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Revista Escritos e Escritas na EJA | N. 10 | 2018.2| |25 RELATO REFLEXIVO SOBRE A PRÁTICA EM TOTALIDADES INICIAIS: um olhar para a escola da EJA Danielle dos Santos Campos [email protected] RESUMO: O seguinte artigo discorre acerca das experiências obtidas ao longo do estágio obrigatório do curso de Pedagogia da UFRGS. Esse foi realizado em uma escola pública municipal de Porto Alegre, nas totalidades iniciais do ensino fundamental da E- ducação de Jovens e Adultos EJA. Partiu de uma autorreflexão sobre o estágio, pontuando a docência e a ação pedagógica da instituição escolar que se expressa como agente cultural na vida dos seus educandos. PALAVRAS-CHAVE: EJA. Prática Reflexiva. Estágio Curricular.

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Revista Escritos e Escritas na EJA | N. 10 | 2018.2| |25

RELATO REFLEXIVO SOBRE A PRÁTICA EM TOTALIDADES INICIAIS:

um olhar para a escola da EJA

Danielle dos Santos Campos [email protected]

RESUMO: O seguinte artigo discorre acerca das experiências obtidas ao longo do estágio obrigatório do curso de Pedagogia da UFRGS. Esse foi realizado em uma escola pública municipal de Porto Alegre, nas totalidades iniciais do ensino fundamental da E-ducação de Jovens e Adultos – EJA. Partiu de uma autorreflexão sobre o estágio, pontuando a docência e a ação pedagógica da instituição escolar que se expressa como agente cultural na vida dos seus educandos.

PALAVRAS-CHAVE: EJA. Prática Reflexiva. Estágio Curricular.

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PRIMEIRAS PALAVRAS

O referido estágio obrigatório do curso de Pedagogia da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul – UFRGS – foi realizado em uma escola pública, municipal,

localizada na zona noroeste de Porto Alegre, no bairro Humaitá, em turma de

totalidades iniciais – T1 e T2.

Durante minha trajetória no curso de Pedagogia, em uma disciplina eletiva de

Alfabetização de Jovens e Adultos, através da indicação do professor, que atualmente é

meu orientador de estágio, Rafael Arenhaldt, conheci a escola que estagiei. No

primeiro momento já aconteceu o encantamento, pela acolhida, receptividade e as

diferentes formas de expressão artística e crítica nas paredes realizadas pelos próprios

educandos. Realizei cinco observações e uma prática juntamente a uma colega que

esteve comigo durante toda minha caminhada até chegar ao estágio. A segunda

impressão foi impactante, pois não esperava uma classe especial, segundo a direção da

escola que na época nos orientou, 90% dos educandos eram especiais. Algumas

deficiências eram mais visíveis, outras questões de saúde mental e cognitivas que não

ficaram explícitas, mas mesmo com o choque de realidade, o envolvimento aconteceu

rapidamente, como num passe de mágica. Na prática de uma noite, tivemos algumas

propostas que não alcançaram o objetivo necessário, mas nossa troca com os

educandos foram muito efetivas, conseguimos realizar um ótimo trabalho que resultou

significado para eles. Naquele momento a turma estava grande, havia educandos bem

participantes que fizeram um ótimo movimento durante o tempo que estivemos

juntos. Explicitando como foi importante na minha formação esta experiência, no sexto

semestre tínhamos a escolha de fazer prática na Educação de Jovens e Adultos (EJA),

foi a oportunidade de retornar à turma que foi tão aberta e disponível para estudantes

em formação.

Com a prática de uma semana, percebi que mesmo com a diminuição

expressiva de educandos na turma, sua essência não havia se perdido, o trabalho que

produzi com minha colega foi pertinente para confirmar que naquela turma realizaria

meu estágio obrigatório.

