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R~MOtJD}~r~:, o~ ~ .s: Ov ~. ~7~·. ~J1c)8~,~Adt-1i9 1 AS ORIGENS DA REVOLUÇÃO o problema das origens da Revolução pode-se reduzir a um paradoxo: o das relações entre a Revolução e o Antigo Regime, tema que prendeu a atenção de Tocqueville. A Revolução rompe com o Antigo Regime, exprime o desejo de uma ruptura, a mais total possível, e, no entanto, ela emana desse regime. De que modo, então, ela pode ao mesmo tempo romper com o Antigo Regime e derivar dele? Este é um problema fundamental, talvez o maior pro· blema da reflexão hist6rica, problema que, aliás, é suscitado cada vez que ocorre uma mudança, quer se trate de revoluções,a de 1848 ou a de 1917,ou de guerras, sobretudo as duas guerras mundiais: de que modo a guerra procede do estado de coisas anterior? O que é que ela conserva e o que é que ela modifica da situação anterior? A Revolução Francesa é o acontecimento que coloca esse pro· blema com a maior acuidade, na medida em que se trata do primeiro acontecimento desse tipo (as outras revoluções, todas, se inspirarão no modelo de 1789) e na medida em que ela surge com uma rapidez sem igual e ocasiona uma mudança radical. Historiadores e fil6sofos políticos fizeram carreira discorrendo sobre ela, e o pensamento poli- tico do século XIX, todo dominado pelo fato revolucionário, se per· gunta sobre a sua legitimidade, sua necessidade, suas conseqüências, e não seria possívelcompreender coisa alguma do pensamento político do século XIX se não se levasse em conta essa reavaliação geral. Mas o leque das respostas é amplo, e dispomosde tantos sistemas de explicação quantos os diferentes fatos a serem explicados. Freqüentemente, cada sistema de explicação privilegia de modo abstrato e acadêmico um tipo de fatos. Esforçar-nos-emos também 104 por destacar a interdependência desses fatos e suas articulações; por demonstrar de que modo a Revolução originou-se de sua convergência. Os princípios de explicação e as séries de causas Depois de um século e meio de estudos hist6ricos sobre o acon- tecimento revolucionário, a fim de perscrutar-lhe as causas, o campo de explicação não parou de se ampliar. No início, o leque era redu- zido; os historiadores oscilavam entre uma explicação de tipo propría- mente político (a crise das instituições) e a que põe em destaque o movimento das idéias, o despertar dos espíritos, o fator ideo16gico. Subseqüentemente, a observação histórica foi aos poucos fazendo emergir outros fenômenos e a atenção se deslocou do institucional para as estruturas da sociedade e o papel da economia. Paulatina- mente, as explicações foram-se multiplicando. Mas, tão viva quanto há um século, continua a tentação de reduzir essa pluralidade de explicações a um princípio único. Para uns, será a luta de classes; para outros, a alta dos preços, reduzindo todos os outros fatores a causas secundárias, direta ou indiretamente ligadas ao tipo de expli- cação privilegiada. Essa tendência, contudo, apresenta mais riscos do que vantagens e, se uma lição se impõe depois de um século e meio de historiografia revolucionária, é justamente a da diversidade e da complexidade dessa história, por demais variada para se deixar reduzir a uma causa única, sejam as ambições de Philíppe-Egalité, a cavalaria de São Jorge, a franco-maçonaria ou a alta dos preços. Cada uma dessas causas, isolada, é impotente para dar contas da totalidade do pro- cesso revolucionário. Também me parece mais prudente levar em consideração a pluralidade dos fatores. Na verdade, nem mesmo assim o problema está completamente resolvido, restando ainda estabelecer uma hierar- quia entre os diferentes fatores, nem todos de igual importância; e a ação de Philippe-Egalité teve menos importância do que a crise das instituições ou a alta dos preços. É preciso, portanto, que se dê a cada um desses princípios explicativos a importância que lhe é devida. E a tarefa do historiador é, precisamente, a de apreciar ª.importância relativa, a importância respectiva de acontecimentos diferentes, estabelecendo uma escala, levando em conta o fato de que é muito verossímil que as mesmas causas não tiveram em 1792 a mesma importância que em 1789, c: recensear as principais expli- cações·indo do acidental para o essencial. 10.1

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R~MOtJD}~r~:, o ~ ~ .s: Ov

~. ~7~·. ~J1c)8~,~Adt-1i9

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AS ORIGENS DA REVOLUÇÃO

o problema das origens da Revolução pode-se reduzir a umparadoxo: o das relações entre a Revolução e o Antigo Regime,tema que prendeu a atenção de Tocqueville. A Revolução rompecom o Antigo Regime, exprime o desejo de uma ruptura, a mais totalpossível, e, no entanto, ela emana desse regime. De que modo,então, ela pode ao mesmo tempo romper com o Antigo Regime ederivar dele? Este é um problema fundamental, talvez o maior pro·blema da reflexão hist6rica, problema que, aliás, é suscitado cadavez que ocorre uma mudança, quer se trate de revoluções,a de 1848ou a de 1917,ou de guerras, sobretudo as duas guerras mundiais: deque modo a guerra procede do estado de coisas anterior? O queé que ela conserva e o que é que ela modifica da situação anterior?

A Revolução Francesa é o acontecimento que coloca esse pro·blema com a maior acuidade, na medida em que se trata do primeiroacontecimento desse tipo (as outras revoluções, todas, se inspirarãono modelo de 1789) e na medida em que ela surge com uma rapidezsem igual e ocasiona uma mudança radical. Historiadores e fil6sofospolíticos fizeram carreira discorrendo sobre ela, e o pensamento poli-tico do século XIX, todo dominado pelo fato revolucionário, se per·gunta sobre a sua legitimidade, sua necessidade, suas conseqüências,e não seria possívelcompreender coisa alguma do pensamento políticodo século XIX se não se levasse em conta essa reavaliação geral.

Mas o leque das respostas é amplo, e dispomosde tantos sistemasde explicação quantos os diferentes fatos a serem explicados.

Freqüentemente, cada sistema de explicação privilegia de modoabstrato e acadêmico um tipo de fatos. Esforçar-nos-emos também

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por destacar a interdependência desses fatos e suas articulações; pordemonstrar de que modo a Revolução originou-sede sua convergência.

Os princípios de explicação e as séries de causas

Depois de um século e meio de estudos hist6ricos sobre o acon-tecimento revolucionário, a fim de perscrutar-lhe as causas, o campode explicação não parou de se ampliar. No início, o leque era redu-zido; os historiadores oscilavam entre uma explicação de tipo propría-mente político (a crise das instituições) e a que põe em destaque omovimento das idéias, o despertar dos espíritos, o fator ideo16gico.Subseqüentemente, a observação histórica foi aos poucos fazendoemergir outros fenômenos e a atenção se deslocou do institucionalpara as estruturas da sociedade e o papel da economia. Paulatina-mente, as explicações foram-se multiplicando. Mas, tão viva quantohá um século, continua a tentação de reduzir essa pluralidade deexplicações a um princípio único. Para uns, será a luta de classes;para outros, a alta dos preços, reduzindo todos os outros fatores acausas secundárias, direta ou indiretamente ligadas ao tipo de expli-cação privilegiada.

Essa tendência, contudo, apresenta mais riscos do que vantagense, se uma lição se impõe depois de um século e meio de historiografiarevolucionária, é justamente a da diversidade e da complexidade dessahistória, por demais variada para se deixar reduzir a uma causaúnica, sejam as ambições de Philíppe-Egalité, a cavalaria de SãoJorge, a franco-maçonaria ou a alta dos preços. Cada uma dessascausas, isolada, é impotente para dar contas da totalidade do pro-cesso revolucionário.

Também me parece mais prudente levar em consideração apluralidade dos fatores. Na verdade, nem mesmo assim o problemaestá completamente resolvido, restando ainda estabelecer uma hierar-quia entre os diferentes fatores, nem todos de igual importância;e a ação de Philippe-Egalité teve menos importância do que a crisedas instituições ou a alta dos preços. É preciso, portanto, que se dêa cada um desses princípios explicativos a importância que lhe édevida. E a tarefa do historiador é, precisamente, a de apreciarª.importância relativa, a importância respectiva de acontecimentosdiferentes, estabelecendo uma escala, levando em conta o fato deque é muito verossímil que as mesmas causas não tiveram em 1792a mesma importância que em 1789, c: recensear as principais expli-cações·indo do acidental para o essencial.

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 R,uolu~ão. simples acidente?

Um primeiro grupo de explicações, que não vê na RevoluçãoFrancesa mais do que um acidente, resolve o problema suprimindo-lhe09 dados. De acordo com essa versão, a Revolução não era fatal e erapossível evitá-Ia. Ela não representava a vontade do povo, mas apenasa dos revolucionários, e 56 um concurso imprevisto de circunstânciasfortuitas teria provocado, por uma seqüência de acidentes, o desen-cadeamento da Revolução. Nesse caso, seria inútil procurar razõesprofundas para acontecimentos que poderiam ter tomado uma direçãomuito diferente. Resta apenas colocar em destaque o encadeamentodas circunstâncias, e a explicação da Revolução se fragmentará numasérie de mal-entendidos ou de escândalos, entre os quais o do colarda rainha, o deficit orçamentário, as veleidades de Luís XVI e umaquantidade de pequenos fatos que, em conjunto, ficariam com aresponsabilidade da Revolução.

Que pensar desse tipo de comentário, ainda encontrado em algu-mas histórias? Essa tese leva em consideração alguns pontos darealidade. Sublinha o caráter imprevisto, imprevisível, do fato revo-lucionário, que, sem dúvida, não era efeito da fatalidade. A partirde uma narração circunstancial de epis6dios fortuitos, pode-se encon-trar o que houve de efetivamente contingente, de acidental, no desen-rolar dos acontecimentos de que se originou a Revolução. Essa tesetambém põe em evidência o papel das individualidades.

Mas dela não se deduz que o encadeamento dos fatos tenhaobedecido a alguma lógica. Ainda resta explicar de que modo cir-cunstâncias de todo fortuitas puderam engendrar conseqüências detamanha amplitude. Em outra situação, as mesmas ocasiões nãoteriam produzido os mesmos efeitos. Se quisermos penetrar mais nainteligência do desenvolvimento e na apreciação da importânciado acontecimento, é portanto indispensável descer um degrau naescala das explicações e fazer intervir outros fatores.

..4. influência oculta das minorias

Esse tipo de explicação, que encontra fácil acolhida junto auma opinião pública satisfeita em pensar que, definitivamente, ahistória se reduz à ação de cabalas, faz a fortuna de coleções de obrasou de publicações. O esquema - um dos mais vulgarizados - nãovale apenas para a Revolução Francesa: com efeito, ele pode apli-car-se a todos os fenômenos históricos, aos conflitos sociais, por exemplo,que se reduzirão à ação de alguns cabecilhas, logo qualificados de

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maus pastores, aos quais opõe-se a inocência de um rebanho tresma-lhado. Esta é, no século XIX, a tese de todos os governos conserva-dores, a que inspira a política .de Metternich que, entre 1815 e 1840,na Alemanha e na Itália, pensa estar lidando apenas com pequenasminorias de universitários ou de militares. Inútil, portanto, empreen-der reformas: tudo é culpa de um punhado de jacobinos, que per-vertem a opinião pública. Basta que os governos reduzam-nos aosilêncio e os impossibilitem de causar dano, e não haverá mais nemagitação nem problema. Essa explicação é ainda invocada pelosmovimentos de tipo nacional na Europa, no século XIX e, no séculoXX, fora da Europa: sempre se crê que se trata de um punhado de ,,-indivíduos movidos pela ambição ou estipendiados pelo estrangeiro,e que o resto da população só quer viver em paz, feliz com seustatus quo,

Forjado a propósito da Revolução, o princípio da influênciaoculta de pequenos grupos que tramam contra a ordem estabelecidaencontra aplicação num grande número de casos, quer se tratemdas intrigas do duque de Orleans, do papel das sociedades secretas, dafranco-maçonaria ou ainda do ouro que a diplomacia inglesa teriadistribuído largamente na França.

Essa explicação tem o mérito de colocar em destaque o papeldas minorias. Os que acreditam que podem explicar tudo pela re-volta espontânea das massas pecam por exagero porque, quer setrate de movimentos sociais, nacionais ou de revoluções políticas, aexperiência histórica revela a intervenção de pequenos grupos pre-cursores, que formam as vanguardas. Mas a influência dessas mino-rias, a ação dessas vanguardas seriam das mais restritas se elas nãoencontrassem nas massas simpatias declaradas ou implícitas. Evitando'levá-Ias em conta, a explicação toma uma direção diferente. Se, porexemplo, a ação das lojas maçônicas ou dos amigos do duque deOrleans se fazia sentir ao arrepio do movimento geral, se a totalidadedo país tivesse assegurado à monarquia e ao Antigo Regime umaadesão sem falhas, o governo não teria dificuldade em contrariar suasintrigas. ~ porque gozaram do apoio da população que eles conse-guiram êxito. Aliás, a contraprova nos é fornecida no século XIX,quando não é por falta de ter tramado a derrubada dos regimesbaseados nos princípios de 1789 que os contra-revolucionários fra-cassam, mas porque eles estão isolados, porque não encontram naopinião pública essa conivência com a qual foram beneficiados 09revolucionários de 1789.

A explicação pelas minorias deve, portanto, ser aceita por suacontribuição positiva, mas com a condição de ser colocada numa

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perlpectiva de conjunto, que leva em conta as ligações entre as van-suard~ e o resto da sociedade,pois é dessa reciprocidade de trocas,desaa aliança. das minorias e das massas que dependem todos osgrandes movimentoshistóricos.

Embora dêem ênfase a circunstâncias, a acidentes ou minorias,essas teorias,dando destaque ao caráter inevitável da Revolução Fran-cesa, não bastam para explicar tudo; é forçoso, portanto, apelar paraoutras teorias: O elo de causalidade, de necessidade entre a situaçãoanterior e a evolução dos acontecimentos, parece tão estreito e tãodireto que, às vezes, somos levados a perguntar como a. Revoluçãonão surgiu mais cedo. Como o elo de causalidade pode cobrir umamultidão de causas de natureza muito diferente, é necessário exami-ná-Ias uma por.uma.

