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A sociedade portuguesa ainda hoje apresenta profundas marcas de uma experiência política e societal gizada pelo monolitismo religioso. As mudanças nas relações de poder dentro do campo religioso e entre este e o campo político devem-se, substancialmente, à reconfiguração da sociedade portuguesa, no seu conjunto, balizada a partir de 1974. No entanto, pode dizer-se que, contrariamente às expectativas entusiastas, o que o 25 de Abril trouxe foi uma relativa estabilização e uma diversificação e aumento do mercado de bens religiosos. Helena Vilaça Professora Auxiliar do Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto INTERVENÇÃO E IMPACTO SOCIAL A religião e a Bíblia num quadro de liberdade religiosa 1 REVISTA LUSÓFONA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES – Ano IV, 2005 / n.º 7/8 – 109-117 109 O factor que mais contribuiu para a perpetuação da in- tolerância da Igreja Cristã foi a indiferenciação entre identidade religiosa e identidade nacional. De facto, a história do poder político na Europa é indissociável da história do poder eclesiástico. Os Estados europeus evo- luíram em parceria com as respectivas Igrejas dominan- tes. Nos países católicos assistimos a uma subordinação do Estado à Igreja 2 , no caso dos países protestantes a regra foi a inversa. Mas a fusão dos dois sistemas (polí- tico e religioso) pode bem ser exemplificada pelo papel desempenhado, quer no mundo católico quer no protes- tante, por homens da Igreja do século XVII como o car- deal Richelieu em França ou o Arcebispo anglicano Laud em Inglaterra (Wilson, 1996: 16). Ambos actuaram si- multaneamente como autoridades políticas e religiosas, convictamente empenhados na defesa da tese de que o consenso religioso constituía um poderoso recurso para fortalecer a coesão nacional. A dissidência religiosa era, desta forma, entendida como uma potencial dissidência mais lata, em última instância política. Usando uma terminologia sociológica, 1 Este artigo reproduz parcialmente a análise realizada pela au- tora na sua tese de doutoramento, de momento em fase de publicação (Vilaça, 2005), acerca das minorias religiosas em Portugal. Cfr., em es- pecial o capítulo 5. 2 Sobre as relações entre o Estado e a Igreja nos países católicos assume todo o interesse a análise histórico-sociológica realizada para o caso espanhol por Casanova (1994), concretamente, o cap. 3 “Spain: from State Church to Distablishment”.

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  • A sociedade portuguesaainda hoje apresenta

    profundas marcas de umaexperincia poltica

    e societal gizada pelomonolitismo religioso.

    As mudanas nas relaesde poder dentro do campo

    religioso e entre este e ocampo poltico devem-se,

    substancialmente, reconfigurao

    da sociedade portuguesa,no seu conjunto,

    balizada a partir de 1974.No entanto,

    pode dizer-se que,contrariamente s

    expectativas entusiastas, o que o 25 de Abril trouxe

    foi uma relativaestabilizao

    e uma diversificao e aumento do mercado

    de bens religiosos.

    Helena VilaaProfessora Auxiliar

    do Departamento de Sociologiada Faculdade de Letras

    da Universidade do Porto

    I N T E R V E N O E I M P A C T O S O C I A L

    A religio e a Bblia numquadro de liberdade religiosa1

    REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES Ano IV, 2005 / n. 7/8 109-117 109

    Ofactor que mais contribuiu para a perpetuao da in-tolerncia da Igreja Crist foi a indiferenciao entreidentidade religiosa e identidade nacional. De facto, ahistria do poder poltico na Europa indissocivel dahistria do poder eclesistico. Os Estados europeus evo-luram em parceria com as respectivas Igrejas dominan-tes. Nos pases catlicos assistimos a uma subordinaodo Estado Igreja 2, no caso dos pases protestantes aregra foi a inversa. Mas a fuso dos dois sistemas (pol-tico e religioso) pode bem ser exemplificada pelo papeldesempenhado, quer no mundo catlico quer no protes-tante, por homens da Igreja do sculo XVII como o car-deal Richelieu em Frana ou o Arcebispo anglicano Laudem Inglaterra (Wilson, 1996: 16). Ambos actuaram si-multaneamente como autoridades polticas e religiosas,convictamente empenhados na defesa da tese de que oconsenso religioso constitua um poderoso recurso parafortalecer a coeso nacional.

