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PÚBL
ICO,
DOM
INGO
10 N
OVEM
BRO
2013
MARIA FILOMENA MOLDER NÃO SE PARECE COM NINGUÉM
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2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 3
ROBIN VAN LONKHUIJSEN/AFP
ILUSTRAÇÃO DE JOÃO FAZENDA
ENRIC VIVES-RUBIO
Relato de um junkie: diz que tem “um Ferrari nas veias”. Consumiu e traficou mesmo quando estava preso. A sua história também é a história das drogas em Portugal — dentro e fora das cadeias
Fotografia de capa: Enric Vives-Rubio
A crise na Holanda chama-se “Pedro Preto” e não tem nada que ver com dinheiro. Uma discussão racial está a ensombrar a maior festa do país
Prémio Secil 2012, José Neves acredita na luz e no tempo como ingredientes fundamentais na arquitectura. Alimenta-se de música, de cinema e de frases que o inspiram para pensar cidades abertas
REVIS
TA 2
ÍNDI
CE26
32
12
Directora Bárbara Reis Editoras Francisca Gorjão
Henriques [email protected], Paula Barreiros paula.
[email protected] Copydesk Rita Pimenta
Design Mark Porter e Simon Esterson Directora
de Arte Sónia Matos Designers Helena Fernandes,
Sandra Silva Email [email protected]
Este suplemento faz parte integrante
do Público e não pode ser vendido separadamente
FICHA TÉCNICA
04 IMAGEM/PALAVRA Miguel Gaspar
Espaço — A nave do desenrasca
Rita Pimenta
Medo — Receio de algo “sem nome e sem
rosto”, como um rapto
08 ESCOLHAS Elvis At Stax é uma compilação que nos
leva aos estúdios da mítica editora que
fez, ao lado da Motown, a história da soul
— e dá-nos 17 canções de King. A Reel Art
Press prepara-se para lançar Dennis Stock:
American Cool, com o conjunto da obra
fotográfi ca de Stock e onde encontramos
generosamente James Dean. A revista
Relâmpago lançou um número duplo
consagrado à escritora Irene Lisboa (1892-
1958) e, em particular, à sua poesia. A
Chocolataria Equador nasceu no Porto e
acaba de abrir a primeira loja em Lisboa,
no Chiado
18 DE ONDE VEM MARIA FILOMENA MOLDER?
Foi uma professora que em miúda odiou
a escola. Agora, acabou de se reformar da
Universidade Nova. Esperou mais de 20
anos para compreender textos de Eduardo
Chillida ou para reler Wittgenstein.
Entrevista com a fi lósofa que fala como
quem levita. Por Anabela Mota Ribeiro
41 PERSONAGENS DE FICÇÃOAntónio Pires Sumo de Lima, por Rui
Cardoso Martins
42 CRÓNICA URBANA Ai, as castanhas, as castanhas, em vários
locais no Porto
CRÓNICASJosé Diogo Quintela
Museu custa mais do que um coche 6
Jorge Figueira
As indústrias criativas 8
Vítor Belanciano
Não há inocentes 9
Isabel Coutinho
Sobreviver ao mito 10
Alexandra Prado Coelho
O Estado e a comida que damos aos fi lhos 11
Alexandra Lucas Coelho
Modernismo mágico 38
Daniel Sampaio
Desespero nas escolas 40
Nuno Pacheco
A música no túnel do tempo 40
4 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
Nome masculino que significa “sentimento de inquietação que se sente com a ideia de um perigo, real ou aparente”. “Medo” também significa “receio”, “temor”, “terror”. Será esta a atmosfera em que vivem por estes dias as famílias residentes em Moçambique. Por receio de sequestros, “dezenas de crianças de famílias portuguesas já saíram do país”, segundo o secretário de Estado das Comunidades, José Cesário.