As expectativas de iniciar o estágio eram máximas, muito entusiasmo e

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encantamento, mas havia também o receio de realizar um estágio sozinha. Por um

tempo fiquei aflita, paralisada, até conseguir refletir e me assegurar na bagagem de

conhecimentos e de práticas na EJA que fui construindo ao longo do curso, e que sim,

estava apta a ser protagonista da minha docência. Outra ponderação que me

fortaleceu, foi o vínculo já estabelecido com alguns educandos, que desde a

observação davam um retorno confiante sobre minha presença em sala de aula. Penso

aqui na importância do vínculo para uma prática efetiva, já que os educandos confiam

em ti e no teu trabalho.

Para além, esse vínculo procede a partir do diálogo, não chegamos a ele sem

dialogar e conhecer os educandos, uma “prática dialógica” (Freire, 1991). Essa prática

através do diálogo, como segue afirmando Paulo Freire, não nos torna iguais, mas que

por meio deste, aprendemos uns com os outros.

Diálogos com a escola

É de suma importância conhecermos o entorno e os sujeitos presentes na

escola. Um entorno que passou por processos de transformação bem evidentes desde

2012 com a construção do novo estádio de futebol gaúcho – Arena do Grêmio. Sujeitos

que moram nas proximidades, no bairro, nas diferentes vilas próximas tiveram impacto

que os atingiu fortemente. Temos ponderações negativas e positivas. As negativas

dizem respeito a realocações de pessoas, espaços públicos, que foram retirados do

entorno. Outro ponto negativo é o atingimento aos moradores e moradoras, com as

torcidas organizadas e os torcedores, a população do entorno, que são sujeitos que

vivem em vulnerabilidade social, passaram a sentir dentro do seu ambiente de convívio

o preconceito e o racismo. Deve-se levar em conta que o local onde está inserida a

Arena, vivem os sujeitos de baixa renda, é uma zona periférica, vila. Em contraponto,

temos o aumento de trabalho e renda autônoma. Educandos da escola faltam às aulas

em dias de jogo para trabalhar. Assim como o comércio local também aumentou,

bares, restaurantes e as lancherias do entorno, que são de torcedores organizados,

mas também de moradores das proximidades.

Referente à organização da escola e seu funcionamento, ela está aberta de

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segunda a sexta-feira, nos três turnos diários, manhã, tarde e noite, das 8h às 12h, das

13h15min as 17h15min e a noite de segunda a quinta-feira das 19h às 22h e nas

sextas-feiras até 20h30min. Oferece regularmente almoço e janta. A janta é servida às

20h, durante o intervalo das aulas. De segunda a quinta-feira há aula normal, na sexta-

feira são as reuniões pedagógicas com direção, coordenação pedagógica e grupo

docente.

Nas sextas-feiras, as reuniões são organizadas por pautas, sendo elas, avisos,

diálogo sobre possíveis avanços e planejamento semanal. Em uma hora e meia são

muitos tópicos a ser discutidos, mas que consegue ser explorado e resolvido. Os

avanços são semanais, se analisa cada turma, de cada totalidade, para pensar possíveis

avanços, aqueles educandos indicados por um ou dois professores que ficam em

observação durante uma semana para ver seu desenvolvimento e empenho nas aulas.

A escola não tem o enfoque das aprendizagens nos conteúdos e sim no

desenvolvimento e participação diária de cada educando e como demonstra suas

aprendizagens, assim como justifica em seu PPP “se aprende de forma interdisciplinar,

pois se constrói conhecimento a partir da relação com o outro e com o objeto a ser

conhecido” (PPP, 2011, p.8)

