5
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Faculdade de Veterinária Departamento de Patologia Clínica Veterinária Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínica (VET03121) http://www6.ufrgs.br/bioquimica Relatório de Caso Clínico IDENTIFICAÇÃO Caso: 2011/1/08 Procedência: HCV-UFRGS N o da ficha original: 85677 Espécie: equina Raça: SRD Idade: 10anos Sexo: fêmea Peso: 380 kg Alunos(as): Ana Claudia Ramos Berreta, Carmela Piccoli e Ramon Fernandes Scheffer Ano/semestre: 2011/1 Residentes/Plantonistas: Médico(a) Veterinário(a) responsável: Luciana Merini ANAMNESE O proprietário relatou que o animal apresenta urina escura desde 17/06/2011. Administrou Apyron (hexametilenotetramina e bifosfato de sódio: ação antisséptica no trato urinário e diurético) no dia 17/06, Calfomag (borogliconato de cálcio, glicerofosfato de sódio, cloreto de magnésio, cafeína e dextrose: estimulante, energético e repositor eletrolítico) no dia 23/06 e fenilbutazona (anti-inflamatório não esteroidal) em 27/06. A dieta do equino consiste em ração, pasto e alfafa, o pasto foi diminuído nos últimos dias e o animal não recebe água a vontade. Na noite anterior à chegada ao hospital apresentou tremores, intensa sudorese e extrema relutância em se levantar e locomover. EXAME CLÍNICO 30/06/2011 Frequência cardíaca: 60 bpm (30 – 40 bpm) Frequência respiratória: 18 rpm (18 – 20 rpm) Temperatura retal: 38,6 o C (37,5 – 38,5 o C) Coloração das mucosas: hiperêmicas (Figura 1) Tempo de preenchimento capilar: 2 segundos (2 s) Ausculta do trato gastrointestinal: atonia Desidratação, tremores musculares, sudorese excessiva e urina de coloração escura (Figura 2).O exame clínico do sistema musculoesquelético identificou rigidez e sensibilidade dolorosa nos músculos tríceps, glúteo, bíceps femoral, semitendinoso e semimembranáceo (Vídeos 1 e 2). EXAMES COMPLEMENTARES HEMOGASOMETRIA (01/07/2011) TCO 2 30 mmol/L (24–38) pH 7,47 (7,38–7,54) pCO 2 40,6 mmHg (31–54) HCO 3 29,2 mmol/L (23–37) Excesso de Base 6 mmol/L (-0,3 a 11) Ânion GAP 10 mmol/L (8–13) Realizado através do aparelho I-Stat 1 (Abbot Laboratories, Abbott Park, IL USA) Valores de referência segundo Robinson e Sprayberry (2008). ULTRASONOGRAFIA TRANSABDOMINAL Rins esquerdo e direito com contornos, parênquima cortical, pelve, medidas e espessura cortical normais.

Relatório de Caso Clínico - Eqüinos - ufrgs.br · Espécie: equina ; Raça: SRD . Idade: 10anos : Sexo: fêmea . Peso: 380 kg : ... Cavalos afetados pela rabdomiólise geralmente

  • Upload
    ngodung

  • View
    235

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Faculdade de Veterinria Departamento de Patologia Clnica Veterinria Disciplina de Bioqumica e Hematologia Clnica (VET03121) http://www6.ufrgs.br/bioquimica

    Relatrio de Caso Clnico

    IDENTIFICAO Caso: 2011/1/08 Procedncia: HCV-UFRGS No da ficha original: 85677 Espcie: equina Raa: SRD Idade: 10anos Sexo: fmea Peso: 380 kg Alunos(as): Ana Claudia Ramos Berreta, Carmela Piccoli e Ramon Fernandes Scheffer

    Ano/semestre: 2011/1

    Residentes/Plantonistas: Mdico(a) Veterinrio(a) responsvel: Luciana Merini ANAMNESE