Da Escola Portuguesa de Maputo chegou a informação de que, “desde Setembro, 40 crianças deixaram a escola, que tem 1600 alunos de 14 nacionalidades”. E supõe-se que outras crianças e jovens terão deixado vários estabelecimentos de ensino. Uma criança raptada só recuperou a liberdade depois de a família pagar meio milhão de dólares, mas um rapaz de 13 anos foi morto em cativeiro, apesar de a mãe
ter comunicado o sequestro à Polícia de Investigação Criminal.“Medo” também se regista como “fenómeno de inquietação súbita e violenta, provocado pela consciência de ameaça ou perigo” e “alma do outro mundo”. Mas o que ameaça Moçambique é bem deste mundo e junta polícias e ladrões, como se revelou na quarta-feira: “Foram condenados três polícias que integravam uma
rede de sequestradores que chegavam a exigir 165 mil dólares de resgate. Um dos condenados era membro da guarda do Presidente.”Na acepção popular, “fantasma” é sinónimo de “medo”. E em fantasma se está a transformar a cidade de Maputo, com as ruas desertas à noite. Como expressou poeticamente Mia Couto, as pessoas receiam algo “sem nome e sem rosto”. Rita Pimenta
MEDORECEIO DE ALGO “SEM NOME E SEM ROSTO”, COMO UM RAPTO
IMAG
EMPA
LAVR
A
ESPAÇO Na terça-feira, a Índia tornou-se o quinto
país do mundo a entrar na corrida a Marte.
Mas os indianos deram esse passo de uma
maneira muito diferente das nações que
os precederam. Ao colocarem em órbita a
sonda Mangalyaan (o nome signifi ca “veí-
culo de Marte”, em hindi), os indianos lançaram
para o espaço um conceito: a jugaad. Mais do que
um objecto físico, em 2014, os indianos terão co-
locado essa ideia (a jugaad) na órbita de Marte, ou
seja, num ponto onde ela será particularmente vi-
sível da Terra.
O que é então a jugaad? Nada de particularmente
espiritual ou esotérico. Jugaad signifi ca a capacida-
de de resolver um problema depressa e por pouco
dinheiro. A Mangalyaan custa “apenas” 55 milhões
de dólares e o orgulho dos cientistas indianos é con-
seguirem chegar tão longe por esse preço. Chamam-
lhe a sonda low cost, uma espécie de Ryanair do
cosmos. Mas o jugaad é muito mais do que o low
cost.Não é preciso sair da atmosfera terrestre para
explicar a um português o que é jugaad, porque
todos os portugueses sabem do que estamos a falar:
jugaad é desenrascar. Na Índia, como em Portugal,
o desenrascanço tornou-se praticamente uma ide-
ologia nacional. É isso que é interessante.
Trata-se de uma palavra comum na Índia ou no
Paquistão. Refere-se, por exemplo, a um veículo
rudimentar usado nas zonas rurais da Índia, uma
espécie de miniautocarro de caixa aberta, propul-
sionado por um motor de uma bomba de água e
cujos travões também são jugaad: muitas vezes, o
remédio é os passageiros porem os pés no chão.
Uma tecnologia interessante de transpor para o
espaço.
Mas jugaad não tem apenas que ver com inventar
coisas práticas por muito pouco dinheiro, uma ideia
potencialmente de esquerda e anticapitalista. Na
Índia, jugaad tornou-se também uma ideologia de
gestão, nos antípodas das culturas de gestão oci-
dentais — Portugal excluído. Em vez de planear,
improvisa-se, muda-se de rumo, assume-se que
tudo é imprevisível. É a gestão combinada com a
mente de um músico de jazz. Os defensores desta
ideia dizem que esta é a única forma de uma empre-
sa se adaptar ao universo caótico de uma economia
emergente, como a indiana.
Em nome desta forma de pensar — barato se vai
longe —, a Mangalyaan está a dar voltas à Terra pa-
ra ganhar balanço e voar até Marte, em vez de ser
empurrada por um foguetão potente, mas caro. No
meio de tudo isto, porém, há quem diga que esta
sonda nada trará de novo à investigação sobre Marte
e que a sua única razão de existir é o prestígio da
Índia. Neste caso, portanto, o jugaad conduziria ao
desperdício: seria um problema, não uma respos-
ta. Nada que um bom desenrascado não saiba de
ginjeira. Miguel Gaspar
MANJUNATH KIRAN/AFP
Uma rica poupança ou um desperdício low cost?
A NAVE DO DESENRASCA
AF McSORRISO2013 Publico2 286x346.ai 1 10/28/13 3:19 PM
6 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
JOSÉ DIOGO QUINTELAÉ MUITO ISTO
MUSEU CUSTA MAIS DO QUE UM COCHE
E a selecção de Parques de Estacionamento
em Lisboa, que está soberba? A oferta de
espaços e preços é de tal modo variada
que põe a cabeça a andar à roda a qual-
quer amante do acondicionamento de
viaturas em edifícios próprios para o efei-
to. Com apenas 41 euros por mês, pode-se esta-
cionar no Campo Grande. Por 135 euros e com
vista para o rio, há as Portas do Sol. No Chiado,
arruma-se com 175 euros. E, num patamar um
bocadinho mais luxuoso, há o novo Museu dos
Coches, com mensalidades de 3645 euros. São
os 3,5 milhões de euros ao ano que o custa man-
ter, a dividir por cada um dos 80 coches que vão
fi car parqueados naquela que é, sem dúvida, a
mais bonita garagem que há em Lisboa — e a que
tem maior pé-direito.