Os fatores de ordem econômica

t preciso cuidado para não confundir econômico - no sentidopróprio do termo - e financeiro: esses termos podem interferir, mascontinuam distintos por natureza.

As causas financeiras da Revolução prendem-se ao deficit orça-mentário, que por certo teve o seu papel, pois foi a causa da convo-cação dos EstadosGerais. O estudo das instituiçõesdo Antigo Regimefez-nos ver a situação cronicamente defeituosa das finanças, devidoà ausência de administração financeira, a que se deve acrescentar aimpotência da monarquia para acabar com os privilégios.

A situação é agravada peIa guerra da América, que obriga adespesasconsideráveise provoca o recurso dos empréstimos. Eis umtipo de causas meio estruturais e meio conjunturais, pois as conse-qüências financeiras da guerra da América derivam da conjunturae do estado crônico das finanças das estruturas.

As causas econômicas,porém, são muito mais importantes e du-radouras e se relacionam com o próprio regime da economia francesa,isto é, com o modo pelo qual a produção das riquezas e a distribuiçãodos bens são organizadas.

Algumas dessascausas dependem de conjunturas, e esse elementonão pode ser negligenciado. A economia francesa, em 1789, encon-tra-se num período diííeil, e muitas vezes já se imputou a responsa-bilidade da crise que ela atravessa à aplicação do tratado de câmbio--livre, assinadoem 1789entre a França e a Inglaterra. Nos anos 1780a Europa tenta uma espécie de liberalização das relações econômicas,uma primeira experiência ainda tímida, de câmbio-livre. Vários

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tratados de comércio e de navegação são então assinados entre aFrança e os jovens Estados Unidos, a Inglaterra, a Suécia, e diversospaíses bálticos. Esses tratados têm em comum a intenção de aumentaro intercâmbio comercial e diminuir as barreiras aduaneiras, abrindoassim uma brecha no sistema mercantilista, que controlava de formarigorosa as relações entre as economias nacionais. Esse tratado, deno-minado Eden, do nome do negociador britânico, é mal recebido naFrança, onde industriais e comerciantes o responsabilizam pelo seumarasmo. t difícil hoje, à distância, dizer se essas recriminaçõestinham base. Cada vez que se diminuem as barreiras aduaneiras,comerciantes e industriais lançam altos brados: isso aconteceu depoisdo tratado de câmbio-livre, de 1860, que privou o Segundo Impérioda simpatia dos produtores e, posterionnente, depois de 1950, a pro-p6sito do plano Schuman. Depois da assinatura desse tratado, seriaa situação econômica tão desastrosa quanto o davam a entender osmanufaturistas? Se era esse o caso, o tratado teria alguma utilidade?Fiquemos com a idéia de que o tratado e as conseqüências que lheeram atribuídas puderam concorrer para o nascimento de um estadode espírito revolucionário, com o descontentamento dos produtores,que responsabilizavampor eles um regime que defendia tão mal suaexistência.

Mais determinantes, por certo, foram os (atos de estrutura, osque decorrem da organização da economia francesa. Essa economiaé caracterizada pelos entraves que pesam sobre ela, uns técnicos, ou-tros jurídicos. A ameaça crônica de penúria faz da fome o primeiroproblema de governos e governados; a França vive sob o medoobsessivoda carência de alimentos, a lembrança das carestias anterio-res e o temor de seu retorno. Falou-se, no fim do reinado de Luís.XV, de um pacto de fome, o povo pensando que o governo estavaunido aos açambarcadores para diminuir a produção e promover oaumento dos preços. As carestias são tanto mais temíveis nos casosem que a população aumenta rapidamente, mais depressa do que aprodução dos cereais. Entre 1715 e 1789, a população da Françaaumentou aproximadamente da metade, passando de 18 ou 19_~hões para 26 ou. 27 milhões, o que fez com que' a agriculturase"visse UDPossibilitada:--de-aumentar esse excedente. A populaçãoconta com 8 a 9 milhões de bocas suplementares e esse desequilíbriotende a se acentuar.

Essa situação inscreve-se dentro de um movimento de longaduração. Na história da economia fala-se das variações dos preçose dos movimentos a curto e a longo prazo. Mais ou menos pelos

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fins do reinado de Luís XIV, essa tendência é ascendente, e aeconomia da Europa está comprometida num movimento de lentaascensão dos preços, o que provoca uma série de conseqüências hojebem conhecidas. A alta faz parte de um conjunto favorável à expa!l-são da produção e. o século XVIII é, para alguns, um século deprosperidade. Essa alta provoca o aumento dos preços das merca-dorias; para quem se encontra ~~ posição de consumidor - ooperário assalariado, o artesão, obrigado a comprar produtos alimen-tícios -, isso significa aumento das despesas e diminuição do poderaquisltívo. A conjunção da penúria intermitente e do contínuoencarecimento explica o descontentamento e o nascimento de umespírito pré-revolucionârio nessa parcela da população urbana quedepende, para sua subsistência, da produção agrícola. O mesmofenômeno enriquece os outros grupos, os que produzem e vendem.Constata-se, por esse exemplo, o caráter ambivalente da maioria dosfatos, notadamente econômicos, o que constitui uma das constantesda realidade social. Desse modo, o mesmo fenômeno torna algunsfelizes e outros infelizes e é impossível afirmar se em si ele é bené-fico ou nefasto, dependendo o julgamento das circunstâncias que seescolhe para examinar e das categorias sociais que se leva em con-sideração.

t preciso ainda dizer uma palavra a respeito do sistema das cor-porações, que faz parte da organização jurídica e institucional dasociedade, contribuindo para o aumento da opressão. Com efeito,em numerosos ramos de atividade, o trabalho não é livre, mas regu-lamentado, e não se pode exercê-Io se não se fizer parte de uma cor-poração, Assim, a quantidade, a forma, as condições da produçãosão fixadas, e qualquer infração é sancionada com multas, às vezescom a proibição de produzir ou de vender, constituindo uma carac-terística da corporação o fato de o poder público delegar-lhe atribui-ções coercitivas. O conjunto dessas exigências, que pouco antes eramjustificadas por necessidades sociais, políticas, muitas vezes financeiras,perdeu, no fim do Antigo Regime, sua justificação. O progressotécnico, a multiplicação das invenções, o acúmulo de capitais, onascimento de novas formas de indústria, a formação de uma classede negociantes concorrem para prescrever essa organização. Noplano da atividade econômica, existe o mesmo contraste que, do pontode vista da organização social, é travado entre organizações seculares,que parecem anacrônicas, e as forças novas que tentam aboli-Ias. Semdúvida, o desejo de inovar, a necessidade de iniciativa, conquistoumuitos produtores para o campo das forças revolucionárias em 1789.

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A organização social e a crise da sociedade

Achando-se a economia condicionada e regulamentada peluestruturas jurídicas e as instituições, resta determinar as causas quese relacionam com a própria organização da sociedade do AntigoRegime.

A crise dessa sociedade é determinada pelo antagonismo que opõeuma organização (baseada na hierarquia, na desigualdade, na exis-tência de ordens, na defesa dos privilégios) e as novas aspirações dasclasses cuja ascensão se inicia. De ano para ano, a diferença se tomamais acentuada, pelo deslocamento de riquezas, que empobrece nnobreza e enriquece a burguesia, pela evolução intelectual, pela rea-valiação das bases jurídicas e intelectuais da ordem tradicional. Ateimosia dos privilegiados, sua dureza ao defender seus postos con-tribuem para exasperar- os antagonismos, para transformar as tensõesque existem em toda sociedade em tensões propriamente revolucio-nárias, e isso tanto mais que o poder real, até então árbitro das com-petições de amor-próprio e das concorrências de interesse, não temmais condições para arbitrar.

A partir do instante em que a opinião pública começa a ter emvista outras possibilidades e a fazer um julgamento crítico a respeitodo estado de coisas existente, a situação não é mais apenas objetiva-mente revolucionária, mas começa a se tornar tal politicamente.

As causas políticasAs causas políticas são talvez as mais determinantes de todas

porque, política, a Revolução irá atacar a própria forma do regimee a organização do poder.

Contudo, é preciso que se dissipe um equívoco. Toda uma inter-pretação da Revolução Francesa - essa que ainda inspira muitasvezes os compêndios escolares - apresenta a Revolução de 1789como uma reação liberal contra uma monarquia cujo jugo seteria tornado insuportável, uma reação contra a autoridade e oa~olutismo. Isso também ocorreu, por certo, e a tomada da Das-tilha é o símbolo da derrubada do despotismo por um povo que quebraos seus grilhões. Contudo, observando mais de perto, além do sim-bolismo de acontecimentos espetaculares, nos perguntamos se a mo-narquia não morreu vitimada mais por um excesso de fraqueza doque de autoridade: por não ter conseguido impor aos privilegiados9 respeito pelo interesse geral.. Um poder mais forte, mais respeitado,

~~a talvez sabido prevenir uma crise revolucionária. Poder-se-iadize-r da monarquia francesa, no fim do Antigo Regime, o <]UIl

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Bainville disse do tratado de Versalhes: rigoroso demais para a fra-queza da organização por ele instituída e fraco demais para a severi-dade das cláusulas que impunha à Alemanha. O mesmo acontececom a monarquia, que pretende ser absoluta, mas que carece muitasVe2e!de meios para atingir seus objetivos. Mal usada administrati-vamente, desprovida de finanças regulares, ela não tem meios paraconter as pretensões dos privilegiados. Desse modo, sob Luís XVI,a luta várias vezes secular entre a coroa e os privilégios recomeça,as corporações multiplicam suas reivindicações, os oficiais do rei seemancipam: é a revolta dos Parlamentos, a má vontade da Assembléiados Notáveis;a insubordinação em todas as escalasda pirâmide social:

A Revolução começou como uma revolta dos privilegiados, antes.de ser a revolta do terceiro estado contra a sociedade privilegiada.Foram eles que deram o sinal de desobediência e que, sem o saber,abriram o caminho para o processo revolucionário. Se a monarquiativesse sido mais forte, se tivesse tido os meios que ambicionava, elateria contido os privilegiados, impondo as reformas que a preocupaçãobem compreendida da razão de Estado lhe teria inspirado. Não eraesse o caso, e todas as tentativas de reforma, as de Maupeou, no fimdo reinado de Luís XV, as de Turgot e de Nec~~.r,chocaram-se contraa resistência das ordens privilegiadas. A confusão vai mais longeainda: não só a monarquia foi incapaz de resistir, como deixou-seconquistar pelos privilegiados, cujas causas passou a defender. Agindoassim, ela se afastava da linha de conduta tradicional, que os sobera-nos haviam transformado em princípio fundamental de sua política:a aliança com os elementos mais evoluídos do terceiro estado contra ofeudalismo. A aliança que se alardeia, às vésperas da Revolução,entre o poder real e os privilegiados, lançará a burguesia na oposiçãorevolucionária. Assim se explica a mudança de rumo de um movi-mento, que de antinobiliário se tomará antimonárquico, porque en-globará a instituição real na animosidade dirigida contra as ordensprivilegiadas.

Nessa relação triangular entre a monarquia, os privilegiados e oterceiro estado, o processo vai provocar a extensão da revolução.. Re-volta dos privilegiados, revolução antinobiliária, revolução antimo-nárquica: esses são os três estágios sucessivosde um movimento queirá destruir até as raízes a ordem política e social do Antigo Regime.

o movimentadas idéias. Sua difusão na opinião pública

Os fatores de ordem intelectual e ideológica, o movimento dasidéias do século XVIII concorreram amplamente para a gênese da

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Revolução. Com efeito, as teorias políticas não são concebidas apenuno silêncio dos gabinetes, por pensadores isolados, mas alimentamtambém os movimentos de opinião. Contudo, entre o conteúdo ori-ginal e sua difusão, as teorias sofrem alterações. Assim é que o que aopinião retém dos escritos de Voltaíre ou de Montesquieu está bas-tante afastado do que eles escreveram ou pensaram. Contudo, esseconteúdo desnaturado, se não é intelectualmente dos mais ricos, é,historicamente, o que ele tem de mais importante, de mais decisivosob o ponto de vista da história em movimento. Constitui-se, assim,no fim do Antigo Regime, uma espécie de vulgata, que populariza asidéias dos filósofose que é difundida bem além do círculo dos leitores.De fato, com os que haviam lido Montesquieu e Rousseau ou comos assinantes da Enciclopédia não havia motivo para se fazer umarevolução: a Enciclopédia não teve mais do que 4000 ou de 5000assinantes,menos do que nossas revistas de interesse geral. Mas seriaum grande erro medir o papel histórico da Enciclopédia apenas poressa cifra, porque é preciso levar em conta a difusão subterrânea, queveicula as idéias e 'as faz penetrar por osmose em camadas maisamplas.

Ao lado dos escritos, existe também a força dosexemplos, a con-tribuição dos precedentes e da experiência. O· da revolução amerí-cana propõe uma solução de recâmbio a uma parte da opiniãopública, que deseja confusamente uma renovação profunda e a quemas simples reformas não parecem mais suficientes. Ela sonha comuma reforma que seria feita dentro da ordem e da harmonia, com oconsentimento e mesmo por iniciativa do poder real. O espírito daRevolução definiu-se por essa vontade de racionalismo, que caminhaao arrepio do respeito à tradição, próprio do Antigo Regime, e poresse sonho de uma unificação que faria tábua rasa da diversidadede instituições acumuladas há séculos.

Eis os fatores principais que convergem para determinar a Re-volução; é no seu concurso que reside a interpretação mais válida:a que junta a conjuntura e os fatos de estrutura, que associa o polí-tico ao social, explicando de que modo, a partir de uma situação decrise, os movimentos de idéias puderam desencadear um processoirreversível. II a conjunção de todas essas causas que constitui aforça explosiva da Revolução e que não permite que se a considereum simples acidente que sobreveio de forma inopinada na evoluçãode uma determinada sociedade.

