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REPRESENTAÇÕES INDÍGENAS EM LIVROS DIDÁTICOS
ROSANA SANTOS DA COSTA*
SUANE RAIÇA MENDONÇA**
Os livros didáticos são grandes veiculadores de ideias, sendo essenciais na construção
das identidades de indivíduos inclusos nele. Os conteúdos e imagens que chegam aos alunos
através desta ferramenta pedagógica podem internalizar e naturalizar várias concepções de
mundo para estes consumidores. O modo de trabalhar certos atores históricos nos livros
didáticos embasa a identidade que se constrói de indivíduos e a forma como são
representados. Para entende como alguns as populações indígenas são discutidas nos livros
didáticos, é necessário uma discussão acerca do conceito de representação.
As discussões acerca do conceito de representação ganham mais força com Roger
Chartier (1990) e a sua obra A História Cultural: entre práticas e representações. Nesta, o autor
defende que a História nos anos 1950 e 1960 estava focada no saber tecnicista, baseados em
técnicas de investigações tradicionais como a teórica e a estatística. Segundo Sandra
Pesavento (2004), os paradigmas vigentes até esse período passaram por contestações, estas
decorrentes das alterações que ocorreram no âmbito dos domínios da História e dos fatos que
não podiam ser explicados pelos modelos correntes1.
Os sistemas explicativos não davam conta da complexa dinâmica social, principalmente
no pós-Segunda Guerra, período em que as explicações sobre o real se tornavam, cada vez
mais, insatisfatórias. A princípio, no espaço nacional, as posturas interpretativas da História a
serem condenadas foram o marxismo e a corrente dos Annales, entretanto, não foram
desprezadas por inteiro. Estas formas de saber mostravam a História como um conhecimento
imutável e absoluto.
* Autora graduanda em História pela Universidade Federal do Amapá. ** Co-autora licenciada em História pela Universidade Federal do Amapá e graduanda em Direito pela Faculdade de Macapá. 1 Como exemplos desse contexto, Sandra Pesavento considera fatos como a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã, a ascensão do feminismo e o surgimento da New Left (movimentos políticos de esquerda surgidos em vários países a partir da década de 1960) influenciaram esse quadro de contestação aos antigos modelos explicativos.
2
Em contrapartida, Chartier (1990) defende o valor de outras formas de investigação e
interrogação da realidade. Num processo de interdisciplinaridade, dentro da articulação com
outras áreas do saber, a interação da História com outras disciplinas passou a ser vinculada a
esse processo de construção do conhecimento. Dessa forma, as análises de aspectos de
domínio cultural de um determinado grupo social passaram a ser cada vez mais abordadas,
principalmente para a construção de uma identidade coletiva e sobre a sua representação.
O autor compreende que a análise destes novos aspectos amplia a área de atuação do
historiador e a possibilidade de investigação através de novos objetos e a riqueza das análises.
As representações, que se tornam um dos conceitos que fundamentam este novo olhar
da História Cultural, podem ser expressas por normas, discursos, imagens, ritos, ou por
instituições portadoras de sentidos que buscam remeter o indivíduo a determinadas ideias,
visto que, um dos principais objetivos da Historia Cultural é identificar a forma como pode
ser compreendida, em lugares e momentos distintos, determinada realidade social, como ela é
construída e percebida por outras culturas ou grupos sociais.
Neste sentido, os “indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das
representações que constroem sobre a realidade” (PESAVENTO, 2004:39). As representações
podem se referir tantos a eles próprios quanto a outros, ou seja, são explicativas do real, e com
os sentidos que portam - que se internalizam no inconsciente coletivo - transformam-se em
matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, fazendo com que os indivíduos pautem a
sua realidade e existência nestas representações, sendo estas, operações mentais e históricas,
criadoras de sentidos das quais sem o mundo não possui significado.
Para Robert Darnton (1987), a ideia de representação é a constituição pela forma que as
pessoas comuns organizavam mentalmente a realidade, sendo expressas em comportamentos
e práticas sociais. O indivíduo pauta sua realidade em modelos e fluências pré-existentes,
como o modo de se vestir, de agir, os hábitos alimentares, a forma como se relacionar com
outras pessoas. Porém, diversas vezes nestas relações, o indivíduo não reflete sobre esta ou
aquela representação, o que significa e o que busca mostrar, assim, dotam-na de forças que
podem tanto integrar, perceber, identificar, reconhecer, classificar, legitimar, unir e mesmo
excluir agentes sociais nas relações entre as pessoas, um grupo, uma sociedade ou uma
cultura. Essa força da representação está então na capacidade desta de mobilizar, de produzir
o reconhecimento e a legitimação social, tanto em sentido positivo quanto negativo.