Mas nota-se ali falta de ambição. Construir uma
garagem tão monumental e fi car-se por umas char-
retes que se trazem do outro lado da rua amesqui-
nha a grandeza do projecto. Não, o edifício pede
mais do que meras carruagens. Há que actualizar
a colecção. E mudar o nome. Do bafi ento “Museu
dos Coches” para o contemporâneo “Museu das
Viaturas em que o Estado Português tem Esbanja-
do Dinheiro”. Não se limitar à exibição de coches,
mas mostrar outros veículos adquiridos pelo Es-
tado. Por exemplo, eu gostava de ver exposto o
magnífi co BMW série 5 em que Cavaco Silva vai
passar férias à Coelha. Ou o Mercedes S350 em que
Mário Soares foi apanhado no ano passado a 200
km/h e onde dorme algumas das suas lendárias
sestas — marcado com uma lendária mancha de
baba no estofo de pele. E até carros usados por
fi guras secundárias, como o Alfa Romeo ofi cial que
o ministro Aguiar Branco estacionou no passeio
em frente ao seu escritório de advogados. Podia-se
trasladar a própria calçada onde foi parqueado,
para adornar.
Fica uma visita muito mais rica. Enquanto eram
só coches, uma pessoa dava uma volta, via aquilo,
sim senhora, é giro, o passado é um país estran-
geiro e, realmente, as coisas lá são feitas de ou-
tra maneira e tudo em talha dourada. Mas basta
acrescentar viaturas modernas e ganha-se logo
outra dimensão. O visitante continua a achar que
o passado é outro país, com outros costumes, mas
percebe que as contas acabam por ser pagas neste
país. E agora.
O edifício é parte fulcral da experiência peda-
gógica. Podia-se ter alargado o velho museu, ocu-
pando parte dos jardins do Palácio de Belém, mas
assim fazia-se um uso ponderado do dinheiro e
não se gastavam 35 milhões de euros desnecessa-
riamente numa construção megalómana. Nessa
altura, deixava de ser um museu em que não só
se mostra como se desbaratava dinheiro no séc.
XVIII, como se o faz desbaratando dinheiro no séc.
XXI. Um museu que expõe a delapidação ainda
antes de se lá entrar. Um museu que é edifício e
também acervo. No fundo, mais do que um museu,
um metamuseu. O que agrada imenso aos nossos
intelectuais pós-modernos (que, segundo os últi-
mos censos, são cerca de todos). Talvez não agrade
tanto aos contribuintes pós-sustentabilidade da se-
gurança social, mas é impossível contentar gregos
e troianos. Se se tiver de escolher, deve optar-se
por agradar a quem percebe a referência dos gre-
gos e dos troianos.
O povo não há-de levar a mal a exibição de
despesismo. Se bem que, passados dois anos
de a Rainha D. Amélia ter inaugurado o Museu
dos Coches, houve elementos do povo que lhe
entraram no carro aos tiros. Só por acaso é que
falharam nela. Acertaram no marido e no fi lho.
Mas, apesar da tragédia, a Rainha fi cou com um
carro histórico para juntar à colecção. É preciso
é pensamento positivo.
IMAG
EMPA
LAVR
A
Rui Gaudêncio
38° 45’ 53.268”N 9° 12’ 47.592”WBrandoa
38° 45’ 51.858”N 9° 12’ 48.57”WBrandoa
GPS iPHONEBD NA AMADORA
KENNEDY50 ANOSDEPOIS
DOMINGO
Siga os passos de Lee Harvey Oswald, o homem que a 22 de Novembro de 1963 disparou contra JFK
17 DE NOVEMBROReportagem em Dallas
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8 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
Fui convidado a participar numa jornada dedi-
cada à Estratégia Nacional de Investigação e
Inovação para uma Especialização Inteligen-
te, promovida pela Fundação para a Ciência
e Tecnologia. Aceitei com gosto. O tema que
propuseram para a minha apresentação foi
Indústrias Culturais e Criativas em 2020 — Cená-
rios, Tendências, Barreiras e Desafi os.
