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Artigo original Rev Psiquiatr RS. 2008;30(1):39-48 Correspondência: Daniela Chiari Rizzo, Rua Irídio, 172/702, Bairro Grajaú, CEP 30430-590, Belo Horizonte, MG. Tel.: (31) 3313.3951. E-mail: [email protected]. Copyright © Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul – APRS Recebido em 18/09/2007. Aceito em 23/10/2007. Representações sociais de cuidadores principais de pacientes com demência Social representations of main caretakers of patients with dementia Daniela Chiari Rizzo 1 , Virgínia Torres Schall 2 1 Mestranda, Instituto de Pesquisa René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Rio de Janeiro, RJ. Médica psiquiatra, Prefeitura de Belo Horizonte, Belo Horizonte, MG. 2 Doutorado em Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ), Rio de Janeiro, RJ. Pesquisadora titular, Instituto Pesquisa René Rachou, FIOCRUZ. O presente estudo foi realizado no Laboratório de Educação em Saúde, Instituto René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Rio de Janeiro, RJ. Baseado em dissertação de mestrado, com o mesmo título do artigo, a ser defendida no Instituto Pesquisa René Rachou, FIOCRUZ, provavelmente no início de novembro de 2007. Resumo Introdução: As síndromes depressivas e demenciais são os problemas mentais mais prevalentes na população idosa. A qualidade de vida de pacientes com demência depende, primordialmente, daqueles que são responsáveis pelos seus cuidados. Assim, é fundamental a realização de estudos que possam descrever as percepções, interpretações e reações dos cuidadores frente aos diversos tipos de síndromes demenciais, as estratégias encontradas para enfrentá-las associadas aos diferentes atores e a mobilização de referentes culturais em torno da experiência da demência. Método: No presente estudo, com base na teoria das representações sociais, foram entrevistados 15 cuidadores, visando compreender como estes reconhecem e vivenciam a síndrome demencial e quais são as ações realizadas por eles para lidar com a mesma. Resultados: A análise de conteúdo indicou que o prejuízo nas atividades instrumentais foram os primeiros sinais que alertaram os cuidadores para o problema de seus familiares. Ao mesmo tempo em que os cuidadores consideram eventos de vida, organicidade e hereditariedade para explicar o problema do familiar, levantam também outros aspectos que estão intimamente associados ao contexto sociocultural, influenciando as ações diante das manifestações da síndrome demencial. Conclusão: Essas são informações essenciais para o planejamento de intervenções e políticas públicas adequadas às características dessa população. Descritores: Cuidadores, demência, representações sociais, envelhecimento. Abstract Introduction: Depressive symptoms and dementia are the most prevalent mental problems among the elderly. The quality of life of patients suffering from these disorders depends mostly on their caretakers. Therefore, it is of paramount importance to conduct research studies describing the caretaker’s perceptions, interpretations and actions in relation to different types of dementia disorders, coping strategies developed associated with different actors and mobilization of cultural references connected to the experience of dementia. Method: In the present study, based on the theory of social representations, 15 caretakers were interviewed, focusing on their experiences and feelings about this disorder and their coping strategies. Results: Content analysis indicated that decreased instrumental activities were the first signs alerting caretakers about their relative’s problem. At the same time as caretakers consider life events, organicity and heredity to explain their relative’s problem, they also raise other aspects, which are intimately associated with the sociocultural context, influencing the actions taken regarding the dementia syndrome. Conclusion: This is essential information to plan interventions and public policies adapted to the characteristics of that population. Keywords: Caretaker, dementia, social representation, ageing.

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Cuidadores principais de pacientes com demência - RIZZO & SCHALL

Rev Psiquiatr RS. 2008;30(1) – 39

Artigo original

Rev Psiquiatr RS. 2008;30(1):39-48

Correspondência:Daniela Chiari Rizzo, Rua Irídio, 172/702, Bairro Grajaú, CEP 30430-590, Belo Horizonte, MG. Tel.: (31) 3313.3951. E-mail:[email protected] © Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul – APRS Recebido em 18/09/2007. Aceito em 23/10/2007.

Representações sociais de cuidadores principaisde pacientes com demênciaSocial representations of main caretakers of patients with dementia

Daniela Chiari Rizzo1, Virgínia Torres Schall2

1 Mestranda, Instituto de Pesquisa René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Rio de Janeiro, RJ. Médica psiquiatra, Prefeitura de BeloHorizonte, Belo Horizonte, MG. 2 Doutorado em Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ), Rio de Janeiro, RJ.Pesquisadora titular, Instituto Pesquisa René Rachou, FIOCRUZ.O presente estudo foi realizado no Laboratório de Educação em Saúde, Instituto René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Rio de Janeiro,RJ. Baseado em dissertação de mestrado, com o mesmo título do artigo, a ser defendida no Instituto Pesquisa René Rachou, FIOCRUZ,provavelmente no início de novembro de 2007.

ResumoIntrodução: As síndromes depressivas e demenciais são os problemas mentais mais prevalentes na população idosa. A qualidade devida de pacientes com demência depende, primordialmente, daqueles que são responsáveis pelos seus cuidados. Assim, é fundamentala realização de estudos que possam descrever as percepções, interpretações e reações dos cuidadores frente aos diversos tipos desíndromes demenciais, as estratégias encontradas para enfrentá-las associadas aos diferentes atores e a mobilização de referentesculturais em torno da experiência da demência.Método: No presente estudo, com base na teoria das representações sociais, foram entrevistados 15 cuidadores, visando compreendercomo estes reconhecem e vivenciam a síndrome demencial e quais são as ações realizadas por eles para lidar com a mesma.Resultados: A análise de conteúdo indicou que o prejuízo nas atividades instrumentais foram os primeiros sinais que alertaram oscuidadores para o problema de seus familiares. Ao mesmo tempo em que os cuidadores consideram eventos de vida, organicidade ehereditariedade para explicar o problema do familiar, levantam também outros aspectos que estão intimamente associados ao contextosociocultural, influenciando as ações diante das manifestações da síndrome demencial.Conclusão: Essas são informações essenciais para o planejamento de intervenções e políticas públicas adequadas às característicasdessa população.Descritores: Cuidadores, demência, representações sociais, envelhecimento.