3
Por isso, para Chartier (1990), representação é o modo como, em diferentes lugares e
tempos, a realidade social é construída, ou seja, é o resgate dos sentidos dados ao mundo,
manifestados em palavras, imagens, discursos, práticas, coisas.
Destes conflitos e na busca pelo sentimento de pertencimento, a identidade para o
indivíduo deve se construir em elementos positivos, que agreguem atributos, valoração e
reconhecimento social às pessoas. Entretanto, na busca de identidade própria, ou de pertencer
a alguma, a convivência ou enfrentamento com o outro pode acontecer em termos de
admiração ou busca de superação, de estranhamento ou distanciamento, ou mesmo de
negação e exclusão. Nesse sentido, a negação e a exclusão nascem a partir do olhar lançado
sobre o outro, acompanhado de rejeição, estigmas ou preconceitos, contribuindo com a
formação dos estereótipos.
Pesavento (2004) também argumenta que é por meio das representações que se agem, e
consequentemente, se constroem as identidades, pois ao inferirmos características,
significados e valores aos indivíduos ou grupos a qual estes pertençam, estamos atribuindo-
lhe identidades, ao mesmo tempo, quando nos reconhecemos ou encaixamo-nos em
determinadas características estamos nos agregando certa identidade. Pra Pesavento as
identidades são construções simbólicas, ou seja, a identidade enquanto representação social é
uma construção imaginária, que leva a interação e permite que haja identificação entre o
individuo ou as partes com o todo, mas que estabelece também a diferenciação, pois, “frente
ao eu ou ao nós do pertencimento se coloca a estrangeiridade do outro” (PESAVENTO,
2004:90).
Este reconhecimento identitário pode se dar através de muitos recortes sociais: étnicos,
etários, religiosos, raciais, de gênero, de classe, linguístico, renda ou profissional e etc., enfim
uma infinidade de aspectos que podem ser compartilhados entre indivíduos, transformados e
adaptados no decorrer das transformações da sociedade.
A partir destas ponderações, torna-se evidente a necessidade de conhecermos como as
comunidades indígenas brasileiras são representadas nas narrativas construídas sobre suas
sociedades para outras sociedades. Ou seja, como as identidades dos indivíduos indígenas nos
são apresentadas nos livros didáticos, haja vista que há uma obrigatoriedade do ensino de
História indígena nos currículos escolares brasileiros, desde a lei no. 11.645/08.
4
Nas últimas duas décadas, os avanços da historiografia brasileira contemporânea
ampliaram o espectro das fontes de investigação histórica. Isso é fruto da incorporação de
novas abordagens e novos pressupostos teórico-metodológicos. Um exemplo desse contexto é
o próprio o livro didático de História, o qual passou a ser analisado e assumido como
documento a ser discutido em sala de aula e na academia.
A partir das abordagens na perspectiva dos imaginários sociais e da constituição de uma
memória e suas representações, se tornou possível fazer novas indagações aos livros
didáticos. O livro didático de História é um dos elementos difusores de conhecimentos
históricos, mas, sobretudo, de uma determinada memória. Vários autores já sugeriram essa
relação e buscam mostrar como, através do livro didático, uma determinada construção
histórica é mantida por longo tempo, se consolidando na memória coletiva, o que se denomina
senso comum histórico2. No entendimento de Nicholas Davies (2001), estas construções
coisificam os indivíduos, transformando-os em objetos destituídos de humanidade e vontade.
Os livros apresentam em suas construções teóricas grandes contribuições das
formulações políticas e de um determinado contexto sociocultural, uma vez que em grande
parte estas se apresentam como reflexos das estruturas de dominação que comandam a
sociedade. Por isso, muitas vezes o livro é um instrumento utilizado na legitimação de
sistemas de poder, como defende Décio Gatti Júnior (2010).
A disputa pelo poder que Gatti Júnior (2010) menciona diz respeito às maneiras de
consolidação de imagens e discursos propostos pelas elites para serem representadas nos
materiais didáticos. A partir da representação destas imagens e discursos um cenário
político/social pode se afirma-las e fixa-las no imaginário do leitor.