Este é o jargão corrente na União Europeia, não
vale a pena disfarçar. A questão é saber se vamos
a jogo ou não. Comecei por mencionar as habitu-
ais reticências quanto à correlação entre cultura
e produtividade económica que defi ne o conceito
de “indústrias culturais e criativas”. Falei da auto-
nomia da cultura, e da sua parcimónia, para não
dizer resistência, face às transformações ditadas
por valores económicos.
Faz todo o sentido que o conceito de “indús-
trias criativas” seja proveniente da Inglaterra, e
do mundo anglo-saxónico, porque aí a relação en-
tre cultura e economia é fl uente e aparentemente
não problemática. Os exemplos do cinema e da
música pop são eloquentes: são simultaneamente
produtos comerciais e culturais, sem reservas ou
dicotomia.
A sul da Europa, para simplifi car muito, essa di-
cotomia existe. A cultura é entendida como tendo
uma componente adversarial, que a coloca para
lá do desenvolvimento eco-
nómico, em paralelo, ou até
contra. “Criatividade” tam-
bém não é simples. Poderia
dizer que a produção artísti-
ca acontece quando a criati-
vidade não chega ou não se
intromete.
O ponto de ruptura dá-se
quando falamos de “marcas”
a propósito de fenómenos ar-
tísticos ou culturais. Raros se-
rão os artistas, ou até os pro-
dutores culturais, que acei-
tam que o seu trabalho seja
defi nido nesses termos.
Na arquitectura, assistimos
hoje a uma cisão entre a tra-
dição “cultural” e a sedução
das “indústrias criativas”. De
um lado, estão os planos e os
projectos urbanos, muitas
vezes ligados a “expos”, ou
eventos culturais (numa ló-
gica top down); do outro, ini-
ciativas onde a informalidade, a processualidade e
a “criatividade”, permitem criar pequenos nichos
de intervenção tipicamente bottom up.
A Trienal de Arquitectura de Lisboa, que está ac-
tualmente a decorrer, refere-se essencialmente à
arquitectura como “indústria criativa”.
Tudo somado, com os temas que propus, pu-
de concluir provisoriamente que a “produção de
memória” pode criar uma “indústria criativa”,
reinventando aspectos da identidade portugue-
sa, sendo crítico e interpelando as expectativas
que o “norte” tem sobre nós. E, principalmente,
escapando a qualquer tentativa de normalização e
homogeneização de uma marca portuguesa.
Nós somos, por direito próprio, uma realidade
complexa, antiga, multifacetada. Especialização,
sim, mas não país-parque-temático.
JORGE FIGUEIRAVIDA FUTURA
AS INDÚSTRIAS CRIATIVAS
Pude concluir provisoria-mente que a “produção de memória” pode criar uma “indústria criativa”, reinventando aspectos da identidade portuguesa
Várias gerações de adolescentes serviram-se dela para forrar a parede dos seus quartos — James Dean a caminhar à chuva pela Times Square de Nova Iorque, numa atitude contraída, de casaco de gola subida e cigarro ao canto da boca. Essa foto
VEJA
ISTO
Dennis Stock: American CoolReel Art Press45€, Amazon
LIVROO MEU GRANDE AMIGO JAMES DEAN
DR
foi tirada pela objectiva de Dennis Stock, que ao longo de mais de 50 anos contribuiu com imagens fundamentais para a cultura popular. Era amigo de James Dean. O fotógrafo e realizador de cinema Anton Corbijn prepara um filme sobre essa relação. Mas já esta semana vai ser lançado o livro Dennis Stock: American Cool (Reel Art Press), que abarca o conjunto da sua obra fotográfica, com grande relevo para as fotos que tirou a Dean a meio dos anos 1950. Algumas foram captadas ao acompanhar Dean na sua última grande viagem — até Fairmount, Indiana, onde está enterrado. Ao que parece, a foto de Dean em Times Square não era do agrado de Dennis, mas o actor gostava muito
dela. Foi publicada em Março de 1955 na revista Life. Seis meses depois, Dean morreu, e a foto foi reproduzida milhares de vezes. Tornou-se parte da lenda. Agora Corbijn, realizador de Control ou O Americano, prepara-se para dirigir um filme onde essa relação é abordada. O actor Dane DeHaan fará de Dean e Robert Pattinson de Stock. Não espanta que Corbijn se tenha deixado seduzir pela história. Ele também é fotógrafo de celebridades — Tom Waits ou os U2 são alguns dos seus clientes regulares — e sabe que o reconhecimento mútuo é imprescindível para fazer funcionar a vertente artística. Stock partilhava essa forma de estar. O fotógrafo, que morreu aos 81 anos em 2010, e que fez quase toda a sua