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o PROCESSO REVOLUCIONÁRIOE SEUS SALTOS

Se as causas que passamos em revista bastam para explicar ospródromos da Revolução (convocação dos Estados Gerais, proclama.ção da Assembléia Constituinte), elas nem por isso explicam a se-qüência dos acontecimentos. Com efeito, o leque das causas deixalivre a escolha do processo de procura de um novo equilíbrio, eco-nômico e político e não impõe método algum para essa reforma dasociedade, que constitui a própria finalidade da Revolução.

1. DOIS MODOS POSSíVEIS DE EVOLUÇÃO:

MUDANÇA OU ADAPTAÇÃO

Por que a Revolução?A ruptura de um equilíbrio não é necessariamente o fato de

uma revolução. A experiência mostra que as sociedades podem esco-lher entre dois modos de transformação: um por mudança brusca,outro por adaptação gradual.

A mudança brusca provoca uma 'súbita ruptura na continuidadeda História. É o caso da Revolução Francesa que, primeira no gênero,criou um precedente, pesou sobre a História e que, desde então, servepara designar toda ruptura análoga. Se outros países seguiram seuexemplo, isso aconteceu tanto por contágio quanto pela força dohábito. Na França, a revolução surge no século XIX como a soluçãoclássica, normal, poder-se-ia dizer, se os termos "revolução" c "nor-mal" não fossem contraditórios. A revolução é o recurso que seimpõe para derrubar um .regime cuja legitimidade é contestada,

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tornando-se assim, depois de 1830, 1848, 1870, a fórmula banal doreajustamento, de onde a freqüência das revoltas e a sucessão deexperiências constitucionais. Como o exemplo francês fez escola, aEuropa passa a trilhar o mesmo caminho até que a revolução soviéticade 1917 toma-lhe o lugar, transformando-se, por sua vez, no modelo deoutra linhagem de revoluções.

A adaptação gradual, mediante reformas sucessivas, sem ruptura,é a fórmula preconizada por todos os reformistas, e a escolha entrereforma e revolução continua a dividir socialistas e democratas.

Os reformistas podem invocar em seu apoio o exemplo de diver-sos países, a começar pela Grã-Bretanha que, nos séculos XIX e XX,evitou revoluções e nem por isso evoluiu menos do que os países ondeas revoluções foram-se sucedendo a cada geração. Na Inglaterra, aevolução é demarcada por reformas legislativas - as eleitorais, porexemplo, cuja cronologia põe em destaque o desenvolvimento dademocracia: 1832, 1867, 1884-1885, e 1918 - votada por um Parla-mento eleito regularmente. Essas reformas eleitorais, é verdade, nãoafetam senão um setor da vida política; contudo, sua importânciaé incalculável, pois elas constituem a alavanca que depois permitiráque a opinião pública consiga, pelos meios legais, transformações detoda natureza. O exercício do direito de voto permite às forças daoposição, ao derrubar a maioria, chegar ao poder, modificando assimprofundamente o estilo da vida política e o estado da sociedade, comofoi o caso, em 1945, da vitória dos trabalhistas. Se compararmos asituação da Grã-Bretanha de hoje ao que ela era no início do séculoXIX e se fizermos um paralelo entre sua evolução e a curva descritapela sociedade francesa, constata-se que a Grã-Bretanha está hojetão afastada da velha Inglaterra quanto a França da V Repúblicada França do Antigo Regime. Essa é, portanto, a prova de que ospaíses podem evoluir por adaptação sem recorrer à revolução.

Os Estados Unidos propõem outro exemplo dessa forma deevolução, a mais surpreendente de todas, pois desde a guerra da Inde-pendência os Estados Unidos não sabem o que é uma revolução,constituindo-se o único acidente, de outra ordem, a guerra civil, que,no entanto, não modificou o regime nem provocou diretamente umatransformação profunda. Contudo, desde a adoção da constituiçãoaté nossos dias, os Estados Unidos conheceram um progresso prodi-gioso, sem paralelo em nenhum outro país. Sua população passoude pouco mais de 3 milhões para mais de 200; de agrícola e comercialque era, esse país se tornou a primeira potência industrial do mundo;seu território dilatou-se até atingir as dimensões de um continente; elecriou um modo de vida, uma forma de sociedade inédita e, no

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entanto, vive sempre sob o regime que escolheu para si em 1787.Completamente transformado, ele pôde contudo conservar seu quadroJrutitucional, o que é bem uma prova de que existem dois modos deevolução e, entre eles, toda espécie de casos intermediários, de variantes.

A França, como vimos, se comprometeu, quase sem hiatos, naevolução de tipo revolucionário. Mas essa escolha teria sido feitade modo deliberado? Se o foi, por quê? Na verdade, a princípionada havia sido posto em risco; muito pelo contrário, no início de1789, sente-se que a França vai empreender profundas transformações,mas amigavelmente e dentro do respeito à ordem.

Assim, é o rei quem toma a iniciativa de convocar os EstadosGerais, o .que lhe vale o reconhecimento popular - que não temosnenhuma razão para pôr em dúvida - como está consignado noslivros em que os delegados anotaram nas sugestões. Não existen.!....~da republicanos; a lealdade à monarquia é forte e, quando seabrem os Estados Gerais, todos ou quase todos esperam que umacordo entre o rei e a nação permitirá levar a cabo as mudanças.que se impõem. Para explicar a passagem brusca da harmonia parao' desacordo eo conflito não basta o exame dos antecedentes; comefeito, se as causas mostram claramente a necessidade de mudança,'!.c:.~.p_c:>~_is~ elas postulavam a queda da monarquia, e somos assimforçados a procurar outros elementos de explicação para o rumotomado pelos acontecimentos.

Uma sucessão de revoluções em cadeia

Uma história revolucionária mostra uma série de saltos inespe-rados. Poder-se-ia pensar que a França, escolhendo o caminho darevolução, leva a cabo uma reforma total, atendo-se desse modo àordem estabelecida. t. isso, aliás, o que pensavam os contemporâneos,em 1789 e, mais tarde, em 1791, quando a Assembléia constituinte sedissolve, ap6s ter restabelecido o rei em seus poderes: Q .. rei compa-rece à Assembléia e jura fidelidade à constituição,. que havia sidoobjeto de Uma revisão visando a torná-Ia deftm~"'ª' Percebe-seentão um sentimento quase geral de que a' era. das revoluções haviasido encerrada e que se iniciava um longo período de estabilidade,no qual a França poderá gozar, sem tempestades, da renovação queacaba de realizar.

Isso, porém, não acontece: o tO .~~agosto e a queda do tr0n,~,o que se segue ao 9 termidor, assim como outros acontecimentos,desmentem sucessivamente essa esperança.

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Temos, portanto, à frente um suceder-se de revoluções. A expres-são que usamos correntemente de Revolução, no singular, é enganosaporque, se serve para identificar o período, dissimula essa seqüênciade revoluções, que se seguem nos anos que vão da convocação dos

.Estados Gerais ao 18 brumário (por ora, deixaremos de lado a ques-tão de saber se o período que inaugura o golpe de Estado de brumárioprolonga a Revolução ou assinala irrevogavelmente o seu fim).

Distinguem-se diversas fases nitidamente individualizadas, quesão como outras tantas revoluções, cada uma com seu espírito, cadauma propondo-se um programa, fixando objetivos. Cada revoluçãotem também seu pessoal próprio, apóia-se numa categoria social depreferência a outras e deixa uma herança, instituições, processos deioverno, que concorrem para diferenciá-Ia das outras fases.

1. Como fase preliminar, a crise pré-revolucionária opõe aopoder real a resistência dos privilegiados por intermédio da Assembléiados Notáveis, dos Estados provinciais, dos Parlamentos. Ela se carac-teriza pela rebelião contra o absolutismo e seus agentes locais, osintendentes.

2 . Em seguida, inicia-se a Revolução propriamente dita, quan-do os Estados Gerais decidem transformar-se em Assembléia Nacional,tomando a resolução de não se dissolver enquanto não for dadaà França uma constituição, cuja elaboração empreendem. Este é omomento decisivo da Revolução, aquele em que se realiza a mudançada soberania, que deixa de se identificar com a pessoa do rei e passaa residir, de aí por diante, na representação da ..I1ªç.?o, pondo dessemodo fim a séculos de monarquia. Essa revolução, muitas vezeschamada de revolução dos juristas, merece duplamente esse nomeporque, de uma parte, é feita por homens da lei e, de outra parte,sua pr6pria ação é de essência jurídica.

A Assembléia Constituinte torna a resolução de dar à Françanovas instituições; essa reorganização não deixa de lado nenhumsetor: por isso, na. noite de 4 de agosto, ela se dedica à ordem socialcom a votação de decretos que consumaram a ruína do feudalismo.

Essa primeira revolução é mais antinobiliária do que antimonár-quica, pois, enquanto limitava os poderes do rei, não deixa de con-servar o princípio da monarquia no novo regime, tentando assimconciliar a instituição real herdada do passado com as aspirações daFrança moderna.

Sua inspiração é essencialmente individualista e liberal, palavrasquase sinônimas: toda a obra da Constituinte, administrativa, social,financeira, judiciária, traz a sua marca.

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. 3 . Essa primeira fase revolucionária é logo seguida de umaI/Íegunda, que nada anunciava, nem nas intenções nem nas dísposí-.,( c;líes da primeira. Ela se inicia com a jornada popular de 10 de'I ag()sto 4!tJ]~.s..que derruba a monarquia, executa o monarca e'. proclama a República.

Mais radical, ela vai muito além da precedente em todos osdomínios, sejam eles políticos, sociais, religiosos ou econômicos, e secaracteriza por um impulso democrático. Esta é a ocasião de lembrara distinção capital entre liberalismo e democracia que, tendo ele-mentos comuns, nem por isso deixam de ser profundamente diferentes.A primeira revolução, a da Constituinte, era liberal. A segunda vaialém dos limites do liberalismo: tende a acabar com as diferençassociais, .suE~~.!!.l.e_.ª_distinção censitária, sobre que repousava, sob oregime da constit~!ª'O .91;.1191, Q exercício dos direitos políticos., '.- __ .~_.. " _ _~_ -

Ela é popular também pelos que a fazem. Enquanto a primeirahavia sido feita por uma burguesia abastada de togados que, depois,toma a seu cargo as administrações departamentais e municipais, a

. segunda é obra da plebe de Paris, das divisões administrativas, dos

. sans-culottes,A primeira faz uso de meios moderados, enquanto que à segunda

não repugna recorrer a soluções extremas, se as circunstâncias, tantointernas como externas, parecerem exigi-lo ; o Terror é um aspectodessa revolução.

Há diferença também no plano das instituições políticas e admi-nistrativas: a primeira revolução liberal suprimiu todos os agentesdo poder central, enquanto a segunda, em parte porque as circuns-tâncias constrangem-na a isso, compromete-se numa direção díame-tralmente oposta, voltando às iniciativas descentralizadoras de 1789--1791 e estabelecendo um governo concentrado, autoritário, que nadafica a dever ao absolutismo monárquico. O governo revolucionárioalia assim uma política de inspiração democrática a um poder forte,desembaraçado de todos os entraves que a monarquia não haviaconseguido extirpar, ficando tudo subordinado à noção de salvação

\ pública, que constitui a forma moderna da razão de Estado. E issoi continua assim até o 9 termidor.

4. À margem da hist6ria clássica, tal como é escrita em funçãodos debates das assembléias ou da agitação parisiense, desenvolve-seuma revolução provinciana. No verão de 1789, fazendo eco aos acon-tecimentos do 14 de julho, uma revolução municipal substitui nascidades as tradicionais municipalidades por novos poderes. Na zonarural, uma revolução camponesa, cujos objetivos são propriamente

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agrários, prossegue seu curso pela emancipação completa da terra~. a libertação do indivíduo; acabando com o que ainda resta defeudalismo e, notadamente, dos direitos feudais, que a reação nobi-liária torna mais detestáveis. Trata-se de um movimento autônomo,que tem seu programa, seus personagens, e cujo ritmo não coincide59m o da revolução parisiense. A revolução agrária é feita em etapas .sucessivas, intermitentes, a primeira das quais é o Grande Terror,uma espécie de [acquerie, bem sucedida graças ao terror que inspiraaos senhores e à Assembléia que promete - dentro de certo prazo -a abolição dos direitos senhoriais. Outros ataques espasm6dicos con-seguirão, em 1793, a supressão imediata desses direitos, cuja extinçãogradual havia sido prevista pela Constituinte por a~ortização.

Alguns historiadores, recentemente, chamaram a atenção parauma revolução mais avançada, e mais radical, empreendida pelosenragés, facção extremista, que se situava mais à esquerda que ossans-culottes e os jacobinos, sonhando com uma reforma total da or-dem social e com a supressão de qualquer desigualdade. O movimentode Babeuf, enfim, embora diferente, situa-se em seu prolongamento .

Depois do 9 termídor, a história da Revolução perde essa belasimplicidade que lhe era conferida pela dramatização da luta entreas facções. A linha geral se altera e se embaraça, como se a Revoluçãohesitasse. Ela detém sua marcha, volta atrás, tateia, procurandoatender a solicitações contrárias. A Convenção termidoriana, e de-

. pois o Diret6rio, oscilam entre a restauração do passado e o incre-mento da Revolução. Os dois regimes se aparentam mais com a

.primeira fase - a da Constituinte - do que com a fase posterior\ ;a~ 10 de agosto de 1792; é clássico o paralelo v= as duas constitui-\. içoes, a de 1795, ou do ano lU, e a de 1791, assim como entre as duas;,\Políticas econômicas e sociais. Os termidorianos voltam ao liberalismo,

pnde se inspiravam os constituintes, e abandonam sem pena a políticademocrática avançada, posta em prática pelos integrantes do partidoda montanha. Se formulamos essa observação em termos de forçassociais, diremos, mas com muita cautela, que a Revolução, depoisdo termidor, volta a ser burguesa, em oposição à revolução popular,\que se situa entre 1792 e 17~t..· .i O regime oscila entre dois perigos: o da contra-revolução realista

I'eo do jacobinismo ou, como se diz na época, da "cauda de Robes-'pierre". Bonaparte é o elemento de decisão e o 18 brumário marca".0 fim dos dez anos de saltos sucessivos.