AbstractIntroduction: Depressive symptoms and dementia are the most prevalent mental problems among the elderly. The quality of life ofpatients suffering from these disorders depends mostly on their caretakers. Therefore, it is of paramount importance to conductresearch studies describing the caretaker’s perceptions, interpretations and actions in relation to different types of dementia disorders,coping strategies developed associated with different actors and mobilization of cultural references connected to the experience ofdementia.Method: In the present study, based on the theory of social representations, 15 caretakers were interviewed, focusing on theirexperiences and feelings about this disorder and their coping strategies.Results: Content analysis indicated that decreased instrumental activities were the first signs alerting caretakers about their relative’sproblem. At the same time as caretakers consider life events, organicity and heredity to explain their relative’s problem, they alsoraise other aspects, which are intimately associated with the sociocultural context, influencing the actions taken regarding thedementia syndrome.Conclusion: This is essential information to plan interventions and public policies adapted to the characteristics of that population.Keywords: Caretaker, dementia, social representation, ageing.

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IntroduçãoO envelhecimento populacional é um fenômeno

demográfico mundial que levou a uma mudança naestrutura etária da população, com aumento do pesorelativo das pessoas acima de 60 anos. Comoconseqüência da queda de fecundidade, o processode envelhecimento populacional brasileiro tem seacentuado. Isso pode ser exemplificado por umaumento da população idosa no total da populaçãonacional. Até a década de 1960, a população do Brasilera extremamente jovem, em torno de 52% abaixode 20 anos e menos de 3% acima dos 65 anos. Aproporção de habitantes com 60 anos de idade oumais dobrou entre 1950 e 1991 (de 3,5 para 7,3%), ea proporção daqueles com 65 anos ou mais quasetriplicou no mesmo período (1,7 para 4,6%) (InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística, CensosDemográficos 1950-1991). Não só o grupo de idosostem crescido mais do que outros grupospopulacionais, como entre os idosos observa-se umaumento do número e da proporção dos muito idosos,com mais de 80 anos1.

Os idosos apresentam mais problemas de saúdeque a população geral. Quando se fala sobre asdoenças presentes na terceira idade, é importantelembrar a parcela que cabe aos transtornos mentais.As síndromes depressivas e demenciais são osproblemas mentais mais prevalentes na populaçãoidosa. A demência pode ser definida como umasíndrome caracterizada por declínio da memória,associado a déficit de pelo menos uma outra funçãocognitiva (linguagem, gnosias, praxias ou funçõesexecutivas), com intensidade suficiente parainterferir no desempenho social ou profissional doindivíduo, na ausência de comprometimento agudodo estado de consciência2.

A prevalência de demência duplica a cada 5 anosapós os 60 anos, resultando em um aumentoexponencial com a idade3. Uma revisão de estudosde prevalência mostra taxas médias que variaram de0,7%, na faixa etária de 60-64 anos, a 38,6%, na faixade 90-95 anos4. No Brasil, existem poucos estudosde prevalência de demência. Um estudo de basepopulacional realizado na cidade de Catanduva (SP)avaliou 1.660 pessoas com 60 anos ou mais edetectou prevalências variando de 1,3%, na faixaetária de 65-69 anos, a 36,9%, para a faixa etária de85 anos ou mais5.

Como a demência é um quadro crônico eprogressivo, chega um momento no qual o cuidadodomiciliar do paciente pode gerar intensa sobrecargapara os cuidadores6. Por “cuidador”, entende-se oindivíduo responsável por prover ou coordenar osrecursos requeridos pelo paciente7. Aproximadamente

80% dos cuidadores de um paciente com demênciasão membros da família que cuidam desses indivíduosem casa8. Levesque et al.9 destaca que o suporte socialformal e informal protege o bem-estar psicológico dosmembros da família que cuidam do paciente. Ocuidado formal, organizado e eficiente a idososdependentes praticamente não existe no Brasil, sendoa família a responsável por esse cuidado10.

Os aspectos socioculturais do envelhecimentoestão se tornando mais centrais aos cuidados etratamento bem-sucedidos de pessoas idosas. Asescolhas atuais de tratamento de indivíduos comdemência favorecem os cuidados na comunidade ena própria casa do indivíduo, contextos nos quais aprópria cultura pode ser mais abertamente expressado que em contextos de cuidados institucionais.Elementos como a família, as relações sociais, acultura e os serviços de saúde têm um impacto namaneira como a experiência da demência évivenciada11. Na família, os mecanismos utilizadospara adaptação à nova situação são bastante variadose podem influenciar a consciência da doença. Outrainfluência importante é o tipo de conhecimento sobreo diagnóstico e a dificuldade em compartilhar o queestá ocorrendo12. No ambiente doméstico, os grupossociais colocam em prática uma variedade deconhecimentos, crenças, valores e atitudes quecircundam o processo de saúde, doença e cuidado13.Por isso, é interessante analisar como as famíliascuidadoras descrevem e interpretam a doença e comoessas representações afetam as relações familiares,as práticas de cuidado e a busca por tratamentos desaúde.