carreira na agência Magnum, captou algumas das figuras mais emblemáticas do século XX americano — Marilyn Monroe, Marlon Brando, Grace Kelly ou Audrey Hepburn foram algumas dessas personalidades. Ou grandes figuras do jazz — outra paixão —, como Miles Davis, Charlie Parker, Armstrong, Billie Holiday, Duke Ellington. Os movimentos de contestação que varreram a América dos anos 1960 ou os detalhes das paisagens naturais da América foram igualmente temas que ficaram registados na sua longa carreira. Ainda que no centro da sua actividade haveria de ficar para sempre os célebres retratos feitos com James Dean, pouco tempo antes de este morrer, para se tornar um ícone. Vítor Belanciano
2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 9
Elvis PresleyElvis At Stax Legacy;
distri. Sony Music15,90€
Estava apenas escondido. E assim continuou, de resto, até ao fim dos seus dias, no Verão de 1977, quando era uma caricatura de si mesmo, gordo de demasiados comprimidos e demasiados hambúrgueres e preso no circo de horrores de Las Vegas. Ocasionalmente, porém, o velho Elvis Presley foi reaparecendo. Aconteceu no glorioso Comeback Special de 1968 (cabedal negro de cool impossível e Presley a dominar a multidão e o rock como o mundo ansiava há uma década). Aconteceu nos singles In the ghetto e Suspicious minds ou no álbum de simbólico regresso a casa, From Elvis to Memphis, editado em 1969. Podia ter reaparecido também quatro anos depois. É o que percebemos ao ouvir Elvis At Stax, a compilação agora editada que nos leva aos estúdios da mítica editora que fez, ao lado da Motown, a
CDELVIS RENASCIDO
Quando John Lennon afirmou que Elvis Presley morrera quando o enviaram para cumprir serviço militar, entre 1958 e 1960, estava genericamente correcto. A frase era obviamente exagerada, mas é certo que o furacão que varrera os Estados Unidos e depois o mundo começou a diminuir de intensidade à medida que a década de 1960 foi avançando, enfraquecido pela incapacidade em compreender um mundo em mudança constante e diminuído na sua intensidade e chama rock’n’roll ao dedicar-se a uma aparentemente interminável e sofrível carreira cinematográfica com banda sonora (a sua) de gosto discutível.Mas Elvis, o homem do movimento de anca que escandalizou o mundo, o dono de uma voz imensa e de carisma, não se fora embora.
história da soul, casa de Otis Redding, Isaac Hayes, Sam & Dave, Wilson Pickett, Carla Thomas ou Booker T & The MGs.Em 1973, depois de gozar o sucesso da transmissão televisiva global do muito kitsch Elvis: Aloha From Hawaii, Elvis regressou novamente (mas longe dos holofotes). Na sua Memphis natal, reservou tempo nos estúdios da Stax e, com os experientes e muito sábios músicos da editora, conhecedores de tudo o que a soul, o country, o gospel ou o blues tinham para ensinar, gravou uma série de sessões que, tratadas correctamente, teriam originado um álbum de destaque da sua discografia. É o que percebemos ao ouvir o rock’n’roll infernizado de Raised on rock, o groove de Find out what’s happening, o funk impressionante de I got a feeling ou a lição de sedução que é a balada It’s
Idealizemos um estádio de futebol, com vários pi-
sos de celas, nenhuma com porta. O único carce-
reiro, situado na construção circular, inspecciona
sozinho o movimento de centenas de prisioneiros.
O modelo panóptico de Bentham, descrito por
Foucault em Vigiar e Punir, foi adoptado por mui-
tos presídios. Hoje vivemos assim, numa sociedade
panóptica onde, em qualquer lugar, há sempre um
olho a ver-nos. Somos vistos e não vemos quem nos
vê. E não é apenas as câmaras ocultas. É também o
poderoso olho do controlo social (vivemos em socie-
dades de controle diria Deleuze) onde esvaziamos
o espaço público, para exercer nele a vigilância.
Cada um, com receio do outro, averigua o compor-
tamento de quem lhe está próximo.
Já lá vai também o tempo em que navegávamos
pela Internet com a ilusão de liberdade e anonimato.
De vez em quando, sofríamos com a intromissão de
mensagens não solicitadas e anúncios relacionados
com os nossos hábitos de consumo, mas a românti-
ca vida no espaço virtual continuava alegre.