Desse modo, em 1789, a França decide-se por uma mudançaradical e a Revolução é feita em etapas sucessivas. Revolução de

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repetição, poder-se-ia dizer, cujas diversas fases separam-se umas das

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outra5' por outras tantas rupturas da legalidade: 10 de agosto deI 1792. termídor, dias do Diretório, Essas rupturas ligam-se a dois~ tipos nitidamente diferenciados: jornadas populares e golpes de

Estado.

2. Os FATORES DO PROCESSO REVOLUCIONÁRIO

Podem-se discernir fatores de duas ordens: de um lado, umasérie de fatores amplamente independentes da vontade dos homens,que pesam sobre eles, ao invés de serem por eles controlados, e queconstituem coação, aquilo que Saint-Just chama de "força das coisas";por outro lado. fatores mais pessoais,mais ligados ao caráter dos quea empreendem, às suas ambições,às suas convicções. Enfim, podem-sedistinguir fatores objetivos e fatores psicol6gicos.

A ccFORÇA DAS COISAS"

o problema dos meios de subsistência

Já vimos os problemas que as possibilidades dos recursos ali-mentares causam ao crescimento demográfico; analisaremos agora suasconseqüências políticas. A Revolução não está livre da carestia e,por várias vezes, o povo passou fome, porque os gêneros alimentíciossão raros e os preços inexoráveis. A incerteza da chegada de merca-dorias, com a psicologia das massas revolucionárias, causa nervosismo,irritação e concorre para o sentimento de insegurança. Tomaremosa encontrar essa situação em outras circunstâncias análogas, com arevolução soviética entre 1917 e 1922, por exemplo, que tambémsofreu as conseqüências da fome.

Várias espécies de indícios revelam a ligação entre o problemados meios de subsistência e a situação política, como, por exemplo,o lugar tomado nas palavras de ordem pelas reivindicações relativasao abastecimento. Nas jornadas de outubro de 89, é porque asprovisões não chegam que uma multidão se põe em marcha atéVersalhes. Ao trazer o rei de volta a Paris, afastando-o de umacamarilha considerada hostil, ela espera assegurar o sucesso da Re-volução e garantir a chegada regular dos comboios de farinha. :ebom não esquecer os apelidos familiares com que é ridicularizadaa família real: o padeiro, a padeira e o pequeno ajudante. No tempoda Convenção Termidoriana (1795), .por ocasião das jornadas da

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miséria, é ao grito de «Pão e a constituição do ano I" que o povoinvade as salas de reunião, associando uma reivindicação política auma palavra de ordem relacionada com o abastecimento,

Encontra-se outro indício desse fato no sincronismo dos calen-dários. A maioria dos movimentos populares ocorrem nos momentosem que ainda não foi feita a soldagem entre os estoques da colheitaprecedente, já esgotados, e a nova colheita. Ê durante o verão,quando os moageiros não têm mais farinha, quando os padeiros estãosem provisões, que ecIodem os movimentos em favor, do terror, naesperança de uma solução satisfat6ria para o problema dos meiosde subsistência (setembro de 1792, setembro de 1793).

A Revolução, portanto, é feita aos saltos, que em geral nem sãoprevistos .nem esperados. A febre, o nervosismo da população pari-siense representam um fator de aceleramento, empurrando para aboca da cena a facção disposta a adotar medidas extremas e, seo partido da montanha leva a melhor sobre os girondinos, isso ocorreporque o povo confia nele para assegurar o reabastecimento.

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o medo

o medo, sob todas as suas formas, afeta sucessivamente todasas categorias e partidos políticos; trata-se de um medo ora espon-tâneo, impulsivo, irracional (o Grande Terror), ora usado, suscitadopor facções, explorado, como poderosa anna política. Ambos ospartidos, o contra-revolucionário c o revolucionário, fizeram uso dele.Os emigrados tentam a intimidação - é assim que o manifesto deBrunswick ameaça de subversão total a cidade de Paris; eles contamcom o medo para desencorajar os revolucionários ou para isolá-los,Em sentido oposto, os revolucionários fazem uso do Terror contraseus adversários. Essa dialética de temores simétricos e antagônicos,do terror e do contraterror, tem um lugar muito importante nodesenrolar da Revolução.

A guerra

De todos os fatores, ªgllerra é talvez o mais determinante, em-bora não tivesse desempenhado-i1-enIlUni--pâpclno início, pois em1792 a França vive. e~_ 'paz. Em 1790, a Constituinte declarousolenemente a paz no mundo e ninguém imagina que essa situaçãodeixe de existir. Mas, em_.~bril de 1792, a Assembléia Legislativn.declara guerra ao rei da Boêmia e da Hungria, e desde então intro-

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duz-IC um novo dado, que irá modificar o sistema das relações que, provocam conseqüências incalculáveis.

A iniciativa de fazer guerra a certos soberanos tem como primeira, conseqüênciao fato de,a sorte da Revolução depender, daí por diante,I não mais, apenas da decisão das assembléias, mas do desenrolar daguerra e do a.'!:l1cSQ,doscombates, Estabelece-se um elo, uma solida-riedade de interesses, entre o curso da Revolução no interior e asvicissitudes da guerra além-Ironteiras., ., ,'o ' ,

Por isso, altera-se o desenvolvimento natural ..da Revolução cujaconseqüência direta é o governo revolucionário. Se a Revolução, apartir de 1792-1793 se vê obrigada a reconstituir um poder centralautoritário, contra as esperanças de 1790, ela o faz obrigada pelaguerra. As condições de exercício do poder são profundamente modi-ficadas, ~,g?orantias suspensas, as liberdades...individuais__colocadasentre parênteses. O Terror é uma conseqüência da guerr~!

Examinando toda a história das instituições e da administração,vemos que não há decisões ou acontecimentos que não sejam re-percussõesda guerra, até mesmo o 18 brumário. Robespierre soubever isto muito bem e, no debate que dá origem à declaração, deguerra em abril de 1792, ele é um dos ramos que se lhe ()pQ,em:.da guerra sairá a ditadura.

A questão religiosa

Duas teses opõem-se no tocante às relações entre a questãoreligiosa e a Revolução. De acordo com a primeira, a Revolução,sendo fundamentalmente anti-religiosa, de inspiração intrinsecamenteanticristã, deveria fazer guerra à Igreja, e ela limita-se a tirar-lhe asconseqüências,quando persegue a Igreja, lança os padres nas prisõesou condena-os ao massacre; a outra interpretação reduz a impor-tância do conflito entre Revolução e Igreja a um simples acidente.De início, os revolucionários não se propunham a descristianizar aFrança; pelo contrário, queriam reconstruir a nova França em funçãodo cristianismo: uma sucessão de mal-entendidos levou ao cisma.

A verdade está entre essas duas teses extremas. É fora de dúvidaque a Revolução, no início, não é._ªº#:!:~Ug!osa,embora. seja anti-c1c;rical. Contudo, considerar-'isso'-~m simples'acidente, é diniTriUira importância dos primeiros acontecimentos. Se os revolucionáriosquiseram regenerar a Igreja, é porque não conheciam a constituiçãoprópria da sociedade religiosa e sua iniciativa só poderia levar a umaruptura. A constituição civil do clero implicava disposições inacei-

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táveis, porque atentavam contra a .,e~trutura hierárquica da Igreja~_contra os laços entre a Igreja g!lliçíl~a.e ,Roma. .Depois, uma se-qüência aparentemente inelutável de causas e de efeitos provocou acondenação da constituição civil do clero pelo papa, o cisma e a-per-seguição. Seja como for, tal ruptura teve conseqüências incalculáveispara a própria Revolução, pois os católicos foram rejeitados em suatotalidade para o campo da contra-revolução, enquanto o gaixo cleroproporcionava ao terceiro estado uma ajuda muito preciosa; a aliançaeE.,~~.,o terceiro estadoe o clero ..é que deu condições à Revolução.

A~'conseqüências, a longo pr~o, ultrapassarão o período cevo·'lucionário, pois o conflito entre Revolução, e Igreja Católica pesarádurante um século e meio sobre toda a Europa: trata-se do divórcioentre a F.!.a~ç~cristã do passado e a nova França. Desde a Restaura-ção até a Terceira República as duas Franças lutarão entre si,dividindo profundamente a sociedade francesa. No conflito que,no século XIX, opõe católicos a democratas, existe não só a clássicacompetição pelo poder (como a, que opunha Luís XIV aRoma)mas também uma prova de força entre duas concepções, () confrontoe..!!!re,~lI:a:;Jilosofi<lSP()I~ti~,entre duassociedades.

O conjunto desses fatores explica a maioria dos saltos e dassurpresas que o desenrolar da Revolução causou aos contemporâneos.

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As VONTADES E AS PAIXÕES

A esses fatores objetivos, acrescentam-se outros, mais subjetivos,mais propriamente humanos, psicológicos ou políticos.

Com efeito, do lado dos detentores do poder, é preciso levar em"conta a má vontade e as reticências do soberano, as intrigas da corte,o complô aristocrático, como se diz em 1789, o prejuízo que os emi-:grados causaram à coroa, o duplo jogo do rei e da política do pior,praticada por contra-revolucionários convencidos de que do pior sairiadepois o melhor. Essas intrigas, verdadeiras ou supostas, lançaram asuspeita e muito fizeram para desarraigar da opinião pública. o Iea-lismo monárquico. No campo contrário, entraram em jogo as segu~-das intenções dos revolucionários, desejosos de ir mais longe, as dis-senções, as rivalidades entre pessoas ou grupos, as lutas de facções,

,que o curso dos acontecimentos, os problemas nascidos da guerra aomesmo tempo revelaram e acentuaram por uma interação permanenteentre os problemas objetivos apresentados aos responsáveis e os sen-timentos humanos.

Tal interação explica esses dez anos de saltos. É a convergênciade todos essesfatores que imprime à hist6ria da Revolução esse ritmo

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Intermitente, que ff2 dela um período intensamente dramático e quedeu voga ao sentimento de que estava em ação uma misteriosa fata-lidade. São essas - dentro da possibilidade de reduzir história tãocomplexa e movimentada a um pequeno número de fatores - aschaves principais do desenrolar da Revolução.

S. A REVOLUçÃO E A EUROPA

Os acontecimentos de que a França é teatro afetaram a Europae mesmo uma parte do mundo. De que modo a influência da Revo-lução estendeu-sea outros países? É o que temos que examinar paraavaliar as dimensõesdo acontecimento. A resposta prende-se ao es-tudo das relações circunstanciais, diplomáticas ou militares, entre aFrança da Revolução e a Europa. Tais relações passaram por váriasfases, cada uma assinalando uma etapa na difusão das idéias revo-lucionárias.

A primeira etapa

A primeira etapa vai de 1789 à declaração de guerra (20 deabril de 1792). Num primeiro tempo, os acontecimentos da Françasuscitam além-fronteiras a comiseração dos soberanos, a curiosidadee a simpatia de parte da opinião pública. Quase todas as grandesinteligências da Europa discerniram imecliatamente a novidade doacontecimento; dão-lhe testemunho as opiniões que podem ser pro-curadas em Kant, em Goethe e em outros mais. A opinião públicaesclarecida teve, de chofre, o sentimento de que se iniciava uma novaera da história européia. Essa compreensão foi facilitada pelo cos-mopolitismo europeu, pois o intercâmbio de idéias fazia da Europauma espéciede pátria comum dentro da qual as experiências, os escri-tos, as idéias dos filósofos encontravam ressonância universal. Ora,esse cosmopolitismoera dominado pela influência da França. Como,no séculoXVIII, a língua francesa é o veículo das idéias e dos escritos,a Europa culta fala francês e pensa em francês. Está, portanto,preparada para prestar atenção aos acontecimentos da França.

Por seu lado, a Revolução Francesa não se fechou em si mesma;de imediato ela pretende e espera agir em escala mundial e, conse-qüentemente, dirige-se ao mundo. De fato, os acontecimentos daFrança logo passam a exercer sobre seus vizinhos certo contágio,provocando reaçõesem cadeia; os povos se agitam, e alguns deles nãoesperam por 1789. Assim os súditos do papa, em Avignon, e no

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condado, exigem sua integração na França; os súditos do rei daSardenha, na Savóía, fazem o mesmo. Alhures, mesmo em paísesque não têm fronteiras comuns com a França, surgem movimentosrenovadores: a Polônia, estimulada pelo exemplo francês, abole oliberum veto, que paralisava o poder e colocava a independência dopaís à mercê de seus vizinhos, e dá a si mesma uma constituição (3de maio de 1791). Um pouco por toda parte, delineiam-semovimen-tos contra os príncipes, os senhores, os bispos, contra os privilégios.A Revolução logo deixa de ser propriamente francesa. Pode-se jáentão falar de uma revolução da Europa Ocidental.

A segunda etapa

A segunda etapa, conseqüência da primeira, é a ruptura entrea França e os soberanos, contida em germe no contágio exercido pelomodelo revolucionário. ~sse segundo período (1792-1799) caracte-~a:-se pela guerra. Os soberanos, inquietos quanto à própria autori-

"dade, pressentem a gravidade do perigo, percebem a necessidade desufocar a Revolução em seu' berço, exigindo a salvação da ordemestabelecida que a Revolução seja esmagada na própria França,enquanto que, por seu lado, a Revolução é levada a fazer guerraa.0S "déspotas".

Essa guerra é de um gênero relativamente novo. Antes, comoas relações internacionais do Antigo Regime caracterizavam-se peloprincípio dinástico, os países guerreavam entre si para conquistarterrit6rios limitados; com o antagonismo entre a Revolução e a Eu-ropa surge uma guerra de tipo ideol6gico. A Revolução empreendeuma cruzada contra o Antigo Regime; ela não se limita a repelir oinvasor; passa à ofensiva e empreende uma guerra de libertação.A França dos girondinos anuncia que prestará assistência a todos osPovos que queiram se libertar da tirania.

A natureza dessa guerra provoca uma dissociação nas comuni-dades políticas. A.linha divisória entre revolucionários e contra-re-volucionários passá. de aí por diante para o interior de cada povo.Na própria França os franceses combatem a Revolução, alinham-seao lado de seus adversários, enquanto que os soberanos têm contra siparte de seus súditos revoltados, que esposam a causa dos exércitosrevolucionários. Quando os exércitos franceses entram no vale doReno ou no norte da Itália, são acolhidos com simpatia, e até comentusiasmo, por uma parte da população. Encontram-se jacobinosmesmo nos países onde os franceses jamais haviam penetrado, comona Inglaterra ou na Hungria. A opinião pública se reclassifica em

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funçlo das preferências ideológicas, que se sobrepõem ao apego ao1010 e à fidelidade dinástica. ..