    O proprietrio relatou que o animal apresenta urina escura desde 17/06/2011. Administrou Apyron (hexametilenotetramina e bifosfato de sdio: ao antissptica no trato urinrio e diurtico) no dia 17/06, Calfomag (borogliconato de clcio, glicerofosfato de sdio, cloreto de magnsio, cafena e dextrose: estimulante, energtico e repositor eletroltico) no dia 23/06 e fenilbutazona (anti-inflamatrio no esteroidal) em 27/06. A dieta do equino consiste em rao, pasto e alfafa, o pasto foi diminudo nos ltimos dias e o animal no recebe gua a vontade. Na noite anterior chegada ao hospital apresentou tremores, intensa sudorese e extrema relutncia em se levantar e locomover. EXAME CLNICO 30/06/2011 Frequncia cardaca: 60 bpm (30 40 bpm) Frequncia respiratria: 18 rpm (18 20 rpm) Temperatura retal: 38,6oC (37,5 38,5oC) Colorao das mucosas: hipermicas (Figura 1) Tempo de preenchimento capilar: 2 segundos ( 2 s) Ausculta do trato gastrointestinal: atonia Desidratao, tremores musculares, sudorese excessiva e urina de colorao escura (Figura 2).O exame clnico do sistema musculoesqueltico identificou rigidez e sensibilidade dolorosa nos msculos trceps, glteo, bceps femoral, semitendinoso e semimembranceo (Vdeos 1 e 2). EXAMES COMPLEMENTARES

    HEMOGASOMETRIA (01/07/2011) TCO2 30 mmol/L (2438) pH 7,47 (7,387,54) pCO2 40,6 mmHg (3154) HCO3 29,2 mmol/L (2337) Excesso de Base 6 mmol/L (-0,3 a 11) nion GAP 10 mmol/L (813)

    Realizado atravs do aparelho I-Stat 1 (Abbot Laboratories, Abbott Park, IL USA) Valores de referncia segundo Robinson e Sprayberry (2008). ULTRASONOGRAFIA TRANSABDOMINAL Rins esquerdo e direito com contornos, parnquima cortical, pelve, medidas e espessura cortical normais.

  • Caso clnico 2011/1/X08 pgina 2 URINLISE Mtodo de coleta:cateterizao Obs.: Foi realizado o teste de precipitao da hemoglobina e obteve-se resultado positivo para mioglobinria. Presena de fosfato amorfo 2+. Exame fsico cor consistncia odor aspecto densidade especfica (1,020-1,050) Marrom Fluida Turvo 1,028 Exame qumico pH (7-8) corpos cetnicos glicose pigmentos biliares protena hemoglobina sangue nitritos8 + ++++ +++ ++++ - +++ n.d. Sedimento urinrio (no mdio de elementos por campo de 400 x) Clulas epiteliais: 1 Tipo: escamosas Hemcias: 0 Cilindros: Tipo: Leuccitos: 0 Outros: Tipo: Bacteriria: moderada

    n.d.: no determinado

    BIOQUMICA SANGUNEA Tipo de amostra: soro Anticoagulante: Hemlise da amostra: ausente Protenas totais: 76 g/L (54-86) Glicose: 237 mg/dL (77-132) FA: 163 U/L (0-395) Albumina: 31 g/L (27-38) Colesterol total: mg/dL (80-250) AST: 29.000 U/L (102-612) Globulinas: 45 g/L (24-53) Uria: 61 mg/dL (24-54) CPK: 560.000 U/L (67-540) BT: mg/dL (1,0-2,0) Creatinina: 1,8 mg/dL (1,2-1,8) Fibrinognio: 2 g/L (1-3) BL: mg/dL (0,2-2) Clcio: 7,3 mg/dL (10-14) LDH: 63.476 U/L (125 - 349) BC: mg/dL (0-0,4) Fsforo: 7,3 mg/dL (2,91-5,88) Sdio: 133 mmol/L (132146) Potssio: 4,7 mmol/L (2,44,7) Cloreto: 98 mmol/L (99109)

    BT: bilirrubina total BL: bilirrubina livre (indireta) BC: bilirrubina conjugada (direta)

    HEMOGRAMA Leuccitos Eritrcitos Quantidade: 7300/L (5.800-13.200) Quantidade: 9 milhes/L (7,5-10,0) Tipo Quantidade/L % Hematcrito: 47 % (29-43) Mielcitos 0 (0) 0 (0) Hemoglobina: 15 g/dL (10-14) Metamielcitos 0 (0) 0 (0) VCM (Vol. Corpuscular Mdio): 51 fL (37-58,5) Bastonetes 73 (0-70) 1 (0-2) CHCM (Conc. Hb Corp. Mdia): 33 % (31-37) Segmentados 6059 (2.900-7.000) 83 (22-72) RDW (Red Cell Distribution Width): 17 % (21-25) Basfilos 0 (0-60) 0 (0-4) Eosinfilos 73 (0-600) 1 (0-10) Moncitos 292 (0-500) 4 (0-7) Linfcitos 803 (2.000-7.500) 11 (17-68)

    Observaes:

    Plaquetas Quantidade: 219000/L (100.000-350.000)

    Observaes:

    Observaes: TRATAMENTO E EVOLUO

    Ao chegar ao hospital, o animal recebeu 6 L de soluo de cloreto de sdio 0,9% via intravenosa e apresentou melhora da motilidade gastrointestinal, voltando a defecar normalmente e descartando a possibilidade de sndrome do abdmen agudo. Nos dias 30/06 e 01/07 o animal recebeu 20 L de soluo de cloreto de sdio 0,9% por dia, apresentando melhora na colorao da urina (Figura 2). Em 02/07 e 03/07 o paciente recebeu 20 L de soluo ringer com lactato.