Depois fomos percebendo que a Internet não era
apenas examinada por vendedores, mas também
por agentes secretos. À medida que nos íamos en-
tretendo com o Google Earth e dávamos a volta ao
mundo em 80 cliques, interrogávamo-nos sobre o
que poderia então a NASA, o Pentágono, a CIA, o
KGB ou a Mossad?
Nas redes sociais, deixá-
mo-nos de ilusões. Os me-
canismos de protecção da
privacidade são inefi cazes. A
única solução é não publicar
nada que ponha em causa a
privacidade. Por um lado, a
universalização do uso das
tecnologias permite o exer-
cício da cidadania, mas ao
mesmo tempo as ferramen-
tas electrónicas oferecem
aos governos uma capaci-
dade sem precedentes para
vigiar os cidadãos. E se dúvi-
das ainda existissem surgiu
depois Edward Snowden a
dizer que não queria viver
num mundo em que tudo o
que expomos e fazemos é
gravado. “Uma pessoa nun-
ca está a salvo, por mais que se proteja”, disse.
Resultado? Estamos desconfi ados. Estamos como
quando tiramos moedas, cintos e sapatos para pas-
sar pelo detector de metais antes do embarque no
avião e ainda assim o mecanismo automático toca
e somos revistados perante olhares desconfi ados.
Sabemos que não fi zemos nada, mas mecanicamen-
te quando alguém desconfi a de nós sentimo-nos
incriminados. A condição de investigado faz-nos
sentir alívio quando o segurança nos diz, somente,
para seguirmos.
Vivemos em estado de defesa, como se fôssemos
culpados, só por aparentarmos inocência. O fac-
to é que já ninguém acredita em aparências ou na
inocência. Temos medo de abrir a porta e receber
alguém apenas ansioso por apoio. Fazemos do con-
domínio uma prisão de luxo. Fugimos de quem não
se compara a nós na classe social, na cultura ou na
cor da pele. Fugimos do abraço com medo de uma
faca nas costas. Mete medo viver numa sociedade
assim com tanto medo.
VÍTOR BELANCIANOAPARTES
NÃO HÁ INOCENTES
Fugimos do abraço com medo de uma faca nas costas. Mete medo viver numa sociedade assim com tanto medo
midnight. Infelizmente, o manager de Elvis, o para sempre provinciano Colonel Tom Parker, e a editora com que acabara de assinar, a RCA, tinham ideias diferentes. As sessões foram então esquartejadas numa infinitude de álbuns em que se misturava o novo som de Elvis com canções antigas ou sobras de outras sessões, embaladas sem qualquer cuidado (sempre as mesmas fotos de Elvis em palco e, muitas vezes, nada mais por título que o nome do cantor), que diluíram toda a vitalidade que sobressaíra do tempo passado nos estúdios da editora de Memphis. Quarenta anos depois, temos as 17 canções de Elvis at Stax para recordar o que podia ter sido. Para nos recordarmos que, apesar de Elvis ter morrido na tropa, ainda viveu umas breves ressurreições depois de cumprido o serviço militar. Mário Lopes
OUÇA
ISTO DR
10 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
Christiane F. acredita que se nunca tivesse
publicado, em 1978, o livro Wir Kinder vom
Bahnhof Zoo (Nós, as Crianças de Bahnhof
Zoo, que em português foi traduzido por
Os Filhos da Droga) teria conseguido tomar
a sua vida em mãos. Não teria voltado à he-
roína, não teria perdido a custódia do fi lho que hoje
tem 17 anos, não teria sido presa, estaria divorciada,
mais gorda e seria mãe de vários fi lhos maravilho-
sos. Aos 51 anos, a alemã que contou ao mundo
a história da sua vida nas ruas de Berlim — “Eu,
Christiane F., 13 anos, drogada, prostituta…”, que
viu o seu livro ser traduzido em 18 línguas vender 5
milhões de exemplares e ser adaptado ao cinema,
sobreviveu. Mas lida com as cicatrizes deixadas pela
época em que, ainda adolescente, se viu transfor-
mada em junkie-star e não aguentou a pressão. Os
leitores que se tornaram seus fãs por causa de ter
conseguido deixar a heroína eram os mesmos que
lhe diziam, quando voltava à droga, que tinha tido
todas as oportunidades para se safar (aos 18 anos,
quando recebeu os direitos de autor, a conta ban-
cária era a de quem tinha recebido a lotaria) e por
egoísmo tinha recaído. Por isso passou a escolher
para amigos quem nunca tinha lido a sua história.