Das aproximações com Freire durante o curso e conhecendo a metodologia da

escola, a constatei como agente cultural, pela sua promoção de eventos coletivos como

rodas de conversa, em suma, momentos de trocas onde toda a escola se reúne –

professores e educandos – para partilhar momentos de experienciação, conversa,

música, comida, brincadeiras, esportes, filmes, apresentações, aulas abertas, entre

outros. Existe nesta instituição um evento chamado BOTEJA – Boteco da EJA –, que

pude presenciar pela primeira vez. Tem em sua finalidade o momento de partilha de

comida, música e a interação entre professor-educando nas mesas, sem distinções e

separações por turmas ou totalidades. Foi uma ocasião bem rica, pois pude conversar e

estabelecer relações com os educandos de outras totalidades além das iniciais. Comi

juntamente a eles, dancei com duas jovens educandas minhas, vi nesta festividade o

caráter da escola e sua preocupação com o bem estar dos seus educandos, e que em

passinhos pequenos, mas contínuos, vamos transformando a educação de dentro da

escola para fora, na sociedade. Ao final do BOTEJA, realizaram uma roda de conversa

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sobre a experiência deste momento. Houve questionamentos como “O que acharam

do evento?”, “Como se sentiram não estando em sala de aula?”, “Sobre as

aprendizagens, vocês acham que aprenderam algo?”. Essas perguntas foram um

disparador para dialogar sobre respeito, relações, aproximações, um jeito diferente de

se educar nunca visto antes pelos educandos, a particularidade da escola em

proporcionar momentos de coletividade. Fiquei muito feliz em estar lá, sentindo a

energia advinda dos educandos para com a escola. Os relatos de superação dos anseios

de estarem na escola novamente, a superação das dificuldades, valorização que

sentem por parte da instituição e dos professores e o desejo de todos e todas, pois não

houve discordância, que se fizesse novamente o BOTEJA até o final do ano. Neste

diálogo é importante destacar que os professores trouxeram Paulo Freire para a

conversa. Freire estaria aniversariando, posterior a isso, se refletiu com os educandos

que “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a

sociedade muda”. Constatando que as vivências coletivas que são proporcionadas tem

esse viés transformador, de uma sociedade com respeito às diferenças, aos diferentes

pontos de vista, à oportunidade de ressocialização na sociedade. A partir da educação

a sociedade pode se transformar, e começa nos pequenos grandes passos que a escola

oportuniza.

Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos... (FREIRE, 1996. p. 18-19)

Entre tantos eventos, devo ressaltar o projeto Adote um Autor, que investe no

incentivo a leitura dos educandos de escolas públicas do município. Este ano o autor da

EJA na escola foi Celso Gutifreind. Em reunião, escolhemos algumas de suas obras para

utilizar com nossos educandos, a fim de produzirmos um material coletivo como

mostra da leitura e do significado de seu livro para os sujeitos da escola. O livro que

mais chamou a atenção dos professores se chama “A dança das palavras”, um livro de

poesia e prosa, sobre diversos assuntos de vida. Com esse título, criamos a temática do

BOTEJA, e conseguimos pensar nos materiais a serem construídos. O evento tem como

principal marca o Boteco. Pensando a partir disso, decidimos que a produção poderia

ser as toalhas das mesas do Boteco, e essas toalhas com palavras dançando. Então

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como seria? Palavras se encontrando, palavras unidas, palavras soltas, frases. E

confirmo que foi um trabalho lindo.

Diálogos com a prática

Com toda exploração e reflexão sobre a escola, trago minha prática individual

em sala de aula. Desde meu primeiro dia de aula, tive essa experienciação sobre a

instituição com práticas coletivas, o que de certa forma diminuiu o meu tempo sozinha

com a turma, mas que de nenhuma maneira vejo como algo negativo, pelo contrário,

entendo a importância dessas ações que tem como objetivo formar cidadãos críticos,

reflexivos, sujeitos de oportunidades de vida. E isso, conseguimos nas trocas, no

diálogo, nas falas individuais sobre si e o outro e como isso pode impactar de dentro

para fora, quando se vê que muitos passam ou passaram por vivências parecidas.