    No dia 01/07, a temperatura e a colorao das mucosas do animal haviam normalizado e a frequncia cardaca no estava to aumentada (52 bpm) em relao ao dia anterior, mas ainda estava acima dos parmetros fisiolgicos. No dia 02/07 a frequncia cardaca era de 48 bpm e em 03/07, 44 bpm.

  • Caso clnico 2011/1/X08 pgina 3

    BIOQUMICA SANGUINEA (01/07/2011) Albumina 26 g/L (2738) AST 19.508 U/L (102612) CPK 481.360 U/L (67540) Creatinina 1,4 mg/dL (1,21,9) FA 156 U/L (

  • Caso clnico 2011/1/X08 pgina 4

    a corrente sangunea, como a creatina quinase (CK), a aspartato aminotransferase (AST), a lactato desidrogenase (LDH) e a mioglobina. A liberao de eletrlitos pelas clulas musculares danificadas resulta em hipercalemia e hiperfosfatemia (VALBERG, 2009).No equino, a CK circulante no sangue originada principalmente do msculo esqueltico e do miocrdio. Calcula-se que um aumento de 5 vezes na atividade da CK plasmtica corresponde a milise aparente de aproximadamente 20 g de msculo, o que indica que o equinosofreu necrose de aproximadamente 4 kg de msculo. A AST encontrada principalmente no msculo esqueltico, msculo cardaco e fgado. No sendo tecido-especfica, encontr-la no soro no indica a sua fonte, porm grandes aumentos semelhantes ao encontrado neste caso no so encontrados ao menos que esteja presente uma leso muscular. A lactato desidrogenase (LDH) encontrada em maior parte no msculo esqueltico e, combinada a altos nveis de CK e AST, indica leso muscular (REED et al., 2003). A concentrao sangunea dessas trs enzimas depende da intensidade do dano muscular e do tempo entre a coleta da amostra e a leso.

    O pico dos valores sorolgicos acontece em aproximadamente 4 a 6 horas, 12 e 24 horas aps a mionecrose para a CK, LDH e AST, respectivamente. A diminuio da atividade enzimtica na corrente sangunea aps a leso muscular ocorre rapidamente para a CK, mais lentamente para a LDH e mais prolongado para a AST (VALBERG, 2009). A mioglobina essencial para o transporte de oxignio dentro dasclulas musculares (REED et al., 2003).

    Nas urinlises realizadas nos dias 30/06, 01/07 e 03/07foram observadas a presena de mioglobina, responsvel pela colorao escura da urina. Este achado, combinado com os altos valores das enzimas acima citadas, indica grave leso muscular. A mioglobina nefrotxica e extremamente importante elimin-la do organismo o mais rpido possvel, sendo a fluidoterapia a escolha apropriada para aumentar o volume de sangue circulante, o fluxo sanguneo renal e, consequentemente, a excreo de mioglobina. Nos primeiros dias de tratamento foi utilizada a soluo cloreto de sdio 0,9% como fluidoterapia de eleio, mas sendo levemente acidificante, foi modificado o tratamento para soluo Ringer com lactato devido presena de eletrlitos essenciais, tendo assim grande similaridade com a constituio dos lquidos extracelulares. Os resultados para corpos cetnicos e pigmentos biliares podem ser falso-positivos devido colorao escura da urina (Package Insert for Bayer Multistix, 1992).

    A rabdomilise uma sndrome que se caracteriza por destruio muscular, com liberao de contedo intracelular na circulao. O exerccio intenso um fator desencadeante muito comum, e como fatores predisponentes esto a sobrecarga de carboidrato, hipxia local durante o exerccio em fibras musculares do tipo II, distrbios hormonais, infeco viral, desequilbrios eletrolticos e deficincias de tiamina, vitamina E e selnio. A sintomatologia clnica varivel e inclui diminuio da mobilidade, sudorese excessiva, aumento de volume e rigidez muscular, frequncia de pulso e respiratria elevados, estase do trato gastrointestinal e urina com cor alterada (REED et al., 2003).