Entre os soberanos e a Revolução, a luta é desigual. A Europa,coalízada, reagrupando diversos Estados, com maior número de habi-tantes, deveria normalmente levar a melhor, e, contudo, o verdadeirocomposto de forças dá vantagem à Revolução, que está mais apta alevar até à vitória essa guerra de novo tipo. O Antigo Regime éincapaz de adotar e mesmo de conceber a mesma estratégia quea Revolução. Os soberanos conservam os antigos métodos diplomá-ticos, militares, enquanto que a Revolução inova, recorre a meiosinéditos, mais eficazes. Ela faz o recrutamento de toda uma naçãoe desse modo restabelece o equilíbrio lançando contra exércitosprofissionais, pouco numerosos, as massas mobilizadas e, sobretudo,motivadas.

A Revolução corrige a situação, reconduz à fronteira os invasores,penetra por sua vez em território estrangeiro, anexa, ocupa, transformapolítica e socialmente. Ei-la triunfante. A invasão, a guerra, a ocupa-ção provocam a abolição do Antigo Regime. Por toda parte dissol-: .vem-se as ordens, abole-se o feudalismo, extinguem-se as corporações, "dispersam-se as congregações, seculariza-se o Estado, proclama-se aigualdade civil, e se introduzem as instituições da França revolucionária.,

O Diret6rio provoca a formação das repúblicas-irmãs, como res-posta a duas preocupações: uma, puramente militar, visa a disporao redor da França uma trincheira de proteção; a outra, cujo alcanceé mais longínquo, visa a preparar a transformação da Europa. Aprimeira dessas repúblicas-irmãs é a República Batava, que sucede àsProvíncias Unidas: seu nascimento atende às aspirações unitárias epopulares há muito tempo contidas pela burguesia patrícia. Masa Itália é o local privilegiado do f1orescimento dessas repúblicas, acisalpina, a liguriana - a antiga República de Gênova -, a romana,herdeira dos Estados da Igreja, a partenopeana, que substitui o Reinode Nápoles. Virá depois a República HeIvética.

A Revolução, por uma espécie de 16gica inexorável, depois dehaver declarado a paz nornundo, foi levada a fazer guerra à Europa:lutando por sua segurança, passou à ofensiva e revolucionou a me-tade do continente.

A terceira etapa

A terceira etapa é dominada pela personalidade de Napoleão,cujo modo de agir, nesse plano, não representa nenhuma ruptura

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com a Revolução, mas constitui um prolongamento da obra empre-endida pelas assembléias e os diretores. Napoleâo conjuga a guerrae a administração, a ação dos prefeitos e a presença das tropas.

A Revolução não tinha tido tempo para ir além da margemesquerda do Reno e da Itália. Napoleão estende seus domínios atéas extremidades da Europa, da península ibérica à Polônia e dasprovíncias i1íricas até a Dinamarca. Vários Estados são anexadosà França ou colocados sob sua tutela. O Grande Império, no seuapogeu, em 1810-1811, cobre metade da Europa e a França contacom 130 departamentos. A Europa é profundamente remanejada,suas fronteiras são empurradas e os Estados reagrupados em novosconjuntos.

Napoleão leva para toda parte os princípios e instituições revo-lucionárias;a velha sociedade tradicional das ordens desaparece; oclero e a aristocraCia perdem seus privilégios; a servidão é abolida,õ- homem libertado, a terra emancipada. A burguesia e as classesmédias vêem abrirem-se para elas novos campos de atividade e deiniciativa. Uma sociedade nova nasceu em todos os países ocupadose administrados pela França.

Paralelamente, Napoleão introduz os métodos de administraçãomoderna. A divisão territorial adotada pela França em 1800 é esten-dida à Itália, com osdepartaIllentos, à cuja frente estavam os pre-feitos, os corpos técnicos, a administração financeira, a magistratura,os departamentos de viação e obras públicas. Grande parte daEuropa, sujeita à hegemonia francesa, encontra-se de fato política,social e administrativamente unüicada, enquanto o bloco continentalreforça ainda mais essa homogeneidade. Sem dúvida, a experiênciafoi muito rápida para que essa unificação durasse, mas foi o bastantepara tornar irreversíveis várias mudanças.

Essa unificação acentua ainda a diferença entre duas Europas.Com algumas exceções, a linha de divisão entre a Europa napoleô-nica e a outra coincide coma antiga linha de demarcação, já esboçadaem várias ocasiões, entre a Europa voltada para o exterior e a Europavoltada para si pr6pria; a Europa das sociedades marítimas e aEuropa das sociedades terrestres; a Europa da monarquia absolutae da burguesia e a Europa do despotismo esclarecido. O corte quemarca a separação entre os territórios ocupados e transformados pelaFrança, e os demais, agrava a düerença cronol6gica e acentua adisparidade das evoluções.

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3

A OBRA DA REVOLUÇÃO

Qual é o balanço da Revolução? Em que ela mudou a ordemdas coisas?

Duas reflexões preliminares, servirão de norma ao que vem aseguir:

1. Em primeiro lugar, nem tudo o que a Revolução empreendeudurou; do que ela apenas esboçou, muito desapareceu no naufrágiode 1814. São várias as razões dessa desigualdade no destino eduração das mudanças. Nem sempre a Revolução teve inspiraçõesfelizes; seus projetos,muitas vezes, eram utópicos, às vezes até retró-grados. Com efeito, nem toda a Revolução está voltada para o futuro;ela também alimenta um sonho nostálgico em relação à idade deouro e às antigas repúblicas. Essa parte de quimera não deveriasobreviver à Revolução. Pelo contrário, certas idéias, certas expe-riências sofreram por estarem à frente de seu tempo; alguns aspectosda política econômica, por exemplo, eram prematuros. Entre asinovações, muitas irão desaparecer com a Restauração, mas não parasempre. Poder-se-ia quase descrever toda a história do século XIXcomo a redescoberta progressiva das antecipações da Revolução ouescrever a história da Revolução como a de uma série de intuiçõesproféticas e de sinais que 56 se tornarão realidade meio século ouum século depois.

Por agora, interessa-nos fazer o balanço positivo do que perma-nece após a tormenta revolucionária, o inventário objetivo do queresistiu à prova dos fatos e ao contragolpe da Restauração depoisda Revolução.

2. A frase anterior dá origem à segunda observação: que querdizer "depois da Revolução"? Quando terminou a Revolução? Onde

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começa o seu depois? A 18 brumário? Em 1814, em 1815, na pri-meira ou na segunda abdicação do imperador?

Qual é o lugar de Napoleão no tocante à história da Revolução?Em outras palavras: Bonaparte prolonga a Revolução ou a destrói?Ele é seu herdeiro ou seu coveiro?

A resposta é tão pouco evidente que, desde então, duas inter-pretações contraditórias se opõem.

A primeira coloca em destaque a ruptura e afirma que Napoleãomatou a Revolução. O 18 brumário é um golpe de força dirigidocontra a Iegalidade. Napoleão é um tirano, que violou a constituição,dispersou as assembléias, confiscou a liberdade. É assim que ele semostra aos membros dos Conselhos e é assim que o vêem os jacobinos,que conspiram, entre 1800 e 1804, contra o seu poder. O segundo.Império, e as circunstâncias de seu estabelecimento, o golpe de Estadode 2 de dezembro, a perseguição dos republicanos, corroboraramretrospectivamente essa versão, reforçando a analogia entre Napoleãoe a tirania.

Napoleão, não se pode negar, derrubou o regime legal e confiscoua liberdade. Se a Revolução se identifica com a liberdade do indiví-duo, a conclusão não encerra nenhuma dúvida: Napoleão é o inimigoda Revolução. Mas a diversidade dos movimentos revolucionáriossugere que a Revolução não se reduz ao respeito da liberdade indi-vidual; tanto isso é verdade que todo um capítulo da história pro-priamente revolucionária, a que se inicia na noite de 10 de agostode 1792 e cujas características são o Terror e o governo revolucio-nário, faz pouco caso das liberdades.

É fácil, portanto, imaginar que um segundo ponto de vista apre-sente uma interpretação completamente diversa sobre a pessoa deNapoleão, suas idéias e seu papel hist6rico, dando destaque à conti-nuidade e fazendo dele o herdeiro, o soldado, o defensor, o mártiraté da Revolução. Os soberanos execram nele o homem que conso-lidou a obra da Revolução, e ele próprio, mais do que ninguém, con-tribuiu para fixar esse ponto de vista com o Memorial. Se se consi-derar menos o homem do que a obra, esta segunda versão tem maisforça do que a primeira: Napoleão consolidou a obra da Revoluçãoporque, purgando-a do que ela tinha de excessivo e de contestável,assegurou-lhe a possibilidade de durar.

Assim, para traçar o balanço das transformações e descrever aobra da Revolução, não nos devemos situar em 1799, porque nessaépoca a obra revolucionária está em suspenso e seu futuro dependedo remanejamento consular. Sem que seja necessário remontar a

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I 1814,ê preciso contudo incluir cperíodo consular, pois sãoas grandes: leu de 1800-1802 que dão estabilidade à herança da Revolução e ànova França sua fisíonomía definitivae.,

A Revolução tocou em tudo i por isso passaremos em revistaos principais setores da vida coletiva, que serão divididos em cincocapítulcs. -,

No primeiro, relativo à organização do poder e ao Estado, estu-daremos as formas políticas do Antigo Regime, o que ainda restoudele e o que desapareceu; em segundo lugar, num nível inferior,analisaremos a administração e os meios de ação do poder. Essesdois capítulos iniciais têm em comum o fato de ambos dizeremrespeito ao governo dos homensi a terceira parte versará sobre asrelações entre religião e sociedade, a Igreja e o Estado; o quartocapítulo, sem dúvida, o mais importante, trata da ordem social queteve origem na Revolução; e, em último lugar, veremos a contri-buição que a Revolução trouxe para a idéia nacional" o sentimentopatriótico, as relações internacionais, a diplomacia e a guerra.

1. O ESTADO

A Revolução afeta não s6 os princípios da organização políticacomo também as práticas da vida política. . -,.-

Evolução da Noção de Polltica

Com a Revolução, a própria noção de política mudou e nossanoção moderna, mesmo se depois sofreu diversas transformações,descende dela em linha reta. A comparação com o que era a política'antes da Revolução dará maior destaque a essa novidade.

Comparação com o Antigo Regime

1. Sob o Antigo Regime, a política é reservada a um pequenonúmero de pessoas: só a conhecem e só têm voz política alguns indi-víduos, em razão de seu nascimento, nos regimes oligárquicos, ouporque gozam di confiança' do príncipe, nos regimes monárquicos.De qualquer modo, trata-se sempre de uma minoria restrita. Osegredo envolve todas as decisões.

Com a Revolução, ap~U!içª. __transforma-se em coisa de to.~os,~ coisa pública. Esse é, aliás, um dos sentidos da palavra república,que toma o lugar da monarquia, e é exatamente em razão dessa

lJO

transferência da soberania que a política, ele agora em diante, ínte- .ressará a cada um, que todos os cidadãos.l~ o. direito de seremJ~fonna.dos e até o dever de se informarem. Tal evolução tem conse-qüências capitais, entre outras a publicidade q~_çl_ecisõ_es,a liberdadede imprensa, a publicidade dos trabalhos parlamentares. e o chamadogoverno da opinião. .

Ampliação do campo da política

2. A segunda mudança diz respeito à ampliação do campo dapolítica, que se dilata bruscamente e se estende a toda espécie de ativi-dades que, até então, não dependiam da ação dos poderes públicos,pois sob o Antigo Regime a política. implicava essencialmente namanutenção da ~~ªe..lll~.Il~j~tiça,. na. defesa e na diplomacia.

Com a Revolução, as responsabilidades reconhecidas como dopoder público englobam logo setores que antes dependiam da iniciativaprivada, individual ou coletiva: a assístência rpública, por exemplo- e o' epíteto é significativo -, não cabe mais exclusivamente àIgreja ou à caridade particular. A sociedade tem responsabilidadese cuidar dos indigentes é seu dever; também a Assembléia Consti-tuinte forma um comitê da mendicidade. Do mesmo modo, e oexemplo é mais claro ainda, a instrução pública não depende mais-da Igreja ou das congregações, mas passa à responsabilidade dospoderes públicos. .Estas sãc.as.primícías ..da. evolução, que, por etapas,levará os Estados a culdardo ensino.

A afirmação de que a felicidade 'é um direito do indivíduo e umaresponsabilidade do Estado estende ao infinito o domínio das atri-buições públicas. Se os cidadãos são infelizes, os poderes públicossão considerados parcialmente responsáveis por isso, e cabe portantoa eles fazer de modo que a situação se modifique. Esse é o germede todos os desenvolvimentos que estenderão o campo 'de atividadee das tarefas do Estado..

f';

Importância crescente da política

3. Publicidade dos debates e extensão da política a toda espéciede domínios que antes dependiam do particular, essas duas evoluçõestêm como resultante comum a., promoção da política em dignidademoral e em importância psicológica. É depois da Revolução que apolítica passa a ser considerada como uma das atividades mais altas

talvez a atividade suprema - mas também das mais disputadas,de toda sociedade organizada. É precisamente em razão dessa cres-

131

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conte importância e de suas conseqüências que as decisões políticasprovocam discussõesapaixonadas; é o que inspira a Napoleão estafrue: "Hoje, a. tragédia é a política", querendo dizer com isso que apolítica muitas vezes mostra um caráter dramático, capaz de prendern atenção e de satisfazer a curiosidade até então suscitada pelos dra-mas ligados às ficções do passado, mas querendo também significarcom isso que a vida dos indivíduos, como a das sociedades, estáem jogo.- '> r -. r"~

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Nosso modo de çol()~a.!.os problemas em termos de confrontodata da Revolução que, de certo' modo, provocou uma transferênCiade paixões, antes mobilizadas pelas questões religiosas. O caráterconflitual de nossa vida política, os antagonismos que dilaceram nossassociedades, tudo isso procede dessa nova noção de política, que assi-nala uma profunda mudança na concepção do Estadoe 'de seu P~E~l.