    A dissidncia religiosa era, desta forma, entendidacomo uma potencial dissidncia mais lata, em ltimainstncia poltica. Usando uma terminologia sociolgica,

    1 Este artigo reproduz parcialmente a anlise realizada pela au-tora na sua tese de doutoramento, de momento em fase de publicao(Vilaa, 2005), acerca das minorias religiosas em Portugal. Cfr., em es-pecial o captulo 5.

    2 Sobre as relaes entre o Estado e a Igreja nos pases catlicosassume todo o interesse a anlise histrico-sociolgica realizada parao caso espanhol por Casanova (1994), concretamente, o cap. 3 Spain:from State Church to Distablishment.

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    HELENA VILAA

    a coeso social seria tanto maior quanto mais o fosse a conformidade religiosa, o quefazia desta um imperativo social, na medida em que representava e assegurava o con-senso de valores (Ibidem: 15) funo esta socialmente legitimada.

    Esta situao veio a desenvolver contornos diferentes nos pases catlicos e nospases protestantes. Nestes, a tendncia foi lentamente progredindo para a concessode liberdades aos dissidentes, enquanto nos pases catlicos, polticos que professavamempenhadamente uma f diferente da dominante tendiam a associar-se com os secto-res mais anticlericais. Podem ser identificados alguns casos desses no Portugal da Pri-meira Repblica. Referimo-nos, por exemplo, a Alfredo Silva e Eduardo Moreiraambos pastores protestantes e republicanos convictos.

    Observando a realidade das sociedades democrticas contemporneas, com a di-versidade cultural em expanso e o pluralismo religioso a avanar, David Martin(1978) conclui que tendencialmente as rivalidades e o fosso entre o Estado e a Igrejavo-se esbatendo. Neste sentido, podemos afirmar que no mbito das transformaesocorridas na sociedade portuguesa ps 25 de Abril, encontramos indicadores que nospermitem corroborar a hiptese de Martin. No s a pluralidade religiosa conquistoualgum espao, como as relaes entre os campos poltico e religioso se pacificaram. Oexemplo mais emblemtico disso foi o da realizao do evento A Bblia Manuscrita, temaque mais adiante retomaremos.

    Diversidade religiosa num quadro democrtico tardioApesar da liberdade religiosa adquirida, a sociedade portuguesa ainda hoje apre-

    senta profundas marcas de uma experincia poltica e societal gizada pelo monolitismoreligioso. Como j tivemos oportunidade de expressar noutro lugar (Vilaa 2005) 3, auma situao de longa durao em que o catolicismo era a religio do Reino sucedeuo breve perodo da primeira Repblica de separao laicista e bruscamente fracturantecom a instituio catlica. Essa fase, de natureza mais anticlerical que religiosa, foi, porseu turno, interrompida por um regime ditatorial onde as relaes entre o Estado e aIgreja se pautaram pela separao com cumplicidade. A partir da instaurao da ditaduramilitar em 1926 e, mais tarde, com a Constituio de 1933 recupera-se e consolida-seuma orientao ideolgica vincadamente catlica onde Ftima se transforma em gran-de plo de peregrinaes e smbolo da unio do Estado Novo e da Igreja (Esteves,1986: 72).

