Libertação Nacional. A partir dessas referências concluímos o

capítulo com a reflexão sobre a questão nacional no pensamento crítico da América Latina.

Nas considerações finais procuramos evidenciar as contribuições do pensamento

crítico da América Latina para uma possível universalização do marxismo e apontar novas

questões a serem exploradas.

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Capítulo 1

Formas de apropriação da questão nacional

1.1 Introdução

Como enunciado, o objetivo da presente pesquisa é examinar a questão nacional como

desdobramento das contradições que movem o processo histórico na América Latina.

Neste primeiro capítulo, nos dedicamos a uma breve revisão bibliográfica sobre o tema

da nação e nacionalismos revisitando bibliografia referente sobre o tema, não exclusivamente

marxista, buscando destacar o caráter contraditório do conteúdo da questão nacional.

Reunimos na leitura de autores selecionados, Renan (1882), Gelnner (1983), Anderson

(1983 / 1991) e Hobsbawm (1990), contribuições sobre o tema da nação e nacionalismos, a

partir das quais buscamos examinar o que seria o conteúdo de movimentos nacionalistas e o

caráter contraditório da questão nacional nas nações modernas.

Os dilemas da tradição marxista em relação à questão nacional são abordados por

Michael Löwy em Les marxistes et la question nationale 1848-1914: études et textes (1974),

reflexão que resultou, segundo o próprio autor, de um curso saudavelmente polêmico,

ministrado com o cientista político Nicos Poulantzas – cujo esforço de construção de uma

teoria do Estado de tipo capitalista, somou-se ao corpus teórico da escola Althusseriana dos

anos 1960 e 1970.

Ao oferecer-nos um abrangente mapeamento histórico dos movimentos nacionalistas

na Ásia, África, América Latina e Oriente Médio, Löwy tem como pressuposto o crescimento

dos nacionalismos enquanto fenômeno que, ao menos em parte, contrapõe-se à mundialização

da economia. Nesse sentido, o autor pergunta-se como os nacionalismos de tipo emancipador

podem contribuir para a luta internacionalista contra o imperialismo e o capitalismo,

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ressaltando, contudo, que a fronteira entre os nacionalismos é móvel, “considerando que certos

movimentos são, por sua vez, libertadores e opressores ou transformam-se de democráticos em

agressivos” (LÖWY, 1995-1996, p. 77).

Essa indagação de Löwy fornece-nos algumas pistas para a reflexão sobre a questão

nacional, como uma questão extremamente complexa. Buscamos então examinar qual seria a

contribuição da tradição marxista à reflexão atual sobre o tema, bem como à esquerda, em

busca das fronteiras de resistência ao neoliberalismo e seus efeitos devastadores sobre a

condição de vida dos trabalhadores no mundo todo.

Ao retomar a questão nacional em Marx e no marxismo, Löwy12 apresenta a

constatação de que grande parte do pensamento marxista, em virtude do economicismo,

tendeu a subestimar o papel da questão nacional bem como a importância da libertação

nacional dos povos dominados ao “esquecer, negligenciar ou, ao menos, subestimar as forças

opressoras que não são as de opressão de classe: nacional, racial ou sexual” (LÖWY,2000, p.

83). Se o marxismo deve ao conceito de “imperialismo” a possibilidade de evitar as

armadilhas do universalismo eurocêntrico, ele não pode, “ignorar impunemente a importância

das culturas nacionais ou a legitimidade da luta pelos direitos nacionais democráticos” (Löwy,

2000, p. 81)

Löwy destaca como importante contribuição da produção marxista sobre a questão

nacional, a obra do austro marxista Otto Bauer Le question des nacionalitès et la social-

democratie (1917), ao identificar: 1) a nação como um produto inacabado de um processo

histórico constantemente em andamento, contribuindo ao combate à fetichização da nação, aos

mitos reacionários da nação eterna, pretensamente enraizado no “sangue e no solo”; e 2) a

caracterização de nação como comunidade de destino do autor ou comunidade de projeto. O

programa de autonomia nacional cultural de Bauer era uma proposta construtiva, mas ficou

restrito na prática diante do empasse frente ao direito democrático de cada nação se separar e

construir um Estado independente. (LÖWY, 2001)

Feito o balanço do “sonho naufragado” da Revolução de Outubro13 com relação à

12Nacionalismos e internacionalismos: da época de Marx até nossos dias (LÖWY, 2000)

13O sonho naufragado: a revolução de Outubro e a questão nacional (LÖWY, 2001)

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questão nacional diante da inviabilidade do desfecho de uma livre federação socialista de

repúblicas autônomas, Löwy sugere uma moral – provisória – para nortear os revolucionários

com relação à questão nacional à luz da Revolução de Outubro: 1) a utopia – no sentido forte

do termo – de uma livre federação socialista de nações iguais em direito, gozando de direito de

separação e assegurando à minorias nacionais uma plena autonomia territorial e/ou cultural,

permanece duplamente atual. Por um lado, ante os confrontos étnicos; e por outro diante das

unificações neoliberais que se realizam sob a égide do capital financeiro; 2) O direito das

nações à livre disposição de si próprias não pode ser subordinada a nenhum outro objeto – por

mais anti-imperialista, proletário ou socialista que seja – mas unicamente limitadas pelos

direitos democráticos das outras nações. Em outros termos uma nação não pode se valer da

autodeterminação para negar o direito de nações vizinhas, para oprimir suas próprias minorias

ou praticar a “faxina étnica” no seu território; 3) Do ponto de vista internacionalista, que é o

do marxismo, as questões de fronteira, “os direitos históricos” e as reivindicações territoriais

“ancestrais” são desinteressantes. O critério principal para tomar posição diante dos conflitos

nacionais e das exigências nacionais contraditórias é a democracia; e 4) Os revolucionários

são, via de regra – a principal exceção sendo situação de tipo colonial -, mais favoráveis às

grandes federações multinacionais – à condição que sejam autenticamente democráticas – do

que aos pequenos Estados pretensamente “homogêneos”. Lutarão para convencer os povos

implicados, mas são estes últimos, no exercício democrático do direito à autodeterminação,

que devem, em última análise, decidir por uma ou outra forma de organização política.

(LÖWY, 2001, p. 63)

No texto Nacionalismo del Sur 14, LÖWY nos brinda com a possibilidade de aproximar

esses dilemas da questão nacional no marxismo, a partir da experiência de movimentos de

libertação nacional na Ásia, África e América Latina. Löwy adverte que os nacionalismos são

“ora democráticos e emancipadores”, ora “regressivos, intolerantes, agressivos” e que a

fronteira entre essas duas tendências é móvel. Indagamo-nos, então, o que os empurraria mais

em um sentido que em outro.

Destacamos algumas questões que aparecem no debate travado com Michel Cahen, não

14Nacionalismos del SUR (LÖWY, 1995/1996)

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com intuito de entrar na polêmica, mas para identificar perguntas provocativas que favorecem

a nossa pesquisa sobre questão nacional. 15 1) As categorizações habituais de nacionalismos,

se válidas, não seriam suficientes para exprimir a realidade dos movimentos étnico-nacionais

nos terceiros mundos, por não sublinharem que o nacionalismo tanto pode exprimir

sentimentos nacionais que já existem (resgate), como podem exprimir projeto de nação

(futuro), em sendo nacionalismos produzidos por um movimento de massa? 2) A luta

anticolonial, como a luta contra o opressor estrangeiro não poderia criar uma noção falseada

de nação, a medida em que “lutas de libertação nacional” no Terceiro Mundo buscassem um

objetivo impossível diante da inexistência da nação, de modo que a rigor essas lutas não

seriam de libertação nacional, mas sim lutas anticoloniais? 3) Ao exaltar amplamente as

virtudes do “nacionalismo anti-imperialista”, nomeadamente na América Latina, coloca-se um

impasse: o nacionalismo, mesmo nas suas formas mais progressistas, é capaz de ultrapassar

esses limites? Até onde o exemplo da Revolução Cubana, em que o patriotismo forneceu a

base social de massa do exército revolucionário e processo de revolução permanente abrangeu

nacionalistas anti-imperialistas, deu lugar à transição socialista é uma assertiva? 4) Está

pressuposto um “paradigma da etapa”, como se o nacionalismo – e mesmo o anti-imperialismo

– um dia deverá ser ultrapassado para ceder lugar ao universalismo socialista, ou seja, a

consciência nacional ou étnica também seria a expressão de uma etapa ou uma forma da

consciência de classe?

Observamos esses questionamentos entendendo que a época das revoluções nacionais

está longe de terminar, e que os nacionalismos continuarão a ser um importante fator de

desenvolvimento histórico no século XXI, provocando, quiçá, uma “nacionalização do

mundo”. Perguntamo-nos, então: mas o que é uma nação? Nacionalismo de que tipo? Isso

dependerá amplamente da capacidade ou da incapacidade dos marxistas de integrarem a

questão étnico nacional no programa da democracia política.

15CAHEN, Michael. Nationalismes des Tiers Mondes: pour un débat, en response à Michael Löwy. (1999) .Esse debate tem como pano de fundo a luta supranacional reivindicada pelo Exército Zapatista de Libertação nacional de Chiapas, no México, que ao mesmo tempo que comporta uma reivindicação étnica que não aponta para o separatismo nacional, mas, para a solidariedade e mobilizações internacionais. VIDE em: LAZAGNA, Angela. Nacionalismos e Internacionalismos: um debate entre Michael Löwy e Michael Cahen. (2008).

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45

A partir dessa natureza de preocupações nos dedicamos neste primeiro capítulo a uma

revisão bibliográfica de autores que são referências nas formulações sobre nação e

nacionalismos para reunir elementos que nos permitam examinar o conteúdo das questões

nacionais na modernidade e, posteriormente, nos próximos capítulos, examinar a

especificidade da questão nacional na América Latina.

1.2 O que é uma nação?

A preocupação com o tema de nações e nacionalismo ganha espaço no debate político e

na produção teórica no período de 1968-1988, período em que, Segundo Hobsbawm, nunca se

produziu tanto sobre esse tema.

Podemos dizer que a produção teórica sobre nação e nacionalismos fica tímida nos anos

90 diante da temática sobre globalização, mundialização e neoliberalismo, e reaparece por

meio das temáticas do nacional desenvolvimentismo, neodesenvolvimentismo, social

liberalismo nos diagnósticos de processo latino-americanos atuais.

No final do século XX quando as teorias sobre globalização pareciam indicar um

debilitamento dos Estados-Nação, da nação e dos nacionalismos, os conflitos de classe

apontam para o florescimento de problemas nacionais, sintoma de que se reproduz a tensão

entre o nacional e transnacional próprio do desenvolvimento capitalista.

ALMEIDA (2013) em “O marxismo frente a nações e nacionalismos” registra a falta,

relativa à ausência de teoria sobre nações e os nacionalismo:

Basta mencionar que, em 1977, após duas guerras mundiais e a substituição de grandes impérios por um planeta de Estados-nações, Hugh Setton-Watson, cuja produção é reconhecida como um dos pilares dos estudos sobre o tema, já no início do capítulo 1 de sua magnum opus, Nations and States, fez uma advertência melancólica: a nação continua a existir, mas sobre ela ainda não se vislumbra qualquer “definição científica” (Setton-Watson, 1977:5). Advertência que reproduz a de Karl Kautsky, em 1908, quando comparou a nacionalidade a um Proteu que, embora esteja sempre conosco e nos exerça enorme influência, sempre nos escapa quando tentamos pegá-lo (Kautsky, 1978, v. 2: 122) (ALMEIDA, 2013, p.4)

A avaliação do déficit teórico sobre nações e nacionalismos era amplamente

compartilhada. Logo em seguida, nas duas últimas décadas do século XX, em paralelo com a

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ofensiva pós-moderna e suas incontáveis referências à crise da ciência “racionalista”, ocorreu

um vigoroso avanço dos estudos sobre a nação num mundo de Estados nacionais que se

apresentava um universo amplo e variado de processos de constituição de nações.

(ALMEIDA, 2013, p.5)

Nesse momento destacam-se a produção teórica sobre nação e nacionalismo de autores

de inspiração marxista como ANDERSON, Benedict em Imagined Communities (1983) e

HOBSBAWM, Eric em Nations and nationalism since 1780 (1990); E de autores

declaradamente antimarxista como GELLER, Ernest que publica também em 1983 Nations

and nationalism.16

Com o propósito de qualificar o que chamamos em nossa pesquisa de “a questão

nacional” nos dedicamos nesse momento a apresentar uma revisão bibliográfica com a

finalidade de identificar o caráter contraditório dos critérios que fundam uma Nação assim

como as dimensões contraditórias das diversas formas de apropriação do nacionalismo na

contribuição dos autores: RENAN, Ernest. (1882); GELLNER, Ernest (1983); HOBSBAWM,

Eric (1990) e ANDERSON, Benedict (1983).

1.2.1 Nação: um plebiscito de todos os dias, Renan

“O que é uma nação?”17 titulo de conferência pronunciada por Ernest Renan na Sorbonne,

Paris França em 1882 é um texto clássico que aparece citado em grande parte da bibliografia

sobre o tema18.

16 Alguns rápidos levantamentos mostram como os três autores mencionados logo acima se tornaram referência para o estudo do tema. Na primeira edição de The Oxford Handbook of the History of Nationalism (Breully, 2013), cinco dos 19 autores de alentados textos citam Benedict Anderson; cinco mencionam Eric Hobsbawm e sete, Ernst Gellner. Textos destes três autores (nocaso de B. Anderson é a introdução) estão na coletânea Um mapa da questão nacional (Balakrishnan, 2000)6. Enfim, o livro introdutório Fifty Key Thinkers in International Relations (Griffiths, 1999)7, apresenta em sua última parte, intitulada Theories of the Nation, três autores: Benedict Anderson, Ernest Gellner e Anthony Smith. (ALMEIDA, 2013, p. 6)

17RENAN. O que é uma nação? São Paulo. Revista Plural n.4. 1997: Conferência pronunciada por Ernest Renan em 1882 na Sorbonne, Paris FR.

18(ANDERSON, 1997, p. 23); (HOBSBAWM, 2008, p. 16)

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Para afirmar o que é uma nação, o autor começa por negar os principais elementos

explicativos nas teorias vigentes. A pergunta que Renan (1882) se faz nesse pronunciamento, é

a que buscamos refletir nesse momento de nossa pesquisa, a saber: Qual critério funda direito

nacional? (RENAN, 1997, p. 169).

Proponho-me analisar com os senhores uma noção que, aparentemente clara, presta-se aos mais perigosos mal-entendidos. As formas da sociedade humana são as mais variadas: grandes aglomerações de homens na China, Egito ou, antes ainda, na Babilônia; tribos a dos hebreus e árabes; cidades Atenas e Esparta; regiões unidas à maneira do Império Carolíngio; comunidades sem pátria, mantidas por laços religiosos como acontece com israelitas e parsis; nações como França e Inglaterra e a maioria das modernas autonomias europeias; confederações como suíça e americana; parentescos como os de raça ou antes de língua, estabelecidos entre diferentes ramos germânicos e eslavos – eis aqui alguns modos de agrupamento, todos eles existentes ou registrados, que não poderíamos confundir sem os mais sérios inconvenientes. À época da revolução Francesa, acreditava-se que as instituições de pequenas cidades independentes poderiam servir as nossas nações de trinta ou quarenta milhões de almas. Hoje em dia, comete-se erro mais grave: confunde-se raça com a nação, e atribui-se a grupos etnográficos, ou antes linguísticos, uma soberania análoga à dos povos realmente existentes.(RENAN, 1997, p. 158)

O autor trata em termos de legitimidade para se afirmar o que é uma nação. E em termos

de legitimidade RENAN (1997) recusa os critérios: (1) “Da Raça” das populações locais; (2)

“Linguagens”, a língua convida a união, mas não torna forçosa - o que valia para Espartanos e

Atenas não vale para Império romano; (3) “Religião” não é capaz de oferecer uma base

suficiente à nacionalidade moderna (RENAN, 1997, p.170); (4) “Comunidade de Interesse”

seriam os interesses suficientes para formar uma nação? Um Zollverein não é uma pátria,

afirma Renan; (5) “A geografia - as chamadas fronteiras naturais” também não seria o critério

que funda o direito nacional. (RENAN, 1997, p.171)

Destacamos que Renan (1997) descarta de imediato essas cinco possibilidades como

critérios legítimos para formação de nacionalidades.

Não, a terra, tal como a raça, não faz a nação. A terra fornece o substrato, o campo para a luta e para o trabalho; o homem fornece a alma. O homem é tudo na formação dessa coisa sagrada a que damos o nome de povo. Nada material é suficiente aqui. Uma nação é um principio espiritual, uma resultante de complicações profundas da história de uma família espiritual, não um grupo

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determinado pela configuração do solo. Acabamos de ver o que não basta para criar tal principio espiritual: raça, língua, interesses, afinidade religiosa, geografia, necessidades militares. O que então é necessário? (RENAN, 1997, p. 172)

Ao buscar delimitar o critério que funda o direito nacional, Renan se apoia na ideia de

que o homem é tudo na formação dessa “coisa sagrada a que damos o nome de povo”, e

portanto, nada material é suficiente para afirmar o que é uma nação, uma nação é uma alma,

um princípio espiritual.

(III) Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas constituem esse principio espiritual: uma está no passado e uma está no presente. Uma delas é a possessão em comum de um rico legado de recordações; a outra é o consenso atual, o desejo de viver em conjunto, a vontade de continuar a fazer valer uma herança que se recebeu íntegra. (RENAN, 1997, p.173)

Na nota introdutória de Ângela Alonso e Samuel Titan Jr19 que publicaram o

texto de RENAN na revista Plural (1997), os autores destacam a relevância de RENAN (1997)

para o tema nacional ao recusar teorias raciais, linguísticas, religiosas e geográficas para

explicar o fenômeno moderno da Nação - Estado que eram as teorias vigentes em sua época. A

contribuição de Renan reside na percepção da vida humana organizada em bases nacionais

como um modo de sociabilidade específico, que pouco deve à pureza das estirpes étnicos –

linguísticas. Teorias étnicos-linguistas não só na época de Renan como se fazem presentes na

preocupação com a construção das identidades sociais em elaborações contemporâneas dos

cientistas sociais.

19Ãngela Alonso e Samuel Titan Jr destacam nessa contribuição de RENAN (1882) que “a hipótese “culturalista”, somada à percepção de quão manobrável as fidelidades e lealdades sociais - em especial o sentimento patriótico -, parecem fornecer a Renan os princípios supremos de uma engenharia social capaz de deter os avanços da democracia e do socialismo. No livro de 1871, Renan via o par nacionalismo europeu/expansionismo colonial como a grande saída para a ordem social metropolitana, arrufada pela Comuna de Paris, nas palavras do próprio: uma nação que não coloniza esta irrevogavelmente condenada ao socialismo, à guerra do rico e do pobre. (RENAN, 1997, p. 156) . Os autores apontam também os limites da contribuição de RENAN (1882) a medida que a ideia de nacionalidade não se estende além das fronteiras europeias (RENAN, 1997, p 155). A critica reside em reconhecer que boa parte da “agitação social” do final do século XX na Europa como no Terceiro mundo tem derivado justamente da radicalização das propostas nacionalistas, seja porque suas palavras de ordem são adotadas por movimentos de forte caráter de classe (na China e África), ou seja porque insatisfações tribais ou étnicas veem obrigadas a adotar essa retórica a fim de fazer frente aos Estados imperiais, coloniais ou pós - coloniais (como conflito nos Bálcãs e no Caucaso). Sobre isso as contribuições de Renan tem pouco a dizer. (RENAN, 1997, p.156).

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Para Renan “a nação é, portanto, uma grande solidariedade, constituída pelo

sentimento dos sacrifícios que se fizeram e que ainda se fariam.” (RENAN, 1997, p. 173). A

nação supõe um passado, mas resume no presente a um fato tangível: o consenso, o desejo

claramente expresso de continuar a vida em comum (RENAN, 1997, p. 173). O que o autor

sintetiza na ideia de que: a existência de uma nação é um plebiscito de todos os dias, como a

existência de um individuo é uma afirmação continua da vida (RENAN, 1997, p. 174)

Com essa afirmação, o autor explicita sua ideia de nação relacionada a uma

consciência moral, ou seja, o homem não é escravo nem de sua raça, nem de sua língua, nem

de sua religião, nem do curso dos rios, nem as cadeias de montanhas. Um grande agrupamento

de homens, de espírito sadio e corações ardorosos, cria uma consciência moral que se chama

nação. (RENAN, 1997, p.175)

Renan identifica a origem nas nações no desmantelamento do Império de Carlos

Magno quando a formação de um novo Império como foi o Romano e o Carolíngio tornou-se

uma impossibilidade.

Desde o fim do Império Romano, ou melhor dizendo, desde o desmembramento do Império de Carlos Magno, a Europa ocidental é dividida em nações, dentre as quais algumas, em certas épocas, procuram exercer uma hegemonia sobre as outras, sem jamais lográ-lo de maneira duradoura. O que não puderam fazer Carlos V, Luis XIV e Napoleão I, provavelmente ninguém mais fará no futuro. A formação de um novo Império romano ou de um Novo Império Carolíngio tornou-se uma Impossibilidade. A divisão da Europa é tão avançada que uma tentativa de dominação universal não deixaria de levar rapidamente a uma coalizão capaz de reconduzir a nação ambiciosa a seus limites naturais. (RENAN, 1997, p. 158)

A despeito de concordar com essa formulação, nos parece interessante destacar na

perspectiva do autor, uma tentativa de dominação universal gera um conflito capaz de

reconduzir a nação ambiciosa a seus limites naturais, o que leva Renan a visualizar uma

espécie de equilíbrio num mundo dividido em nações. Esse equilíbrio não quer dizer equilíbrio

de poder, mas a impossibilidade de fusão. De fato as nações hegemônicas no capitalismo

tiveram padrões de dominação externa de natureza distinta dos Impérios da antiguidade.

Renan entende nações como um fenômeno recente na história, à medida que na

antiguidade clássica as nações não existiam. Para Renan foi a invasão germânica que

introduziu o principio que, mais tarde, serviu de base à existência das nacionalidades.

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(RENAN, 1997, p. 159). O “Tratado de Verdum” (843) pós a morte de Carlos Magno, dividiu

o Império Franco entre seus três filhos. Traça divisões por princípios imutáveis, e desde então

a França, a Alemanha, a Inglaterra, a Itália e a Espanha encaminham-se, ainda que por vias

tortas e através de mil percalços, à plena existência nacional. (RENAN, 1997, p. 160)

O que caracteriza esses diferentes Estados é a fusão das populações que os compõe o

que implica em adotar a religião e esquece sua própria língua. (RENAN, 1997, p. 160). A

despeito da extrema violência dos costumes dos conquistadores germânicos, o molde por eles

imposto tornou-se, ao longo dos séculos, o molde da nação. (RENAN, 1997, p. 161)

Levamos em conta que Renan profere essa conferência em 1882 quando praticamente

não havia nações constituídas e temos algumas reservas com relação à formulação de que

invasão germânica que introduziu o princípio que, mais tarde, serviu de base à existência das

nacionalidades. No entanto consideramos importante destacar como esse autor articula o

“molde da nação” moderna com a extrema violência e com o esquecimento como fator

essencial na criação de uma nação moderna.

“O esquecimento, e mesmo o erro histórico, são um fator essencial na criação de uma nação, e é por isso que frequentemente o progresso dos estudos históricos representam um perigo para a ideia de nação. De fato, a investigação histórica traz de volta à luz os atos de violência que ocorreram à origem de todas as formações políticas, mesmo daquelas cujas consequência foram as mais benéficas. A unidade se faz sempre por meios brutais: a união da França setentrional com a França meridional foi o resultado de um extermínio e de um terror de mais de um século. ” (RENAN, 1997, p. 161)

Destacamos, portanto, como o conteúdo da questão nacional a partir da contribuição de

Ernest Renan (1882) a nação moderna entendida como um fenômeno histórico recente,

resultado histórico produzido por uma série de fatos convergentes, e principalmente o fato de

seu “molde” estar relacionado com a violência e o esquecimento. O critério de existência de

uma nação passa por uma consciência moral de formação de um povo que pode ser sintetizada

na ideia de uma nação ser um plebiscito de todos os dias.

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1.2.2 Nação: unidade política e nacional congruentes

Recorremos agora, a contribuição de um autor que escreve num momento histórico

posterior a Renan, quando o mundo de Estado Nações já esta constituído. Ernest Gellner é

uma das principais referências para o estudo das nações e dos nacionalismos, sobre os quais

escreve desde os anos 60 com uma postura declaradamente antimarxista. Dentre as

formulações desse autor destacamos a definição de nacionalismo apresentada no primeiro

parágrafo de seu livro Nações e Nacionalismo (1983)20: nacionalismo como “um principio

político segundo o qual as unidades política e nacional devem ser congruentes” (GELLNER,

1983, p. 3).

O autor apresenta uma tipologia de sociedades que se constituíram ao longo da história.

O primeiro tipo de sociedade são as sociedades caçadoras e coletoras caracterizadas pela

ausência de Estado (GELLNER, 1983, p. 5).

O segundo tipo de sociedades são as sociedades agroletradas que possuem Estado. Esse

segundo tipo de sociedades são caracterizadas não somente pelo Estado como também pela

extrema distância e separação entre os coletivos sociais que as compõem. A estrutura social

típica da comunidade política agroletrada é composta no topo por os setores da classe dirigente

(militares, administrativo, comerciantes) que se organizam segundo diferentes princípios e

compartilham diferentes conjuntos de valores. Constituem-se, portanto, duas espécies de

centralização: uma cognitiva, controlada por uma minoria letrada especializada no manejo da

escrita que separa-se culturalmente do resto da sociedade, são os guardiões da escrita e da

cultura para cuja codificação ela é indispensável; e uma centralização política a cargo do

Estado. (GELLNER, 1983, p. 8).

Na base das sociedades agroletradas encontram-se comunidades dispersas de

produtores agrícolas, com fraquíssima mobilidade social, em que os quadros da reprodução

social são os da família e da ocupação. “Os de baixo”, são as comunidades de produtores

agrícolas são insuladas verticalmente que constituírem um “outro mundo” em relação aos

dominantes, vivem em diversas comunidades camponesas voltadas para si mesmas, apegadas

20

GELLNER. Ernest, Nations and Nationalism. Oxford. B. Blackerwell, p. 1983.

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52

à localidade por força da atividade econômica ou também da imposição política. (GELLNER,

1983, p.9)

Ou seja, pela abordagem de Gellner, a homogeneidade cultural é desnecessária para

legitimar a dominação a medida que os dominantes têm o monopólio da alta cultura e os

dominados ficam dispersos em um arquipélago de microuniversos culturais, com suas próprias

crenças, idiomas, modos de vida.

Em suma, para Gellner, as sociedades coletoras-caçadoras não têm Estado e as

sociedades agroletradas têm Estado, mas não têm nação. Estas últimas são formadas por

núcleos de produtores segregados uns dos outros, com línguas e culturas distintas entre si e

separados culturalmente da minoria letrada, de modo que quase tudo conspira “contra a

definição de unidades políticas em termos de fronteiras culturais” e, portanto é um ambiente

pouco propício para o nacionalismo, ou seja, para a defesa da afinidade entre unidade política

e unidade nacional (GELLNER, 1983, p.11).

O terceiro tipo de sociedade apresentada na tipologia de Gellner é a sociadade

industrial, essa sim favorável ao princípio de congruência entre unidade política e unidade

nacional. Segundo o autor, o nacionalismo consiste essencialmente na imposição geral de uma

alta cultura à sociedade onde anteriormente baixas culturas orientavam as vidas da maioria –

em alguns casos, da totalidade – da população. Tal processo implica a difusão de um idioma

codificado e supervisionado burocraticamente, uma sociedade altamente impessoal, com

indivíduos atomizados e intercambiáveis que permanecem unidos fundamentalmente por uma

cultura compartilhada e não por grupos locais sustentados por culturas populares reproduzidas

localmente pelos próprios microgrupos. (GELNNER, 1983, P. 57).

Portanto a abordagem de Gellner sobre a origem da nação e do nacionalismo situa-se

no contraste estabelecido entre sociedades agroletradas e industriais, na medida em que com o

industrialismo ocorreu uma maior homogeneização social e a elaboração de uma cultura

comum. Com o industrialismo têm lugar mudanças radicais que implicam em acentuada

especialização na divisão do trabalho, mobilidade social e a aquisição de saberes padronizados

suscitada pela industrialização conduz à criação de um sistema escolar de massas que terá um

papel central na génese de uma cultura comum.

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Com o industrialismo surge o Estado-nação,«[...] esta nova e definitiva unidade política» que «[...] adquire uma importância inteiramente nova e considerável, estando ligada (como raramente ocorreu no passado) tanto ao Estado como à barreira cultural. A nação é agora supremamente importante graças à erosão de subgrupos [de parentesco, locais ou grupos privilegiados fechados, por exemplo] e à importância de uma cultura partilhada dependente da escrita» (GELLNER., ibid., p. 63)

A homogeneidade pressupõe um meio comum de comunicação e alfabetização.

Somente um organismo pode assegurar que “esta cultura letrada e unificada seja efetivamente

produzida, que o produto educacional não seja ruim e abaixo do padrão”. Este organismo é o

Estado. A inevitabilidade da produção e reprodução de homens fora da esfera da família, do

clã ou qualquer outra unidade local, é a principal razão para que Estado e cultura agora

estejam unidos, sendo que, no passado, sua conexão era frágil, fortuita, diversificada, frouxa e,

frequentemente, mínima. Agora é inevitável. (GELNNER, 1983, p.38).

Para o industrialismo conduzir ao nacionalismo e não ao internacionalismo foi crucial

o fato de ele não ter ocorrido ao mesmo tempo em toda a parte. As dinâmicas de

homogeneização e diferenciação, ligadas à natureza conflituosa do próprio desenvolvimento

da sociedade industrial, levam a desigualdades e discriminações, as quais, associadas à língua,

à cultura, à cor da pele, podem conduzir à reivindicação nacionalista e à formação de nações.

Portanto foi o desenvolvimento desigual e as clivagens sociais originadas pela industrialização

que ativaram o nacionalismo.

Destacamos em Gellner sua postura crítica ao marxismo ao sustentar o primado das

lutas de nações sobre as classes. Ao fundamentar a ideia de que o princípio constitutivo da

identidade coletiva e a principal motivação ideológica na sociedade industrial é a nação, as

lutas de classe seriam lutas de nações atenuadas que não chegaram a um ponto crítico, a partir

do qual se passa à luta pela constituição de uma nova nação.

Sem ter concordância com essa critica do autor, consideramos importante o registro

dessa abordagem que evidencia uma relação complexa entre classe e nação à medida que nem

esta nem aquela podem ser isoladamente catalisadoras da ação coletiva capaz de subverter um

sistema político. A classe, ou seja, os oprimidos e explorados, só o consegue quando também

se define “etnicamente”. Nos termos do próprio autor, “apenas quando uma nação se torna

uma classe, ela se constituiu como uma categoria desigualmente contemplada, desfavorecida,

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e se tornou um sujeito coletivo dotado de grande capacidade política. Reciprocamente, apenas

quando uma classe se constituiu (“mais ou menos”) “como uma ‘nação’, ela se transformou de

classe em si em classe para si, ou uma nação para si” (GELLNER, 1983, p. 121).

1.2.3 Significado politico de Nação: equaliza Nação – Estado – Povo

Na trilogia de Eric Hobsbawm: A Era das Revoluções 1789 – 1848, A Era do Capital

1848 – 1875 e a Era dos Impérios (1875 - 1914) a questão nacional é tradada

transversalmente, mas esses estudos têm a relevância de contextualizar a nação

historicamente. Em A Era das Revoluções, Hobsbawm analisa o surgimento do nacionalismo,

em sua vertente burguesa e popular, ambas filhas da “dupla revolução”: a Francesa e a

Industrial. Em A Era do capital, o autor mostra como a Revolução de 1848 colocou o

nacionalismo e a democracia como protagonista central do panorama político. E em A Era dos

Impérios, a fragmentação das comunidades primárias das sociedades humanas – a aldeia, a

família, a paróquia, a confraria – fez com que as comunidades humanas apelassem para a

“nação”, como comunidade imaginária, a fim de preencher esse vácuo.

Em Nações e Nacionalismo a partir de 178021 encontramos uma sistematização desse

percurso com o recorte especifico sobre a questão nacional. É um livro baseado em

conferencias proferidos por Hobsbawm em maio de 1985 Universidade de Queen, em Belfast.

Na Introdução Hobsbawm nos fornece uma interessante revisão bibliográfica sobre o

tema e ao fazer referencias a trabalhos que iluminam a questão a respeito de que são as nações

e movimentos nacionalistas e qual o seu papel no desenvolvimento histórico chama atenção

para essa preocupação enquanto tema de pesquisa é datada, na medida em que a produção

intelectual é maior no período 1968-1988 do que em qualquer período anterior com o dobro

dessa duração. (HOBSBAWM, 2008, p.13)

21

Hobsbawm. Nações e Nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro, Editora Paz e

Terra. 1990

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Nessa revisão de Hobsbawm aparece, entre outro autores, o próprio Ernest Renan

(1882) com a formulação "Uma nação é um plebscito diário" e Walter Bagehot (1887) autor

que apresentou a história do século XIX como a história da construção de nações. Ao

comentá-lo Hobsbawm afirma que na perspectiva com que trabalha no livro, as nações não são

tão antigas como pensava Begehot, no sentido moderno da palavra não é mais velho que o

século XVIII.

Qualquer que seja o significado “próprio e original” (ou qualquer outro) do termo “nação”, esse ainda é claramente diferente do seu significado moderno. Podemos, portanto, sem ir mais além no assunto, aceitar que, em seu sentido moderno o basicamente político, o conceito de nação é historicamente muito recente. (HOBSBAWM, 2008, p.30)

Um recurso que Hobsbawm utiliza para mostrar como a nação é uma temática recente

é recorrer a definições em Dicionários e Enciclopédias para identificar como esse termo

aparece no vocabulário moderno. Com essa pesquisa Hobsbawm percebeu que no Dicionário

da Real Academia Espanhola antes da edição de 1884 a o significado da palavra nación é

“agregado de habitantes de uma província, de um país ou de um reino” e também “um

estrangeiro”. Ou seja, até essa data para se definir nação não se recorria a terminologia de

Estado, Língua no sentido moderno. Em edições a partir de 1884 é que se encontra o

significado de nación como um “Um Estado ou corpo político que reconhece um centro

supremo de governo comum” e também “Território constituído por esse Estado e seus

habitantes considerados como um todo”, portanto, pelo menos no mundo ibérico, essa a noção

de nação passa a estar vinculada ao elemento do Estado comum e território em meados do

século XIX. (HOBSBAWM, 2008, p.27)

Usando esse mesmo recurso de investigação, Hobsbawm destaca na Enciclopédia

Brasileira Mérito a definição de nação como “comunidade de cidadãos de um Estado, vivendo

sob o mesmo governo e tendo comunhão de interesses; a coletividade de habitantes de um

território com tradições, aspirações e interesses comuns, subordinados a um poder central que

se encarrega de manter a unidade do grupo; o povo de um Estado, excluindo o poder

governamental”. Nessa definição de nação no século XX já aparece claramente nação

relacionada à comunidade de cidadão, o elemento Estado, território, tradições, aspirações de

interesse comum. Chama atenção nação vinculada ao “povo de um Estado excluindo o poder

governamental” (HOBSBAWM, 2008, p.28)

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O Governo ou o poder governamental não foi, portanto, sempre ligado ao conceito de

nação. O significado de nação indica origem, descendência, naissence. E, na medida em que a

origem e a descendência estão ligadas a um corpo de homens que por sua vez ligados a um

território, apenas fortuitamente seria uma unidade política e não muito grande, ou seja,

dificilmente esse corpo de homens poderia ser aquele que formou um Estado. (HOBSBAWM,

2008, p.28)

Até 1884 a terra não era vinculada a um Estado; e até 1925 não ouvíamos a nota emocional do patriotismo moderno, que define pátria como “nossa própria nação, com a soma total de coisas materiais e imateriais passadas, presentes e futuras, que gozam da amável lealdade dos patriotas”. (HOBSBAWM, 2008, p.28)

Destacamos que Hobsbawm em grande medida reúne elementos que mostram que os

Estados europeus do século XVIII, qualquer que fosse seu tamanho, não eram homogêneos em

termos étnicos, linguísticos e outros, e, portanto não poderiam ser equalizados como nações no

seu sentido vernáculo. Para esse autor, o significado fundamental de nação é o significado

politico que passa a ser atribuído a esse termo após a Era das Revoluções Burguesas.

Dada novidade histórica do conceito moderno de “nação”, sugiro que o melhor modo para entender sua natureza é seguir aqueles que, sistematicamente, começaram a operar com esse conceito em seu discurso político e social durante a Era das Revoluções, especialmente a partir de 1830, com o nome de “princípio da nacionalidade” (HOBSBAWM, 2008, p.31)

A Era das Revoluções Burguesas, equaliza Nação – Estado – Povo, de modo que o

significado moderno de nação passa a ser o corpo de cidadãos cuja soberania coletiva os

constituía como um Estado concebido como sua expressão política. (HOBSBAWM, 2008,

p.31).

Em A Era do Capital 1848 – 1875 (2004) HOBSBAWM também faz uso desse recuso

investigativo de vocabulário como aqui destacamos sua abordagem sobre a nação. O autor

começa a Introdução de A Era do Capital dizendo que na década de 1860, uma nova palavra

entrou no vocabulário econômico e politico do mundo: “capitalismo”. O triunfo global do

capitalismo é o tema mais importante da história das décadas que se sucederam a 1848,

embora sua origem talvez preceda esse ano, como sugere na Introdução de A Era Das

Revoluções, mas uma pesquisa detalhada sugere que raramente tenha ocorrido antes de 1849 o

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uso dessa palavra no vocabulário, e dificilmente tenha ganhado amplo uso antes da década de

1960. (HOBSBAWM, 2004, p.19)

Nesta mesma Introdução vai dizer que as instituições do mundo gradualmente se

aproximariam de um modelo internacional de um Estado – Nação definido territorialmente,

com uma Constituição garantindo a propriedade e os direitos civis, assembleias representativas

e governos eleitos por elas e, quando possível, uma participação do povo comum na política

dentro de limites tais que garantissem a ordem social burguesa e evitassem o risco de ela ser

derrubada. (HOBSBAWM, 2008, p. 19)

A forma de organização social do Estado-Nação, definido territorialmente, com uma

Constituição garantindo a propriedade e os direitos civis, assembleias representativas e

governos eleitos, foi o modelo que triunfou sobre a ideia de povo soberano, portadora de um

nacionalismo de conteúdo revolucionário e que foi preterido em relação ao nacionalismo

burguês que se universalizou por ser adequado à dominação ideológica da burguesia sobre

todas as outras classes. A ideia de povo soberano teve funcionalidade nas Revoluções

Burguesas. Essa ideia segundo Hobsbawm vinculou indubitavelmente a nação ao território,

pois a estrutura e a definição dos Estados eram agora essencialmente territoriais. A Declaração

Francesa dos direitos em 1795 propõe: “cada povo é independente e soberano, qualquer que

seja o número de indivíduos que o compõe e a extensão do território que ocupa. Esta soberania

é inalienável” (HOBSBAWM, 2008, p.32)

Hobsbawm registra na nota 15 do Capitulo 1 intitulado: A nação como novidade: da

revolução ao liberalismo que na Declaração dos Direitos de 1789 ou de 1793 não ha

referências ao direito dos povos à soberania e à independência. (HOBSBAWM, 2008, p. 58).

De fato, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 o que se aproxima da

ideia de soberania é o Artigo 3º que diz: “o principio de toda a soberania reside essencialmente

em a Nação. Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que aquela não

emane expressamente”. Destacamos que pouco é dito a respeito do que constitui um povo

tanto na Declaração Francesa dos Direitos de 1795 quanto na Declaração dos Direitos do

Homem e do cidadão de 1789, o que tem um papel ideológico bastante significativo.

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Hobsbawm mostra como os franceses lutaram tenazmente contra as tentativas de fazer

da língua falada um critério de nacionalidade, que deveria ser determinado puramente pela

cidadania francesa, e cita Pierre Vilar: “o que caracteriza o povo-nação, visto de baixo, era

precisamente o fato de ele representar o interesse comum contra o privilégio”. (HOBSBAWM,

2008, p.32)

A dimensão progressista da qual é portadora a nação revolucionária aparece na ideia de

patriotismo original, revolucionário – popular. “Patriotismo – revolucionário – popular” estava

baseado no Estado e relacionava-se com a soberania do próprio povo, isso é o Estado

exercendo o poder em seu nome. (HOBSBAWM, 2008, p. 108)

De modo mais sério, a Revolução Francesa que parece ter usado o termo (patriotismo) à moda pioneira dos americanos e especialmente ao modo das revoluções holandesas de 1783, pensava nos patriotas como aqueles que mostravam o amor por seu país desejando renova-lo pela reforma ou pela revolução. E a patrie, onde repousava sua lealdade, era o oposto de uma unidade preexistente ou existencial, mas uma nação criada pela escolha politica de seus membros, os quais, nesse ato, enfraqueciam ou rompiam com lealdades anteriores. (HOBSBAWM, 2008, p. 108)

Nesse sentido, o conceito revolucionário de nação está relacionado a seu caráter

essencialmente político:

O conceito revolucionário de nação, entendido como constituído pela opção política deliberada de seus potenciais cidadãos, foi preservado em sua forma pura nos Estados Unidos. Os americanos são aqueles que desejam sê-lo. Nem o conceito francês de nação como análogo a um plebiscito (um plebiscito todos os dias, diz Renan) faz perder esse seu caráter essencialmente político. A nacionalidade francesa era a cidadania francesa; a etnicidade, a história, a língua ou o patois falado em casa não tinham nada a ver com a definição de nação. (HOBSBAWM, 2008, p. 108)

A nação como um corpo de cidadãos cujos direitos como tal, davam-lhes um chão no

país faziam do Estado, até certo ponto, “algo nosso” colocam desafios históricos da luta de

classe dos tempos atuais.

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O próprio ato de democratizar a política, isto é, de transformar sujeitos em cidadãos, tendia a produzir uma consciência populista que, vista de certos ângulos, é difícil de distinguir do patriotismo nacional e mesmo chauvinista – pois se “o país” é, de algum modo, “meu”, então pode ser visto muito depressa como preferível aos dos estrangeiros, especialmente se estes não possuem os direitos e as liberdades da verdadeira cidadania. (HOBSBAWM, 2008, p. 109)

Hobsbawm elucida caráter potencial ao mesmo tempo e vulnerável “patriotismo –

revolucionário – popular”:

A consciência de classe que os trabalhadores estavam adquirindo em numerosos países nas últimas décadas antes de 1914 implicava, mesmo que não afirmado, a reivindicação aos Direitos do Homem e do Cidadão, e, portanto um patriotismo potencial. A consciência política de massa ou consciência de classe implicava um conceito de “pátria” ou de “terra natal”, como demonstra tanto a história do jacobinismo como a de movimentos como o cartismo. Pois a maioria dos cartistas era tanto contra os ricos quanto contra os franceses. O que fazia esse patriotismo populista – democrático e jacobino extremamente vulnerável era a dupla subalternidade – objetiva e, entre as classes operárias, subjetiva – dessa massas. Nos Estados onde se desenvolveu, a agenda política do patriotismo foi formulada pelos governos e pelas classes dominantes. O desdobramento da consciência política e de classe entre trabalhadores lhes ensinou a reivindicar e exercer direitos de cidadania. Seu paradoxo trágico foi que onde os trabalhadores aprenderam a afirmá-los, tais direitos os levaram a mergulhar obedientemente no massacre mútuo da Primeira Guerra Mundial. (HOBSBAWM, 2008, p. 109)

Destacamos em Hobsbawm o caráter contraditório da democratização:

A democratização, assim, podia automaticamente ajudar a resolver o problema de como os Estados e regimes poderiam adquirir legitimidade aos olhos de seus cidadãos, mesmo que estes estivessem descontentes. Reforçava, além de poder até mesmo criar, o patriotismo. Contudo tinha seus limites, especialmente quando essa democratização era confrontada com forças alternativas, mais facilmente mobilizáveis, que atraíam a lealdade que o Estado proclamava ser o único depositário. Os nacionalismos que não dependiam do Estado eram as mais poderosas dessas forças. (HOBSBAWM, 2008, p. 109)

Hobsbawm diferencia o que ele chama de “patriotismo estatal”, criado pelo Estado, do

“nacionalismo não estatal” como uma força politica separada do Estado com a qual ele era

obrigado a se entender.

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O nacionalismo poderia tornar-se um instrumento poderoso para o governo, caso

conseguisse ser integrado no patriotismo estatal para tornar-se seu componente emocional

central. (HOBSBWM, 2008, p. 110)

No entanto, Hobsbawm mostra que a fusão do “patriotismo estatal” com o

“nacionalismo não estatal” foi politicamente arriscada, arriscava-se a criar um contra

nacionalismo:

O custo potencial de fundi-los foi, portanto, alto, pois a identificação com uma nacionalidade aliena outras, que ao recusavam a ser assimiladas ou eliminadas. Havia, na Europa, muito poucos Estados-nações genuinamente homogêneos, como por exemplo Portugal, embora na metade e mesmo no fim do século XIX houvesse ainda um grande números de grupos potencialmente classificáveis como “nacionalidades”, que não competiam com a reivindicação da “nação” oficialmente dominante, e um imenso número de indivíduos que procuravam assimilação em uma ou outra nacionalidade dominante e línguas culturais. Contudo, se a identificação de um Estado com uma nação arriscava-se a criar um contranacionalismo, o próprio processo de sua modernização implicava uma homogeneização e padronização de seus habitantes, essencialmente por meio de uma “língua nacional” escrita. (HOBSBAWM, 2008, p. 113-114)

Destacamos em Hobsbawm, o caráter contraditório da questão nacional se coloca

quando a nacionalidade representa a cidadania estatal dos indivíduos a medida que a fusão do

“patriotismo estatal” com o “nacionalismo não estatal” pode criar um “contra nacionalismo”.

Na leitura do livro de Hobsbawm pode-se identificar esse “contranacionalismo” com o que o

autor chama de “protonacionalismo popular” no capítulo 2.

O “protonacionalismo” relaciona-se a força da massa que torna elementos como língua,

etnicidade, religião e pertencimento insuficientes para explicar o nacionalismo. Ele se

distingue do nacionalismo como ideologia de uma minoria que serve para dominação

ideológica dessa por meio de criações como ilusão e mitologia. O protonacionalismo é uma

construção histórica que sofre transformações no período de 1870 a 1918 e encontra seu

apogeu no período de 1918- 1950. (HOBSBAWM, 2008, p. 63)

O “princípio da nacionalidade”, que os diplomatas debateram e que mudou o mapa da

Europa entre 1830 e 1878, era diferente do fenômeno político do nacionalismo que se tornou

central na era da política de massas e da democratização europeia. (HOBSBAWM, 2008, p.

55)

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Hobsbawm Ilustra com a frase de Massimo d’ Azeglio “nós fizemos a Itália, agora

temos que fazer os Italianos” e Pilsudski, libertador da Polônia: “É o Estado que Faz a nação e

não a não que faz o Estado” esse principio, de nacionalidade que não levava em conta o

protonacionalismo popular. No entanto, depois de 1880, importaria crescentemente como

homens e mulheres comuns sentiam-se a respeito da nacionalidade, e passou a ser importante

considerar esses sentimentos e atitudes no novo apelo ao nacionalismo a ser construído. (

HOBSBAWM, 2008, p. 56)

A questão com que Hobsbawm começa o capitulo 2: O protonacionalismo popular é

uma formulação de grande relevância para investigar a questão nacional:

Como e porque o conceito de “patriotismo nacional” tão distante da experiência real da maioria dos Seres Humanos torna-se uma força política poderosa? (...) O problema diante de nós deriva do fato de que a nação moderna, seja um Estado ou um corpo de pessoas que aspiram a formar um Estado, difere em tamanho, escala e natureza das reais comunidades com as quais os seres humanos se identificam através da história, e colocam demandas muito diferentes para estes. A nação moderna é uma “comunidade imaginada”, na útil frase de Benedict Anderson, e não ha dúvida de que pode preencher o vazio emocional causado pelo declínio ou desintegração, ou a inexistência de redes de relações ou comunidades humanas reais; mas o problema permanece na questão de por que as pessoas, tendo perdido suas comunidades reais, desejam imaginar esse tipo particular de substituição. Uma das razões pode ser a de que, em muitas partes do mundo, os Estados e os movimentos nacionais podem mobilizar certas variantes do sentimento de vínculo coletivo já existente e podem operar potencialmente, dessa forma, na escala macropolítica que se ajustaria às nações e aos Estados modernos. Chamo tais laços de “protonacionais”. (HOBSBAWM, 2008, p.63)

Hobsbawm esclarece que esses laços “protonacionais” são de dois tipos. Primeiro, há

formas supralocais de identificação popular que vão além daquelas que circunscrevem os

espaços reais onde as pessoas passaram a maior parte de suas vidas. Em segundo, os laços e

vocabulários políticos de grupos seletos mais diretamente ligados a Estados e instituições

capazes de uma eventual generalização, extensão e popularização. Nenhum desses dois tipos

de “protonacionalismo” pode ser legitimamente identificado com o nacionalismo moderno,

porque eles não têm relação necessária com a unidade da organização política territorial que é

o critério crucial do que entendemos hoje por nação. (HOBSBAWM, 2008, p.63)

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Destacamos em Hobsbawm que para compreender a “nação” da era liberal clássica é,

portanto essencial ter em mente que a “construção de nações”, por mais que seja central à

história do século XIX, aplicava-se apenas a algumas nações. (HOBSBAWM, 2008, p.53). A

fusão do “patriotismo estatal” com o “nacionalismo não estatal” se deu em processos

específicos de construção de nações na perspectiva liberal clássica. O significado fundamental

de nação é o significado politico que passa a ser atribuído a esse termo após a Era das

Revoluções Burguesas que, equaliza Nação – Estado – Povo.

A perspectiva de conteúdo político da questão nacional em detrimento a critérios de

língua, etnia, religião etc., e a perspectiva de protonacionalismo popular que Hobsbawm

desenvolve vão ao encontro das nossas preocupações de pesquisa em examinar a

especificidade da questão nacional como desdobramento da contradição que move o processo

histórico na América Latina.

Agregamos por fim, a contribuição de Benedict Anderson em Comunidades

Imaginadas - reflexiones sobre El origen y la difusión del nacionalismo22, destacando a

aproximação que esse autor faz com relação ao caso latino-americano, mostrando o

pioneirismo criollo com relação a criação de uma significado nacional.

1.2.4 Nação: comunidade política imaginada como inerentemente limitada e soberana.

Para elaborar essa definição Anderson (1993) parte de observação que desde a segunda

guerra mundial todas as revoluções vitoriosas se definiam em termos nacionais. A República

Popular da China, a República Socialista do Vietnã e com isso se afirmaram solidamente num

espaço territorial e social herdado do passado pré-revolucionário. (ANDERSON, 1993, P.18)

Eric Hobsbawm tem plena razão ao afirmar que “os movimentos e os Estados marxistas têm mostrado a tendência a se tornarem nacionais não só na forma, mas também no conteúdo, ou seja, nacionalistas. Nada sugere que esta tendência não continuará. E a tendência não se confina ao mundo socialista. As Nações Unidas admitem novos membros quase todos os anos. E muitas “nações antigas”, que se

22

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas- reflexiones sobre el origen y la difusión del nacionalismo. Ed Fondo de Cultura Económica, México, 1993.

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acreditavam plenamente consolidadas, se vêm desafiadas por “sub” nacionalismos dentro de suas fronteiras, ou seja, nacionalismos que naturalmente sonham com um dia desprender-se do prefixo “sub”. A realidade é evidente: o “fim da era do nacionalismo”, anunciado durante tanto tempo, não se encontra nem remotamente a vista. Consequentemente, a nacionalidade é o valor de maior legitimidade universal na vida política de nossos tempos. (ANDERSON, 1993, P.19 – tradução nossa).

O nacionalismo que se afirma como valor de maior legitimidade universal na vida

política de nossos tempos demostrou ser uma anomalia incômoda para a teoria marxista e,

justamente por isso, preferiu-se evitá-lo, em vez de enfrenta-lo uma vez que Marx não

esclareceu a formulação do Manifesto Comunista de 1848: "o proletariado de cada país deve

naturalmente, ajustar contas antes de mais nada com sua própria burguesia". (ANDERSON,

1993, P.20).

Anderson mostra que ao contrário dos “ismos” o nacionalismo não produziu jamais

seus próprios grandes pensadores. (ANDERSON, 1993. P.22) O autor atribui parte dessa

dificuldade em examinar o nacionalismo ao classificá-lo como uma ideologia:

Parte da dificuldade é que tendemos inconscientemente a personificar a existência do Nacionalismo com N maiúscula – como si escrevêssemos Idade com I maiúscula – e a classificar como uma ideologia. (Se todos tem uma idade, a Idade é apenas uma expressão analítica). Parece-me que seria mais fácil se tratássemos o nacionalismo na mesma categoria que o “parentesco” e a “religião”, não na de “liberalismo” ou o “fascismo” (ANDERSON, 1993, p. 23)

As comunidades, inclusive as nacionais, não são entendidas ou se distinguem entre si

por critérios de legitimidade ou falsidade, mas sim pelo modo por meio das quais são

imaginadas. O autor propõe levar em conta na dimensão ideológica o apego que os povos têm

às suas imaginações. Nesse sentido é relevante registrar que Anderson sustenta a ideia de

imaginação e criação em detrimento a invenção e falsidade, o que diferencia sua análise da

elaboração de Ernest Gellner que afirma o nacionalismo como invenção da nação onde não

existe, ou seja, invenção no sentido de fabricação e falsidade. (ANDERSON, 1997, p.24).

Destacamos a relevância dessa sutil ponderação de que o nacionalismo não é sinônimo de

fascismo apesar de o primeiro ser uma via aberta para o segundo é importante reconhecer

diferenças.

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Levando em conta essas ponderações iniciais Anderson propõe a definição de Nação

como uma comunidade política imaginada como intrinsecamente limitada e ao mesmo tempo

soberana.

Assim, com um espírito antropológico proponho a seguinte definição da nação: uma comunidade política imaginada como inerentemente limitada e soberana. (ANDERSON, 1993, P.23 – tradução nossa)

É imaginada porque a nação por menor que seja os membros não conhecerão jamais

seus compatriotas, não os encontrará nem se quer ouvir falar de muitos deles, mas na mente de

cada um vive a imagem de sua comunhão. (ANDERSON, 1993, p. 23)

A nação se imagina limitada, porque inclusive a maior delas, que é composta de talvez

milhões de seres humanos vivos, tem fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das

quais existem outras nações. (ANDERSON, 1993, p. 24).

A nação se imagina soberana porque o conceito nasceu numa época em que a

ilustração e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico

divinamente legitimado. Atingindo a maturidade na etapa da história humana em que inclusive

os devotos mais fiéis de qualquer religião universal não podiam evitar o pluralismo vivo de

tais religiões e o almoformismo entre as pretensões ontológicas de cada fé e a extensão

territorial, as nações sonham com ser livres diretamente no reinado de deus. A garantia e o

emblema dessa liberdade é o Estado Soberano. (ANDERSON, 1993, p. 24).

A nação se imagina como comunidade porque independente da desigualdade e a

exploração, a nação se concebe sempre coo um companheirismo horizontal. Em ultima

instância é esta fraternidade que permitiu, durante os últimos dois séculos que milhões de

pessoas matem e estejam dispostas a morrer por imaginações tão limitadas. (ANDERSON,

1993, p. 25).

As nações pressupõem um passado imemorial e um futuro ilimitado, o que é ainda

mais importante. A magia do nacionalismo, segundo Anderson, é a conversão do azar em

destino. (ANDERSON, 1993, p. 29)

Destacamos, portanto, um conteúdo geral que Anderson atribui à nação como uma

comunidade imaginada, que se imagina limitada, no sentido que nenhuma comunidade politica

imagina sendo a humanidade; e ao mesmo tempo se imagina como soberana relacionada à

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aspiração iluminista em ser livre. A esse conteúdo geral do nacionalismo que se universaliza

com a expansão capitalista se diferencia o conteúdo nacional dos Novos Estados Americanos

fim do século XVIII e princípio do século XIX à medida que, segundo a hipótese de

Anderson, é quase impossível explica-los pelos critérios que fundamentam o nacionalismo

europeu.