    Os objetivos dos tratamentos citados na literatura para esta patologia so, basicamente, aliviar a dor e repor eletrlitos e lquidos perdidos. Tranquilizantes como a acepromazina (0,04 a 0,07 mg/kg) ou xilazina (0,4 a 0,5 mg/kg) promovem sedao e analgesia. Anti-inflamatrios no esteroidais como o cetoprofeno (2,2 mg/kg), a fenilbutazona (2,2 a 4,4 mg/kg) ou flunixin meglumine (1,1 mg/kg) so frequentemente utilizados para aliviar a dor, mas devem ser utilizados com cautela em animais desidratados e com rabdomilise pelo risco de agravar danos renais. Relaxantes musculares como metocarbamol (5 a 22 mg/kg) podem ser utilizados. Cavalos afetados pela rabdomilise geralmente esto em alcalose metablica em consequncia hipocloremia (a hemogasometria confirmou que o paciente no apresentava esse quadro a partir do segundo dia de tratamento), sendo a fluidoterapia de Ringer com lactato inapropriada nesses casos. importante que o animal permanea em repouso e seja mantido em uma rea silenciosa por alguns dias (ROBINSON & SPRAYBERRY, 2008).

    O prognstico inicial varia de excelente para casos discretos a grave para equinos que ficam em decbito ou desenvolvem complicaes renais. Foi registrado que a perda de resistncia muscular pode permanecer por longo tempo e, em alguns casos, pode ocorrer fibrose que resulta em anormalidades do andar e deformidades (REED et al., 2003). O paciente ainda est em observao e tratamento, no entanto podemos considerar que o seu caso foi severo pela alta concentrao de mioglobina urinria e pelos valores enzimticos elevados, mas no houve leso renal e o animal est se recuperando bem. CONCLUSES Os sinais clnicos, juntamente com os altos nveis sricos de atividade enzimtica da CK, AST e LDH e a mioglobinria confirmam o diagnstico de rabdomilise.

  • Caso clnico 2011/1/X08 pgina 5 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS KANEKO, J. J.; HARVEY, J. W.; BRUSS, M. L. Clinical Biochemistry of Domestic Animals. 6th edition.

    San Diego: Academic Press, 2008. MELO, U. P.; PALHARES, M. S.; FERREIRA, C. leo adinmico em equinos: fisiopatologia e tratamento.

    Arquivo de Cincias Veterinrias e Zoologia da UNIPAR, Umuarama, v. 10, n. 1, p. 49-58, 2007. Package insert for BAYER Multistix 10SG Multistix 9 Multistix 9 SG Multistix 8 SG

    Multistix 7 N-Multistix SG Multistix 9 N-Multistix Multistix SG Multistix Bili-Labstix Reagent Strips.Bayer Corporation, Elkhart, 1992.

    REED, S.; BAYLY, W.; MCEACHERN, R. B.; SELLON, D. Equine Internal Medicine. 2nd edition. St. Louis: Saunders, 2003.

    REUBEN, J. R.; HODGSON, D. R. Manual of Equine Practice. 2nd edition. St. Louis: Saunders, 2000 ROBINSON, N. E.; SPRAYBERRY, K. A. Current Therapy in Equine Medicine. 6th edition. St. Louis:

    Saunders, 2008. VALBERG, S. J. Exertional Rhabdomyolysis: Diagnosis and Treatment. INTERNATIONAL CONGRESS OF THE

    WORLD EQUINE VETERINARY ASSOCIATION, 11th, 2009, Guaruj. Proceedings of the 11th International Congress of the World Equine Veterinary Association. 2009.

    WEISS, D. J.; WARDROP, K. J. Schalm's Veterinary Hematology. 6th edition. Ames: Wiley-Blackwell, 2010.

    FIGURAS

    Figura 1. Mucosa Ocular. Mucosa ocular hipermica. Figura 2. Aspecto das amostras de urina. Amostras de urina do dia 1(30/06), 2(01/07) e 4(03/07).

    Vdeo 1. Andadura do equino ao passo. Animal apresentando claudicao no dia 30/06.

    Vdeo 2. Reao do animal palpao dos msculos do membro plvico. Forte sensibilidade palpao no dia 01/07.

    IDENTIFICAOQuantidade/(L

    KANEKO, J. J.; HARVEY, J. W.; BRUSS, M. L. Clinical Biochemistry of Domestic Animals. 6th edition. San Diego: Academic Press, 2008.ROBINSON, N. E.; SPRAYBERRY, K. A. Current Therapy in Equine Medicine. 6th edition. St. Louis: Saunders, 2008.