Assim, no presente estudo, fundamentado nateoria das representações sociais, buscou-secompreender o modo como os familiares do pacientecom demência reconhecem e vivenciam a síndromedemencial e quais são as ações realizadas por elespara lidar com essa síndrome. Essas são informaçõesessenciais para o planejamento de polít icasadequadas às características da população-alvo.

MétodoO referencial teórico-metodológico que

orientou este trabalho é o das representações sociaisentendidas como modalidades de conhecimentoprático orientadas para a comunicação e para acompreensão do contexto social , material eideativo. São formas de conhecimento que semanifestam como elementos cognitivos – imagens,conceitos, categorias, teorias –, mas que não sereduzem jamais aos componentes cognitivos14,15. Asrepresentações sociais são socialmente elaboradas

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e compartilhadas, contribuindo para a construçãode uma real idade comum, que possibi l i ta acomunicação.

Para a realização deste estudo, foramselecionados cuidadores de pacientes com demênciamoradores de Belo Horizonte (MG). Todos foramselecionados através da indicação de geriatras epsiquiatras de serviços de saúde públicos (centrosde saúde Dom Cabral e São Jorge, vinculados àprefeitura de Belo Horizonte), conveniados(ambulatório de psiquiatra e psicologia do HospitalMilitar e ambulatório de geriatria do Departamentode Estradas e Rodagens) e particulares queacompanham os respectivos indivíduos com asíndrome demencial. Para a inclusão de sujeitos nogrupo, era necessário indicar o familiar que fosse oresponsável principal pelo cuidado ao paciente e queesse último tivesse o diagnóstico clínico de demência(apenas as mais comuns: Alzheimer, vascular, corposde Lewy, frontotemporal e Parkinson) dentro dedefinições atualizadas da nosologia, associado ounão a exames de neuroimagem.

Para reconstruir o universo de representaçõesassociado à síndrome demencial apresentada poridosos, optou-se por uma abordagem qualitativa.Utilizou-se um roteiro semi-estruturado para asentrevistas, elaborado com o intuito de investigar asmaneiras de pensar e agir relativas à demência, assimcomo identificar o reconhecimento do problema e aatitude para lidar com ele. Foram investigados asmanifestações e os problemas associados aossintomas/sinais da demência, o universo derepresentações e de comportamentos. O critério desaturação foi utilizado para estabelecer o número deentrevistas, tendo sido suficientes 15 para alcançaros requisitos estabelecidos. Para identificar asvariáveis sociodemográficas, o instrumento utilizadofoi o questionário sociodemográfico baseado emOliveira & Oliveira16, construído com o intuito deaveriguar a estrutura etária populacional, a renda, ogênero, o estado civil e a inserção profissional.

Para trabalhar os dados obtidos na investigaçãoqualitativa, optou-se pela técnica de análise deconteúdo17. Essa busca compreender o sentido dacomunicação e, principalmente, desviar o olhar paraoutra significação, outra mensagem através ou aolado da mensagem primeira17.

A análise dos dados foi realizada em duas etapas.Na primeira etapa, os dados provenientes de cadaentrevistado foram analisados separadamente. Apósa transcrição e informatização de todas as entrevistas,os textos foram analisados em função de categoriasidentificadas nos esquemas de codificação. Essesesquemas de codificação foram construídos emfunção de leitura sistemática do conjunto de

entrevistas. A partir daí, as categorias de informaçãorecorrentes foram identificadas.

Treze cuidadores preferiram ser entrevistadosem suas casas, sendo que alguns justificaram essapreferência pela necessidade de ficarem próximosaos pacientes para auxiliá-los se necessário e por nãoterem com quem deixá-los. Somente dois preferiramser entrevistados nos serviços de saúde onde seusfamiliares fazem acompanhamento, considerando aprivacidade e a proximidade desses locais.

Com a aprovação pelo comitê de ética do projetode pesquisa, a pesquisadora apresentava-se comopesquisadora do Instituto de Pesquisa René Rachou,Fundação Oswaldo Cruz, explicava o estudo,solicitava a assinatura do termo de consentimento epermissão para gravar a entrevista. Procurava sempreestabelecer um diálogo para deixar o entrevistado àvontade e seguia o fluxo da conversa até abrangertodos os itens do roteiro semi-estruturado. Asentrevistas gravadas foram posteriormentetranscritas. O tempo de duração das entrevistasvariou entre 40 minutos e 1 hora e 30 minutos. Osnomes citados após os fragmentos de falas dosentrevistados (nos resultados e discussão) sãofictícios.

Resultados e discussãoCaracterísticas dos cuidadores

Os 15 entrevistados têm idades que variam entre34 e 83 anos, sendo 14 do sexo feminino e um dosexo masculino. Quanto ao grau de parentesco, novesão filhas, duas são sobrinhas e uma é irmã dopaciente, sendo que uma das sobrinhas, na verdade,não é parenta consangüínea. Três são esposos dospacientes. Cinco cuidadoras trabalham fora e têmrenda própria, que varia entre três e 10 saláriosmínimos. Elas atuam e acumulam as funções dotrabalho fora de casa aos cuidados dos pacientes naprópria residência. Oito cuidadoras não trabalhamfora, sendo que uma delas recebe um salário mínimopara cuidar do familiar, proveniente da renda dopróprio paciente. Dois são aposentados e têm rendaque varia entre cinco e 20 salários mínimos. A rendafamiliar varia entre três e 23 salários mínimos.Quanto à escolaridade, três cuidadoras têm o ensinofundamental incompleto, e duas completaram oensino fundamental. Outras quatro têm o ensinomédio completo, e seis têm nível universitário. Otempo durante o qual estão cuidando do familiar variaentre 4 meses e 23 anos, sendo que cinco já cuidamde seus familiares há pelo menos 10 anos, e nove,entre 2 e 5 anos.