Foi a partir do Estado Novo que surgiram preocupações e políticas públicas voltadas
para o livro didático. Data de 1938 a instituição da primeira Comissão Nacional de Livros
Didáticos (CNLD), cujas atribuições envolviam o estabelecimento de regras para a produção,
compra e utilização do livro didático. O período apresentou grande incentivo à educação por
parte do governo de Getúlio Vargas, tendo a educação ocupava um papel especial na
2 Destacam-se os autores Ernesta Zamboni, Circe Bittencourt e Ciro Bandeira De Melo.
5
formação da do espírito nacionalista. O Ministério da Educação e Saúde3, passou a vincular a
educação como um veículo importante para a divulgação do ideário nacionalista do período.
Após o golpe Civil-Militar em 1964, as questões relativas à elaboração, compra e venda
de livros didáticos receberam atenção específica, principalmente com relação à produção dos
conteúdos abordados, visto que prevalecia a censura e a ausência de liberdade democrática.
Por outro lado, neste período percebeu-se o grande crescimento da população escolar. Este
constituiu um dos períodos de maiores dificuldades para a produção historiográfica, pois,
neste contexto destacam-se grandes interferências de pressões e interesses econômicos sobre a
História ensinada. Tendo em vista que, os governos militares estimularam, por meio de
incentivos fiscais, investimentos no setor editorial e no parque gráfico nacional, exerceram
papel importante no processo de massificação do uso do livro didático no Brasil. Entretanto,
muitos dos conteúdos foram suprimidos ou até mesmo excluídos e proibidos. O estudo deste
período gerou inúmeras discussões no que diz respeito à formação de uma consciência
histórica, estas pensadas sob o ponto de vista da manipulação, do controle ideológico e da
formação de mentes acríticas em função de falsificações presentes no material didático
destinado à educação de crianças e jovens. O Estado autoritário interviu na organização do
mercado consumidor da produção didática, de maneira que impôs seu caráter político-
ideológico, cujas repercussões estiveram presentes nos conteúdos dos livros didáticos da
época, sobretudo marcados pela perspectiva do civismo presente na grande maioria das obras.
A década de 1980 foi marcada pelas tentativas de reconstrução democrática no país.
Algumas ações no âmbito de assistência estudantil direcionaram as discussões para os
problemas presentes nos livros didáticos destinados ao ensino de História. Tais debates
resultaram na criação de políticas relacionadas aos materiais didáticos produzidos e utilizados
no país, como a criação do Programa Nacional do Livro Didático - PNLD, em 1985. A partir
desses debates os livros didáticos passaram a ser percebidos como produtos ideológicos e
principalmente comerciais.
O processo de elaboração do livro didático não parte apenas de interesses pré-
estabelecidos, incorpora também concepções de histórias e sistemas de valores do autor e de
seu tempo. A sua importante atuação como mediador entre concepções, práticas políticas e
3 Criado em 1930, durante o governo de Getulio Vargas, o Ministério de Educação e Saúde era responsável por desenvolver atividades pertinentes à vários ministérios como Saúde, Esporte, Educação e Meio Ambiente.
6
culturais, faz parte importante da engrenagem de manutenção de determinadas visões de
mundo e de História. As abordagens presentes nos livros didáticos também colaboram para a
circulação e a apropriação de valores, comportamentos e ideias.
Há algum tempo tem aumentado os recursos pedagógicos presentes nos livros didáticos,
como fotos, mapas, ilustrações diversas que parecem disputar o espaço das páginas com os
textos escritos. Mas, a introdução desses recursos precisa de reflexões sobre o papel que
realmente desempenham no processo de ensino e aprendizagem, reflexões estas ainda
escassas ou pouco difundidas4. Os debates que hoje são travados sobre o material, mostra suas
controvérsias e múltiplas facetas de sua natureza complexa.
Outro aspecto que deve ser considerado é que os livros didáticos constituem-se também
como mercadoria de consumo. Esta afirmativa parte da premissa de que é primordial para as
editoras, que são as que mais se beneficiam com as vendas deste material, oferecerem seu
produto de modo que este agrade e atenda às necessidades do público que irá consumi-lo.
Entretanto devemos lembrar sempre que esta mercadoria deve atender às especificidades para
a qual foi desenvolvido.