Nas sextas-feiras a escola tem a reunião pedagógica, na qual se pensa o

planejamento da semana seguinte, de modo coletivo e que todas as totalidades

possam abarcar o assunto dentro de suas peculiaridades. Como relatei no parágrafo

anterior, logo no início essas práticas refletiram no meu planejamento, que precisava

dar conta do que a escola propunha. Vamos adaptando e readaptando a idealização de

um planejamento, pois se há aquele espaço para discutir sobre importantes assuntos

que estão evidentes àqueles sujeitos, os feriados, as propostas pedagógicas, logo,

deve-se produzir da melhor forma possível, para que todos se dialoguem.

No decorrer da minha prática passei por muitos desafios, sem eles acredito que

não teria o crescimento que obtive durante esse semestre letivo. Inicialmente eu

consegui acompanhar a turma dentro das suas restrições de escrita e leitura. Na nossa

segunda semana, que na verdade foi o início do nosso tempo juntos, levei uma

atividade sobre leitura de imagens. Em fotos coloridas, levei imagens como ônibus da

linha Humaitá, sinais de trânsito, camisetas do Grêmio e do Internacional, placas de

sinalização como “wi-fi”, “cuidado, piso molhado”, “não fume neste local” e etc. Foi

uma atividade muito rica, mesmo que alguns tenham dito que já sabiam tudo, foi

importante conversar e refletir sobre o mundo letrado que vivemos, pois mesmo ainda

estando em processo de alfabetização na escrita e leitura, há muitos espaços da nossa

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vivência que conseguimos ler e identificar, por conta dos sinais, das letras e números

que já conhecemos, da simbologia que está explícita para que as pessoas consigam

constatar o significado, o alerta, a informação.

Imagem 1- diário de classe

Arquivo pessoal

Algo bem relevante que os educandos trouxeram foi a dificuldade de identificar

o ônibus e as diferentes estratégias utilizadas para saber que é o ônibus correto. O

ponto de ônibus no centro ou no bairro. A letra H de Humaitá ou F de Farrapos. A cor

azul do ônibus. Houve quem disse que pergunta às pessoas sobre o ônibus. Importante

para dialogarmos que é necessário solicitar ajuda quando precisa, não há vergonha

nessa situação. Pessoas que já passaram pelo processo de aquisição da língua escrita

também solicitam auxílio a outras pessoas quando necessário. Pela incerteza de pegar

o ônibus correto, para se localizar dentro da cidade ou do bairro. Uma educanda

comentou que pergunta para as outras pessoas sem sentir vergonha, porque ela

precisa. Desta forma, conseguimos dialogar sobre nossas necessidades de leitura e

escrita para termos sustento ao longo do semestre de efetivá-las.

A partir dessa conversa, e também pela observação já realizada, nosso

movimento prático teve como base o diálogo e o registro no quadro. Todas as aula

íamos construindo juntos as palavras, frases e textos que conversávamos. A maneira

que senti ser mais qualificada para a participação de todos ocorreu dessa forma:

refletíamos sobre cada letra-fonema e iam me ditando a letra a ser escrita no quadro,

formando cada palavra. No caso dos registros individuais, os educandos tendiam a ser

negativos, por conta da percepção de sistema escolar já estabelecido na vida deles,

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compreendi que a insegurança advinda desse sentimento partia do sentimento de

fracasso que lhes é imposto por serem sujeitos da classe dominada

No fundo, esses conceitos todos são expressões da ideologia dominante que leva a instâncias de poder, antes mesmo de certificar-se das verdadeiras causas do chamado “fracasso escolar”, a imputar a culpa aos educandos. Eles é que são responsáveis por sua deficiência de aprendizagem. O sistema, nunca. É sempre assim, os pobres e miseráveis são os culpados por seu estado precário. São preguiçosos, incapazes. (FREIRE, 2003, p. 125)

As falas “não sei fazer, sora” “isso eu não consigo”, “não quero fazer”, eram

repetidamente ditas por eles, o que de certa forma me desestabilizava, mas que eu

fazia de tudo para consertar e apoiar no que fosse necessário, sentando

individualmente, explicando a importância, refletindo sobre como se escrevia aquelas

palavras.