Desde há dez anos que todos os dias Christiane se
dirige a um centro para tomar metadona. Convive
com uma cirrose no fígado, com a hepatite C e com
o remorso de ter desiludido
milhões de leitores por esse
mundo fora. Mas, se ela acha
que não se salvou, a verdade
é que ajudou gerações e gera-
ções de adolescentes a deci-
dir: eu não vou por aí!
Em Outubro, Christiane
Felscherinow esteve na Feira
do Livro de Frankfurt a lançar
o seu novo livro Mein Zweites
Leben, a minha segunda vida,
que em França tem por título
Moi, Christiane F., la vie mal-
gré tout (Flammarion).
O primeiro livro tinha sido
escrito com a ajuda do jorna-
lista alemão Horst Rieck da
revista Stern e do seu colega
Kai Hermann, este foi escrito
com a ajuda da jovem jorna-
lista Sonja Vukovic, que há
três anos lhe bateu à porta para fazer uma entre-
vista para a universidade. Quando, no fi nal dos anos
1970, Christiane contou a sua história, não tinha
noção de que a sua vida nunca mais voltaria a ser a
mesma. Para ela, era mais um livro que iria para as
prateleiras de uma biblioteca. Perdeu a privacida-
de, a sua fotografi a estava na capa da revista Stern
e em todas as livrarias. Em Frankfurt, o seu editor
francês lembrou que Os Filhos da Droga na época
da sua publicação, nos anos 1970, representou uma
revolução. “Deves lembrar-te que no fi nal do livro
dizias que apesar de os teus professores acharem
que se tratava de material pornográfi co, acredita-
vas que o livro devia ser lido nas escolas. O mundo
deu-te ouvidos. Desde há décadas que este livro é
estudado nas escolas francesas e em outros países.
E conheço muitos pais que o recomendam e que
o compraram para os seus fi lhos”, disse. “Este teu
novo livro requer muita coragem, porque 35 anos
depois continuas a lutar contra o mito.”
ISABEL COUTINHOPORQUE HOJE É DOMINGO
SOBREVIVER AO MITO
Se ela acha que não se salvou, a verdade é que ajudou gerações e gerações de adolescentes a decidir: eu não vou por aí!
LEIA
ISTO
A revista Relâmpago, da Fundação Luís Miguel Nava, lançou recentemente o número duplo 31/32, consagrado à escritora Irene Lisboa (1892-1958) e, em particular, à poesia da autora de Um Dia e Outro Dia… e Outono Havias de Vir, títulos publicados respectivamente em 1936 e 1937 sob o pseudónimo masculino João Falco.
Relâmpago, n.º 31/32Coordenação: Gastão CruzFundação Luís Miguel Nava266 págs., 14€
REVISTAUMA IRENE LISBOA PARA GUARDAR
Desde que foi criada, a Relâmpago tem quase sempre oscilado entre números temáticos, como os dedicados à relação da poesia com as artes visuais, a música ou o cinema — mas também a tópicos como a revolução, o ensino ou a tradução — e edições de homenagem a poetas portugueses. Neste número, dirigido por Gastão Cruz, a escolha recaiu em Irene Lisboa, que, além de poeta e ficcionista — escreveu novelas, contos, crónicas, memórias e vários outros textos de classificação menos óbvia —, foi ainda uma autora importante no domínio da pedagogia. A sua qualidade bastaria para justificar a evocação, mas a escolha torna-se ainda mais pertinente pela desatenção a que esta obra continua a ser votada, não obstante os esforços de admiradores de várias gerações, de José Gomes Ferreira, que a
considerou mesmo “a maior escritora de todos os tempos portugueses”, passando por Jorge de Sena, que a incluiu na antologia Líricas Portuguesas e lhe dedicou um dos seus fulgurantes verbetes, até Paula Morão, a grande especialista actual em Irene Lisboa, que ao longo dos anos 1990 coordenou a reedição dos seus livros na Presença. Se já nos anos 1930, os leitores mais atentos perceberam o quanto havia de novo nesta poesia que não receava a contaminação da prosa, recusava todo o ornamento formal e respirava uma evidente e pungente autenticidade, estas mesmas qualidades emprestam à escrita de Irene Lisboa um tom surpreendentemente actual neste princípio do século XXI. Motivo suplementar para se saudar (e guardar) este número da Relâmpago, que inclui um