Em primeiro lugar, como mercadoria, o livro didático deve obedecer às lógicas
mercadológicas. Neste sentido, ele sofre várias interferências no seu processo de fabricação e
comercialização. Estas interferências são provocadas pela participação de diversos agentes
que estão envolvidos em sua elaboração, desde editores, autor(es), técnicos em processos
gráficos (ilustradores, programadores visuais), assim como objetos da indústria cultural. O
livro é uma forma de leitura organizada por diversos profissionais e não unicamente pelo
autor.
O livro didático também é um depositário de conteúdos escolares, sendo suporte básico
e sistematizador dos conteúdos indicados pelos programas curriculares, além de
intermediários entre o saber acadêmico e o saber escolar5, contribuindo com a transposição
didática.
4 No Brasil, ainda carecemos de estudos voltados para a análise da utilização de recursos didáticos e o processo de ensino-aprendizagem. Segundo Paulo Knauss (2010), abordagens que articulam essas questões ajudariam a entender as influências que os livros didáticos sofrem na indústria editorial ao privilegiar o uso de imagens e atividades de fixação dos conteúdos trabalhos em cada unidade. 5 O saber escolar é aquele produzido e trabalhado com o objetivo de desenvolvimento cognitivo da criança e do adolescente, no processo de formação básica, por isso ele difere do saber acadêmico, pois seu objetivo não é a produção científica, e sim cognição, mas tem o conhecimento acadêmico como base.
7
Como instrumento pedagógico, o livro didático elabora as condições e estruturas de
ensino para o trabalho do professor em sala de aula. Por fim, segundo Circe Bittencourt, o
livro didático é “veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma
cultura” (BITTENCOURT, 1997:72). É limitado e condicionado por razões econômicas,
técnicas e ideológicas. O que contraria qualquer ideia de neutralidade que esse objeto possa
ter em sala de aula.
Para Mauro Cezar Coelho (2007), uma questão que deve ser considerada é que a
disciplina História e o livro didático usado para ministrar a disciplina para a educação básica,
nunca ou pouco esteve voltada e empenhada para a divulgação ou problematização do
conhecimento histórico. Pelo contrário, muitas vezes a disciplina esteve comprometida com o
ensino de valores morais, cívicos, e para a construção de identidade nacional, como no
governo varguista. Por isso, a natureza do livro didático de História é ambígua. Essa
ambiguidade é percebida na própria abordagem e apresentação de determinados grupos
sociais. Segundo Coelho, isso pode ser notado quando “se verifica o redimensionamento do
lugar das populações indígenas, na composição dos conteúdos, em tudo atenta às pesquisas
mais recentes” (COELHO, 2007:6). Entretanto, essas novas abordagens ainda conflitam com
a permanência de subsídios que aproximam o livro didático daquela antiga vocação:
representar as populações indígenas de acordo com a cultura histórica que os via como
ingênuos e vítimas dos colonizadores, e que os traços culturais eram, além da preguiça, a
relação harmoniosa com a natureza.
A manutenção desta cultura histórica, por mais paradoxal que possa parecer, se volta
sempre para a formação do aluno cidadão crítico. As características como ingênuos e vítimas
que eram/são atribuídos às populações indígenas correspondem ao objetivo de desenvolver
nos alunos o ideal de justiça social e moral. Os ideais de justiça e de moralidade incorporam
um enorme grau de compaixão, suprimindo o desenvolvimento das habilidades que levam ao
verdadeiro raciocínio crítico e analítico. Com esse compromisso moral da História se
perpetua, por exemplo, os mitos da formação do Brasil onde, ainda, o povo e a cultura
brasileira são o resultado da contribuição dos três grupos étnicos fundamentais: brancos,
índios e negros. Isto é um erro, pois, ao estarem nas mãos dos alunos, as linguagens expressas
nos livros, por exemplo, devem ser acessíveis. Uma linguagem inadequada leva a uma leitura
inadequada, podendo induzir o leitor a simplificações dos conceitos e conteúdos, limitando
8
assim sua ação na formação intelectual e autônoma do aluno. Ao simplificarem questões
complexas, os livros impedem que haja reflexões ou mesmo possíveis discordâncias por parte
dos leitores, tornando-se um detentor de saber padronizado. Nas palavras de Bittencourt, “o
papel do livro didático na vida escolar pode ser o de instrumento de reprodução de ideologias
e do saber oficial imposto por determinados setores do poder e pelo Estado”
(BITTENCOURT, 1997:73), o que deve ser combatido.