Outro movimento muito importante para a participação dos educandos foi

registrar a data no quadro. Aqueles que pouco se envolviam na produção das

atividades em aula, se destacavam na participação da data, por conseguinte, se

empolgavam em estar lá e seguir praticando a escrita. Então, muitas vezes a data não

foi escrita por mim, e sim por eles. A data mesmo que individual, eu estava presente,

dando o suporte necessário para a escrita.

2- aluno interagindo no quadro Arquivo pessoal

Ocorreu em uma noite, de eu não solicitar a escrita deles e também não me

dirigi ao quadro. Estava organizando os materiais da aula no fundo da sala com

algumas educandas, quando olho para o quadro e um educando está lá escrevendo

muito empolgado. Não me dirigi a ele, o deixei livre escrevendo no quadro. Quando

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finalizou, me chamou e disse: “oh professora, tá certo?” – ele havia escrito ‘PORTO

ALEGRE’ sozinho. O elogiei e respondi: “está muito certo! Parabéns!” – e ele

correspondeu: “oh professora, se eu consegui foi porque a senhora me ensinou”. Essa

frase, com toda a certeza, vou levar comigo para a minha docência, pois estamos

sempre nos cobrando em sermos ótimas professoras, produzir, produzir e produzir,

quando na verdade uma singela data é algo muito significativo na construção da escrita

e leitura para os educandos. Senti naquele momento que meu estágio estava tendo

efeitos positivos sobre a vida dos sujeitos.

Concepções teórico-reflexivas

Como mencionado anteriormente, já havia um vínculo pré-estabelecido com a

turma, por mais que ela tenha se desmembrado, modificado, alguns sujeitos me

conheciam, o que fortaleceu a estabilidade de estar fazendo o estágio obrigatório em

docência individual. Para além, desde o início da minha observação foram receptivos e

aguardavam ansiosos o dia que finalmente daria aula. O que ficou visível para mim, é

que há uma diferença entre ser observadora e ser docente. Enquanto observadora, tu

és uma pessoa nova, uma curiosidade, e quando chega a docência, essa fase já passou,

eles se acostumaram com a tua presença, te tratam com mais naturalidade, se constrói

uma relação a qual os sujeitos se sentem íntimos o suficiente para dialogar, aceitar e

rejeitar o que tu propõe. No olhar de observador, há o apoio nas atividades, mas quem

propõe é a professora titular, o que te distancia da reprovação que eles têm sobre o

ensino.

Para contribuir com essa reflexão, trago o excerto de Ninin (2010):

Se na perspectiva crítica de educação consideramos o sujeito capaz de fazer uso do conhecimento para modificar a si próprio e ao contexto em que se encontra inserido, tendo para isso que negociar significados e buscar constantemente o consenso com aqueles com os quais se relaciona, então podemos dizer que observação é o ato de olhar alguém ou alguma coisa cuidadosamente, a partir de critérios negociados, com o propósito de entender e fundamentar os aspectos observados, de modo a possibilitar mudanças factuais, conceituais, procedimentais e atitudinais dos envolvidos, capazes de gerar transformação não somente neles, mas no contexto em que atuam (p. 36)

A partir da observação e da ligação nela estabelecida, nossa construção do

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estágio docente foi criando formas coletivas, de acordo com as demandas e com as

considerações que os educandos traziam, possibilitando as mudanças efetivas que

fariam a diferença para o processo de ensino-aprendizagem e também na formação

humana que ali se constrói.

Em relação à escola, uma instituição que se preocupa com a formação cidadã,

crítica, reflexiva dos seus educandos, fortalecendo por meio de atividades coletivas a

libertação desses alunos

Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela.” (FREIRE, 1987, p. 17)

É necessário pensar que através da instituição escolar que se inicia esse

processo de emancipação. É uma ideia vista muitas vezes como algo romantizado, mas

nas práticas coletivas, vê-se a importância de ouvirmos uns aos outros, de refletirmos

uns com os outros, que é por meio das problematizações no diálogo com os educandos

que conseguimos realizar uma prática libertadora. E desta forma sinto e compreendo a

escola na qual realizei o estágio obrigatório.