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Apresentação e interpretação das categorias

Após leitura flutuante do conjunto dascomunicações, foram identificadas sete categorias e20 subcategorias que comandaram a especificaçãodos temas. Após discussão entre as duas participantesda pesquisa (aluna e orientadora), essas categorias esubcategorias foram organizadas em cinco grandeseixos temáticos, de forma a orientar o tratamento dosresultados obtidos e a interpretação: primeiros sinaisque alertaram o cuidador sobre a existência de umproblema com o familiar; interpretações de origemsociocultural, histórica e/ou biológica para asalterações do familiar; reações do cuidador àsalterações do familiar; dificuldades enfrentadas pelocuidador para o cuidado do familiar; relações docuidador com os profissionais de saúde.

Para a realização desse artigo, foramselecionados os três primeiros eixos referentes àspercepções, interpretações e reações dosentrevistados diante das alterações apresentadaspelos respectivos familiares. Esses três temascontribuem para uma melhor compreensão douniverso das representações sobre a demência porparte dos cuidadores e suas conseqüências quantoao tratamento e ações de cuidado.

Primeiros sinais que alertaram o cuidadorsobre a existência de um problema com ofamiliar

Esse eixo temático surgiu a partir da questão doroteiro semi-estruturado: “Como percebeu que seufamiliar estava com o problema?”. Para responder aessa pergunta, os entrevistados descreveram um oumais dos sinais citados a seguir.

Em suas narrativas, três cuidadores reconhecemo declínio da memória, que é um requisito primáriopara o diagnóstico da demência (“... ela está umpouquinho esquecida, às vezes, ela perde muitodocumento, ela esquece onde está e fica revirandotudo” – Lídia), e quatro, a desorientação (“... ele iana padaria... passava um pouquinho, mamãe ligavae falava: ‘seu pai não voltou’. Então, a gente saíapelo bairro e logo achava, às vezes passava unsapertos, aconteceu isso umas cinco vezes. Uma vez,ele foi parar quase indo pra Sabará...” – Célia) comoos primeiros sinais que os alertaram para o problemade seus familiares. Três reconhecem manifestaçõesde alteração cognitiva na capacidade decomunicação (“A família começou a perceber queela começou a não falar coisa com coisa, às vezesela não assimila o que a gente está falando, e aí quea gente começou a perceber” – Joana) e umacuidadora identifica o não-reconhecimento de

pessoas já conhecidas (agnosia) como indicativos deuma alteração no paciente (“... ele começou aesquecer os nomes dos netos, dos filhos. A gentefalava: ‘pai, é a M’. Aí, ele falava: ‘quem é M.?’. Aí,tinha que falar: ‘é a sua neta’. Nós fomos observandoque tinha alguma coisa...” – Célia).

As alucinações visuais (“ela começou... a veruma coisa que não era. Por exemplo, uma vez tinhaum araticum... na fruteira, ela me chamou bembaixinho: ‘vem cá, tem um urutu enroladinho nafruteira’. Um urutu, era uma cobra, aí eu falei assim,‘não, mãe, isso não é urutu não, isso é um araticum’”– Clarice) foram, para dois cuidadores, e asalterações de humor (“... ela estava gostando muitode ficar deitada na cama, triste, o que não era o jeitodela...” – Luíza), para três, os primeiros sinais dasíndrome demencial. Embora a citação acima queexemplifica as alucinações visuais seja,provavelmente, um exemplo de parafasia, aentrevistada percebeu essa manifestação comoimportante na identificação de um problema, porconsiderá-la uma alucinação.

Todos os cuidadores descrevem sintomascomportamentais surgidos ao longo do processo decuidado. As alterações de comportamento que maisforam citadas pelos cuidadores são: maneirismosrepetitivos (no caso, o ato de varrer “sem parar,compulsivamente”), fuga, agitação e agressividadeverbal e/ou física. Uma entrevistada deu-se conta dapossibilidade de uma doença acometendo o familiarapós observar alterações em seu comportamento, oqual se tornava progressivamente mais agressivo. Ofato de a paciente em questão ter sido consideradasempre “muito nervosa” parece ter contribuído pararetardar a percepção de seu adoecimento, devido àassociação dos sinais iniciais da demência com seutemperamento forte (“... a gente sempre a vêagressiva, nervosa, que toda vida ela foi muitonervosa... é assim que a gente começou a perceber...ficou aquela nervosa assim diferente... que ela ficavanervosa, falava, falava e pronto, mas depois elacomeçou a ficar diferente, a querer me agredir” –Clara).

As manifestações de progressivocomprometimento das atividades da vida diáriainstrumentais, como habilidade para lidar comdinheiro e pagar contas, fazer compras e executartrabalhos de rotina (por exemplo, cozinhar, lavar,costurar), foram as mais freqüentemente descritascomo alertas para um problema no familiar, sendocomentadas por sete cuidadores.