O autor mobiliza dois exemplos que mostram e especificidade da questão nacional na

América. O primeiro exemplo é o nacionalismo relacionado à língua, notadamente línguas

impressas que formaram as bases da consciência nacional no caso europeu como

desdobramento do desenvolvimento da imprensa como mercadoria que torna possível nesse

caso as comunidades chamadas por Anderson de “horizontal secular de tempo transverso”

(ANDERSON, 1993, p. 63). O autor mostra como a fixação das línguas nacionais impressas

em nações modernas foram desdobramentos da interação explosiva entre a expansão

capitalista, a tecnologia e a diversidade linguística humana. (ANDERSON, 1993, p. 74).

Diferente desse caráter explosivo na consolidação de línguas nacionais impressas no caso das

ex-colônias da América se manteve a língua do colonizador: o Brasil manteve o português; os

EUA mantiveram o inglês; As ex-colônias hispânicas mantiveram o espanhol. Nestes casos

deve-se reconhecer que a língua não foi um ponto de controvérsia nas lutas iniciais pela

libertação nacional. (ANDERSON, 1993, p. 77).

O outro exemplo é o conteúdo geral do nacionalismo como o batismo político das

classes baixas que vincula os movimentos nacionalistas a uma perspectiva populista de levar

as classes baixas à vida politica. Na América, longe de levar as classes baixas à politica, um

dos fatores decisivos que impulsionaram inicialmente o movimento de independência, em

casos importantes como Venezuela, México e Peru, era o temor as mobilizações das classes

baixas, como os levantes de índios e escravos, como as mobilizações de Tupác Amaru, Peru,

(1740-1781) e Toussaint L'ouverture, Haiti, (1791). A classe media ao estilo europeu eram

insignificantes como força social no final do século XVIII, os terratienentes mantinham a

liderança aliados a um numero muito menor de comerciantes e a diversos tipos de

profissionais (advogados, militares, funcionários provinciais etc) (ANDERSON, 1993, p. 77-

78)

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Anderson sugere que os movimentos latino americanos pela independência foram de

pouca espessura social (“delgadez social” dos movimentos independentistas latinoamericanos)

na medida em que as classes baixas não participaram. Mesmo sem a participação de classes

médias e baixas esses movimentos trataram de ganha espessura social e foram movimentos de

independência nacional. (ANDERSON, 1993, P. 80)

A partir dessa constatação Anderson formula uma questão fundamental:

Este é, portanto o enigma: por que foram precisamente as comunidades criollas que conceberam precocemente a ideia da sua nacionalidade, muito antes que a maior parte de Europa? Por que produziram tais províncias coloniais? o que de extraordinário possuiam essas grandes populações de oprimidos que não falavam espanhol, criollos que conscientemente redefiniam a estas populações como “connacionales”? E a Espanha a que estavam ligados em tantos sentidos, como a um inimigo estrangeiro?

Por que o Império Hispanoamericanos, persistiu tranquilamente quase três séculos se fragmentou de repente em 18 Estados diferentes? (ANDERSON, 1993, P.81 – tradução nossa)

Para responder a essas perguntas, segundo Anderson, pelo menos dois argumentos são

comumente mobilizados, a saber: a difusão das ideias emancipatórias da ilustração na segunda

metade do século XVIII que se traduz na influencia da rebelião exitosa das Treze Colônias

(1770) e do Triunfo da Revolução Francesa (1789) que repercutiram como generalização do

republicanismo nas comunidades que se tornavam independentes. (ANDERSON, 1993, P.82). E

os diferentes interesses econômicos mercantis que oneravam a colônia com progressivo

incremento da eficiência da arrecadação da metrópole. (ANDERSON, 1993, P.81).

Anderson pondera que nenhum desses argumentos, que são fundamentais para

compreender o impulso da resistência nas Américas, explicam por si só o fato de que

entidades como Chile, Venezuela, México fossem possíveis no terreno emocional e viáveis no

terreno político. (ANDERSON, 1993, P.83).

Na perspectiva apresentada por Anderson para responder a essas questões que “é

preciso levar em conta que cada uma das novas republicas sul-americanas haviam sido uma

unidade administrativa desde o século XVI até o século XVIII.

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O princípio de uma resposta se encontra no fato notável de que cada uma das novas repúblicas sul-americanas havia sido uma unidade administrativa desde o século XVI até o século XVIII. Neste sentido, pressagiavam aos novos Estados da África e parte da Ásia de meados do século XX, e contrastavam marcadamente com os novos Estados europeus do final do século XIX e principio do século XX. (ANDERSON, 1993, p.84 – tradução nossa).

Anderson elucida que para entender como as unidades administrativas puderam chegar

a ser concebidas ao longo do tempo como pátria, não só nas Américas como também em

outras partes do mundo, devemos examinar as formas em que os organismos administrativos

criaram um significado. (ANDERSON, 1993, p.85)

Antes do “capitalismo impresso” eram as peregrinações dos viajantes criados pelo

ascenso das monarquias absolutas, que com aparato de poder centralizado foi capaz de unificar

pesos, medidas e documentos. (ANDERSON, 1993, p.87) O oficio desses viajantes servia

como emanação dos desejos de seus amos. Os funcionários absolutistas empreendiam viagens

diferentes das viagens dos nobres feudais, a diferença apresentada por Anderson é que na

viagem feudal típica, o herdeiro do nobre sucede a morte do pai, o que remete a uma viagem

redonda, de regresso a casa e aos seus antepassados; Para o funcionário absolutista, o talento e

não a morte traça seu caminho, o que remete a uma viagem tortuosa que não há lugar de

descanso assegurado. Não existe um regresso a casa, porque não existe nenhuma casa de valor

intrínseco. (ANDERSON, 1993, p.88)

Da prática de um funcionário absolutista ser proveniente de uma província e

administrar outra, se desdobra uma ideologia do absolutismo elaborada por esses novos

homens a partir dessas novas experiências pelas quais a possibilidade de intercambio

documental que teve impulso com o desenvolvimento de uma língua oficial do estado

reforçava a possibilidade de intercambio humano. (ANDERSON, 1993, p.89)

A expansão extra europeia desses grandes reinos na transição para a Europa moderna

expandiu esse modelo para as burocracias transnacionais, no entanto essa racionalidade

funcional do aparato absolutista foi insuficiente para operar nas colônias. (ANDERSON, 1993,

p.90)

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Surge por primeira vez uma situação da metrópole se deparar com um enorme numero

de compatriotas europeus muito longe da Europa. Esse contingente humano ainda que em

termos de língua, religião, ascendência fossem em grande medida indistinguíveis do espanhol

peninsular os nascidos na América eram criollos e os nascidos na Espanha não podiam ser

americanos autênticos. (ANDERSON, 1993, p.90)

Os criollos dispunham em principio dos meios políticos, culturais e militares para por

constituírem-se como uma classe privilegiada na comunidade colonial, ainda que submetidos

economicamente. Anderson traça um paralelo entre a posição dos “magnatas criollos” e dos

“senhores feudais”, desempenhavam a mesma função e eram indispensáveis para o poder do

soberano, mas também uma ameaça para tal poder. (ANDERSON, 1993, p.91)

A visibilidade de grupos sociais euroasiaticos, euroafricanos, euromericanos originou

um pensamento que antecipa o racismo moderno. (ANDERSON, 1993, p.93). A necessidade

de distinção entre metropolitanos e criollos precede o surgimento das consciências nacionais

americanas no fim do século XVIII. (ANDERSON, 1993, p.96)

Anderson destaca o uso da imprensa como fundamental para na criação do significado

nacional. Leitores de jornais de México, Buenos Aires e Bogotá ainda que não lesses os

jornais das outras cidades estavam conscientes da sua existência. O jornal local reunia

interesses econômicos, sociais e com o tempo políticos de uma comunidade que se imaginava

como conjunto específico de leitores a quem interessavam esses temas reunidos numa mesma

administração colonial e num mesmo sistema de mercado. (ANDERSON, 1993, p.97)

Deste processo se desdobra o que o autor chama de duplicidade do precoce

nacionalismo hispanoamericano que se manifesta concretamente na alternância do seu grande

alcance e do seu localismo particularista. (ANDERSON, 1993, p.98). O limite concreto da

experiência hispanoamericana para produzir um nacionalismo próprio é o grau de

desenvolvimento do capitalismo e da tecnologia no final do século XVIII. (ANDERSON,

1993, P.99)

Destacamos que para Anderson nem o interesse econômico, nem o liberalismo, nem a

ilustração, poderiam criar por si só a classe ou a forma da comunidade imaginada na América

Latina. O autor elucida que apesar de sua incontestável relevância nenhum desses conceitos

foi provedor de uma nova consciência, ou seja, a resistência criolla concebeu formas nacionais

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para se diferenciar da metrópole, de modo que o sentido nacional é construído na periferia por

meio de imagem que apenas os distingues – por oposição aos objetos centrais de seu agrado ou

da sua aversão. Ao realizar esta tarefa específica, os funcionários criollos peregrinos e os

impressores criollos provinciais desempenharam um papel histórico decisivo. (ANDERSON,

1997, p. 101)

O final da época dos movimentos de libertação nacional, exitosos nas Américas,

coincidiu mais ou menos com o começo da época do nacionalismo na Europa. O caráter desses

nacionalismos novos que entre 1820 e 1920 mudara o rosto do Velho Mundo se diferencia de

seus antecessores por duas características Segundo Anderson: primeiro pelas línguas nacionais

impressas terem uma importância ideológica e politica fundamental; e, segundo, todos

puderam funcionar com base em modelos visíveis, ou seja, a nação se converteu após as

convulsões da Revolução Francesa, em algo capaz de ser conscientemente desejado desde o

principio do processo, diferente do que foi se delineando lentamente nas experiências

americanas. (ANDERSON, 1997, p. 102)

Por fim, tecemos algumas aproximações entre os autores. Esses autores têm em comum

o entendimento de que a Nação, no sentido como qual entendemos hoje, é datada e

historicamente recente. Desde Renan os critérios de raça, língua, religião geografia são

recusados como legítimos para afirmar o que é uma nação. Entendendo uma nação como um

legado de recordações e o desejo de viver em conjunto, a ideia de plebiscito de todos os dias

pode ser pensado numa perspectiva de projeto nacional que carregaria a contradição de

repousar numa sociedade cindida em classes sociais antagônicas. Em Renan aparece a extrema

violência e o esquecimento como fator essencial na criação de uma nação moderna, mas não

os relaciona aos esquecimentos e violência que deram origem a sociedade dividida em classes

sociais.

Segundo Almeida (2013) um ponto de aproximação entre Gellner e Hobsbawm é que

eles tendem a ver a nação como um artefato, algo inventado. (ALMEIDA, 2013, p 16). Falta,

por exemplo, em Hobsbawm uma concepção que dê conta dos nexos internos entre ideologia

nacional e Estados burgueses. Por outro lado, ele fornece preciosas indicações para o estudo

de como o nacionalismo se tornam meios poderosos para a possível montagem desses Estados

e fornece elementos para o exame das distintas apropriações sociais do nacionalismo,

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destacando os períodos em que este foi hegemonizado pelo liberalismo; canalizado pela

direita; e em que adquiriu forte tonalidade popular. (ALMEIDA, 2013, p 17)

ALMEIDA mostra que diferentemente de Gellner e Hobsbawm, Benedict Anderson

evita explicitamente a noção de artefato ou invenção, pois ela sugere um caráter de falsidade,

contrafação:

(Anderson) recorre a um conceito que considera mais adequado para a abordagem de grandes sistemas de referência capazes de estruturar comunidades (Id: 39): o de comunidades imaginadas. O problema é que B. Anderson se refere à nação como comunidade política, o que a situa como estreitamente ligada a relações de poder. Ora, como descartar a hipóteses de que essas imaginações de comunidade sejam ideologias políticas? Não está B. Anderson procurando as linhas de menor resistência ao substituir o conceito de ideologia pelo de imaginação e, desta forma, diluindo a importância os nexos entre determinada imaginação de comunidade e as relações de opressão e dominação que as imaginações expressam e, ao mesmo tempo, ocultam? Afinal a própria (auto)denominação de “comunidade” a sociedades marcadas por profundas clivagens é um procedimento ideológico dos mais elementares.(ALMEIDA, 2013, p. 19)

Levamos em conta os registros de falta na elaboração sobre Estado – poder politico e

ideologia nacional ponderados por Almeida na aproximação entre autores, no entanto, na

presente pesquisa não temos como objetivo uma elaboração em torno dessas ausências, mas o

propósito de trabalhar numa perspectiva de um outro caminho dentro do referencial de análise

marxista para refletir sobre dimensões contraditórias que são explicitadas nas formações

nacionais e nos nacionalismo em formações sociais dependentes.

Esse espectro de autores selecionados sobre a questão nacional (Renan, Gellner,

Hobsbawm e Anderson) nos permite afirmar que existem diversas formas de apropriação da

questão nacional. A partir dessas possibilidades que existem em explorar o caráter

contraditório da questão nacional na modernidade buscamos desenvolver um recorte

especifico que busca examinar que: o conceito de nação como se universalizou a partir das

experiências do processo histórico Europeu pós Revolução Francesa é insuficiente para o

estudo de nações e nacionalismos na América Latina. Para o estudo de nações e nacionalismos

na América Latina nos referenciamos no método que dispõe o marxismo no qual para entender

cada momento sucessivo do processo histórico é necessário identificar as forças sociais cujas

contradições o puseram em movimento. No item a seguir examinamos especificidades da

questão nacional no processo histórico da América Latina a partir desse recorte.

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Capítulo 2

Reflexões sobre o vazio da questão nacional na

formação do Estado Nação na América Latina

2.1 Introdução

Como enunciado, o objetivo da presente pesquisa é examinar a questão nacional como

desdobramento das contradições que movem o processo histórico na América Latina.

Desenvolvemos nossa análise no âmbito do referencial de análise do método de Marx.

No item 2.1 “a questão nacional como desdobramento da contradição que move o

processo histórico na América Latina”, reunimos elementos para compreender as

especificidades do Estado Nação e do desenvolvimento capitalista dependente na América

Latina, por meio do método sugerido por Letizia (2012) de identificar as forças sociais cujas

contradições puseram em movimento cada momento sucessivo do processo histórico na

América Latina. Nossa abordagem prioriza um recorte que é identificar as especificidades da

questão nacional que se desdobram desse processo histórico.

No item 2.2 “a questão nacional em formações sociais dependentes” , a partir das

contradições que movem o processo histórico na América Latina identificadas por Letizia,

desenvolvemos o desdobramento das especificidades que são colocadas à questão nacional

nesse processo, com destaque para a violência como desdobramento da rejeição absoluta das

sociedades nativas negadas; o vazio da questão nacional, como desdobramento do aleijume de

nascença do Estado Nação na América Latina; e o padrão da luta de classes, como

desdobramento do desenvolvimento capitalista dependente e da relação de com a dominação

imperialista.

Concluímos o capítulo com o item 2.3 “tarefas nacionais transmitidas a épocas

posteriores”, relacionando nosso problema de pesquisa com as problemáticas referentes à

dimensão política do Estado Nação e a dimensão econômica do desenvolvimento capitalista

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dependente, que se desdobram desse método de análise identificadora das forças sociais cujas

contradições puseram o processo histórico em movimento em cada momento sucessivo.

A formação da Nação moderna é resultado do processo histórico de desenvolvimento

do capitalismo e consolidação da dominação burguesa na Europa. Nesse sentido, Nação está

relacionada ao processo de gênese e consolidação da sociedade burguesa que encontra na

forma de organização social do Estado Nação, forma adequada à consolidação da organização

política e jurídica da dominação burguesa.

A formação de nacionalidades não é um processo homogêneo. Podemos dizer que a

Nação é a forma de organização social que se universalizou no desenvolvimento capitalista,

mas assim como o desenvolvimento capitalista, a formação das nações modernas

correspondem aos desdobramentos das contradições que movem o processo histórico em cada

formação socioeconômica específica.

A gênese do modo de produção capitalista está relacionada ao processo de acumulação

primitiva na Inglaterra. A esse processo corresponde a formação precoce da nação Inglesa no

século XVII. A partir da Revolução Francesa de 1789, que significou a ruptura política com o

Antigo Regime, é que a burguesia encontrou a estrutura político-jurídica adequada para

exercer sua dominação.

Assim como na expansão capitalista ao longo do século XIX observa-se diferentes

padrões de desenvolvimento econômico capitalista, é possível verificar diversos processos de

formação nacionais que também se diferenciam de um caso para outro. Por exemplo, a

formalização da unidade nacional na Alemanha em 1870, correspondendo ao processo

conhecido como “Via Prussiana”, “Modernização Conservadora” ou “Revolução vinda de

cima” que alçam um conjunto de países de industrialização atrasadas ao lugar de potências

capitalistas. (MOORE, 1981)

O termo modernização conservadora foi cunhado por Moore Junior (1975) para

analisar as revoluções burguesas que aconteceram na Alemanha e no Japão na passagem das

economias pré-industriais para as economias capitalistas e industriais. Neste sentido, o eixo

central do processo desencadeado pela modernização conservadora é entender como o pacto

político tecido entre as elites dominantes condicionou o desenvolvimento capitalista nestes

países, conduzindo-os para regimes políticos autocráticos e totalitários. Deste modo, as

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revoluções burguesas na Alemanha e no Japão não seguiram a versão clássica, como no caso

da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos, pois foram revoluções burguesas parciais, visto

que não destruíram efetivamente as estruturas sociais, políticas e econômicas do Antigo

Regime. Assim, o pacto político orquestrado no interior do Estado nacional alemão e japonês

aprofundou os laços políticos entre os terratenentes e a burguesia, excluindo os proletariados e

os camponeses do direito pleno à democracia e à cidadania. (MOORE, 1975, p13)

Moore Junior salienta que existiram três caminhos históricos principais desde o mundo

pré-industrial ao contemporâneo. O primeiro caminho levou à construção de sociedades

capitalistas e democráticas na Inglaterra, França e Estados Unidos; o segundo caminho,

também capitalista, mas na ausência de um forte surto revolucionário, passou por formas

políticas reacionárias até culminar no fascismo. E, por fim, o terceiro caminho foi o

comunismo, que se desenvolveu na Rússia e na China. (MOORE JUNIOR, 1975, p. 14).

O primeiro caminho é o caso das sociedades capitalistas e democráticas, no qual

houve o desenvolvimento de um “grupo na sociedade com uma base econômica independente,

o qual ataca os obstáculos a uma versão democrática do capitalismo herdado do passado.”

(MOORE JUNIOR, 1975, p. 14). Nesse sentido, as revoluções burguesas que aconteceram

nestes países se manifestaram como alterações violentas que determinaram uma ruptura com a

estrutura política e econômica do antigo regime, retirando, assim, os proprietários rurais do

centro do poder político, dado que esses eram os principais responsáveis pelas decisões

políticas no período da sociedade pré-industrial. Moore Junior (1975, p. 495) destacou ainda

alguns indicadores para compreender a estrutura social, econômica e política daquelas

sociedades que seguiram o caminho do capitalismo da democracia liberal, a saber: 1.

Desenvolvimento de um equilíbrio para evitar uma coroa demasiadamente forte e uma

aristocracia proprietária demasiadamente independente; 2. O movimento no sentido de uma

forma adequada de agricultura comercial; 3. O enfraquecimento da aristocracia proprietária

(Reforma Agrária); 4. O impedimento da coligação aristocrático-burguesa contra os

camponeses e os operários; 5. Uma ruptura revolucionária com o passado. Dentre esses cinco

determinantes para a construção de uma sociedade nacional de democracia liberal e capitalista,

observa-se que, em termos de classes sociais, os proprietários de terra deveriam apresentar

reduzida força na passagem da sociedade pré-industrial para a sociedade industrial e moderna,

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haja vista que quanto maior seu poder político e econômico, menor era a força da burguesia

para construir uma sociedade democrática e capitalista.

No caso dos países que se lançaram no segundo caminho de construção de uma

sociedade capitalista, como foi o caso da Alemanha e do Japão, o estímulo revolucionário não

foi o mesmo da revolução burguesa Inglesa, Francesa e Americana, visto que o impulso

burguês era muito mais fraco. Se chegou a tomar forma revolucionária, a revolução foi

derrotada.(MOORE JUNIOR, 1975, p. 14). Neste sentido, estas revoluções foram alternativas

mais importantes da modernização conservadora, através de uma revolução vinda de cima.

(MOORE JUNIOR, 1975, p. 503)

Dado que as elites pré-industriais não foram varridas plenamente do centro de decisão

política do Estado nacional, o que aconteceu na Alemanha e no Japão foi uma nova

rearticulação dos terratenentes com a burguesia para instituir um novo contrato político e

econômico, em que algumas secções de uma classe comercial e industrial relativamente fraca,

apoiaram-se em elementos dissidentes das classes antigas e dominantes, principalmente

recrutados do campo para levarem a cabo as alterações políticas e econômicas necessárias para

a sociedade industrial moderna. (MOORE JUNIOR, 1975, p. 14).

Nicos Poulantzas (1968) corrobora a ideia desenvolvida por Moore Junior sobre as

“Revoluções vindas de cima” ao analisar o caso da Alemanha durante sua passagem de uma

economia feudal para uma economia industrial. Poulantzas se apoia na análise marxista para

afirmar que o caso alemão foi uma importante viragem no processo de transformação das

relações de produção, e não mudaram em nada a superestrutura do Estado e os detentores do

poder político. (POULANTZAS, 1986, p. 176). A nobreza fundiária continua ainda a deter o

poder político e o Estado prussiano e é de fato esse Estado, sob Bismarck, que levará a

burguesia a alcançar a dominação política, o que precisamente caracteriza a revolução ‘vinda

de cima’. Logo, os proprietários da terra não perderam sua fonte de poder e continuaram

conduzindo de forma compartilhada com a burguesia nascente os destinos do Estado Nacional,

graças à ausência de capacidade política, pela sua constituição de classe e da burguesia

conduzir o bom termo, numa ação aberta, a sua própria revolução. (POULANTZAS, 1986, p.

178).

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Essas contribuições que fundamentam as formulações de “Modernização

Conservadora” e “Revoluções vindas de cima” são precisas em evidenciar especificidades

tanto no que diz respeito ao desenvolvimento econômico capitalista quanto no que tange as

relações de poder político em Estado Nações que tiveram como característica o fato de a

burguesia nascida da revolução capitalista, não ter forças suficientes para romper com a classe

dos proprietários rurais, resultando em um pacto político entre a classe dos terratenentes e a

burguesia. Tal pacto se deu com o objetivo de manter um projeto conjunto de construção de

uma sociedade capitalista, contudo arraigada em uma estrutura de dominação, em cujo centro

de decisão política do Estado, os interesses da classe dos proprietários rurais se mantivessem

enraizados.

Com relação a essas formulações a partir do processo histórico da Alemanha e Japão, a

América Latina reserva especificidades, a começar pela precoce formação do Estado Nação

com relação à expansão capitalista. Diferente da chamada Via Prussiana, a expansão

capitalista na América Latina não coincide com o desenvolvimento de relações sociais

capitalistas.

Desse modo, examinar a questão nacional na América Latina diz respeito a identificar

as contradições deflagradas a partir da expansão capitalista na América Latina e identificar

como o desdobramento dessas contradições desencadeiam os Movimentos de Independência

no início do século XIX (1808 – 1829) 23 caracterizado por um pioneirismo de formação

politica do Estado Nação moderno, vazio da questão nacional que a modernidade será

portadora.

Na virada do século XIX para o século XX, em resposta a crise, o capitalismo se

metamorfoseia de capitalismo concorrencial para capitalismo que se reproduz prioritariamente

na lógica monopolista. Essa nova fase expansiva do capital monopolista e a guerra imperialista

são o componente presente na formação de novos Estados nacionais que se constituem sob as

contradições dessa nova lógica de operação da lei do valor em nível mundial. Ou seja, quando

a Europa entra em sua moderna era imperialista, com o expansivo poder dos bancos e o

controle monopolista da produção, começa o despertar nacional nos conflitos políticos e

23Exemplos: Equador (1809),Venezuela (1810), México (1810), Paraguai (1811), Argentina (1816), Chile (1818), Uruguai (1818), Nicarágua (1838), Guatemala (1839).

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militares na Ásia entre a “Indochina” e o colonialismo francês, logo depois Vietnã e

Cambodja. Poderíamos citar também as guerras balcânicas, a destruição do Califato e do

império multinacional Turco. Mais tardiamente, ao longo do século XX se produzem novos

movimentos nacionais notadamente na África.

Todos esses processos contribuíram para uma extraordinária diversificação do

fenômeno nacional, o que forneceu novos e valiosos elementos para a compreensão destes.

(ALMEIDA, 2013, p. 6)

Ao definirmos objetivo de nossa pesquisa como o de examinar a questão nacional

como desdobramento da contradição que move o processo histórico na América Latina e, mais

precisamente, a questão nacional no pensamento crítico da América Latina relacionada à

questão da Libertação Nacional, estamos adotando uma metodologia para identificar as

especificidade da questão nacional que traduz um conteúdo de luta de classes que move o

processo histórico no qual foram forjadas as respectivas nacionalidades.

A perspectiva que buscamos desenvolver neste capítulo é a de que na América Latina,

nos Estados nascidos dos Movimentos de Independência (1808-1829) das ex-colônias

espanholas e portuguesa no século XIX, a construção de novas nações se deu sob a liderança

de burguesias nativas que capitanearam a luta emancipatória. Desse modo, as aspirações

nacionais que a modernidade alçara a partir da Europa repercutiram entre o povo das ex-

colônias, mas, alijados do processo emancipatório, ficaram as aspirações pendentes de serem

realizadas, sem aplicação na forma de Estado-nação que se constituiu.

Ao esvaziar a luta emancipatória de seu sentido nacional as tarefas não realizadas no

processo de independência reaparecem transmitidas a épocas posteriores. A aspiração da

“Liberdade e Igualdade” não realizada na Independência da América Latina reaparece como

movimentos nacionalistas, que vão repercutir nos povos como movimentos anti-imperialistas.

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2.2 A questão nacional como desdobramento das contradições que movem o

processo histórico na América Latina.

Com o propósito de reunir elementos para examinar a especificidades da questão

nacional no processo histórico da América Latina, o objetivo desse item é reunir elementos na

análise de longa duração histórica para, como sugere LETIZIA (2012), captar as contradições

que movem o processo histórico no continente.

As aspirações de liberdade e igualdade formadas na Revolução Francesa e a sua

radicalidade como liberdade social formam a perspectiva e o fio condutor da análise de

Letizia. As aspirações da Revolução Francesa, levadas adiante pela classe trabalhadora como

libertação social do domínio econômico da propriedade capitalista é uma perspectiva confere

originalidade na interpretação de Letizia dos processos históricos. Analisar as contradições

que movem a história do continente americano a partir das aspirações da revolução francesa,

não significa uma aplicação de ideias exteriores que surgiram do outro lado do Atlântico, mas

de um método de captar o movimento dos processos históricos. Marx definiu um processo de

emancipação social como uma “revolução em permanência”. Esse processo se desenvolveria

até atingir uma classe que realiza a liberdade social sem pressupor condições exteriores e

organiza todas as condições da existência humana sob a pressuposição da liberdade social.

Essa perspectiva de processo revolucionário é pressuposto para compreender a perspectiva de

Letizia. É um processo na consciência da liberdade o pensamento de que a libertação social

tem de atingir uma última camada social, cujas carências e interesses não são necessariamente

idênticos com aqueles da classe trabalhadora. A satisfação das carências e a realização dos

interesses dessa última camada social formam, para Letizia, a garantia de que os interesses da

sociedade inteira estão sendo tratados, na medida em que a libertação social dessa última

camada social coincide a libertação social de toda sociedade. (NAKAMURA, 2015, p.1)

A análise busca identificar as forças sociais cujas contradições puseram em movimento

cada momento sucessivo do processo histórico do Continente Oeste – Atlântico. Letizia

(2012) se refere a Continente Oeste – Atlântico em vez de América porque essa só passou a

existir quando as colônias nele criadas pela Sociedade Ocidental se emanciparam.24

24 FARRET , R. L. e PINTO, S. R. (2011) trabalham com o processo de construção da ideia de América Latina

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Ao longo do processo de entrevistas com Vito Letizia (2011-2012) ele escreveu um

texto, segundo o próprio, uma versão preliminar, de nome: Contradições que movem a história

do continente Oeste – Atlântico. Esse texto foi escrito no início de 2012, quando as entrevistas

estavam em vias de entrar no roteiro sobre Brasil25.

Em outubro de 2014, partes dessas entrevistas foram publicadas em forma de livro

póstumo de Letizia “Contradições que movem a história do Brasil e do Continente

Americano” 26 que passa a ser a bibliografia referência para a exposição metodológica que

desenvolvemos neste item. É importante registar que esse desenvolvimento não se pretende

uma abordagem historiográfica sobre o processo de invasão e colonização do continente

Americano, mas sim um método de compreender o tipo de contradição que move o processo

histórico em formações sociais dependentes com herança colonial.

Seguindo a exposição sistemática de Letizia elaboramos um “Quadro de Contradições”

(quadro 1) a partir do qual nos subitens a seguir desenvolveremos o desdobramento dessas

contradições, com destaque para a formulação de sociedades nativas negadas, ou seja, a

rejeição absoluta das sociedades nativas no processo histórico de invasão e colonização do

Continente Oeste – Atlântico que se relaciona ao desdobramento da 1º e 2º contradição.

Destacamos também a formulação de aleijume de nascença na formação do Estado Nação

latino-americano, que por sua vez, relaciona-se ao desdobramento da 3º e 4º contradição. E,

por fim, destacamos a relação entre desenvolvimento capitalista dependente e sua relação com

imperialismo como desdobramento da 5º contradição.

como conceito e simbologia na perspectiva da modernidade e identificam a criação do nome América Latina e a sua predominância frente aos demais termos empregados para definir a identidade continental em fins do século XIX, tais como hispanoamérica, indoámerica, iberoámérica, entre outros. Os autores apoiam suas análises sobre a gênese da ideia e do nome de América Latina no filósofo uruguaio Arturo Ardao (1980), para o qual a noção de América Latina é parte constitutiva da dominação.

25Essa é uma discussão que infelizmente ficou em aberto por conta do agravamento da doença do Vito, que veio a falecer em julho de 2012.

26LETIZIA, Vito. Contradições que movem a história do Brasil e do Continente Americano” . Organização CEMAP / Interludium. 1º edição. São Paulo: Alameda, 2014.

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(Quadro 1) Quadro das Contradições

Para entender o momento sucessivo do processo histórico do continente oeste Atlântico é necessário identificar as forças sociais cujas contradições o puseram em movimento.

1º contradição : contradição absoluta

Primeira contradição externa: invasão

Sociedades Nativas Negadas

Sociedade Ocidental

(colonizadores europeus)

Sociedade Nativa

(primitiva/civilizada)

2º Contradição: contradição entre forças sociais internas à colônia

Primeira contradição interna à colônia

Classe Mercantil Colonial Classe Escrava

(colônia inglesa e portuguesa)

Estamento Servil Nativo

(colônia espanhola)

3º Contradição: contradição entre forças sociais no comando da emancipação

Segunda contradição externa: relação metrópole e colônia

Aleijume de nascensa nas formações do

Estado Nação Nações metropolitanas

Segmento urbano da burguesia mercantil colonial

Classe mercantil inglesa � Fabricantes e comerciantes coloniais urbanos

Classe mercantil hispânica � Comerciantes coloniais urbanos

Classe mercantil portuguesa � Comerciantes urbanos e traficantes de escravos coloniais

4º Contradição: contradição entre forças sociais internas que pôs em movimento os novos Estados Independentes

Segunda contradição interna: desenvolvimento das contradições internas às colônias

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EUA:

Fabricantes e Comerciantes Exportadores/Importadores � Agrários escravistas

Agrários, Industriais e Comerciantes Exportadores/Importadores � Pequenos Agricultores e Comerciantes

Espanha:

Comerciantes Urbanos�Agrários Exploradores de um Estamento Servil

Agrários e Comerciantes Exportadores/Importadores� Artesãos e Pequenos Comerciantes

Portugal:

Comerciantes Urbanos �Agrários Escravistas

Agrários e Comerciantes Exportadores/Importadores � Artesãos e

Pequenos Comerciantes

Agrários � Ocupantes Informais da terra

5º Contradição: desenvolvimento capitalista dependente

Terceira contradição interna: desenvolvimento nacional e imperialismo

EUA:

Novo Proletariado�Burguesia Industrial

Pequenos Agricultores e Comerciantes � Burguesia Exportadora/Importadora

Nova Classe Média�Grande Burguesia

Área Hispânica principal:

Novo Proletariado�Burguesia Industrial

Nova Classe Média�Grande Burguesia

Brasil:

Novo Proletariado�Burguesia Industrial

Nova Classe Média�Grande Burguesia

Agrários�Ocupantes Informais da Terra

Desenvolvimento capitalista dependente e

Imperialismo

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2.2.1 Primeira contradição: “contradição absoluta” entre Sociedade Ocidental e

Sociedades Nativas

Letizia baseia-se em Marx e, nós procuramos desenvolver as ideias por ele sistematizadas

no texto “Contradições que movem a história do continente Oeste – Atlântico” (2012), assim

como os esclarecimentos feitos sob a forma de entrevista, recorrendo a esse mesmo referencial

de análise teórica.

A abordagem de inspiração marxiana de Letizia (2012) sugere que para entender cada

momento sucessivo do processo histórico do Continente Oeste – Atlântico é necessário

identificar as forças sociais cujas contradições o puseram em movimento. Nesse sentido,

começamos pela primeira contradição que põe o processo histórico em movimento no

Continente Oeste – Atlântico que é a contradição entre Sociedade Ocidental e Sociedades

Nativas. Esta contradição que põe o processo histórico em movimento no Continente Oeste –

Atlântico é, na perspectiva de Letizia (2012), uma “contradição absoluta”. (LETIZIA, 2012,

p.6)

Para compreendê-la é preciso localizar no processo de invasão dos espanhóis e

portugueses o primeiro momento em que essas forças sociais entram em contradições, à

medida que o homem civilizado ocidental se depara inicialmente com sociedade nativas,

primitivas ou civilizadas, no Continente Oeste – Atlântico. (LETIZIA, 2012, p.4)

O objetivo fundamental do processo histórico que põe o homem civilizado ocidental em

contradição com nações primitivas no Continente Oeste – Atlântico era fazer desta última uma

fonte de riqueza mercantil, isto é, uma fonte de metais monetizáveis que era critério de riqueza

no capitalismo mercantil vigente na Europa Ocidental da época, ou obter produtos

transformáveis nesses metais. O tipo de relação pretendida com as sociedades nativas, nações

primitivas ou nações civilizadas, não poderia deixar de se subordinar a esse objetivo.

(LETIZIA, 2012, p. 4)

A sugestão inicial de Letizia (2012) é examinar, no momento da invasão em que o homem

civilizado ocidental se deparou com nações primitivas, o impulso gerado nesse encontro para o

surgimento da contradição que trouxe as colônias ocidentais à existência enquanto

comunidades distintas das europeias. (LETIZIA, 2012, p. 06)

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A contradição entre Sociedade Ocidental e Sociedades Nativas é uma “contradição

absoluta” à medida que o modo de ser da humanidade particular nega as outras e impõe, de

imediato, pela força, as condições do capital mercantil em expansão. Essa vem a ser uma

particularidade de processo histórico de sociedades coloniais que implica a imediata

destruição da sociedade mais fraca.

Examinemos essa ideia. Para Letizia (2012), a força expansiva da economia mercantil

ocidental fez com que a sociedade civilizada ocidental se deparasse com sociedades nativas,

primitivas e civilizadas (no caso do México e do Peru). A superioridade militar da sociedade

ocidental garantiu desequilíbrio de forças, favorecendo a vitória das forças invasoras. Essa

primeira contradição é uma “contradição absoluta”, pois implica a imediata destruição da

sociedade mais fraca resistente e não a mera subordinação, pois mesmo as sociedades nativas

civilizadas foram rapidamente destruídas enquanto sociedades com vida própria. Ou seja, as

sociedades nativas foram imediatamente negadas, consideradas inúteis para o empreendimento

mercantil. (LETÍZIA , 2012, p.6)

Essa formulação de “o modo de ser da humanidade particular, que nega as outras” é uma

ideia, em nossa apreciação bastante original, que aparece no processo de entrevistas com

Letizia:

VL - (...) a América é uma colônia totalmente diferente de todas as colônias27 porque houve sociedade civilizadas antes que viraram colônias. E o comportamento das colônias do passado, de todas as outras sociedades civilizadas, foi diferente. Os colonizados resistiram. Então se criou uma simbiose. Tinha uma fronteira, os povos colonizados resistiram nessas fronteiras por longos anos.28

27

Na entrevista, Letizia exemplifica com o caso dos “Gauleses que ameaçaram Roma, chegaram a tomar Roma (390 A.C.) e depois recuaram e ficaram nas fronteiras do norte. Mesmo quando os romanos finalmente conquistaram a Gália (50 A.C.) eles encontraram uma nova fronteira pela frente, se depararam com uma fronteira onde povos Celtas, Germânicos da vizinhança, infringiram uma derrota fragorosa aos romanos, o que freou a expansão romana no reino.”

28Entrevista realizada com Letizia. Roteiro 2; Pergunta 6. Por que as ondas revolucionárias europeias, nas décadas de 1820 e 1830, tiveram na América Latina um sentido estritamente político, não estando em questão uma revolução social?

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Destacamos nessa perspectiva de Letizia que essas “fronteiras de resistência” significam

uma certa relação humana em que os colonizadores são obrigados a reconhecer que os outros,

colonizados, são seres humanos que competem com eles na disputa do direito de ser

humanidade.

Destacamos que a relação humana em que colonizadores e colonizados se reconhecem

uns aos outros como seres humanos, significa uma vitalidade de ambas as sociedades,

independente da superioridade do colonizador. Uma sociedade viva, diz Letizia, é a que

mantém vivos todos seus costumes, inclusive rituais de luto, caça de cabeças humanas ou

vinganças nas nações vizinhas, antropofagia, mortes internas punitivas de indivíduos etc. É

principalmente a que tem o direito de decidir quem entra e quem sai de seu território, com o

direito fundamental de matar quem entre hostilmente. (LETIZIA, 2012, p. 5)

E é nessa vitalidade das sociedades nativas que reside a diferença com o processo de

colonização do Continente Oeste – Atlântico com as experiências precedentes de invasão de

territórios. No continente Oeste – Atlântico a vitalidade das sociedades nativas, primitivas ou

civilizadas, foram negadas, prevaleceu a rejeição absoluta da sociedade nativa não considerada

apta para ser fronteira nem de comércio, nem da guerra.

No continente Oeste – Atlântico, deve-se entender por “sociedade rejeitadas” as que foram expulsas de suas terras ou exterminadas; e se deve entender por “sociedades subjugadas” as que foram reduzidas a estamento social inferior, sujeitos à servidão. (LETIZIA, 2012, p.7)

Seja pelo método de subjugar ou pelo método de massacre imediato de populações

inteiras, no continente Oeste – Atlântico, o homem dispõe do homem e da natureza de maneira

brutal. A América é um lugar onde o homem dispõe do homem da maneira brutal limite. Isso

cria um tipo de mentalidade de organização social destrutiva. A forma de organizar coincide

com o processo de devastação do lugar.

As “sociedades rejeitadas” e “sociedades negadas” marcam as “veias abertas da América

Latina”, por ser condição compartilhada pelos povos do continente, que têm em comum a

historia de invasão e colonização marcada pelo saque, genocídio, humilhação e o não

reconhecimento de sua humanidade. O desbravamento da América se deu na base do

extermínio e hoje esse extermínio continua.

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O modo de agir com violência e a ideologia criam relações de trabalho brutais nas

sociedades nativas, relações que serão ainda reforçadas pelo tráfico e pela exploração de

escravos africanos. A relação de exploração e opressão marcadas por essa violência é

transferida parcialmente a toda força de trabalho livre da época e até hoje estão presentes na

relação da burguesia com a classe operária, assim como as do estrato social superior em geral

com seus serviçais nos atuais países americanos.

Destacamos que o procedimento da colonização da Sociedade Ocidental se deu por um

modo de ser da humanidade particular, no caso, o homem civilizado ocidental que nega as

outras humanidades. Essa é uma dimensão a ser levada em conta no pensamento crítico do

continente sobre a questão nacional, pois é absolutamente necessário reconhecer esses fatos

básicos, rejeição e subjugação da sociedade nativa, pois eles explicam as relações sociais

vigentes nas sociedades atuais e a opressão exacerbada dos Estados existentes hoje no

Continente Oeste – Atlântico. Esse modo de agir com violência é a marca de como a

contradição absoluta vai se desenvolver no processo histórico do continente.

Em segundo lugar, examinamos o antagonismo com relação aos interesses mercantis dos

mercadores da Europa Ocidental com todas as sociedades nativas, civilizadas ou não.

O Continente Oeste – Atlântico foi invadido por empreendedores mercantilistas, o que faz

com que a força motriz do desenvolvimento das sociedades coloniais seja sempre um conjunto

de contradições desencadeadas pela expansão mercantil.

Usufruindo de direitos exclusivos e privilégios, os mercadores não deixariam de ser firmes guardiões dos laços com a metrópole, laços esses que faziam das colônias Oeste – Atlântica meras extensões territoriais da Europa Ocidental. Foram eles os organizadores da vida econômica; sendo, portanto, inevitavelmente os organizadores da vida social das colônias. E o lado político desse sistema ficou a cargo dos administradores enviados da Europa. Era isso tudo que fazia das colônias Oeste – Atlântica meras extensões territoriais da Europa Ocidental. (LETIZIA, 2012, p. 01)

É recorrente nas análises críticas de interpretação da formação socioeconômica do

Brasil o entendimento muitas vezes generalizado de que "A ocupação econômica das terras

americanas constitui um episódio da expansão comercial da Europa", como diz Celso Furtado

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(1968), no início do primeiro capítulo de seu livro Formação Econômico do Brasil.29

Destacamos em Letizia (2012) que nesse “capítulo ou episódio” da expansão

mercantilista a violência é protagonista do desfecho do desenvolvimento das contradições no

continente. Do desdobramento da contradição entre Sociedade Ocidental e Sociedades

Nativas, que move a história no Continente Oeste – Atlântico, se estrutura a forma social das

colônias ocidentais Oeste – Atlânticas, que tem como força motriz do desenvolvimento um

conjunto de contradições desencadeadas pela expansão mercantil (vide Quadro 1).

A principal consequência da expansão mercantil foi lançar as sociedades nativas de

imediato à condição de sociedades rejeitadas, aptas ao extermínio de povos inteiros, ou

sociedades subjugadas, de exploração até o limite último de suas forças físicas, o que gerou

uma “prática de dureza” interna entre os grupos sociais superiores e inferiores em que se

dividiam os ocidentais.

Essa prática, de exploração ilimitada e grandes matanças nas relações com os nativos, gerou uma prática de dureza interna entre os grupos sociais superiores e inferiores em que se dividiam os ocidentais, ou seja, entre os superiores, chegados como administradores, clérigos, militares, fidalgos e burgueses portadores de alguma riqueza monetizada (os “bons homens”) e os grupos inferiores, compostos de homens pobres vindos espontaneamente com pouco ou nenhum dinheiro. (LETIZIA, 2012, p. 04)

Essa prática, de exploração ilimitada e grandes matanças nas relações com os nativos,

gerou uma prática ainda mais dura, que opôs todos os colonos à “sub-humanidade” servil

criada por eles.

29Nas palavras de Caio Prado Jr. “Para se compreender o caráter da colonização brasileira é preciso recuar no tempo para antes de seu início, e indagar das circunstancias que a determinaram. A expansão marítima dos países da Europa, depois do século XV, expansão de que a descoberta e colonização da América constituem o capítulo que particularmente nos interessa aqui, se origina de simples empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadores daqueles países.” (PRADO Jr, 1998, p. 13); Nas palavras de Florestan Fernandes "À semelhança de outras nações das Américas, as nações latino-americanas são produtos da "expansão da civilização ocidental", isto é, de um tipo de moderno colonialismo organizado e sistemático. Esse colonialismo teve seu início com a "conquista" - espanhola e portuguesa - e adquiriu uma forma mais complexa após a emancipação nacional daqueles países." (FERNANDES, 2009, p. 21); E em Rui Mauro Marine "A América Latina surge como tal ao incorporar-se no sistema capitalista em formação, isto é, no momento da expansão mercantilista europeia do século XVI. A decadência dos países ibéricos , que primeiro se apossaram dos territórios americanos, engendra situações conflitivas, resultantes dos avanços projetados pelas demais potencias europeias". (MARINE, 1970, p. 03)

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A prática mais dura, entretanto, opôs todos os colonos à sub-humanidade servil criada por eles. Isso tudo deu o primeiro molde gerador da forma social das colônias ocidentais Oeste – Atlânticas, a forma de comunidades já distintas das comunidades metropolitanas, por terem se tornado, só ali, aptas ao extermínio de povos inteiros ou sua exploração até o limite último de suas forças. (LETIZIA, 2012, p. 04)

A diferença que aqui registramos com os explorados nas metrópoles é a negação da

humanidade dos explorados. As sociedade nativas foram negadas por meio do extermínio, no

caso da sociedade nativa primitiva, ou negadas ao serem lançadas à condição de sub-

humanidade, no caso das sociedades nativas civilizadas.

A humanidade da sociedade nativa foi negada ao ser descartada como fonte de riqueza

no processo de exploração mercantil.

Só uma resistência vitoriosa de sociedades nativas poderia levar os colonos a ampliar seu agir humano, o que geraria outro molde social básico, menos brutal e mais igualitário nos novos países ocidentais em formação no Continente Oeste – Atlântico. Isso não tendo sido possível, o uso exclusivo da violência na exploração mercantil se tornou o modo de agir fundante das sociedades coloniais ocidentais do Continente. (LETÍZIA,2012, p.8)

As guerras desencadeadas contra os nativos não considerados aptos ao

empreendimento mercantil foram a primeira face dessa rejeição absoluta das sociedades

nativas. As sociedades resistentes foram tratadas pelos colonos como absolutamente estranhas.

A destruição das sociedades nativas que ousaram resistir, mesmo quando acompanhada do

extermínio de toda a população, não era considerada crime (o que continua em todos os

estados independentes criados depois no Continente). A outra face da rejeição foi o tratamento

das sociedades vencidas e não exterminadas, que foram, em sua totalidade, igualmente

tratadas como estranhas à humanidade.

Destacamos essas condições de rejeição das sociedades nativas e de sub-humanidade

como elementos importantes para ser levado em conta no pensamento crítico do continente

sobre a questão nacional, por colocar a complexidade desses povos se alçarem enquanto

povos – nação, ao prescindirem da condição básica que é a própria humanidade.

Em terceiro lugar, a vitória rápida dos ocidentais na nova terra. As opções de rejeitar

ou subjugar não seriam necessariamente decisivas. Decisiva foi a vitória rápida e completa dos

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ocidentais, realizada em todo o Continente. Esta é que criou as relações iniciais que

forneceram “o molde social básico” de todas as colônias. (LETIZIA, 2012, p. 07)

Com relação ao processo histórico da colonização amplamente abordado pelos

historiadores é necessário reivindicar a “lucidez”, que parece ter alguma resistência em ser

assumida pela história. Criar essa “lucidez” seria reconhecer com clareza que no conflito na

América se deu uma vitória fácil das forças invasoras. Com isso, não estamos querendo

sugerir que não houve resistência no continente por parte dos povos que aqui estavam, mas

que a vitória das forças invasoras forneceu “o molde social básico” de todas as colônias.

A historiografia oficial não nega exatamente a desproporção do conflito, mas talvez

por uma exigência de criar um imaginário nacional a história contada especialmente aos

latino-americanos precisa obrigatoriamente de uma visão distorcida da constituição do povo –

nação. A América tem obrigatoriamente uma visão distorcida pelo tamanho desequilíbrio de

forças entre um povo que chega a uma terra nova e os que estão lá.

A guerra se acendeu desde 1493, na segunda viagem de Colombo, que já foi uma operação militar (1.200 homens, nenhuma mulher), levando cavalos e canhões. E o uso de arcabuzes, além dos canhões e uma cavalaria, permitiram a vitória fácil sobre os nativos armados de arcos e tacapes. Tamanho desequilíbrio de forças logo permitiu que os nativos passassem a ser tratados como servos e, caso não prestassem os serviços exigidos - por resistência ou incapacidade de prestá-los - como seres inúteis a eliminar. O resultado dessa relação de poder com os nativos foi à imediata matança sem limites em Hispaniola e Porto Rico (onde houve resistência). Subsequentemente veio o extermínio da quase totalidade da população das nações nativas do Caribe em menos de cem anos, relatado por Bartolomé de las Casas. (LETIZIA, 2012, p. 4)

A impossibilidade se haver uma resistência vitoriosa permitiu que os nativos passassem a

ser tratados como seres inúteis a eliminar. O conflito social como motor da história no caso da

invasão no Continente Oeste – Atlântico teve a particularidades da desproporção de força

militar entre europeus e os nativos, o que fez com que os europeus se dessem liberdades, que

em outros lugares, os colonos de outras áreas do mundo que foram colonizadas nunca tiveram.

E é por isso que só uma resistência vitoriosa de sociedades nativas poderia levar os colonos a ampliar seu agir humano, o que geraria outro molde social básico, menos brutal e mais igualitário nos novos países ocidentais em formação no Continente Oeste – Atlântico. Isso não tendo sido possível, o uso exclusivo da violência na

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exploração mercantil se tornou o modo de agir fundante das sociedades coloniais ocidentais do Continente. (LETIZIA, 2012, p. 8)

Houve resistências parciais com resultados parciais, mas a análise de Letizia elucida

que apenas uma resistência vitoriosa das sociedades nativas poderia levar os colonos a ampliar

seu agir humano o que geraria outro molde social básico, menos brutal e mais igualitário nos

novos países ocidentais em formação no Continente Oeste – Atlântico.

Destacamos que o “molde social básico das colônias” é uma dimensão a ser levada em

conta no pensamento crítico do continente sobre a questão nacional, à medida que possibilita

identificar a violência como característica uniforme no tipo de contradição que move o

processo histórico no continente.

É absolutamente necessário reconhecer esses fatos básicos, pois eles explicam as

relações sociais vigentes nas sociedades atuais e a opressão exacerbada dos estados existentes

hoje no Continente Oeste – Atlântico. (LETIZIA, 2012, p. 8)

Destacamos nesse primeiro momento, baseado em Letizia, a partir da ideia do modo de

ser da humanidade particular que nega as outras, do ponto de vista do conflito social como

motor da história, o que move o processo histórico no Continente Oeste – Atlântico é uma

contradição absoluta. Do desfecho desse conflito se deu o primeiro molde gerador da forma

social das colônias, que tem como protagonista a violência que imprime sua característica nas

formas de exploração no continente à medida que o homem dispõe do homem e da natureza de

maneira brutal. Essa prática de “dureza interna” marca as relações sociais até hoje como

desdobramento da contradição que trouxe as colônias ocidentais à existência enquanto

comunidades distintas das europeias. Na sequência, reunimos a contribuição de outros autores

cuja elaboração teórica vai ao encontro dessa formulação que destacamos em Letizia.

Para avançar na fundamentação dessas ideias seguimos o desdobramento da

contradição absoluta na sociedade colonial, que se desdobra em contradição entre as forças

sociais internas à colônia.

2.2.2 Segunda contradição: contradição entre forças sociais internas às colônias

Seguindo a abordagem de inspiração marxiana de LETIZIA (2012), que sugere para

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entender cada momento sucessivo do processo histórico do Continente Oeste – Atlântico é

necessário identificar as forças sociais cujas contradições o puseram em movimento, a

segunda contradição que põe o processo histórico em movimento no Continente Oeste –

Atlântico são contradições nascentes no interior das comunidades coloniais nesse período.

Foram, a saber: contradição entre a Classe Mercantil Colonial e a Classe Escrava, nas colônias

inglesas e portuguesa; e contradição entre Classe Mercantil Colonial e o Estamento Servil

Nativo, nas colônias hispânicas principais. (LETIZIA, 2012, p. 10)

O método de colonização predominante nas principais colônias hispânicas foi o de

subjugar e pôr a trabalhar duramente os nativos. Método esse aplicado pelos invasores

civilizados ocidentais às sociedades nativas civilizadas tecnicamente menos desenvolvidas,

que veio a torná-las “sociedades subjugadas” . Esse foi o caso emblemático das histórias de

México e do Peru, em que se deu uma vitória sobre os Estados dominantes nessas civilizações,

exatamente porque o método de subjugar essas sociedades se valeu dos estamento e classe

estarem cindidos, o que permitiu o enquadramento imediato de toda a população dessas

sociedades civilizadas, sem distinção de explorados e exploradores, num estamento servil

rebaixado a sub-humanidade. Na área hispânica, as colônias mais importantes optaram por

subjugar toda a população nativa. Essa prática, de exploração ilimitada e grandes matanças nas

relações com os nativos, lançou os povos nativos à condição de sub-humanidade servil criada

polos colonizadores. É importante registrar que o estamento servil rebaixado a sub-

humanidade quer dizer com nenhum dos direitos e liberdades então usufruídos pelos servos da

Europa. Na Europa era exploração de um homem por outro, o que é diferente de negar a

humanidade ao explorado, a começar que servos eram donos dos meios de produção, o

trabalho compulsório e exploração se dava por meio dos tributos abusivos. (LETÍZIA, 2012,

p.7)

O outro método deve-se entender por “sociedades rejeitadas”, as que foram expulsas de

suas terras ou exterminadas, método esse de expulsar da terra os resistentes à ocupação

europeia, sem hesitar ante o massacre imediato de populações inteiras. As sociedades

primitivas se caracterizam por serem sociedades não-cindidas em estratos sociais, sendo, por

isso, movidas por sua contradição com a natureza virgem. Expulsar uma nação primitiva de

seu território–ambiente é destruí-la. Na América esse método foi predominante nas colônias

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inglesas e portuguesas. Nas colônias inglesas a opção pelo extermínio dos nativos se deu por

razão econômica (pouca produtividade no empreendimento mercantil) combinada com razões

ideológicas. E na colônia portuguesa, a opção pela rejeição e extermínio das sociedades

nativas foi clara, sendo depois continuada firmemente pelo estado independente que a

sucedeu. Houve também a presença de nativos subjugados na colônia portuguesa, mas sem

função na economia mercantil. (LETIZIA, 2012, p. 7)

Das formas de negação das sociedades nativas resultaram, portanto, a servidão dos

nativos, nas principais colônias hispânicas e o escravismo de africanos traficados, nas áreas

portuguesa e inglesa. Vejamos cada um desses desdobramentos. 30

Classe mercantil colonial versus Classe Escrava

Na colônia portuguesa, o método de colonização predominante foi a rejeição da

sociedade nativa. A opção pela rejeição e extermínio das sociedades primitivas foi clara,

sendo depois continuada firmemente pelo Estado independente que a sucedeu. Diante da

necessidade de expansão do empreendimento açucareiro português da Ilha da Madeira para o

que chamou de Terra da Vera Cruz, a colonização abriu no Ângulo Nordeste, grandes

plantações de cana-de-açúcar e construiu engenhos desde 1516, movidos a força de trabalho

africana. Isso exigiu a presença de um aparelho administrativo forte, que garantisse a

submissão de uma grande massa de escravos. A rentabilidade do empreendimento açucareiro

exigia uma extração mais eficiente do que a de pau-brasil. A operação extermínio das

sociedades nativas começou em 1549, com a chegada do primeiro governador geral, Tomé de

Souza, provido de uma força militar e uma bateria de canhões. No Sul da colônia foi

necessário esperar até 1567, quando a administração portuguesa não mais precisou dos

caciques Tupiniquim, cujo aporte de fortes contingentes guerreiros foi decisivo para a vitória

da expedição contra os franceses do Rio de Janeiro. (LETIZIA, 2012, p. 5)

Não houve na colônia portuguesa nativos subjugados economicamente importantes: os

da Amazônia foram usados basicamente como remadores, atividade a que estavam habituados;

30Destacamos que os dois métodos de colonização se refere à forma de destruição das nações civilizadas e nações primitivas do continente; fundamentalmente diferente dos métodos clássicos abordados por Celso Furtado (1968) e Caio Prado Jr (1998), que distingue colônia de povoamento hemisfério norte de colônia de exploração.