Entretanto, é importante percebermos que, mesmo tratando-se de uma mercadoria e
como tal sofrendo determinações próprias do processo capitalista de produção, o livro
didático vai além das questões acima citadas, como defende Maria C. Bovério Galzerani
(2001).
Maria Galzerani (2001) concluiu que as análises feitas acerca dos livros didáticos
entendem-no como o objeto para a criação de um mundo coerente, belo, justo ao nível da
imaginação, ou seja, a criação do que a autora chama de belas “mentiras”, tendo como função
mascarar o mundo real, injusto e contraditório, de acordo aos interesses da classe dominante.
A autora não nega a importância destes estudos que chamam a atenção sobre o conteúdo de
dominação existente no livro didático no Brasil, mas se propõe a discutir algumas implicações
desta postura.
Se considerarmos os livros em suas relações dialéticas, é possível questionarmos até que
ponto se pode afirmar que o livro didático contém apenas “mentiras”, correspondendo à
reprodução das relações de poder e produção.
Esta postura pode em si mesma, trazer de maneira implícita ou explícita, a ideia de que
a classe detentora de conhecimento e poder seria hegemônica, e que ela elaboraria de maneira
direta ou indireta uma ideologia que funcionaria como uma máscara que encobriria as
contradições sociais. Tais ações, quase sempre, ocasionam a simplificação das relações
sociais contidas nos livros de forma maniqueísta. Porém, é preciso que se esteja convicto do
caráter contraditório da linguagem escrita, mesmo que esteja voltada para a reprodução de
valores socialmente dominantes.
É necessário estarmos abertos para a valorização da capacidade de percepção analítica
dos alunos, desta maneira é possível repensar a forma de atuação em sala de aula com o
auxilio dos livros didáticos e outros instrumentos pedagógicos, e bebendo em outras fontes de
conhecimento como linguagens diversificadas.
9
As representações dos grupos indígenas nos livros didáticos, por exemplo, atendem às
determinações que devem, obrigatoriamente, estar de acordo com a Constituição Federal de
1988, LDBN (Leis de Diretrizes e Bases Nacionais), PCN (Parâmetros Curriculares
Nacionais), a Lei 11.645/08 e os PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). No que tange
a lei, os conteúdos devem estar livres de estereótipos, preconceitos. Tais conteúdos devem
abranger as contribuições que indígenas e negros tiveram na construção da identidade
nacional, bem como dar ênfase em suas lutas, cultura, e contribuições para as áreas social,
econômica e política, pertinentes à História do Brasil; aspectos a muito reivindicados pelos
grupos sociais em questão, e que podem nortear o trabalho docente.
O PNLD foi criado em 1985. O Programa passou por mudanças em 1993, quando sua
reestruturação trouxe alguns impactos para a produção do livro e para as práticas de ensino.
Quanto ao ensino de História, houve, por exemplo, a extinção dos livros de Estudos Sociais,
assim como a realização de avaliações separadas dos livros de História e de Geografia. Outro
ponto importante foi a criação de guias específicos para os livros didáticos de História, e ao
contrário de outras áreas, a de História não contempla um documento com determinação de
itens de conteúdos históricos prévios para a realização dos programas escolares. Mesmo nos
PCN de História (tanto do Ensino Fundamental como do Médio) que orientam a escolha e
procedimentos ao se trabalhar com os temas na disciplina, não há indicação de conteúdos
mínimos obrigatórios, por isso há opções livres para a seleção dos conhecimentos históricos e
montagem da estrutura de uma obra didática.
É importante lembrar que as políticas públicas modificam-se também ao ritmo das
mudanças na produção do conhecimento da área de História e das novas tecnologias. Desde
então temas, recortes e perspectivas que demarcaram a renovação do conhecimento histórico
têm sido incorporados à literatura didática. Contudo, nem todas essas modificações podem ser
ou são adotadas pelo livro didático.
Por se tratarem de recursos didáticos, os livros também são submetidos a um processo
de avaliação. Um deles é a análise feita pelo professor, que é quem de fato decide as técnicas
de ensino que serão utilizadas em sala de aula. Outra é a efetuada pelo MEC, que busca
auxiliar no cumprimento de um dos princípios estabelecidos pela Lei de Diretrizes e Bases da
10
Educação Nacional (LDBN, Lei n. 9.394/96)6, que é: proporcionar ao aluno material didático
escolar de qualidade.