Primeiro sintoma foi deixar de fazer as coisasque ela costumeiramente fazia muito bem... Porexemplo, ela começava a lavar as vasilhas e parava,

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ela começava a sentar na máquina de costurar elevantava... ela saía e demorava muito e perdia oque ia fazer. Por exemplo, ela gostava de costurar,ela era costureira, se ela saía para buscar uma linha,ela chegava sem a linha, ou, por exemplo, chegavacom o fecho ou com nada ou perdia o dinheiro...(Maria)

No final do ano, me chamou muito a atenção

porque ele recebeu o 13º salário, quase 6 mil reaisno dia 15 de dezembro. Quando chegou no dia 3 dejaneiro, só tinha 70 reais e não sabia o que tinhafeito com o dinheiro... e todas as contas atrasadas,não tinha pagado nada, aí eu pensei que tinhaalguma coisa errada... (Hilda)

Os primeiros sinais que alertaram esses

cuidadores têm pertinência para o estudo em questão,pois permitem avaliar o estágio da doença – no casoda demência de Alzheimer (DA) – em que oscuidadores se dão conta de que algum problema estáacometendo o seu familiar. Para a maior parte dosentrevistados que cuidam de pacientes com DA, ossinais que chamaram a atenção para esse problemaforam compatíveis com os encontrados na faseintermediária da doença, na qual houve iniciativa debuscar a ajuda médica. A demência começa comsintomas de memória muito leves, que, em geral, nãosão percebidos ou considerados pelos cuidadorescomo motivos para preocupação quanto à saúde dofamiliar (“Porque eram coisas pequenininhas, nãoera nada que, digamos assim, estivesse atrapalhandonem ela e nem a vida das pessoas que estavam aoredor, eram coisas sutis” – Lídia). É comum que odiagnóstico seja realizado após 3 anos de evoluçãoda doença, período em que o tratamento commedicamentos poderia ser mais eficaz18. Somente trêscuidadoras – sendo que duas são filhas, com níveluniversitário, e uma é esposa, com ensino médiocompleto – perceberam prejuízos mais leves damemória que são compatíveis com a fase leve dadoença. As alterações em domínios cognitivos, queinterferem na capacidade para lidar com dinheiro eno rendimento ocupacional, foram os sinais maiscomumente relatados. Portanto, a percepção da maiorparte dos cuidadores sobre o estado de saúde dosfamiliares estava associada ao desempenho dasatividades instrumentais.

Interpretações de origem sociocultural,histórica e/ou biológica para as alteraçõesdo familiar

A partir das percepções dos primeiros sinais dasíndrome demencial e das mudanças ocasionadas

pela doença no familiar, os cuidadores teceminterpretações sobre essas alterações.

Origem sociocultural e históricaOs cuidadores combinam os significados da

demência com eventos de vida marcantes no interiorde um contexto histórico e sociocultural específico,em suas considerações sobre a doença. Dozecuidadores apontam como justificativas para asalterações dos familiares as histórias de suas vidas,considerando os aspectos afetivos e/ou materiais e/ou sociais. Seis deles consideram os aspectos dasrelações de afeto – a ausência do amor ou docasamento, ou as perdas amorosas, ou umcomportamento inapropriado nas relações amorosascom o sexo oposto – como causas para a síndromedemencial.

... um amor talvez, meu pai morreu muito novo,

um amor não-correspondido... um abandono,abandono de amor... então, eu acho que o amor, senós não tivermos fé em Deus, o amor te leva àdemência, a doenças tenebrosas. Isso no meu modode pensar... é muito importante o amor. Quando omeu pai morreu, ela tinha uns 40 e poucos anos...meu pai faleceu, e ela perdeu o amor dele, depoisela teve uma outra pessoa na vida dela por 20 anosque a deixou... (Paula)

Considerando a história de vida dos pacientes

nos seus aspectos materiais e sociais, o apego aodinheiro e ao lar, a perda do trabalho consideradoum ideal de vida ou o trabalho excessivo, a históriade maternidade e o estresse da modernidade sãorelacionados como causas da doença dos pacientespela maioria dos cuidadores. Essas interpretações deorigem psicossocial remetem à idéia de que asíndrome demencial estaria de alguma forma sob odomínio do paciente, sendo, assim, sua“responsabilidade” estar ou não doente. Umaentrevistada fornece mais indícios que fortalecem opensamento de que a demência pode ser determinadapor características da personalidade e dotemperamento do paciente e, assim, “controlada” apartir de mudanças de atitudes (“... ela era umapessoa muito rancorosa... é isso que levou ela muitojovem à demência... minha mãe é assim uma pessoadifícil, italiana difícil, difícil até para os filhos... essadoença de mal de Alzheimer leva a pessoa a cadavez ficar pior quando a pessoa não tem humildade...”– Paula).

As idéias de causalidade da doença descritas

pelos entrevistados do presente estudo assemelham-se com as associações construídas pelos cuidadores

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latinos para explicar as causas da doença expressasem estudo realizado por Hinton & Levkoff19. Estescontam histórias que atribuem o início e curso dadoença ao contexto de eventos traumáticos ao idoso.Para as famílias latinas, o início ou piora da demênciaforam associados a eventos traumáticos eexperiências afetivas dolorosas (como, por exemplo,solidão). Os eventos traumáticos podem consistir nafragmentação da família, devido à migração,discriminação, negligência dos filhos, mortestrágicas, dificuldades econômicas e perda da devoçãoda família.

Estereótipos culturais do envelhecimento eproblemas médicos coexistentes também parecem terinfluenciado as noções dos cuidadores sobre ademência no presente estudo e estão de acordo comestudo realizado por Ikels20. Este revela como umnúmero de fatores, incluindo baixas expectativas emrelação ao idoso com baixa escolaridade, estereótiposculturais do envelhecimento e problemas médicoscoexistentes, levam à pequena valorização desintomas, como a perda de memória em idosos deuma zona rural na China. No presente estudo, seiscuidadores consideram a possibilidade de osprimeiros sinais observados da doença fazerem partedo envelhecimento normal, e cinco cuidadoresassociam as manifestações da doença aos distúrbiosmentais pré-existentes ou coexistentes, ocasionandodemora para a aquisição de uma maior consciênciasobre a doença pelos entrevistados. Essasinterpretações podem ajudar na compreensão do fatode os prejuízos mais leves de memória dos familiaresnão terem sido notados pelos mesmos.