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e os do Planalto de Piratininga, que não foram os Tupi da área costeira, foram logo

exterminados; e os Guarani, já amansados e “educados” nas reduções jesuíticas do Paraguai. O

fato de não ter sido possível empregar os Guarani numa produção mercantil, tornou a moeda

portuguesa escassa na região meridional, tendo que ser substituída por novelos de algodão

com a função de equivalente geral. O emprego desses nativos terminou ficando limitado ao

serviço doméstico e à produção de artigos de subsistência para os colonos paulistas, que

viviam em casas de taipa, dormiam em redes e comiam como os Guarani, cuja língua foi o

meio geral de comunicação dos habitantes do Planalto até o fim do século XVIII. Outros

nativos, mediante acordos com caciques ainda existentes e funcionais em suas tribos, foram

guias nas expedições que expandiram o território colonial, assim como na descoberta das

minas que abriram novo ciclo de expansão mercantil português. (LETIZIA, 2012, p. 10)

Nas colônias inglesas, houve o fato de serem os povoadores dissidentes religiosos em

busca de terras para criar comunidades livres da perseguição religiosa anglicana, o que os

levou à Costa Norte, de clima mais frio, longe das áreas de culturas comerciais. Enquanto isso

os empreendedores mercantis iniciavam no Sul a exploração mercantil por meio de força de

trabalho escrava. O clima não permitia plantações de cana-de-açúcar vantajosamente, mas os

nativos ali cultivavam o tabaco, que já estava em uso na Europa. Criaram assim as plantações

de tabaco, que viabilizaram economicamente a Nova Inglaterra. Os dois fatos implicaram a

expulsão violenta dos nativos das duas áreas.

É importantíssimo diagnosticar os casos de desdobramento de contradições e que

colonizar implicou povoar de vários modos o Continente Oeste – Atlântico (LETIZIA, 2012,

p. 9). Seja qual for o tipo de povoamento, a sobrevivência de todas as colônias ocidentais

nascidas das grandes navegações sempre dependeu da atividade mercantil. Povoamento de

pura subsistência nunca funcionou. Os primeiros colonos holandeses da África do Sul,

abandonados à própria sorte, terminaram por perder seu modo de vida europeu, ao se integrar

a tribos hotentotes pastoras de gado vacum, quando se deram conta de que, naquele lugar, os

Hotentote sabiam subsistir melhor do que eles. Mesmo quando o povoamento tem o objetivo

explícito de constituir comunidades não-mercantis, como no caso das comunidades oeste-

atlânticas setentrionais, a integração na economia de algum país da sociedade-mãe se impôs

pela natural tendência a manter os costumes, que implicam hábitos de consumo tradicionais. A

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oportunidade de manter e acompanhar a evolução dos costumes ocidentais foi o surgimento de

colônias mercantis ao sul das comunidades de não-conformistas. O simples surgimento da

oportunidade logo transformou os povoadores em produtores de artigos de comércio, assim

que estes foram demandados. O exemplo mobilizado por Letizia para ilustar esse fato, é o caso

dos pilgrims que se dedicaram com afinco a produzir mantimentos para as colônias escravistas

e logo estenderam sua atividade comercial às colônias hispânicas do Caribe, das quais

passaram a importar melaço, que lhes revendiam muito lucrativamente transformado em

rum31.

Classe mercantil colonial versus Estamento Servil Nativo

Na área hispânica, o método de colonização mais importante foi subjugar a população

nativa. Isso foi justificado como opção “natural”, porque imitada da própria estrutura social

das sociedades submetidas; opção que só deixou de ser aplicada nas áreas afastadas dessas

sociedades nativas civilizadas. (LETIZIA, 2012, p. 05)

Em toda a Costa Oeste – Atlântica, a colonização agressiva começou já com Colombo,

que, não tendo conseguido as riquezas prometida a Dona Isabel, em compensação das joias

que esta vendera para pagar as três caravelas, enviou um lote de quinhentos nativos para o

mercado de escravos da Espanha. Dona Isabel, porém, proibiu o comércio de seus novos

“súditos”, ressalvando, porém que estes não deveriam permanecer “ociosos”. Resolveu então

Colombo pôr os nativos no garimpo em terra de pouco ouro por meio do açoite, da tortura e de

execuções exemplares de extrema crueldade. Prática continuada depois pelos governadores

que o sucederam. (LETIZIA, 2012, p. 09)

Esse método de colonização só funcionou sem extermínio nas áreas do Império Inca e

da Sociedade Mexicana. No primeiro havia o sistema da mita, que era o trabalho temporário

obrigatório fornecido pelas aldeias à casta superior; e na segunda havia o trabalho obrigatório

dos camponeses para a classe dominante. Nessas instituições se baseou a formação de um

estamento servil inferior nas principais colônias hispânicas. (LETIZIA, 2012, p. 09)

Os nativos das principais áreas hispânicas haviam sido sociedades civilizadas, com 31

Essa análise diferencia-se da abordagem de Darci Ribeiro, que ressaltou a distinção entre colônias de povoamento e de plantações mercantis.

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estamento superior e inferior no Peru e classe dominante e dominada no México, que, depois

de destruídas, seus povos inteiros formaram dois estamentos servis submetidos ao Ocidente no

Peru e no México. (LETIZIA, 2012, p. 10)

2.2.3 Terceira contradição: contradição entre forças sociais no comando da emancipação

Seguindo a abordagem de inspiração marxiana de Letizia (2012), que sugere para

entender cada momento sucessivo do processo histórico do Continente Oeste – Atlântico, é

necessário identificar as forças sociais cujas contradições o puseram em movimento. A

terceira contradição que põe o processo histórico em movimento no Continente Oeste –

Atlântico são contradições nascentes nos processos de emancipação política das colônias, a

saber: contradição entre o Segmento Urbano da Burguesia Mercantil Colonial versus as

Nações Metropolitanas.

Com a ampliação do comércio internacional no século XVIII, uma parte do segmento

urbano colonial percebeu novas possibilidades de expansão econômica. Nesse momento a

dependência comercial em relação às metrópoles passou a significar um obstáculo ao acesso

aos novos ganhos dessa ampliação do comércio internacional. Com isso, novas forças motrizes

do processo histórico das colônias se definem nas respectivas formações sociais. (LETIZIA,

2012, p.12)

Essa contradição externa faz surgir uma fissura na velha solidariedade entre

fabricantes/comerciantes urbanos e agrários das colônias. A cisão colonial é impulsionada

pelo agravamento do monopólio comercial metropolitano e foram aceleradas pela

efervescência libertária que agitou a intelectualidade europeia nos decênios que precederam a

Revolução Francesa e deu um modelo de bandeira a todas as revoltas do Ocidente.

Nesse momento examinamos a terceira contradição que põe em movimento o processo

histórico no Continente Oeste – Atlântico que é a contradição entre Segmento Urbano da

Burguesia Mercantil Colonial versus Nações Metropolitanas. A partir da ressonância das

aspirações da Revolução Francesa um novo desdobramento da segunda contradição, a

contradição interna às colônias entre Classe Mercantil versus Estamento Servil/Classe

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Escrava, se desdobra nessa terceira contradição, que reflete a opressão da metrópole, um

conflito externo que se polariza na contradição entre forças sociais internas e externas à

colônia.

Essa contradição se manifesta de maneira distinta em cada formação social, de modo que

em cada qual se tem uma força social específica nos polos da contradição, a saber: nas

colônias inglesas Fabricantes e Comerciantes Coloniais Urbanos versus Classe Mercantil

Inglesa; Nas colônias hispânicas Comerciantes Coloniais Urbanos versus Classe Mercantil

Hispânica; e na colônia Portuguesa Comerciantes Urbanos e Traficantes de Escravos

Coloniais versus Classe Mercantil Portuguesa.

Destacamos, na perspectiva de Letizia, a preocupação quanto ao movimento do que o

autor chama de “povo miúdo32” nos processos de independência. No Continente Oeste –

Atlântico, o povo explorado e oprimido não podia deixar de ver a questão da liberdade como

uma possibilidade concreta de universalizar os direitos humanos e civis proclamados pela

Revolução Francesa, o que o fazia fundir a liberdade com a realização da igualdade, isto é,

com a abolição da escravatura e da servidão, inevitavelmente ligada ao livre acesso à

apropriação da terra para todos. (LETIZIA, 2012, p. 16)

Para Letizia, o processo das colônias do Continente Oeste – Atlântico tem em comum o

movimento histórico caracterizado pelo “povo miúdo” de seguir, de maneira geral, a liderança

independentista entusiasticamente, enquanto os agrários a seguiram passivamente. Essa

abordagem foi decisiva no desfecho dos Movimentos de Independência, que diferencia o

processo das Treze Colônias da América Latina com relação às bases de constituição do

Estado Nação. Na América Latina essa constituição está liquidada na Independência que o

povo não participou.Entender o desfecho dessa contradição na inflexão, que separa o destino

nacional dos Estados Unidos e dos países da América do Sul e Caribe, que tratamos de modo

geral como América Latina em nossa pesquisa.

32“Povo miúdo” faz referencia a força social da Revolução Francesa. Refere-se aqui ao povo pobre das grandes cidades.

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Classe mercantil inglesa Fabricantes versus Comerciantes coloniais urbanos

No caso das colônias inglesas, que conquistaram a independência antes da explosão

revolucionária europeia, a contradição se polariza como Fabricantes e Comerciantes Coloniais

Urbanos versus Classe Mercantil Inglesa.

Os Fabricantes e Comerciantes Coloniais Urbanos passaram a se orientar para a

reivindicação de uma integração mais igualitária possível nos negócios metropolitanos e para a

conquista de uma representação no Parlamento Inglês, quando a metrópole inglesa se tornara a

maior potência comercial, a partir de 1763, fim da Guerra dos Sete Anos. A esses não só a

representação foi negada, como o monopólio comercial foi agravado com um novo tributo

sobre a importação de chá, para custear o empreendimento indiano da Inglaterra, que começou

com o fim da Guerra dos Sete Anos, em 1763, viabilizado pela vitória sobre os franceses na

Índia, em 1757. A associação com a metrópole que até então era útil e lucrativa, nesse

momento passa a significar um obstáculo, e a dependência comercial em relação às metrópoles

colocam em movimento as forças sociais internas que aspiram a emancipação. O conflito que

polariza essa terceira contradição tem sua origem nos interesses das colônias noroeste

industrializado, mas foram as colônias escravistas do sul que comandaram a guerra contra a

metrópole em 1776. (LETIZIA, 2012, p. 14)

Destacamos, na perspectiva de Letizia, que o que diferencia o processo de

Independência do hemisfério norte, do hemisfério sul do Continente Oeste – Atlântico , é a

participação do “povo miúdo”, ou seja, homens livres das cidades no processo de

Independência que só foi decisivo nas colônias inglesas, o que vai marcar o desfecho dessa

contradição. Nas colônias Inglesas o “povo miúdo” era numeroso devido aos estaleiros

fornecedores de navios mercantes à marinha inglesa, – então a maior do mundo – as oficinas

que produziam artigos manufaturado para as ricas colônias do Sul e ao vasto pequeno

comércio que girava em torno dessa produção. Pelo fato de o “povo miúdo” ter se colocado

em movimento no caso das colônias inglesas o processo independentista apresentou

dimensões semelhantes às de uma revolução. Porém, a “revolução americana”

verdadeiramente não ocorreu33, porque não foi “sacudida a hegemonia das colônias escravistas

33Com essa formulação LETIZIA se afasta de interpretações como a de B. Moore sobre a Revolução Americana em MOORE Jr., Barrington. As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia: senhores e camponeses na

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do Sul”, que foi quem comandou a guerra contra a metrópole. Os Fabricantes e Comerciantes

do Norte que não tinham relevância na lógica mercantil em comparação ao Sul escravista

exportador, foram alçados a coparticipes do poder, mas não abalaram a hegemonia do Sul que

continuava sendo mais importante economicamente34. (LETIZIA, 2012, p. 15).

Destacamos a perspectiva de que na nova federação das ex-colônias inglesas, apesar do

massacre das sociedades nativas e da opressão sobre os afrodescendentes, a vitória dos

interesses dos Fabricantes e Comerciantes Coloniais Urbanos aliados a insurreição de grande

envergadura do “povo miúdo”, forçou a constituição de uma nação soberana.

A constituição de uma nação soberana no processo de emancipação dos Estados

Unidos está relacionada também com a regulamentação bastante progressista do acesso à terra,

após a Guerra da Secessão (1861-1865). (LETIZIA, 2012, p. 21)

Examinando a ressonância da aspiração à liberdade no Continente Oeste – Atlântico, a

aspiração da liberdade formulada pela burguesia implica na liberdade de homens que têm

acesso à liberdade da terra. Os Estados Unidos foram o único país que permitiu um acesso

amplo à terra e o fez excluindo dele todos os descendentes de africanos, escravos ou livres, e

às custas do extermínio das sociedades nativas.

Destacamos em Letizia, a distinção entre reforma agrária e livre acesso à terra. Nos

Estados Unidos não se fez reforma agrária, se deu livre acesso à terra. O termo reforma

agrária, pelo menos no debate brasileiro, é portador de uma ideia de desenvolvimento

econômico da nação relacionado ao acesso à terra vinculado a viabilidade da produção na

terra: o acesso ao crédito, assessoria agrícola, condições de escoamento da produção etc. A

ideia de livre acesso à terra elucida a primazia de que a terra é do povo, é a base da existência

material, desses que antes de ser povo cindido em classes, precisam existir. O livre acesso à

terra coloca a perspectiva do acesso e ao mesmo tempo do limite para a apropriação de terras.

construção do mundo moderno. Trad. Maria F. Ludovina Couto. São Paulo, Martins Fontes, 1983; e APTHERKER, Herbet. Uma nova história dos Estados Unidos: a Revolução Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969; NEVINS, Allan; COMMAGER, Herny Steele. Breve história dos Estados Unidos. São Paulo: Alfa-Omega, 1986; ambos argumentam que 1776 Guerra de Independência é considerada a Primeira Revolução Americana; e a A Guerra de Secessão entre os anos de 1861 e 1865 a Segunda Revolução Americana.

34Esclarecimento feito em entrevista . Roteiro 5, Brasil, Pergunta 6: Por que o modelo e as conquistas da Revolução Americana não são incorporadas nas analises da luta pela democracia e por liberdades? (p. 44)

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As terras foram entregues ao povo nos estados do norte, mas nos estados do sul a

distribuição de terra não funcionou a contento. Isso impediu que a nação americana fosse uma

nação também de negros, ou seja, uma sociedade com agricultores negros e agricultores

brancos fazendo parte da sociedade econômica. Esse constitui o aleijume da sociedade norte

americana, em que os negros foram empurrados para uma condição de segregação sem

precisar de leis: eles não fazem parte obrigatoriamente do proletariado, não fazem parte da

sociedade econômica capitalista. O desenvolvimento econômico, combinado com a

discriminação social e a política de extermínio dos nativos, veio a formar uma comunidade

nacional aleijada, que combina a liberdades com a opressão. Veio a perpetuar um

segregacionismo, voluntário ou não, entre guetos mais ou menos hostis. Esse aleijume social

fez dos Estados Unidos o país em que mais se falseou a aspiração à igualdade. A capa de

hipocrisia arrogante que encobre as desigualdades e discriminações sociais nos EUA é de

espessura insondável. Mas a prosperidade econômica e a contínua vinda de novos imigrantes

em busca de oportunidades de enriquecimento, “o sonho americano” dos habitantes de países

com menos oportunidades de sucesso material, tem permitido perpetuar essa realidade.

(LETIZIA, 2012, p. 16)

Portanto, a constituição de uma nação soberana no processo de emancipação dos

Estados Unidos, diferente do resto da América, está relacionado com o movimento de o povo

ter entrado na guerra contra os ingleses e a regulamentação bastante progressista do acesso à

terra. No caso dos Estados Unidos o aleijume da comunidade nacional está relacionado à

discriminação e ao racismo, inclusive a dos EUA, em que pese o mito da “democracia

americana”.

Classe mercantil hispânica versus Comerciantes coloniais urbanos

Nas colônias hispânicas a contradição se polariza como Comerciantes Coloniais Urbanos

versus Classe Mercantil Hispânica. Os comerciantes coloniais urbanos eram os que mais

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sofriam a decadência marítima de suas metrópoles. Entretanto, o acanhamento da atividade

fabril ou sua inexistência limitava também suas ambições. Estas, quando estourou a crise, não

iam muito além de uma abertura maior de seus portos ao comércio internacional. Por isso, nas

colônias hispânicas, o primeiro movimento autônomo da burguesia urbana não foi mais que

uma reação contra a submissão de Fernando VII a Napoleão em 1807. (LETIZIA, 2012, p.14)

Destacamos, em Letizia, que em comum nas diversas colônias ibéricas o “povo miúdo” de

homens livres das cidades não pôde fazer valer suas aspirações nos Movimentos de

Independência que ficaram restritos às grandes manobras da classe mercantil urbana. A falta

de manufaturas limitou seu número, geralmente menor que o dos serviçais da burguesia

urbana, e a atrofia econômica das cidades confinara-os nas atividades artesanais e num

comércio local limitado pelas dificuldades de acesso do “povo miúdo” à moeda metropolitana.

Não tinha, portanto, meios de se impor ante os poderosos comerciantes

exportadores/importadores, os quais tendiam a ser tão conservadores quanto seus ricos

clientes.

O estamento servil também não se moveu nas principais ex-colônias hispânicas, o que fez

da emancipação uma quase perfeita continuação da sociedade colonial sob o comando da

classe mercantil unida em torno da exploração dos nativos, mantida sem retoques35. A

particularidade da rebelião de Tupac Amaru (1780) fez com que a classe mercantil no Peru

tivesse que ter cautela diante da possibilidade histórica do povo entrar enquanto tal no

processo de independência nacional. Diante dessa inviabilidade para os padrões de

emancipação moderna na América Latina, a emancipação só poderia vir de fora, como

35

Com essa formulação Letizia se afasta da interpretação de CARDOSO, Ciro Flamarion. História Econômica da América Latina. Rio de Janeiro: Graal, 1983; CASANOVA, Pablo Gonzalez, org. América Latina: história de médio Siglo. México: Siglo Vienintiuno, 1985, v.2; e POMER, Leon. As independências na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1981: “Os Estados da América Latina se organizam a partir de situações pré nacionais...(...) A herança colonial se transfere intacta; a exceção diz respeito à organização política. Ou à intenção que ela busca, segundo os planos dos seus idealizadores. POMER, L. O surgimento das nações. “ O capitalismo cria uma nova totalidade : o sistema econômico mundial, cujas implicações políticas e culturais são enormes. É impossível se entender a formação dos Estados na América Latina se se desconhece isto, se ignora que, nesta totalidade ha um pólo central que comanda o sistema e múltiplas regiões que serão comandadas. (POMER, Leon. op. Cit)

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efetivamente veio, com o exército de Bolívar. (LETIZIA, 2012, p. 15)

Destacamos que a área hispânica foi a que mais preservou as hierarquias coloniais e por

mais tempo tem mantido a opressão sobre um estamento nativo inferior. O estamento servil

hispânico foi abolido legalmente, porém, na vida prática, os ex-colonos, superiores e

inferiores, continuaram tratando os nativos como inferiores. Nas ex-colônias hispânicas, as

hierarquias sociais são mais rígidas do que na ex-colônia portuguesa. (LETIZIA, 2012, p.

16/17)

Outro elemento de destaque é que na área latina em geral persistiram a servidão, a

escravidão e a recusa ou o engodo quanto à distribuição de terras. A única exceção latina foi o

Uruguai, onde houve uma verdadeira revolução libertadora dos homens e da terra, ainda que

interrompida e por isso não abrangente de toda a população, mas que prosseguiu pelas brechas

abertas pela revolução de 1814-15, que não puderam ser fechadas completamente. Porém, a

interrupção da revolução não permitiu que prosseguisse a construção de uma nação soberana,

devido à persistência da hegemonia política da burguesia do porto de Montevidéu. (LETIZIA,

2012, p. 21)

Já a “democracia costa-ricense” não é uma exceção verdadeira. Porque a livre ocupação

do Planalto do país, que se deu no vazio (nada exportável se podia produzir ali na época da

independência), foi logo contrabalançada pelo enclave bananeiro da Costa, criado pelos

americanos, o que distorceu a necessária relação com o mercado mundial, uma vez que isso

fez com que a economia relevante ficasse em mãos de estrangeiros. Estes ficaram com o

controle político de toda a população da área bananeira, que nunca foi pequena. Essa mistura

econômica e política permitiram a estabilidade do regime republicano legal, o que não foi

comum no resto da América Latina, mas não a construção de uma nação soberana. (LETIZIA,

2012, p. 22)

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Classe mercantil portuguesa versus Comerciantes urbanos e traficantes de escravos coloniais

Na Colônia Portuguesa a contradição se polariza entre Comerciantes Urbanos e

Traficantes de Escravos Coloniais versus Classe Mercantil Portuguesa. O segmento mercantil

urbano, do qual faziam parte os traficantes de escravos consideraram seus interesses atendidos

com a abertura dos portos a todas as nações amigas em 1808. Porém, isso evoluiu para a

independência devido ao interesse dos traficantes e agrários em perpetuar o escravismo.

(LETIZIA, 2012, p. 14)

E na colônia portuguesa, o “povo miúdo” das cidades, ao qual se misturavam ex-

escravos forros e os negros de ganho, mobilizou-se instantaneamente, apesar de estarem os

africanos, em geral, também muito atentos à revolta escrava do Haiti, sobre a qual versejavam

e cantavam. A agitação emancipacionista foi grande, seguindo de início a liderança de Dom

Pedro, caso único de herdeiro de trono europeu a se tornar líder do povo de uma colônia. Isso

vinha de seu projeto político, o qual, em aliança com a Inglaterra - que encerrara seu tráfico

negreiro -, se baseava na definição de uma data próxima para o fim da escravatura. Tal projeto

deflagrou a união imediata dos importadores de africanos com os agrários em torno da

perpetuação do escravismo. Ao mesmo tempo, a tendência do monarca a se apoiar

principalmente nos numerosos imigrantes portugueses vindos com a Corte em 1808 e

devotados a ele, mas favoráveis à manutenção do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves,

facilitou a queda do “povo miúdo” na manobra demagógica dos escravistas, que o incitaram

contra “os portugueses contrários à independência”, o que resultou na abdicação de Dom

Pedro oito anos depois. Essa vitória dos escravistas lhes permitiu resolver a questão agrária a

seu gosto, mantendo momentaneamente a garantia do uso da terra ocupada pelos posseiros,

acompanhada pela promessa de uma solução definitiva mais tarde. LETIZIA registra que

dessa perspectiva de análise, não foi o atraso político da Cabanagem, a revolta regional dos

mais pobres, que a levou a se reivindicar do imperador Pedro, como sustentam os historiadores

do Brasil36. (LETIZIA, 2012, p. 15)

36

Com essa formulação Letizia se afasta de interpretações como a de: NOVAIS, Fernando. A Invenção do Brasil. (Revista Teoria e Debate entrevista abril de 2000): “ A Independência (do Brasil) representa então, de certa forma, ajustar a sociedade ao Estado. A Nação funciona para esse ajuste, é inventada para dizer: “nós somos o Brasil”. E esse nós abrange índios, negros, a plebe urbana e o senhoriato. Como se para os negros e os índios houvesse alguma diferença entre ser governado pelo sonhoriato ou pela metrópole. Na verdade, houve diferença

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Na ex-colônia portuguesa, a desigualdade fundada sobre os privilégios outorgados aos

encarregados de comandar o projeto mercantil da metrópole, apareceu à fenda social entre

descendentes dos beneficiários do empreendimento mercantil, aos quais se agregaram depois

imigrantes europeus de outras nações, e os descendentes dos excluídos do acesso à

propriedade da terra na época colonial. Depois estes foram se espalhando pelas cidades

brasileiras. O crescimento econômico e o êxodo rural dele decorrente foram urbanizando,

europeu-descendentes pobres, misturados com ex-caipiras, ex-agregados de fazenda e ex-

negros de ganho, nos cortiços e favelas das grandes cidades. (LETIZIA, 2012, p. 17)

Mas a ex-colônia portuguesa teve ainda a particularidade da frágil legitimidade da

apropriação da terra pelos herdeiros da classe mercantil colonial, por meio da lei de terras em

1850. A monopolização da terra no Brasil foi colocada numa legalidade defeituosa, visível na

expansão das fazendas por meio da grilagem mancomunada com poderes locais, o que tornou

a hierarquia social brasileira menos estável do que as ex-colônias hispânicas. Na ex-colônia

portuguesa a dominação social teve que se combinar com a “cordialidade” (no dizer de Sérgio

Buarque de Holanda). Ao mesmo tempo, porém, a precária legitimidade dos privilégios da

classe dominante tornou as relações de poder mais necessitadas de violência quotidiana, tanto

no campo como nas cidades. Tais características contraditórias se manifestam nas relações

“democráticas” entre as classes sociais e, ao mesmo tempo, na violência endêmica no campo e

nas relações entre o Estado opressor e as favelas, que são até hoje tratadas como áreas

especiais, habitadas por “semicidadãos” com direitos civis reduzidos. (LETIZIA, 2012, p. 17)

Portanto, o processo de formação do Estado nação na América Latina, diferente dos

Estados Unidos, está relacionado com o movimento de independência em que o povo não

participou e com a característica marcante do não acesso à terra. Esses elementos são

constitutivos do aleijume de nascença do Estado nação na América Latina.

sim, mas para pior.” (NOVAIS, 2000, p.1) “ E quando D. João VI veio para cá, tivemos um caso curioso, em que o Estado foi à frente das demandas da sociedade. D. João transformou o Brasil em sede do Império e foi muito além das demandas do senhoriato colonial. O Estado deu mais coisas do que a sociedade estava pedindo (...) Por isso, a Independência do Brasil é uma revolução conservadora. Uma colônia virar uma nação é uma revolução. Mas ela é conservadora porque se fez para conservar algo que ja tinha sido feito no período joanino. (NOVAIS. op. Cit)

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2.2.4 Quarta contradição: contradição entre forças sociais internas nos novos Estados

Independentes

Seguindo a abordagem de inspiração marxiana de LETIZIA (2012), que sugere para

entender cada momento sucessivo do processo histórico do Continente Oeste – Atlântico, é

necessário identificar as forças sociais cujas contradições o puseram em movimento, a quarta

contradição que põe o processo histórico em movimento no Continente Oeste – Atlântico são

contradições nascentes nos processos de criação de novos Estados.

Essa quarta contradição é um terceiro desdobramento, novamente interno, da contradição

principal do processo emancipatório entre Classe Mercantil Colonial versus Classe Mercantil

Metropolitana que era uma contradição externa. A nova contradição é a que pôs em

movimento os novos estados independentes.

O conflito interno entre os grandes segmentos da nova classe capitalista –industriais e

agrários — gerou a primeira contradição que pôs em movimento os novos estados

independentes, sendo, nesse momento, ainda secundário o papel das classes subalternas. Nesse

novo momento do processo histórico é preciso distinguir antes de tudo a contradição motriz,

que resultou na cisão da classe mercantil transformada em capitalista e os agrários. Esta

contradição foi decisiva dos rumos políticos tomados pelos EUA, onde desembocou numa

guerra civil, e pouco influente nas ex-colônias ibéricas como um todo, onde sempre

desembocou numa união de estabilidade variável em torno de privilégios coloniais

perpetuados. (LETIZIA, 2012, p.17)

Nas ex-colônias inglesas a contradição se polarizou entre Fabricantes e Comerciantes

Exportadores/Importadores versus Agrários escravistas; Agrários, Industriais e Comerciantes

Exportadores/Importadores versus Pequenos Agricultores e Comerciantes. Por sua vez, nas

ex-colônias hispânicas principais a contradição se polarizou entre Comerciantes Urbanos

versus Agrários Exploradores de um Estamento Servil; Agrários e Comerciantes

Exportadores/Importadores versus Artesãos e Pequenos Comerciantes.

E na ex-colônia portuguesa a contradição se polarizou entre Comerciantes Urbanos versus

Agrários Escravistas; Agrários e Comerciantes Exportadores/Importadores versus Artesãos e

Pequenos Comerciantes; Agrários versus Ocupantes Informais da terra.

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Fundar um Estado independente é um ato de vontade do bloco político dominante. No

período de construção de novos Estados no Continente Oeste – Atlântico, que se abre após o

reconhecimento das emancipações políticas, vieram à tona as contradições entre as forças

sociais internas das ex-colônias, cujos interesses diversos se chocaram nas decisões sobre o

rumo político a ser seguido. (LETIZIA, 2012, p.17)

Criar uma nação soberana implica relações com outras nações que aceitem tornar efetiva

tal criação. A relação com outras nações tem um conteúdo econômico inerente, que, para os

países do Ocidente significou a ocupação de um espaço no grande mercado internacional

aberto pelas grandes navegações e, desde 1815, o livre acesso direto ao mercado mundial

aberto pelas potências industriais. Isso se manifesta como movimento expansionista comercial,

razão pela qual é posta sempre pela burguesia comercial. Sem esse conteúdo econômico, a

questão da nação se colocaria unicamente como direito de uma etnia, que é um povo unificado

por uma língua, uma religião e um território comum, original ou presente. (LETIZIA, 2012,

p.19)

Na Europa, pelo fato do sentido histórico da Revolução Francesa ter sido derrotado, os

movimentos europeus ficaram cada um a cargo de sua própria tarefa nacional. A tarefa

nacional faz parte da Revolução Francesa porque a burguesia francesa rapidamente

transformou a Revolução Francesa universal em uma revolução nacional, a burguesia não vai

além do nacional. A constituição do Estado Nação é um desenvolvimento burguês, mas em

sendo um desenvolvimento no qual o capitalismo desenvolve suas potencialidades produtivas,

é visto como uma necessidade histórica, na perspectiva de análise marxista. A inevitável

lógica expansiva do capitalismo é o processo em que o Estado nacional vai crescendo como

uma tarefa e se impondo a todo mundo. As nações burguesas no século XIX se desenvolvem

como uma necessidade histórica de desenvolver o capital em suas potencialidades,

desenvolver seus pontos produtivos como parte das forças históricas em expansão. E da

perspectiva da classe trabalhadora, o proletariado se desenvolve como classe antagônica e

complementar nesse processo, de modo que o movimento revolucionário europeu se dividiu

em movimentos nacionais. 37

37 Entrevista : Roteiro 2, Pergunta: 5. Por que o movimento revolucionário europeu se dividiu em movimentos nacionais? Por que seus grandes proponentes eram as classes educadas?

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O nacional, no sentido em que emerge da revolução burguesa, identificando soberania da

nação com Estado soberano, era um projeto a ser inventado na América Latina, na medida em

que não repousava sobre antecedentes históricos que levassem a identificar, necessariamente,

as divisões administrativas dos Impérios iberoamericanos, como Estados nacionais

emergentes. Não existiam, aí, nem burguesias ascendentes disputando a hegemonia no interior

de formações sociais identificadas com as nações a configurarem mercados nacionais (Europa

Ocidental, Estados Unidos da América), nem nobreza ameaçada em suas liberdades

tradicionais e hegemonias, que identificassem a defesa destas com o interesse da nação,

entendida como conjunto de liberdades diferenciadas interdependentes (Europa Central e

Oriental), ou, ainda, não despontavam alianças de classe combinando, de forma variada, as

matrizes básicas referidas. (JANCSÓ, 2002, p. 4)

Destacamos em Jancsó que no caso da América Latina, houve uma estreiteza de

condições para a formulação e implementação prática de projetos de tipo nacional, entendidos

como codificação da necessidade e da possibilidade prática de construção de uma nova

organização do Estado que suportasse, instrumentalmente, um novo equilíbrio entre as classes

constitutivas das formações coloniais. O caráter de classe das exteriorizações da negação da

forma de Estado vigente foi sistematicamente excludente e os movimentos não contemplavam

os interesses de segmentos diferenciados das sociedades em cujo interior se gestaram ou

eclodiram. Em nenhum deles pode-se notar a participação diferenciada de grupos que

apontassem, mesmo que tendencialmente, para a constituição de alianças de classe (ainda que

de amplitude limitada) (JANCSÓ, 1993, p. 12)

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2.2.5 Quinta Contradição: desenvolvimento capitalista dependente

Em todos os países da América, soberanos ou não, houve desenvolvimento capitalista

(1815-1945). Seguindo a abordagem de inspiração marxiana de LETIZIA (2012), que sugere

para entender cada momento sucessivo do processo histórico do Continente Oeste – Atlântico

é necessário identificar as forças sociais cujas contradições o puseram em movimento, em

termos gerais, a contradição força motriz do desenvolvimento capitalista nos países

americanos foi a polarização entre polarização entre Novo Proletariado versus Burguesia

Industrial.

No entanto, além dessa contradição principal a depender dos desdobramentos das

contradições em cada formação social opera o movimento de outras forças sociais. Em termos

gerais, as novas contradições motrizes dos países americanos foram as seguintes:

• Novo Proletariado�Burguesia Industrial

• Pequenos Agricultores e Comerciantes� Burguesia Exportadora/Importadora

• Nova Classe Média�Grande Burguesia, nos EUA;

• Novo Proletariado�Burguesia Industrial

• Nova Classe Média�Grande Burguesia, na área hispânica principal;

• Novo Proletariado�Burguesia Industrial

• Nova Classe Média�Grande Burguesia

• Agrários�Ocupantes Informais da Terra, no Brasil.

O desdobramento dessas contradições relança a questão da construção nacional no

decorrer do século XX.

Destacamos nesse esquema que o surgimento de um proletariado industrial não é

concomitante à formação de um verdadeiro mercado de trabalho. Este demorou bastante a se

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formar na América, só se constitui nos EUA por volta de 1919 e em alguns países latino

americanos por volta de 1930. O mercado de força de trabalho se constitui tardiamente e o

exército industrial de reserva permaneceu na Europa até 1919-1930.

A entrada em cena de um proletariado industrial numericamente significativo forçou a

burguesia a reorientar os termos do debate sobre as decisões a tomar sobre a construção

nacional, saindo da discussão dos mitos que forjavam uma identidade nacional para a

realidade social.

O desenvolvimento capitalista da América teve por base geral a expansão e

diversificação do mercado mundial de produtos primários e o grande afluxo de imigrantes

europeus, que, na América ibérica, se acelerou a partir dos anos 70 do século XIX. Todos os

países da América tiveram algum desenvolvimento, porém cada país teve seu próprio grau de

desenvolvimento, assim como um momento particular de sua aceleração, em função de fatores

históricos. O mais importante desses fatores foi a abolição da escravatura, que, nos EUA,

ocorreu definitivamente em 1865 e no Brasil em 1888; e o segundo em importância,

parcialmente derivado dela, foi a grande entrada de imigrantes europeus, com a qual vieram

também organizações operárias e, com elas, novos métodos de luta social, elementos

fundamentais desse desenvolvimento.

No Brasil, após o fim do tráfico de africanos (1850), começa a entrada significativa de

imigrantes europeus chamados a substituir mão-de-obra escrava a partir de 1874, (houve uma

fracassada em 1840, em plena vigência do tráfico de africanos). Essa entrada de italianos, se

intensificou a partir da Abolição de 1888.

Na América hispânica, esse fator teve menos importância nos países estratificados em

classe dominante e estamento servil, que não foi substituído por europeus. Nestes, o

desenvolvimento social foi muito menor. Embora não seja exceção, cabe assinalar o caso do

México, onde os nativos fizeram sua primeira (e única) aparição no cenário da história pós-

colombiana, com a Revolução de 1910-17. Infelizmente a derrota, para a qual contribuiu a

intervenção armada do operariado de origem europeia, não lhes permitiu sair do porão social

em que se encontram até hoje38. Razão pela qual a conquista da propriedade coletiva

38 Uma parte da historiografia marxista definem a guerra civil deflagrada no México em 1910 como revolução proletária. Nos aproximamos das interpretações que a entende como uma grande revolta indígena (Zapata no Sul)

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concedida aos nativos na constituição mexicana de 1917 terminou se verificando vazia.

A América hispânica beneficiou-se em escala menor do desenvolvimento do século

XIX exceto Uruguai, Argentina e Chile, onde houve precoce desenvolvimento social. Nesses

países, o passado histórico colonial pesou menos, pela maciça presença de imigrantes

europeus e a abundância de recursos naturais de exploração fácil (o Pampa, minas a céu

aberto), a expansão rápida da demanda de couro, lã, cobre, guano (e carne, a partir do

surgimento da frigorificação nos anos 80 passados) favoreceu um desenvolvimento econômico

mais rápido. O desenvolvimento social, entretanto, foi maior e a riqueza menos concentrada

no Uruguai, onde não foi entravado por governos extremamente repressivos, como os de Chile

e Argentina.

Nos EUA, a entrada de imigrantes começa desde 1820, mas a grande vaga começa em

1865, após o fim da Guerra da Secessão (1861-5), quando os governos nortistas passaram a

acelerar a distribuição de terras a europeus, invadindo territórios nativos a Oeste do Mississipi.

A entrada em cena dos imigrantes europeus, atraídos pelo forte dinamismo da economia da

América gerou novas contradições, que passaram a mover os países americanos. A principal

delas é o novo proletariado de origem europeia, a substituir mão-de-obra escrava e a produzir

para atender à insaciável sede de produtos primários das potências industriais.

No Brasil, gente de origem humilde, como o exemplo de Mauá, ascendeu ao cume da

classe burguesa em meados do século XIX, em plena época escravista e, logo depois, começou

a entrar um fluxo persistente de imigrantes europeus substitutos de mão-de-obra escrava, aos

quais se teve que pagar algum tipo de salário. Muitos desses imigrantes, possuidores de

conhecimentos técnicos e tino comercial, vieram a prosperar como agricultores, industriais e

comerciantes, assim como os operários.

Destacamos no desdobramento da contradição Novo Proletariado versus Burguesia

Urbana e Agrária, que a partir do fim do século XIX até oinício do século XX, quando se

constitui uma classe proletária na América Latina com vinculo muito forte com o processo de

imigração, a situação de grande parte do operariado mundial era de inserção na sociedade

capitalista por meio de um emprego, fragilizando o projeto de derrubá-la. Isso não acontecia

e dos mestiços submetidos à servidão (Pancho Villa no Norte), esmagada por uma contra-revolução burguesa, com a ajuda militar decisiva do operariado de origem europeia.

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no tempo de Marx, quando o objetivo da maioria dos operários era derrubá-la. Nesse sentido,

ressaltamos a importância de servir do método de Marx para notar o desdobramento dessa

contradição fundamental no capitalismo, pois essa situação do operariado a nível mundial

transformou o capitalismo, de sistema ameaçado em sistema estável quando a contradição

capital e trabalho de fato se coloca nas formações sociais dependentes.

2.3 Questão nacional em formações sociais dependentes

Neste item tratamos de examinar o conteúdo da questão nacional na América Latina

buscando identificar diferenças com relação ao conteúdo que se universalizou como

desdobramento dos processos europeus (não homogêneos). Numa primeira aproximação

diríamos: enquanto no segundo, as aspirações nacionais foram sintetizadas na forma de

organização social própria da dominação burguesa que é o Estado-Nação; na primeira, essas

aspirações nacionais repousam no povo portador da tarefa de realizá-las.

(Quadro 2) Desdobramentos das contradições

1º e 2º contradição Sociedade Nativa

Negada

Modo de agir com violência (2.3.1)

3º e 4º contradição Aleijume de nascença do

Estado nação

Vazio da questão nacional na

formação do Estado Nação

(2.3.2)

5º contradição Desenvolvimento

capitalista dependente

Desenvolvimento capitalista

dependente e Imperialismo

(2.3.3)

Tarefas Nacionais transmitidas a épocas posteriores

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2.3.1 Modo de agir com violência

Nesse item intitulado “modo de agir com violência” examinamos o desdobramento da

1º e 2º contradições que movem o processo histórico na América Latina deflagradas

respectivamente nos processos históricos de invasão e colonização. A colonização teve como

característica a rejeição das sociedades nativas, a partir da qual se compreende o molde

gerador das formações sociais dependentes caracterizado pelo “o modo de agir com

violência”.

A violência é o “tipo de contradição” ou é “a marca” de como a contradição vai se

desenvolver no processo histórico do Continente Oeste – Atlântico.

Identificar a violência como força motriz do processo revela o fundamento

predominante nas relações sociais marcadas pela violência exacerbada das forças opressoras

dos Estados Nacionais, pelo desprezo à vida, pela prática da opressão e humilhação e

notadamente pela exploração da força de trabalho.

Neste momento, destacamos que essa violência é desdobramento de um processo

distinto da violência própria da sociedade de classes em geral. Trata-se de uma violência que

não opera na condição de um ser humano sobre outro, mas no caso rejeita a humanidade de

homens, mulheres e crianças, ao negar as nações primitivas das colônias no continente a oeste

do Atlântico.

Desse modo, identificar a violência como força que move a contradição no continente é

reconhecer a condição de sub-humanidade em que foram lançados os povos nativos da

América Latina, como resultado de uma violência de natureza distinta a da violência

identificada por Marx na Assim chama Acumulação Primitiva, Capítulo XXIV, O Capital.

No caso da Europa, Marx (1983) no Capitulo XXIV: A assim Chamada Acumulação

Primitiva, capítulo histórico de O Capital, crítica da economia política, mostra como a

acumulação primitiva que precede a acumulação capitalista, ou seja, as condições da

acumulação que não é resultado do Modo de Produção Capitalista, mas sim seu ponto de

partida, desempenha na Economia Política um papel análogo ao que o pecado original

desempenha na teologia. Desse “pecado original” data a pobreza da grande massa que apesar

de todo o seu trabalho, nada possui para vender senão a si mesmo, e a riqueza dos poucos, que

cresce continuamente, embora há muito tenham parado de trabalhar.

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Olhando para o processo histórico de Inglaterra, Marx mostra como na história a

violência desempenhou o papel principal o que entra em conflito com a narração idílica que

reina na Economia Política Clássica sobre esse mesmo processo, como se a “mão invisível” de

Adam Smith tivesse dado conta de apagar a violência da história em nome do equilíbrio social.

Isso intrigou o jovem Marx quando se debruçava, pelos anos de 1844, nos estudos dos

Economistas Clássicos que tinham como pressuposto a propriedade privada, presente com

grande centralidade nos fundamentos da Ciência Politica Clássicos (jusnaturalismo/

contratualistas), e que na origem da Ciência Econômica simplesmente não aparece.

Podemos dizer que no Capitulo XXIV de O Capital, Marx trabalha com os

esquecimentos da Economia Política reivindicando “lucidez” sobre esse processo histórico em

que a violência foi a protagonista na separação do trabalhador das condições de realizar

trabalho. A indagação levantada pelo autor indica um sentido que é se perguntar quais

poderiam ser os esquecimentos da Economia Política se os pressupostos dessa ciência são

apoiados na história. O “esquecimento” é o esquecimento absoluto de que o homem em

sociedade de classe não pode ter conhecimento dos acontecimentos violentos que deram

origem a sociedade cindida. Em qualquer formação histórica a sociedade de classes é penosa

ao homem, trata-se de uma transição violenta de homens iguais no estado de cooperação para

Homens (humanidade) divididos em classes na qual o trabalho que deve contribuir para a

produção social não é favorável quem trabalha, mas é favorável a outrem.

Esse processo penoso de transição violenta deve ser esquecido para parecer tudo uma

transição natural da propriedade da natureza, à propriedade familiar, à propriedade do capital.

O “esquecimento do processo violento” aponta para a narrativa idílica de Adam Smith e David

Ricardo, que desenvolvem uma abordagem como se a Humanidade não pudesse organizar o

trabalho de outra forma.

O “esquecimento da dimensão violenta do processo histórico” é funcional para ocultar

a violência da constituição do mercado de trabalho, a rigor mercado de força de trabalho

transformada em mercadoria, para que a sociedade se reproduza.

Marx elucida ainda que “o esquecimento do movimento histórico” que transforma

trabalhadores em assalariados tem o Estado como organizador desse esquecimento.

Essas são dimensões fundamentais da crítica de Marx à economia política clássica ao

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procurar identificar o tipo de contradição que move o processo histórico na Europa na

transição do modo de produção feudal ao modo de produção capitalista, transição essa que

teve o protagonismo da violência como “parteira da história”.

A necessidade de se ter lucidez do papel da violência no processo histórico da América

esta relacionada, portanto, à identificação do tipo de contradição, dentro da metodologia que a

história é movida por forças em conflito social e essas forças desencadeiam o processo.

Ressaltamos que entender o tipo de contradição que desencadeia o processo é pressuposto

para desenvolver o marxismo próprio do pensamento crítico da América.

A violência da acumulação primitiva não rejeitou homens, mulheres, nem mesmo

crianças, ao contrário todos foram, considerados aptos para arrancados de seus modos viventes

e expropriados dos meios de produção para ser transformados em força de trabalho.

Essa violência imprime um tipo de contradição fundamentalmente diferente da

violência de rejeitar a humanidade de homens, mulheres e crianças ao negar as sociedades

nativas das colônias na América.

Nessa perspectiva de apontar a violência para entender o tipo de contradição que

desencadeia o processo histórico em sociedades coloniais, destacamos, como exemplo, as

contribuições de Fanon e Quijano.

Frantz Fanon (1979) é um dos autores que destaca o papel da violência em sociedades

colonizadas, e nesse sentido qualifica a "dureza interna" que destacamos em Letizia. Em “Os

condenados da Terra”, sobre a Argélia, ele qualifica a violência em se tratando do mundo

colonizado:

O primeiro confronto dessas forças se desenrolou sob o signo da violência, e sua coabitação – mais precisamente a exploração do colonizado pelo colono – prosseguiu graças às baionetas e aos canhões. O colono e o colonizado são velhos conhecidos. E, na verdade, o colono tem razão quando diz que “os” conhece. Foi o colono que fez e continua fazendo o colonizado. O colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial. (FANON, 1979, p. 52)

Nesse sentido, a libertação nacional ou o renascimento nacional, a restituição da nação

ao povo sempre será um processo violento de descolonização, porque será uma substituição de

uma “espécie de homens por uma outra espécie de homens”.

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A descolonização modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores esmagados pela inessencialidade em atores privilegiado, tomados de maneira grandiosa pelo rumo da história. Ela introduz no ser um ritmo próprio, trazido pelos novos homens, uma nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonização é verdadeiramente a criação de homens novos. Mas essa criação não recebe a sua legitimidade de nenhuma potência sobrenatural: a “coisa” colonizada se torna homem no processo mesmo pelo qual se liberta. (Fanon, 1979, p. 52)

Destacamos em Fanon (1979), a instância de análise: a realidade humana. A

colonização é um fenômeno da sociedade de classes. Mas a instância de análise de “se tornar

homem” precede a luta de classe, ao mesmo tempo em que a pressupõe no processo em que

essa humanidade se liberta. Nesse processo, além da violência própria da luta de classe, a

formação social colonizada pressupõe o questionamento de uma violência absoluta, para qual

o colonizado esta preparado desde sempre. (Fanon, 1979, p. 53).

O mundo colonizado é um mundo cortado em dois. A linha de corte, a fronteira, é indicada pelas casernas e pelos postos policiais. Nas Colônias, o interlocutor legítimo e institucional do colonizado, o porta voz do colono e do regime de opressão é o policial ou o soldado. Nas sociedades de tipo capitalista, o ensino, religiosos ou leigo a formação de reflexos morais transmissíveis de pai para filho, a honestidade exemplar de operários condecorados depois de cinquenta anos de bons e leais serviços, o amor estimulado à ordem estabelecida, criam em torno do explorado uma atmosfera de submissão e de inibição que alivia consideravelmente a tarefa das forças da ordem. Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder interpõe-se uma multidão de professores da moral, de conselheiros, de "desorientadores". Nas regiões coloniais, em contrapartida, o policial e o soldado, por sua presença imediata, suas intervenções diretas e frequentes, mantêm o contato com o colonizado e lhes aconselham, com coronhadas ou napalm, que fiquem quietos. Como vemos, o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não alivia a opressão, não disfarça a dominação. Ele as expõe, ele as manifesta com a consciência tranquila das forças da ordem. O intermediário leva a violência para as casas e para os cérebros dos colonizados. (FANON, 1979, p.54)

Nas Colônias, o interlocutor legítimo e institucional do colonizado, o porta voz do

colono e do regime de opressão é o policial ou o soldado, ou seja, o intermediário do poder

utiliza uma linguagem de pura violência, diferente da violência em sociedades de classe em

geral que conta também com mediações sofisticadas.

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Destacamos em Fanon essa dimensão do mundo colonizado ser um mundo

compartimentado, um mundo cortado em dois que é habitado por espécies diferentes. A

originalidade do contexto social colonial é que as realidades econômicas, as desigualdades, a

enorme diferença dos modos de vida não conseguem nunca mascarar as realidades humanas.

Quando se percebe na sua imediatez o contexto social colonial, é patente de pertencer ou não a

tal espécie, a tal raça. (FANON, 1979, p. 56)

As análises nesses termos, de pertencimento a tal raça ou espécie, não se afastam de

um referencial de análise marxista. Fanon sugere que as análises marxistas devem ser sempre

ligeiramente distendidas, a cada vez que se aborda o problema colonial para captar a

especificidade da contradição de uma relação de poder em que “a espécie dirigente é primeiro

aquela que vem de fora, aquela que não se parece com os autóctones, os outros”:

Nas colônias, a infraestrutura econômica é também uma superestrutura. A causa é consequência: alguém é rico porque é branco, alguém é branco porque é rico. É por isso que as análises marxistas devem ser sempre ligeiramente distendidas, a cada vez que se aborda o problema colonial. Até mesmo o conceito de sociedade pré-capitalista, bem estudado por Marx, deveria ser repensado aqui. O servo é de uma essência diferente da do cavalheiro, mas uma referência ao direito divino é necessário para legitimar essa diferença de status. Nas colônias, o estranho vindo de fora se impôs com a ajuda dos seus canhões e das suas máquinas. A despeito da domestificação bem sucedida, apesar da apropriação, o colono continua sempre sendo um estranho. Não são nem as fábricas, nem as propriedades, nem a conta no banco que caracterizam primeiramente a “classe dirigente”. A espécie dirigente é primeiro aquela que vem de fora, aquela que não se parece com os autóctones, “os outros”. (FANON, 1979, 56)

A violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial negou a sociedade nativa, nas

palavras de Fanon, gerou a destruição das formas sociais indígenas, demoliu sem restrições os

sistemas de referência da economia, os modos de aparência, de indumentária:

A violência que presidiu ao arranjo do mundo colonial que ritmou incansavelmente a destruição das formas sociais indígenas, demoliu sem restrições os sistemas de referência da economia, os modos de aparência, de indumentária, será reivindicada e assumida pelo colonizado no momento em que, decidindo ser a história em atos, a massa colonial irromperá nas cidades proibidas. Explodir o mundo colonial é doravante uma imagem de ação muito clara, muito compreensível e que pode ser retomada por cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado. Destruir o

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mundo colonial é, nem mais nem menos, abolir uma zona, enterrá-lo no mais profundo do solo ou expulsá-lo do território. (FANON, 1979, p 57)

Destacamos na perspectiva de Fanon que destruir o mundo colonial passa por

reivindicar a sociedade negada, restituir ao povo seu território e sua nação. A violência de

negação das sociedades nativas é o vínculo com projeto sua própria libertação. Nas palavras

do autor, o Colonizado descobre o real e o transforma no movimento da sua práxis, no

exercício da violência, no seu projeto de libertação. (FANON, 1979, p 75)

Em Anibal Quijano, destacamos a formulação Colonialidade do Poder, entendido o

termo colonialidade como um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do

poder capitalista. (QUIJANO, 2010, p. 84)

Segundo Quijano, na América se constitui um novo padrão de poder. Esse novo

padrão de poder é a primeira identidade moderna por ser um padrão de poder de vocação

mundial, que articula um novo padrão global de controle do trabalho e de classificação social

das populações globais em termos de raça e identidade racial.

A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira identidade da modernidade. Dois processos históricos convergiram e se associaram na produção do referido espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo padrão de poder. Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. Essa ideia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia. Nessas bases, consequentemente, foi classificada a população da América, e mais tarde do mundo, nesse novo padrão de poder. Por outro lado, a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial (QUIJANO, 2005, p. 227)

Destacamos em Quijano que a ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história

conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças

fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi

construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos. A

formação de relações sociais fundadas nessa ideia produziu na América identidades

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sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos

como espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas

procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às

novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se

estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às

hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e,

consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e

identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da

população. (QUIJANO, 2005, p. 228)

Destacamos também em Quijano, no processo de constituição histórica da América,

todas as formas de controle e de exploração do trabalho e de controle da produção-

apropriação-distribuição de produtos foram articuladas em torno da relação capital-salário e do

mercado mundial. Incluíram-se a escravidão, a servidão, a pequena produção mercantil, a

reciprocidade e o salário. Em tal contexto, cada uma dessas formas de controle do trabalho não

era uma mera extensão de seus antecedentes históricos. Todas eram histórica e

sociologicamente novas.

Em primeiro lugar, porque foram deliberadamente estabelecidas e organizadas para

produzir mercadorias para o mercado mundial. Em segundo lugar, porque não existiam apenas

de maneira simultânea no mesmo espaço/tempo, mas todas e cada uma articuladas com o

capital e com seu mercado, e por esse meio entre si. Configuraram assim um novo padrão

global de controle do trabalho, por sua vez um novo elemento fundamental de um novo padrão

de poder, do qual eram conjunta e individualmente dependentes histórico-estruturalmente. Isto

é, não apenas por seu lugar e função como partes subordinadas de uma totalidade, mas

também porque sem perder suas respectivas características e sem prejuízo das

descontinuidades de suas relações com a ordem conjunta e consigo mesmas, seu movimento

histórico dependia desse momento em diante de seu pertencimento ao padrão global de poder.

Em terceiro lugar, e como consequência, para preencher as novas funções cada uma delas

desenvolveu novos traços e novas configurações histórico-estruturais. (QUIJANO, 2005, p.

229).

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Na medida em que aquela estrutura de controle do trabalho, de recursos e de produtos consistia na articulação conjunta de todas as respectivas formas historicamente conhecidas, estabelecia-se, pela primeira vez na história conhecida, um padrão global de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. E enquanto se constituía em torno de e em função do capital, seu caráter de conjunto também se estabelecia com característica capitalista. Desse modo, estabelecia-se uma nova, original e singular estrutura de relações de produção na experiência histórica do mundo: o capitalismo mundial. (QUIJANO, 2005, p. 229)

As novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à

natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos

os elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se

mutuamente, apesar de que nenhum dos dois era necessariamente dependente do outro para

existir ou para transformar-se. (QUIJANO, 2005, p. 229).

Não há nada na relação social mesma do capital, ou nos mecanismos do mercado

mundial, em geral no capitalismo, que implique a necessidade histórica da concentração, não

só, mas, sobretudo na Europa, do trabalho assalariado e depois, precisamente sobre essa base,

da concentração da produção industrial capitalista durante mais de dois séculos. Teria sido

perfeitamente factível, como o demonstra o fato de que assim de fato ocorreu após 1870, o

controle europeu-ocidental do trabalho assalariado de qualquer setor da população mundial. E,

provavelmente, mais benéfico para os europeus ocidentais. A explicação deve ser, pois,

buscada em outra parte da história. (QUIJANO, 2005, p. 229).

O fato é que já desde o começo da América, os futuros europeus associaram o trabalho não pago ou não-assalariado com as raças dominadas, porque eram raças inferiores. O vasto genocídio dos índios nas primeiras décadas da colonização não foi causado principalmente pela violência da conquista, nem pelas enfermidades que os conquistadores trouxeram em seu corpo, mas porque tais índios foram usados como mão de obra descartável, forçados a trabalhar até morrer. (QUIJANO, 2005, p. 229).

A associação identificada por Quijano do trabalho não pago ou não-assalariado com as

raças dominadas, porque eram raças inferiores, vai ao encontro a formulação de sociedades

nativas negadas, em que as sociedades nativas não foram consideradas aptas ao

empreendimento mercantil.

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A classificação racial da população e a velha associação das novas identidades raciais dos colonizados com as formas de controle não pago, não assalariado, do trabalho, desenvolveu entre os europeus ou brancos a específica percepção de que o trabalho pago era privilégio dos brancos. A inferioridade racial dos colonizados implicava que não eram dignos do pagamento de salário. Estavam naturalmente obrigados a trabalhar em benefício de seus amos. Não é muito difícil encontrar, ainda hoje, essa mesma atitude entre os terratenentes brancos de qualquer lugar do mundo. E o menor salário das raças inferiores pelo mesmo trabalho dos brancos, nos atuais centros capitalistas, não poderia ser, tampouco, explicado sem recorrer-se à classificação social racista da população do mundo. Em outras palavras, separadamente da colonialidade do poder capitalista mundial. (QUIJANO, 2005, p. 229).

O controle do trabalho no novo padrão de poder mundial constituiu-se, assim, articulando

todas as formas históricas de controle do trabalho em torno da relação capital-trabalho assalariado,

e desse modo sob o domínio desta. Mas tal articulação foi constitutivamente colonial, pois se

baseou primeiro, na a descrição de todas as formas de trabalho não remunerado às raças

colonizadas, originalmente índios, negros e de modo mais complexo, os mestiços, na América e

mais tarde às demais raças colonizadas no resto do mundo, oliváceos e amarelos. E, segundo, na a

restrição do trabalho pago, assalariado, à raça colonizadora, os brancos. (QUIJANO, 2005, p. 229).