    Ainda que no tenha hostilizado abertamente as minorais religiosas protestantes 4,o Estado Novo impediu a sua exteriorizao em termos de lhes facultar liberdade deaco em estratgias e mtodos evangelsticos. Uma religio (neste caso, mais propria-mente, um ramo do cristianismo) centrada directamente na Bblia e na sua divul-gao, apelando liberdade de conscincia, v a sua liberdade de aco fortementecondicionada numa sociedade onde a leitura das Escrituras era tida como inacessvels pessoas comuns. O Salazarismo simboliza, em vrios aspectos, um tempo em que

    3 Concretamente cap. 4, apresentada uma tipologia das relaes entre o Estado e a religio em Por-tugal.

    4 O mesmo no se poder dizer das testemunhas de Jeov e dos Espritas que foram vtimas de abertaperseguio.

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    A RELIGIO E A BBLIA NUM QUADRO DE LIBERDADE RELIGIOSA

    o objectivo usando uma linguagem bourdiana era a inrcia do tempo, a anulao(pelo acantonamento) dos agentes dominados no apenas do campo religioso, mas emtoda a realidade social.

    No cabe aqui reflectir acerca das razes e do percurso das minorias religiosas emPortugal, mas no podemos deixar de recordar que as minorias religiosas despontamno pas quatro sculos depois da Reforma protestante e, com especial incidncia a par-tir da comunidade estrangeira residente. Este ser um dos factores explicativos do fe-chamento da sociedade portuguesa relativamente ao resto do espao europeu. No sedefende a tese da existncia de uma causalidade linear entre Protestantismo e democra-cia mas entendemos que os pases afectados pela Reforma, cujo foco principal assen-tava no retorno s Escrituras e no livre acesso sua leitura, independentemente dolugar ocupado pelos indivduos na hierarquia social, propiciaram condies para aemergncia de uma cultura democrtica.

    A mudana de regime poltico ocorrida em 1974 estabeleceu em Portugal a liber-dade de expresso e de associao como princpios basilares na Constituio aprovadadois anos mais tarde. Tais princpios tiveram reflexos nas mais variadas esferas sociais,sendo a religio um dos campos a usufruir dos novos direitos. A Igreja Catlica viveua mudana com um certo silncio, em parte porque criticada de conservadorismo e deconivncia com o Estado Novo, facto que provocou a adopo de uma atitude defen-siva; em parte, produto de uma certa expectativa, que poderia temer a ameaa de umasbita reviso da Concordata e a perda de alguns privilgios que a partir da dcadade trinta tinha reconquistado. O seu discurso oficial foi, por isso, permeado de caute-las e mesmo quando continha referncias a ideais de liberdade e de justia social, talera feito de forma abstracta sem relao com as mudanas sociais e polticas a decor-rer na sociedade portuguesa (Domingues, 1989: 133-139). Mas o facto que o Estadodemocrtico no tocou na questo religiosa, nem no plano do discurso ideolgico como o tinham feito os republicanos nem no domnio legislativo. As cautelas foram,desta vez, bilaterais.

    A situao foi, porm, diferente no tocante s minorias protestantes histricas eevanglicas implantadas desde o sculo XIX e aos grupos religiosos mais recentes, osquais acreditaram estar perante novos campos de possibilidades e expanso, facultadospela democracia (Vilaa, 1997 e 2005). semelhana do que acontecera em 1910, osprotestantes abraaram a mudana de regime com forte expectativa, acreditando que aliberdade de expresso, de associao e de manifestao permitiria, pela primeira vezna histria desta comunidade, o exerccio dos meios de evangelizao capazes de pro-duzirem uma expanso e um crescimento numrico, at a desconhecidos. Mas o mesmoaconteceu com Testemunhas de Jeov 5, Adventistas do Stimo Dia 6 e muitos outros.

    5 As Testemunhas de Jeov, apesar da sua oficializao, permitida pela Constituio democrtica, eda possibilidade de livre expresso e crescimento entre 1977 e 1996 viram o seu nmero de publicadoresaumentar de 20335 para 44650 (Santos, 2002: 475) , ainda hoje se sentem carimbados. Consideram queos programas televisivos no ajudam a reabilitar a imagem, uma vez que secundarizam o pendor infor-mativo.