... a gente custou muito para cair a ficha, a gente

achava que era cabeça cansada, está caducandocedo... a gente pensava: ‘quem sabe ela estácaducando’, mas a N. era mais atenta, e ela notouque ela estava doente... (Maria)

... quando ela veio de São Paulo há 20 anos, o

estado dela estava bem crítico, mentalmente bemcrítico... ela tem histórico de loucura na família, elaestá com a mente muito perturbada mesmo... eu nãosei o que leva uma pessoa a ter problema mental,porque é tanta gente que você conhece que, derepente, tem um problema mental, e você não sabenem por que... (Ana)

Origem biológicaEmbora a maior parte dos cuidadores considere

a síndrome demencial como resultado de sofrimentosdo passado, eles não desconhecem a naturezabiológica e incurável da doença. Alguns cuidadoresdemonstram um conhecimento prévio da DA, mesmo

antes do diagnóstico do médico. Esses casos mostramcomo a consciência sobre a doença sofre influênciade mecanismos psicológicos (negação da doença)que, muitas vezes, podem dificultar uma maiorpercepção e ação em relação ao problema (“a genteestava percebendo: papai está com Alzheimer. Aí,se lê uma coisinha ali, uma informação aqui... não,não é Alzheimer não, deve ser coisa da idade mesmo,cansaço, depressão” – Célia). Somente trêscuidadores – duas com ensino médio completo,sendo que uma é técnica em enfermagem, e um comnível universitário – interpretaram as modificaçõesdo familiar apenas como conseqüência das alteraçõesno cérebro provocadas pela doença, desconsiderandocausas psicossociais.

Porque, no Mal de Alzheimer, o cérebro vaidefinhando, ele vai reduzindo mesmo, não é isso?Os neurônios vão se perdendo, vão se desgastando,então, não tem força para o pensamento, oraciocínio, a memorização... vão ficando cada diamais fracos... (Clarice)

O conhecimento biomédico prévio sobre a

doença, através dos meios de comunicação ou a partirda experiência de observar outro ente próximo dafamília com demência, parece ter influenciado nasconsiderações sobre as origens biológicas da doençae na possibilidade de perceber e reconhecer logo noinício os sinais mais precoces da mesma.

Não foi nem eu que percebi, foi meu filho: ‘pai,

a mamãe está esquisita, não está notando, não? Vocêestá vendo que ela não fala coisa com coisa, estáassim meio avoada...’. Aí, eu estava com o carroligado e ouvi uma reportagem entrevistando ummédico da USP de São Paulo... e ele estava falandoexatamente sobre o mal de Alzheimer, e tudo que elefalou naquela hora, ela se encaixou em todos ositens... (Antônio)

Elementos mentais, sociais, afetivos, históricos

e cognitivos se articulam para mediar essasinterpretações da realidade por parte dosentrevistados. Com o peso da tradição, da memóriae do passado, esses cuidadores constroem umarealidade social que também recebe a influência dosmeios de comunicação, das teorias, das informaçõesdo discurso biomédico e dos indivíduos com os quaisinteragem.

Ao mesmo tempo em que os cuidadoresconsideram eventos de vida, organicidade ehereditariedade para explicar o problema do familiar,levantam também outros aspectos que estãointimamente associados ao contexto sociocultural.

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A partir das entrevistas realizadas, é possívelobservar que, no início do processo dereconhecimento do problema, os cuidadores buscamdiversas explicações para as manifestações da doença(“eu não sei se é um distúrbio mental, ou se é porcausa da idade, ou se foi depois que ela levou umtombo, sabe, e bateu com a cabeça...” – Lara). Aconsciência da doença deve ser observada comoproduto da interação entre o processo psicossocial eo déficit cognitivo11. Farmer & Good21, em suasrevisões sobre as representações da doença naantropologia médica, afirmam que as idéias sobrenatureza e significados da doença freqüentementeocorrem na forma de histórias situadas em umcontexto sociocultural particular. A articulação entreos universos sociocultural e de experiência pessoalinfluencia as noções sobre saúde e doençarelacionadas à demência.

As percepções e as interpretações dosentrevistados em relação às alterações decorrentesda síndrome demencial irão influenciar o momentodo reconhecimento de que um problema acomete oseu familiar e, conseqüentemente, o processo detomada de decisões.

Reações do cuidador às alterações dofamiliar

Procura por ajuda médicaA primeira reação da maioria dos entrevistados

foi procurar ajuda médica após perceberem asmanifestações do problema nos familiares. Algunsobstáculos para a concretização dessa ação foramrelatados pelos cuidadores: demora em conseguiratendimento médico, falta de tempo da família paraconciliar as idas aos serviços de saúde com suasocupações e resistência do próprio paciente em ir aomédico.