Essa colonialidade do controle do trabalho determinou a distribuição geográfica de

cada uma das formas integradas no capitalismo mundial. Em outras palavras, determinou a

geografia social do capitalismo: o capital, na relação social de controle do trabalho

assalariado, era o eixo em torno do qual se articulavam todas as demais formas de controle do

trabalho, de seus recursos e de seus produtos. Isso o tornava dominante sobre todas elas e dava

caráter capitalista ao conjunto de tal estrutura de controle do trabalho. Mas ao mesmo tempo,

essa relação social específica foi geograficamente concentrada na Europa, sobretudo, e

socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismo. E nessa medida e dessa

maneira, a Europa e o europeu se constituíram no centro do mundo capitalista. (QUIJANO,

2005, p. 229).

Destacamos em Fanon e Quijano elementos selecionados da extensa obra desses

autores que nos ajudam a qualificar a violência como molde social básico das colônias, o tipo

de contradição que se desdobra rejeição absoluta das sociedades nativas. Trata-se de um

processo de negar a humanidade dos povos colonizados que se transformaram imediatamente

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em aptos ao extermínio e a subjugação. Ou seja, não se trata de mera subordinação. Essa

distinção coloca uma perspectiva de luta nacional pelas necessidades mais básicas a serem

conquistadas para existirem enquanto seres humanos, seres sociais com uma base material

para a produção de sua existência, base material essa que foi saqueada pela acumulação

primitiva de capitais no desenvolvimento do capitalismo em geral.

Atualmente, uma das tentativas de fornecer um diagnóstico histórico contemporâneo

no campo de análise marxista ressignificam papel da “acumulação primitiva”. Segundo

Harvey, a acumulação de capital baseada na violência não seria uma etapa “originária” e nem

uma forma exterior ao capitalismo, pois, por meio da violência de Estado, o capital cria e

preserva as “condições assimétricas” da troca de mercadorias e a “acumulação por

despossessão”. O autor sustenta que a acumulação por despossessão, caracterizada pelo

aumento de atitudes predatórias e formas de exploração exterior à capitalista (no processo de

produção) é a solução do capital para as crises pós anos 1970, relacionada à perda de

hegemonia dos EUA, na ausência da possibilidade de acumulação por reprodução ampliada, a

acumulação por despossamento é a alternativa global. (HARVEY, 2004, p. XX)

Essa alternativa global de caráter predatório, no processo histórico do desenvolvimento

capitalista no Continente Oeste – Atlântico foi principal alternativa de acumulação de capital.

A atitude predatória de dispor do homem e da natureza de maneira brutal.

O que difere a violência da “Assim Chamada Acumulação Primitiva”, parteira da

história do mercado de força de trabalho, da violência do processo de conquista e colonização

é que no primeiro caso o movimento histórico é de separação dos Homens - no sentido de

humanidade - dos meios e condições de realizar trabalho. No segundo, é a negação da

Humanidade.

O desdobramento da contradição que move o processo histórico, no primeiro caso,

coloca em movimento no sentido da retomada dos meios de produção; identifica capital como

inimigo; e a consigna “proletário do mundo uni-vos” se coloca contra o universalismo da

lógica desse inimigo. Ou seja, a emancipação está relacionada a reconquistar a capacidade de

trabalhar que define sua humanidade. O desdobramento da contradição que move o processo

histórico, no segundo caso, coloca em movimento no sentido de se constituírem enquanto

povos. Para se formar como povos, portadores de nacionalidade - como vimos no item anterior

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- não basta língua, religião, etnia, passado ou presente. Da perspectiva que preza pelo

econômico é necessário uma base material para esse povo produzir e reproduzir sua existência.

Da perspectiva política, é necessário a constituição do Estado. Com relação ao critério

econômico, as nações europeias saíram “na vantagem a medida que se constituíram enquanto

tal na posição de metrópoles que exploravam as riquezas da colônia. Com relação ao critério

político, as colônias da América Latina saíram “na vantagem” na medida em que os processos

de Independência constituíram Estados. Então, é a natureza desse Estado e no tipo de

desenvolvimento econômico capitalista que encontramos o aleijume da formação nacional.

Esse aleijume na formação do Estado Nação se manifesta na imensa distância entre a

administração do Estado e os interesses da sociedade nos casos Latino-americanos, o que

concretamente se releva no desrespeito com os cidadãos, no esvaziamento das discussões

públicas, nos mecanismos de depreciação da renda dos trabalhadores. O modo de

funcionamento do Estado cria uma imagem cindida do país, de um lado um “país organizado”,

e de outro “país desorganizado”, onde despencam serviços públicos, medidas punitivas a

população pobre. A reprodução desse dualismo característicos da formação de um país com

passado colonial foi defendido pela tradição crítica do pensamento socioeconômico latino-

americano.

Destacamos que, apesar das pesadas heranças históricas que América Latina carrega

desde o momento da invasão, o desenvolvimento histórico mundial desautoriza interpretar o

presente a partir do velho paradigma da formação incompleta, cujo projeto político imediato,

em caso de uma virada na correlação de forças, seria o de criar instituições políticas de

desenvolvimento nacional capazes de formar um país verdadeiramente independente. As

contradições absolutas captadas na análise de longa duração histórica apontam para um

diagnóstico de que não há espaço para um projeto de desenvolvimento nacional capitalista

autônomo na América Latina.

Recentemente, Safatle e Teles lançaram um livro que reúne discussões feitas em

Seminário na Universidade de São Paulo, em 2008, sobre o tema “O que resta da ditadura”

(Boitempo, 2010), com a epígrafre "Quem controla o passado controla o futuro". Na

apresentação, os autores se referem a essa epígrafe, que indica o que está em jogo quando a

questão é elaborar o passado.

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Todos conhecemos a temática clássica das sociedades destinadas a repetir o que são incapazes de elaborar. Sociedades que já definem de antemão seu futuro a partir do momento que fazem de tudo para agir como se nada soubessem a respeito do que acumulou às suas costas. A história é implacável na quantidade de exemplos de estruturas sociais que desagregam exatamente por lutar compulsivamente para esquecer as raízes dos fracassos que atormentam o presente. No caso da realidade nacional, esse esquecimento mostra-se particularmente astuto em suas múltiplas estratégias. Ele pode ir desde o simples silêncio até um peculiar dispositivo que merecia o nome de “hiper-historicismo”. Maneira de remeter as raízes dos impasses do presente a um passado longínquo (a realidade escravocrata, o clientelismo português etc), isto para, sistematicamente, não ver o que o passado recente produziu. Como se fôssemos vítimas de um certo “astigmatismo histórico”. (TELES, E. e SAFATLE,V., 2010, p 09)

Os textos organizados pelos autores são dedicados a falar do passado recente e da sua

incrível capacidade de não passar. A ditadura militar brasileira encontrou uma maneira

insidiosa de se manter, se perpetuar na estrutura jurídica, nas práticas políticas, na violência

cotidiana e nos traumas da sociedade. Destacamos nesse momento de nossa pesquisa é que

essa violência só é possível por sermos vítimas também de uma “miopia histórica” que

deforma a condição em que foram forjadas as questões nacionais. O que nos leva a localizar

no momento remoto do processo de invasão as contradições absolutas captadas na análise de

longa duração histórica apontam para um diagnóstico de que não há espaço para um projeto de

desenvolvimento nacional capitalista autônomo e soberano na América Latina.

A violência, que em Marx é o “pecado original” na constituição de Nações Burguesas,

é a marca da formação deformada de Nações, em que as aspirações de formação nacional não

foram realizadas.

É precisamente nos Movimentos de Independência, quando a ressonância da

Revolução Francesa repercute no povo da América Latina trazendo aspirações emancipatórias

da modernidade, que se observa que esses ideais ficam restritos à independência política da

burguesia, e que caracteriza o aleijo de nascença da formação nacional. Ou seja, os ideais

humanos que a modernidade prenuncia, não têm aderência à sub-humanidade a que foram

lançados os povos de nações negadas.

A violência em negar as aspirações emancipatórias da modernidade a esses povos os

obrigam a ir além das aspirações modernas de igualdade e liberdade para existirem enquanto

nações.

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121

2.3.2 Vazio da questão nacional na formação do Estado Nação

Neste item, examinamos o desdobramento da 3º e 4º contradições que movem o

processo histórico na América Latina, deflagradas respectivamente nos processos históricos de

emancipação e consolidação do Estado Nação.

Examinamos o dilema latino-americano na passagem da sociedade colonial à sociedade

nacional, por meio das aspirações geradas pela ressonância da Revolução Francesa e sua

relação com os Movimentos de Independência na América Latina.

Como desdobramento da 3ª e 4ª contradição que move o processo histórico na América

Latina, apoiados nas contribuições de Letízia (2012), examinamos a ideia de “aleijume de

nascença na formação do Estado Nação”, sugerindo que a ressonância da Revolução Francesa,

portadora de ideais de emancipação da modernidade, ao repercutirem na América Latina ficam

restritos à independência política da burguesia o que esvazia a questão nacional dos

Movimentos de Independência.

A constituição da nação burguesa no século XIX na Europa ocidental esteve

relacionada às aspirações de universalizar os direitos políticos de populações inteiras alçadas à

vida de povos. Essa é uma tarefa histórica que surge como reivindicação antifeudal da

burguesia capitalista nascente no ocidente e que se manifesta pela exigência de novas formas

de propriedade, comandadas pela circulação de moeda de crédito e de novas relações sociais,

tendentes a um individualismo mais desenvolvido, exigências estas postas pela primeira vez

pelo conjunto da sociedade europeia a partir da Revolução Francesa. Esta tarefa histórica

decorre das convulsões sociais da Europa e repercutiram entre o povo.

A burguesia enquanto classe revolucionária, nesse processo, alçou aspirações que eram

maiores que sua própria classe e colocou a sociedade toda em movimento no sentido de

superação dos resquícios da sociedade feudal, apontando a nobreza como inimiga. Quando o

processo das transformações profundas na sociedade leva a burguesia ao poder, destituindo os

privilégios da nobreza e instituindo o privilégio da capital, a burguesia se converte de classe

revolucionária em classe conservadora que tem o aparelho de Estado como forma de organizar

e garantir seu exercício de poder e dominação das outras classes, que nesse momento são

“avisadas” que os direitos políticos são “universais” para os proprietários.

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A aspiração alçada pela burguesia que ficou sintetizada na consigna da Liberdade

estava relacionada à constituição da nação como Liberdade num solo ético comum. Esse pano

de fundo da Revolução Francesa a burguesia não podia manifestar enquanto aspiração

popular, e então, a Liberdade aparece como aspiração falsa: a liberdade do indivíduo. Na

modernidade a liberdade negativa da sociedade de classes fragmenta o homem em indivíduos.

Por sua vez, a aspiração sintetizada na consigna da Igualdade estava relacionada à aspiração

popular a ampliação dos direitos civis, aspiração essas que ficaram inibidas pelo travamento

da Revolução Francesa nesse ponto.

De modo geral, na Europa, as bandeiras da “liberdade, igualdade, fraternidade”,

embora reduzida pela burguesia francesa a liberdade de empreendimento econômico, a

igualdade formal perante a lei e a fraternidade entre as potências do Ocidente, foi e permanece

grandiosa, porque as tormentas revolucionárias europeias do século XIX lhe deram um

significado universal.

Chamamos de ressonância da Revolução Francesa na América Latina o aparecimento

dessas aspirações como decorrência da continuidade social entre as metrópoles europeias

ocidentais e suas colônias americanas. A ressonância da Revolução Francesa que chega à

América de colonização ibérica como caráter civilizatório, repercute entre o povo como

aspiração à emancipação e desencadeia os Movimentos de Independência.

Destacamos em Letizia, que no Continente Oeste – Atlântico as aspirações geradas

pela ressonância da Revolução Francesa estiveram presentes nos Movimentos de

Independência com outros conteúdos. Neste caso, as aspirações sintetizadas nas consignas da

Revolução Francesa tiveram uma tradução particular, feita pelos segmentos urbanos da classe

mercantil colonial, que era o grupo social mais informado e mais apto a responder aos

acontecimentos europeus, assim como o mais interessado em mudanças aparentemente

alcançáveis nas relações com a metrópole. (LETIZIA, 2012, p. 13)

Nas colônias Oeste – Atlânticas, sacudidas pela agitação das metrópoles, a Revolução

Francesa não deixaria de repercutir, mas repercutiu sob formas distorcidas, correspondentes ao

rebaixamento humano das sociedades coloniais, em que as grandes ideias revolucionárias só

poderiam ser mal traduzidas por suas lideranças. (LETIZIA, 2012, p. 13)

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Examinamos a partir das entrevistas com Letizia o conteúdo das aspirações sintetizadas

nas consignas da Revolução Francesa que colocam em movimento as forças sociais na criação

do Estado-Nação no processo europeu que se universalizou, a fim de reunir elementos

comparativos que sustentam a hipótese de aleijume de nascença da formação nacional no caso

de criação do Estado-Nação na América Latina.

Começamos pelo conteúdo da aspiração à liberdade. Segundo Letizia:

VL: Aspiração de liberdade formulada pela burguesia implica liberdade de homens que têm acesso à liberdade da terra. Está implícito em Locke e é um fundamento do princípio da liberdade burguesa. De certa maneira, podemos dizer que não se poderia conceber liberdade numa sociedade que baseia suas relações sociais na propriedade privada, que a legalidade pudesse ser inteiramente separada do acesso a propriedade. Uma pessoa que não tem acesso a propriedade, a terra, não está qualificada para fazer parte da sociedade de homens livres. Essa é a humanidade de fato da sociedade burguesa.39

A aspiração à liberdade relacionada com a liberdade de homens que têm acesso a terra

como um fundamento do princípio da liberdade burguesa aponta para as raízes e a radicalidade

do movimento camponês e indígena na luta pela Reforma Agrária na América Latina.

VL: A constituição de um país (me refiro aos países ocidentais) implica na liberação da terra dos entreves da propriedade feudal, que impedem o acesso a terra a uma parte enorme da população, ou prendem o homem a terra, nos casos dos servos. Então esse é o conteúdo. Essa liberdade, portanto aparece como liberdade individual negativa, isso é encontrado em Hegel. O Homem é livre para fazer o que não prejudica os outros e ponto. Isso é uma redução muito grande da palavra liberdade. Só levanta o lado negativo, além de ser uma redução. Na realidade, liberdade negativa implica em liberdade positiva de explorar outros homens. Pelo fato de estar ligada a apropriação, ao acesso a propriedade da terra, a liberdade negativa na realidade abrange e oculta à liberdade positiva. A liberdade negativa abrange e oculta uma liberdade positiva de explorar aqueles que são postos numa situação de privação do acesso a propriedade da terra, que corresponde à liberdade de fato realizada no modo de produção capitalista, que se ergueu sobre uma expropriação de uma parte dos cultivadores da terra que se tornaram assalariados agrícolas e posteriormente assalariados industriais.40

39

Entrevista realizada com Letizia. Roteiro 1; Pergunta 44. O que carrega a aspiração sintetizada na consigna da Liberdade?

40Op. cit.

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Destacamos a inviabilidade da democracia liberal burguesa em formações sociais com

esse aleijo de nascença em suas formações sociais. A privação do acesso à propriedade da

terra se nega a liberdade de fato no modo de produção capitalista.

VL: Na França a quantidade de assalariados agrícolas no campo já era importante, o capitalismo no campo se desenvolveu, porque lá os senhores compraram terras de nobres que foram parar na corte, e a eles não interessava explorar a terra a maneira feudal Então usaram aquela servidão que estava ali para explorar, para fazer render as terras que arrendaram, porém sem nenhum compromisso com os camponeses, que era a obrigação feudal garantir a sobrevivência dos servos da gleba. A burguesia não queria terras com essa obrigação, mas interessava transformá-los em assalariados e foi o que fizeram. Esses assalariados compuseram o vasto proletariado agrícola que moveu o capitalismo francês, que naquela época era um país exportador de trigo. Então, essa liberdade negativa carrega consigo uma positiva oculta, que é a liberdade de explorar. (...) A liberdade negativa do principio burguês tem oculto isso. Liberdade de explorar sem que lhe atrapalhe, sem obstáculos para isso. É o que está no fundo.41

A liberdade negativa das Revoluções Burguesas carrega uma liberdade positiva oculta

que é a liberdade de explorar. A transformação em assalariados que compuseram o

proletariado agrícola que moveu o capitalismo francês tem esse pressuposto. No entanto, esse

pressuposto de formação do proletariado não “esteve posto” na América Latina. O conteúdo

da aspiração à igualdade, segundo Letizia:

VL: Evidentemente que a igualdade aqui adquire um conteúdo falso em função do conteúdo que tem a consigna da liberdade. Na realidade é igualdade jurídica perante a lei, igualdade formal, mas que necessariamente tenha desigualdades embutidas. A manifestação mais espetacular disso é a igualdade que inclui como iguais patrões e assalariados. Evidentemente que é uma igualdade que não funciona dentro da fábrica.42

Na modernidade a aspiração da igualdade está relacionada a transformar igualdade

jurídica perante a lei todos em cidadão que se encontram em situação desigual no processo

produtivo.

41

Op. cit.

42 Entrevista realizada com Letizia. Roteiro 1; Pergunta 45. O que carrega a aspiração sintetizada na consigna

da Igualdade?

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VL: Na época da Revolução Francesa existia a escravatura que a burguesia não tinha colocado no seu projeto de abolir, a escravatura das colônias e na própria França tinha alguns trabalhadores agrícolas que deviam algumas obrigações e que foram mantidas pelos burgueses ao comprarem aquelas terras. Compraram com casas de servidores da nobreza dentro. Para muitos burgueses convinha manter esses antigos servos dentro da propriedade que haviam comprado, porque era muito cômodo ter alguém que cuidasse das casas deles, das terras, do bosque que vinha junto com a propriedade comprada e cobrar dessas pessoas que moravam dentro da terra, que continuassem prestando serviços que prestavam ao senhor. Isso valorizava a terra. A terra já vinha com o caseiro, com o jardineiro, ao qual não se precisava pagar. Os assalariados que faziam a plantação de trigo funcionar, eles não queriam se responsabilizar, mas essa gente que prestava esse tipo de serviço que era conveniente, interessava que deixasse as casas deles ali, desde que eles continuassem prestando os serviços que prestavam aos antigos senhores feudais. Às vezes eram serviços pesados de manutenção. Esses camponeses achavam que a Revolução Francesa iria eliminar essa situação, que eles estavam ali, ficariam com a terra que estavam ocupando e se livrariam das obrigações. 43

A igualdade que não estava no projeto da burguesia de maneira integral, pois

comprometia o serviço pesado dos serviçais além da possibilidade de participação na vida

política, era diminuída pelo voto censitário.

VL: A Revolução Francesa levantou essa hipótese a todos os camponeses e a burguesia se opôs, porque para ela era conveniente ter essa mão de obra. Algumas propriedades tinham canais e a limpeza de canais é um serviço pesado e a burguesia cobrava isso. Então a abolição da servidão foi um processo difícil na Revolução Francesa, demandou lutas pesadas no interior e fora, foi violenta em sua versão camponesa que obrigou a burguesia a abolir os direitos feudais, abolir de fato, depois de um processo de lutas dentro e fora da assembleia nacional. Essa igualdade era uma igualdade que não estava no projeto da burguesia de maneira integral, para não falar da liberdade de participação na vida política, que era diminuída pelo voto censitário.44

Por ser portadora desse conflito a aspiração à igualdade, demandou lutas violentas no

interior e fora do processo revolucionário. Na França a luta camponesa obrigou a burguesia a

abolir de fato os resquícios de direitos feudais. Essa resistência que rompe com a exploração

serviçal coloca o padrão da luta de classes com relação à exploração capital e trabalho num

43 Op. cit.

44 Op. cit.

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outro patamar histórico que a América Latina não conheceu.

E por fim, a consigna da fraternidade. Segundo Letizia, a fraternidade não se coloca

como aspiração na Revolução Francesa.

VL: Primeira coisa, fraternidade não se coloca na Revolução Francesa como aspiração. Porque a luta revolucionária conjunta, que abrange a sociedade em profundidade irmana a população toda e levanta a ideia de fraternidade universal quase que automaticamente. Na Revolução Francesa levantou-se a necessidade de abolição da escravatura, apesar de ninguém ter escravos na França. Tinha alguns nobres que por capricho tinham trazido alguns escravos da colônia de São Domingos para serem seus servidores domésticos, mas não tinha a mínima importância social esse pequeno número de escravos. Aliás, não trabalhavam muito, eram mais um objeto decorativo, pois se tratavam de nobres que tinham negócios com as colônias.45

A consigna da fraternidade é portadora de um movimento geral da luta revolucionária

que quando abrange a sociedade em profundidade, a população se irmana pela derrubada da

opressão e levanta a ideia de fraternidade universal.

VL: O socialismo da sociedade burguesa do século XIX, posterior a Revolução Francesa, quando já a burguesia estava em luta com o proletariado ascendente, tinha no seu interior a alma penada de Babeuf, que foi um socialista daquela época. Na realidade, acho que ele era mais um igualitarista que se tornou conspiratório durante o diretório de 1794-99. Ele se tornou o símbolo do socialismo posterior, foi incluído como um dos precursores do socialismo proletário moderno. Apareceria como demônio da sociedade burguesa. Acho falsa essa comparação, mais uma vez o socialismo não era uma realidade na Revolução Francesa. (...) Era uma expressão desse sentimento de confraternização, que é espontâneo na revolução, mas não se manifesta dentro de nenhuma reivindicação ou lei concreta. A sociedade volta a ser o que sempre foi, o que poderia ter sido ser e que veio a ser. 46

Destacamos ainda nas entrevistas com Letizia o que estamos entendendo por

modernidade, um termo amplamente usado que precisa de qualificação.

VL: Isso merece um comentário rápido só pelo sentido do termo modernidade. Modernidade é um termo vago, mas que começou a ser utilizado nessa época, mas nessa época foi entendido como o tempo que se abria com a Revolução Francesa.

45 Entrevista realizada com Letizia. Roteiro 1; Pergunta 46. E com relação a Fraternidade?

46 Op. cit.

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Ou seja, o tempo da sociedade burguesa. Então, nesse sentido, a modernidade começa e continua até hoje. Nos demais sentidos, no sentido mais atual, ela apenas tem o sentido de mudança, de aspiração a mudanças que podem ser muito variadas conforme o momento histórico, mas o importante aqui é o seguinte: não existem aspirações modernas de ordem geral da sociedade, digamos assim, a aspiração por mudanças não é natural. A aspiração por mudança implica no interesse ferido, vontade de impor algum interesse novo, mudança não é uma necessidade. Pelo contrário, a necessidade é a estabilidade. Quem está bem não quer mudar, então aspirações modernas de ordem geral, seriam aspirações por mudanças. Isso na realidade são expressões de conflitos.47

Destacamos essa ponderação de que não existem aspirações modernas de ordem

geral da sociedade, ou seja, a aspiração por mudanças não é natural. A aspiração por mudança

são expressões de conflitos. A mudança não é uma necessidade, pelo contrário, a necessidade

é a estabilidade.

Destacamos desse comentário sobre a modernidade um elemento metodológico

relevante para a compreensão do movimento de ressonância das aspirações no Continente

Oeste – Atlântico, qual seja, não existem aspirações modernas de ordem geral da sociedade, a

aspiração por mudanças implica no interesse ferido, na vontade de impor algum interesse

novo. A necessidade das sociedades de classe é a estabilidade, a mudança não é uma

necessidade geral. Portanto, as aspirações modernas por mudanças são na realidade são

expressões de conflitos.

Consideramos relevante registrar esses trechos da entrevista com Letizia por ser a

partir dessas reflexões que se constrói a noção de aleijume de nascença da formação nacional

na América Latina, ou seja, a partir do exame de como as aspirações de Liberdade e de

Igualdade oriundas da Revolução Francesa ressonaram indiretamente na América Latina.

A ressonância das aspirações da Revolução Francesa no Continente Oeste – Atlântico

deflagra novas contradições que colocam em movimento os conflitos em torno da criação dos

novos Estados Independentes. Do desfecho dessas contradições depende a constituição desse

Estado como nações soberanas ou nações com aleijume de nascença em suas formações

nacionais.

47 Entrevista realizada com Letizia. Roteiro 1; Pergunta 48. Qual a diferença entre falar em aspiração moderna de ordem geral da sociedade e em programa da modernidade?

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Nas lutas pela emancipação na América Latina, tanto na área hispânica quanto na área

portuguesa, a constituição de novas nações se colocou imediatamente como livre apropriação

plena das terras coloniais por todos os habitantes. Isso apenas excluía os nativos ainda

resistentes em áreas remotas, assim como as comunidades não-resistentes refugiadas em terras

devolutas marginais, e os quilombos africanos isolados; mas incluía todos os demais

habitantes, a saber: descendentes de europeus e criollos pobres, trabalhadores em geral e as

comunidades camponesas peruanas e mexicanas subjugadas, nas colônias hispânicas; e

incluía, na ex-colônia portuguesa, descendentes europeus pobres e afrodescendentes não

autoexcluídos da comunidade brasileira, agregados de fazenda, caipiras e sertanejos. Para

todos estes, a vitória comum só poderia significar a abolição da desigualdade civil,

materializada na abolição do escravismo e da servidão, e na livre apropriação das terras

libertadas, o que daria o fundamento necessário à constituição de um povo livre. (LETIZIA,

2012, p. 20)

As consignas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade não tiveram aderência na

condição de sub-humanidade em que foram lançados os povos da América Latina no processo

de rejeição absoluta das sociedades nativas, que vimos no item anterior como as sociedades

nativas negadas. De modo que, esse contingente expressivo que configura o povo miúdo nas

sociedades coloniais não se move e não participa dos Movimentos de Independência e criação

do Estado Nação.

Para o homem cindido da sociedade burguesa, só a propriedade lhe permite alçar-se ao

reconhecimento pleno como ser humano, com os direitos “naturais” burgueses inerentes ao

“Homem”, tal como expõem os principais teóricos políticos da burguesia: Hobbes, Locke e os

enciclopedistas franceses. (LETIZIA, 2012, p. 20)

As aspirações materiais dos pobres das ex-colônias, que não haviam comandado o

processo emancipatório, ficaram sem aplicação. Sendo que, com a falta de poder para decidir

os rumos políticos dos respectivos estados, estes perdiam o único meio de colocar o interesse

geral do povo, e não apenas o interesse restrito dos herdeiros do empreendimento mercantil.

(LETIZIA, 2012, p. 20)

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Destacamos nessa análise, que essa repercussão se dá sob formas distorcidas,

correspondentes ao rebaixamento humano das sociedades coloniais, onde as grandes ideias

revolucionárias só poderiam ser mal traduzidas por suas lideranças. Ou seja, na América

Latina, as tormentas independentistas portadoras dos ideais universais da Revolução Francesa

tiveram um conteúdo particular.

Na América Latina, o segmento urbano das classes mercantis tentou enquadrar a

simpatia popular pela Revolução Francesa nos estreitos limites de sua campanha contra o

monopólio comercial de suas metrópoles. Para isso traduziu “liberdade” como emancipação

política, “igualdade” como equiparação dos direitos de todos os países ao acesso ao comércio

internacional e “fraternidade” como alegre confraternização entre escravistas, exploradores de

nativos subjugados e “bons homens” de origem europeia, sem mexer nas hierarquias sociais

estabelecidas durante a colonização. (LETÍZIA, 2012, 14)

Nos novos estados nascidos da independência das ex-colônias da América Latina, a

construção de novas nações só poderia se dar sob a liderança da burguesia que havia

capitaneado a luta emancipatória e comandava as relações internacionais. (LETIZIA, 2012, p.

20)

O fato da independência ter acontecido no momento em que se completava a revolução

industrial inglesa, submeteu-se imediatamente o comércio internacional aos ingleses, devido a

sua forte indústria tecnologicamente avançada (e temporariamente única) e agressiva

exportação em massa. Com isso, todos os países ficaram automaticamente enquadrados numa

divisão internacional do trabalho baseada nas vantagens comparativas (imposta na Ásia,

acrescida da violência extrema, com matanças “à americana” na Ásia conquistada), que então

estabelecia relações comerciais estáveis entre centro capitalista industrial e economias

coloniais fornecedoras de produtos primários. Por ter isso sido, no Ocidente, uma decorrência

automática da revolução industrial, a moeda-papel inglesa veio a desempenhar, durante todo o

século XIX e mais um pouco no XX, a função de dinheiro mundial. (LETIZIA, 2012, p. 20)

Destacamos que é pela ausência de forças sociais que defendessem os interesses

econômicos gerais, que fracassou a construção nacional na área ibérica. Continuou a

prevalecer nos novos estados os interesses dos mesmos empreendimentos baseados em mão-

de-obra servil ou escrava, o que esvaziou a luta emancipatória de seu sentido nacional. Por

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130

isso, as independências dessa área ficaram limitadas à emancipação política, mas não porque a

Inglaterra tenha impedido seu desenvolvimento econômico, como reza certa tradição latino-

americana, e sim porque foram independências vazias de conteúdo social. (LETÍZIA, 2012,p.

21.)

Destacamos nessa análise, como ponto central para pensar a peculiaridade da questão

nacional na América, que a tarefa histórica colocada como pano de fundo nos Movimentos de

Independência está relacionada às aspirações gerais dos povos da América de constituir-se em

nações.

É amplamente abordado na literatura sobre o período dos Movimentos de

Independência da América Latina que esses movimentos aparecem apenas como necessidade

de diferenciação de interesses econômicos regionais, impulsionados pelo desenvolvimento do

mercado mundial capitalista, que vão aos poucos se afastando dos da metrópole, até

desembocar na necessidade de construção de uma nação livre politicamente. Letízia se refere a

isso como “a visão de curto alcance característica comum a todas as burguesias

independentistas, mesmo as mais avançadas”.

Enquanto a burguesia reduz os movimentos à "visão de curto alcance", o povo estende

seu horizonte. Para as classes exploradas e oprimidas, a Independência coloca como aspiração

à Igualdade, sentida como conquista imediatamente ligada à liberdade na nação projetada no

horizonte pela revolta geral. O povo explorado e oprimido não podia deixar de ver a questão

da liberdade como uma possibilidade concreta de universalizar os direitos humanos e civis

proclamados pela Revolução Francesa, o que o fazia fundir a liberdade com a realização da

igualdade, isto é, com a abolição da escravatura e da servidão, inevitavelmente ligada ao livre

acesso à apropriação da terra para todos. E essas aspirações populares foram frustradas nos

movimentos de independência. (LETÍZIA,2012,p. 20)

A análise de como se moveram as forças sociais nesse momento histórico é o

fundamento para se entender que, apesar do processo ser portador do conteúdo da

emancipação os Movimentos de Independência na América Latina, esvaziam esse conteúdo na

medida em que as aspirações ficam restritas à independência econômica da colônia, com

relação à economia da metrópole europeia.

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131

A aspiração à Liberdade no momento da independência fica restrita à autonomia da

colônia para seu desenvolvimento quando o interesse regional se contrapõe ao estrangeiro, ou

seja, o desenvolvimento do capitalismo nas colônias coloca a questão da autonomia e não

necessariamente da independência. Continua no poder o mesmo grupo social restrito, já

dominante durante a colônia, o que reduziu a independência dessa área a mero desligamento

da administração metropolitana.

Á medida que na colônia a economia era integralmente imposta pela lógica europeia, o

regime de propriedade nos países da América Latina contrariava o desenvolvimento capitalista

que não pode prescindir da propriedade como base na qual os indivíduos formam

comunidades modernas. A propriedade capitalista impõe a frustração da aspiração da

Liberdade nos Movimentos de Libertação Nacional. Para as classes exploradas (índios sob

relações servis e escravos) e oprimidas (caipiras, sertanejos, peões e crioulos livres sem terra,

no campo, e artesãos e prestadores livres de serviços pouco qualificados, nas cidades), o

primeiro conteúdo frustrado da Independência, a Liberdade, se deu com a concretização da

proibição ao livre acesso ao uso dos recursos naturais e à propriedade da terra. Esse processo

se dá concretamente, no caso do Brasil, pela Lei de Terra, de 1850.

Além da propriedade privada da terra, para se desenvolver, o capitalismo precisa da

força de trabalho que impõe a frustração à aspiração da Igualdade nos Movimentos de

Libertação Nacional. A universalização dos direitos civis se coloca como abolição da

escravatura africana e da servidão dos índios, instituições incompatíveis com a realização

desta aspiração.

Para as burguesias de toda a América, de início a Igualdade simplesmente não se

coloca, ou se coloca às avessas, a saber: como manter o escravismo africano e a servidão dos

índios em meio à crise da sociedade colonial e à agitação das novas ideias libertárias vindas da

Europa. Cabe lembrar que esta tendência da burguesia foi facilitada, no momento das

independências, pelo bloqueio temporário da disseminação das conquistas da Revolução

Francesa.

Ao examinar a ressonância da aspiração à igualdade no Continente Oeste – Atlântico, a

igualdade como universalização dos direitos civis, é flagrante que para as burguesias de todo

o Continente, agarrados aos empreendimentos já capitalistas, mas herdados de suas colônias

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132

juntamente com a servidão ou a escravatura, a questão da igualdade simplesmente não se

colocava. Ou se colocava às avessas, como igualdade entre as classes dominantes das

metrópoles e as do Continente Oeste – Atlântico, onde só existiam, concretamente, países de

economia capitalista colonial sustentados pelo escravismo e pela servidão. (LETIZIA, 2012, p.

14)

Não houve nos processos de independência da América Latina a apropriação do

território pelo povo nem a universalização dos direitos civis, portanto, na América Latina a

constituição da nação está liquidada na Independência que o povo não participou.

A não realização dessas tarefas históricas resulta o aleijume de nascença das

sociedades da América Latina, divididas entre um estrato social com direitos civis efetivos

maiores (descendentes de imigrantes europeus, mas nem todos estes) e outro com direitos

efetivos menores (descendentes de escravos e de índios submetidos).

Ao esvaziar a luta emancipatória de seu sentido nacional, as tarefas não realizadas no

processo de independência, reaparecem transmitidas a épocas posteriores. A aspiração à

Liberdade e Igualdade não realizadas na Independência da América Latina reaparece como

movimentos nacionalistas, que vão repercutir nos povos como movimentos anti-imperialistas.

Letizia não procura desenvolver uma interpretação histórica dos processos de

independência na América. Destacamos nesse autor uma questão metodológica que

identificamos pouco explorada na ampla bibliografia referência sobre o tema, a saber: as

forças sociais no comando da emancipação tiveram a visão de curto alcance como uma

característica comum a todas as burguesias independentistas, mesmo as mais avançadas. Essa

visão de curso alcance se desdobra de processos de independência em que o povo miúdo não

participou e as aspirações populares não estiveram postas nestes processos. Essa perspectiva

não quer dizer que o desenvolvimento de uma economia de tipo colonial, inevitável no

Continente do século XIX, significasse renunciar à construção de nações soberanas.

Destacamos a perspectiva de que o importante era que o interesse do povo pudesse

prevalecer sobre o interesse dos exportadores de produtos primários. Portanto, é pela ausência

de forças sociais que defendessem os interesses econômicos gerais, que fracassou a construção

nacional na América Latina. Continuou a prevalecer nos novos estados os interesses dos

mesmos empreendimentos baseados em mão-de-obra servil ou escrava, o que esvaziou a luta

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133

emancipatória de seu sentido nacional. Por isso, as independências dessa área ficaram

limitadas à emancipação política, porque foram independências vazias de conteúdo social.

2.3.3 Desenvolvimento capitalista dependente e Imperialismo

Neste item, analisaremos o desdobramento da 5º contradição que move o processo

histórico na América Latina deflagrada no processo histórico de desenvolvimento capitalista

entre 1815-1945, quando os países latino-americanos, soberanos ou não, passaram pela

contradição entre desenvolvimento econômico capitalista e padrões de dominação externa.

Os desdobramentos das contradições da industrialização no desenvolvimento

capitalista na América Latina são amplamente abordados nos estudos do subdesenvolvimento,

capitalismo periférico e dependente. Esses estudos partem de um entendimento de que o

capitalismo é um modo de produção mundial e universal e que se desenvolve em formações

socieconômicas específicas. Tomamos numa breve revisão bibliográfica, alguns elementos da

interpretação sobre a formação econômica do Brasil e destacamos dilemas levantados por

autores que fizeram as mediações com os desafios do desenvolvimento econômica capitalista

na América Latina, como: Ruy Mauro Marini e Florestan Fernandes.

O debate da passagem da sociedade colonial para uma sociedade nacional no Brasil

coloca a questão de como, a partir de uma sociedade consensual – em torno da escravidão - se

passou para uma sociedade de conflitos propriamente nacionais (5º contradição – vide Quadro

1). Em um primeiro momento, a questão da formação nacional identificou na mudança do

regime Imperial para a República o elemento central para abordar a questão de como, a partir

de uma sociedade de consenso em torno da escravidão, transitar para uma sociedade de

conflito propriamente capitalista. 48. Em um segundo momento, ganha espaço no debate da

48Nesse contexto, emergem as interpretações que se dedicam a interpretar a realidade brasileira dos poderes locais. Oliveira Vianna (1885 – 1951) em Instituições Políticas Brasileiras (1949) aborda a origem do poder local na Primeira República como reação ao Estado forte e centralizado, dada a impossibilidade de liberalismo e democracia na sociedade nacional. Essa impossibilidade é resultado da condição histórica do país marcada pela herança de passado colonial e empresa mercantil. Vianna observa que quando se cria o Estado brasileiro independente, cria-se um Estado institucional sem sociedade e com escravos, o que inviabiliza a democracia. Como herança colonial a sociedade brasileira é portadora do latifúndio como o lugar onde as Leis acontecem. A única Instituição que existe é a família, instituição capaz de criar leis, sendo a família composta dos agregados que estão subordinados naquele pedaço de território. (VIANNA, 1999, p. 145). Ou seja, não se forma o indivíduo na sociedade, não se cria a bandeira do espírito público. Desse modo, o problema da organização política na

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formação nacional a perspectiva de grupos de poder na primeira República.49 Nesse conjunto

de elaborações em torno da formação nacional estava relacionada com as determinações da

superestrutura: a cultura e as relações de poder político no pacto federativo do Estado na

República Velha. A contribuição de Celso Furtado, assim como a de Caio Prado Junior,

possibilitam as determinações sobre a questão nacional transitar do problema da superestrutura

(Estado e Cultura) para o problema da estrutura socioeconômica.50

Nessa perspectiva que leva em conta as determinações da formação socioeconômica,

analisando o caso brasileiro, Florestan Fernandes (1975) em “A Revolução Burguesa no Brasil

– ensaio de interpretação sociológica” apresenta dilemas da passagem da sociedade colonial

para a sociedade nacional na criação do Estado nos processos de independência.

Florestan adverte que, não obstante a forma em que se desenrolou, a Independência

constituiu a primeira grande revolução social que se operou no Brasil. Ela aparece como uma

revolução social sob dois aspectos correlatos: como marco histórico definitivo do fim da “era

colonial” e como ponto de referência para a “época da sociedade nacional”, que com ela se

Republica Velha era, na análise de Vianna, como fazer com que os coronéis latifundiários fizessem parte da nação. O desafio de criar um Estado era o desafio de forjar Povo, uma Elite Política e não clãs parentais distribuídos pelo território. Outro exemplo, poderia ser Nestor Duarte em Ordem privada e Organização Política Nacional (1939) que, influenciado por Sergio Buarque de Holanda (1936) e Gilberto Freire (1933), parte da herança colonial para entender a organização social e política da primeira República, baseada na família como uma autarquia fechada e no papel do patriarcalismo na sociedade nacional. Com a referência a esses autores apenas gostaríamos de destacar que no debate até 1930, o desafio de criar a Nação estava relacionado à perspectiva poder dos coronéis, ou seja, o poder local versus poder central do Estado.

49Perspectiva desenvolvida no Brasil, por exemplo, por Vitor Nunes Leal (1914 – 1985) em Coronelismo Enxada e Voto (1949). Nessa obra é destacado o poder dos coronéis dentro do município. Nunes Leal desenvolve a perspectiva de que a restruturação de poder promovida pela República, o pacto federalista, colocou para esse poder local dos coronéis a necessidade de se alinharem a partidos políticos estaduais que , por sua vez, tinham relevância pelo pacto político com o poder federal. Nesse mecanismo se desdobrava a relação contraditória sintetizada na expressão “voto de cabresto” (como um exercício de poder próprio das relações clientelistas em que o coronel manipula seus dependentes) e o voto que pressupõe indivíduos livres.

50A problemática básica de Furtado sobre a formação da Nação na obra: Formação Econômica do Brasil (1959) é a ideia principal de que ao longo dos séculos de colonização se constituíram as bases, os fundamentos, de uma nacionalidade brasileira e do povo brasileiro. E a essa nacionalidade se constitui na falta uma base material para o seu desenvolvimento enquanto nação. Ou seja, uma nacionalidade despojada de uma base material voltada para o seu desenvolvimento, é nesse sentido que o problema da questão nacional, transita para uma discussão sócio econômica, a medida em que a estrutura social subjacente conforma o que vai ser processo econômico de desenvolvimento capitalista dependente.

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inaugura. (FERNANDES, 1981, p. 31)

A Independência instaura a formação da sociedade nacional, em que o poder deixa de

se manifestar como imposição de fora para dentro, para organizar-se a partir de dentro.

Nesse processo o autor identifica um “elemento puramente revolucionário”

identificado com a política e “elemento especificamente conservador” identificado com a base

econômica material da Independência:

Dessa perspectiva, a Independência pressupunha, lado a lado, um elemento puramente revolucionário e outro elemento especificamente conservador. O elemento revolucionário aparecia nos propósitos de despojar a ordem social, herdada da sociedade colonial, dos caracteres heteronômicos aos quais fora moldada, requisito para que ela adquirisse a elasticidade e a autonomia exigidas por uma sociedade nacional. O elemento conservador evidenciava-se nos propósitos de preservar e fortalecer, a todo custo, uma ordem social que não possuía condições materiais e morais suficientes para engendrar o padrão de autonomia necessário à construção e ao florescimento de uma Nação. (FERNANDES, 1981, p. 32)

Embora tolhido e deformado, o elemento dinâmico do processo de Independência foi o

elemento revolucionário que, a curto prazo, orientou no plano ideológico os ideais de

organização do Estado nacional e, a longo prazo, a reelaboração constante desse elemento

revolucionário que volta à tona continuamente:

Contudo, o elemento revolucionário era o componente verdadeiramente dinâmico e propulsor. Por isso, embora tolhido aqui ou deformado ali, ele se converteu no “fermento histórico” do comportamento social inteligente. A curto prazo, alimentou e orientou as opções que delimitaram, nos planos ideológicos e utópicos, os ideais de organização do Estado nacional. A longo prazo, em qualquer nível ou esfera que ocorresse estruturalmente, a integração nacional produzia efeitos que ultrapassavam o mero despojamento dos caracteres heteronômicos típicos de uma sociedade nacional. Isso redundava na reelaboração constante daquele elemento revolucionário, que voltava à tona, continuamente, em condições sócio-dinâmicas mais ou menos favoráveis à sua atuação como fator histórico-social construtivo. (FERNANDES, 1981, p. 33)

Florestan Fernandes elucida como o liberalismo exerceu influências sociais

construtivas em várias direções concomitantes nesse processo. O autor examina as condições e

efeitos histórico-sociais da absorção do liberalismo pelas elites nativas e mostra que essa

absorção apresenta duas polarizações dinâmicas distintas. A polarização que associava o

liberalismo aos processos de consciência social vinculados à "emancipação colonial”:

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Havia uma polarização que associava o liberalismo aos processos de consciência social vinculados à "emancipação colonial”. As elites nativas sentiam-se econômica, social e politicamente “esbulhadas”, em virtude da espoliação que sofriam através das formas de apropriação colonial e das consequências especificamente politicas do estatuto colonial , que alimentava a neutralização inexorável das probabilidades de poder inerentes ao status que elas ocupavam na ordem da sociedade colonial. Sob a perspectiva dessa polarização, o liberalismo assume duas funções típicas. De um lado, preencheu a função de dar forma e conteúdo às manifestações igualitárias diretamente emanadas da reação contra o “esbulho colonial”. (...) De outro lado, desempenhou a função de redefinir, de modo aceitável para a dignidade das elites nativas ou da Nação como um todo, as relações de dependência que continuariam a vigorar na vinculação do Brasil com o mercado externo e as grandes potências da época. (FERNANDES, 1981, p. 34)

A outra polarização, o liberalismo associado com a construção de um Estado nacional

diante do dilema de criar uma nação em um país destituído das condições elementares de uma

sociedade nacional:

A outra polarização do liberalismo o associava, definitivamente , com a construção de um Estado nacional. Na fase de transição, as elites nativas encaravam o Estado, naturalmente, como “meio” e “fim”: “meio”, para realizar a internalização dos centros de decisão política e promover a nativação dos círculos dominantes; e o “fim” de ambos os processos, na medida em que ele consubstanciava a institucionalização do predomínio político daquelas elites e dos “interesses internos” com que elas se identificavam. Nesse nível, o liberalismo possui nítido caráter instrumental e se propõe o complexo problema de como criar uma Nação num país destituído até das condições elementares mínimas de uma “sociedade nacional” (FERNANDES, 1981, p. 34/35)

O problema de como criar uma Nação em um país destituído até das condições

elementares mínimas de uma “sociedade nacional”, identificado por Florestan Fernandes no

caso brasileiro, é o problema de fundo da constituição dos Estado Nação latino-americanos.

Florestan Fernandes em “Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento” (1968), elucida

que a germinação de uma economia capitalista dependente nesse primeiro ciclo revolucionário

conduziu à extinção do pacto colonial e à constituição de um Estado nacional independente. O

Brasil passou, durante sua evolução econômica, social e política por dois ciclos

revolucionários. O primeiro deles ocorreu no contexto histórico da emancipação política e do

desenvolvimento de um Estado Nacional independente. O segundo deu-se no contexto da

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desagregação da ordem social escravista e senhorial e da expansão da ordem social

competitiva. (FLORESTAN, 1975, p. 156)

O primeiro ciclo revolucionário conduziu à extinção do pacto colonial e à constituição de um Estado nacional independente. Não obstante ao controle legal da metrópole e da Coroa apenas desapareceu para dar lugar a outra modalidade de controle externo: um controle baseado em mecanismos puramente econômicos, que restabelecia os nexos de dependência como parte das relações comerciais, através dos negócios de exportação e de importação. Assim desenrolou-se, nessa época e em seguida, um extenso (e sob certos aspectos profundo) processo de internalização e de absorção de instituições econômicas, que não existiam antes no País. Tal internalização e absorção não significam, porém, que a economia brasileira se transformasse numa economia livre ou independente. Nem, mesmo, que se estivesse construindo, a longo prazo, uma economia nacional, de bases capitalistas, relativamente autônoma. Mas ao contrário, significavam que, à medida que o capitalismo se consolidasse dentro do País, mais ramificados, sólidos e persistentes se tornariam os laços de dependência puramente econômica, nascido do novo tipo de incorporação dessa economia no mercado mundial. Portanto, a evolução do capitalismo, como realidade histórica interna, não possuía a mesma significação que teve em outros países da Europa (como a Inglaterra, a França ou a Alemanha) e nos Estados unidos. Na fase incipiente desse desenvolvimento o capitalismo exprimia a reorganização econômica e política do “mundo colonial”, sob hegemonia inglesa. Ele concorreu, sem dúvida, para alterar os rumos de nossa evolução econômica ulterior e deu lastro econômico ao duplo processo, pelo qual se constituíra um Estado nacional e uma nação moderna no Brasil. (FERNANDES, 1975, 157)

Florestan Fernandes articula duas conexões que são fundamentais para a compreensão

objetivas da situação histórico-social dos países latino-americanos: o que representa o passado

colonial e o que significa a condição de povo periférico e dependente no dilema de formação

uma sociedade nacional.

Os estudiosos da nossa formação histórica, cultural e política tendem a evitar, cuidadosamente, a análise realista de duas conexões, que são fundamentais para a compreensão e a explicação objetivas de nossa situação histórico-social. De um lado, o que representa o nosso passado colonial; de outro, o que significa a nossa condição presente, de “povo periférico e dependente”. Projetando em nossa história imagens e categorias tomadas da evolução da Inglaterra, da França ou dos Estados Unidos, acabam diluindo e anulando a fase colonial de formação da sociedade brasileira. Por uma mágica simplista, fundada em precária teleologia histórica, todo período colonial teria como “finalidade interna” a função de gerar a nacionalidade e uma sociedade nacional pronta e acabada! (FERNANDES, 1975, p. 154)

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As análises de Florestan Fernandes no texto Padrões de dominação externa na

América Latina (1973), em grande medida nos autoriza a estender essas análises desenvolvias

nos dois textos anteriores sobre o Brasil para a América Latina.

Florestan afirma que à semelhança de outras nações das Américas, as nações latino-

americanas são produto da “expansão da civilização ocidental”, isto é, de um tipo de

colonialismo organizado e sistemático. (FERNANDES, 1998,. P 95).

Neste texto o autor distingue quatro fases e formas de dominação externa, a saber: 1ª)

antigo sistema colonial; 2ª) controle do Mercado (neocolonialismo); 3ª) Imperialista e o 4ª)

Monopolista (capitalismo corporativo). O primeiro sistema básico de colonização e dominação

externa experimentado por quase todas as nações latino-americanas por quase três séculos,

produziu uma autêntica sociedade colonial, na qual apenas os colonizadores eram capazes de

participar das estruturas existentes de poder e transmitir posição social através da linhagem

“europeia”. A estratificação resultante, porém possuía grande flexibilidade, favorecendo a

absorção e o controle de massas de nativos, africanos e mestiços, classificados em categorias

de castas, ou mantidos fora das estruturas estamentais, como estratos dependentes. Sob tais

condições societárias, o tipo legal e político de dominação colonial adquiriu o caráter de

exploração ilimitada, em todos os níveis da existência humana e da produção, para o benefício

das coroas e dos colonizadores (FLORESTAN, 1998, p. 95)

Florestan sintetiza o dilema latino-americano:

Os países latino-americanos enfrentam duas realidades ásperas : 1) estruturas, socioculturais e políticas internas que podem absorver as transformações do capitalismo, mas que inibem a integração nacional e o desenvolvimento autônomo. ; 2) dominação externa que estimula a modernização e o crescimento, nos estágios mais avançados do capitalismo, mas que impede a revolução nacional e uma autonomia real. Os dois aspectos são faces opostas da mesma moeda. (FERNANDES, 2009, p. 34)

O dilema Latino-americano provém da mais profunda necessidade histórica e social de

autonomia e equidade. Florestan relaciona essa necessidade histórica à libertação real das

sociedades latino-americanas:

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Ele provém da mais profunda necessidade histórica e social de autonomia e equidade. Isso significa que as alternativas políticas efetivas deixaram uma margem estreita para as opões coletivas. Se os setores sociais dominantes e as elites no poder realmente desejam um desenvolvimento gradual lento e seguro, e se forem capazes de obter apoio popular, suas probabilidades de êxito dependem de um forte nacionalismo revolucionário. Sob as condições econômicas, socioculturais e políticas dos países latino-americanos, essa alternativa implica a implementação e o aperfeiçoamento de um novo tipo de capitalismo de Estado, capaz de ajustar a velocidade e a intensidade do desenvolvimento econômico e da mudança sociocultural aos requisitos da “revolução dentro da ordem social”. A outra resposta alternativa só pode surgir de uma rebelião popular radical, de orientação socialista. A estranha combinação de uma ampla maioria de gente destituída, miserável ou quase miserável, a uma explosão externa implacável e uma péssima utilização interna da riqueza, por minorias privilegiadas, gera um componente histórico imprevisível. A explosão social não é planejada com antecipação. Como Cuba, ela pode sobrevir inesperada e dramaticamente. A estrutura da sociedade e suas permanentes condições de anomia contêm os ingredientes básicos da desintegração: quando as forças da rebelião são liberadas, a ordem social não pode funcionar como um fator de autopreservação e de autorregeneração, porque ela não é desejada sequer pelos que tiram proveito das desigualdades e inquietudes existentes. A última alternativa, sem dúvida, abre caminho para a realização dos padrões mais elevados da razão humana e para a libertação real das sociedades latino-americanas. Todavia, ambas as soluções poderiam dar início a novas vias de evolução da América Latina, na direção de uma história de povos livres e independentes. (FERNANDES, 2009, p. 38/39)

Florestan coloca o dilema latino-americano numa perspectiva muito cara a nossa

abordagem metodológica de compreender as forças sociais, cujas contradições puseram em

movimento o processo histórico, que é justamente a compreensão de que a libertação real das

sociedades latino-americanas está relacionada com a liberação das forças da rebelião, essas

forças relacionadas às aspirações profundas das sociedades latino-americanas se alçarem

enquanto povo-nação.

Em Classes Sociais na América Latina (1971), Florestan Fernandes desenvolve a ideia

de que as sociedades da América Latina aparecem como sociedades em convulsão, que estão

em busca de seu próprio patamar e tempos históricos.

Na América Latina a sociedade de classes que emergem não conseguem absorver e

orientar as forças sociais da transformação da ordem social, ela nasce condenada a crise

permanente e ao colapso total. Enquanto na Europa a sociedade de classes pode absorver

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diferentes tipos de tensões e de conflitos de classes preservando dentro de certos limites sua

estabilidade e capacidade de renovação, a América Latina não pode fazer isso face às tensões e

conflitos emergentes que eclodem graças ao aparecimento das relações de classe, sem por em

risco sua estabilidade e, mesmo, sem destruir-se. (FLORESTAN, 2009, p. 44)

Essas noções de forças de rebelião, convulsão social, explosão é o desfecho das

contradições das estruturas de classes e relações de poder na América Latina. O exemplo de

Cuba, nas palavras de Florestan, sugere que a explosão pode preceder à formação de

consciência revolucionária propriamente dita, em particular, sua universalização.

(FLORESTAN, 2009, p. 44)

A partir disso, Florestan propõe um registro de interpretação que vai entender que não

são as classes sociais que são diferentes na América Latina, o que é diferente é o modo pelo

qual o capitalismo se objetiva e se irradia historicamente como força social. (FLORESTAN,

2009, p. 47)

Para entender o padrão da luta de classes na América Latina é necessário levar em

conta, em primeiro lugar, a existência numerosa dos “condenados do sistema”, “maioria

silenciosa”, “massa de despossuídos”, “condenados ao nível de vida inferiores ao da

subsistência”, “desemprego sistemático”, “miseráveis”, “marginalizados

socioeconomicamente”, “excluídos cultural e politicamente”, que convivem com classes

sociais propriamente ditas. Em segundo lugar, é necessário considerar a “mistificação

burguesa” e as “ilusões nacionais”, que fazem com que as classes sociais, parciais ou

integradas, não se vejam como classes sociais. (FLORESTAN, 2009, p. 45). Em terceiro lugar,

deve-se levar em conta o modo pelo qual o capitalismo se institucionalizou, difundiu-se e

desenvolveu-se, pois esse padrão atribui especificidade a questão da classe social, na medida

em que a sociedade de classes efetiva na América Latina nasceu da conjugação de privilégios

internos com a exploração externa. (FLORESTAN, 2009, p. 46)

Há uma persistência e um agravamento contínuo da ordenação em classes sociais cujas

debilidades e deficiências estruturais funcionais foram institucionalizadas e são na realidade

funcionais. Nas situações predominantes na América Latina umas classes sociais são mais

classes que as outras. As classes possuidoras e privilegiadas percebem como não podem

identificar o Estado e a Nação com suas posições e interesses de classes, nem lhes é dado

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aproveitar com segurança lemas e palavras de ordem mistificadores, precisam assumir os

riscos do uso aberto e sistemático da violência – por meios políticos indiretos e através do

Estado, com suas forças armadas e superestruturas jurídicas – como perpetuação do status co.

(FLORESTAN, 2009, p. 47)

Nesse quadro inscreve-se a problemática de Florestam Fernandes, destacando que o

que está em questão não é apenas a “sobrevivência” de entidades que não foram diluídas e

absorvidas pelas classes sociais (como etnias, estamentos ou barreiras raciais, que continuam

estanques). É a destruição de condições econômicas, sociais e políticas que impediram a

América Latina de fazer autênticas revoluções nacionais através do capitalismo.

(FLORESTAN, 2009, p.48)

E um desdobramento importante dessa problemática identificada por Florestan é

a inviabilidade das revoluções dentro da ordem nas sociedades latino-americanas,

vocacionadas, necessariamente para a revolução contra a ordem. Nas palavras de Florestan: as

classes sociais falham nas situações latino-americanas, porque operam unilateralmente, no

sentido de preservar e intensificar os privilégios de poucos e excluir os demais. As revoluções

dentro da ordem são bloqueadas pelas classes possuidoras e privilegiadas, porque as massas

despossuídas estão tentando apreender como realizar revolução contra a ordem.