Além desta, a avaliação busca cumprir uma série de leis que normatizam a inclusão de
alguns temas, considerados obrigatórios, nos currículos e materiais didáticos, como a História
e a Cultura dos Africanos, Afrodescendentes, História e Historiografia Indígenas, História
Regional, o respeito aos direitos das crianças, adolescentes e idosos, o combate à violência
contra a mulher, o combate à homofobia e a construção dos valores e princípios éticos
estabelecidos pela Constituição Federal de 1988.
Neste sentido, o PNLD é também um instrumento normativo7, e segundo ele, os livros
didáticos não podem comprometer as ações do processo de ensino e aprendizagem por
motivos de incorreções pedagógicas, historiográficas, de valores contrários aos estabelecidos
por lei, ou ainda, por problemas relacionados com sua materialidade.
Todos os esforços legais e sociais nos levam ao seguinte questionamento: porque é
necessário abordar questões indígenas nas escolas. A resposta mais óbvia é a inclusão do
artigo 26-a da Lei nº. 11. 645/20088. Essa lei torna obrigatório o estudo da História e Cultura
Indígena para o ensino fundamental e médio, em escolas públicas e privadas. Segundo a Lei,
devem ser destacadas as lutas dos povos indígenas, suas culturas e contribuições nas áreas
econômica, social e política para a formação da sociedade nacional.
6 A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 define e regulariza o sistema de educação brasileira com base nos princípios presentes na Constituição. Foi citada pela primeira vez na Constituição de 1934. A primeira LDB foi criada em 1961, seguida por uma versão em1971, que vigorou até a promulgação da mais recente em 1996. Com a promulgação da Constituição de 1988, a LDB anterior (4024/61) foi considerada obsoleta, mas apenas em 1996 o debate sobre a nova lei foi concluído. A atual LDB (Lei 9394/96) foi sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo ministro da Educação Paulo Renato em 20 de dezembro de1996. Baseada no princípio do direito universal à educação para todos. A LDB de 1996 trouxe diversas mudanças em relação às leis anteriores, como a inclusão da educação infantil (creches e pré-escolas) como primeira etapa da educação básica. 7 Os livros tem que ser produzidos de acordo que atendam às especificidades estabelecidas no PNLD, ou seja, devem se adequar às leis. Isso não impede que sejam editados livros que não correspondam às indicações propostas no PNLD. Nesses casos, os livros avaliados não adequados, não são comprados pelo governo federal, principal cliente das editoras de livros didáticos. 8 “A Lei 11.645/2008 representa um grande avanço no reconhecimento da pluralidade étnica brasileira. Ela não implica, porém, a invenção de novas disciplinas acadêmicas e escolares. Concentrar a temática em um horário, professor ou livro pode representar, ao contrário do espírito da lei, em uma nova forma de segregação. Para fugir a essa tentação, os procedimentos são bastante simples: mobilizar conhecimentos sobre a experiência indígena local e integrar personagens, artefatos e acontecimentos indígenas aos clássicos acontecimentos, artefatos e personagens da História brasileira” (FREITAS, 2010:186).
11
Esta resposta está correta, porém, se resumida ao fator da legalidade da lei, está
incompleta. A inclusão da História indígena nas escolas ultrapassa a obrigatoriedade do ser
cidadão. Esta inclusão é o compromisso ético com o respeito. Nas palavras de Roberto
Oliveira, este é um compromisso com as ideias de “bem viver do outro” e “do dever de
negociar democraticamente a possibilidade de se chegar a um consenso com o outro”
(OLIVEIRA, 2008:52). Esta é uma necessidade para os povos indígenas, mas também para
aqueles que não se consideram indígenas.
A lei garante um direito a muito reivindicado pelas sociedades indígenas, o direito ao
passado, para ter direito ao presente com a divulgação desse passado no cotidiano da
sociedade nacional, formalizando essa nova abordagem da diversidade indígena dentro de
uma educação pelo respeito. Porém, se essa é uma necessidade latente, porque foi necessária
uma lei para garanti-la? Porque em muitas situações do nosso cotidiano, os indígenas são
considerados o outro, de forma pejorativa. A disciplina escolar de História é um espaço
privilegiado para o reconhecimento desse outro. Essa indicação pode ser notada nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), bem como no ensino da História indígena, que
possui uma disciplina específica nos currículos das universidades. A inclusão das experiências
indígenas no ensino de História, além de um direito conquistado, permite o entendimento e
reconhecimento da ideia de diversidade.