    6 S a partir do 25 de Abril, a Unio Portuguesa dos Adventistas do Stimo Dia (fundada em 1939)usufruiu de condies plenas de crescimento, quase duplicando o seu nmero de fiis (de 4149 para 8004),entre aquela data e 1996 (Santos, Ibidem: 472). Ao contrrio dos protestantes pertencentes s Igrejas Sinodais(particularmente a Igrejas Lusitana e Metodista) tiveram um trabalho de alfabetizao importante, mascujas escolas acabaram por fechar, na sua maioria, os Adventistas conseguiram, depois de 1974, criar econsolidar um conjunto de colgios, em diferentes cidades do litoral do pas e na Madeira, Vila Nova deGaia, Coimbra, Santarm, Lisboa, Setbal e Funchal (Santos, Ibidem).

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    HELENA VILAA

    extremamente interessante, do ponto de vista sociolgico, o paralelismo de com-portamentos sociais assumidos pela comunidade evanglica em duas fases de transiopoltica e social temporalmente distintas: o advento da Repblica, em 1910, e o adventoda democracia em 1974. Como se disse, h um paralelismo circunstancial, pois em cadauma dessas pocas se verifica uma ruptura institucional e ideolgica, um momento emque a utopia se sobrepe tradio. Ambos os contextos so revolucionrios e a revo-luo na expresso de Michel Maffesoli 7 a manifestao de uma pulso arcaica deesperana ou de um desejo irrepreensvel de colectivo (Ibidem, 1979: 15). O 25 de Abrildespertou tambm dentro do universo religioso das margens (e, at certo ponto, gue-tizado) essa pulso cujas repercusses se traduziram num investimento, simultanea-mente, social e religioso.

    A euforia em torno da misso evangelizadora inscreveu-se na exaltao mes-sinica, prpria de qualquer revoluo. Se uma revoluo tem sempre uma conotaoreligiosa como alis aconteceu com a I Repblica , no microcosmos das minorias re-ligiosas portuguesas operou-se uma dupla inscrio religiosa. O projecto de acelerara histria, que se prefigurou em todo o campo social, foi incorporado pelo campo reli-gioso (minoritrio) e os seus agentes, que para alm de (ou porque) religiosos so tam-bm agentes sociais, construram um projecto especfico: acelerar a expanso do Reinodos Cus. Sem que isso implicasse necessariamente escatologias, at porque uma boaparte das denominaes protestantes no tem essa orientao teolgica. Independen-temente dos registos poltico-partidrios dos dirigentes das confisses religiosas, inde-pendentemente de uma aco mais dirigida para as questes de solidariedade e inter-veno social ou, pelo contrrio, mais direccionadas para o indivduo e respectiva con-verso e transformao pessoal, em comum havia a identificao com a mudana,quanto mais no fosse na sua vertente instrumental.

    Tal como aconteceu durante a I Repblica, os largos sectores do mundo evanglicoolharam o 25 de Abril como a abertura de um infindvel horizonte de possibilidades,no se imiscuindo propriamente na vida poltica, de modo interventivo. Isso no sig-nifica, contudo, que a atitude generalizada fosse e seja apoltica ou apartidria. Aaprendizagem democrtica foi extensvel a toda a sociedade e, nesse sentido, os con-tornos desse contexto social contrastam com os do incio do sculo XX.

    As mudanas nas relaes de poder dentro do campo religioso e entre este e ocampo poltico devem-se, substancialmente, reconfigurao da sociedade por-tuguesa, no seu conjunto, balizada a partir de 1974. No entanto e apesar da nova pro-jeco que a democracia permitiu s alternativas religiosas, pode dizer-se que, con-trariamente s expectativas entusiastas, o que o 25 de Abril trouxe foi uma relativa es-tabilizao, do ponto de vista estatstico, dos grupos religiosos pr-existentes e umadiversificao e aumento do mercado de bens religiosos (Vilaa, 1997: 40). Note-se, po-rm, que, no meio evanglico, as igrejas de linha pentecostal e, em especial, os novosgrupos que a partir dessa orientao teolgica emergiram, foram aqueles que mais con-seguiram expandir-se, facto que detectvel no s no Pronturio Evanglico fontecomum Aliana Evanglica e ao COPIC como nos prprios recenseamentos. Den-tro destes grupos de cariz pentecostal merece destaque, pela sua singularidade, aIgreja Evanglica Cigana (Rodrigues e Santos, 2000: 51-56), cuja designao foi altera-da para Igreja Evanglica Filadlfia em Portugal, com o objectivo de romper com a