“A reforma do pensamento é inseparável da reforma de vida (...) Como reformar o pensamento sem controle de si próprio auto-exame e autocrítica da sua própria percepção, da sua própria memória, da sua argumentação? Como reformar o pensamento se não se é capaz de ouvir o outro? Isto significa, necessariamente, reformar o seu modo de vida, para escapar à superficialidade, à mudaneidade, em resumo a tudo o que nos diverte e faz andar às voltas”. (Morin, 1998, p. 277)

Semanalmente nas reuniões, refletem, trocam diferentes concepções e críticas,

reformulam seus pensamentos e ideais de acordo com as demandas sociais e dos

educandos. Um espaço da educação que não se apresenta artificialmente, e sim,

preocupada com a educação e transformação da vida social de seus educandos, assim

como afirmam em seu Projeto Político Pedagógico (2011)

Precisamos focar nossa metodologia na construção de uma reflexão da prática social desses sujeitos (...) sendo referenciado pela experiência de vida desses jovens e adultos no mundo do trabalho, e também pelos conteúdos formais que explicam essa realidade por eles vivida. (...) que considere esse educando como produtor de conhecimento e hipóteses explicativas sobre a realidade que os cerca. (p. 20)

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Contata-se que através da práxis e a busca incansável de buscá-los e tê-los

inseridos na escola, exercem seu papel fundamental, que é a luta por uma educação

pública, democrática, preocupada com a formação crítica dos sujeitos nela inseridos,

de qualidade e uma transformadora social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Saliento aqui, a importância de estar inseridas em espaços transformadores

durante a formação docente. Pois as situações ruins são as primeiras a chegar até nós,

a desvalorização da nossa classe trabalhadora, o sucateamento da educação pública,

práticas inadequadas de tantas instituições, e assim sucessivamente. Quando se

encontra uma escola que valoriza as diferentes culturas, religiões, maneiras de

enxergar o mundo, é imprescindível apresentar e mostrar que ainda podemos ter fé na

educação, e que mesmo com todos os retrocessos, há quem lute, há quem se firme,

por seus educandos, garantindo uma educação emancipatória e de qualidade.

Estar presente nas atividades coletivas, aprender com os educandos, com os

professores, com os palestrantes, foi de suma importância na minha formação, afirmo

que nesta instituição me encontrei professora, cresci e amadureci em pouco tempo,

pelos processos de aprendizagens nela estabelecidos.

Por fim, agradeço a disponibilidade e abertura da instituição em receber

estagiárias, acompanhá-las com tamanha atenção e aos professores das totalidades

finais, aos quais aprendi muito nos curtos tempos na sala dos professores. Foi uma

rede de apoio importantíssima, que fortalece a prática pedagógica, mas também uma

rede de apoio emocional que se fortaleceu nesse momento intenso e sensível que

estamos vivenciando na conjuntura política atual.

REFERÊNCIAS

Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa / Paulo Freire. – São Paulo: Paz e Terra, 1996.

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987

FREIRE, P. & HORTON, Myles. O caminho se faz caminhando: conversas sobre educação e mudança social. 4 ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003.

MORIN, Edgar. Um Ano Sísifo: Diário de um Fim de Século. Portugal: Publicações Europa-América, Lda, 1998a. IN: BEDIN, S. A. Escola: da magia da criação as éticas que sustentam a escola pública. Tese de Doutorado: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2004.

NININ, M.O.G. 2010. O fio da meada: descortina-se a prática da observação. Uma perspectiva crítica. São Carlos: Pedro & João Editores.

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE PORTO ALEGRE. Projeto político-pedagógico: Escola Municipal de Ensino Fundamental Vereador Antônio Giúdice. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2011.