(FLORESTAN, 2009, p. 49)

Para Florestan Fernandes, a Revolução nacional dentro da ordem é inviável na

América Latina. A argumentação do autor parte do reconhecimento de uma burguesia e uma

pequena burguesia, com horizontes intelectuais muito estreitos, delimita seus papéis nos níveis

da estrutura da sociedade e da história, para serem os baluartes de uma ordem que consagra a

dependência, o subdesenvolvimento e a iniquidade sistemática. Dessa perspectiva, é possível

entender porque a ordem social competitiva não se tornou instrumental, sob o capitalismo

dependente e a sociedade de classes subdesenvolvida, quer para a revolução nacional, quer

para a autonomização do padrão de desenvolvimento capitalista. A revolução nacional requer,

mesmo sob o capitalismo, algum modo de entendimento social e de comércio político entre as

classes. Ao bloquear ou deprimir as classes “baixas”, as classes privilegiadas reduziram o

alcance e a variedade dos interesses que se tornam porta-vozes. Perderam assim a condição de

fundir a realização de seus interesses de classe e a integração nacional, malogrando como

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elites políticas. (FLORESTAN, 2009, p. 98)

Esse padrão específico da luta de classe confere o “malogro das classes privilegiadas”

na América Latina. O malogro é estrutural e sócio-dinâmico e o que está em jogo não são os

agentes individuais, mas as potencialidades estruturais e dinâmicas da ordem social

competitiva. Esta não se ajustou às funções que deveriam preencher, e às transições que

deveria desencadear para que a revolução nacional se completasse. A ordem social

competitiva foi deliberada e persistentemente adaptada às condições de dependência e

subdesenvolvimento como estado crônico, embora em constante mudança. Em nenhum

momento chegou a funcionar como um foco de impulsões societárias que impusessem a

autonomização do desenvolvimento capitalista, como alternativa válida ao

superpriviligiamento das classes dominantes. Em consequência, nas fases de transição

estrutural do capitalismo, a liderança dos processos foi transferida das elites internas para

externas. De um ponto a outro, a ordem social competitiva só foi eficaz para o privilegiamento

das classes “altas” e “médias”, a contínua renovação de um padrão dependente de

desenvolvimento capitalista e a reprodução, em níveis crescente mais complexos, do

subdesenvolvimento. (FLORESTAN, 2009, p. 99)

Desse modo, as “revoluções dentro da ordem se tornaram impossíveis” a medida que a

ordem social competitiva não pode estimular esse tipo de mudança, para que não surjam

impulsões societárias que encadeiam a revolução agrícola, a revolução urbana, a revolução

democrática às transformações estruturais do capitalismo.

A sociedade de classes, que se torna possível sob o capitalismo dependente, molda a

sua própria ordem econômica, social e politica. Essa ordem, por sua vez, condiciona e regula

os dinamismos de funcionamento e de evolução da sociedade de classes que engendra,

vinculando-a, de modo permanente, a padrões dependentes de desenvolvimento capitalista e a

estados crômicos de subdesenvolvimento.

Nessas condições, a nacionalização e a autonomização do desenvolvimento capitalista

esbarram na rigidez da ordem econômica, sociocultural e política vigente. Isso faz com que a

“revolução dentro da ordem” seja sistematicamente esvaziada de significação para as classes

não privilegiadas e com que a “revolução contra a ordem” só tenha pleno sentido fora e acima

do contexto burguês, como uma revolução das classes “baixas” e dos setores radicais de outras

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classes contra o capitalismo dependente e a sociedade de classes a que ele dá origem. Essas

conclusões sugerem que a dependência e o subdesenvolvimento suscitam problemas que não

podem ser resolvidos sob o capitalismo dependente e a sociedade de classes. Mantidas as

demais condições, a aceleração do desenvolvimento capitalista apenas tem aprofundado a

dependência e agravado o subdesenvolvimento, provocando ao mesmo tempo maior rigidez na

ordem social competitiva. (FLORESTAN, 2009, p. 100)

Ao deprimir as contradições entre as forças produtivas e as formas de produção capitalistas, o subdesenvolvimento desloca o centro de avaliação societária da ordem existente, pondo em primeiro plano as “aspirações” ou, “necessidades” de desenvolvimento e escamoteamento, ao mesmo tempo, a crítica do capitalismo (que acabaria sendo a critica do capitalismo dependente). Poucos são os grupos que tentam fiscalizar sistematicamente o que “está falhando” e, em particular, se o capitalismo poderia resolver, nas condições de dependência e subdesenvolvimento, os problemas nacionais com que se defrontam os povos da América Latina. As ideologias e utopias “desenvolvimentistas” preenchem as suas funções, dinamizando atitudes, comportamentos e orientações de valor inspiradas em expectativas de “revolução dentro da ordem” (isto é, em transições pelas quais o desenvolvimento capitalista sempre reproduziria socialmente a dependência e o subdesenvolvimento, embora em novos níveis socioeconômicos e culturais). Mas nenhum grupo ou setor de classes chega a articular contraideologias e contrautopias efetivamente calibradas sobre a “revolução contra a ordem” em termos de criação de alternativas capitalistas (ou seja, de um neocapitalismo capaz de vencer, a partir de dentro, as causas e os efeitos do subdesenvolvimento, forjando padrões autônomos, autossustentados e autopropeliados de desenvolvimento capitalista). Isso ocorre porque a incorporação dependente é invisível, inflexível e insuperável; os adeptos mais ardosos do “desenvolvimentismo” (ou do ultradesenvolvimentismo) ignoram os laços que os prendem indissociavelmente aos dinamismos econômicos, socioculturais e políticos externos e trabalham, de fato, por novas alternativas de incorporação dependente. Os dinamismos socioeconômicos, culturais e políticos da sociedade de classes latino-americana desembocam, portanto, em imenso vazio político e histórico, o qual põe em jogo a sua própria dissolução. Só a “revolução contra a ordem”, negadora ao mesmo tempo da dependência, do subdesenvolvimento e do capitalismo, oferece uma alternativa real ao padrão dependente de desenvolvimento capitalista. Como sucede com os fatos de estrutura, os fatos de funcionamento e de evolução também sugerem que uma ordem social competitiva fraca não possui condições para coordenar as transformações críticas do sistema de produção capitalista, da sociedade de classes e da civilização científico-tecnológica. Inibindo todas as influências, exceto as que procedem do tope e combinam a mudança socioeconômica, cultural e política à preservação mais ou menos rígida de privilégios de classes, ela só deixa uma porta aberta para a superação do

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subdesenvolvimento: a da revolução socialista. (FERNANDES, 2009, p. 89)

Quando Florestan afirma que só a “revolução contra a ordem”, negadora ao mesmo

tempo da dependência, do subdesenvolvimento e do capitalismo, oferece uma alternativa real

ao padrão dependente de desenvolvimento capitalista ele estabelece a conexão entre a

problemática da formação nacional e o processo de emancipação conteúdo das lutas de

libertação nacional na América Latina.

Esse nexo fica claro quando Florestan apresenta as três vias poderiam se abrir para a

solução os problemas derivados da formação nacional:

A primeira, consiste em fortalecer, segundo ritmos bastante rápidos, a incorporação dos países da América Latina ao espaço econômico, sociocultural e político das nações capitalistas hegemônicas. Essa alternativa permitiria quebrar o privilegiamento interno como fator de rigidez da ordem social competitiva, pela mobilização concomitante dos setores sociais menos privilegiados ou despossuídos. Mas envolve custos econômicos, socioculturais e políticos que a tornariam impraticável. Na prática, só serve para justificar os “surtos desenvolvimentistas” e manter o status quo. (FERNANDES, 2009, p. 100)

Poderíamos estabelecer uma analogia dessa primeira via pleiteada por Florestan como

a via neoliberal e suas contradições para o desenvolvimento. Já a segunda via sistematizada

por Florestan, carrega as características da via intentada do desenvolvimentismo e, reservadas

suas particularidades com o neodesenvolvimentismo ou nacional desenvolvimentismo:

A segunda via é bem conhecida: a multiplicação rápida dos pontos de disseminação dos “privilégios estratégicos”, de modo a universalizá-lo no seio das classes “médias’ e a torná-la mais frequentes nos “setores explosivos” das classes “baixas”. Essa alternativa abriria caminho para uma autêntica “revolução dentro da ordem”, pela qual o próprio capitalismo resolveria os problemas gerados pela acumulação dual de capital e forjaria formas de autonomização do desenvolvimento capitalista econômica, social e politicamente viáveis. Tal alternativa também é impraticável, porque pressupõe tendências e ritmos de mudança social, que são improváveis, e não se adapta às realidades da dominação capitalista na era da grande corporação multinacional, da internacionalização dos mercados e do imperialismo total. Na prática, tem sido útil aos setores sociais que podem empolgar o reformismo como expediente de ascensão social e às manipulações conservadoras ou reacionárias que visam ao “desenvolvimentismo com segurança”, mediante a “institucionalização da revolução”. (FERNANDES, 2009, p. 101)

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Diante da inviabilidade histórica da primeira e da segunda via de desenvolvimento,

Florestan advoga pela via da “Revolução contra a ordem” como a única efetivamente capaz de

superar a dependência e o subdesenvolvimento:

A terceira via foi a pontuada anteriormente: a “revolução contra a ordem” por meio da explosão popular e do socialismo. Ela não é fácil, por vários motivos, externos e internos; mas é possível na “escala latino-americana”, como o demostra o exemplo de Cuba. A sua vantagem reside na ruptura total com os fatores e efeitos da dependência e do subdesenvolvimento, sob o capitalismo e a sociedade de classes. Na prática, também pode ser adulterada (graças à influência persistente do populismo e de modalidades pseudo revolucionárias do nacionalismo). Todavia, é a única via efetivamente capaz de superar a dependência e o subdesenvolvimento, convertendo os desafios em “desafios históricos” e em fonte de solidariedade humana na luta pela modernização autônoma por uma ordem social igualitária. (FERNANDES, 2009, p. 100)

Atento as modalidades “pseudo revolucionárias do nacionalismo”, Florestan reforça

que o nacionalismo como força social deve ser entendido em todas as suas ramificações e é do

interesse da América Latina que todas as suas potencialidades revolucionárias sejam

equacionadas e conduzidas ao terreno da ação política. (FERNANDES, 2009, p. 144)

É nesse contexto que Florestan vai se referir ao revolucionarismo democrático –

popular, o nacionalismo revolucionário e o anti-imperialismo como elementos que fomentam a

desestabilização do poder na América Latina. No texto “Nós e o Marxismo” (1987) Florestan

sintetiza:

Por aí o Brasil penetra na fermentação política da luta de classes na América Latina de nossos dias. Vive as crises da dominação burguesa de dupla face: a do Estado “nacional” títere e ditatorial e a do sistema de dominação extrema, com frequência sob hegemonia estadunidense. A primeira ruptura desse esquema se manifestou nitidamente em Cuba, com a conquista do poder pelo Exercito Rebelde. O fulcro popular, democrático – nacionalista e anti-imperialista da revolução aplastou o antigo regime e o aparentemente invulnerável centro de poder neocolonial estadunidense. No momento o processo se repete: Nicarágua, El Salvador, Guatemala...O revolucionarismo democrático – popular, o nacionalismo revolucionário e o anti-imperialismo – fomentam a desestabilização desse duplo poder associado. (FERNANDES, 2009, p, 18)

A “revolução dentro da ordem” se articula e se confunde com a “revolução contra a

ordem” e essa terceira via da libertação nacional se coloca como a construção de uma ordem

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social própria, um elo que ligue a revolução nacional-democrática e anti-imperialista à

emergência e à vitória do socialismo:

A “revolução dentro da ordem” se articula e se confunde com a “revolução contra a ordem”. A desagregação do estado Burguês é fatal. Perdido ou anulado pela maioria da população o esteio da violência institucional encarniçada, ele desaba. Os que sempre foram tratados como “inimigos da ordem” e sempre foram excluídos da sociedade civil só acham uma saída: construir uma ordem social própria e uma sociedade civil transitória, que ligue a revolução nacional-democrática e anti-imperialista à emergência e à vitória do socialismo. (FERNANDES, 2009, p, 20)

Por fim, estabelecemos uma aproximação, entre essa terceira via da revolução

nacional-democrática e anti-imperialista, como ela é a identificada por Ruy Mauro Marini.

No âmbito da vertente critica da teoria da dependência Marini vai desenvolver a tese de

que a burguesia dependente transfere para a exploração do trabalho as suas perdas econômicas

pelo seu lugar subordinado na lógica internacional da divisão do trabalho.

Destacamos, na contribuição de Marini, a vinculação da noção de dependência às

relações Imperialistas, conexão essa estabelecida a partir da categoria de Superexploração do

trabalho na dinâmica do Modo de Produção Capitalista na sociedade dependente.

Marini mostra que quando se coloca o problema da criação da indústria pesada, a

necessidade de necessidade de ampliar a escala de mercado, e de acelerar as transferências

para o setor industrial do excedente produzido pelas exportações, no afã de aumentar a

exploração da mais valia relativa – aproveitando a oferta mundial de equipamento e

maquinarias incrementadas no pós-guerras – a burguesia industrial cede ao setor

agroexportador dando-lhe facilidades e incentivos para expandir suas atividades. Para fazê-lo,

sem limitar a acumulação de capital necessário para enfrentar a segunda etapa de

industrialização, tem que descarregar sobre as massas trabalhadoras da cidade e do campo o

esforço de capitalização, com o que afirma o principio fundamental do subdesenvolvimento ,

ou seja, a superexploração do trabalho. (MARINI, 2009, p. 122).

O fenômeno da superexploração do trabalho manifesta-se tanto na aceleração da

inflação seguida de “politicas de estabilização” de ajustes, como na renúncia em realizar

reformas de base, uma reforma agraria efetiva, políticas de redistribuição de renda que fez

com que o processo de desenvolvimento capitalista tivesse como condição o divórcio com as

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aspirações das grandes massas e cai por terra a possibilidade de manter com elas uma aliança

tática. (MARINI, 2009, p. 122).

Este processo se completou com a renúncia da burguesia em levar adiante uma

politica de desenvolvimento autônomo. Com o assédio dos capitais estrangeiros no momento

em que as burguesias nacionais dos países latino-americanos estabelecem o propósito de

desenvolver seu próprio setor de bens de capital, a burguesia industrial passa do ideal de um

desenvolvimento de autonomia para uma integração efetiva com os capitais imperialistas e dá

lugar a um novo tipo de dependência, muito mais radical que a anterior. O mecanismo da

associação de capitais é a forma que consagra esta integração, que não só desnacionaliza

definitivamente a burguesia local, como também, somada à acentuação da dispensa de mão de

obra que caracteriza o setor secundário latino-americano, consolida a prática abusiva de preços

(fixados segundo o custo de produção das empresas tecnologicamente mais atrasados) como

meio de compensar a redução concomitante do mercado. O desenvolvimento capitalista

integrado acentua, pois, o divórcio entre a burguesia e as massas populares, intensificando a

superexploração do trabalho a que estão submetidas e negando-lhes o que representa sua

reivindicação mais elementar: o direito ao trabalho. (MARINI, 2009, p. 123)

No quadro da dialética do desenvolvimento capitalista mundial, o capitalismo latino-americano reproduz as leis gerais que regem o sistema em seu conjunto, mas, em sua especificidade acentuou-se até o limite. A superexploração do trabalho que se funda, enfim o conduziu a uma situação caracterizada por um corte radical entre as tendências naturais do sistema e, portanto, entre os interesses das classes beneficiadas por ele, e as necessidades mais elementares das grandes massas, que se manifestam em suas reivindicações por trabalho e consumo. A lei geral da acumulação de capital, que implica a concentração da riqueza num só pólo da sociedade e o pauperismo absoluto de grande maioria do povo, expressa –se aqui com toda a brutalidade e põe na ordem do dia a exigência de formular e praticar uma política revolucionária de luta pelo socialismo. (MARINI, 2009, p. 123)

Marini evidencia o caráter brutal do processo de industrialização na América Latina,

que pelas características que assumiu, teve como principal efeito a intensificação da

exploração das massas trabalhadoras da cidade e do campo.

Cada avanço da indústria latino-americana resulta, pois, na afirmação cada vez maior

de sua dependência econômica e tecnológica frente aos centros imperialistas. Esse

desenvolvimento afeta não só as relações entre os países latino-americanos e o imperialismo,

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mas também as relações entre os países latino-americanos com relação a divisão internacional

do trabalho. Há a relação de transferência a certos países etapas inferiores do processo de

produção, reservando aos centros imperialistas as etapas mais avançadas e o controle da

tecnologia correspondente. E entre os países periféricos se estabelecem hierarquias, segundo

os ramos da produção que desenvolveram ou estão em condição de desenvolver, e se nega aos

demais o acesso a estes tipos de produção, convertendo-os em simples mercados

consumidores. As características próprias do sistema fazem com que esta tentativa de

racionalizar a divisão de trabalho propicie a formação de centros subimperialistas associados à

metrópoles para explorar os povos vizinhos. (MARINI, 2009, p. 125)

Uma América Latina Integrada ao imperialismo é a condição de sobrevivência do sistema imperialista. A superexploração do trabalho em que se funda o imperialismo, sob cujo signo se pretende integrar os países da região, estabelece um descompasso entre a evolução das forças produtivas e as relações de produção que só pode resultar na derrocada do sistema em seu conjunto, com tudo o que ele representa em exploração, destruição e degradação. Por outro lado, a luta mundial contra o imperialismo, à a América Latina se integrou vitoriosamente através da Revolução Cubana, não depende exclusivamente do que queiram e façam os povos desse continente, mas também da influência exercida sobre eles através de sucessivos igualmente importantes como a guerra de libertação do povo vietnamita, a revolução chinesa e a agudização das lutas de classe no interior do próprio Estados Unidos. (MARINI, 2009, p. 125)

Por fim, registramos essa citação em que Marini esboça a relação entre a luta de classes

no cenário nacional e seu caráter internacionalista como a contribuição original da América

Latina para à luta do proletariado mundial:

Ao definir no plano nacional uma política operária, as forças revolucionarias estarão pondo em marcha um processo que conduz necessariamente à internacionalização da revolução e ao enfrentamento direto com o centro hegemônico imperialista. Seus opressores nacionais e estrangeiros já se previnem contra essa possibilidade, tratando de estabelecer mecanismo de contenção, tais como os regimes militares submetidos à estratégia do Pentágono, a Força Interamericana de Polícia, os acordos para repetir, quando necessário a experiência dominicana. A ação internacionalista de Guevara, a politica revolucionária de Cuba, antecipam a resposta que os povos do continente darão a seus opressores. Mais ainda, fazem com que se desenhe no horizonte o que parece ser a contribuição mais original da América Latina à luta do proletariado mundial: seu caráter internacionalista. Tudo indica que será aqui onde o internacionalismo proletário alcançara uma nova etapa de seu desenvolvimento e assentará as bases de uma

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sociedade mundial de nações livres da exploração do homem pelo homem. (MARINI, 2009, p,128/129)

A aproximação entre Florestan e Marini permite reunir elementos que caracterizam o

padrão da luta de classes na América Latina. É uma luta de classes acirrada pela dimensão

política da reprodução da conexão entre dependência e subdesenvolvimento que inviabiliza

um projeto democrático. Trata-se de um modelo fundado na reprodução de heterogeneidade

estruturais e na concentração de renda como ímpeto da modernização do padrão de consumo

das elites que só pode ter vigência num contexto de asfixia política. É um sistema que

institucionaliza a violência sistemática e é caracterizado pela necessária saturação política do

sistema de poder e dos mecanismo de controle ou de transformação social; um padrão de

hegemonia burguesa anti-democrática, antissocial e antinacional. Também é marcado pela

tendência em reproduzir a mais valia absoluta e a superexploração do trabalho como resposta

estrutural da lógica de acumulação de capital nos países dependentes.

Essas características apontam para uma realidade nacional na qual não há possibilidade

de uma saída social democrata nos países latino-americanos e, portanto, o conteúdo

democrático da realização da formação nacional está relacionado ao socialismo e esse, por sua

vez, se relaciona a contingencia histórica da Libertação nacional e do anti-imperialismo.

Destacamos, por fim, uma dimensão pressuposta nesses autores que buscam identificar

os dilemas do desenvolvimento do capitalismo dependente e sua relação com o socialismo e o

anti-imperialismo que é entender a necessidade de formulação e prática da política

revolucionária relacionada ao caráter brutal (como aparece em Marini), ou perverso e

deformado (como aparece em Florestan) ou com aleijume de nascença (como destacamos em

Letizia) do capitalismo na América Latina.

Essa é uma perspectiva original do Marxismo na América Latina em comparação com

o parágrafo do Prefácio a Introdução da Crítica a Economia Política. Baseado em

investigações do processo histórico, Marx chega a um resultado em seus estudos resumido em

uma formulação que aponta para um sentido histórico, que ao chegar a uma determinada fase

de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações

de produção existentes e se abre, assim, uma época de revolução social.

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2.4 Tarefas nacionais transmitidas a épocas posteriores

A América Latina a partir das contradições de seu processo histórico de

desenvolvimento capitalista apresenta peculiaridades na questão das formações nacionais que

buscamos examinar em duas perspectivas: uma que privilegia as determinações do aleijume na

formação do Estado Nação, que autores como Florestan Fernandes vão se referir como um

Estado Nação deformado; E a outra: a perspectiva do desenvolvimento capitalista com

especificidades que é amplamente abordada nos estudos do subdesenvolvimento, capitalismo

periférico e dependente.

Tanto a dimensão política quanto a dimensão econômica colocam a necessidade da

ruptura da Libertação Nacional, do socialismo do caráter anti-imperialista como horizonte de

constituição soberana dos povos e do desenvolvimento econômico.

Concluímos este capítulo 2, resgatando a indagação do nosso problema de pesquisa, a

saber: da perspectiva da classe trabalhadora, entender o lugar para as tarefas nacionais nas

formações dependentes. Destacamos que em se tratando de povos com histórico de sociedades

nativas negadas lançados à condição de sub-humanidade, “o modo de agir com violência” é a

marca de como a contradição vai se desenvolver no processo histórico do continente. Como

pontuamos, identificar a violência como força motriz do processo, revela o fundamento

predominante nas relações sociais marcado pela violência exacerbada das forças opressoras

dos Estados Nacionais, pelo desprezo à vida e notadamente pela exploração da força de

trabalho. Essa violência é desdobramento de um processo distinto da violência própria da

sociedade de classes em geral: trata-se de uma violência que não opera na condição de um ser

humano sobre outro, mas no caso rejeita a humanidade ao negar as sociedades nativas. A

violência, que em Marx é o “pecado original” na constituição de Nações burguesas, é a marca

da “(de)formação” do Estado Nação, em que as aspirações de nacionais não foram realizadas.

É precisamente nos Movimentos de Independência, quando a ressonância da

Revolução Francesa repercute no povo da América Latina trazendo aspirações emancipatórias

da modernidade, que se observa que esses ideais ficam restritos à independência política da

burguesia, e que caracteriza o aleijo de nascença da questão nacional. Ou seja, os ideais

humanos que a modernidade prenuncia, não têm aderência à sub-humanidade a que foram

lançados os povos de nações negadas.

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A violência de negar as aspirações emancipatórias da modernidade a esses povos os

obrigam a ir além das aspirações modernas de igualdade e liberdade para existirem enquanto

nações e realizar suas necessidades mais básicas.

Em consequência, as tarefas de realização nacional, que são pressuposto para

democracia, colocam-se como pendentes e dizem respeito a aspirações profundas desses

povos, transmitidas a épocas posteriores. Essas aspirações aparecem como conteúdo de amplo

leque de movimentos nacionais. Ou seja, as aspirações não-realizadas no processo de

Independência em que o povo não participou são resinificadas com o desdobramento das

contradições que colocam o processo histórico em movimento. São aspirações tramitadas a

épocas posteriores e aparecem como conteúdo de movimentos anticapitalistas e anti-

imperialistas, como reivindicações nacionais traduzidas na luta pelos direitos democráticos e

pela reforma agrária.

Como desdobramento das contradições do desenvolvimento econômico capitalista na

América Latina destacamos a impossibilidade de reproduzir os padrões da luta de classe do

capitalismo em países desenvolvidos, o que estabelece uma perspectiva distinta da abordagem

da “industrialização como pré-requisito à emancipação”.

Tomamos essa formulação emprestada de Álvaro Vieira Pinto que a desenvolveu no

âmbito das interpretações do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1954) para

exemplificar que não se trata de uma nacionalidade reduzida a industrialismo, ou qualquer

sugestão de construção interrompida da nação. A perspectiva que estamos trazendo a luz seria

a presente nos Cadernos do povo brasileiro publicadas entre (1962 – 1964) pelo ISEB,

organizados por Ênio Silveira (1925 – 1996), juntamente com próprio Álvaro Vieira Pinto. Os

Cadernos nasceram no contexto do governo João Goulart (1961- 64), em um dos momentos

mais quentes da Guerra Fria, quando a Revolução Cubana acabava de triunfar. (LOVATTO,

2009, p. 94).

Em grande medida, os Cadernos em seu conteúdo expressam essas aspirações

profundas do povo brasileiro, que reaparecem nos conflitos sociais nos anos 60 na sociedade

brasileira. Os “cadernistas” colocavam a necessidade da revolução Brasileira em termos de

resolver os problemas do povo brasileiro, o que em grande medida é perceptível pelos títulos

da coleção: “Quem pode fazer a revolução no Brasil? (Bolivar Costa, 1962); Que é revolução

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brasileira? (Franklin de Oliveira, 1963); Quem é o povo no Brasil? (Nelson Werneck Sodré,

1962); O que são as Ligas camponesas? (Fancisco Julião) – para citar alguns exemplos.

(LOVATTO, 2009, p.94)

Destacamos a distinção entre a equação “industrialização nacional = superação da

situação semicolonial”, ideia central do nacionalismo populista, (ALMEIDA, 2006, p. 194) da

perspectiva que ressaltamos na aproximação entre Ruy Mauro Marini e Florestan Fernandes,

segundo a qual o problema da reprodução do capitalismo dependente e, sobretudo da

interrupção do processo de formação nacional, é também o problema da restrição violenta das

possibilidades de um projeto democrático e asfixia da vida política. Nossa questão de pesquisa

justamente busca examinar a possibilidade de criar força social que leve as conquistas por

direitos, até o limite, com a intencionalidade de classe de evidenciar que essas conquistas não

serão realizadas no capitalismo e que, portanto, o esforço de levar até o fim as tarefas

nacionais e democráticas, conduz ao processo de transição socialista.

O esgotamento das possibilidades de conquista dos trabalhadores na sociedade

capitalista, em última instância, pressupõe superar a ilusão com a democracia liberal burguesa,

o que só se dá pela experiência concreta das massas populares. A ideia de vir a ser povo

nações evidencia a centralidade no terreno da luta política em que a democracia liberal

burguesa deve ser apontada como o limite da luta reivindicativa, que é superada pela luta

revolucionária, por sua vez, com centralidade na conquista do poder Estado. Florestan

Fernandes aponta que “a luta por reformas cede lugar à luta revolucionária”, ou seja, cede

lugar num processo sem etapas de avanço da democracia, pelo avanço num processo

ininterrupto de esforços da classe trabalhadora, ao buscar realizar reformas e obter conquista,

se depara concretamente com as contradições de classe. Esse processo de avanço das reformas

e direitos altera a correlação de forças, criando uma situação de impasse, quando se coloca

objetivamente no horizonte de luta, a superação da dominação do Estado e da sociedade de

classes pela retomada dos meios de produção, esforço esse propriamente de um processo de

revolução socialista. O próximo capítulo será dedicado a examinar em autores relacionados a

processos de lutas por libertação nacional na América Latina, que dão consequência ao

método universal e particular e, assim, constituem o legado do pensamento crítico marxista

sobre o caráter da Revolução no continente.

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Capítulo 3

Questão Nacional no marxismo da América Latina

3.1 Introdução

No capítulo anterior desenvolvemos a perspectiva de como, a partir das contradições

que colocam em movimento as forças sociais em cada momento sucessivo do processo

histórico na América Latina, o aleijume de nascença na formação nacional e o

desenvolvimento capitalista dependente colocam uma perspectiva de construção da classe

trabalhadora em torno de tarefas com conteúdo nacional, democrático e necessariamente

popular.

Neste terceiro capítulo, examinamos a ressonância no pensamento crítico de dois

momentos em que o acirramento dessas contradições foi traduzido em conflitos sociais que se

manifestaram de diferentes formas e intensidades na América Latina. Entendemos que esses

momentos, por um lado, evidenciam o conteúdo dessas aspirações populares profundas

gestadas no processo histórico de desenvolvimento capitalista na América Latina e, ao mesmo

tempo, processos de luta obrigam o marxismo a ser revolucionário. Examinamos o

pensamento crítico como reflexão sobre os dilemas e as práticas de luta na década de 1920-30

e 1960-70 com um recorte pontual que é a questão nacional.

O avanço do Marxismo na América Latina se deve a um fato político: uma Revolução

que triunfou. O pensamento crítico na América Latina, relacionado às Lutas de Libertação

nacional, desenvolve uma contribuição criativa e original sobre a relação questão nacional –

socialismo – anti-imperialismo.

Para desenvolver essa abordagem neste capítulo, registramos três ponderações iniciais.

Primeiramente, é necessário levar em conta que os conceitos têm história e é preciso saber a

história dos conceitos. Portanto, para dar conta de conceitos, categorias de análises como os

que vão estar presentes na exposição (capitalismo, socialismo, nacionalismo,

internacionalismo, imperialismo) temos que recuperar a história atentas às muitas correntes do

marxismo. A segunda ponderação refere-se ao desafio teóricos de pensar o marxismo na

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América Latina. Esse desafio não está situado na oposição entre eurocentrismo e reinvenções;

mas sim na contradição entre o Universal e o Particular, ou seja, o desafio teórico e prático de

universalizar a particularidade e particularizar a universalidade. E por fim, pondera-se que

estamos tomando o marxismo como uma teoria intimamente relacionada à prática da

Revolução e contra revolução.

O capítulo está dividido em três partes. No primeiro momento, reunimos elementos

para caracterizar o que estamos chamando de pensamento crítico na América Latina. Em

seguida, examinamos o tripé: libertação nacional – socialismo – anti-imperialismo, como

legado do período revolucionário dos anos 1920-30 e 1960-70. Por fim, concluímos o capítulo

com a reflexão sobre a questão nacional no pensamento crítico da América Latina.

3.2 Nossa América e Pensamento Crítico

A partir de uma seleção de autores que se dedicam ao tema do pensamento crítico na

América Latina, reunimos alguns elementos segundo os quais possamos caracterizar o que

estamos chamando de pensamento critico em nossa pesquisa, bem como buscar reconstituir

um legado da interpretação crítica na América Latina que será significativo notadamente nas

décadas de 1960/70, momento em que identificamos uma contribuição significativa do

pensamento critico latino-americano para o marxismo. Desde já registramos a ponderação de

que não vamos mobilizar alguns autores desse vasto campo de pensamento a título de

ilustração. Muitos outros autores e documentos poderiam compor essa tentativa de

reconstrução da matriz própria do pensamento crítico latino-americano que tem incidência

nesse momento histórico. No entanto, vamos nos restringir a identificar os elementos que

possam sugerir um campo fértil para investigações sobre a questão nacional relacionada às

lutas de libertação nacional.

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3.2.1 Matriz própria e autônoma de pensamento.

A partir das especificidades dos conflitos sociais que colocam o processo histórico em

movimento na América Latina é possível e necessário reconhecer a existência de uma matriz

própria e autônoma de pensamento, com valores de orientação nacional e popular para

interpretar os fenômenos sociais. (ARGUMERO, 1993, p. 18)

Afirmar a existência de uma matriz autônoma de pensamento popular latino-americano supõe interrogar-se sobre o potencial teórico imerso nas experiências históricas e nas fontes culturais das classes subalternas, que constituem mais da metade da população do continente. Isso implica em reconhecer a legitimidade das concepções e dos valores contidos nas memórias sociais que, no transcurso de centenas de anos, foram processando a “visão dos vencidos”, uma visão diferente da história iniciada com a Idade Moderna europeia nos séculos XV e XVI. (ARGUMERO, 1993, p. 18) – tradução nossa.

Na constituição da história como história universal a partir do século XVI, a entrada

das sociedades americanas na Modernidade produziria um mapa sócio-cultural de

características degradantes da perspectiva da expansão capitalista civilizatória. O processo de

colonização atuou no sentido de aniquilar as sociedades nativas e impôs a exploração por meio

da escravidão e a dominação por meio de suas aristocracias.

O período colonial foi marcado na América Latina por diversas manifestações de

resistência cultural; formas de rebeldia aberta, no sentido de afirmar sua dignidade como

povos; e insurreições diante das condições de exploração que as massas nesses territórios

nunca aceitaram passivamente.

Foram quase trezentos anos de levantes das sociedades nativas e de contingentes

negros, como as lutas de Cuauhtèmoc, no México; Manco Inca e Tupac Amaru, no Peru;

Guerras de Caupolicán e Lautaro, no Chile; Guaranis e Charrúas, no Rio da Plata;

Guaicaipuru, na Venezuelas; dos mocambos de escravos, no Brasil, que vão dar origem aos

Quilombos; insurreições dos Tarahumaras, em Chihuahua e dos Tepehuanes, em Nayarit.

Resistências estas que culminariam em movimentos precursores da independência, como o de

Tupac Amaru II e Tupac Catari, no Peru e o liderado por Boukman, Touissant Louverture e

Jean Jacques Dessalines, no Haiti. (ARGUMERO, 1993, p. 17).

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Essas rebeldias reivindicam identidades, a profunda vocação para autonomia e

liberdade e a defesa de uma condição humana negada, por meio de mandatos culturais

subterrâneos que ao longo do processo de conquista e colonização alimentaram memórias,

valores e significados das classes subordinadas da América Latina.

Destacamos em Argumero as relações que a autora estabelece no intuito de buscar as

experiências sociais traduzidas em produção teórica. Um recurso usado pela autora é a

comparação entre as produções teóricas na Europa e na América Latina nos mesmos períodos.

Por exemplo, nos mesmos anos em que Emmanuel Kant (1874) se perguntava “o que é a

ilustração?”, na Europa, Tupac Amaru morria esquartejado por liderar a rebelião indígena que

precedia a independência da América Latina. (ARGUMERO, 1993, p. 19)

Como os representantes mais significativos da academia europeia de sua época, Kant

esteve influenciado na visão do homem americano por teses de Buffon y De Pauw, e de

naturalistas como Johann Friedrich Blumenbach e Eberhard Zimmermann. Não obstante haver

transcorrido dois séculos desde a conquista espanhola e portuguesa do Novo Mundo, Kant, em

1775, considerava que: “o povo americano não é suscetível a nenhuma forma de civilização.

Não têm nenhum estímulo, pois carece de afeto e de paixões. Os americanos não sentem amor,

e por isso não são férteis. Quase não falam, não fazem carinho, não se preocupam com nada e

são preguiçosos, incapazes de governar-se, estão condenados à extinção. (ARGUMERO,

1993, p 19)

A problemática de Kantiana, em 1784, aponta para o entendimento de que a ilustração

é a liberação do homem de sua incapacidade. Esta significa a impossibilidade de servir-se de

sua inteligência sem a tutela do outro. O lema da ilustração vem a ser: tenha o valor de guiar-

se por sua própria razão. O conceito de emancipação relacionado ao livre pensar do homem

sem tutela – particularmente sem a tutela religiosa – forma um núcleo central da Filosofia de

Kant. (ARGUMERO, 1993, p 20)

Excluído da ilustração Kantiana, mas cronologicamente contemporâneo, o povo

americano supostamente incapaz de formar alguma civilização, carente de afetos e paixões,

protagonizava um dos mais decisivos levante de massas populares da América do Sul.

Indígenas, mestiços, negros alforriados, mulatos, zambos, criollos pobres, liderados por Tupac

Amarou II, Bartolina Sisa e Julián Tupac Catari empenhava uma luta, no Peru, decididos a

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recuperarem sua liberdade em combate contra a dominação espanhola. (ARGUMERO, 1993,

p 21)

Ainda que a rebelião de Tupac Amaru tenha siso derrotada, no Haiti a luta triunfa. O

ciclo de luta anticolonial se estende de 1780 (Tupac Amaru), 1791 (Haiti) até 1824

(Ayacucho). Esse processo político e militar leva a independência da maioria dos países do

continente. Os movimentos de independência e suas guerras de libertação formaram parte de

um ciclo global, marcado pela reconfiguração da hegemonia do capitalismo mundial (por meio

das revoluções burguesas) e o ascenso de resistências populares. Os líderes da independência

da América Latina atuaram nesse marco social e nesse horizonte internacional. (KOHAN,

2013, p. 66)

Destacamos como pressuposto do pensamento crítico na América Latina a

identificação de vertentes que se ligam às massas populares. Nas palavras de Argumero:

Nesse sentido, consideramos que não existe marcos teóricos “inocentes” em suas consequências e vinculações políticas. Da mesma maneira que é possível desdobrar estas consequências e vínculos de uma aparente neutralidade científica das distintas correntes da filosofia e das ciências sociais, se trata, ao contrario, de recuperar o potencial teórico autônomo contido no pensamento latino americano, que se manifestou predominantemente na forma política: como propostas de grandes líderes, como ensaios, como fundamentos de projetos de resistência ou confronto, como expressão de uma trama cultural transmitida no processo histórico da América Latina do ponto de vista popular. (ARGUMERO, 1993, p 24) – tradução nossa.

Desse modo, a autora identifica a existência de uma matriz autônoma nacional-popular

na América Latina, que vem a ser uma linha histórica que recupera as tradições culturais e

populares, as lutas de emancipação e resistência, as tentativas e aspirações de autonomia, as

identidades sociais e regionais que se relacionam com articulações maiores. (ARGUMERO,

1993, p 25)

No exercício de comparação entre a problemática e as principais linhas de pensamento

dos latino-americanos e europeus que foram contemporâneos em diferentes etapas cruciais da

história, Argumero destaca que ao mesmo tempo em que Hegel está maturando seu sistema

filosófico e define essa parte da América como povos sem história, Simón Bolívar, junto a

outros libertadores latino-americanos, lidera a epopeia da emancipação americana.

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O projeto político dos movimentos de independência aspirava uma grande nação

latino-americana, ou seja, a nação não estava constituída esperando a libertação, mas deveria

ser construída e, ao mesmo tempo, emancipada. (KOHAN, 2013, p.319)

A ideia de formação da nação, necessariamente vinculada a um processo de

emancipação, apontava para a utopia radical de “Pátria Grande”: “é uma ideia prodigiosa

pretender formar de todo o novo mundo uma só nação com um vínculo que ligue suas partes

entre si e com o todo. Já que tem uma origem, uma língua, costumes e religião comum,

deveria ter um governo que confederasse os diferentes estados que se formem”. (BOLIVAR,

2010, , p. 28)51

Complementando a ideia de “Pátria Grande”, Bolívar expressa: “eu desejo mais que

ninguém ver formar-se na América a maior nação do mundo, menos pela sua extensão e

riqueza que por sua liberdade e glória”. (BOLIVAR, Carta da Jamaica, 2010, p. 23).

Da “Pátria Grande” se deriva uma concepção de República: “por essas razões penso

que os americanos, ansiosos de paz, ciências, artes, comércio e agricultura, preferiam as

repúblicas aos reinos, e me parece que esses desejos se conformam com os olhares da

Europa.” (Carta de Jamaica, p. 25)

A ideia de “Pátria Grande” é sintetizada na consigna: “para nós a pátria é a América,

nossos inimigos, os espanhóis, nossa lição a independência e a liberdade”. (BOLIVAR, 2010,

p. p.45)

Outro aspecto que destacamos em Bolívar é a utopia de uma unidade continental contra

a dominação. O apelo à unidade aparece na “Carta da Jamaica”: “Seguramente a união é o que

nos falta para completar a obra de nossa geração (...) o que pode levar-nos a condição de

expulsar os espanhóis e fundar um governo livre. É essa união, certamente, mas esta união

não virá por prodígios divinos, se não de efeitos sensíveis e esforços bem dirigidos”

(BOLIVAR, Carta de Jamaica, p. 29); mas também no “Manifesto de Cartagena52”: “ Não é a

união tudo que necessita para colocar os americanos meridionais em condição de expulsar os

espanhóis? (...) Certamente é a união que nos falta para completar a obra de nossa geração”

51

BOLÍVAR, Simón. Carta da Jamaica. Kingston, (1815).

52BOLÍVAR, Simón. Manifesto de Cartagena. (1812)

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(BOLÍVAR, 2000, p. 53); E no “Discurso de La Angostura53”: “ Tenhamos presente que nosso

povo não é europeu nem americano do norte, é muito mais uma combinação de África e

América que uma emanação da Europa (...) É impossível atribuir com propriedade a que

família humana pertencemos. A maior parte dos indígenas foi aniquilada, o europeu se

misturou com o americano e com o africano, esse já se misturou com índio e com europeu.

Nascidos todos de uma mesma mãe, nossos pais diferentes em origem e sangue, são

estrangeiros e todos se diferenciam visivelmente na epiderme; esta dissemelhança traz uma

característica de maior transcendência. Para afastar esse caos do alvorecer de nossas

Repúblicas, todas nossas faculdades mentais não serão suficientes se não fundirmos a massa

do povo em um todo. Unidade, unidade, unidade deve ser nossa divisa comum. (BOLIVAR,

2010, p. 109)

A unidade coloca luz sobre questões fundamentais, como a libertação dos escravos. O

processo das lutas por independência levou Bolívar a superar essa que era sua limitação

inicial, e passa a visualizar a libertação dos escravos e sua incorporação às massas popular das

guerras de independência como condição para liberdade. Em 1816, em uma carta para

Santander, Bolivar diz: “me parece uma loucura que em uma revolução de liberdade se

pretenda manter a escravidão” (BOLIVAR, 2000, p.236)54. Bolivar declara a liberdade dos

escravos na volta de sua viagem ao Haiti (2/6/1816).

A independência anticolonial seria conquistada se negros, mulatos, zambos, pardos,

indígenas, camponeses, povo pobre das cidades se integrassem como força principal do

exército libertador, o que coloca a centralidade da doutrina revolucionária de “povo em armas”

nas guerras de independência.

Não pretendemos nos aprofundar o significado da obra de Simón Bolivar, apenas

destacar uma dimensão que nos parece fundamental para questão nacional na América Latina

que é a necessidade de se constituir enquanto povo.

Esse elemento reivindicado por Bolívar vai ao encontro das nossas preocupações em

identificar o vazio da questão nacional nos movimentos de Independência da América Latina.

53BOLÍVAR, Simón. Discurso de La Angostura. (1891)

54BOLÍVAR, Simón. Carta a Santander. (1820)

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Não desconsiderando a dominação externa e o papel das burguesias nativas, destacamos a

perspectiva de que as massas populares não entraram na história como sujeitos do processo de

independência. A ausência do povo e de bandeiras populares impôs derrotas às primeiras

Repúblicas Latino- americanas. Fundamentalmente, nos parece importante na matriz de

pensamento autônomo formulada por Argumero, identificar a frustração dos movimentos de

independência com essa ausência.

A história oficial silencia as resistências e pouco se remete a ausência das massas

populares nos desfechos das independências na América Latina e via de regra atribui o

processo de independência com questões relacionadas à Europa.

As propostas de Bolívar, Artigas ou de Hidalgo e Morelos, entre outros, formam as

primeiras expressões políticas da América Latina que, que se inspiraram nas rebeliões, nas

resistências culturais e na vida cotidiana de uma vasta população do continente, a quem o

esquema colonial havia negado sua condição humana. (ARGUMERO, 1993, p. 40)

Assim, entre 1810 e 1830, enquanto a visão do mundo burguês europeu adquiria com

Hegel a expressão mais elevada que talvez ela pudesse alcançar – quando Marx não era mais

que um menino - se desenhava nesses territórios, os eixos de um pensamento que buscava

responder às aspirações libertárias de um sujeito social questionador da exploração e do

domínio imperial: os povos da América Latina. (ARGUMERO, 1993, p. 40)

Seguindo a reflexão proposta por Argumero, no mesmo mês de maio de 1895, em que

Max Weber fazia uma exposição na Universidade de Friburgo sobre “O Estado Nacional e a

Política Econômica na Alemanha”, morre José Martí no combate de Dos Ríos, lutando pela

independência de Cuba. (ARGUMERO, 1993, p. 45)

O contexto em que Weber formula é o momento de acelerado desenvolvimento

industrial e a consolidação da Alemanha como potência imperialista. Neste momento o destino

da Alemanha, por um lado, é interpretado pelo Partido Social Democrata que influenciado

pelas ideias de Marx e Engels (esse ainda vivo), debate no qual se formam importantes

referências do marxismo como Kautsky, Berntein, Rosa Luxemburgo, Hilferding – para citar

alguns. Por outro lado, se tem a interpretação das correntes nacionais liberais dentro das quais

Weber é um expoente que faz a critica ao marxismo. (ARGUMERO, 1993, p.42)

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Na América Latina, José Martí (1853 – 1895) produz contemporaneamente a primeira

concepção orgânica e abarcadora dos principais problemas sociais da América Latina e

Caribe, a partir de uma perspectiva ao mesmo tempo moderna e anticolonial. Martí identificou

os elementos básicos e os problemas fundamentais do continente, e distinguiu processos

civilizatórios dos de libertação e fez avançar assim uma crítica da modernidade. (HEREDIA,

2011, p. 30)

A produção do pensamento martiano coincidiu no tempo com o apogeu de processos

modernizadores, em grande parte dos Estados Independentes formados na América espanhola

e no Brasil; com economias baseadas na exportação de produtos primários; com o fim da

escravidão e a passagem do império à república no Brasil; com o rápido crescimento dos

Estados Unidos depois de sua guerra civil; com uma nova fase de auge na colonização

europeia do mundo afro-asiático; com o nascimento da época imperialista do capitalismo; e

com os triunfos do evolucionismo “científico” nas interpretações da vida social e da condição

humana. (HEREDIA, 2011, 30)

Lutar pela independência nas condições específicas da América Latina representava

desafios que Martí soube compreender, colocar e tentar resolver.

Uma característica frequente nos nacionalismos da região nos movimentos de

independência era a associação do nacionalismo de cada país à uma causa latino-americana.

Martí relaciona o nacionalismo cubano a um compromisso latino-americanista dando voz a

esse movimento de interdependência entre os povos, quando diz que “há que prever e

caminhar com o mundo (...) um erro em Cuba, é um erro na América, é um erro na

humanidade moderna. Quem se levanta hoje com Cuba e Porto Rico se levanta para todos os

tempos (...) a independência de Cuba e Porto Rico não é apenas o único meio de assegurar o

bem estar decoroso do homem livre no trabalho justo aos habitantes de ambas as ilhas, se não

o sucesso histórico indispensável para salvar a independência ameaçada da América livre, e

a dignidade da república latino-americana”. (MARTÍ, 2000, p. 142)

Ao mesmo tempo em que reivindica a relação entre América livre e Pátria, Martí exige

uma vinculação permanente do patriotismo com a justiça social e com as classes populares,

advertindo que “o patriotismo é censurável quando é evocado para impedir a amizade entre

todos os homens de boa fé do universo, que veem crescer o mal desnecessário, e procuram

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honradamente aliviá-lo. O patriotismo é um dever santo quando se luta por colocar a pátria

em condição de que vivam nela os mais felizes dos homens.” (MARTÍ, 2000, p. 68)

Martí alude que os movimentos e as ideias independentistas deveriam responder aos

oprimidos de cada país e não só à autodeterminação nacional. Nesse sentido, a proposta

martiana só poderia ser posta em prática por uma revolução socialista de libertação nacional,

ou seja, uma guerra que ao mesmo tempo em que liberta a pátria, forma cidadãos capazes de

protagonizar os governos e as decisões. Martí considera que “a guerra é um procedimento

político, e este procedimento é conveniente em Cuba porque com ela se resolverá

definitivamente uma situação que mantém e continuará mantendo o temor a ela; porque com

a guerra, se coloca o conflito com os proprietários do país, já pobres e desacreditados entre

os seus; com a guerra os filhos do país, amigos naturais da liberdade, triunfarão a liberdade,

indispensável à conquista e desfrute do bem estar legítimo; porque com a guerra terminará a

amizade e a fusão das comarcas e entidades sociais sem cujo trato próximo e cordial tivesse

sido a mesma independência semeadora de grandes discórdias; porque a guerra dará

oportunidade aos espanhóis laboriosos de fazer esquecer, com sua neutralidade ou com sua

ajuda, a crueldade e cegueira com que na luta passada sufocaram a virtude de seus filhos;

porque com a guerra se obterá um estado de felicidade superior aos esforços que se há de

fazer por ela. (MARTÍ, 2000, p. 64)

Sobre o procedimento dos Exércitos Libertadores em guerra, Martí adverte que “a

única guerra que o cubano, livre e reflexivo por natureza, pede e apoia é a que está de acordo

com a vontade e a necessidade do país e com as lições dos esforços anteriores. (MARTÍ,

2000, p. 66)

A guerra por libertação nacional não pode estar distante dos interesses e aspirações do

povo, ao contrário, deve apresentar um programa anticolonial atrativo para o povo sem o qual

era impossível a libertação. É o povo que “haverá que defender na pátria remida, por meio da

política popular em que se acomodem pelo mútuo reconhecimento, as entidades a formalidade

ou o interesse que poderia trazer choques; há que levantar-se na terra revolta com um povo

real e métodos novo, onde a vida emancipada, sem ameaçar direito algum, goze em paz de

todos. Haverá que defender com prudência e amor essa novidade vitoriosa dos que não

viveram na revolução, mas que o poderão continuar dirigindo o país com o ânimo que

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censuravam em seus inimigos. Mas essa mesma tendência excessiva ao passado tem nas

repúblicas igual direito ao respeito e as representações que as tendências excessivas ao

futuro. A determinação de manter a pátria livre em condições que os homens possam aspirar

ao pleno exercício e a fortuna, jamais se converterá, enquanto não nasçam cubanos, até hoje

desconhecidos, ou não ande a ideia de guerra em mãos diversas, em luta de exclusão e

desdém com aqueles que no intimo da alma temos ajustada um glorioso encontro. (MARTÍ,

2000, p. 67)

Martí vislumbra na libertação nacional a possibilidade da pátria se desenvolver. A

revolução “reduzirá as ideias industriais postiças, abrirá aos mendigos empregos reais que

assegurem, ao mesmo tempo a independência dos homens e a independência da pátria”.

(MARTÍ, 2000, p. 68).

E a partir desse reconhecimento, Martí estabelece o desafio de elaborar um projeto

político de Estado Nação de base e objetivos populares. Esse projeto latino-americano deve

considerar a finalidade de libertação nacional em detrimento da independência e a eliminação

social e não só político-estatal do colonialismo. A eliminação social do colonialismo vem a ser

a base da resistência contra o neocolonialismo. A política deve ser factível e voltada as

necessidades do país, “a política é a verdade, a política é o conhecimento do país (...) quando

se fala em nome do país – ou se diz a verdade ou se cala. (...) A política não é ciência

emprestada, e sim tem que ser própria. Ao país, do país e nada menos que a necessidade do

país. (MARTÍ, 2000, p. 170)

A política que interessa ao país, é aquela adequada para o desenvolvimento de seu

povo, “quando uma política requer nada menos que mudar a natureza do povo que há de

conhecê-la, e requer mudança na própria natureza, mudança na posição da terra e na

imensidão do mar, é momento de depor-se para os que compreendam que os maus

intencionados que não se remediam com panaceias por serem descobertas, pelos que não

podem mudar terra e mar .(...) A covardia não é a única ciência. A ciência está em conhecer a

oportunidade e aproveitá-la: em fazer o que convém ao nosso povo, com sacrifício de

algumas pessoas. E não fazer o que convém às nossas pessoas com sacrifício de nosso povo.

(MARTÍ, 2000, p. 171)

Martí percebeu que, mesmo após a independência das ex-colônias hispano-americanas,

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continuavam a persistir resquícios do colonialismo nas Repúblicas recém-criadas. As

estruturas econômicas colônias e hierarquias sociais perpetuavam-se no seio dessas

sociedades.

As estruturas coloniais permaneceram nas repúblicas, “as colônias continuaram

vivendo nas republicas” (...) “por essa concordância com os elementos naturais desdenhados

subiram ao poder os tiranos da América; e caíram logo após tê-los traído. As repúblicas

purgaram, nas tiranias, sua incapacidade de conhecer os elementos verdadeiros do país, de

derivar dele a forma de governo, e de governar com eles. Governante em um povo novo quer

dizer criador. (MARTÍ, 2000, p. 482)

Essa é uma das ideias centras do ensaio Nuestra América (1891), emblemático para

mostrar que o conhecimento do essencial latino-americano foi a base do alcance assombroso

da obra da maturidade intelectual e política de Martí.

Martí observa que as sociedades latino-americanas, desde a etapa colonial, relacionou-

se diretamente com a metrópole, coexistindo sem convivência mutua, fato que impediu a

formação de relações horizontais entre elas e também as impediu de constituíres uma unidade

política e uma identidade social e cultural. Para ele, os resultados das lutas de independência

hispano-americanas acabaram por reforçar essa pulverização e a falta de unidade política na

Nossa América. (MAO Jr, 2007, p. 110)

Diante desse diagnóstico, uma contribuição importante de Martí em Nuestra

América55 é de que a unidade dos que vão lutar por uma nação não pode ser abstrata, ela deve

servir para uma atuação (a marcha unida) para conquistar a segunda independência. A unidade

concreta é aquela capaz de levantar os humildes para uma luta popular que mude a vida de

todos, a unidade passa pelos povos se conhecerem e conhecerem suas necessidades, “os povos

que não se conhecem devem ter pressa em se conhecer, como aqueles que vão lutar juntos”.

(MARTÍ, 2000, p. 480)

Ao invés de se estranharem os povos de Nossa América teriam que se conhecer e

se orgulhar, afinal, “em que pátria pode o homem ter mais orgulho do que em nossas

repúblicas dolorosas da América, levantadas entre as massas mudas de índios, ao rumor da

55 MARTÍ, José. Nuestra America. publicado “La Revista Ilustrada”, New York, 1/1/1891.

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luta do livro contra o círio, sobre os braços ensanguentados de uma centena de apóstolos? De

fatores tão desordenados, jamais, em mesmo tempo histórico, criaram-se nações tão

adiantadas e compactas”. (MARTÍ, 2000, p. 482)

Nossa América só se salvará com soluções próprias e com a participação das massas de

oprimidos, “conhecer é resolver. Conhecer o país e governá-lo conforme o conhecimento, é o

único modo de livrá-lo da tirania” . (MARTÍ, 2000, p. 483)

A necessidade iminente de se conhecer, de pensar a partir dos próprios dilemas, de

construir uma e valorizar uma identidade é o grande desafio apontado por Martí já que “nem o

livro europeu, nem o livro ianque dão a chave para o enigma latino-americano (...) criar é a

palavra – chave dessa geração. O vinho é de banana; e se sair ácido, é o nosso vinho.”