    7 Sobre esta questo ver ainda Maffesoli (1979: 70 e segs.).

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    A RELIGIO E A BBLIA NUM QUADRO DE LIBERDADE RELIGIOSA

    conotao e a exclusividade tnica desta Igreja. Para todo o efeito prevalece um pre-domnio de elementos da cultura cigana na expresso religiosa adoptada o tipo demsica e o espao por esta ocupada nos servios religiosos constituem, precisamente,a expresso mais evidente da adequao s formas culturais ciganas. Neste processode mudana religiosa, como bem assinalam Donizete Rodrigues e Ana Paula Santos(Ibidem: 54-55), no foi apenas a comunidade cigana que se viu confrontada com umnovo modelo cultural e tico prprio do pentecostalismo , mas tambm o culto evan-glico se viu forado a integrar elementos da cultura cigana. S assim se compreendeque a Igreja Evanglica Filadlfia se tenha tornado um factor de reproduo e reno-vao da coeso do grupo e de reforo identitrio.

    Entre os grupos chegados no ps-25 de Abril, assinalamos os Mormons, os Mooniese a Meditao Transcendental que se fixaram em finais da dcada de setenta. Por fac-tores que se prendem com a dimenso numrica e pblica mais reduzida de certos gru-pos, ou ainda com a sua actividade irregular, no ser possvel fixar com preciso a datade implantao de alguns deles caso de movimentos de influncia Oriental, como osKrishna, ou os grupos tipicamente New Age, como a Nova Acrpole. A Cientologias recentemente (meados dos anos noventa) procurou instalar-se oficialmente em Por-tugal. De igual modo, a comunidade muulmana comeou a ter uma maior expressona sociedade portuguesa nessa poca, em virtude do processo de descolonizao, factoque implicou a vinda de muitos muulmanos, principalmente da Guin e de Moam-bique. No se trata apenas da chegada de novos movimentos religiosos (NMRs).Instalam-se tambm Igrejas representativas do cristianismo de Leste, sejam pelas suasligaes ao Patriarcado Ecumnico de Constantinopla ou ao da Rssia.

    Ambos os fenmenos estabilizao das confisses mais antigas e proliferao denovos grupos e movimentos religiosos podero ser entendidos como indcios de umprocesso de secularizao que vai adquirindo contornos mais ntidos na sociedade por-tuguesa. Ainda que o protestantismo tenha estabelecido historicamente uma relaopositiva com a democracia e com a secularizao, nunca conseguiu capitalizar os divi-dendos dessa convivncia: somente os grupos mais conservadores tm resistido aodeclnio 8.

    Um outro aspecto que entra em jogo na reconfigurao da diversidade religiosatem a ver com as temporalidades. Embora nem todas as minorias religiosas em Por-tugal sejam historicamente recentes recorda-se, uma vez mais, as comunidades Is-raelita e Islmica, as tambm seculares igrejas da Reforma e os ramos evanglicos e asseitas com mais de um sculo como as Testemunhas de Jeov e os Mormons9 , o certo que aquelas que revelam maior capacidade de recrutamento e visibilidade pblica,como o caso dos velhos e dos novos pentecostais 10, surgiram h apenas algumasdcadas.

    8 Por esta razo, J.-P. Willaime (Ibidem: 9-10) designa o protestantismo como uma religio sociologica-mente frgil. O autor fundamenta a afirmao remetendo para as tenses internas que constantementeminam este ramo do cristianismo: tenses entre fundamentalismo e liberalismo, entre clericalismo e sac-erdcio universal, entre confessionalismo e ecumenismo (Idem: ibidem).

    9 Os Mormons tiveram que aguardar a democracia para a sua fixao em Portugal.10 A diferena entre o pentecostalismo e o actual neo-pentecostalismo consiste na incluso, por parte

    do segundo, de um Evangelho de sucesso, acompanhado de uma maior secularizao das normas deconduta a maior liberdade da forma de vestir das mulheres, a permisso do consumo controlado de l-cool ou o recurso a todos os meios de comunicao como factor imprescindvel difuso da mensagemilustram a ruptura com os comportamentos condenveis pelo movimento na sua vertente tradicional.