As PRÁTICAS

O princípio, sem as modalidades, teria tido pouca influência.Por isso a Revolução experimentou toda uma gama de meios, poste-riormente retomados e generalizados.

A consulta popular, por meio de eleições

A Revoluçãopôs em prática a eleição em escala muito acentuada;aliás, de um só golpe, ela irá muito além do que todas as experiên-cias ulteriores. Com a Constituinte, a Revolução recorre à eleição,não apenas para a escolha dos representantes da Nação - o que élógico._, mas para a de todas as administrações - municipais e de-partamentais; no que respeita à justiça - os magistrados são escolhi-dos por via eletiva para um tempo limitado; no tocante ao próprioclero, a constituição civil do clero previi'Pque bispos e curas seriamescolhidos pelos eleitores. A eleição torna-se um processo..l:lni\!~!Salde e!colha.·· Mas, se seu campo de aplicação é universal, só umaparcela dos cidadãos têm direitos políticos.

A deliberação pública

As assembléias revolucionárias têm que i!llprovisar um regula-mento, inventar processos de discussão, modos de esct:Utínio,de quenossa experiência parlamentar ainda é tributária.

132

Os novos esteios da vida política

À margem dos, processos regulares e oficiais - eleição, delibera-ção de assembléias representativas -, a Revolução também criou osesteios da vida política, entre os quais, em primeiro lugar, a imprensa;com efeito, é sob a Revolução, entre 1789 e o 10 de agosto, que aFrança. fez a. primeira experiência de completa liberdade de imprensa;

-que, pela primeira vez,' os jornalistas tiveram grande destaque navida política. Grande número de políticos deveram sua influênciaao fato de serem ao mesmo tempo diretores de jornal, ou porquenele encontraram um meio de ação: os CamilIeDesmoulins, os Brissot,os Marat, De aí por diante - e teremos ocasião de verificá-lo noséculo XIX -, existe íntima ligação entre atividade jornaIística eatividade política, entre a liberdade de imprensa e a liberdade política.

Ao lado dos jornais, os agrupamentos políticos oferecem um elode ligação entre as assembléias e os cidadãos; clubes, seções, sociedadesp.9pi,i1ãiés são 'outros tantos centros vivos e nervosos da vida política,a força motriz das jornadas populares. É nesses agrupamentos quese faz a educação política; é por ele que o cidadão passa a participardas decisões. Eles são os antepassados de nossos modernos partidos.Nessa época aparecem, pela primeira vez, o militante, as lutas departidos, todo o sistema de relações entre os partidos políticos e opoder público.

Foi a Revolução a primeira a experimentar tudo isso, emborase trate de uma experiência precária. A liberdade de imprensa con-tinuará, no máximo, por dois ou três anos, das jornadas de outubroao 10 de agosto, e os clubes serão dissolvidoslogo após o 9 termidor.Contudo, por mais breve que tenha sido essa experiência, ela constituipara o futuro uma antecipação cheia de conseqüências. Mais tarde,num contexto mais estável, menos exposto aos impulsos da violência,ver-se-á ressurgir, desenvolver-se e organizar-se por etapas a liberdadede imprensa, da Restauração à Terceira República, com a grandelei da imprensa de 1881, que representa o término de noventa anos detentativas e de experiências.

2. A ORGANIZAÇ'.ÁO ADMINISTRATIVA

Depois dos órgãos de decisão política, seus meios de execução.A organização administrativa constitui o elo de ligação, mediante oqual as decisões políticas tornam-se uma realidade capaz de moldara existência dos indivíduos.

133

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.J

Para as instituições da vida política, o período determinante foiO do inicio, com a Assembléia Constituinte e o goVI:UlP, revolucioná-rio: o período que se segue não acrescenta nada, antes desfaz, coma dissolução dos clubes e a apatia que ataca a política. No queresp~ta ,à_.!tgroinistraçã9, pelo contrário, os anos decisivos situam-seentre 1798.c..Jl3.01. Notemos de passagem a anomalia dessas duasdatas, ligadas a dois regimes - o fim do Diretório e, o início doCons~!ag~ - que o estudo propriamente político tende a opor equetem mais afinidade do que comumente se imagina. Contudo, desdeantes de 1798 a Revolução estava comprometida com uma. série deexperiências, das quais nada sobreviveu, mas que constitui talvez amelhor ilustração da seqüência de revoluções que obedeciam a. inspi-rações nitidamente diferentes,

o papel da Assembléia Constituinte

," A Assembléia Constituinte dirige seu impulso liberal para aordem administrativa, contra o absolutismo monárquico e seus agentes.Combate os abusos do sistema, cuja arbitrariedade denuncia, supri-mindo os íntendentes, os parlamentos, enfim, todo o aparelho admi-nistrativo laboriosamente montado há séculos pela monarquia: nadadisso subsiste desde fins de 1789. A Assembléia reorganiza então osquadros administrativos de alto a baixo, adota a divisão em depar-tamentos, transfere todos os poderes administrativos aos eleitos pelascoletividades locais. As administrações municipais e departamentais,compostas apenas de membros eleitos, administram-se livremente, semcontrole dos representantes do Estado. É a experiência mais ousadade descentralização que a França jamais conheceu; contudo, feita aquente, em plena crise, ela provoca a anarquia. O poder centralnão é obedecido e nem pode confiar em tais administrações; esco-lhidas por um corpo eleitoral censirário, elas defendem, em 1793, acausa dos girondinos: ,ªinsurreição federalista encontrou seu princi-

{paI ap?i? j~~to às administrações departamentais.

o governo revolucionário

As circunstâncias, isto é, os perigos internos e externos, as lutasque a Revolução teve de' travar contra a invasão e a guerra civil,impõem uma total remodelação. O governo revolucionário, apoiadona Montanha, afirma a unidade e restabelece a centralização. "ARepública una e indivisa" é a nova palavra de ordem. Reação vitalditada pelo instinto de conservação, contra o perigo mortal provocado

134

pela descentralização. A organização estabelecida pela AssembléiaConstituinte subsiste, mas sujeito ao controle de representantes emmissão, auxiliados pelo que hoje se denominaria hierarquia paralela,a rede das sociedades populares. As sociedades, afiliadas ao clubedos jacobínos, constituem uma segunda administração, que controlaa primeira, denuncia os funcionários suspeitos e ineficientes, e tempoder para substituí-Ios ou destituí-Ios. Esse aparelho centralizado,que funciona com eficácia, é uni dos artesãos da vitória,

o Diretôrio

Depois da descentralização extrema da Constituinte, da reorga-nização provisória, empreendida a poder de expedientes pelo governo~yõÍlicionário, o Diretórío dá início a uma reorganização destinadaa. durar e deixa uma obra administrativa que nunca poderá ser menos-l?~~~a. O Diret6rio tem uma reputação deplorável, não inteira-mente justificada; algumas de nossas instituições datam dessa época:o sistema f~s~al que caracterizou o século XIX, apelidado de quatreuieilles (imposto fundiário, quota pessoal e mobiliária, impostos sobre.portas e janelas, patente}, assegurará o essencial 'das receitas doEstado, até a adoção do imposto sobre a renda, durante a PrimeiraGuerra Mundial.

No que respeita às instituições militares, o Diret6rio adota, coma lei Jourdan, o sistema de conscrição, dividindo os conscritos emclasses convocadas de acordo com a necessidade (1798), enquanto aRevolução vivera de expedientes, lançando mão de convocações emmassa e do recrutamento de voluntários.

o Consulado

1

O Consulado põe fim às oscilações e estabiliza as instituições.Bonaparte faz uma triagem nas experiências da Revolução, adota oque considera viável, restabelece por vezes o que lhe parece deveria serrestaurado, faz uma amálgama disso tudo e lança as bases da admi-nistração moderna. O capítulo administrativo da reforma consularé um de seus aspectos mais duradouros e traça o quadro em quevivemos ainda hoje. Diz-se que Bonaparte deu à França sua consti-tuição administrativa. Se as ÇQ~~tituições.políticas do Consulado edo Império não sobreviveram a Napoleão; a constituição administra-tiva foi conservada por todos os regimes posteriores. 'Recé'nseandó-Iheas características, delineamos o panorama da sociedade dos séculosXIX e XX.

13.5

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o remanejamento empreendido durante o consulado estabeleceuma administração perfeitamente centralizada: tudo parte de Paris,dceiW~,.~.º~~.a..s~, ..1;...~Q.Q.._.;g.ba.en.L.r-ª-~i!;__..r.e.I-ªt9_tiº_s.Jjnform?:çºes,reqqerilnelltos. A administração central se organiza visando a deter-minadas metas e dentro de alguns ministérios mais numerosos doque sob o Antigo Regime; entre esses ministérios, a distribuição de.tare.fas obedece a divisões mais racionais. Sob o Antigo Regime, aadministração interna estava fragmentada entre as secretarias de Es-tado, enquanto que agora existe um Ministério do Interior.

• • ' •.• "'0_' ~"o ,.o, •.••.• _,_,._ .•• ,_.",_""_ ., ••••• ~.

A administração é rigorosamente hierarquizada, em todos os seusescalões; todos os funcionários são nomeados pessoalmente, recebemsua autoridade de uma autoridade superior e estão sujeitos a revo-gação, regra a que não escapavam, sob o Consulado e o Império,nem ..mesmo os prefeitos. Isso prova até que ponto o Consuladodefende o contrário da inspiração liberal da primeira revolução. Àfrente de um departamento, o prefeito é o chefe de todas as adminis-trações de seu departamento, mas continua à discrição do podercentral.

A administração é especializada, pois encontram-se administraçõesespecíficas para as finanças, a justiça, viação e obras públicas, oculto (o clero faz parte do corpo de funcionários, em decorrênciada Concordata e dos Artigos Orgânicos), o próprio ensino, com acriação da Universidade napoleônica.

Essa administração é também uniforme. Todas as administraçõessão moldadas nos mesmos quadros territoriais, nas mesmas circuns-crições, comunas, cantões, bairros, departamentos. Os limites dasjurisdições estão unificados; todas as administrações apresentam hie-rarquias análogas (o decreto de Messidor regula até ap.recedênciaentre elas). ...

Tal administração é servida por um corpo de funcionários está-veis, com poderes para nomear, pagar ou demitir. O funcionárioé um tipo social novo: o Antigo Regime só conhecia os oficiais, pro-prietários de cargos comprados, e os comissários, portadores de cartasde comissão.

Os funcionários só respondem por suas atividades perante o Es-tado, e escapam ao controle da justiça comum; este é outro aspectooriginal do sistema instituído por Napoleão,. que aliás inspira-se numatradição jurídica do Antigo Regime. Ao lado da justiça ordinária,que julga os litígios entre os cidadãos, há uma justiça administrativa,a única a quem competem os atos da administração. Um juizordinário, portanto, não pode perseguir um funcionário em razão' de

136

S~~_ll.~"idac;l~, nem sequer pronunciar-se sobre a procedência ou nãode uma resolução prefeitoral, menos ainda de uma decisão ministerial,

Simplicldade, '-!-!.1ifo~idade, ~special~~çª-(), eis como se defineuma ordem ádininistrativa racional, geométrica, sistemática, que visaà eficácia e a atinge. Vindo depois da destruição revolucionária, aordem consular torna realidade as metas do Antigo Regime e dodespotismo esclarecido. A conjunção de uma revolução, que fez tábuar~~~(!}l;>.dos os particularismos ..e faz desaparecer os poderes secun-aários, e de Bonaparte resulta num Estado forte, cujo poder amenizao liberalismo eventual das instituições políticas e da ordem social.

Essa ordem administrativa é exportada para Cora da França pelosexércitos da Revolução e do Império; em Mayença ou em Roma, osprefeitos comportam-se como na França. Mesmo fora das fronteirasdo Grande Império, os outros países o copiam, porque entenderamque essa ordem proporciona a eficácia, a racionalídade, o poder queos déspotas esclarecidos procuravam, a exemplo dos monarcas abso-lutos. No século XIX, o modelo administrativo concebido porNapoleão estende-se por toda a Europa e mesmo fora dela.

Assim, no tocante ao governo dos homens, tanto no que respeitaà política quanto à administração, a Revolução, prolongada pelogênio administrativo de Napoleão, modificou profundamente a ordemexistente e modelou o futuro.

I

3. RELIGIÃO E SOCIEDADE

i•

o lugar da religião e de suas relações com a sociedade civil éoutro campo onde a Revolução modificou a ordem estabelecida deuma forma irreversível.

.1'

A tradição

Na ordem tradicional, os regimes políticos tinham base religiosa.O historiador Marc Bloch falou, referindo-se à França, de uma religiãode Reims, na qual a sagração representava o símbolo da uniãoentre as sociedades religiosa e política. O rei só era verdadeiro reia partir do momento em que a sagração, espécie de sacramento pró-prio dos soberanos, lhe conferia uma legitimidade religiosa. Portanto,a expressão "aliança entre a Igreja e o Estado" é um ponto de vistamoderno proj(!1agó~gbI~ ..ª__!:l!aI!clad,e medieval; ela é imprópria, poispostula a existência de dois poderes distintos, de duas sociedades

*•i.•~.