(MARTÍ, 2000, p. 485)

O liberalismo não é a opção de progresso que civilizará a América Latina; “por isso o

livro importado foi vencido na América pelo homem natural. Os homens naturais venceram os

letrados artificiais. O mestiço autóctone venceu o crioulo exótico. Não há uma batalha entre a

civilização e a barbárie, se não entre a falsa erudição e a natureza.” (MARTÍ, 2000, p. 485)

Nesse sentido, Martí situa Cuba e a América Latina como teatros de projetos

revolucionários, por serem projetos de libertação ainda a serem cumpridos. Coloca o mito da

América Latina e as utopias europeias em outro terreno: enquanto aqueles mortos devem

enterrar seus mortos, a utopia americana tem que criar-se a si mesma e ligar as formulações

ideais com os projetos políticos, com a estratégia e inclusive com as táticas, ou seja, deverá ser

conquistada. A América que prefigura não será a realização de uma racionalidade, do triunfo

da civilização e da ciência, nem uma regeneração concebida especulativamente; será criação

de uma nova comunidade humana, fusão dos mais diversos povos, culturas, capaz de utilizar o

existente e inventar modos de viver e instituições, de defender-se em um mundo hostil e chega

a constituir por isso um fator de equilíbrio mundial. Martí é um exemplo de que a América

Latina foi capaz desde cedo de produzir concepções sobre si mesma, que reúne visões,

análises, diagnósticos e previsões e projetos (HEREDIA, 2011, p. 34)

Por fim, destacamos a antípoda da Nossa América martiana que é seu diagnóstico

sobre a política expansionista dos Estados Unidos no continente. Martí identifica como o

perigo maior na América Latina é os Estados Unidos, “a América vai se salvando de seus

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perigos. (...) já que decoro de república impõe à América do Norte, perante os povos atentos

do Universo, um freio que não pode tirar a provocação pueril ou a arrogância ostensiva, ou a

discórdia parricida de nossa América – o dever de nossa América é mostrar-se como é, unida

em alma e intenção, vencedora e veloz de um passado sufocante, manchada apenas com o

sangue do adubo, arrancado das mãos, na luta com as ruínas, e o das veias que nossos donos

furaram. O desprezo do formidável vizinho, que nos desconhece, é o maior perigo de nossa

América; e é urgente, já que o dia da visita esta próximo, que o vizinho a conheça, que a

conheça logo, para que não a despreze. (MARTÍ, 2000, p. 486)

Em 1889, Martí acompanhou o Congresso Internacional de Washington e na qualidade

de jornalista escreveu importantes artigos sobre o evento, entre eles o artigo intitulado

Congresso Internacional de Washington: sua história, seus elementos e suas tendência.56

Martí destaca os interesses econômicos mais imediatos dos Estados Unidos, “, poderosos

repletos de produtos invendáveis e determinados a estender seus domínios pela América.” Ao

mesmo tempo em que esse país planejava abrir mercados latino-americanos para seus

produtos, pretendia “manter fechado o mercado doméstico aos produtos de fora: não se dizia

que a compra de manufatura pelos espanhóis teria que ser recompensada pela compra de

suas matérias prima? (MARTÍ, 2000, p. 176). Não apenas condenava as políticas

expansionistas daquele país, como também criticava ideologias que passaram a dominar

aquela sociedade, como “Doutrina Monroe” e a do “Destino Manifesto”: “a tentativa de

predomínio, confirmada pelo fato contemporâneo, de um povo criado na esperança da

dominação continental, no momento em que aparecem, num apogeu comum, a ânsia de

mercado de suas indústrias abarrocadas, a ocasião de impor as nações longínquas e a

vizinhos fracos o protetorado prometido nas profecias”. (MARTÍ, 2000, p.185) . Explicita a

razão de mercado e a intolerância como valores dessa sociedade, e manifesta a indignação:

“como ter como modelo uma sociedade que coloca o pragmatismo e as razões de mercado

acima de tudo? Uma sociedade que aceita a pregação da inferioridade da raça hispano-

indígena-negra, como obstáculo para seu desenvolvimento?”. (MARTÍ, 2000, p.180). Por essa

linha de abordagem da relação dos Estados Unidos com a América, Martí é tido como

56MARTÍ, Jose. Congresso Internacional de Washington: sua história, seus elementos e suas tendência, publicado em “La Nación”, Buenos Aires, 1889.

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precursor do anti-imperialismo, fundamentando no fim do século XIX, esse tema que será

central no pensamento crítico da América Latina.

Examinar em autores relacionados a processos de lutas por libertação nacional na

América Latina essa matriz autônoma nacional-popular, leva ao reconhecimento da existência

de um legado do pensamento crítico marxista sobre o caráter da Revolução no continente.

Acreditamos que essa matriz autônoma nacional-popular constitui um legado do

pensamento crítico da América Latina sobre a questão nacional. Desde Bolívar, e dos radicais

de sua época, há a afirmaram da existência dos latino-americanos e da especificidade dessa

região do mundo. As repúblicas da América Latina se constituíram como Estados

independentes sem reformas a favor da justiça social e da unidade regional que permaneceram

pendentes de serem realizadas. O desenvolvimento econômico da América Latina é

determinado pelo modo neocolonial de universalização do capitalismo. Aproximamos essas

interpretações sistematizadas no pensamento crítico de Bolívar e Martí à ideia de aleijume de

nascença da formação nacional que identificamos nas contradições que movem o processo

histórico no continente.

Durante o século XX, a profunda inconformidade latente volta a ser atuante em escala

mais geral, pelo menos em duas ondas revolucionárias que são identificáveis como a dos

“anos trinta” e a dos “anos sessenta”. Na primeira floresceram movimentos e personalidades

que puseram na ordem do dia novos problemas. Os elementos prévios de seus contextos se

enriqueceram com a Revolução mexicana de 1910, com os efeitos da revolução bolchevique o

movimento comunista, e com o desgaste moral do imperialismo iniciado com a primeira

guerra mundial, agudizado pela profunda crise econômica do capitalismo, o auge do fascismo.

Esse contexto conferiu relativa autonomia as economias da região, processo favorecido pela

substituição de importações e se produziu notáveis mudanças econômicas, sociais politicas e

ideológicas (HEREDIA, 2011, p. 35)

Até o primeiro quarto do século XX parte decisiva do pensamento latino-americano se

sentia mais próximo da Europa que dos fatores componentes de seus próprios países. Esse

pensamento entendia a civilização como o modelo a alcançar, praticou o racismo científico e

confinou no crescimento econômico dependente. Os cruciais anos vinte e trinta não

culminaram com a libertação plena de nenhum povo latino-americano, apesar dos esforços

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realizados, mas deixaram conquistas extraordinárias com a inclusão da diversidade étnica e

racial americana no pensamento e nas artes, o auge dos movimentos operários organizados, a

democratização do nacionalismo, a naturalização das ideias socialistas e um campo novo de

experiências e ideias sobre os fatos reais das sociedades com vistas a processos de liberação

nacional e social. (HEREDIA, 2011, p. 36)

Com a segunda onda revolucionária, nos anos sessenta, a identidade latino-americana

foi associada às mudanças profundas que aconteciam, a não seguir sendo o que éramos.

Poderia ser cumprir um destino, libertar-se do imperialismo, passar ao socialismo, transformar

estruturas, realizar reformar radicais ou moderadas. Existia toda uma gama de projetos,

enunciados e posições todos relacionados a mudanças e a exigência de um futuro. (HEREDIA,

2011, p. 37)

Destacamos que, como nos tempos de Martí, a questão nacional e a questão social se

levantaram nas ondas revolucionárias nos anos trinta e dos anos sessenta na América Latina.

De tal sorte, que buscaremos examinar a contribuição desse legado para a questão nacional.

3.2.1 O significado da expressão “pensamento crítico”

O que significa a expressão “pensamento crítico” hoje? De que maneiras essa noção – que outrora identificávamos facilmente com nomes como os de Sartre, dos membros da Escola de Frankfurt, de Fanon ou o de certos pensadores “comprometidos” da América Latina ou do Terceiro Mundo – se transformou (e alguns opinam que se desvaneceu) junto às profundas transformações (mas, são realmente tão profundas?) que sofreu o mundo nas ultimas décadas, desde a “queda do muro (de Berlim)” até as Torres Gêmeas (e todas as consequências), passando pela reconversão tecnológica – financeira do capitalismo e a chamada “globalização”? E, mas precisamente: o que quer dizer tudo isso hoje aqui? O que é um pensamento crítico propriamente latino-americano? No que se assemelha e se diferencia de outras formas “regionais” (europeias, e inclusive eurocêntricas, por exemplo) de pensamento crítico? (GRUNER, 2011, p. 15 – tradução nossa)

Em seu texto “Avatares do pensamento crítico, hoy por hoy” Eduardo Gruner diz não

encontrar as respostas mais sim outras perguntas, pois uma análise sobre as desventuras do

“pensamento crítico” hoje, demanda um tom antes de tudo interrogativo. (GRUNER, 2011, p

16)

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Existe – ou se pode estabelecer – uma relação entre ambos fenômenos – o da crise terminal do capital e da emergência, nos círculos intelectuais e filosóficos “de esquerda”, de um discurso ético-religioso que elege ignorar os limites que O político impõe a suas pretensões de ser um novo “universalismo”? O vaco de sentido aberto pela crise do capital e do ideal revolucionário, assim como pelas ameaças de uma era técnica que, sobre o triunfo pleno da racionalidade instrumental, poderia conduzir à catástrofe final, são o que explicam a ilusão sem futuro desse pensamento ético-religioso incapaz de superar os limites que a lógica do político o impõe da qual esse pensamento nega? (GRUNER, 2011, p. 55 – tradução nossa)

Gruner se apoia na formulação de Mészàros (2002) de “processo sociometabólico do

capital” quem vem a ser a lógica matricial do fetichismo da mercadoria que coloniza “o

mundo da vida” e nesse sentido é um processo que para além do capitalismo pode anteceder e

sobreviver aos regimes sociopolíticos que se identifica com ela, por exemplo, incluir os

chamados “socialismos realmente existentes”. A partir do momento que esse processo

sociometabólico chegou ao seu limite e o entra numa fase de crise terminal, a dominação se dá

por meio da “religião da mercadoria”. É uma religião que pela sua lógica intrínseca não há

nem pode haver a possibilidade do ateísmo, agnosticismo ou heresias, pois todas essas coisas

estão dentro de um templo que agora se chama “biopoder”, sucintamente, a organização da

vida e da morte humana sob o sociometabolismo do capital. (GRUNER, 2011, p 16)

É uma religião mundial, como nenhuma outra foi. O eufemismo de globalização ou

mundialização expressão a aspiração ultima de toda religião “mundial”: o universo inteiro esta

nela, ainda que não acredite, ou pior ainda que tenha plena e transparente consciência de que

seus benefícios são altamente diferenciados. A “mundialização” que para os latino-americanos

começou em 1492 só é verdadeiramente mundial porque é truncada. Com isso, Gruner pontua

o paradoxo entre o universal e o particular em que algo para parecer completo tem que faltar

algo. E o exemplo que ele mobiliza é que só pode parecer que o comércio internacional, o

capital financeiro, as comunicações e as unidades produtivas estão “globalizadas”, porque a

força de trabalho não está, nem poderia estar, a medida que o capital necessita

imperiosamente manter níveis territorialmente diferenciados de exploração da mais valia e

extração de excedentes, sob pena da queda catastrófica da taxa de lucro. Casualmente, além de

esses territórios serem submetidos à superexploração do trabalho (altos índices de

desemprego, trabalho informal, pressão para baixos salários) coincidem com as ex-colônias,

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produzindo uma série de conflitos étnicos nacionais “cruzados” com o conflito da contradição

capital e trabalho clássica. (GRUNER, 2011, p 17)

Gruner mostra que esse é um dos limites absolutos que o capital tem que enfrentar.

Absoluto no sentido de que não tem solução possível dentro do sociometabolismo do capital,

assim como a questão ecológica, a questão explosiva das minorias étnicas, religiosas e sexuais,

o “terrorismo fundamentalista” – expressão perversa de resistência anticolonial diante da

retirada da “luta de classes” do horizonte de lutas internacionais, e a “imigração ilegal” e a

consequente “explosão” demográfica urbana, fonte de mais miséria, desemprego e violência

social. (GRUNER, 2011, p 18)

Diante dessa situação que já não é “reformável” nos limites do sociometabolismo, a

única opção para o capital é o “Terror Global”. (GRUNER, 2011, p. 23)

Uma dimensão do “pensamento crítico” que Gruner aponta: ou rompemos, e saímos

urgentemente do sociometabolismo do capital ou nos resignamos a ser fagocitados por sua

auto-devoração. (GRUNER, 2011, p 24)

Destacamos alguns desafios apontados por Gruner: 1) a reflexão filosófico- cultural

das últimas décadas teria abandonado progressivamente o terreno da política, terreno no qual

ainda se poderia esperar a criação de alguma alternativa ao capital; (p. 25) . É preciso voltar a

pensar “o politico”. (p.32) é preciso no mínimo o duplo esforço de, primeiro, alterar os modos

de pensamento sociometabólico do capital para desnaturalizar suas evidências de que “não há

alternativa”. A falta de alternativa deve converter-se numa verdade somente para os que

personificam o capital. E segundo, é necessário imaginar o funcionamento real das possíveis

alternativas do recomeço do “laço social” sobre outro metabolismo. (p. 29)

2) Hoje, enorme dificuldade do pensamento chamado “crítico” parece ser que o

“retorno do reprimido” se dando a uma velocidade vertiginosa e dramática, tem como

consequência o mundo “não sabe o que fazer”, e a filosofia “não sabe o que pensar”. Processo

de despolitização, a lógica sociometabólica do capital tragou a “maquina de pensar” produtora

de teoria critica. (p.27). O desafio de conceber “laço social sobre outro metabolismo” requer

um dialogo com as forças sociais capazes de coloca-lo em prática. É colocado como desafio

uma redefinição desses diálogos e a necessidade de inventar uma nova linguagem (p. 30)

diferente e oposta à língua do capital.

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Quais são os verdadeiros alcances e o significado do momento de verdade ético-religioso quando este se confunde com um pensamento de totalidade abstrata impotente para dar conta dos particulares concretos incomensuráveis que são a matéria do político? É a proliferação em toda a periferia – mas muito especialmente na América Latina – dos “novos movimentos sociais”, como ponto de resistência à “agressividade da crise” do capital, suficiente não só para gerar um novo laço social, se não para remediar o desastre, ou se requererá uma nova articulação com o mundo do trabalho, recolocando a partir de uma nova perspectiva de ação o político sobre a contradição básica do capital? E assim, que novas formas de pensamento crítico poderiam emergir na periferia como alternativa ao etnocentrismo da colonialidade do poder/saber, com sua “falsa totalidade” que tenta liquidar o

conflito indissolúvel entre a Parte e o Todo? (GRUNER, 2011, p 55)

A modernidade não teria dividido apenas a visão eurocêntrica e periférica do mundo e

da produção de conhecimento, mas também nos dividiu enquanto latino-americanos. O

pensamento crítico na América Latina deve levar em conta essa fratura e o conflito não

resolvido de nossa história perdida. Não se trata de nenhuma terceira via entre a submissão ao

eurocentrismo e a ilusão de um puro “latinoamérica-centrismo”, mas sim de pensar a partir de

pensar “desde nosostros” (a partir das contradições de nosso processo histórico) e contra o que

“eles” sejam capazes de se reapropriar. (GRUNER, 2011, p. 73)

Gruner usa o termo “destotalización” (emprestado do pensador europeu Jean Paul

Sartre considerando-o um pensador crítico do eurocentrismo e do colonialismo). É justamente,

outra maneira de destotalizar as falsas (mutuamente excludentes) totalidades em que o

pensamento hegemônico quis nos enquadrar ou se apropriar das nossas próprias questões.

Gruner (2006) chama atenção para o que Marx está dizendo na elaboração do Método é

algo infinitamente mais radical, mais profundo inclusive mais escandaloso que abandonar a

“interpretação do mundo”, está dizendo que a transformação do mundo é a condição à

interpretação e, já em certa forma, uma transformação da realidade que implica em um sentido

amplo, mas restrito, a um ato político, e não meramente teórico. (GRUNER, 2006, p. 108)

Isso nada mais é que a práxis. A práxis não é simplesmente a unidade da teoria e da

prática. Sua lógica é a ação como condição para o conhecimento e vice e versa. Pelo idealismo

é impossível superar a cisão entre teoria e prática, que seria – dito mais filosoficamente – a

separação radical entre sujeito e objeto. (GRUNER, 2006, p. 109)

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Colocando nesse registro de análise o que estamos chamando de Pensamento Crítico

na América Latina são as contribuições sobre a questão nacional cuja formulação tem vínculo

com a prática política e com a perspectiva de emancipação no continente. Autores que não são

conhecidos por suas formulações e não têm estatuto de grandes teóricos, muitas vezes são

mais conhecidos como guerrilheiros, dirigentes ou ativistas, mas eles como poucos dão

consequência ao método de Marx que estamos reivindicando nessa pesquisa.

Destacamos um ponto de vista abordado por Kohan, de que o neoliberalismo se

constituiu como a resposta capitalista diante da crise de hegemonia do capital durante os anos

sessenta. O autor compara que do mesmo modo que não se pode compreender o fascismo e o

nazismo dos anos trinta, e nem mesmo o Estado de bem estar social e as políticas keynesianas,

sim levar em conta a imensa ameaça política e cultural que significou para a dominação

mundial a revolução bolchevique de 1917; também não se pode compreender a contraofensiva

capitalista a nível mundial e as ditaduras latino-americanas se não levar em conta a aguda

ameaça política e cultural que se inicia com a Revolução Cubana e outros processos, como a

revolução cultural na china ou a guerra do Vietnã. (KOHAN, 2006, p. 391)

Kohan sustenta a hipótese que sem considerar a contribuição específica que produziu a

Revolução Cubana à ofensiva mundial dos explorados e oprimidos, que por sua vez, originou

como resposta uma contraofensiva do capital, conhecida como neoliberalismo, não se pode

compreender a fundo as raízes desse último. (KOHAN, 2006, p. 392)

Esse resgate das contribuições dos anos sessenta no campo da cultura e do pensamento

crítico latino-americano pode ser feito por meio da literatura (a nova novela), o cinema novo, a

teoria da dependência, a teologia da libertação ou a pedagogia do oprimido, para citar algumas

contribuições que se desenvolvem na década de 1960 e 70 e que têm relação com a

ressonância da Revolução Cubana.

Destacamos neste contexto o significado da revista Pensamiento Crítico que foi a

expressão de uma revolução que atravessou toda uma época e ao mesmo tempo contribuiu

para legitimar e potencializar essa rebelião. Somamo-nos ao esforço de Kohan – entre outros

autores que se dedicaram a estudo da revista Pensamiento Crítico– no intuito de refletir sobre

seu significado, no caso de nossa pesquisa especialmente identificando a contribuição desse

legado revolucionário à questão nacional.

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3.2.2 “Pensamiento Critico”: a crítica em tempo de Revolução

A Revista Pensamiento Critico foi publicada num tempo de revoluções e foi uma filha

intelectual desse tempo. (HEREDIA, 2010, p. 5)

A revista foi um instrumento de um dos grupos revolucionário daqueles anos sessenta, “o grupo da calle K” – K507, no Vedado – o departamento de Filosofia. Saverino Tuttino, corresponsável da L’Unitá em Havana, publicou um artigo na principal revista cultural comunista no mundo naquele momento Rinascita, chamado “El Caimán Barbudo habla de filosofia”, que começava assim: “muito perto dos velhos muros da Universidade de Havana, mas convenientemente fora deles, está o Departamento de Filosofia...”. Isso não era apenas uma imagem. Formalmente éramos da Universidade, mas na realidade nossa posição era independente, porque era imprescindível que fosse assim. A Revolução cubana não cabia, nem em sua realidade nem em suas necessidades, dentro dos marcos que existiam para as revoluções. Isso fazia com que, na prática fosse uma heresia, Mas era necessário que fosse uma heresia também o pensamento. (HEREDIA, 2010, p. 10)

A Revolução cubana realizava práticas extraordinárias, mas não tinha um pensamento

organizado, estruturado, que pudesse satisfazer aquelas necessidades. A transição socialista

está obrigada a inventar, criar, ser original e não imitar. Como fazer com que o pensamento de

Cuba fosse idôneo para empurrar a Revolução para frente, para força-la a revisar-se a si

mesma, autocriticar-se, renovar-se, mudar-se, ser superior? E ao mesmo tempo, como

multiplicar as forças, que era tão pequenas, comparada com as forças do imperialismo, ou com

as do capitalismo mundial e as capacidades que exerce sobre cada pessoa. Dessas necessidades

e desafios nasceu a revista Pensamiento Critico. (HEREDIA, 2010, p. 11)

Heredia que vivenciou esse processo narra que em novembro de 1965, Fidel Castro

convidou ao grupo da calle K a acompanhá-lo em uma brigada de universitários ao Pico de

Turquino. Na noite de 7 de dezembro Fidel teria visitado a calle K para falar da tarefa urgente

e indispensável para o país de produzir em Cuba livros de qualidade, de origens diversas que

servissem para um grande salto que era necessário dar na educação e conhecimento em Cuba.

Conta Heredia que o Departamento de Filosofia inteiro trabalhou dia e noite sem deixar de

realizar nenhum dos outros trabalhos que faziam para realizar a tarefa de materializar esse

salto com disposição e consciência – que era quase a única coisa que contavam para realizá-lo.

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Na própria casa da calle K foi instalada a oficina e o primeiro armazém. Assim nasceu

a Edición Revolucionaria - que em setembro de 1966 se converteu no Instituto do Libro de

Cuba – responsável por publicações científicas que possibilitaram professores e estudantes

cubanos darem um significativo salto em suas possibilidades de conhecimento. Heredia narra

que naqueles anos “foram fuzilados os direitos autorais de grande parte dos livros estrangeiros

publicados”, nas palavras do próprio: “algum provecho le sacamos de ser un pequeño país

libre”, ou seja, um exercício de soberania. (HEREDIA, 2010, p. 11)

Esse é o contexto da criação da Revista Pensamiento Critico ao final do ano de 1966.

A proposta era por meio de uma revista séria e de folego publicar, no sentido de apresentar e

difundir, o pensamento e a critica desse período, em que como ressonância da Revolução

Cubana a possibilidade de fazer a revolução estava colocada no Continente. Selecionamos um

trecho do editorial do número 1 de Pensamiento Critico:

Hoje as forças sociais de nosso país estão em tensão criadora; exigem o aprofundamento e a magnitude das metas da Revolução. Contribuir à incorporação plena da investigação cientifica dos problemas sociais dessa Revolução é o propósito desta publicação. Nosso ponto de partida: por um lado parte do entendimento que as teorias surgem ou se desenvolvem na análise de situações concretas; por outro lado, entendemos que a formação teórica é indispensável aos investigadores. De acordo com eles, buscaremos informar sobre as problemáticas atuais e as opiniões que sobre elas existam, por meio de artigos inéditos de cubanos e estrangeiros, e a reprodução de artigos selecionados das mais diversas publicações do mundo. (...) Opinamos que o intelectual revolucionário é, antes de tudo, um revolucionário puro, por sua posição diante da vida. Depois, ele é aquilo que cria ou divulga segundo sua paixão e sua compreensão da especificidade e o poder transformador da função intelectual. Se a primeira condição existe, sua produção pode coincidir com a necessidade social. Com base nessa opinião trabalharemos. (HEREDIA, 201, p. 19)

As questões fundamentais do pensamento, como produção de conhecimento,

relacionado à prática revolucionária do período, num momento em que o continente estava

pensando a si mesmo, a revista participou dessa empreitada intelectual. Apresentação da

revista Pensamiento Critico número 6:

América Latina esta latente de uma tomada de consciência que pressupõe um conhecimento cabal, desprovido de preconceitos com nossas realidades, da história, da economia, da cultura, da política. Que saiba verdadeiramente quem somos, onde chegamos, quem são realmente depositários de nosso futuro. A especificidade das

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estruturas sociais latino-americanas, não esclarecidas ainda teoricamente, exige uma conduta consequente dos revolucionários, e já temos um exemplo pratico de inestimável valor e transcendência: a Revolução Cubana. Aqui certos esquemas jamais tivessem conduzido ao triunfo que se teve, precisamente apesar deles. (HEREDIA, 2010, p. 189)

Por esse recorte o tema dos movimentos revolucionários foi a linha principal da revista.

A revista se dedicou a um trabalho editoria sobre os movimentos insurrecionais e a revolução

na América Latina. Por exemplo, o número 46 dedicado a luta no Brasil, com a contribuição

direta de companheiros de organizações revolucionarias desse país; O número 48 da revista foi

dedicado a memória do povo salvadorenho e as vozes dos que lutavam com armas na mão na

Argentina.

Os quatro primeiros números são dedicados a movimentos revolucionários da América

Latina, África e Ásia. Selecionamos um trecho do editorial de Pensamiento Critico número 4

em que registra que um número dedicado aos problemas revolucionários na Ásia estava

fortemente relacionado à solidariedade efetiva com o Vietnã que é empreender a luta

antiimperialista em cada um dos países oprimidos que vem a ser a inspiração da Mensagem

aos povos do mundo através da tricontinental (Guevara, 1966):

A guerra no Vietnã passou, já faz tempo, de acontecimento regional a problema mundial, para o qual confluem os enfrentamentos principais de nossa época. Ali um povo heroico, que combate por sua libertação nacional, rechaça ao mais poderoso exército imperialista, demonstrando que a Revolução é possível quando os povos se dedicam a ela. Ali a aviação dos EUA bombardeara selvagenmente um país socialista sem que se produza uma crise mundial entre imperialistas e socialistas. Síntese do heroísmo, da barbárie e das misérias de nosso tempo, no Vietnã se dá um encontro transcendental entre a reação e a Revolução. (HEREDIA, 2010, p. 303)

Outro eixo editorial da revista eram as pesquisas sobre as estruturas econômicas e o

sistema de dominação, as classes sociais e a política na América Latina. O critério para reunir

textos sobre essa temática era selecionar intelectuais que em sua maioria sustentavam

compromissos com a causa revolucionaria, como por exemplo, Ruy Mauro Marini.

No número 27 de Pensamiento Critico dedicada a esse tema encontramos autores como

Sergio Bagú: “La economia de la sociedad colonial” e André Gunder Frank: “La incersión

extranjera en el subdesarrollo latinoamericano”, abordagens de interpretação da formação

socioeconômica da América Latina critica a tese presente na esquerda tradicional que

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postulava a existência do feudalismo e legitimava projetos de revoluções burguesas. Dentro

dessa temática, Pensamiento Crítico número 16 é dedicada a um dossiê sobre as estruturas

sociais das formações socioeconomicas latino-americanas com textos – por exemplo: de

Aníbal Quijano “Naturaleza, situacion e tendencia de la sociedad peruana contemporánea”;

Fernando Henrique Cardoso: “Las elites empresariales em América Latina” e Carlos Romero:

“As classes sociais na América Latina”. O editorial desse número tece uma crítica aos

ideólogos burgueses desenvolvimentistas considerados repetidores e miméticos dos modelos

clássicos de desenvolvimento, extraídos de tipos ideais das formações sociais europeias. Esses

ideólogos tardios da burguesia latino-americana não foram mais que caixa de ressonância da

ideologia metropolitana e se limitavam a sustentar a crença no progresso. As características

das formações sociais latino-americanas também são temas do Pensamiento Critico número

24 com especial recorte da questão agrária tecendo a critica sobre o desenvolvimentismo

etapista dos que induziam a analise de que as tarefas pendentes do continente com a

modernização impulsionada pela burguesia (em oposição à oligarquia agrária). A tônica dessa

critica era abordada em textos como: “Los campesinos, las migraciones y la política”, de Eric

Hobsbawm; “Los movimientos campesinos contemporáneos en América Latina”, de Aníbal

Quijano, ou: “Proceso y frustración de las reformas agrarias en América Latina” de Antonio

García. No número 36 de Pensamiento Crítico a problemática do subdesenvolvimento volta a

aparecer em uma seleção de textos que fazem um diagnostico do subdesenvolvimento e o

relacionam com o socialismo, como por exemplo: “Introducción a las teorias sobre el

subdesarrollo”, de Raúl Olmedo; “Esquemas teóricos de las formas de dependencia”, de

Mário Arrubla; “Subdesarollo, tecnologia y industrialización, de Júlio César Neffa; “La teoría

marxiana de la acumulación primitiva y la industrialización del tercer mundo”, de Ernest

Mandel; e de Fidel Castro: “Hoy para el mundo subdesarrollado el socialismo es condición

del desarrollo”.

Com essas referencias queremos destacar que a revista reivindica uma determinada

veia de interpretação da formação socioeconômica da América Latina uma leitura critica a

partir da Revolução que contribui para Revolução por meio da critica.

A revista dedicou também um espaço à história do pensamento cubano, privilegiando a

abordagem e compreensão da história de Cuba pela perspectiva da luta de classes.

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Selecionamos um trecho do Editorial da revista Pensamiento Critico número 6 para ilustrar

essa abordagem localizando o significado do Assalto ao Quartel Moncada no processo em que

por primeira vez na história do continente uma nação consegue libertar-se da exploração e do

domínio do maior inimigo do nosso tempo que é o imperialismo:

Julho termina com dois acontecimentos da Revolução latinoamericana: o aniversário do heroico assalto ao quartel moncada, inicio da Revolução Cubana, e o primeiro congresso da Organização Latinoamericana de Solidariedade. Catorze anos depois é inegável o caráter transcendental do sucesso do 26 de julho de 1953, para nossa Pátria e para o continente. Como outros momentos de inflexão histórica, sua importância foi primeiro negada, depois aceita e sem compreendê-la direito, e só o desenvolvimento profundo da Revolução mostrou as proporções que em Moncada se anunciavam. Como outros grandes revolucionários do século – os bolcheviques de Lenin – os revolucionários dirigidos por Fidel Castro tiveram que lutar contra uma poderosa reação, mas também contra uma suposta “ortodoxia revolucionária” que marcava as formas de luta, de organização revolucionaria, de transformações para alcançar o socialismo. Sua grandeza reside nesse triunfo: na capacidade para colocar-se os grandes problemas da época, e cometer solução com decisão, intransigência e métodos revolucionários.

Essa foi uma edição comemorativa do Aniversário do Quartel Moncada e

imediatamente após a Conferência de OLAS (Organização Latino-americana de

Solidariedade) de modo que a discussão de fundo era a estratégia política para a revolução em

disputa com a estratégia da esquerda tradicional. Não só o caráter da revolução estava em

disputa como também o modo de relatar a história anterior à Revolução. O número 39 de

Pensamiento Critico é dedicado à Revolução de 1930. O número 31 da revista foi dedicado à

história do movimento 26 de Julio.

Interessante também registrar que a revista se dedicou à atividade de divulgar

informações pouco acessíveis como no Pensamiento Critico número 30 em que o dossiê

girava em torno do tema da inteligência artificial, lógica matemática e cibernética; até temas

latentes do processo revolucionário, como por exemplo, Pensamiento Critico número 45 que

reúne textos para debater questão da produtividade do trabalho; ou Pensamiento Critico

número 47 com textos para provocar a discussão sobre sistemas e modelos tecnológicos; E

temas da pratica política conjuntural como o número 42 que é dedicado ao Cinema;

Pensamiento Critico número 21 coloca a questão do movimento estudantil e número 17

aborda questão dos Negros. Para citar alguns exemplos da amplitude dos debates.

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Com essas menções queremos destacar que a revista Pensamiento Critico deve ser

compreendida como um esforço de sistematizar as transformações no campo cultural e no

campo intelectual provocadas pela Revolução Cubana.

A revista também se dedicava a outro gênero fundamental que é a teoria. Foram

publicados textos selecionados e biografias comentadas de Antônio Gramsci, Sartre, Lukács,

Althusser, Poulantzas, Hobsbawm, Mandel, Sweesy, Marcuse, Löwy, Lefebvre, Adorno,

Barthes, Petras – para citar alguns exemplos do marxismo ocidental europeu e norte americano

que era abordado não apenas como alternativa ao soviético, mas com o propósito de ampliar o

horizonte de questões e métodos para pensar as formações sociais latino-americanas

utilizando-os criativamente.

Ainda sobre os temas da revista, Kohan1 destaca a Leitura do marxismo mundial e a

Critica à esquerda tradicional. Principalmente à influência soviética e às posições internas, no

seio da Revolução Cubana, mais vinculadas a tradição do antigo PSP. O questionamento se

dava na argumentação favorável à luta armada – antiimperialista e anticapitalista – em tempos

de “paz mundial” e “coexistência pacifica com o capitalismo”; e pela critica ao instrumental

metodológico, filosófico e histórico (o materialismo histórico e dialético soviético conhecido

respectivamente pelas siglas HISMAT e DIAMAT) que serviam para legitimar a convivência

com o imperialismo (KOHAN, 2006, p. 427)

Para Pensamiento Critico a luta antiimperialista pela revolução mundial estaria

fundamentada pela: 1) Revolução Cubana, Coreana e Vietnamita no campo do socialismo; 2)

pelos destacamentos revolucionários e insurgentes que empreendiam a luta armada contra o

imperialismo e o capitalismo no terceiro mundo; e pela nova esquerda – tanto como expressão

das forças novas da revolução (como aparece no editorial do número 17) como a expressão da

“vontade da Revolução” (editorial do número 25 -26). (KOHAN, 2006, 431)

Kohan atribui ao critério metodológico historicista dos jovens intelectuais cubanos que

contribuíam com a elaboração teórica da Revista: Fernando Martínez Heredia, Jesús Díaz,

Aurélio Alonso Tejada, Gómez Barranco, Hugo Azcuy, Carlos Tablada Perez, José Bell Lara,

Mireya Crespo a possibilidade dessa abordagem do marxismo que caracterizou Pensamiento

Critico.

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Destacamos essa postura metodológica de levar em conta a historicidade dos conceitos

e categorias e o condicionamento histórico da atividade humana.

A historicidade e a política revolucionária constituem sempre a pedra de toque da

dialética, do marxismo e de toda a utilização da teoria revolucionaria que pretenda ser eficaz

na luta pela hegemonia socialista. O núcleo principal do marxismo e da dialética não se

encontra nem na natureza nem nas leis objetivas da economia. Mas sim na história e, dentro

dela, na vontade consciente dos revolucionários dirigi-la a uma pratica transformadora e

libertadora (Kohan, 2006, p. 426)

O pensamento revolucionário carecia de desenvolvimento para enfrentar as novidades porque o marxismo havia sofrido demais ... e outras ideias que também eram revolucionárias acabavam sendo insuficientes diante dos desafios de unir nacionalismo e lutas socialistas, civilização moderna com negação libertadora da modernidade, diversidades culturais com unidade de projeto. (HEREDIA, 2008, p. 39)

Durante os quase cinco anos em que durou a revista além dos 53 números publicados

Pensamiento Critico se converteu em um conjunto de atividades. Desde a básica que era a

tiragem mensal da revista de 224 páginas com o Consejo de Dirección zelando pela boa

edição, qualidade dos trabalhos, seleção e organização de temas e trabalhos; mas também a

tarefa de fazer de Pensamiento Critico um centro de trabalho que participasse da atividade

internacional da Revolução, atendendo centenas de estrangeiros provenientes de processos de

lutas de diferentes países, dar continuidade às articulações com as diversas organizações,

organizar as agendas desses companheiros em Cuba. Manter relações com instituições e outras

revistas como New Left Review, Socialist Register, Monty Review, Les Temps Modernes,

Partisans e muitos outros. Colaborar em atividades nacionais com estudantes e intelectuais,

participar ativamente dos assuntos, dos problemas e da política de Cuba por meio da difusão

de textos portadores de conteúdos e posições de revolucionários de tantas partes do mundo.

(HEREDIA, 2010, p. 17)

Pensamiento Critico é uma publicação que responde as necessidades de informação

sobre o desenvolvimento político e social do tempo presente da Cuba Revolucionária.

Não se confunde o pensamento social em Cuba com a abordagem de Pensamento

Crítico, o pensamento social é muito mais complexo. Houve muita polêmicas – públicas – no

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processo da Revolução Cubana nos anos sessenta, o que nos leva a entender Pensamiento

Crítico como a gênese de uma heresia:

Formávamos parte da grande heresia que foi a Revolução Cubana dos anos sessenta (...) Uma das vantagens da revista foi a de ter a Revolução como propósito, mas sem converter-se em um escritório oficial determinado de uma instancia especifica. Isso lhe dava a possibilidade de expressar-se como revolucionária, mas sem estar submetida a outra coisa que não o compromisso livre e aberto assumido com a revolução. Minha opinião até hoje é que sem essa condição o pensamento revolucionário não consegue contribuir, e não pode satisfazer, por tanto, a necessidade inexorável de pensamento que tem a política revolucionária. Na América Latina os companheiros que lutavam e os partidários das transformações revolucionárias viam a revista como expressão militante da Revolução cubana e do internacionalismo. Essa percepção era compartilhada pelos que conheciam nossa publicação em outras partes do mundo. (HEREDIA, 2008, p. 37)

A idéia da Revolução Cubana ser uma heresia e deflagrar um pensamento herege na

América Latina é particularmente favorável ao entendimento do legado que buscamos

rescontituir:

Depois de tantos anos entendi melhor o significado de Pensamiento Critico. Foi um feito intelectual protagonizado por jovens da nova revolução, que tinham como conteúdo os problemas principais de seu tempo, da militância revolucionária ao trabalho intelectual. Combateu com ideias, com a eleição de seus temas e com a apresentação de fatos, problemas e perguntas que as estruturas de dominação buscam ocultar ou deformar, sem temor à critica das ideias e do próprio movimento ao qual entregamos nossas vidas, em busca de um futuro de libertação. Penso por ser militante, e não apesar de ser, e foi uma das escolas desse exercício indeclinável. Contribuiu com a formação de numerosos revolucionários e sua prática significou um pequeno passo na difícil construção de uma nova cultura.” (HEREDIA, 2008, p. 38)

É levando em conta essa postura metodológica com relação ao marxismo que iremos

examinar o recorte da questão nacional.

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3.3 Libertação Nacional – Socialismo – anti-imperialismo como legado do

período revolucionário

Em O Marxismo na América Latina – uma antologia de 1909 aos dias atuais, Michael

Löwy apresenta uma periodização para uma história do marxismo na América Latina57. O

autor pondera que a história de um século de teoria e práticas do marxismo em todo continente

não pode ser resumida e o recorte que ele assume é com ênfase na natureza da Revolução, ou

seja, a definição do caráter da Revolução no continente. (LÖWY, 1999, p. 9)

Adotamos a periodização de Löwy para examinar o nosso recorte que é a questão

nacional no marxismo da América Latina. O autor distingue esquematicamente três períodos

na história do marxismo latino-americano: um período revolucionário, dos anos 20 até meado

dos anos 30, cuja expressão teórica mais profunda é a obra de José Carlos Mariátegui e cuja

manifestação prática mais importante foi a insurreição salvadorenha de 1932, período em que

os marxistas caracterizaram a Revolução latino-americana como simultaneamente socialista,

democrática e anti-imperialista; o período de meados da década de 1930 até 1959, marcado

pelo stalinismo, durante o qual a interpretação soviética do marxismo foi hegemônica e, por

conseguinte, a teoria da Revolução por etapas de Stalin, que definia a necessidade da etapa

nacional-democrática nos processos latino-americanos, foi predominante; e, por último, o

período revolucionário inaugurado com a Revolução Cubana, em 1959, marcado por correntes

radicais, cujos pontos de referência comuns são a natureza socialista da Revolução, a

legitimidade, em certas situações, da luta armada, e cuja inspiração e símbolo, em grau

elevado, foi Ernesto Che Guevara. (LÖWY, 1999, p.9)

57A interpretação e periodização proposta por Löwy (2006) centrada na teoria da Revolução diferencia- se da vertente interpretativa de José Aricó (1987) e Portantiero (1990), que periodiza a história do marxismo na América Latina tendo por referência a “nacionalização” ou “regionalização” dessa corrente de pensamento. Para Aricó (1982) a teoria Marxista e a realidade latino-americana “viveriam em mútua e secreta repulsão”. O autor alude à dificuldade enfrentada quando o materialismo histórico se defronta, com formações sociais cujas características desafiavam os pressupostos mesmos da teoria, na medida em que foram elaborados tendo-se em vista uma realidade histórica particular.

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Destacamos o recorte da questão nacional notadamente no primeiro e no terceiro

período, momentos revolucionários em que a produção do pensamento crítico na América

Latina baseava-se no marxismo criativo; e no marxismo de espírito de ofensiva da Revolução

Cubana, que coloca a dimensão da ação revolucionária informada pela teoria marxista

revolucionária (práxis) como pressuposto do pensamento crítico. Os períodos de 1920-1930 e

1960-1970 têm em comum uma posição metodológica compartilhada por seus mais relevantes

pensadores, qual seja, a síntese dialética entre o universal e o particular e entre o internacional

e o latino-americano.

3.3.1 O período revolucionário dos anos 1920 - 30.

Os breves anos vividos pelo peruano José Carlos Mariátegui (1894 – 1930) e pelo

cubano Júlio Antonio Mella (1903 – 1929) foram marcados por e acontecimentos históricos

cruciais, dos quais destacamos: a Revolução Mexicana (1910 – 1920); a primeira Guerra

Mundial (1914-1918); a Crise de 1929; a Revolução Russa (1905 / 1917); a fundação da III

Interacional Comunista; e a Reforma Universitária iniciada na Universidade de Córdoba na

Argentina (1918).

Podemos dizer que esse período significou a aceleração do tempo histórico diante da

ruptura da imagem de uma Europa “civilizada” causada pela guerra e da perspectiva de

expansão da Revolução proletária.

A maior expressão desse período revolucionário na América Latina foi a insurreição

Salvadorenha de 1932. O Partido Comunista de El Salvador – fundado em 1930 por quadros

sindicalistas e por quadros como o estudante, Augustín Farabundo Martí (1893-1932) –

organizou a primeira, e a única, insurreição de massa na história da América Latina a ser

liderada por um partido comunista. (LÖWY, 1999, p. 21). Segundo Löwy, a rebelião de 1932

constituiu um evento inteiramente singular na história do comunismo latino-americano, por

seu caráter de levante armado de massas, seu programa abertamente socialista e sua autonomia

face ao Comintern. O autor adverte que essa insurreição foi mais ou menos “esquecida” pelo

movimento comunista oficial exatamente por suas características que contradiziam as

orientações dos partidos comunistas de seu tempo. Essas características serão reabilitadas no

período revolucionário posterior com a Revolução Cubana e terão repercussão no guevarismo,

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na década de 1970. (LÖWY, 1999, p. 23).

Nesse contexto de iminência de Revolução mundial em alguns países da América

Latina se deram fissuras na hegemonia liberal oligárquica, que caracterizava as sociedades

latino-americanas até então. É o caso do Brasil, por exemplo, em que a ordem republicana

liberal e a dinâmica economia agrário-exportadora encontram seu limite em 193058. Já no

Peru, as intensas mobilizações que marcaram o ano de 1919, greves operáarias, mobilizações

das classes médias e levantes camponeses, levaram à ditadura do dissidente Augusto Leguía,

vigente de 1919 até 1930, que corresponde ao período chamado “La Patria Nueva”. O governo

de Leguía, a princípio atendeu reivindicações do movimento social e sinalizou uma política de

intervenção estatal na economia prol industrialização do país, mas, no entanto, essas medidas

não foram suficientes para responder às aspirações da onda de manifestações da sociedade

peruana. Diante das limitações da proposta de Leguía para transformação do Peru, esse

governo assume uma postura de perseguir os movimentos sociais, operários, camponeses e

estudantes. Em Cuba, a década de 1930 é marcado pela chamada “Terceira Revolução”. O

desgaste que experimentou o sistema político a partir do ato ditatorial de 1927, que prorrogava

os poderes do executivo até 1935, liquidou a política bipartidária vigente e provocou um

repúdio popular latente que se expressou por meio de ações populares coletivas de resistência

e protestos. A tirania e o desastre social foram as condições da revolução que desembocou na

queda da ditadura de Machado, em 1933.

No contexto peruano destacamos a figura de José Carlos Mariátegui, proveniente da

classe trabalhadora do Peru. Sua biografia é marcada por um esforço gigantesco para se

desenvolver, desde muito cedo começou a trabalhar no Jornal “La Prensa” (1909), ofício que

tornou o jovem comprometido com o trabalho uma referência envolvida com cultura e

58

Para Löwy o significado da ação de 1935 no Brasil foi ser produto de um período de transição. Seu programa era de frente popular e seu método de insurreição. O caráter quase que totalmente militar (e não popular do levante) resultava da origem tenentista acostumados a conspirações e levantes militares que não implicava formas de armamento popular e do próprio programa da ANL (Aliança Nacional Libertadora) que definia a revolução como “nacional e democrática”, supunha-se que teria a simpatia da ala nacionalista do exército. Nesse sentido, segundo o autor, o levante de 1935 no Brasil foi o último levante militar inspirado por um partido comunista latino-americano e o primeiro passo rumo à politica de aliança de classe que orientaria o movimento comunista durante a maior parte de sua história da década de 1930 em diante. (LÖWY, 1999, p. 26)

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questões sociais. De modo que, em 1919 quando funda o Jornal oposicionista “La Razón”,

sofre perseguições do governo de Leguía a ponto de ter que deixar o país. No tempo que

passou na Europa entre outubro de 1919 a março de 1923, tomou contato com o marxismo e,

nas palavras do próprio, saiu “da idade da pedra”. Mariátegui é uma figura que concentra uma

personalidade militante e intelectual no período revolucionário de 1920 e 3059.

No contexto cubano, destacamos Júlio Antonio Mella, um jovem esportista que se

sobressaía no basquete, natação e sobretudo no remo, fazendo parta da sociedade secreta

estudantil “Los XXX maricatos”. A atuação política de Mella, nos agitados anos 30, foi

destacadamente no movimento estudantil, ativo na criação da FEU (Federação Estudantil

Universitária), congressos de estudantes e fundação da Universidade Operária. No contexto de

grandes mobilizações estudantis a partir da Reforma Universitária em Córdoba na Argentina,

Mella foi criador de um espaço revolucionário em Cuba que teria grande importância nas

décadas seguinte: a Universidade. Heredia caracteriza que entre seus 18 e 20 anos de idade,

Mella transitou de “maricato” a comunista, sem deixar de ser “maricato”, afortunadamente.

(HEREDIA, 2007, p. 24). Na sua militância comunista, sem deixar nenhum momento de lutar

por Cuba, presta seu esforço constante à Liga Anti-imperialista e na tentativa de conseguir a

unidade mundial anti-imperialista participando como membro e dirigente no Partido

Comunista Mexicano e atua na solidariedade com os Sandinistas60.

59Alguns exemplos da práxis na militância de Mariategui: se dedicava a conferências nas Universidades Populares Gonzales Prada; Elaborou projeto Ateneo de Estúdios Sociales e Econômicos (1925); Funda CGTP : Centro Geral Trabalhadores Peruanos e cria a oficina de auto- educação operária; jornal LABOR, dirigido à luta política e à formação dos trabalhadores; Funda revista AMAUTA (1926) ; Mariátegui junto com Haya de la Torre fundaram APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana) ; Mariátegui funda PSP (Partido Socialista Peruano) que vai participar da reunião internacional (1928).

60 Alguns exemplos da práxis na militância de Mella: no final de 1925 sua greve de fome o fez conhecido internacionalmente. Expulso do país se estabeleceu no México onde o partido comunista o recebeu como militante. Trabalhou no desenvolvimento do movimento camponês, operário e estudantil, escrevia na imprensa comunista e popular, foi membro do Comitê central, secretario geral interino do Partido Comunista Mexicano no ano de 1928. Mella participou dessa maneira em um dos processos mais ricos em experiência pratica e ideias daqueles anos emergentes da revolução mexicana iniciada em 1910.

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Notadamente pela postura intelectual e militante que destacamos as contribuições sobre

a questão nacional no período revolucionário de 1920-30 em José Carlos Mariátegui e Julio

Antonio Mella, procuramos destacar a postura metodológica de articular o universal e o

particular para abordar essa temática.

Destacamos que o desenvolvimento do marxismo nesse período se deve a perspectiva

dialético-concreta, capaz de capturar a especificidade dos conflitos em cada formação social e

a questão nacional em comum que se desdobram do processo histórico na América Latina.

Löwy destaca Julio Antonio Mella como um dos primeiros marxistas latino-

americanos a analisar e criticar o nacionalismo populista e sustentar a tese de que a classe

operária cabe a tarefa histórica de libertar a América Latina do domínio imperialista. Nas

palavras de o autor, Mella foi o primeiro e mais brilhante exemplo de uma figura

frequentemente encontrada na história social da América Latina: o estudante ou jovem

intelectual revolucionário, o espirito anticapitalista romântico, que encontra no marxismo uma

resposta para a paixão pela justiça social. (LÖWY, 1999, p. 15)

Destacamos nas contribuições de Mella o lugar central que a questão do nacionalismo

e da libertação nacional ocupou em sua obra.

(Mella) Apoiou entusiasticamente o movimento de Sandino, que estava lutando contra a invasão norte-americana da Nicarágua à frente de seu exército de guerrilheiros camponeses. Por outro lado, criticou duramente o nacionalismo “populista” da APRA de Haya de la Torre, que se apresentava como o “kuomitang da América Latina”. Em um panfleto anti-APRA publicado em 1928, Mella rejeita “uma frente única a favor da burguesia, a traidora clássica de todos os movimentos nacionais verdadeiramente emancipatórios” e enfatiza que “a luta definitiva pela destruição do imperialismo (...) não é apenas uma luta nacional pequeno - burguesa, mas uma luta internacional, já que é apenas pela abolição da causa do imperialismo,

que é o capitalismo, que nações verdadeiramente livres poderão existir” (LÖWY, 1999, p. 16)

A relevância dessa abordagem está em se contrapor a tensão do que Löwy chama de

“excepcionalismo indo-americano” sobre a produção de análise marxista na América Latina.

O exemplo mais significativo dessa abordagem foi a APRA (Aliança Popular Revolucionária

Americana), fundada pelo peruano Victor Raúl Haya de la Torre e pelo próprio Mella no

México. Ideologicamente eclética, a PARA foi inspirada pela Revolução Mexicana,

elaborando uma doutrina que buscava “adaptar” o marxismo a realidade continental para

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posteriormente “superá-lo”. Essa era a postura metodológica notadamente de Haya de la Torre

para quem “o espaço – tempo indo –americano” é governado pelas suas próprias leis, e é

profundamente diferente do “espaço-tempo” europeu analisado por Marx e, por isso, exige

uma teoria que negue e transcenda o marxismo. Durante a década de 1920, a APRA foi um

movimento de caráter continental, com seções em vários países latino-americanos, mas pouco

a pouco restringiu-se ao Peru. (LÖWY, 1999, p. 10)

Ao travar polêmica com a APRA, Mella se depara com o dilema sobre a questão

nacional no marxismo. O trecho extraído do livro La lucha revolucionaria contra el

imperialismo publicado por Mella em 1928, no México, nos permite destacar elementos desse

debate.

Mella começa dizendo que os comunistas apoiam os Movimentos nacionais de

emancipação, se referindo a México e Nicarágua, ainda que estes tenham uma base burguês –

democrática.

Isto não é apenas “teoria”, pois nós o vivemos na América. No México, o Partido Comunista tem apoiado a luta da burguesia liberal, democrática e revolucionária contra o imperialismo e seus aliados nacionais: o clero católico e os militares reacionários, profissionais da revolta. O mesmo fizeram os comunistas no “caso Nicarágua”. Os comunistas de Cuba, sem se fundirem com o Partido Nacionalista, conservando a independência do movimento proletário, apoiá-lo-iam em uma luta revolucionária pela emancipação nacional verdadeira, se esta luta ocorresse. (...) Na verdade, isto é o que pretende a “Frente Única” do APRA, ao não falar abertamente do papel do proletariado e ao nos apresentar uma frente única abstrata, que não passa de frente única em prol da burguesia, traidora clássica de todos os movimentos nacionais de verdadeira emancipação. Os movimentos nacionais libertadores das colônias e das nacionalidades oprimidas estão se convencendo, por amarga experiência, de que sua única salvação é a vitória do poder soviético. Em outros termos: o triunfo da revolução operária sobre o imperialismo mundial em cada país. (MELLA apud Löwy, 2006, p 100)

Dando consequência a postura metodológica de relacionar o universal e o particular,

Mella refere-se à tese de Lenin no II Congresso da Internacional quando esse diz que a

Internacional Comunista deve apoiar os movimentos nacionais de libertação nos países

atrasados e nas colônias, com a condição de que os elementos dos futuros partidos proletários,

comunistas não só no nome, se agrupem e se eduquem na consciência de suas próprias tarefas

diferentes, contra os movimentos democráticos burgueses dentro de suas nações.

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As traições da burguesia e das pequenas burguesias nacionais têm uma causa que todo o proletariado compreende. Elas não lutam contra o imperialismo estrangeiro para abolir a propriedade privada, mas para defender sua propriedade diante do roubo dos imperialistas. Em sua luta contra o imperialismo – o ladrão estrangeiro – as burguesias os ladrões nacionais – unem-se ao proletariado, boa bucha de canhão. Mas acabam compreendendo que é melhor se alinharem ao imperialismo, que no fim das contas tem o mesmo interesse. De progressistas transformam-se em reacionárias. As concessões que faziam ao proletariado para tê-lo ao seu lado, são traídas quando este, em seu avanço, se transforma em um perigo tanto para o ladrão estrangeiro quanto para o nacional. Daí a gritaria contra o comunismo. (MELLA apud Löwy, 2006, p. 100)

Mella entende a tese leninista da Frente Única como um passo na luta partidária

(organizativa) ao socialismo, e critica as teses abstratas dos intelectuais que fazem jogos de

palavras com o marxismo. O divisionismo no movimento anti-imperialista, o oportunismo

político de algumas declarações, o anticomunismo de seu dirigente, o obriga a denunciar a

APRA. (HEREDIA, 2006)

Consideramos este texto emblemático, por Mella registrar a ideia de que a libertação

nacional absoluta, o proletariado só obterá por meio da revolução operária. Destacamos nessa

formulação a posição metodológica de síntese dialética entre a determinação universal (o

pressuposto da revolução mundial do marxismo) e a determinação particular (as ânsias de

libertação nacional de cada povo, que são as aspirações dos humildes, oprimidos e explorados

traduzidas em nacionalismos e ideais libertadores).

A revolução dos comunistas teria que ser nacional, aprender a viver e a sentir como

própria as ânsias de libertação nacional de cada povo, guiar os explorados e oprimidos para

lograr a formação de uma vanguarda revolucionária capaz de atrever-se a arrastar o povo a

conquista e o exercício de poder, e não se conformar com o negociar reformas parciais, ou a

viver a sua “pureza” e orgulho sectárias na solidão. E tereia que lograr a construção de um

bloco histórico no qual coincidem os ofendidos e os humildes, os excluídos e os portadores de

interesses socialmente úteis, o nacionalismo e os ideais libertários. Um bloco cuja ação fosse

ao mesmo tempo uma escola, na qual todos aprendessem que só unidos teríamos opção de

triunfar e sustentar-se, e que a justiça social e o socialismo é o caminho e a opção que tornam

viável as libertações. (MELLA apud HEREDIA, 2007, p.26 ).

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Heredia (2007) destaca a relevância da contribuição de Mella em afirmar essa

perspectiva antes da Revolução Cubana, num momento em que o colonialismo regia grande

parte do planeta e para milhões era algo natural ou explicável, a autodeterminação dos povos

não era um princípio aceito universalmente e não havia outra vitória no horizonte que não o

bolchevismo soviético. Pareciam inalcançáveis transformações tão profundas e radicais, de

modo que era difícil introduzir ideias como as de Mella no campo dos pensamentos possíveis.

Vivendo numa posição tão diversa, o mais “normal” para os seguidores do comunismo era o

divórcio de considerá-lo de difícil compreensão pelo povo e ao mesmo tempo ser uma posição

política superior às demais. De modo geral, o “normal” era os comunistas sentirem que

estavam obrigados a denunciar sempre as manipulações das práticas políticas, das armadilhas

burguesas, do nacionalismo e da ideologia da classe dominante.

Por isso, identificamos em nosso trabalho que o marxismo na América Latina inaugura

uma nova cultura de pensamento crítico nesse momento, que possibilita uma mediação entre o

comunismo e as questões reais sentidas pelos trabalhadores, questões nacionais pulsantes na

relação da qual deriva um sentido nacional.

Outra dimensão que destacamos é a relação com o anti-imperialismo. Mella teve

importante contribuição na formulação de que o anti-imperialismo só seria viável se fosse

anticapitalista, e a ideologia mais avançada para pensar o futuro era a comunista. (HEREDIA,

2007, p. 26)

No texto “Imperialismo, tirania, soviet”, de 1925, publicado no periódico Venezuela

Libre, Mella conjuga a luta de classes com o anti-imperialismo, sustentando que a causa do

proletariado é a causa nacional e assinala que o papel da vanguarda dos trabalhadores na

libertação nacional é identificar o imperialismo como inimigo principal dos povos.

Nesse texto, Mella61 expõe questões essenciais da dominação imperialista sobre a

61

Em janeiro de 1927, Mella viajou à Europa, onde foi um dos protagonistas do Congresso Mundial contra o imperialismo e a Opressão Colonial, organizado por iniciativa do movimento comunista com uma perspectiva de frente ampla, celebrado em Bruxelas. Esse evento teve grande importância para conhecimento e intercâmbio entre uma extraordinário leque de situações e culturas que possuíam os povos oprimidos do mundo, e cumpriu com sua tarefa de modo respeitoso e plural. (HEREDIA, 2007, p. 28)

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América Latina, com destaque para o papel das classes dominantes nativas e a necessidade de

lutar contra ambos ao mesmo tempo.