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    HELENA VILAA

    Na medida em que aqueles grupos so recentes, tal significa que alguns tm aindamembros de primeira gerao e em alguns casos o prprio lder vivo, como acontececom a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e a Igreja Man. Estas duas institui-es aparecem nos anos oitenta e so marcadas por uma rpida expanso, em espe-cial em meios urbanos e peri-urbanos. A Igreja Man fundada em 1984 por um por-tugus e foge, assim, regra da importao. A IURD, com origem no Brasil na d-cada de setenta, vem para Portugal em 1989. Trata-se de um grupo de natureza maissectrios caracterizados pela dominante proftica, centrados no lder e na verdade(Willaime, 1992: 22, 24) que ele juntamente com os seus adeptos representam.

    Aps o 25 de Abril de 1974 e o fim do colonialismo portugus, assiste-se a um re-gresso massivo da populao portuguesa que residia ento nas colnias, para se radicarpreferencialmente nas reas Metropolitanas de Lisboa e Porto. No entanto, e devidoaos conflitos polticos, econmicos e sociais com que aqueles pases recm-formadosse debatiam, houve ainda uma corrente de imigrao, por parte de algumas dezenasde milhar de indivduos naturais das ex-colnias. Com essa corrente de imigrao,nasciam em Portugal as primeiras comunidades islmicas (Tiesler, 2000: 124), for-madas essencialmente por moambicanos e por guineenses, embora estes em nmeroinferior, que se fixaram primordialmente em Lisboa e arredores, mas tambm emnmero considervel na zona do Porto.

    A anlise dos trs ltimos recenseamentos (Vilaa, 2005) no s comprova o au-mento da populao pertencente ao universo minoritrio no seu conjunto, como suge-re uma diversificao interna desse mesmo universo. A par dos novos movimentos edas novas organizaes religiosas que tm vindo a engrossar categorias como outroscristos 11 muulmanos e outros no cristos, assiste-se a um crescimento con-tinuado da comunidade muulmana e de um dos mais antigos ramos do cristianismo,como o caso da Igreja Ortodoxa 12. Concordamos, por isso, com Lus A. Santos (2002:472), quando este afirma que, para as geraes nascidas dentro das minorias reli-giosas, ser portugus significa, cada vez menos, ser catlico, ou ser confrontado coma secular dicotomia entre cultura clerical e cultura anticlerical.

    Indicadores simblicos de pluralismo: o caso de A Bblia Manuscrita

    Para alm destas mudanas de natureza quantitativa, que so significativas notanto pelos seus valores absolutos ou percentuais mas enquanto indicador de novastendncias, constatam-se fenmenos no domnio do simblico que trazem para a cenapblica essa realidade semi-oculta. Os meios de comunicao social so os principaisresponsveis por projectar publicamente as minorias religiosas. A nova visibilidade construda muito mais pelos prprios media que, principalmente, para talk shows con-vidam representantes de diferentes grupos. Fazem-no, por norma, segundo um for-mato sensacionalista e, por isso, com exguas preocupaes de ordem informativa. Em-

    11 Esta categoria, em permanente crescimento constituda maioritariamente por evanglicos quepreferem esta designao de protestantes.

    12 O nmero de aderentes a esta confisso seria possivelmente mais elevado se estivessem contabi-lizados os muitos imigrantes de Leste com situao por legalizar.

  • bora estas minorias tenham tempos de antena prprios, o facto de os seus programasnunca serem no horrio nobre nem em canais de grande audincia no lhes permiteatingir um pblico alargado.