1.137

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dlfltrentes onde existe apenas uma sociedade, uma única ordem, defi-nida pela simbiose entre o religioso e o político. Tal é a situação,pelo menos em sua origem. 'Ela não vale apenãSpara a França, maspara todos os Estados, sejam eles cat6licos ou protestantes. A Refor-ma, aliM, não modificou tanto os laços entre o poder público e areligião qtl~~~q ª unidade en,tl;"~o~cr~tjº-s. Com efeito, a partirdo século XVI, contam-se três Europas religiosas: a Europa doNorte (lJ,scandinávia,,_JJhas.,Britânicas, Províncias tJ!li~~~p~t.::jaAl~1pªnh.êLg1;lC!...!l:~~,ç()~.,a.,I1eforIT,l.a,a Europa Meridion;~e. !'&'J!na_(Península Ibérica, Itltia. França) que continuou fiel ao catolicísmaromano, e a Europa Oriental, quase que inteiramente (três quartos)ortodoxa. .-'-

Antes de 1789

Antes mesmo da Revolução, a evolução das idéias e a políticados Estados já haviam modificado sensivelmente a situação. Comefeito, o racionalismo responsabiliza o domínio político da Igrejapor esse estado de coisas (o que mais tarde democratas e republicanoschamarão de clericalismo) mas vai também muito mais longe, ata-cando o pr6prio dogma. Por sua vez, o absolutismo monárquico (opoder político, portanto) cuidou de se emancipar, pois a afirmaçãode sua soberania também era válida no tocante às tutelas religiosas.

o papel da Revolução

A Revolução retoma esse movimento e o prolonga. Votando aconstituição civil do clero em julho de 1790, ela caminha no mesmosentido que os jurisconsultos reais e termina o que Felipe, o Belo,havia começado quinhentos anos antes. Nesse particular, do AntigoRegime à Revolução existe continuidade de inspiração e de método.

O papel da questão religiosa foi determinante, e a ruptura pro-gressiva entre o catolicismo romano e a Revolução explica muitasperipécias e mesmo insucessos da Revolução. Os revolucionáriossão levados a tomar medidas mais radicais do que se tivessem secula-rizado as instituições. º .clero . perde seu estatuto, _~~!:!~_p.r!yjJégios,vê-se até despojado de suas atribuições na isociedade civil; o estadocivil, transferido para. as .nlunicip~liçl<iQ.~ké~lhe__retii-apo~_e__se~._9.!,!,PsCPl:lfjliçad9~,;as ordens, religiosas sã<?_ .. E~solvic!as eo pr6prio cultomuitas vezes entravado. A Revolucão estende suas reformas e medidasaos territ6rios ocupaçlp~,e. anexados, "até em Roma, onde penetramseus exércitos, Com ela, pela primeira vez, as sociedades modernas

138

I

fazem a experiência de uma separação radical entre o religioso e o !político, entre as Igrejas e o poder público.!

A solução de continuidade provoca o deslocamento dos quadros, 'o desmoronamento das práticas sociais. Daí por diante, a religiãoperde o apoio secular de todo um conjunto de costumes, de senti-mentos e de obrigações coletivas.

11',I,

Depois da Revolução

A obra de Bonaparte é ambígua: ele não toma a seu cuidadotoda a política religiosa da Revolução, na qual vê uma parte dequimera, como por exemplo, no que respeita aos cultos revolucionários.

Contudo, sob outros aspectos, ele consolida a obra da Revoluçãomantendo, por exemplo, a secularização, a venda dos bens nacionais.Napoleão reata as relações com a Santa Sé; com a assinatura daCo.n.cardata, em 1801, a Igreja vê-se novamente numa situação oficial,embora muito diferente da do Antigo Regime. Primeiramente, por-que deixa de ser a única religião reconhecida, pois os artigos orgânicosestendem às confissões protestantes e ao judaísmo parte das disposi-ções adotadas para o catolicismo. Então é por díreitopúbljco que aFrança vive sob o regime de pluralismo religioso.

Bonaparte consegue que o papa reconheça a transferência dosbens nacionais e renuncie à sua restituição. Com seus bens confiscados,esse clero depende do Estado por via da verba dos cultos. Equiparadosaos funcionários, bispos e curas são nomeados de acordo com o governo,recebem o mesmo tratamento e são quase tão dependentes dos poderespúblicos quanto os funcionários das outras administrações. É porisso que Napoleão pode dizer: "Meus prefeitos, meus bispos, meusguardas."

A Restauração não será uma restauração integral sob o pontode vista religioso porque, mesmo se os novos dirigentes são maisfavoráveis à religião, as relações entre o político e o religioso, entreas duas sociedades, haviam sido irrevogavelmente modificadas.

4. A ORDEM SOCIAL

No plano político, em mais de um aspecto, a Revolução prolongouo Antigo Regime, a ponto de se poder defender com igual verossimi-lhança a tese de continuidade como a de ruptura, enquanto que, noque respeita à sociedade, a renovação é integral.

139

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Sua transformação não é feita no mesmo instante nem no mesmoritmo que as do governo e da administração. Quanto ao governo,ns grandes mudanças situam-se entre 1789 e a queda de Robespierre.Quanto à administração, as grandes inovações, mais tardias, situam-seentre 1798 e 18()4. Quanto à sociedade, a cronologia que associaRevolução e Consulado é outra.

A obra da Revolução

A revolução começou por uma ação negativa, destruindo a socie-dade do Antigo Regime. Foi um trabalho de poucas semanas, jáque, três meses depois da primeira sessão dos Estados Gerais, pode-seconsiderar que a revolução social está feita e que o Antigo Regimechegara ao fim. A Revolução põe término ao que restava do feuda-lismo: abolindo o que ainda sobrevive da servidão, ela liberta ohomem; abolindo os direitos feudais, liberta a terra e, desse modo,põe fim ao movimento iniciado há vários séculos pela realeza, que nãohavia sabido levar a termo esse empreendimento, por falta de meiosou de espírito de continuidade.

Essa sociedade nova define-se essencialmente pela liberdade: ado indivíduo, a da terra, a da iniciativa individual. Com a servidãoe os direitos feudais, são abolidos todos os entraves (corporações, con-frarias, privilégios, banalidades) , os monopólios que impediam aconcorrência e a livre escolha, todas as .regras restritivas que paralisa-vam a invenção, a iniciativa. Aliás, é nisso que está a verdadeirarevolução, !!J.l..luo..mais-dQque na transferência da sok~.t~.nia.

Instruída pela experiência, desconfiando de contragolpes preju-diciais, ela cuida de impedir a reconstituição dessas regras e a restau-ração desses grupos, votando a lei Le Chape1ier, em 1791. Essa leiconstata legalmente o desaparecimento - das corporações+e de todosos agrupamentos, proibindo-os de se reconstituírem. t então consi-derado delito para os indivíduos o fato de se agruparem em funçãode suas atividades profissionais ou econômicas, tal era o temor deque as corporações tornassem a aparecer.

Essa primeira Revolução liberal, individualista, considera que atutela que mais se deve temer para o indivíduo não é tanto o poderreal quanto a existência de corpos. intermediários. Essa hostilidadeda Revolução n'õ-que· respeita às corporações e àS ordensé talvez otraço mais característico de seu espírito.

Esse estado de espírito sobreviverá por muito tempo à Revolução;toda a tradição republicana e democrática do século XIX continua

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a desconfiar dos agrupamentos e das associações. Explica-se dessemodo - o que hoje pode nos parecer uma anomalia -, o fato de ademocracia na França ter demorado tanto tempo para reconhecero direito de associação. A Declaração dos Direitos do Homem, queenumera as principais liberdades, não diz uma palavra sobre o direitode associação! A lei sindical de 1884 só é válida para as associações dedefesa profissional. Será preciso esperar o alvorecer do século XXe a lei de 1901, que dará às associações um estatuto, reconhecendosua liberdade e libertando-as de um regime policial. Foi, portanto,preciso esperar cento e dez anos para que os filhos da Revoluçãoaceitassem o restabelecimcnto das associações, tão grande era o medode que elas atentassem contra a liberdade individual.

A Revolução também proclama como um direito e instaura comoprática a igu.al~aq~_~ivil. Todos os franceses passam a ter os mesmosdireitos civis e as mesmas obrigações. Pode-se medir a novidadedessa atitude se a compararmos com a sociedade do Antigo Regime,que se baseava no particularismo, na diversidade das ordens, na desi-gualdade entre elas. Trata-se do fim dos privilégios; os própriostítulos são abolidos, as diferenças sociais suprimidas. Perante a leitodos os cidadãos são iguais. A igualdade perante a lei e a justiçasignifica a supressão de todas as justiças senhoriais, municipais, ecle-siásticas, e constitui um prolongamento do movimento da justiça real,que procurava erradicar as justiças concorrentes.

Os encargos que constituíam a imposição tradicional são substi-tuídos, na Revolução, por um sistema de contribuição proporcionalaos recursos, às possibilidades de cada um. Ela instaura não só aigualdade em relação ao imposto de sangue, com a conscrição, mastambém a igualdade no que respeita ao acesso aos empregos civis emilitares, Suprimindo assim a venalidade dos cargos. De agora emdiante~- não importa quem, contanto que preencha as condições deaptidão necessárias, pode pretender um emprego público. Ocorrerácom o Consulado o aparecimento e depois o desenvolvimento de umtipo social novo, o funcionário, promovido nas sociedades contempo-râneas a um futuro e a uma multiplicação indefinidos. No que respeitaaos cargos militares, enquanto a reação nobiliária havia fechado aosplebeus o acesso ao grau de oficial, a Revolução, tanto por necessidadeprática quanto por conformidade a seus princípios, suprime essa cláu-sula restritiva e permite a quem quer que seja o acesso aos graus maiselevados. O exército e a administração pública, sob a Revolução esob o Império, irão transformar-se em meios de promoção social:é em parte pelo serviço do Estado c serviço das armas que se fará arenovação dos homens, e também pela eliminação de um pessoal sus-

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peito por suas origens ou por ser antigo emigrado. Um fenômenobem comparável a este ocorre em relação à propriedade, com a co-locação à venda dos bens nacionais, o que torna a pôr no circuitoeconômico bens esterilizados pela mão-morta eclesiástica ou pela trans-missão hereditária dos bens nobiliários.

De todas essas reformas resulta uma intensa efervescência deenergias, de que Napoleão é o exemplo mais brilhante; a carreirados marechais do Império e dos prefeitos do Consulado são outrastantas conquistas sociais inconcebíveis no fim do Antigo Regime,Ligados à nova ordem, de quem são beneficiários, esses talentos, que,de outro modo, nunca teriam sido usados, foram gastos no serviço doEstado, que deles tirou considerável proveito.

De inspiração liberal e individualista pela afirmação da igual-dade, pela supressão das barreiras e das coações, a revolução socialliberta pela própria iniciativa. Mas, como acabamos de defini-Ia,ela não durou muito, e é da Revolução revista e corrigida pelo Con-sulado que n6s somos os herdeiros.

A obra do Consulado e do Império

Napoleão conservou o essencial das conquistas sociais da Revolu-ção, mas deu-lhes uma nova ordem. Ele tornou-a viável à medida

, que foi corrigindo a obra da Revolução, que foi moderando algumas: ousadias. A Restauração teria talvez tentado restituir os bens aos

,,-' antigos proprietários se Napoleão não tivesse conseguido do soberanopontífice a renúncia da Igreja a seus bens e se, por outro lado, encer-·rando a lista dos emigrados, reabrindo-lhes as fronteiras, tomando ainiciativa de um cadastro, ele não tivesse tornado irrealizável a desna-cionalização desses bens.

Em 1804, a obra da Revolução foi fixada, corrigida, pelo códigode Napoleão - nosso Código Civil - que tem uma importânciacapital, pois foi ele quem fixou até nossos dias os traços da modernasociedade francesa, como também de grande número de países quenele se inspiraram, adotando-lhe os princípios e reproduzindo-lhe asdisposições.

O código de Napoleão traz a sua marca. Ele próprio contribuiupara sua elaboração, tomando parte nas deliberações do Conselho deEstado. Napoleão não era individualista, nem por temperamentonem por espírito. O indivíduo é efêmero, o que conta é o grupo; épreciso, portanto, subordinar o indivíduo ao interesse superior dogrupo de que faz parte. Uma f6rmula dele, muito citada, é bastante

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significativa: "~ preciso lançar massas de granito para ligar os grãosde areia." A sociedade atomizada saída da Revolução parece-lheperigosamente instável e o papel do código e das instituições é fixá-Ia,solidificá-Ia.

O individualismo da Revolução é amenizado pelo princípio deautoridade em todos os graus e em todas as comunidades. Na família,o código institui a autoridade dos pais sobre os filhos, do maridosobre a mulher (incapacidade jurídica da mulher casada) _ Na empre-sa, é a autoridade do patrão sobre os empregados, sendo o patrãoinvestido de uma tutela em relação à sociedade, no interesse da ordempública. Não se confia nos assalariados; cabe portanto ao patrãoassegurar a boa ordem de seu estabelecimento. O Império restabe-lecerá a carteira de trabalho, na qual são lançadas as quantias adian-tadas pelo patrão ao operário, que não pode deixar o trabalho a nãoser com o consentimento do patrão e a não ser que este lhe restituaa carteira; caso contrário, o operário será considerado um vagabundo.Esse regime, portanto, acaba por restabelecer uma forma de servidãodisfarçada, já que depende agora do bel-prazer do patrão dar liber-dade ao empregado ou conservá-Ia.

Pela sua preocupação em relação à autoridade, por sua vontadede conter o individualismo pela tutela, a reação consular chega atéa ir contra os princípios revolucionários, notadamente no tocante àigualdade de todos os cidadãos perante a lei. Assim, num artigo que56 será ab-rogado no Segundo Império - artigo 1783 - o código deNapoleão prevê que, em caso de disputa entre patrão e operário,principalmente no que diz respeito ao contrato de trabalho, ou aosordenados, o patrão tem sua palavra acreditada, enquanto que ooperário é obrigado a provar o que afirma.

Esta filosofia social estende-se a todos os domínios; é ela queinspira a reorganização administrativa, chegando a ultrapassar-lheos limites. Desse modo, Napoleço suscita ou reconstitui quadros, umaorganização, uma estrutura social, rompendo ~om a aversão que os revo-lucionários testemunhavam pelas corporações. Caminha-se para umaespécie de neocorporativismo, com as câmaras de oficiais ministeriaise, em 1810, a criação do foro para os advogados. A universidadepartilha da mesma idéia: no espírito de Napoleão, ela é uma entidadeque tem o monopólio do ensino e sobre a qual o Estado exerce umcontrole direto. A Legião de Honra, a princípio, inspira-se no mesmosistema: trata-se de constituir na sociedade uma espécie de associação,com uma estrutura hierárquica que enquadrará os indivíduos. Elerecriará até uma nobreza, com a possibilidade de transmitir heredita-

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riamente seus títulos, eontanto que haja constituição de patrimônios,os morgadios.