... minha irmã notou que ela estava doente,começou a fazer uns tratamentos com ela, masdemorou para o médico do posto também descobrirque ela podia ter essa doença... Eu não sabia queela tinha essa doença, a gente só sabia que ela nãoestava bem. Que alguma coisa tinha... aí que a N.dentro das limitações dela também porque elatrabalha o dia inteiro, começou a marcar médico, alevar... você sabe como que é essas coisas, tudodemorado e ela sem tempo, e a gente sem entender...(Maria)

No caso de três cuidadoras – com ensino

fundamental completo e incompleto e universitário–, não foram as manifestações da síndromedemencial que impulsionaram a procura pela ajuda

médica, mas sim os sinais de problemas físicos deoutras naturezas. Nos pacientes cuidados por essastrês entrevistadas, o diagnóstico da síndromedemencial foi realizado como conseqüência de umaavaliação mais global da equipe de saúde, e não comoresultado de uma demanda específica relacionada àdemência pelo cuidador. As associações entre asmanifestações dos pacientes e outros transtornosmentais e/ou perda de memória como parte doenvelhecimento normal parecem estar relacionadascom as reações de procurar os serviços médicosdevido aos problemas físicos, e não mentais. Aquelastrês cuidadoras confundem os sinais da demênciacom problemas psiquiátricos co-existentes ou pré-existentes, retardando a aquisição da consciência dadoença e a procura pela ajuda médica (“ela semprefoi cabeça fraca” – Joana; “eu não sei se é umdistúrbio mental ou se é por causa da idade” – Lara;“ela tem histórico de loucura na família... ela estácom a mente muito perturbada mesmo” – Ana). Jáos três entrevistados que consideravam somente asorigens biológicas para explicar a doença tiveramuma maior prontidão para ação em relação à procurapelos serviços de saúde.

... ele estava esquecendo muito, se perdendo na

rua... a supervisora do asilo onde a irmã dele estáreparou que ele estava muito aéreo... uma vez elefoi ao banco e bloqueou a própria conta porqueesqueceu a senha.. . procurei o médicoimediatamente... eu já sabia que era esse problema,porque as irmãs dele já tinham tido... uma morreuhá 1 ano... (Vilma)

Não somente as interpretações com origens

psicossociais e/ou biológicas interferem nas reaçõesdos cuidadores, mas também o impacto dasmanifestações da demência nestes. Estudo realizadopor Hinton & Levkoff19 mostra como a perda deidentidade e “perda de si mesmo” são signosidentificados, a partir das narrativas de cuidadoresde diversas etnias, que não fazem parte dos critériosdiagnósticos para demência. “A perda de si mesmo”simultaneamente expressa e constrói sentimentos depena e tristeza em parte da família e representa umsignificado da demência formado culturalmente queatravessa as barreiras étnicas. No presente estudo,os cuidadores não se utilizam desse termo paradenominar as alterações decorrentes da demência,porém a maioria deles reconhece o problema quandoseus familiares começam a perder as habilidades queos identificavam como indivíduos, tendo comoresposta inicial a procura pela assistência de saúde.Sintomas comportamentais como agressividade,agitação principalmente à noite e comportamento de

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fuga também influenciaram na busca pela ajudamédica (“... tem dia que ela fala que quer ir embora,que vai embora, um dos motivos da gente ter levadona psiquiatra foi esse... ela querer fugir toda hora” –Ana).

Responsabilização pelo cuidado afetivo e

materialAlém da procura pelo suporte médico, os

cuidadores com maior renda contrataram cuidadoresformais ou pessoas sem conhecimento técnico paraauxiliá-los no cuidado ao paciente. Todos osentrevistados relatam atitudes que buscam tornar ocontato com o familiar o mais próximo possível efornecer o cuidado de forma afetiva. Para isso, oscuidadores levam seus parentes para sua própria casaou saem de seu lar para passar dia e noite com osmesmos em suas residências, valorizando o contatoafetivo como ponto essencial do suporte ao idoso.

Nessas alturas, eu já a trouxe para morar aqui

em casa, pois ela já estava bem doente, minha mãetambém adoeceu, minha irmã trabalhava o diainteiro, como trabalha até hoje, então eu tenho quelevar ela para perto para eu acompanhar, há uns 12anos... Foi acolher mesmo, cuidar. Eu mesmo tomeia providência de trazer ela para minha casa... nossareação foi de cuidar dela com muito carinho, muitaatenção, muito amor... mas sem sabedoria, semaquela facilidade, sem profissionalismo mesmo.(Maria)

As ações são definidas pelo modo como os

cuidadores interpretam a situação que vivenciam.Como já explicitado anteriormente, a maior parte dosentrevistados detiveram-se nas dimensõespsicossociais para explicar as causas da demência,sendo as dimensões fisiológicas, genéticas e dehereditariedade também abordadas, mas com menosfreqüência pelos mesmos. Essa consideração podeajudar na compreensão do contraste entre o atualestudo e os achados de pesquisa qualitativa comcuidadores principais de um grupo de suporte aosfamiliares de pacientes com demência e alto nívelde dependência, realizada no Rio de Janeiro22. Nesseestudo, os sujeitos enfocaram as causas biológicasda doença e se interessaram por todas as informaçõesque pudessem explicar o quadro patológico. Segundocomentário dos próprios autores, essa característicapode ser conseqüência do contexto do grupo e dacoordenação deste por profissionais de saúde, que,no imaginário dos cuidadores, têm conhecimentosreferentes à origem da doença. Para os cuidadoresdessa pesquisa, o cuidado técnico de um cuidadorformal é mais importante do que o contato afetivo

proporcionado pelo próprio familiar, ao contrário doobservado na presente pesquisa.

Porém, no presente estudo, mesmo aquelescuidadores que desconsideram as origenspsicossociais da doença, levando em conta somentea origem biológica, colocam como importante parao cuidado “o carinho e a paciência”. Seria simplismoassociar somente as interpretações sobre a origembiológica da doença ao cuidado técnico, com menorênfase no aspecto afetivo. A relação afetiva entrepaciente e cuidador, o estado afetivo do cuidador esuas características pessoais irão influenciar oprocesso de cuidado. Como exemplo, pode-se citaro caso do único cuidador do sexo masculino com 75anos, dois filhos adultos e que, apesar de considerarsomente a origem biológica da doença, cuida de suaesposa com demência em fase moderada há 5 anos,sem ajuda de qualquer cuidador formal ou outromembro da família. Embora tenha renda (mais de20 salários mínimos) própria para a contratação desseprofissional, assume os cuidados da esposa e da casa,sugerindo uma dificuldade em distinguir o que é serum cuidador de sua condição de marido.