    Comea a tornar-se, de facto, frequente a presena das minorias religiosas (nonecessariamente no plano institucional) e de figuras pblicas (geralmente do meioartstico) em programas de elevada audincia dedicados a vrios temas. A ttulo deexemplo, mencionamos um sobre milagres 13, onde compareceram, entre outros, otelogo catlico Carreira da Neves, estudioso de seitas e NMRs; o ex-padre, assumi-damente marxista e ligado s comunidades catlicas de base, Mrio Oliveira; aabadessa da Igreja Catlica Ortodoxa de Portugal, ainda hoje popularmente conhecidacomo Santa da Ladeira 14; um representante da comunidade islmica; evanglicos, umdos quais da Igreja Filadlfia, de etnia cigana; um Hare Krishna; o presidente da As-sociao de Cpticos de Portugal; um curandeiro e milagreiro; um mdico catlico; umestudante agnstico; o fadista Mico da Cmara Pereira, defensor acrrimo dos mila-gres de Ftima e uma cantora com crenas sincrticas.

    Um evento desta natureza, que confronta, em p de igualdade, indivduos compontos de vista profundamente divergentes em termos religiosos contribui para o au-mento do peso simblico dos grupos minoritrios, realidade que incorporada pelosprotagonistas e reconhecida por parte de quem, de forma passiva, assiste. Recordandoa expresso de Casanova (1994), pode dizer-se que os media, ao publicitarem a religio neste caso, os grupos religiosos minoritrios em Portugal , tornam-na pblica, atin-gindo, por isso, toda a sociedade.

    Outro tipo de eventos tem contribudo para colocar as minorias religiosas na es-fera pblica. Lembramos que a comemorao dos 75 anos da Aliana Evanglica Por-tuguesa, em 18 Janeiro de 1997, foi um facto indito na sociedade portuguesa: o poderpoltico compareceu numa cerimnia pblica duma organizao religiosa minoritria.Esse evento, que teve lugar na Aula Magna, contou com a presena do Presidente daRepblica Jorge Sampaio, do Procurador-Geral da Repblica Cunha Rodrigues, doVice-Procurador Geral da Repblica Jos Dias Bravo 15 e do Ministro da Justia VeraJardim, tendo por isso despertado uma curiosidade meditica adicional.

    Se esta comemorao da Aliana Evanglica pode ser considerada um passo de ex-trema relevncia no sentido em que se assistiu ao reconhecimento e homenagempblica do poder poltico diversidade religiosa, enquanto sector da sociedade quetambm foi penalizado pelo cerceamento das liberdades, A Bblia Manuscrita foi, in-questionavelmente o acontecimento mais mobilizador em termos de uma vivncia re-ligiosa e cultural pluralista.

    Alm de ter reunido todos os ramos do cristianismo e outras religies presentesno pas sensibilizou quer a sociedade civil quer a esfera poltica para o evento. No cam-

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    A RELIGIO E A BBLIA NUM QUADRO DE LIBERDADE RELIGIOSA

    13 Crer em milagres? foi tema do programa da RTP 1 Gregos e Troianos, em 9 de Maio de 2002.14 Lus A. Santos (Ibidem: 414) v no fenmeno Santa da Ladeira um exemplo das dificuldades da hie-

    rarquia eclesistica enquadrar e controlar actualmente a religiosidade popular.15 Convm lembrar que Jos Dias Bravo foi tambm o Presidente da Aliana Evanglica entre 1993 e

    1998. Trata-se de algum que auferiu de papis bem definidos tanto no campo religiosos como a nvel doEstado portugus, respectivamente como dirigente da maior organizao evanglica em Portugal e Vice--Procurador Geral da Repblica. Foi nessa condio estratgica inter-comunicativa que impulsionou o pro-cesso que daria origem nova legislao sobre liberdade religiosa, capitalizando as suas competnciasprofissionais, a sua insero nos crculos jurdicos e a sua proximidade aos lugares de poder poltico emproveito do campo religioso.

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    HELENA VILAA

    po religioso, foi possvel ensaiar em termos ecumnicos algo que em Portugal nuncatinha sido experimentado em mais de trinta anos de liberdade religiosa. O facto de ascomisses organizadoras e as equipas responsveis pelo Scriptorium em cada capitalde distrito serem constitudas por pessoas de diferentes denominaes, bem ilustra-tivo do facto. Se na Expo 98 os vrios grupos religiosos partilhavam um espao comumtendo, para isso sido obrigados a estabelecer uma plataforma de entendimento quantoao modo e tempos de uso do pavilho inter-religioso, no caso de A Bblia Manuscrita aexperincia comunicativa foi mais efectiva.