Existe o nacionalismo burguês e o nacionalismo revolucionário; o primeiro deseja uma nação para sua casta viver parasitariamente do resto da sociedade e das migalhas do capital saxão. O último deseja uma nação livre para acabar com os parasitas internos e os invasores imperialistas, reconhecendo que o principal cidadão em toda sociedade é aquele que contribui a elevá-la com seu trabalho diário, sem explorar seus semelhantes. (MELLA apud HEREDIA, 2007, p.33)

Resgatando o pensamento revolucionário cubano, Mella alude a absoluta vigência de

Martí: “internacionalismo significa, antes de tudo, libertação nacional da dominação

estrangeira imperialista e, conjuntamente, solidariedade, união estreita com os oprimidos das

outras nações”. (HEREDIA, 2007, p. 36)

Nos primeiros anos da década de 1920, os sentimentos anti-imperialistas ganhavam

espaço. Formou-se uma conjunção mundial de repúdios à lógica que levou a humanidade à

Grande Guerra Mundial (1914-18). Na América Latina esse repúdio ajudava a ir além das

condenações ao “grand garrote” norte-americano, que ocupava Nicarágua, Haiti e República

Dominicana, e agredia México, e se somava à denuncia e à explicação das formas econômicas

e políticas de dominação do sistema imperialista. Mas, durante os últimos cem anos as

tendências unificantes dos modos de produção e de vida em escala mundial haviam estado

muito relacionados com a expansão do capitalismo. O progresso e a civilização, ideologias

dominantes, estavam ligados ao mercado mundial, ao colonialismo, investimentos de capital,

relações econômicas subalternas da maioria dos países, imposições violentas, produção

mecanizada, padrões de consumo, modas ideias procedentes da Europa e Estados Unidos, e se

aproximam da maior parte dos campos da vida social e das ciências e técnicas.

A contribuição de José Carlos Mariategui (1894 – 1930) sobre a questão nacional se

relaciona a uma cultura latino-americana de resistência às formas de colonização e a

possibilidade de criação de uma cultura de libertação que é imprescindível na América Latina.

Não é nosso propósito fazer neste trabalho um estudo sobre a complexa obra desse autor e sua

contribuição ao marxismo latino-americano, mas apenas destacar essa dimensão de que o

autorreconhecimento da América Latina passa pelo reconhecimento da necessidade de

autonomia que precisa ser valorizado e atualizado como um elemento fundamental para

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criação de uma cultura de libertação.

Na obra de Mariátegui, a elaboração sobre a questão nacional foi abordada

principalmente nos escritos produzidos entre 1925 e 1928.

Mariategui reconhece, por um lado, que a matriz liberal, em que fermenta o cultivo da

nacionalidade burguesa, constitui um cunho político – ideológico inescapável.

Frequentemente se ouvem vozes de alerta contra a assimilação de ideias estrangeiras. Essas vozes denunciam o perigo de que se funda no país uma ideologia inadequada à realidade nacional. E não é uma manifestação de superstição ou de preconceito. Em muitos casos essas vozes partem do estrato intelectual. Poderia ser acusado de mera tendência protecionista, dirigida a defender os produtos e a inteligência nacional da concorrência estrangeira. Mas os adversários da ideologia exótica só recusam a importação de ideias contrárias ao interesse conservador. As importações úteis a esse interesse nunca lhes parecem mal, qualquer que sejam sua procedência. Se trata, pois de uma simples atitude reacionária, disfarçada de nacionalismo. (MARIATEGUI, p. 1) – tradução nossa62.

Em suas próprias palavras: “o socialismo contemporâneo (...) é a antítese do

liberalismo, mas nasce de suas entranhas e se nutre de sua experiência”.

Mariáregui também considera, por outro lado, que a tradição agrarista e comunitária do

modo de produção indígena não pode resolver a inserção setorial do índio na sociedade

burguesa, pois a tradição Inca constitui ela mesma um projeto nacional (e não meramente

setorial) que foi derrotado pela “nação criolla”, que se cria a sombra da dominação colonial e

se legitima por meio das formas do discurso ilustrado do livre-cambismo e da ideologia do

progresso.

Essa peruanidade, profusamente insinuada, é um mito, é uma ficção. A realidade nacional está menos desconectada, é menos independente da Europa do que supõe nossos nacionalistas. O Peru contemporâneo se move dentro da orbita da civilização ocidental. A mistificada realidade nacional não é se não um segmento, uma parcela da vasta realidade mundial. (MARIATEGUI, 1924, p. 1)

62MARIATEGUI, J.C. Lo nacional y lo exótico. Publicado em “Mundial”, Lima, 9/12/1924.

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O fracasso do indigenismo oficial de Leguía e de projetos de integração e educativos

para incorporar setorialmente a população indígena dentro dos projetos dominantes, liberou

“um objeto democrático-nacional” que já não pode seguir fluidamente dentro do discurso

burguês.

O Peru ainda é uma nacionalidade em formação. Que esta sendo construída sobre os inertes estratos indígenas e o aluvião da civilização ocidental. A conquista espanhola aniquilou a cultura incaica. Destruiu o Peru autóctone. Frustrou a única peruanidade que existiu. (...) A independência foi realizada pela população criolla. A ideia de liberdade não brotou espontaneamente do nosso solo. Seu germe nos veio de fora. Um acontecimento europeu, a revolução francesa , engendrou a independência americana. (... ) Um artifício histórico classifica Tupac Amaru como precursor da independência peruana. A revolução de Tupac Amaru foi feita pelos indígenas. A revolução da independência foi feita pelos criollos. Entre ambos acontecimento não houve consanguinidade espiritual nem ideológica. (MARIATEGUI, p. 1)

Esse vazio que sua elaboração deve cobrir, por meio da constituição de um “sujeito

nacional revolucionário”, capaz de interpelar a nação burguesa desde dentro.

O problema do índio, é o problema do Peru, não pode encontrar sua solução numa fórmula, abstratamente humanitária. Não se pode ser a consequência de projetos filantrópicos. (...) As ligas do tipo a extinta Associação Pró-Indígena são uma voz que reclama no deserto. (...) A solução só problema do índio tem que ser uma solução social. Seus realizadores devem ser os próprios índios. (...) Aos índios lhes falta uma vinculação nacional. Suas manifestações têm sido sempre regionais. Isso contribuiu para grande parte dos fracassos. Um povo de quatro milhões de homens, conscientes de seu número, não perde a esperança do seu futuro. (MARIATEGUI, 1925, p. 1) 63

Moraño (1995) identifica como dilemas de Mariátegui, dentro dos parâmetros

marxistas, a construção desse “sujeito revolucionário nacional”, implicava em articular o

proletariado com o setor agrário e, num nível maior de abstração teórica, articular o

nacionalismo e internacionalismo. Dito de outra maneira, implicava em afirmar as estratégias

interpretativas dos grandes relatos marxistas e entender que o marxismo não se limita a

63MARIATEGHI, J.C. El problema primário del Peru, publicado em “Mundial”, Lima 6/2/1925

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interpretar a sociedade burguesa, mas que é sobretudo uma crítica à interpretação burguesa da

sociedade. Significava reinventar o status da interpretação como instancia que constrói o

pensamento simbólico e não somente o traduz. Significava, por fim, promover o surgimento

de um sujeito que interprete sua realidade, pré-requisito para um marxismo propriamente

latino-americano. Mariátegui vincula a definição de um “objeto nacional popular” como o

centro, a partir do qual se elabora o problema da identidade peruana como base do

internacionalismo e da inserção na universalidade teórica dos grandes relatos da realidade

mundial. (MORAÑA, 1995, p.48)

Esses vazios são derivados também do campo de observação relativamente limitado do

marxismo na época em que Mariátegui escreve sobre a condição neocolonial e dependente da

América Latina.

Para além das mediações entre uma nacionalidade em formação e a totalidade

internacional, preocupava Mariátegui a problemática da especificidade cultural andina, que

vem a ser objeto marcante em sua contribuição teórica para o marxismo. Grande parte do

trabalho de Mariátegui no espaço crítico aberto na Revista Amauta se dedica à heterodoxia,

sem a qual não poderia desenvolver no âmbito da teoria marxista a ideia de “peruanicemos al

Peru”. Esse tipo de formulação herege leva Mariátegui a advertir que, para o caso peruano, o

prioritário não é o problema da autodeterminação popular nem a libertação colonial, mas, sim

a questão de como incorporar a “massa popular marginalizada da nacionalidade”, como

vincular sua tradição e seu potencial revolucionário ao projeto socialista em um país não

homogeneizado nem étnica, nem econômica, nem politicamente.

A presença da heterogeneidade que guia um projeto de construção nacional é percebida

por Mariátegui como princípio pragmático e mobilizador, portador da dialética que levará sua

própria superação na instância socialista. É um princípio que concebe as “massas populares”

heterogêneas como portadoras da nação. Nesse sentido, a recuperação do índio como sujeito

histórico e político faz com que a questão nacional assuma em Mariátegui um real e viável

internacionalismo de potencial revolucionário, à medida que concebe a história e o futuro da

América Latina a partir da perspectiva dos que estão à margem da nação moderna.

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Se considerarmos, por um lado, as teorias sobre América Latina que poderíamos

chamar de “protonacionalistas”, como aquelas que exploram nas origens pós -

independentistas a consolidação do Estado Nação e a implantação do modelo liberal que são

vigentes desde então no continente - perspectiva essa que identifica as categorias de Estado e

de Nação, com valor unificante supostamente derivado da solidez e unidade institucional

(legal e administrativa) do aparato estatal que preside a organização nacional - podemos

localizar uma qualidade simbólica da questão nacional que é da homogeneização. A

“homogeneização nacional” presente em Ernst Renan, e que reaparece em Benedict Anderson

como essencial a ideia de nação, se apoia na função disciplinadora do Estado em pretender

diluir a heterogeneidade que se registra dentro dos parâmetros territoriais e a imaginada

comunidade de uma unidade nacional, a partir da qual se elaboram formas excludentes e

autoritárias de identidades nacionais. Tomando essa ideia de nação, fica evidente a

contribuição de Mariátegui ao relacionar nação com heterogeneidade, em contraposição à

homogeneidade nacional pressupostas nessas teorias.

Por outro lado, se considerarmos as teorias de caráter antinacionalista, presente no

debate pós-moderno a sobre a América Latina, vemos que estão dão ênfase ao colapso do

conceito de nação como categoria niveladora e totalizante e apontam para a fragmentação

étnica, religiosa, sexual, linguística etc como fatores justapostos que, em conflito com o

verticalismo estatal, atravessam a categoria nação. Nesse caso também fica elucidada a

fronteira da elaboração de Mariátegui com essas teorias pós-modernas, notadamente pela

questão indígena, em Mariátegui, apontar para uma perspectiva de superação ao invés de

resgate.

Desmontar o núcleo ideológico do imaginário liberal de como a modernidade concebe

nação é uma contribuição de Mariátegui para questão nacional que coloca desafios à práxis e a

imaginação latino-americana. Mariátegui se atreveu a impugnar a certeza histórica do conceito

de nação ao reconstruir um discurso histórico que atenta para necessidade das massas

populares “entrarem na história” da construção da nacionalidade e nesse movimento se

alçarem à sujeito nacional revolucionário. (MORAÑA, 1995, p. 47)

Nesse sentido Mariátegui atribui a dimensão revolucionária ao nacionalismo de povos

coloniais:

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O nacionalismo das nações europeias, onde o nacionalismo e o conservadorismo se identificam e se consubstanciam, se propõe fins imperialistas, sendo reacionário e antissocialista. Mas o nacionalismo de povos coloniais, sim, coloniais economicamente, ainda que se vangloriem de sua autonomia política, tem uma origem e um impulso totalmente diversos. Nesses povos o nacionalismo é revolucionário e, portanto, conclui-se no socialismo. Nesses povos a ideia de nação não cumpri ainda sua trajetória nem esgotou sua missão histórica. (MARIATEGUI, 1995, p. 250)64

A relação do nacionalismo com o socialismo relaciona-se ao entendimento de que os

problemas nacionais não poderiam ter uma solução burguesa liberal na América Latina. A

burguesia retardatária e formada pela associação de imperialismo e latifúndio são incapazes de

levar a cabo as tarefas da emancipação nacional, reforma agrária, integração social e política

das massas populares, sem as quais não se pode haver uma nação.

Mariátegui constata que diante da ausência de uma burguesia verdadeiramente nacional

na América do Sul, a luta anti-imperialista deveria repousar nas camadas populares, pois

acreditava que, nesses países, o fator classista era mais decisivo que o fator nacional.

Propugnava que somente o socialismo, enquanto sistema econômico antagônico ao

capitalismo, poderia significar uma barreira intransponível ao avanço do imperialismo:

“somos anti-imperialistas porque somos marxistas; porque somos revolucionários; porque

opomos ao capitalismo o socialismo como sistema, chamado antagônico.65” (MAO Jr, 2007, p.

74)

Essa é uma fronteira crítica de Mariátegui com relação a Haya de la Torres. Enquanto

Haya de la Torre apontava o particularismo da realidade latino-americana para negar a

validade ao universalismo da teoria marxista, Mariátegui procura sintetizar o caráter

universalizante do método materialista e dialético com a particularidade da situação latino –

americana.

64MARIATEGHI, J.C. Publicado em Amauta, n. 7, março de 1927.

65MARIATEGUI, J. C. (1929) Ponto de vista anti-imperialista.IN MAO Jr. J. R. Revolução Cubana e a Revolução Nacional. São Paulo, Ed do Autor, 2007.

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Mella e Mariategui fazem parte dessa heresia que buscamos reconstituir o legado no

Pensamento Crítico Latino Americano. Assim como a Revista Pensamiento Critico era uma

heresia no polêmico debate social em Cuba nos anos 60, esses autores representam essa

resistência à medida que a questão nacional em sua época foi hegemonizada pela formulação

da APRA66 (1924), criticada por eles diretamente. A tentativa de enraizamento latino-

americano do marxismo, empreendida por Mariátegui não encontrou condições para frutificar

naquele momento, tendo que aguardar uma conjuntura mais favorável, representada pela

Revolução Cubana.

3.3.2 O legado do período revolucionário: anos 1960 - 1970.

Desde a Primeira Guerra de Independência em 1868, até a consolidação do Governo

Revolucionário, depois de 1959, o movimento nacional cubano percorreu um longo caminho.

Forjado na luta contra a opressão estrangeira, este movimento representou um elemento de

continuidade histórica que veio à tona nos diferentes momentos deste longo ciclo da história.

Assim 1868, 1895 e 1933 representam instantes de ruptura de um largo destino, em distintos

contextos históricos, que novamente emergiam no processo revolucionário de 1950. (MAO

JR, 2007, p. 377)

Significado a Revolução Cubana como Revolução Socialista de Libertação Nacional

reserva um sentido nacional muito peculiar que pode ser percebido nas quatro revoluções da

história cubana. Alias, é esse sentido nacional o eixo comum entre esses processos em épocas

históricas diferentes.

66

A APRA tinha como objetivo a união dos povos latino –americanos – ou “indomericano” como preferia chamar Haya de La Torre, contra o imperialismo dos EUA e as elites locais que o apoiavam. Cinco pontos básicos do programa da APRA explicitados no seu manifesto de criação: 1) Ação contra imperialismo Ianque; 2) pela unidade na América latina; 3) Nacionalização de terras e indústria; 4) Internacionalização do canal do Panamá; 5) Solidariedade com todos os povos e classes oprimidas do mundo.

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A primeira e a segunda Revolução, de 1868 e 1895, foram marcadas pelas formulações

de “República em Armas” e pelo instrumento político e militar que foi o “Exército

Libertador”.

A primeira Guerra de Independência, em 1868, ainda que iniciada e liderada por patriotas cubanos que procediam de famílias ricas e possuidoras da cultura política cubana, relações e recursos econômicos para uma empresa daquela índole, não começou, entretanto, nem alcançou sua força explosiva de massas nas províncias onde estava mais arraigada, era mais poderosa e contava com maiores e contava com maiores interesses da classe escravista, ou seja, no “Ocidente” de Cuba, senão nas províncias e regiões do país onde os camponeses independentes eram mais numerosos e o trabalho escravo tinha um peso econômico incomparavelmente menor.” (CASTRO, 1982, p.4) (...) A Guerra arrastou atrás de si os camponeses, artesãos, escravos e despertou o patriotismo fervoroso dos estudantes, profissionais, intelectuais e do povo cubano em geral, cujo sentimento nacional se fez realidade concreta e irreversível no próprio fragor da luta contra o domínio da Espanha. (CASTRO, 1982, p.5)67

Os principais líderes da guerra de Independência de Cuba (1868 – 1878) não foram

lideranças incontestáveis. Como Carlos Manuel de Céspede (1819 – 1874) que fora

proprietário de engenho (La Demanjagua, oriente), conhecido por ser partidário da luta

armada contra o domínio espanhol, para não cair preso em 1968, liberou seus próprios

escravos e iniciou um levante. Assim como foi fundamental para um levante de escravos,

Cespede foi deposto pelo Exercito Libertador em 1873 e abandonado a própria sorte. O

General Máximo Gómez (1836 – 1905) que comandou batalhões de combatentes mambises na

Batalha de las Guásimas teve e perdeu mandos militares. Ignácio Agramonte (1814 - 1873) foi

líder regional em Camague. Observamos que esses não foram alçados a líderes nacionais e

populares, mas travaram um combate que foi ponto de ruptura inicial de um longo ciclo

histórico de desenvolvimento da nacionalidade cubana, diferente, portanto, das lideranças da

segunda Guerra de Independência de Cuba (1895 -1898), em que há destacadas lideranças

como Antonio Maceo (1845 – 1896), que foi um líder popular da guerra, e José Martí (1853 –

67

CASTRO, Fidel. Analisis histórico de la Revolucion Cubana: informe central al primero congresso del PCC. Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 1982. IN. MAO JR., José Rodrrigues. A Revolução Cubana e a Questão Nacional (1868 – 1963). São Paulo. Ed. Do autor, 2007.

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1895), que deu consequência teórica à formulação nacional e popular.

Cuba se converteu em uma nação quando somou, à lenta acumulação de características

culturais que vão tornando específico um povo em um lugar determinado do mundo, suas

revoluções do último terço do século XIX. Elas lhe deram um significado particular à

emancipação da grande massa de escravos negros e o processo que acabou com o regime

colonial, possibilitaram que fosse orgânica a composição da população Cuba e a integração

regional, promovendo uma gestação nacional, com história própria, seus fatos, dores, símbolos

e emoções compartilhadas. Essas duas revoluções criaram o povo cubano como comunidade

auto - identificada e irredutível a qualquer outra do planeta, fizeram com que a política fosse a

forma de consciência social mais característica do povo da ilha e que ela exigisse a criação de

um Estado Nação republicano, com instituições democráticas. Por essas razões o

nacionalismo em Cuba tem um conteúdo popular e de ideias radicais, que impediram aos

dominadores dispor do nacionalismo livremente como instrumento de hegemonia. A imensa

herança dessas revoluções seguem tendo um grande peso no mundo espiritual e político de

Cuba. (HEREDIA, 2007, p. 1)

Outras duas revoluções foram deflagradas em Cuba no século XX. A terceira,

conhecida como Revolução de 30 (1933), na qual destacamos a liderança de Julio Antonio

Mella, entre outros como Antonio Guiteras, Rubén Martínez Villena, Raúl Roa García, Pablo

de la Torriente Brau, revolucionários que levaram a questão nacional à radicalidade no

processo de lutas culminando na queda da ditadura de Machado em 1933, e que têm

contribuições para o pensamento critico da América Latina sobre a questão nacional, no que

poderíamos chamar de um marxismo subversivo. (HEREDIA, 2007)68

A quarta revolução, iniciada em 1953 e triunfante em 1959, inscreve-se como

continuadora orgânica do legado de Martí, em situações nacionais e internacionais diferentes

da Revolução martiana, realizou a etapa inconclusa da libertação nacional ao eliminar os

mecanismos de dominação neocolonial sobre Cuba, dominação que se estendeu até a segunda

68Sobre esses e outros revolucionários de 30: HEREDIA, Fernando. La Revolución Cubana del 30, Editora Ciencias Sociales, Havana, 2007.

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Reforma Agrária de 1963. (MAO, Jr, 2007).

Dessa forma, quando Fidel Castro considera Martí o autor intelectual do Movimento

26 de Julio, e da ação político e militar do Assalto ao Quartel Moncada (1953), em sua

emblemática auto-defesa (16 de outubro 1953), “A História me Absolverá” identificamos a

consolidação de um Programa Popular que aponta a solução dos problemas do povo como a

política capaz de conquistar a liberdade da nação.

Em “A História me Absolverá”69 encontramos um preciso momento de elaboração do

pensamento crítico desse legado cubano para questão nacional que é a formulação sobre

“povo”, como categoria de análise teórica e de estratégia política fundamental para luta de

classes no continente, se de luta se trata:

Chamamos de povo, se de luta se trata, os seiscentos mil cubanos que estão sem trabalho desejando ganhar o pão honradamente sem ter que emigrar de sua pátria em busca de sustento; aos quinhentos mil trabalhadores do campo que moram em rincões miseráveis, que trabalham quatro meses no ano e passam fome o resto dividindo com seus filhos a miséria, que não têm uma polegada de terra para cultivar e cuja existência deveria mover mais a compaixão se não houvessem tantos corações de pedra; os quatrocentos mil operários industriais e trabalhadores braçais cujos salários, todos, estão desfalcados, cujas conquistas os estão arrebatando, cujas casas são as infernais habitações dos cortiços, cujos salários passam das mão do patrão as do proprietário, cujo futuro é a redução a demissão, cuja vida é o trabalho perene e cujo descanso é morte; aos cem mil agricultores pequenos, que vivem e morrem trabalhando uma terra que não é sua, contemplando-a sempre tristemente como Moisés à terra prometida, para morrer sem chegar a possuí-la, que têm que pagar pelas suas parcelas como servos feudais uma parte de seus produtos, que no podem amá-la, nem melhorá-la, nem embelezá-la, plantar uma grama ou uma laranjeira porque ignoram o dia em que virá um xerife com a guarda rural a dizer-lhes que têm que ir embora; aos trinta mil professores tão abnegados, sacrificados e necessários ao destino melhor das futuras gerações e que são tratados tão mal e tão mal remunerados; aos vinte mil pequenos comerciantes atolados em dívidas, arruinados pela crise e rematados por uma praga de funcionários violentos; aos dez mil profissionais jovens: médicos, engenheiros, advogados, veterinários, pedagogos, dentistas, farmacêuticos, jornalistas, pintores, escultores, etc, que saem das universidades com seus títulos desejosos de lutar e cheios de esperança para encontrar-se em um beco sem saída, fechada todas as portas, surdas ao clamor e à

69

CASTRO, Fidel (1953). A história me absolvera. Editora Ciencias Sociales, Havana, 2008.

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súplica. Esse é o povo, cujos caminhos de angustias estão pavimentadas de ardil e falsas promessas, não iríamos dizer a ele: “vamos te dar”, mas sim: “tens que lutar agora com toda tuas forças para que sejam tuas a liberdade e a felicidade! (CASTRO, 2008, p.33)

Fidel Castro em Revolução socialista e democrática em Cuba, discurso pronunciado

em 16 de abril de 1961, no enterro das vítimas de um bombardeio de aviões

contrarrevolucionário vindo da Guatemala, ao afirmar pela primeira vez o caráter socialista e

democrático da Revolução Cubana, o faz identificando esse sujeito revolucionário da

Revolução Socialista de Libertação nacional, como “os humildes”.

Porque os imperialistas não podem nos perdoar pelo fato de estarmos aqui? O que os imperialistas não podem perdoar é a dignidade, a integridade, o valor, a firmeza ideológica, o espírito de sacrifício revolucionário do povo de Cuba.

E essa revolução não a defendemos com mercenários. Nós a defendemos com homens e mulheres do povo. Quem tem as armas? Por acaso o mercenário tem as armas? Por acaso o milionário tem as armas? Porque mercenários e milionários são a mesma coisa. Por acaso os filhinhos dos ricos têm armas? Por acaso os capatazes têm armas? Quem tem as armas? Que mãos são aquelas que levantam as armas? São mãos de senhores? São mãos de ricos? São mãos de exploradores? Que mãos são essas que levantam as armas? Não são mãos operárias!? Não são mãos camponesas!? Não são mãos endurecidas pelo trabalho!? Não são mãos criadoras!? Não são mãos dos humildes do povo!? E qual é a maioria do povo? Os milionários ou os operários? Os exploradores ou os explorados? Os privilegiados ou os humildes? Os privilegiados não têm as armas? Os humildes as têm? São minorias os privilegiados? São maioria os humildes? É democrática uma revolução em que os humildes têm armas? Companheiros operários e camponeses, esta é a revolução socialista e democrática dos humildes, com os humildes e para os humildes. E por esta revolução dos humildes, com os humildes e para os humildes, estamos dispostos a dar a vida. (CASTRO, p.281, 2006)

Desde antes do Assalto ao Quartel Moncada, Fidel compreendia que a estratégia não

poderia ser apenas derrubar Batista, mas era necessário para melhorar a vida do povo levar a

diante uma revolução, por isso, se opunha tanto à execução do tirano quanto ao golpe militar

duas formas de eliminar o ditador sem mudar as bases do regime dominante. Sabia, desde

então, que a luta de libertação nacional era inseparável de uma revolução social profunda, ou

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seja, que o processo anti-imperialista culminaria obrigatoriamente, ao mesmo tempo, numa

revolução socialista. (HARNECKER, 2000, p. 51)

Pela primeira vez, na história da América Latina, uma revolução nacional deixaria de

dissociar o elemento nacional do elemento democrático e, ao vencer, a ideia de nação arrasta

com ela a construção de uma ordem democrática inteiramente nova e socialista.

(FERNANDES, 2007, p. 11)

Que marxismo poderia apontar uma revolução ao mesmo tempo nacional e socialista

em uma formação de herança colônia e capitalismo dependente? Que marxismo poderia

identificar como sujeito revolucionário os humildes e suas necessidades serem o motor da

força social da transformação? As contradições que tiveram desfecho na Revolução Cubana e

as contradições que se colocam a partir dela obrigam o marxismo a ser revolucionário.

A contribuição desse legado no Pensamento Crítico latino-americano sobre a questão

nacional nos parece estar relacionada à relação entre a luta dos povos subjugados e o

movimento universal do capital monopolista, o imperialismo. Essa perspectiva é sintetizada

em um manifesto emblemático desse período que é a Segunda Declaração de la Habana.

Em 25 de janeiro de 1962, Cuba é expulsa da Organização de Estados Americanos

pelos Estados Unidos por seus aliados reunidos em Punta el Este. Em assembleia na Praça da

Revolução, em 4 e Fevereiro de 1964, Fidel Castro responde com a Segunda Declaração de

La Habana, manifesto que apresenta uma leitura da história da América Latina com a

dominação do colonialismo espanhol e o imperialismo estadunidense, a partir da perspectiva

da classe trabalhadora e dos povos submetidos à essas dominações.

Para falar em imperialismo o manifesto começa fazendo referência a José Martí que

“ já em 1895 identificou o perigo que pairava sobre América e o chamou por seu nome:

Imperialismo”. (CASTRO, 1964, p.1)

O significado da Revolução Cubana no continente é colocado em termos de ter

alterado a correlação de forças com relação a dominação imperialista, na medida em que

“Cuba rompeu com as correntes que atavam sua sorte ao império opressor, regatou suas

riquezas, reivindicou sua cultura e empunhou sua bandeira soberana e Território e Povo

Livre a América”. “Já os Estados Unidos não poderiam cair sobre a América com a força de

Cuba, no entanto, dominando a maior parte dos demais Estados da América Latina, Estados

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Unidos pretende cair sobre Cuba com a força da América” . (CASTRO, 1964, p.1)

Nesse sentido, a luta de classes na América Latina é entendida como a história do

“Imperialismo” versus “povos explorados”. “O que é a história de Cuba se não a história da

América Latina? E o que é a história da América Latina se não a história de Ásia, África e

Oceania? E o que é a história de todos esses povos se não a história da exploração mais

impiedosa e cruel do Imperialismo no mundo inteiro?” (CASTRO, 1964, p. 2)

A perspectiva de abordar a história como a história dos “povos explorados” versus

“Imperialismo” não prescinde da luta de classes, afinal é uma análise que se apoia no

movimento expansivo do capitalismo e nas relações econômicas e políticas que ela acarreta:

“ao final do século passado e começo do presente um punhado de nações economicamente

desenvolvidas terminavam de repartir o mundo entre elas, submetendo ao seu domínio

econômico e político dois terços da humanidade, que dessa forma, se viu obrigada a trabalhar

para as classes dominantes do grupo de países de economia capitalista desenvolvida. (...) O

que moveu a expansão das potências industrializadas foram razões econômicas.” (CASTRO,

1964, p. 3)

A leitura da gênese e consolidação do capitalismo é a tônica da narrativa histórica

nesse manifesto. A questão latente no momento era a resolução arbitrária da OEA com relação

a Cub,a que é contextualizada num movimento mais geral da sociedade capitalista:

Desde o descobrimento da América, que lançou os conquistadores europeus aos mares para ocupar e explorar as terras e os habitantes de outros continentes, o afã de riqueza foi o motor fundamental de sua conduta. (...) Uma nova classe social, os comerciantes e os produtores de artigos manufaturados para o comércio, surge no seio da sociedade feudal (...) As novas forças produtivas que se desenvolveram no seio da sociedade feudal chocavam-se cada vez mais com as relações de servidão próprias do feudalismo, suas leis, suas instituições, sua filosofia, sua moral, sua arte e sua ideologia. (...) A burguesia considerava justa e necessária a revolução. (...) Quando a burguesia conquistou o poder político, estabeleceu sobre as ruínas da sociedade feudal, o modo capitalista de produção, sobre o qual se ergueu seu estado, suas leis, suas ideias e instituições. Essas instituições consagravam a essência de sua dominação de classe: a propriedade privada. (...) Rompida as travas do feudalismo as forças produtivas de desenvolveram extraordinariamente. (...) As fábricas mais modernas e tecnicamente eficiente deslocavam do mercado os competidores menos eficazes.(...) A livre concorrência do capitalismo na sua primeira fase, deu lugar aos monopólios que controlavam os mercados. (CASTRO, 1962, p. 7)

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Como é própria da tradição marxista, a caracterização da sociedade capitalista faz a

mediação necessária entre a produção de riqueza e o trabalho humano:

De onde saíram as colossais somas de recursos que permitiram a um punhado de monopolistas a acumular milhões de dólares? Simplesmente da exploração do trabalho humano. Milhões de homens obrigados a trabalhar por um salário de subsistência produziram com esforço os gigantescos capitais dos monopólios. (...) Por meio das instituições bancárias chegaram a dispor (...) do dinheiro de toda sociedade. Assim se produziu a fusão dos bancos com a indústria e nasceu o capital financeiro. Que fazer então com os grandes excedentes de capital que em quantidades cada vez maiores se acumula? Invadir o mundo com eles. (CASTRO, 1962, p. 9)

A exposição aborda as guerras imperialistas do ponto de vista da lógica da expansão

capitalistas, mas, privilegia a perspectiva dos povos, de modo que a contradição que move a

história (ou a luta de classes) passa ser identificada como: “capital financeiro” versus

“humanidade”.

O sistema capitalista de produção, uma vez que deu tudo de si que era capaz, se converteu num obstáculo ao progresso da humanidade. (...) O movimento dos povos dependentes e colonizados é um fenômeno de caráter mundial que agita o mundo e marca a crise final do Imperialismo. Cuba e América Latina formam parte do mundo. Nossos problemas formam parte e se engendram da crise geral do Imperialismo e a luta dos povos subjugados: o choque entre o mundo que nasce e o mundo que morre. A odiosa e brutal campanha desatada contra nossa pátria expressa no esforço desesperado como inútil que os imperialistas fazem para evitar a libertação dos povos. (CASTRO, 1962, p. 7)

E é por colocar essa perspectiva de emancipação humana por meio da libertação dos

povos que acirra o enfrentamento do imperialismo com a Revolução Cubana.

“Cuba dói de maneira especial nos imperialistas. O que esconde o ódio ianque à Revolução Cubana? (....) O medo (...) Não o medo à Revolução Cubana, mas o medo a Revolução Latino-americana. Não o medo dos operários, camponeses, estudantes, intelectuais e setores progressistas das classes médias que tomaram revolucionariamente o poder em Cuba; mas o medo que os operários, camponeses, estudantes, intelectuais e setores progressistas das classes médias tomem revolucionariamente o poder nos povos oprimidos, famintos, explorados por monopólios ianques e pela oligarquia reacionária da América latina. O medo a que os povos saqueados do continente arrebatem as armas de seus opressores e se declarem, como Cuba, povos livres da América.” (CASTRO, 1962, p. 7)

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A perspectiva de emancipação dos povos humildes é o real motivo de porque a

Revolução Cubana deveria ser combatida pelo imperialismo. O povo humilde e explorado não

pode esperar nada do inimigo imperialismo e estão obrigados a se colocar em movimento por

suas necessidades mais básicas a satisfazer, dentre as quais a principal, e talvez condição para

outras, seja a sua libertação.

Em busca de resistir ao estrangulamento da soberania das nações latino-americanas, o

movimento de libertação dos povos é portador de um conteúdo universal de emancipação, na

medida em que seu movimento de libertação é necessariamente um confronto com o

imperialismo. Desse modo, uma luta de libertação nacional carrega e é determinada pela luta

anticapitalista.

Nenhum povo na América Latina é débil (...) A grandeza que foi a epopeia da Independência na América Latina, o heroísmo daquela luta, a geração de latino americanos de hoje são responsáveis por uma epopeia maior e mais decisiva para a humanidade. (...) Hoje lhes cabem a luta de libertação nacional frente a metrópole imperial mais poderosa do mundo, frente a força mais importante do sistema imperialista mundial e para prestar a humanidade um serviço ainda mais grande que nossos antepassados prestaram. Essa luta, mais que aquela, farão as massas, farão os povos; (...) Essa epopeia que temos adiante vai ser escrita pelas massas famintas de índios, de camponeses sem terra, operários explorados, vai ser escrita pelas massas progressistas; os intelectuais honestos e brilhantes que são tão abundantes nas nossas sofridas terras da América Latina; Luta de massas e de ideias, epopeia que levará a diante nossos povos maltratados e depreciados pelo imperialismo, nossos povos desconhecidos até hoje, que sem conhecê-los já lhe tiravam a possibilidade de sonhar. Nos consideravam rebanho impotente e submisso; e esse rebanho agora começa a assustar; (...) Com essa humanidade trabalhadora, com esses explorados e sub-humanos, pauperizados não se contou com eles ou se contou pouco. Desde o amanhecer da independência seus destinos têm sido os mesmos: índios, gaúchos, mestiços, zambos, brancos, se são sem renda, toda essa massa humana se transformou em fileiras da pátria que nunca desfrutou, que morreu aos milhões, que foi despedaçada, que ganhou a independência de suas metrópoles para a burguesia, esses que foram banidos da partilha, seguiu ocupando o último lugar nos benefícios sociais, seguiu morrendo de fome, de doenças curáveis, de desatenção, porque ela nunca teve acesso as necessidades básicas: um simples pão, a cama de um hospital, a medicina que salva, a mão que ajuda.” (CASTRO, 1962, p. 7)

O movimento da luta dos povos subjugados tem dupla determinação, por um lado, se

movem por particularidades que provém das entranhas do continente e, ao mesmo tempo, se

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movam em contraposição aos interesses monopolistas e os privilégios da oligarquia que os

apoia.

Em muitos países da América Latina a revolução é hoje inevitável. Esse fato não é determinado pela vontade de ninguém. Está determinado pelas espantosas condições de exploração em que vive o homem americano, o desenvolvimento da consciência revolucionária das massas, a crise mundial do imperialismo e o movimento universal de luta dos povos subjugados. As inquietações que hoje se registram são sintomas inequívocos de rebelião. Agitam-se as entranhas de um continente que foi testemunho de quatro séculos de exploração. (CASTRO, 1962, p. 10)

A reação do imperialismo aos movimentos de libertação nacional coloca em evidência

que o caráter nacional e democrático dessas lutas é necessariamente anticapitalista.

(...) Esta política declarada do imperialismo norte americano de enviar soldados para combater o movimento revolucionário em qualquer país da América Latina, é dizer, para matar operários, estudantes, camponeses, homens e mulheres latino-americanos, não tem outro objetivo que o de seguir mantendo seus interesses monopolistas e os privilégios da oligarquia traidora que os apoia. Agora se pode ver com toda claridade que os pactos militares subscritos pelo Governo dos Estados Unidos com os governos latino-americanos, pactos secretos muitas vezes às costas do povo, invocando hipotéticos perigos exteriores que ninguém nunca viu em nenhuma parte, tinham o único objetivo de prevenir a luta dos povos. Eram pactos contra os povos, contra o único perigo, o perigo interior do movimento de libertação que coloca em risco os interesses ianques. (CASTRO, 1962, p. 12)

Baseado nesses elementos, o manifesto contextualiza politicamente o fato central da

assembleia que é a expulsão de Cuba da OEA, em Punta del Este:

Em Punta del Este se deu uma grande batalha ideológica entre a Revolução Cubana e o imperialismo ianque. O que representou ali? Por quem falou cada um? Cuba representou os povos; Os Estados Unidos representou os monopólios; Cuba falou pelas massas exploradas da América; Os Estados Unidos pelos interesses oligárquicos exploradores e imperialistas. Cuba, pela soberania; Os Estados Unidos pela intervenção. Cuba, pela nacionalização das empresas estrangeiras; Os Estados Unidos, por novas intervenções do capital externo. Cuba, pela cultura; Os Estados Unidos, pela ignorância. Cuba, pela reforma agrária; Os Estados Unidos, pelo latifúndio. Cuba, pela industrialização da América Latina; Os Estados Unidos, pelo subdesenvolvimento. Cuba, pelo trabalho criador; Os Estados Unidos, pela sabotagem e o terror contra revolucionário que praticam seus agentes, a destruição dos canaviais e fábricas, os bombardeios de seus aviões piratas contra o trabalho de um povo pacífico. Cuba, pelos alfabetizadores assassinados; os Estados Unidos,

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pelos assassinos. Cuba, pelo pão; Os Estados Unidos, pela fome. Cuba, pela igualdade; Os Estados Unidos, pelo privilégio e discriminação. Cuba, pela verdade; Estados Unidos, pela mentira. Cuba, pela libertação; Os Estados Unidos, pela opressão. Cuba, pelo futuro luminoso da humanidade; Os Estados Unidos, pelo passado sem esperança. Cuba, pelos heróis que caíram em Girón para salvar a Pátria da dominação estrangeira; Estados Unidos, pelos mercenários e traidores que servem ao estrangeiro contra sua própria Pátria. Cuba, pela paz entre os povos; Estados Unidos, pela agressão e guerra. Cuba, pelo socialismo. Estados Unidos, pelo capitalismo. (CASTRO, 1962, p. 15)

O argumento que sustentou a expulsão de Cuba na OEA, foi considerá-la ser como

foco que exporta revolução para outros países. O manifesto problematiza:

Liquidando a Revolução Cubana, acreditam liquidar o espírito revolucionário dos

povos. Pretendem em seu delírio que Cuba é exportadora de Revoluções. Em suas

mentes de negociantes e especuladores cabe à ideia de que as revoluções se podem

comprar ou vender, alugar ou emprestar, exportar ou importar como as mercadorias.

(...) As condições subjetivas de cada país, é dizer, o fator consciência, organização,

direção, pode acelerar ou atrasar a revolução segundo seu maior ou menor grau de

desenvolvimento, cedo ou tarde em cada época histórica, quando as condições

objetivas estiverem maduras, a consciência se adquire, a organização se consegue, a

direção surge e a revolução se produz.” (CASTRO, 1962, p. 29)

(...) Frente a acusação de que Cuba quer exportar a sua Revolução, respondemos: as

revoluções não se exportam, as fazem os povos. O que Cuba pode dar aos povos, e

deu, é seu exemplo. E o que ensina a Revolução Cubana? Que a revolução é

possível, que os povos podem fazê-la, que no mundo contemporâneo não há forças

capazes de impedir o movimento de libertação dos povos. (CASTRO, 1962, p. 09)

A Revolução cubana, além de colocar a perspectiva da revolução socialista, significa a

estratégia da libertação nacional no continente que é sintetizada na frase: “o dever de todo

revolucionário é fazer a revolução”. (CASTRO, 1962, p. 32)

Essa estratégia que vincula a questão nacional com a revolução, também está presente

na Mensagem aos Povos do Mundo através da Tricontimental (1965):

Temos que levar em conta que o imperialismo é um sistema mundial, última etapa do capitalismo e há que enfrentá-lo num grande confronto mundial. A finalidade estratégica dessa luta deve ser a destruição do imperialismo. A nossa participação, os explorados e atrasados do mundo, é eliminar as bases de sustentação do imperialismo: nossos povos oprimidos de onde se extraem capitais, matérias primas, técnicos e operários baratos e para onde exportam novos capitais -

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instrumentos de dominação -, armas e todo tipo de artigos submetendo-nos a uma dependência absoluta. O elemento fundamental dessa finalidade estratégica será, então, a liberação real dos povos; liberação que se produzirá por meio da luta armada, na maioria dos casos, e terá, na América, a propriedade de converter-se numa revolução socialista. (GUEVARA, 1965, p.7 )

E na Declaração de OLAS (1967), resolução do primeiro (e único) congresso da

Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), que reuniu-se de 31 de julho a 10

agosto em Havana, representantes de organizações de luta revolucionária do Continente que

compartilhavam essa estratégia da Revolução Cubana.

As primeiras consequências fundamentais da Revolução Cubana foram a ascensão do movimento anti-imperialista e a consequente radicalização e demarcação de forças em choque. (...) Os imperialistas ianques pretenderam isolar Cuba da América para que seu exemplo não se disseminasse por todo continente. Entretanto, nunca Cuba esteve tão unida ao resto dos povos da América Latina. (…). Estranhos à América Latina são os imperialismos ianques e sua ideologia reacionária. Em Cuba concretizam-se e sintetizam-se as aspirações e ideias de todos os povos da América Latina. Pretenderam isolá-la e, com esta atitude, conseguiram estreitar ainda mais os laços de indestrutível humanidade entre o povo cubano e os restantes povos da América Latina, que constituem uma mesma grande família humana que enfrenta um adversário comum, o principal inimigo de toda humanidade o imperialismo ianque. (Löwy, 2006, p. 327)

A resolução final de OLAS em 20 pontos, que separamos em três blocos para analisar:

a perspectiva da revolução no continente; a luta armada; e a relação com a revolução cubana e

o internacionalismo dos povos em luta.

Nós, representantes dos povos de nossa América, conscientes das condições existentes no continente, sabedores da existência de uma estratégia comum contra – revolucionária dirigida pelo imperialismo yanqui, proclamamos: 1. Que constitui um direito e um dever dos povos da América Latina fazer a revolução. 2. Que a revolução na América Latina tem suas mais profundas raízes históricas no movimento de libertação contra o colonialismo europeu do século XIX, e contra o imperialismo neste século. A epopeia dos povos da América e as grandes batalhas de classe contra o imperialismo realizadas por nossos povos nas décadas anteriores constituem fonte de inspiração histórica do movimento revolucionário latino-americano. 3. Que o conteúdo essencial da revolução na América Latina está dado por seu enfrentamento ao imperialismo e às oligarquias de burgueses latifundiários.

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Consequentemente, o caráter da revolução é o da luta pela independência nacional, a emancipação das oligarquias e o caminho socialista para seu pleno desenvolvimento econômico e social. (...) 4. Que os princípios do marxismo leninismo orientam o movimento revolucionário da América Latina. (Löwy, 2006, p. 330)

A luta armada e a guerrilha colocam a imprescindibilidade da violência revolucionária

na luta pelo poder:

5. Que a luta revolucionária armada constitui a linha fundamental da revolução na América Latina 6. Que todas as demais formas de luta devem servir a não atrasar o desenvolvimento fundamental, que é a luta armada 7. Que para a maioria dos países do continente, o problema de organizar, iniciar, desenvolver e fazer culminar a luta armada constitui hoje a tarefa imediata e fundamental do movimento revolucionário. 8. Que os países nos quais esta tarefa não estiver sido proposta de modo imediato devem considerá-la de todas as formas como uma perspectiva inevitável no desenvolvimento da luta revolucionária em seu país.

9. Que aos povos de cada país e às suas vanguardas revolucionárias corresponderá a necessidade histórica de estimular a revolução em cada um deles.

10. Que a guerrilha – embrião dos exércitos de libertação – constitui o método mais eficaz para iniciar e desenvolver a luta revolucionária na maioria de nossos países. 11. Que a direção da revolução exige, como princípio organizativo, a existência do comando unificado político e militar como garantia para seu êxito. (Löwy, 2006, p. 331)

O significado do internacionalismo que se desdobra desse processo de luta e da

experiência da Revolução Cubana e da luta histórica do povo do Vietnã:

12. Que a solidariedade mais efetivas dos movimentos revolucionários entre si é constituída pelo desenvolvimento e pela culminação da própria luta no seio de cada país. 13. Que a solidariedade com Cuba e a colaboração com o movimento revolucionário em armas constituem um dever iniludível de tipo de todas as organizações anti-imperialistas do continente. 14. Que a Revolução Cubana, como símbolo do triunfo do movimento revolucionário armado, constitui a vanguarda do movimento anti-imperialista latino-americano. Os povos que realizam a luta armada, à medida que avançam por esse caminho, situam-se também na vanguarda. 15. Que os povos diretamente colonizados pelas metrópoles europeias, ou sujeitos pela dominação colonial direta dos Estados Unidos, em seu caminho para libertação

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têm, como objetivo imediato e fundamental, a luta pela independência e a vinculação à luta geral do continente como única forma de evitar ser absorvido pelo neocolonialismo americano.

16. Que a Segunda Declaração de Havana , resumindo a bela e gloriosa tradição revolucionária dos últimos 150 anos da história da América, constitui um documento programático da Revolução Latino-Americana, que os povos desse continente confirmaram, aprofundaram, enriqueceram e radicalizaram nestes últimos cinco anos.

17. Que os povos da América Latina não têm antagonismo com nenhum outro povo do mundo e estendem sua mão fraterna ao próprio povo dos estados Unidos, exortando-o a lutar contra a política repressiva dos monopólios imperialistas. 18. Que a luta na América latina fortalece seus vínculos de solidariedade com os povos da Ásia, África e países socialistas, assim como com os trabalhadores dos países capitalistas, especialmente com a população negra dos Estados Unidos, que sofre ao mesmo tempo exploração de classe, miséria, desemprego e discriminação racial e a negação dos mais elementares direitos humanos, e constitui uma importante força a considerar no contexto da luta revolucionária. 19. Que a luta histórica do povo do Vietnã presta a todos os povos revolucionários que combatem o imperialismo uma inestimável ajuda, constituindo um exemplo inspirador para os povos da América Latina. 20. Que aprovamos o Estatuto e criamos o Comitê Permanente, com sede em Havana, da Organização Latino-americana de solidariedade, que constitui a genuína representação dos povos da América Latina. (Löwy, 2006, p. 331)

A resolução é concluída com:

Nós revolucionários da nossa América, da América do Sul de rio Bravo, sucessores dos homens que nos deram a primeira independência, armados de férrea vontade de lutar e de uma orientação revolucionária e científica, e sem outra coisa a perder exceto os grilhões que nos oprimem.

Afirmamos: Que nossa luta constitui um aporte decisivo à luta histórica da Humanidade para se livrar da escravidão e da exploração. (Löwy, 2006, p. 332)

A declaração de OLAS ao afirmar que “nossa luta constituí um aporte à luta histórica

da humanidade para se livrar da escravidão e da exploração: o dever de todo revolucionário

é fazer a revolução”, reafirma o caráter da revolução na América Latina em que não se separa

luta de libertação nacional da transição socialista. E para os povos da América Latina, a luta de

classes a partir do conflito social próprio das contradições de suas respectivas formações

sociais dependente, coloca o dever e o direito a revolução que é nacional, é latino-americana e

é mundial.

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Por fim, mobilizamos dois exemplos que são ilustrativos da ressonância da Revolução

Cubana no continente, e que se filiam a esse legado do pensamento crítico desse período na

América Latina.

Carlos Marighella (1911 – 1969), dirigente histórico do comunismo brasileiro rompeu

com o PCB (Partido Comunista Brasileiro) em 1967 depois de ter participado do Congresso de

OLAS em Havana. Quando manifesta as razões que o levaram à ruptura, Marighella atribui à

política de subordinação à burguesia Nacional proposta pelo partido e a necessidade de iniciar

a luta armada no Brasil. Para sustentar seus argumentos mobiliza a interpretação do momento

histórico vivido pela América Latina compartilhado pelos revolucionários em OLAS. Com

Joaquim Câmara Ferreira e outros comunistas, Marighella funda em 1968 a Ação Libertadora

Nacional (ALN).

Temeroso da Revolução Cubana, o imperialismo norte-americano, agora apoiado nas forças armadas convencionais latino-americanas, não vacila em desencadear golpes militares ao menor sinal de avanço no caminho de libertação dos povos de nosso continente. E mesmo desiste ou recusa do emprego da guerra de agressão mais brutal, como no Vietnã.

A luta pelas reformas de base não é possível pacificamente, a não ser por meio da tomada do poder por via revolucionária e com a consequente modificação da estrutura militar que serve às classes dominantes. O abandono do caminho revolucionário leva à perda de confiança no proletariado, transformado, daí então, em auxiliar da burguesia, enquanto o partido marxista passa a ser apêndice dos partidos burgueses. (MARIGHELLA, 2006, p. 319)70

Nesse mesmo documento, Marighella adverte que a “causa revolucionária brasileira,

a libertação de nosso povo do julgo dos Estados Unidos”.

Marighella relaciona as condições objetivas da luta armada no país levando em conta

as condições da vida do povo, nos mesmos termos de Fidel em “A história me absolverá”.

Nesse mesmo texto, Marighela explicita que “a época atual é a época das guerrilhas de

libertação, ou seja, de organização da guerra justa e necessária contra o imperialismo norte-

americano”, o que torna possível tecer outra aproximação da interpretação de Marighella com

70

MARIGHELLA, Carlos. Carta ao Comitê Executivo do PCB, Rio, 1/12/1966. IN Löwy, Michael. O Marxismo na América Latina. São Paulo Ed Perseu Abramo, 2006. (p. 314 – 320)

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o legado de pensamento crítico da Revolução Cubana.

Outro exemplo da ressonância da Revolução Cubana na luta revolucionaria do

continente encontramos em Schafik Handal (1930 – 2006), comandante do Partido Comunista

Salvadorenho que nos anos da década de 1980, sintetiza o caráter da revolução na América

Latina.

Em Cuba ficou demonstrada uma regularidade da revolução na América Latina: a revolução que aqui amadurece é a revolução socialista. Ficou também demonstrado em Cuba que não se pode ir ao socialismo, que não se pode realizar revolução socialista senão com bandeiras democráticas anti-imperialistas, que não se pode realizar até o fundo a revolução democrática anti-imperialista nem se pode defender suas conquistas sem se atingir o socialismo. Dito de outra maneira: não se pode atingir o socialismo senão pela via da revolução democrática anti-imperialista, mas tampouco se pode consumar a revolução democrática anti-imperialista sem atingir o socialismo. De maneira que entre ambas há uma ligação essencial indissolúvel, são facetas de uma única revolução e não duas revoluções. Se olhamos de agora para o futuro, o que se apresenta é a revolução democrática anti-imperialista e que não se apresenta com uma revolução à parte, senão como a realização das tarefas próprias da primeira fase da revolução socialista. (HANDAL, 1980, p.147) 71

Ao explicitar essa dialética de que não se pode atingir o socialismo senão pela via da

revolução democrática anti-imperialista, mas tampouco se pode consumar a revolução

democrática anti-imperialista sem atingir o socialismo, Shafikc Handal mostra qual é o lugar

das bandeiras nacionais de conteúdo democrático e imperialista, na luta pela transição

socialista. O empenho de uma sociedade que se coloca em movimento contra o imperialismo e

por bandeiras democráticas nacionais, necessariamente, cedo ou tarde deve considerar a

centralidade da luta pelo poder.

Sendo assim, compreende-se melhor que não pode haver revolução sem resolver a fundo o problema do poder e que não é necessário esperar que as grandes massas tenham uma consciência socialista para conceber a tomada revolucionária do poder. Em Cuba não havia consciência socialista generalizada antes da vitória de 1° de

71HANDAL, Schafik. O Poder, o caráter, a via da Revolução e a unidade da esquerda IN CANALES, Tirso. Shafique Handal por la senda revolucionária. El Salvador. Editorial Memoria, 2007.

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janeiro de 1959. Parece-me que, se o problema do caráter da revolução é enfocado desta maneira, a atividade dos partidos revolucionários não pode deixar de ter em seu centro o problema do poder. ( HANDAL, 1980, p.147)

Destacamos com esses exemplos que a Revolução Cubana, para além de orientações de

estratégia, tática, identificação do sujeito revolucionário se desdobra uma teoria sobre o caráter

da revolução no continente, para a qual notamos uma originalidade de método (teoria

relacionada a prática revolucionária que faz necessariamente a mediação entre o particular e o

universal) e que tem especial contribuição para elaborar sobre a questão nacional –

relacionada às lutas por libertação nacional – da perspectiva marxista.

A escolha de selecionar manifestos políticos para identificar a contribuição do

pensamento crítico da América Latina à questão nacional a partir das experiências dos anos

1960, evidencia que essa elaboração teórica é um legado necessariamente vinculado à prática

revolucionária.

3.4 A questão nacional no Pensamento Crítico da América Latina relacionado às lutas

por Libertação Nacional

A questão nacional na América Latina relacionada às lutas por libertação nacional

contribui com abordagens originais ao marxismo a partir das contradições que colocam as

forças sociais em movimento no continente.

A partir desse legado de pensamento crítico que estamos analisando, destacamos duas

categorias que nos parecem fundamentais para compreender tanto a “questão nacional” quanto

o imperialismo na América Latina: a categoria “povo” que coloca uma dimensão fundamental

na luta de classes e nos processos emancipatórios do continente; e a relação entre “socialismo

e desenvolvimento” .

Revolução nacional na América Latina é a revolução socialista que significa a “entrada

das massas populares” na história da construção nacional.

A desproporcional correlação de forças do poder das armas, impresso na história do

continente, coloca a centralidade da concepção de “povo em armas” para assumir seu destino

nacional negado.

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Como vimos na interpretação de processo histórico por meio das contradições que

colocam as forças sociais em movimento na América Latina, a particularidade da

desproporção de força militar entre a sociedade ocidental e a sociedade nativa deflagrou a

primeira contradição que move processo histórico no continente. A violência da colonização

que rejeita e subjuga as sociedades nativas lança os povos à condição de sub-humanidade. Do

desfecho desse conflito se deu a primeira forma de desenvolvimento para as colônias que

prescinde das massas populares. A concepção de “povo em armas”, recorrente no pensamento

crítico latino-americano, tem sua raiz na resistência que potencialmente coloca os povos da

América Latina em movimento em busca de afirmar sua humanidade e encontrar seu patamar

histórico.

Uma característica que destacamos no aleijume de nascença da formação nacional se

remete ao vazio da questão nacional nos processo de independência e constituição do Estado

Nação em que o povo não participou. Essa ausência do “povo miúdo” se deu notadamente pela

impossibilidade de se alçar como sujeito histórico em um movimento pelas aspirações de

liberdade e igualdade. As massas populares despossuídas são sujeitos amputados pela opressão

e exploração próprias da expansão capitalista.

Esse processo atribui uma peculiaridade à questão nacional na América Latina que vem

a ser o travamento de mobilizações populares de caráter nacional e democrático provocadas

por aspirações universais. O Estado Nação que se consolida é incapaz de realizar as aspirações

populares, democráticas e distributivas de renda que reproduz a violência das sociedades

negadas para eliminar o povo humilde que não “cabe” na cidadania restringida.

O conteúdo da luta de classes de ampliação dos direitos civis só se torna realizável

num processo de transição socialista que busque satisfazer as necessidades mais básicas e

genuínas dessa humanidade negada.

Quando o “povo entra na história enquanto classe” não se separa a realização das

tarefas de conteúdo nacional e democrática (que são necessariamente populares) de uma luta

anticapitalista, traduzida no enfretamento ao imperialismo.

As aspirações que não foram realizadas na Independência se recolocam na sociedade

de classes como tarefas democráticas e populares pendentes, já que a burguesia industrializou

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sem realizar a constituição da nação. Levantar essas aspirações não é buscar a realização delas

na sociedade capitalista, mas sim, o esforço em realizá-las altera a correlação de forças na

sociedade como condição de alcançá-las num processo de transição ao socialismo. As

reivindicações populares por direitos ao alterar a correlação de forças na sociedade cria uma

situação de impasse quando coloca-se objetivamente no horizonte de luta a superação da

dominação do Estado e da sociedade de classes pela retomada dos meios de produção, esforço

esse propriamente de um processo de revolução socialista.

A “questão nacional” numa perspectiva marxista deve ser realizada (tornar-se

realidade) e, portanto, ser negada enquanto teoria separada da prática.

Não podemos deixar de registrar algumas aproximações com a obra de Marx e Engels,

pois ao falar em originalidade do marxismo da América Latina, não quer dizer de maneira

nenhuma negação do marxismo clássico, mas ao contrario é dar consequência ao seu

pressuposto metodológico.