Assim,a seu término, a obra social do Império parece aproxi-mar-se da do Antigo Regime, afastando-se da Revolução. A analogia,contudo, não é completa, já que a antiga aristocracia era uma aristo-cracia de sangue, hereditária, enquanto que a nova é uma aristocraciade .cargos e de dinheiro, aberta ao talento, ao mérito, aos serviçosprestados. Trata-se de uma concepção mais moderna de nobreza,não igualitária, é certo, mas onde a desigualdade não está mais ligadaà hereditariedade. .. . .

A obra da Revolução assim remanejada pelo Consulado e peloImpério constitui uma síntese original e poderosa, um compromissosem dúvida feliz, fecundo, que integra o essencial das conquistas daRevolução e traz a marca do gênio de Napoleão, ao qual sobreviverá.

Enquanto o edifício político soçobrou no naufrágio do Império, oadministrativo permaneceu e a ordem social subsistiu. A Restauraçãoe os regimes seguintes deixarão ambos intactos. Desse modo, Na-poleâo é duplamente o criador da sociedade moderna, por ter assegu-rado, sob uma forma adaptada, corrigida, a perenidade dos princípiosde 1789 para a França e todos os países sobre os quais a Revoluçãoestendeu sua influência. Pode-se dizer de nossa sociedade que ela éainda em larga escala, a filha dessa sociedade revolucionária e con-sular e que vivemos dentro dos moldes da ordem social concebida eimposta por Napoleão.

Trata-se de uma sociedade burguesa?

É um lugar-comum dizer-se que a sociedade saída da Revoluçãoé uma sociedade burguesa. Morazé intitulou um de seus livros maissugestivos,consagrado à descrição da França do século XIX, herdeiradas transformações revolucionárias e da ordem napoleônica, A FrançaBurguesa. Que dizer a isso? Em que medida esse epíteto "burguesa"esclarece a natureza da nova sociedade? Várias definições se impõempara matizar os lugares-comuns e prevenir as confusões intelectuais.

A Revolução é incontestavelmente burguesa por seus autores. Acomposição das assembléias mostra-o suficientemente, já que, nelas,a burguesia constitui a grande maioria, os operários não estão repre-sentados e a aristocracia está em evidência. De resto, nada maisnatural; a burgt,l~~ia.La..çl~.Ãe...i.P~~.D~J~~,a mais capaz de empreenderuma reforma dessa natureza. ..

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Em segundo lugar, é muito natural que essa burguesia cuide deseus próprios interesses,que eles coincidam com o espírito e o movi-mento da Revolução. Quem encontra mais vantagens na aboliçãodas injunções sociais, das desigualdades jurídicas? A igualdade civil,a liberdade, aproveitam essencialmente à burguesia, rural, industrial,comerciante. São os burgueses que, em geral, tornam-se proprietáriosdos bens nacionais postos à venda; são eles.que preenchem os qua-dros administrativos.

Em terceiro lugar, acontece que, em pontos importantes, as as-sembléias revolucionárias ou o governo consular trouxeram para oexercíciodas liberdades, para a aplicação dos princípios de igualdade,restrições em vantagem da burguesia e em detrimento das demaisclasses. Assim, a constituição de 1791 e a de 1795 distinguem duascategorias de cidadãos, das quais só a que pode justificar condiçõesde fortuna e de propriedade tem a plena plenitude dos direitos polí-ticos. O conceito do censo no tocante à diferença entre os cidadãosé uma derrogação grave aos princípios de liberdade e de igualdade.Quanto ao Império, ele restaura a nobreza, as corporações, os mono-pólios e é nisso que se pensa quando se fala em revolução burguesa,feita pela burguesia, para seu proveito exclusivo, com o desprezo dosprincípiosde que ela se prevalece; quando se denuncia a contradiçãoentre as idéias e a prática, a hipocrisia dos dirigentes.

Tudo isso é incontestável, mas é preciso examinar essa questãosob outra luz, mais justa, para que não se julgue em função dasociedade dos fins do século XX, mas da do fim do século XVIII.·Então, o contraste entre os princípios e o comportamento parecemenos pronunciado, enfim, menos escandaloso.

As distinções baseadas no dinheiro e na propriedade parecemaos contemporâneos menos chocantes que para n6s. O dinheiro, apropriedade não são considerados tanto por si pr6prios quanto comoindíciosde outra coisa, e liga-se a essaépoca o critério da fortuna comosinal de trabalho, de talento, de merecimento, como se se pensasseque os eleitores, tendo mais independência, teriam tempo para se infor-mar e emitir opiniões mais abalizadas. Não se trata do domíniobrutal- do dinheiro; trata-se do dinheiro tomado num sistema devalores que dá ênfase à capacidade intelectual e à independênciade opinião.

Por outro lado, a contradição entre os princípios e a práticamostra-se menos flagrante do que hoje, na medida em que os con-temporâneos estabelecemum cotejo, não com a seqüência dos aconte-cimentosmas com o que precede e, feitas as contas, a nova sociedade,com as desigualdades que subsistem, parece-lhes infinitamente mais

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justa do que a precedente. Eles são sensíveis, sobretudo, à novidaderevolucionária e ao caráter igualitário dessa ordem.

Enfim, ° liberalismo, no início, ainda está longe de ter desenvol-vido todas as suas conseqüências. A igualdade de princípios, a possi-bilidade de cada um fazer o que quer são, de início, sentidas e vividasbem mais como uma libertação do que como uma opressão. Ninguémteve tempo de usá-Ia para submeter outros à sua vontade de poderou a seus próprios interesses. É durante o transcorrer do século XIXque começarão a ser notados os inconvenientes do liberalismo e agra-vadas as injustiças que ele traz em germe.

5. A NAÇÃO, A CUERRA E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

o sentimento nacional

A nação, como fato e como sentimento, é uma realidade novasaída da Revolução, o que não quer dizer que a Revolução tenhacriado nações de todas as espécies, pois estas são obra do tempo.Para a França, a unidade nacional é antiga, mas a Revolução aper-feiçoa-a, consagra-a, pondo fim aos particularismos, a tudo o que seinterpunha entre o indivíduo e a comunidade nacional, porque, assimcomo a Revolução fez tábua rasa dos particularismos administrativos,ela faz com que se manifestem os particularismos locais ou regionais,acabando com as velhas instituições históricas, as províncias, e substituin-do-as por instituições novas, os departamentos, O pensamento contra--revolucionário criticou a Revolução por ter criado instituições total-mente artificiais. Os departamentos não eram artificiais: eles rea-gruparam unidades que existiam há muito tempo. De resto, os depar-tamentos logo adquiriram uma consistência que explica como hoje étão difícil ultrapassar o quadro departamental. A desagregação dosvelhos quadros administrativos, sua substituição por novos quadrosmais homogêneos muito contribuíram para afirmar a unidade nacional.

Ao mesmo tempo, a Revolução precipitou a tomada de consciên-cia do fato de se pertencer a uma comunidade nacional e já se écidadão francês por adesão voluntária. Vários movimentos ratifica-ram essa aceitação da unidade nacional: o movimento das federaçõesem 1789·1790 encontra o seu ápice a 14 de julho de 1790, com a festada Federação. Contrariamente ao que muita vezes se crê, nossa Cestanacional do 14 de julho não comemora a queda da Bastilha, mas afesta da Federação, embora a escolha do 14 de julho para come-morá-Ia se explicasse, em 1790, pelo aniversário da tomada da Bastilha.

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Agora, a adesão é feita à nação e não mais à coroa, e uao cona-titui um fenômeno capital, comparável à transferência da soberania.Na ordem política, quanto ao poder, a Revolução transfere a sobe-rania da pessoa do rei para uma assembléia representativa da nação ido mesmo modo, quanto aos laços entre os cidadãos e O país, elasubstitui o lealismo dinástico, a dedicação à pessoa do soberano, porum sentimento coletivo, o patriotismo moderno. O símbolo dessamudança é a batalha de Valmy, na qual, pela primeira vez, os solda-dos franceses combatem ao grito de "viva a nação". Trata-se davitória da nação sobre o velho lealismo monárquico, e Goethe nãoerrou ao considerar essa batalha como um momento decisivo dahist6ria da humanidade.

O sentimento patriótico vai-se afirmar na resistência aos reis,na defesa do território contra o invasor. Esse nacionalismo de novogênero, esse sentimento moderno, liga-se durante muito tempo à Re-volução. Durante quase um século, até as grandes crises do boulan-gismo e do caso Dreyfus, o nacionalismo é antes um sentimento deesquerda, ligado às forças populares e à obra revolucionária. A provadisso está no fato de o imagismo patriótico se inspirar em epis6diostirados da lenda revolucionária: a pátria .em perigo, os voluntáriosde 1793, a nação armada.

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A guerra reuolucionária

A Revolução provoca uma espécie de mudança em relação àguerra. As guerras passam a ser 'populares ou de massa, ideol6gicasou de sentimentos, traços constitutivos de nossos conflitos modernos.

Guerra popular? Os exércitos do Antigo Regime eram exércitospouco numerosos, de soldados profissionais, unidos pela fidelidade aochefe, à bandeira, ao regimento ou ao dinheiro. Com a Revoluçãoaparece a nação em armas, o recrutamento em massa. A princípio,é a chamada dos voluntários; depois, com a conscrição, veio a gene-ralização do serviço militar, conseqüência do princípio de igualdade.A conscrição, por sua vez, tem influência sobre a sociedade, pois con-tribui para a mistura, para a unificação, traços dominantes da demo-cratização nos séculos XIX e XX. Agindo dessa forma, a Revolução!Jlodifica os dados tradicionais da guerra. A tática e a estratégia são~fo~adas pela intervenção do número, pela irrupção das massas.A exércitos profissionais, rigorosamente treinados, a Revolução opõetropas mediocremente instruídas, mas .que o superam pela superiori-dade do"número e pelo ardor revõIlidonário. Foi esse o modo peloqual a Revolução soube resistir à Europa, ganhando a guerra.

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Outra guerra de novo tipo ,6 a guerr~p~~c()ló~c~,.!!.jº~º16~iç~,O soldado, ao mesmo tempo quedeIeiíde o solo, defende o regimepor ele escolhido e combate tanto" pela Revolução como pelo inte-resse ,naci9naL_ Os' revolucionârios pensam - a, experiência muitasvezesdá-lhesrazão - que o soldado-cidadãoé superior ao mercenário,porque paga sua inexperiência com o heroísmo, enquanto que a pro-paganda é uma das armas mais eficazes'dessa guerra.

o novo sistema das relações internacionais

Com a Revolução chega ao fim a diplomacia tradicional, funda-mentada sobre as alianças dinásticas, os acordos matrimoniais, a con-veniência dos soberanos. A Revolução introduz, com o direito dospovos para dispor de si mesmos,um novo princípio, que é a extensãoàs relações internacionais do princípio da soberania nacional; é porisso que a Revolução realiza uma consulta quando se pretende rea-nexar Avinhão. As guerras da Revolução e do Império destroemas velhas estruturas feudais e dinásticas. É no decorrer desses vinte ecinco anos que os países descobrem sua identidade nacional, tomamconsciência de suas particularidades, ou vivem, pela primeira vez, suaunidade. É o caso da Itália, e a lembrança dessa experiência perma-necerá como um dos fatores da unidade italiana no século XIX.Contudo, na prática, a Revolução, por mais de uma vez, afastou-se .de seus princípios, notadamente a partir do Diretório. A paz deCampo Formio inspira-se no princípio de partilha de Frederico II,de acordo com o qual, em nome do direito do mais forte, o vencedordispõe soberanamente dos vencidos; basta ver () recesso de 1803 Ou OStratados impostos pela Revolução ou pelo Império a seus adversários.

Assim, até na ordem internacional a Revolução propôs novosprincípios, despertou os sentimentos, lançou o fermento de uma pro-funda transformação. A conseqüência e o prolongamento desseaspecto, o movimento das nacionalidades no século XIX e, fora doslimites da Europa, o movimento contemporâneo de descolonizaçãosão suas resultantes.

6. CONCLUSÃO

Alguns traços gerais se evidenciam, seja qual for o setor conside-rado, quer se trate do lugar da religião na sociedade, quer se trateda ordem internacional.

A Revolução, corrigida, revisada pelo Consulado e o Império,pôs em prática certas tendências anteriores e constitutivas da monar-

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quia. A ruptura não é em todos os pontos tão evidente como nOIparece, ou como a historiografia no-Ia apresenta. Encontra-se de umlado e de outro do corte feito em 89 elementos de continuidade.

. A monarquia, a seu tempo, havia desenvolvido um paciente esforço" para uniformizar e unificar, para aumentar a centralização, reforçar

a coesão e reduzir os particularismos. Beneficiando-se de um novoimpulso e do apoio da nação, ela conseguiu concretizar esse esforçoe acabar com as últimas resistências.

A segunda observação di7. respeito às relações entre o períodopropriamente revolucionário e o que se lhe segue imediatamente, do-minado pela personalidade de Bonaparte. Com efeito, se, em todosos planos, a síntese napoleônica bate em retirada no que diz respeito àstentativas mais avançadas da Revolução, é talvez precisamente essaretirada que tornou viável a obra da mesma, permitindo que a ordempolítica e social instituída pela Revolução perdurasse, porque livredaquilo que ela possuía de mais contestável e de mais quimérico.

A terceira observação antecipa-se ao futuro e considera essaobra no período posterior à contra-revolução. A Restauração nãoatentou contra o edifício levantado pela Revolução, mesmo limitandoa aplicação dos princípios, o que deu a impressão de que era seuintento tornar a colocar em causa as mudanças aconselhadas pelaprática. Mesmo tendo-se dedicado à crítica do sistema e à denúnciados princípios, ela respeitou a obra revolucionária.

A quarta e última observação esclarece um período mais pr6ximode nós: no século XIX, a sociedade, retomando a marcha suspensadurante a Restauração, ressuscitará mais de uma idéia ou experiênciarevolucionária, levará a bom termo o que a Revolução havia iniciado,

.restabelecerá o que havia sido suprimido e tirará todas as conseqííên-cias dos princípios enunciados em 1789.

Levando-se em conta essas observações, é possível avaliar-selegitimamente que esses poucos anos marcaram de modo duradouroa história contemporânea e de modo irreversível a fisionomia dassociedades modernas.

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