    Esta iniciativa, sublinhamos, esteve longe de se circunscrever ao campo religioso.As inmeras personalidades do mundo poltico, do campo acadmico, da esfera arts-tica, dos meios de comunicao social, do desporto, entre muitas outras reas, que fize-ram parte da Comisso de Honra, so um sintoma revelador do espectro alargado doevento. Acima de tudo, houve um entendimento de que a religio cultura, sendo aBblia um elemento de cultura material, independentemente das crenas que o livrosustenta, comum a diferentes religies. Tambm o facto de ter reunido apoios e envol-vido pessoas de diferentes reas partidrias (do Partido Popular ao Bloco de Esquerda)assume uma relevncia sociolgica extremamente interessante, uma vez que rompecom a, j referida, tradicional dicotomia que durante sculos acantonou os portugue-ses em cultura clerical e cultura anticlerical, como se a realidade social coubesse total-mente nessa representao redutora.

    Como qualquer outro campo, o campo religioso feito de uma histria acumu-lada (Bourdieu, 2001: 73), ou seja, da conservao de uma cultura religiosa dominante,de atitudes rotinizadas e representaes religiosas do momento. Quer isto dizer quesociedades democrticas que constitucionalmente salvaguardam a igualdade dasvrias opes religiosas podem ocultar modalidades de poder simblico detidas pelosgrupos munidos de mais recursos. A Bblia Manuscrita teve a virtualidade de esbateresse poder simblico da maioria, proporcionando um laboratrio de comunicaode natureza igualitria imagem que se nos afigura, segundo uma linha de reflexohabermasiana, adequada.

    Na perspectiva de Habermas, a razo nas sociedades modernas perde o dogma-tismo uma vez que se reconhece que no h contedos universalmente vlidos (Ibidem,1987). A validade dos enunciados alcanada atravs de procedimentos argumenta-tivos, susceptveis de serem substitudos por outros, fundados num acordo intersub-jectivo, de natureza reflexiva:

    () no agir comunicacional, o resultado da interaco depende ela mesmada possibilidade que os participantes tm de se entenderem mutuamentesobre uma apreciao intersubjectivamente vlida das suas relaes com omundo (Habermas, Ibidem: 122).

    A explicao do campo religioso na modernidade ter de jogar necessariamentecom conceitos como pluralismo e individualizao. O primeiro remete, como j o dis-semos noutro lugar, para a diversidade e no para a singularidade de um nico uni-verso religioso: universos parciais de conhecimento (Berger & Luckmann, 1985), emcoexistncia com um conjunto geral de conhecimentos partilhados. O outro traduz aausncia de explicao de um mundo imposto a partir do exterior, o que significa queo indivduo ter de gerir as suas prprias escolhas (Bovay & Campiche, 1992: 28-29),organizando, deste modo, o seu universo de representaes.

  • REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES 117

    A RELIGIO E A BBLIA NUM QUADRO DE LIBERDADE RELIGIOSA

    A Bblia Manuscrita insere-se, a nosso ver, num tipo de vivncia religiosa e culturaltpica da modernidade, naquilo que a modernidade comporta em termos de pluralis-mo e livre conscincia individual. Trata-se, assim, de algo que merece ser objecto dereflexo enquanto um dos muitos cenrios possveis do pluralismo religioso e da in-tersubjectividade das realidades, o que no alheio a uma situao de plena igualdadejurdica, tal como foi concebida por Rawls (1987). Finalmente, poderamos arriscar queA Bblia Manuscrita, enquanto fenmeno da realidade concreta se aproxima de umideal-tipo de pluralismo, segundo os parmetros da interaco comunicativa de Berger& Luckmann (Ibidem) e da tica comunicativa de Habermas, ambas preconizando es-paos de participao social muito abrangentes.

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