Informações prévias e as noções biomédicassobre a demência adquiridas durante o processo decuidado fornecem subsídios aos cuidadores nainterpretação dos fenômenos observados nofamiliar, influenciando, assim, suas reações diantedo problema e os arranjos intrafamiliares. Asorigens psicossociais para a doença se articulamcom os conhecimentos biomédicos, favorecendo opaciente, que recebe um cuidado que, além deafetivo, leva em consideração suas necessidadesbiológicas e se adapta às suas transformações físicassecundárias à demência (“... enquanto ela tiver umsuspiro, eu não vou abandonar ela, porque foi oabandono que colocou ela nesse estado...” – Paula;“Tudo que eu ouço falar que é bom, eu faço. Elaestava engasgando muito, aí eu a levei no geriatra,e ela indicou uma fonoaudióloga, aí não passou eeu aí procurei uma nutricionista. . . e o maisinteressante são as fases, naquela época do engasgoeu ficava louca” – Luiza).

Considerações finaisComo afirma Schutz23, cada ator social

experimenta e conhece o fato social de formapeculiar. É a constelação das diferentes informaçõesindividuais vivenciadas em comum por um grupo quepermite compor o quadro global das estruturas e dasrelações, onde o mais importante não é a soma doselementos, mas a compreensão dos modelos culturaise da particularidade das determinações.

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Os resultados da pesquisa mostram que asíndrome demencial não é detectada de formaprecoce pelos cuidadores que percebem os sinais doproblema, principalmente quando o familiar tem suashabilidades instrumentais prejudicadas pela doença.As dimensões fisiológicas, genéticas e dehereditariedade foram abordadas pelos cuidadores,mas com menos freqüência, para explicar as causasda demência. A maior parte dos entrevistados deteve-se nas dimensões psicossociais e socioculturais.Essas diferentes interpretações repercutem naaquisição da consciência da doença e,conseqüentemente, nas atitudes diante do problema.Mecanismos psicológicos (negação da doença) eidéias sobre as manifestações da doença associadosaos estereótipos sobre o envelhecimento ou aosproblemas médicos pré-existentes ou co-existentesretardaram a obtenção do conhecimento sobre ademência e a procura pelo tratamento médico. Apesarde a maioria dos entrevistados ter consciência danatureza biológica da doença, no momento daentrevista, ainda assim, eles teciam interpretaçõesde causalidade entre a história de vida do paciente ea demência, o que remete à idéia de que as alteraçõessecundárias à síndrome demencial poderiam serevitadas ou controladas pelos pacientes.Compreender melhor a doença dá mais segurança esenso de controle para o cuidador. Ter umaexplicação lógica para as manifestações apresentadaspelo paciente conforta o cuidador, pois permite queele perceba que a doença não tem nada a ver com orelacionamento dele com a pessoa cuidada ou queos sintomas comportamentais da demência não sãodirigidos propositadamente a ele. Proporciona, ainda,a possibilidade de um tratamento para o doente, econseqüentemente, apoio e orientações aoscuidadores durante o processo de cuidado.

É importante considerar, porém, os limites daanálise do presente estudo inerente ao próprio desenhoda metodologia qualitativa e à prática científica dasciências sociais. Por exemplo: (a) a presente análiseelege um determinado escopo teórico como marcoorientador, o que conduz às análises que valorizamdeterminados aspectos da realidade em detrimento deoutros (limites teóricos); (b) impossibilita umageneralização direta ao universo macro, sendonecessárias mediações e comparações; (c) atribui umademarcada relevância aos processos interpretativos narelação pesquisador/sujeitos pesquisados, o que exigeuma contínua vigilância epidemiológica; (d) tornainadequada a predição do comportamento futuro darealidade estudada com base na simples análise devariáveis, uma vez que diz respeito à ação históricados sujeitos, permitindo apenas a avaliação deprováveis cenários de permanência e/ou

transformação/mudança dessas relações24,25. Apesardas limitações, a pesquisa qualitativa é imprescindívelquando se quer trazer à tona a compreensão dosfenômenos saúde e doença a partir dos valores,atitudes e crenças dos grupos a quem a ação se dirige.Este estudo demonstra que são necessários maioresesclarecimentos quanto aos sinais e sintomas dademência à população – sempre considerando ocontexto sociocultural e econômico daqueles para osquais as informações se destinam – para que oreconhecimento da doença possa ser realizado maisprontamente pelos familiares do idoso. Programas deformação e educação permanente voltados para osprofissionais de saúde que trabalham na atenção básicado Sistema Único de Saúde, na área de saúde da pessoaidosa, deveriam ser desenvolvidos de forma cada vezmais crescente. Isso permitiria um aprimoramento nodiagnóstico precoce da síndrome demencial, ainvestigação de causas potencialmente tratáveis e otratamento adequado dos pacientes com demênciasirreversíveis, trazendo conseqüências positivas paraos cuidadores principais e outros membros da família.Esses teriam suporte para lidar com as manifestaçõescomportamentais e psicológicas da doença eesclarecimentos quanto aos cuidados básicos(alimentação, higiene), atenuando as dificuldadessurgidas durante o processo de cuidado.

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