Os alunos têm o direito de saber que os modos de viver, agir e sentir ocidentais não são
os únicos possíveis ou principais, ou até mesmo os mais adequados para serem reproduzidos
dentro da escola e fora dela. As pessoas são diferentes e vivem em um mundo plural com
culturas diversas. A diversidade deve ser conhecida e respeitada. “E mais, que a diferença e a
diversidade são benéficas para a convivência das pessoas, a manutenção da democracia, e a
sobrevivência da espécie” (FREITAS, 2010:161).
Para verificar se os manuais didáticos possibilitam essa interação, foram selecionados
para análise cinco livros que destinam-se ao 6° ao 8° ano do ensino fundamental, avaliados
pelo PNLD 2010, para serem trabalhados no período letivo dos anos 2011, 2012 e 2013.
De acordo com o que se estabelece como matriz escolar a ser ensinada no decorrer do 6º
ao 8º ano do ensino fundamental, os alunos devem ser levados a compreender a sociedade em
seu início, suas transformações, bem como os múltiplos fatores que nelas intervêm, como por
exemplo, a ação humana e os processos sociais. Os conteúdos devem evidenciar a
12
compreensão da produção e o papel histórico das instituições sociais, políticas e econômicas.
Refletir sobre os princípios que regulam a convivência em sociedade, os direitos e deveres, a
cidadania e a justiça, além de estabelecer relações de continuidades e/ou permanências,
rupturas, transformações nos processos históricos. Tais requisitos essenciais para o
desenvolvimento nos alunos da capacidade de criticar, analisar e interpretar fontes
documentais de natureza diversa, de compreender e perceber a cultura como um conjunto de
representações sociais que emerge no cotidiano da vida social de um grupo (do seu grupo) e
que se solidifica de diversas formas nas inúmeras organizações e instituições que constituem a
sociedade. Porém, ainda hoje são perceptíveis muitas lacunas ainda existentes os livros
didáticos.
Muitos temas referentes à diversidade ainda são abordados de maneira simplória e
superficial, deixando expostas lacunas teóricas e não permitindo aos leitores destes livros uma
importante compreensão da temática. Estas lacunas podem levar o leitor a uma compreensão
errada, permeadas de estereótipos, e permanecendo com a velha ideia de História deturpada,
interpretada de forma distorcida.
Diante da problemática o que se propõe é que o professor como mediador do
conhecimento, ao deparar-se com obras no qual identifique estas lacunas, que tornam a
cultura indígena generalizante, promova questionamentos acerca do tema. Proponha aos seus
alunos atividades onde eles tentem contextualizar os conceitos corretos, procurem estabelecer
parâmetros de análise dentro de uma abordagem que priorize maior interação dos alunos com
as diversas culturas dentro do espaço escolar. Assim certamente haverá uma diferenciação na
produção dos saberes.
Logicamente, como já exposto, os livros não são perfeitos e trazem ainda muitos
equívocos em seus conteúdos, porém, é possível trabalhar as sociedades no tempo e no espaço
por meio de diversos gêneros, como memória histórica, fábula e biografia, através do uso, por
exemplo, de textos, gravuras, fotografias e mapas contidos nos livros didáticos. A partir dos
erros detectados, o professor pode exercitar a criticidade dos alunos9.
9 A orientação básica é trabalhar com a dúvida metódica, questionando-se pontos como o tipo do suporte (pintura, quadro estatístico); o nível de realismo (fotografia, caricatura, representação infantil); como foram produzidas as informações (se o artista desenhou ou pintou a partir de informações de outras pessoas ou teve contato direto com as fontes da obra); de onde vieram essas informações (grupo étnico, pesquisa acadêmica,
13
Mesmo com todas as dificuldades relacionadas aos livros didáticos, é possível sim que
se faça um bom uso deles através do trabalho crítico do professor e dos esclarecimentos e
aprofundamentos das temáticas relacionadas às populações indígenas. Nessa perspectiva
atual, a proposta é que o professor leve o aluno a percebê-los como agentes históricos,
formadores da sociedade brasileira, bem como grandes contribuidores tanto para a História
brasileira como em questões atuais relacionadas à cultura, política, economia e muitos outros
campos importantes da sociedade; e que sua representação no livro didático, ou seja, a forma
como são vistos e entendidos, não seja embasada em erros e estereótipos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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