As concepções presentes nas obras de Marx, entre 1843-1846, remetem-se a uma teoria

social que vem a ser a realização prática da afirmação da humanidade, quer dizer, o homem

liberto de suas potências alienantes por excelência, a saber: o Estado, o Dinheiro e a

propriedade capitalista. Essa libertação é uma tarefa em que só uma classe é portadora, o

proletariado. O proletariado se alça a classe universal no movimento em que ele é despojado

de toda particularidade. Esse movimento não é outro que não o confronto com o capital. Uma

dimensão que leva em conta a “essência humana”, assim como suas potências alienantes, não

necessariamente está em oposição à dimensão que prioriza a luta de classes. Esse registro é

importante na nossa perspectiva de análise, pois elementos da teoria sociológica e

revolucionária do homem social em Marx são de grande importância para nossas reflexões

sobre o caráter contraditório do Estado-Nação, entre o nacional (particular) e o transnacional

(universal), assim como a luta de classes.

Examinar a “questão nacional” nos marcos do método de Marx pressupõe o Estado

Nação Moderno compreendido como resultado da luta de classes, que por sua vez, é resultado

da luta pela apropriação privada do “sobreproduto” que se dá numa dada base material para a

realização das necessidades dos homens de produzirem sua existência material.

O entendimento de que o proletariado só pode existir na escala da história universal,

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214

assim como o comunismo, que é o resultado de sua ação, só pode concretizar-se enquanto

histórico-universal, é uma ideia desenvolvida por Marx nas chamadas obras filosóficas e

políticas.

Selecionamos Crítica à Filosofia do Direito de Hegel (1844) e a A Ideologia Alemã

(1846), obras consideradas como acerto de contas da iniciação filosófica de Marx junto aos

Jovens Hegelianos, pelo fato de que nessas obras, Marx elabora sobre o processo de

consciência. Propõe “consciência” como processo de superação do homem cindido em

sociedade de classes e que surge na medida em que cada Homem é maior que ele mesmo, ao

participar da “consciência total” do movimento da realidade. Cada Homem participa da

“consciência universal” não por ilustração das ideias, mas sim por um processo de confronto

entre capital e trabalho, pela apropriação do produto do trabalho numa base material, que no

capitalismo está organizada nacionalmente.

Nesse processo de confronto com o capital, emerge na trajetória de Marx, obras

chamadas “políticas”, em que ele desenvolve a categoria classe social. Selecionamos as obras

“Manifesto do Partido Comunista” (1848) e “Crítica ao Programa de Gotha” (1875/1891)

para analisar a tensão entre nacional e o transnacional, na constituição do proletariado

enquanto classe.

Da perspectiva da classe trabalhadora, essa tensão se dá, na medida em que o Estado

Nação é portador de uma contradição, qual seja: é o centro da constituição do proletariado em

classe, uma vez que é o locus da concretude da relação social de exploração; e, ao mesmo

tempo, o Estado Nação é o limite da existência internacionalista do proletariado enquanto

classe que se move em confronto com o capital mundial. Essa existência internacionalista

significa participar da “consciência universal”.

No texto “Introdução à Crítica à Filosofia do Direito de Hegel” (1844), encontramos

uma explícita reflexão de Marx sobre o caráter contraditório entre o nacional e transnacional

no processo de Revolução, entendido nesse momento por esse autor como emancipação,

exatamente pela necessidade que vem a ser contraditória entre o que Marx chama de

“elemento passivo” e “possibilidade positiva” na constituição do proletariado enquanto classe.

O termo “proletariado” faz sua entrada no vocabulário marxiano por volta de 1843. Neste

momento, ainda num registro filosófico, sob a forma de uma construção especulativa, como

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identifica Denis Collin (2008):

Onde se encontra a possibilidade positiva72 da emancipação alemã? Resposta: Na formação de uma classe carregada de correntes radicais, uma classe da sociedade civil, uma ordem que é a dissolução de todas as ordens, uma esfera que possui um caráter universal em razão de seus sofrimentos universais e que não reivindica nenhum direito particular, mas um dano absoluto, que não pode mais se referir a um título histórico, mas apenas a um título humano, que não está em oposição parcial com as consequências, mas em oposição total com os princípios políticos do Estado alemão, uma esfera, enfim, que não pode emancipar-se sem emancipar todas as outras esferas da sociedade e, portanto, sem emancipá-las todas; numa palavra, uma esfera que é a perda total do homem, e não pode, pois, reconquistar a si mesma sem a reconquista total do homem. Essa dissolução da sociedade enquanto Stand particular é o proletariado (MARX in COLLIN, 2008, p.205)

A possibilidade de revolução, ou emancipação na Alemanha, está relacionada à

possibilidade positiva que tem a ver com o proletariado definido como classe universal porque

foi despojado de toda particularidade, em um movimento em que não pode emancipar-se sem

emancipar todas as outras esferas da sociedade.

Ao mesmo tempo, a Revolução, ou processo de emancipação na Alemanha, tem a

necessidade do que Marx chama de elemento passivo, que vem a ser a necessidade de uma

base material para a realização das necessidades de um povo.

Parece, porém, que uma revolução radical na Alemanha vai se confrontar com uma

grande dificuldade. As revoluções precisam de um elemento passivo73, de uma base

material. A teoria só se realiza num povo na medida em que é a realização das suas

necessidades. Corresponderá à monstruosa discrepância entre as exigências do

pensamento alemão e as respostas da realidade alemã uma discrepância semelhante

entre a sociedade civil e o Estado no interior da própria sociedade civil? Serão as

necessidades teóricas diretamente necessidades práticas? Não basta que o

pensamento procure realizar-se; a realidade deve igualmente compelir o

pensamento. (MARX in COLLIN, 2008, p.206)

Desse modo, Marx coloca em evidência que a teoria só se realiza num povo, na medida

72

Grifo nosso

73Grifo nosso

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em que é a realização das suas necessidades, e ao se mover no sentido de realizar suas

necessidades o proletariado é a classe portadora da possibilidade de alçar interesses maiores

que a sua própria classe e colocar a sociedade toda no curso de um movimento transformador.

Ainda na “Introdução Crítica à Filosofia do Direito de Hegel” (1843), destacamos o

trecho em que Marx apresenta o movimento de uma classe no processo de emancipação como

representante geral de toda a referida sociedade:

Nenhuma classe da sociedade civil consegue desempenhar este papel a não ser que possa despertar, em si e nas massas, um momento de entusiasmo em que se associe e se misture com a sociedade em liberdade, se identifique com ela e seja sentida e reconhecida como a representante geral da referida sociedade. Os seus objetivos e interesses devem verdadeiramente ser os objetivos e os interesses da própria sociedade, da qual se torna de fato a cabeça e o coração social. Só em nome dos interesses gerais da sociedade é que uma classe particular pode reivindicar a supremacia geral. Para alcançar essa posição libertadora e de direção política de todas as esferas da sociedade, não bastam a energia e a consciência revolucionária. Para que a revolução de um povo e a emancipação de uma classe particular da sociedade civil coincidam, para que um estamento seja reconhecido como o estamento de toda a sociedade, outra classe tem de concentrar em si todos os males da sociedade, um estamento particular tem de ser o estamento de repúdio geral, a incorporação dos limites gerais. Uma esfera social particular terá de olhar-se como o crime notório de toda a sociedade, a fim de que a libertação de semelhante esfera surja como uma auto libertação geral. Para que um estamento seja estamento libertador par excellence, é necessário que outro estamento se revele abertamente como o estamento da opressão. O significado negativo e universal da nobreza e do clero francês produziu o significado positivo e geral da burguesia, a classe que junto deles se encontrava e que a eles se opôs. (Marx, 2005, p. 154)

A teoria geral da Revolução está relacionada a um movimento em que a Revolução de

um povo e a emancipação de uma classe particular da sociedade civil coincidam.

A discrepância entre o pensamento revolucionário na Alemanha (teoria da revolução

no geral) e as condições materiais da revolução nesse país (particularidade dessa formação

socioeconômica) é também identificada por Marx. Ele prossegue na Introdução à Critica da

filosofia do direito de Hegel:

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Mas a Alemanha não atravessou os estágios intermediários de emancipação política ao mesmo tempo em que os povos modernos. Não atingiu ainda na prática os estágios que já ultrapassou na teoria. Como poderia a Alemanha, em salto mortale, superar não só as próprias barreiras que na realidade tem de experimentar e atingir como uma emancipação das suas próprias barreiras reais? Uma revolução radical só pode ser a revolução de necessidades reais, para a qual parecem faltar os pressupostos e o campo de cultivo. (MARX, 2005, p.152)

Nessa citação, revela-se a afirmação de que uma revolução radical só pode ser a

revolução de necessidades reais, e a necessidade real da classe proletária se realiza na

concretude da base material de reprodução de sua existência que é de dimensão nacional, no

caso, Alemanha. O proletariado alemão, para dar o salto mortale e se alçar a classe universal,

tem de experimentar e atingir como uma emancipação das suas próprias barreiras reais, no

sentido de realizar necessidades reais, que é um confronto que se trava concretamente na

Alemanha, no caso.

Assim, um pressuposto para mover-se pelas determinações próprias da contradição

capital e trabalho e o vir a ser enquanto classe proletária é reconhecer-se enquanto Humanos

(natureza social do Homem) sob uma mesma necessidade de emancipação, que começa por

suprir as necessidades básicas da existência na vida em sociedade.

Para Michael Löwy (1978), a ascensão de uma nova classe revolucionária - o

proletariado - propiciou a emergência de uma nova concepção do mundo, o marxismo74, e

criou as condições objetivas para a solução do problema da relação entre homem e sociedade,

quer no plano teórico quer no plano da práxis. (LÖWY, 1978, p. 50).

74Antes de Marx, outros pensadores dos séculos XVIII e XIX, embora de forma fragmentária e incompleta deram contribuições que influenciaram Marx na solução sociológica e politicamente coerente do problema homem e sociedade: HUME, recusando as teses contratualistas em nome do “Homem social”, abre o caminho para Kant, que em sua “ideia para uma História geral cosmopolita”, de 1784, observa que o indivíduo tem necessidade da sociedade para sua existência e esta vive das relações recíprocas entre os indivíduos. A influencia de Kant, por sua vez, se faz sentir sobre Feuerbach, que afirma claramente na “Essência do Cristianismo” que só a vida social realiza a humanidade e que “os homens não realizam o homem senão por meio de sua união, e somente em seu conjunto são o que o homem pode e dever ser... Além da influência de FEUERBACH , Löwy ressalta a influência de SAIN SIMON sobre o pensamento do Jovem Marx, que nega a hipótese jusnaturalista de um estado primitivo social, pois o homem, em tais condições estaria reduzido à pura animalidade. (LÖWY, 1978, p. 50-51)

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A natureza social do Homem é um problema que emerge em Marx, ainda jovem, na

universidade. Marx se matricula no curso de Direito em Berlim (1836) e segue as lições de

Savigny – o principal representante da escola histórica do Direito e de Gans – díscípulo e

editor de Hegel. (COLLIN, 2010, p. 15). Hegel morre em 1831 e os discípulos dividem entre

si seu legado teórico. Marx frequentava o Círculo animado por Bruno Bauer, uma das figuras

marcantes dos hegelianos de esquerda. As preocupações do Círculo eram, em primeiro lugar,

religiosas e filosóficas. A revolução que interessava a esses jovens hegelianos era a Revolução

teórica: "o pensamento precede a ação assim como o raio precede o trovão", escrevera

Heinrich Heine. Os jovens hegelianos produzem clarões, mas não provocam abalos (trovão) na

sociedade alemã. (COLLIN, 2010, p. 16-17)

Marx fez a iniciação filosófica e política com os jovens hegelianos, o que o levou a

estudar filosofia clássica. No final da faculdade, em 1841, ele dedica sua tese a filosofia

helenística: A diferença da Filosofia da Natureza em Demócrito e Epicur:

Já no primeiro texto filosófico de Marx, a tese de doutoramento: “Diferença entre a Filosofia da Natureza de Demócrito e de Epicuro” de 1841, encontramos uma aguda crítica do atomismo de Epicuro, cujas conotações políticos – sociais são evidentes. Ao contrário de Platão e Aristóteles, Epicuro ensinava que os interesses e a felicidade do indivíduo são anteriores aos interesses da sociedade e que a sociedade e o Estado existem unicamente para proteger o indivíduo, concepções essas que se refletiam na sua teoria da liberdade absoluta do átomo. Ora, Marx, na sua tese, afirma que “a individualidade isolada e abstrata não pode afirmar seu conceito, sua essência, sua existência em si... senão fazendo abstração do mundo que se opõe a ela (...) A individualidade abstrata representa a liberdade isolada do mundo, não a liberdade integrada no mundo. (LÖWY, 1978, p. 51-52)

Löwy (1987) destaca a “liberdade integrada no mundo” como uma ideia central na tese

de doutorado de Marx, a partir desse estudo da Filosofia Clássica que marca a oposição às

teses liberal-individualistas, decisiva na obra desse autor neste período de 1841-1843.

É desse ano, 1841, a publicação de "A essência do cristianismo" de Ludwig

Feuerbach, livro de grande repercussão que consistia na primeira grande investida de fazer

uma crítica ao idealismo hegeliano, propondo uma concepção materialista. Contra o universal

abstrato que censura em Hegel, Feuerbach sustenta um universal natural do gênero humano. A

visão humanista naturalista de Feuerbach possibilitou a Marx romper com Hegel e transitar de

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uma visão idealista em direção a uma visão materialista. Ao contrário de Feuerbach, que via

na dialética hegeliana apenas a fonte de especulação mistificadora da realidade, Marx vai

intuir que a dialética deveria ser o princípio dinâmico do materialismo, o que viria resultar na

concepção revolucionária do materialismo como filosofia da prática.

O problema da “natureza social do Homem” reaparece de forma mais explícita no texto

“Revisão Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, quando Marx critica claramente a

oposição hegeliana entre Estado e indivíduo e desenvolve a ideia de “qualidade social do

Homem”. Ressalta que “o homem não é um ser abstrato, situado fora do mundo. O homem é o

mundo dos homens, o Estado, a sociedade”.75

As preocupações de Marx jovem eram preocupações no âmbito da visão filosófica do

mundo, da defesa da liberdade e da crítica à religião. Marx obtém seu doutorado em 1841, mas

não consegue emprego como professor. Entre 1842-1843, Marx ocupou o cargo de redator-

chefe da Gazeta Renana, jornal financiado pela burguesia local. Para Collin (2010), a

experiência de jornalista foi muito útil para Marx porque ele se aproximou da realidade e

ganhou conhecimento de questões econômicas geradoras de conflitos sociais. A orientação

liberal do jornal rendeu frequentes atritos com a censura prussiana, que culminou no

fechamento arbitrário do jornal.

Após seu desligamento da Gazeta Renana, Marx se estabeleceu em Kreuznach,

balneário nas proximidades de Trier, onde, em 19 de junho de 1843, casou-se com Jenny von

Westphoten. Os dois permanecem em Kreuznach até outubro, enquanto aguardavam notícias

de Ruge sobre a data e o local da Publicação dos Anais Franco – Alemães, periódico que

buscava dar visão à produção teórica e política da oposição radical ao absolutismo prussiano,

cujo único volume foi publicado em fevereiro de 1844, em Paris. (ENDERLE, 2005, p. 26).

Chegando à França, Marx publica, no início de 1844, nos Anais Franco-Alemães, a

“ Introdução a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” juntamente com “Sobre a questão

75 O centro da “revisão crítica” é um verdadeiro acerto de contas com o hegelianismo em torno da monarquia constitucional, uma investida combatendo a concepção organicista do Estado. A democracia radical precisava de um fundamento teórico. E se o hegelianismo pode tornar-se a filosofia oficial de um Estado hostil a liberdade e, afinal, do pior dos Estados, deveria ter um vício oculto no sistema do mestre. Em 1843, Marx empreende uma “revisão crítica da filosofia do direito de Hegel”, cujas primícias ele anuncia numa carta a Ruge de 5 de março de 1842.A crítica do direito político hegeliano fica no estado de manuscrito. Só numa introdução é publicada em 1844. (COLLIN, 2010, p. 17).

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judaica”76. Nos Anais Franco-Alemães também vinha um texto intitulado: “Esboço de uma

crítica a economia política”, assinado por Fredrich Engels77. Em 1844, em Paris, Marx e

Engels deram início a elaboração intelectual e política, e a uma parceria sem a qual não seria

possível criar uma obra tão impressionante pela complexidade e extensão, se Marx não

contasse com o amigo e companheiro como incentivador, consultor e crítico.

Já fruto dessa parceria, encontramos em “A Ideologia Alemã”, de Karl Marx e

Friedrich Engels, escrita em 1845/1846, mas publicada postumamente em 1932, formulações

mais precisas sobre “necessidades reais” relacionadas à base de existência do homem e à

construção material do mundo. Uma consciência nacional, no sentido de representações

comuns em relação a esse território, a linguagem e crenças que mediam o comportamento

material entre esses homens, está em concordância com a célebre frase de Marx e Engels:”

não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. (MARX

& ENGELS, 2007, p. 94).

Essa consciência tem um pressuposto que é a relação: propriedade privada com a

comunidade de homens. Marx e Engels vão dizer que a primeira forma de propriedade, tanto

no mundo antigo como na Idade Média, é a propriedade tribal. A propriedade privada

moderna corresponde ao Estado moderno que teve que emancipar a propriedade privada em

relação à comunidade, tornando-se assim uma existência particular ao lado e fora da sociedade

civil, o que leva a burguesia a organizar-se nacionalmente e dar a seu interesse médio uma

forma geral:

A burguesia, por ser uma classe não um estamento, é forçada a organizar-se nacionalmente, e não mais localmente, e dar a seu interesse médio uma forma geral. Por meio da emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, o Estado se tornou uma existência particular ao lado e fora da sociedade civil; mas

76Tomando dois escritos de Bruno Bauer sobre a questão judia como pretexto, Marx redige A propósito da questão judaica, em setembro de 1843, no qual é refutada a emancipação puramente política - que não liberta o homem- pois se trata de da emancipação humana, quer dizer superação do Estado e do dinheiro. (COLLIN, 2010, p. 18). Ou seja, é precisamente uma empresa de liquidação da questão judia como questão específica. A emancipação do judeu é a emancipação do homem em geral (COLLIN, 2010, p 15).

77Engels (1820-1895) era filho de um industrial têxtil, o pai queria que ele seguisse a carreira de negócios do pai, tentou afastá-lo da vida universitária, mas ele acabou o curso como ouvinte. Em ocasião de estar na Inglaterra a serviço dos negócios do pai, entrou em contato com a Economia Política e as ideias socialistas por meio do contato com os militantes do Partido cartista, começando a estudar os economistas clássicos ingleses.

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esse Estado não é nada mais do que a forma de organização que os burgueses se dão necessariamente, tanto no exterior como no interior, para garantir recíproca de sua propriedade e de seus interesses. (MARX e ENGELS, 2007, p. 75)

Essa passagem se refere à contradição implícita na forma de organizar-se

nacionalmente que é a condição da burguesia ser forçada a dar a seu interesse médio

(particular) uma forma geral. Isso se justifica porque, uma vez que emancipada a propriedade

privada em relação à comunidade, o Estado atua como garantidor do direito de propriedade,

tanto no interior quanto no exterior das fronteiras nacionais, que as burguesias estabelecem.

Esses elementos de análise se remetem a uma sociedade cindida em classes sociais e se

referem a tensão entre o nacional e o internacional como aparece no Manifesto do Partido

Comunista, de 1848.

O estudo do “Manifesto” elucida como, da perspectiva da expansão capitalista, o

Estado Nação se apresenta de forma contraditória. Ao mesmo tempo em que é uma forma

adequada de organização social para a dominação burguesa, convive com a vocação da

burguesia de se expandir mundialmente:

A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial promoveu um desenvolvimento incomensurável do comércio, da navegação e das comunicações. Esse desenvolvimento, por sua vez, voltou a impulsionar a expansão da indústria. (MARX, 2008, p. 10)

Mais adiante no texto, Marx e Engels mostram como essa necessidade de mercados

sempre crescente, faz com que a burguesia imprima um caráter cosmopolita à produção e ao

consumo, retirando assim, a base nacional da indústria.

Nas análises do Manifesto é importante levar em conta duas convicções básicas de

Marx e Engels: “1) a de que o capitalismo (a burguesia e a grande indústria) desempenhavam

na história um papel eminentemente revolucionário; e 2) que, sob o capitalismo, a sociedade

se polariza em duas classes fundamentais e que, por esta razão, se produz uma simplificação e

universalização da luta de classes”. (MÁRMORA, 1986, p. 18)

Ao se colocar em destaque que esta expansão capitalista está apoiada no papel

revolucionário da burguesia e da grande indústria e a simplificação e universalização da luta

de classes na polarização em duas classes fundamentais no capitalismo, as contradições

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associadas ao caráter universalista da nação78, em 1789, e o caráter particularista que a nação

adquire na consolidação da dominação burguesa se explicitam.

O nacionalismo, e não o comunismo, seria o protagonista da história europeia quando

Marx e Engels escrevem o Manifesto Comunista, na sugestão de RAMOS (2012):

“Pátria, Estado e Nação, muito mais que o suposto espectro do comunismo que segundo Marx recorria na Europa, aparecia como o movimento revolucionário que buscava terminar com a paralisia do Congresso de Viena e de Metternich, realizando a unidade nacional de Alemanha, Itália, e a eliminação dos impérios multinacionais opressores de nacionalidades. Era, portanto, o nacionalismo e não o comunismo o protagonista da história europeia quando Marx escreveu o Manifesto Comunista e o seria para o mundo subjugado Ásia, África e América Latina até o fim do século XX”. (RAMOS, 2012, p. 370)

Na perspectiva de complementariedade e antagonismo Marx afirma que : “com o

desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital, desenvolve-se também o proletariado, a

classe dos trabalhadores modernos, que só sobrevivem se encontrarem trabalho, e só

encontram trabalho se este incrementa o capital.” (MARX, 2008, p. 19)

O proletariado com o desenvolvimento da burguesia, isto é, diante da força expansiva

do capital, adquire uma vocação internacionalista, nas palavras de Marx:

Em suma, os comunistas apoiam em toda parte todo movimento revolucionário contra as condições sociais e políticas atuais. Em todos esses movimentos, põem em primeiro lugar a questão da propriedade, independentemente da forma, mais ou menos desenvolvida, que ela tenha assumido. Por último, os comunistas trabalham por toda parte pela união e o entendimento entre os partidos democráticos em todos os países. Os comunistas não ocultam suas opiniões e objetivos. Declaram abertamente que seus fins só serão alcançados com a derrubada violenta da ordem social existente. Que as classes dominantes tremam diante de uma revolução comunista. Os proletários não têm nada a perder nela, além de seus grilhões. Têm um mundo a conquistar. Proletários de todo os países, uni-vos! (MARX, 2008, p. 63)

78

VIGEVANI (1998) sobre o caráter universalista da nação: Mas a nação tem para ela (burguesia), em 1789, apesar de tudo, um caráter universalista, estando longe, ainda, do caráter particularista que acabará adquirindo. O caráter universal está determinado por duas razões fundamentais: a burguesia ergue-se com legitimidade em representante do povo que constitui a nação, o Terceiro Estado se declara Assembleia Nacional por representar, pelo menos, noventa e seis centésimos da nação, segundo sua própria justificação; a burguesia entende que os valores de que é portadora não são próprios dos franceses, mas da própria humanidade, tanto assim que a Constituição de 1791, assim como a de 1793 e a do Ano III, têm como preâmbulo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. (VIGEVANI, 1998, p. 34)

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É relevante notar que só a última frase: “Proletário de todo mundo, uni-vos!”, se

universalizou como fundamento das estratégias das organizações políticas marxistas, e marcou

o caráter internacionalista da luta proletária. Relevado ao segundo plano nessas estratégias

ficou o entendimento de que a convocação de um mundo a se conquistar pelos proletários está

inserida num contexto em que, nas palavras do próprio Marx, “os comunistas lutam pelos

objetivos e interesses mais imediatos da classe operária, mas, ao mesmo tempo, representam

no movimento atual o futuro do movimento”. (MARX, 2008, p. 62). Essa luta por objetivos e

interesses mais imediatos da classe operária tem um locus de realização do confronto de classe

que é o espaço nacional. Ao mesmo tempo, representa no movimento atual o futuro do

movimento, ou seja, o vir a ser internacionalista. Esse trecho no Manifesto do Partido

Comunista continua da seguinte forma “as diferenças e contradições entre povos desaparecem

cada vez mais com o desenvolvimento da burguesia, com a liberdade do comércio, com o

mercado mundial, com a uniformização da produção industrial e das condições de vida que

lhe são correspondentes. O domínio proletário fará com que tais contradições desapareçam

ainda mais. A ação unificada do proletariado, pelo menos nos países civilizados, é uma das

condições primordiais para sua emancipação”. (MARX, 2008, p. 62)

Destacamos que a nação de domínio proletário, que faz com que as contradições entre

povos desaparecem ainda mais, nos remete aquela “possibilidade positiva” da emancipação

alemã que destacamos anteriormente, no sentido de que entende o proletariado como a classe

que possui um caráter universal em razão de seus sofrimentos universais e que não reivindica

nenhum direito particular e que, portanto, podem se alçar à classe universal, despojado de toda

particularidade, em um movimento em que não pode emancipar-se sem emancipar todas as

outras esferas da sociedade.

Por fim, esse trecho que trata particularmente da questão nacional no Manifesto,

conclui dizendo que “à medida que a exploração de um indivíduo por outro for abolida,

também o será a exploração de uma nação por outra. Com o fim do antagonismo de classes

no interior das nações, desaparece também a hostilidade entre nações”.

Assim, Marx e Engels mostram que “as acusações levantadas contra os comunistas a

partir de pontos de vista religiosos, filosóficos e ideológicos, no geral, não merecem

considerações pormenorizadas” (MARX e ENGELS, 2008, p.40).

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Com esses apontamentos buscamos explicitar que o “Manifesto do Partido

Comunista”, texto que ficou canônico da vertente internacionalista na interpretação marxista,

o apelo internacionalista convive com a orientação de luta proletária contra a burguesia no

plano nacional. A dimensão marcante do marxismo está em captar essa contradição. A partir

da contradição no plano nacional o proletariado se alça a classe universal. Textualmente no

Manifesto, Marx e Engels discorrem:

Não obstante, a luta do proletariado contra a burguesia – não pelo seu conteúdo, mas pela forma – é em primeira instância nacional. O proletariado de cada país tem que derrotar, antes de tudo, sua própria burguesia. (MARX, 2008, p. 27)

Para Marx, nas distintas lutas nacionais do proletariado, eles [os comunistas]

evidenciam e fazem valer os interesses comuns de todo o proletariado, independentes da

nacionalidade. Eles diagnosticavam que as “diferenças e oposições nacionais entre os povos

desaparecem mais e mais com o desenvolvimento da burguesia, a liberdade de comércio, o

mercado mundial, a uniformidade na produção industrial e nas suas relações de vida

correspondentes”. (LETÍZIA, 2012)

Em suas, trajetória de vida e desenvolvimento de elaboração teórica Marx e Engels se

depararam inúmeras vezes com a questão nacional. Destacamos a título de ilustração a

passagem em que Engels vivencia o internacionalismo proletário:

Nenhum operário na Inglaterra - nem na França, diga-se de passagem - tratou-me como um estrangeiro. Com grande alegria, constatei que sois imunes a essa maldição que são a estreiteza e o preconceito nacionais e que, no fim das contas, são apenas egoísmo em larga escala. Verifiquei vossa simpatia por quem quer que, inglês ou não, dedique honestamente suas forças em prol do progresso humano; verifiquei vossa admiração por tudo o que é nobre e bom, tenha ou não surgido em vossa terra; verifiquei que sois homens - não membro de uma nação isolada, puramente ingleses -, membros de grande e universal família da humanidade, verifiquei que reconhecestes que vossos interesses coincidem com os interesses do gênero humano. E é como tais, como membros dessa humanidade "una e indivisível", como seres humanos no sentido mais pleno da expressão, que eu como muitos outros no continente, vos saudamos por vossos progressos em todos os campos e vos auguramos um rápido êxito. (p. 38, Boitempo, 2010).

O trabalhador para além das fronteiras nacionais é membro de grande e universal

família, reconhecimento esse que só é possível no capitalismo, que conferiu essa

universalidade aos homens. São proletários ingleses, franceses, alemães, a partir das

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contradições entre capital e trabalho que operam em seus países, se põem em movimento pela

causa comum da Humanidade. Reconhecem-se antes como povos que comem (coisas

distintas), moram (de maneira diferente), se vestem (cada qual com seus trajes), cantam suas

canções e não conseguem vivenciar plenamente essa sua existência ou realizar sua

humanidade pela opressão capitalista que os limita a serem franceses, ingleses ou alemães.

Outra formulação emblemática sobre a questão nacional encontramos em Marx quando se

refere à “questão irlandesa e a internacional” (1870):

Eis porque a Internacional deve sempre dar prioridade ao conflito entre a Inglaterra e a Irlanda, tomando abertamente o partido desta última, a tarefa especial do Conselho Central em Londres é despertar na classe operária inglesa a consciência de que a emancipação nacional da Irlanda não é para ela uma abstrata questão de justiça e de humanismo, mas a condição primeira de sua própria emancipação social. (MARX, 1980, p. 23)

A despeito de haver um certo vazio sobre a questão nacional na obra de Marx e Engels,

o método de relacionar o geral e o particular, contingente e conteúdo histórico conferem

grande coerência na prática política e no lugar “do nacional” em processos de emancipação na

elaboração teórica – ainda que possa ter se equivocado em algumas situações.

Tomamos como exemplo o texto conhecido como Crítica ao Programa de Gotha,

(1891), para pontuar a “aplicação do método” na atividade política que envolve dilemas entre

a nação e a revolução.

Nesse texto, encontramos um exercício de Marx para fazer as mediações entre essa

análise que prioriza a dimensão “homem social” e a dimensão da “luta de classes” num

processo político concreto: no programa político do Partido Alemão.

O Programa afirma categoricamente no parágrafo 4: “A libertação do trabalho deve ser

obra da classe operária, em face da qual todas as outras classes que não formam mais do que

uma massa reacionária”. (2009, p. 19). Marx pondera que essa estrofe é tirada do preâmbulo

dos estatutos da Internacional que diz que “a emancipação da classe dos trabalhadores será

obra dos próprios trabalhadores; ao passo que a classe dos trabalhadores devem emancipar

o trabalho”. E ele mesmo problematiza: “E o que vem a ser emancipar o trabalho? (Marx,

2009, p. 19). A estrofe primeira do Programa do Partido Alemão afirma: “O trabalho é a fonte

de toda a riqueza e de toda a cultura, e como o trabalho produtivo só é possível na sociedade

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e pela sociedade, o seu produto pertence integralmente por direito igual a todos os membros

da sociedade”. (MARX, 2009, p. 10). Marx não contemplado com essa formulação, inspirada

na sua própria produção teórica, comenta criticamente essa estrofe: ““trabalho não é a fonte

de toda riqueza, a natureza é a fonte dos valores de uso (que ao fim e ao cabo são a riqueza

real) tanto quanto o trabalho, ele próprio expressão de uma força natural, a força do homem.

O trabalho produtivo só é possível na sociedade e pela sociedade, desse modo o trabalho só é

a fonte da riqueza e da cultura se for um trabalho social. O trabalho isolado pode criar

valores, mas não pode criar cultura nem riqueza. Na medida em que o trabalho se transforma

em trabalho social e se converte assim em fonte de riqueza e de cultura, desenvolvem-se, no

trabalhador, a pobreza e o desamparo, no não – trabalhador, a riqueza e a cultura. Na

sociedade capitalista está criada as condições materiais e outras que permitem e obrigam o

trabalhador a quebrar essa maldição”. (Marx, 2009, p.11)

Nesse comentário de Marx, fica registrado que a mediação entre a teoria do “Homem

Social” e o conteúdo emancipatório da luta política deve ser cuidadoso, não é uma aplicação

imediata de uma suposta ontologia que nega as classes sociais. O conteúdo da luta política na

sua dimensão emancipatória para buscar argumentar o fundamento da luta da classe que se

move contra a exploração do capital em todas e qualquer de suas formas concebíveis de

expropriação do trabalho social. O conteúdo da luta de classe deve ser entendido pela relação

do homem com o trabalho, o trabalho como transformação intencional da natureza para

produção de instrumentos necessários à existência material dos homens. Relação essa que

contém também a determinação de que os homens, ao produzir, não apenas transformam a

natureza como também transformam a si mesmos e suas relações sociais, e é neste sentido que

entendemos os Homens como seres históricos e sociais. Se o trabalho é o fundamento da vida

social e de todo processo histórico, é a partir das relações que os homens estabelecem entre si

nas transformações da natureza que surgiram determinadas ideias, valores, instituições. Ao

modificar a natureza para satisfazer suas necessidades o homem também se modifica, e esse

processo dialético de transformação que distingue o homem das outras formas históricas.

(Marx, 1975, p.19)

A teoria social de Marx que entende o Homem como um conjunto de possibilidades,

não é uma estrutura antropológica fechada, é uma estrutura aberta que é transformada e pode

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ser aperfeiçoada no processo social, é uma teoria muito favorável à luta de classe,

principalmente para quem faz luta política. O Homem como produto e sujeito ativo da

sociedade, se individualmente pouco pode, coletivamente faz a história (não nas condições que

escolhem), sendo esta a base da teoria social que entende o Homem como o ser da práxis.

Observemos mais uma contestação de Marx, que vai ao encontro dos interesses de

nosso trabalho. O parágrafo 5 do Programa do Partido Unificado Alemão, afirma: A classe

operária trabalha para a sua libertação, em primeiro lugar, no quadro do atual Estado

Nacional, sabendo bem que o resultado necessário dos seus esforços comuns aos operários de

todos os países civilizados será a fraternidade internacional dos povos. (GOTHA, p.20).

Diante dessa afirmação, Marx pondera que: é absolutamente evidente que, para poder lutar, a

classe operária tem de se organizar enquanto classe no seu próprio país, e que os respectivos

países são o teatro imediato de sua luta. É nisso que a luta da classe é nacional, não no seu

conteúdo, mas como diz o Manifesto Comunista, “ na sua forma”. (Marx, 2012, p 20)

Esse trecho nos parece bastante esclarecedor que de não há uma oposição entre

internacionalismo proletário e o caráter nacional da luta de classe, não em seu conteúdo, mas

em sua forma.

Em nosso estudo sobre o caráter contraditório do Estado Nação em Marx e Engels,

procuramos abordar esse elemento que nos aparece fundamental e presente nas análises de

Marx e Engels, que são as relações abstrato-concreto e forma-conteúdo.

Marx e Engels partem da análise dos indivíduos concretos, e os indivíduos concretos

da sociedade capitalista são Homens (humanidade) cindidos. O capitalismo fez do homem

universal, pois se trata de uma humanidade que vive relações materiais que dependem de uma

rede de comércio e produção mundial, e ao mesmo tempo, essa humanidade vive cindida entre

exploradores-explorados e entre indivíduos-classes para ser a humanidade que é neste tempo

histórico, de modo que os indivíduos cindidos só se alçam a humanidade universal quando se

põe em movimento contra o isolamento imposto pelo processo produtivo capitalista. Esse

movimento é necessariamente o confronto com o capital.

Destacamos, na perspectiva marxiana que o conteúdo da luta, em última instância, é a

superação do homem cindido da sociedade de classes e a denúncia da exploração: a luta contra

o capital. E essa formulação é contemplada na estratégia política dos trabalhadores, não como

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fundamento ontológico, mas como horizonte estratégico, uma vez que essa luta que alça

interesses da humanidade inteira é organizada a partir das contradições do desenvolvimento do

capitalismo em cada Estado Nação. Como disse Marx, é absolutamente evidente que, para

poder lutar, a classe operária tem de se organizar enquanto classe no seu próprio país, e que os

respectivos países são o teatro imediato de sua luta.

Quando falamos em classe trabalhadora e nos referimos a interpretação marxista que se

dedica a tratar a questão da consciência de classe, não queremos nos alinhar a uma

interpretação ontológica da teoria de Marx, mas nos marcos de uma teoria social, e poder

afirmar que sociedade que não se coloca em oposição à exploração, não tem consciência. Ao

se colocar em contraposição, a classe se reconhece como submetida a uma mesma necessidade

(trabalhador se reconhece enquanto trabalhador, ou seja, como os que estão submetidos à

forma salário para garantir sua existência material). E, por sua vez, a burguesia se reconhece

como a classe que tem possibilidade de exercer o poder desde o Estado, para garantir as suas

propriedades, entre elas a fundamental, a propriedade dos meios de produção. Esse lugar

ocupado no processo produtivo é chamado por uma parte da tradição marxista de consciência

de “classe em si”. Quando a classe se coloca em movimento movido por interesses maiores

que cada homem individualmente, a consciência assume outra dimensão que é a chamada

consciência de “classe para si” (quando a classe se define enquanto organização de classe com

a identificação de um inimigo comum).

O limite desse esquema, que foi um limite identificado por Marx, é o fato de haver

exploração não faz com que apareça o antagonismo de classe e não faz com que exista

consciência de classe. Por exemplo, o feudalismo não foi derrubado porque se reivindicava o

capitalismo. A reivindicação era o fim da desigualdade em relação aos nobres que se havia

tornado insuportável. A conjunção de interesses particulares compõe interesse social comum,

e a superação do capitalismo se coloca objetivamente quando esse modo de produzir e

reproduzir a base material da existência da sociedade se torna insuportável para a maior parte

dessa sociedade. Essa dimensão do “insuportável” se dá nos marcos da luta de tarefas

democráticas a serem realizadas dentro dos territórios nacionais que colocam os trabalhadores

em movimento de ação histórica.

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Destacamos em LETIZIA (2009), uma síntese de inspiração marxiana do que significa

recorrer ao método de Marx na luta política:

Recorrer ao método de Marx é recuperar a simples e fundamental percepção de que a superação das contradições do capitalismo só poderá ser realizada pelos próprios produtores diretos, isto é, pelos trabalhadores que fazem o sistema funcionar na prática, e não pelos que pensam soluções para os problemas criados pelo capitalismo. (Letizia, 2009, p.19)

De acordo com a formulação de Marx é a ação histórica que condiciona a consciência

de classe. Nesse sentido, talvez não seja oportuno falar em uma “missão histórica do

proletariado” porque essa formulação traz consigo a noção de destino pré-estabelecido dos

trabalhadores, que soa no debate político como programa místico da classe trabalhadora

salvadora e contribui para esvaziar o debate de conteúdo. Pode-se dizer que a luta dos

trabalhadores contra o capital é o sentido do processo histórico, no caso, o sentido da

superação do modo de produção capitalista. A luta dos trabalhadores só adquire dimensão

histórica quando é de massa e não é razoável pretender que a massa enfurecida com abusos da

exploração capitalista perceba o fim último de sua luta. A consciência do conjunto do

proletariado se apresenta como consciência do processo de luta contra o capital. Por isso, a

luta política se dá por reivindicações populares e nacionais e não reivindica, de imediato,

como motor do processo “o fim último de sua luta”: o socialismo .

O nível de consciência do proletariado é resultante dos efeitos “devastadores” e

“degradantes” do sistema capitalista sobre a consciência de classe. A classe operária recebe

consciência como desdobramento da própria classe operária em si, de modo que o projeto

estratégico da classe não tem como ser algo estático. Os interesses individuais são

contraditórios com os interesses da classe, afinal, a classe operária está subordinada ao

capitalismo, de modo que seus interesses estão submetidos ao sistema concentrador de renda

que pressiona o salário para o nível mais baixo da sobrevivência possível, o que intensifica a

contradição entre o interesse individual e o interesse de classe. Dessa forma, o sistema

capitalista tende a contrapor o indivíduo contra a classe de modo que é só quando há

movimento a classe se manifesta.

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Quando a sociedade se coloca contra o capitalismo já não se coloca como

trabalhadores (proletários) individuais, mas sim como humanidade, ou seja, não faz ideia de si

como a ideia que o trabalhador faz de si, enquanto subjugado à exploração capitalista. A

sociedade que se coloca em movimento movido por aspirações maiores que cada homem

individualmente, não difere cada homem da humanidade inteira.

O que move luta por independência na América Latina não é um projeto abstrato, mas

sim a satisfação das necessidades concretas e dos interesses dos humildes e marginalizados,

que ao se alçarem nesse movimento, necessariamente em confronto com o capital, alcançam a

vocação internacionalista proletária ao participar da consciência universal, o que imprime um

caráter anti-capitalista a essas lutas nacionais e democráticas.

O processo de transitoriedade em formações sociais ou modos de produção está

relacionado à perspectiva do desenvolvimento de contradições como qual sintetizado por

Marx no célebre parágrafo do Prefácio a Introdução da Crítica a Economia Política. Baseado

em investigações do processo histórico Marx chega a um resultado em seus estudos resumindo

numa formulação que aponta para um sentido histórico que ao chegar a uma determinada fase

de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações

de produção existentes e se abre, assim, uma época de revolução social.

O conteúdo de desenvolvimento das contradições implícito no tema da Libertação

Nacional na história da América Latina aponta para uma perspectiva de sentido histórico

original com relação à formulação clássica de Marx.

Marx concebeu o socialismo como resultado do desenvolvimento. Hoje para o mundo subdesenvolvido o socialismo já é inclusive condição do desenvolvimento. Porque se não se aplica o método socialista – colocar todos os recursos naturais e humanos do país a serviço do país, direcionar os recursos na direção necessária para alcançar os objetivos sociais que buscamos – se não fazemos isso, nenhum país sairá do subdesenvolvimento.” (CASTRO, p. 133,1970) 79

Se no marxismo clássico o desenvolvimento era condição do socialismo, para os países

subdesenvolvidos o socialismo é condição do desenvolvimento. Ponderamos que talvez não o

79Fidel Castro aos graduados do Instituto de Economia da Universidad de La Habana, em 20-12-1969.

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socialismo, mas a realização de aspirações profundas do povo latino-americano que se move

pela construção de nações democráticas na qual a relação social de forças seria bem mais

favorável ao proletariado, relação que é a condição fundamental para qualquer possibilidade

de realização do socialismo.

A diferença existente na concepção de transição socialista elaborada em regiões, onde

se deu a gênese e desenvolvimento do capitalismo e a produzida na parte do mundo que foi

arrastada e arrasada pela expansão mundial do capitalismo, conduziu durante o século XX a

grandes desacertos teóricos e políticos que até hoje são flagrantes na determinação do sujeito

histórico, formas de luta e identificação do inimigo. Vamos nos concentrar num aspecto dessa

diferença, qual seja o entendimento sobre questão nacional.

Para identificar a diferença entre dois sentidos que a questão nacional assume nesses

dois processos históricos recorremos à contribuição de Fernando Martinez Heredia no texto

Concepto de Socialismo (2005), no qual expõe as duas maneiras diferentes de entender o

socialismo no mundo do século XX. A primeira é a formulação clássica do marxismo assim

apresentada pelo autor:

A primeira é um socialismo que pretende mudar totalmente o sistema de relações econômicas, mediante a racionalização dos processos de produção e de trabalho, a eliminação do lucro, o crescimento sustentável das riquezas e a satisfação crescentes das necessidades da população. Propõe-se eliminar o caráter contraditório do progresso, cumprir o sentido da história, consumar a obra da civilização e o ideal da modernidade. Seu material cultural prévio foram três séculos de pensamento avançado europeu, que aportaram os conceitos, as ideias acerca das instituições guardiãs da liberdade e da equidade, e a fonte de crenças cívicas do Ocidente. Este socialismo propõe consumar a promessa não cumprida da modernidade, introduzindo a justiça social e a harmonia universal. Para triunfar, necessita um grande desenvolvimento econômico e uma grande libertação dos trabalhadores, até o ponto em que a economia deixe de ser medida pelo tempo de trabalho. Neste socialismo a democracia seria posta em prática num grau muito superior ao alcançado pelo capitalismo, inclusive nos projetos mais radicais. (HEREDIA, 2005, p. 17, tradução nossa).

Heredia (2005) chama atenção para o fato de que no ambiente desse primeiro

socialismo, portador de um sentido de consumar a obra da civilização e o ideal da

modernidade, se privilegia a significação burguesa do Estado, a nação e o nacionalismo

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relacionados a instituições de dominação e manipulação.

O nacionalismo, como conceito derivado do processo histórico referente à gênese das

classes antagônicas e complementares, burguesia e proletariado, carrega essa contradição que

as fronteiras nacionais assumem na lógica da racionalidade moderna.

O nacionalismo, política e ideal triunfante em grande parte do continente e que parecia próximo a generalizar-se, seria superado pela ação do proletariado pan-europeu, que conduziria finalmente o resto do mundo a uma nova ordem na qual não haveria fronteiras. As ideologias burguesas do progresso e da civilização podiam ser aceitas pelos proletários porque eles as voltariam contra o domínio burguês: o socialismo seria a realização da racionalidade moderna.(HEREDIA, 2005, p. 04, tradução nossa)

Essa concepção de nacionalismo traz implícita conotação de um sujeito histórico

resultado de um processo de desenvolvimento do capitalismo, capaz de levar a cabo una nova

onda revolucionária como fora a da burguesia, de alcance mundial, mas com um conteúdo

oposto, libertador de todas as opressões e de todos os oprimidos. Com relação a esse sujeito

histórico, portador das aspirações colocadas no programa da modernidade, o internacionalismo

proletário assume centralidade nos projetos políticos.

O interessante é comparar com projetos políticos que estão obrigados a ir muito além

do que os ideais da razão e da modernidade e por isso devem mover-se em outro terreno,

como sugere Heredia:

A transição socialista dos países pobres deveria ser então o que a primeira vista pareceria um paradoxo: o socialismo que está a seu alcance e o projeto que pretende realizar estão obrigados a ir muito além do cumprimento dos ideais da razão da modernidade e, de entrada, devem mover-se em outro terreno. Seu caminho exige negar que a nova sociedade seja o resultado da evolução do capitalismo, negar a ilusão de que apenas a expropriação dos instrumentos do capitalismo permitirá construir uma sociedade que o “supere” e negar-se a “cumprir etapas intermediárias” supostamente “anteriores” ao socialismo. É dizer, a este socialismo que lhe é inevitável trabalhar pela criação de uma nova concepção da vida e do mundo, ao mesmo tempo em que se empenha em cumprir com suas práticas mais imediatas. (HEREDIA, p.20, 2005)

Essa segunda formulação sobre socialismo que Heredia nos convida a pensar é

precisamente a que traz um conteúdo original com relação a essa primeira formulação clássica

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do marxismo, ao levar em conta o tema da libertação nacional.

A outra maneira de entender o socialismo tem sido a de conquistar em um país a libertação nacional e social, derrocando o poder estabelecido e criando um novo poder, pondo fim ao regime de exploração capitalista e seu sistema de propriedade, eliminando a opressão e abater a miséria, e efetuando uma grande redistribuição das riquezas e da justiça. Suas práticas têm outros pontos de partida. Suas conquistas fundamentais são o respeito à integridade e à dignidade humana, a obtenção de alimentação, serviços de saúde, educação, emprego e demais condições de uma qualidade de vida decente para todos, e a implantação da prioridade dos diretos das maiorias e das premissas da igualdade efetiva das pessoas, além de seu lugar social, gênero, raça e idade. Garante sua ordem social e certo grau de desenvolvimento econômico e social, mediante um poder muito forte e uma organização revolucionária a serviço da causa, honestidade administrativa, centralização dos recursos e sua destinação aos fins econômicos e sociais selecionados ou urgentes, busca de relações econômicas internacionais menos injustas, e planos de desenvolvimento. (HEREDIA, 2005, p.17, tradução nossa)

Sem desmerecer a centralidade da contradição entre capital e trabalho, esse socialismo

deve garantir em seu processo de transição a satisfação de necessidades básicas e, ao mesmo

tempo, ser criativo para fundar instituições e práticas democráticas no bojo de uma nova

cultura “diferente e oposta ao do capitalismo”:

Este socialismo deve recorrer um duro e longo caminho visando garantir a satisfação de necessidades básicas, a resistência eficaz frente a seus inimigos e às agressões e atrativos do capitalismo, e enfrentar as graves insuficiências emergentes do chamado subdesenvolvimento e dos defeitos de seu próprio regime. Ao mesmo tempo que realiza todas essas tarefas - e não depois - deve fundar instituições e cultura democráticas, e um estado de direto. Em realidade está obrigado a criar uma nova cultura diferente e oposta à do capitalismo. (HEREDIA, p.18, 2005)

Além de não pode depreciar o esforço civilizatório esse segundo modo de socialismo tem

como fundamento um projeto libertador que deve combinar com êxito as aspirações de justiça

social com as de liberdade e autodeterminação nacional.

No ambiente do segundo (socialismo), a libertação nacional e a plena soberania têm um peso crucial, porque a ação e o pensamento socialistas deve haver derrotado ao binômio dominante nativo-estrangeiro, libertar as relações e as subjetividades de sua colonização, e arrebatar à burguesia o controle do nacionalismo e do patriotismo. Para o segundo socialismo é vital combinar com êxito as ânsias de justiça social com as de liberdade e autodeterminação nacional. O poder do Estado lhe é indispensável, suas funções aumentam fortemente e sua imagem cresce muito,

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às vezes até a graus desmesurados. (HEREDIA, p. 18, 2005)

Destacamos que enquanto a exploração do trabalho assalariado e a missão do

proletariado têm lugares prioritários na ideologia do primeiro socialismo, para o segundo, o

central são as reivindicações de todos os oprimidos, explorados, marginalizados ou

humilhados em derrotar o binômio dominante nativo-estrangeiro, libertar as relações e as

subjetividades da colonização, o que passa por expropriar da burguesia, o controle do

nacionalismo e do patriotismo.

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Considerações finais

O capitalismo no pós-segunda Guerra Mundial se reorganiza a partir do

keynesianismo, do Estado de Direito e da democracia liberal burguesa, que admite em alguns

países centrais, a organização dos trabalhadores em tempos de prestígio das organizações

burguesas. O mundo do pós-segunda Guerra Mundial do lado capitalista oferece aos povos a

alternativa de projetos de desenvolvimento nacionais que logo entram em conflito com

movimentos de libertação nacional e que criam nações livres e miseráveis. A crise do sistema

colonial, e o consequente processo de descolonização de Ásia e África, criou a situação da

multiplicação do número de países independentes politicamente e sem perspectiva de

desenvolvimento econômico capitalista. Essa situação coloca a necessidade de reinvenção do

capitalismo com relação as suas formas de dominação e exploração.

O neocolonialismo é a dominação pelo desenvolvimento econômico, correspondente às

necessidades de reprodução do capitalismo nessa nova fase de expansão com o consentimento

das burguesias nativas. O neocolonialismo passa a ser seletivo e fazer uso do direito

internacional para exercer sua dominação, de modo que a autodeterminação dos povos vai

perdendo terreno. Outra característica do neocolonialismo é a guerra cultural (sem abrir mão

da importância militar) que universaliza um processo de homogeneização dirigida pelo

imperialismo estadunidense. É a homogeneização do viver, do sentir, do entender, da

capacidade de formação de opinião, controle dos desejos e pensamentos.

Em época de Guerra Fria, a ideologia capitalista é capaz de universalizar a cultura da

dominação a partir dos EUA e suas áreas de influência, por meio da democratização das

formas culturais, da produção e distribuição da cultura e da homogeneização dos padrões de

consumo. A transformação de povo em público também aponta para imobilidade das massas

populares, devido a esse processo hegemônico que retira a capacidade crítica de reflexão. Por

outro lado, nesse período, o marxismo se universaliza, a partir da URSS, como a orientação à

sua área de influência é o da “coexistência pacífica entre socialismo e capitalismo” e da

“classe contra classe”. Essa universalização do marxismo tinha como consequência política

uma paralisia do movimento dos povos, como se tivessem que aguardar as forças produtivas

se desenvolverem, em seus respectivos países, para que a perspectiva da revolução pudesse ser

colocada.

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A reinvenção da luta contra o capitalismo se dá nos marcos do sentimento de

autodeterminação dos povos, do nacionalismo e da soberania. Esse conteúdo não vem de um

sentimento, mas, de experiências concretas de Revoluções radicais que se dão a partir dessa

premissa. Exemplos como: China, Cuba, Vietnã e Argélia, colocam a perspectiva de

universalização do marxismo a partir das formações sociais de países vítimas da colonização e

neocolonização capitalista.

Podemos dizer que a cultura do capitalismo abandona ideias de progresso e civilização

do capitalismo originário, sucumbida na individualização, competitividade e meritocracia que

divide a sociedade em indivíduos de sucesso ou de e fracasso. Em alguma medida, o progresso

civilizatório é “deixado” para os socialistas, já que progresso e civilização já não têm o papel

que representavam na fase expansiva do capitalismo originário. O progresso civilizatório

socialista seria uma saída necessariamente coletiva, com vistas a criar uma cultura diferente e

oposta à cultura capitalista.

Nesse cenário, a diversidade de pensamento é um campo de luta marxista. As

chamadas “Revoluções do 3º Mundo”, a partir de suas particularidades, impõe a necessidade

do pensamento crítico, ou seja, um marxismo que seja útil para fazer a Revolução e que sirva

para transformar as relações sociais e as pessoas. Além disso, esses processos rompem com as

perspectivas que paralisam o movimento das “massas populares” e colocam, a partir da

experiência prática da Revolução Cubana, a perspectiva dos povos se colocarem em

movimento no sentido de sua libertação. E são desses processos concretos que se desdobra

nova forma de organização e concepção de socialismo, a partir da libertação nacional.

Florestan Fernandes adverte que “a opção pelo socialismo fixou-se, em Cuba, como

parte da síndrome anticolonialista e anti-imperialista. (...) O povo cubano converteu a

revolução numa forma suprema de afirmação nacional, o que contribuiu para tornar o

socialismo uma realidade histórica irreversível. Em consequência, o orgulho nacional entra

em jogo tanto na defesa do socialismo quanto na ambição relativa de fazer da revolução

cubana uma manifestação exemplar de socialismo. É desse ângulo que se deve entender a

serenidade com que são aceitos os prolongados sacrifícios que a implementação do

socialismo vem exigindo e a esperança de que se possa acelerar o salto final, em direção ao

comunismo”. (FERNANDES, 2007, p. 323)

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Os desafios enfrentados pela Revolução Cubana historicamente e os dilemas atuais

tornam ainda mais complexas as questões sobre soberania e resistência anticapitalista. Em

nosso estudo buscamos reunir elementos para reconstituir um legado no pensamento crítico da

América Latina sobre a questão nacional que ressignifica o lugar das tarefas nacionais,

democráticas e populares nos processos de luta da América Latina. Ainda que o processo

cubano não tenha esgotado a realização dessas tarefas, a perspectiva de Revolução Socialista

de Libertação Nacional mobiliza as contradições profundas capazes de colocar os povos do

continente num movimento de aspirações emancipatórias.

Neste trabalho, fizemos um recorte específico no pensamento crítico latino-americano

sobre questão nacional, relacionada às lutas de libertação nacional. Sabemos, no entanto, que

existe um leque muito grande de abordagens que poderiam ser mobilizadas, como por

exemplo, as contribuições de Ernesto Che Guevara. De maneira nenhuma, esgotamos a

discussão nesse estudo, mas buscamos reconstituir um legado de pensamento crítico marxista

que abre um campo de investigações, as quais consideramos importante para os marxistas-

militantes-revolucionários da América da Latina. Os marxistas-militantes-revolucionários dos

processos de luta da América Latina dispõem de um método para abordar a questão nacional

com sínteses entre suas determinações universais e particulares, a partir do qual foram

elaboradas as formulações originais nos períodos de 1920/30 e 1960/70. Além de contribuir

com o marxismo a partir dessa postura metodológica, contribuem para enriquecer e radicalizar

o pensamento crítico marxista por meio da ação política e da transformação da realidade. Os

marxistas-militantes-revolucionários da América Latina não podem prescindir de levar em

conta o legado de pensamento crítico das contribuições da Teologia da Libertação, da arte de

resistência do teatro do oprimido, da educação popular e têm a necessidade de processar os

resquícios de dogmatismo que deturparam a apropriação do método marxista como ferramenta

de luta no nosso continente. Reivindicar-se herdeiros do pensamento radical de José Martí e

Simon Bolívar, ter compromisso com o resgate do marxismo pensado com cabeça própria e

com as bandeiras erguidas pelos movimentos revolucionários dos anos 60-70, são movimentos

teórico e práticos que apontam para a possibilidade de (re)colocar a perspectiva da revolução

relacionada a projetos nacionais, hoje tão necessária diante dos limites dos projetos nacionais

desenvolvimentistas ou neodesenvolvimentistas na América Latina.

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