extenso e relevante poema inédito de Irene Lisboa, com alusões expressas a Pessoa e ao seu amado Camilo Pessanha, ensaios de Carina Infante do Carmo, Fernando J. B. Martinho, Gastão Cruz e Joana Matos Frias, e ainda vários testemunhos, entre os quais se salientam os de Luís Amaro, com a sua proverbial memória de elefante e invejáveis arquivos, e o de Maria Velho da Costa, pela sinceridade com que explica de que modos Irene Lisboa é e não é a protagonista do seu romance Irene ou O Contrato Social.Um conjunto de fotografias de Irene Lisboa, cedido por uma afilhada da escritora, e uma cronologia e bibliografia, organizadas por Paula Morão, completam o dossier. Como é habitual, a revista inclui ainda uma secção de poesia inédita e um espaço dedicado à crítica literária. Luís Miguel Queirós
DR
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Um mundo de chocolate, uma aldeia de chocolate, um conforto à antiga, feito de meninos de meias, cachecóis e gorros de lã, de paisagens com neve. É assim a vida na Chocolataria Equador, nascida no Porto, e que acaba de abrir a primeira loja em Lisboa, no Chiado. São chocolates 100% artesanais e de fabrico nacional — um projecto criado em 2008 por Teresa Almeida e Celestino Fonseca, que abriram a primeira loja no Porto (Rua Sá da Bandeira) em 2010 e a segunda, na mesma cidade, na Rua das Flores, em 2012.O mundo da Equador conquistou Isabel Rodrigues e Luís, proprietários da nova loja de Lisboa. “Éramos fãs da marca”, conta Isabel, pelo chocolate, claro, mas também pelo ambiente das lojas do Porto e pela “recuperação de algumas referências de Portugal, nas cores, no mobiliário, no grafismo dos papéis”. Para perceber do que estamos a falar, é preciso visitar a Equador e descobrir os magníficos papéis que envolvem os chocolates (as sombrinhas de chocolate, por exemplo, parecem vindas dos longínquos anos 1940). Há uma explicação para isto: Celestino Fonseca é formado em design gráfico e é ele quem ilustra as histórias passadas na Vila do Lago (e que vão mudando consoante as alturas do ano), a tal aldeia idílica deste mundo de chocolate, que se materializa em cartazes, postais, e até em chocolate propriamente dito (pela mão do escultor Pascal Ferreira). Isabel e Luís propuseram a Teresa e Celestino a abertura de uma loja em Lisboa e tudo se passou em pouco mais de meio ano. “Foi preciso encontrar o espaço ideal”, conta Isabel, que queriam
PROV
EISTO
com porta para a rua. Encontraram-no numa antiga loja de decoração do Chiado fechada há meses. Agora, invadido pelo cheiro a chocolate, este espaço é a montra de grandes tabletes, bombons, trufas, sombrinhas, macarrons, tudo saído das oficinas dos mestres chocolateiros Miguel Tendim e Rui Costa. Os
LOJAUM MUNDO DE CHOCOLATE NO CHIADO
O blogue El Comidista do jornal El País cha-
mou a atenção para um documentário que
passava este fi m-de-semana no festival de
cinema e gastronomia Film&Cook: chama-
se Rawer e conta a história de Tom Wat-
kins, um adolescente holandês que, por
convicção da mãe, se alimenta apenas de fruta e
legumes crus desde os cinco anos de idade. A mãe
considera que alimentos cozinhados ou de origem
animal são prejudiciais à saúde.
Imagino que por esta altura grande parte dos
leitores desta crónica já tenha tomado uma posi-
ção sobre o caso. Mas há mais. Os médicos que
observaram Tom alertam para o facto de o cresci-
mento do rapaz estar a ser afectado por esta dieta
e os serviços sociais holandeses querem retirá-lo
à mãe por causa disso. Mais um detalhe: Tom é
adepto da dieta e concorda com as ideias da mãe.
Por esta altura, os leitores que ainda não tinham
opinião já terão certamente — uns contra a mãe,
outros contra os serviços sociais.
É por isso que o documentário realizado por
Anneloek Sollart (e que é já a segunda parte da his-
tória, sendo a primeira contada em Raw, da mesma
realizadora) me parece interessante, como aliás
o post do El Comidista tam-
bém explica (e os comen-
tários ao post elaboram). É
um caso que levanta uma sé-
rie de questões. Devem os
pais, por convicção de que
estão a fazer o melhor para
os fi lhos, ser autorizados a
alimentá-lo de uma forma
que os poderá prejudicar?
Será legítimo o Estado inter-
vir nestes casos? Tom será
mais feliz a viver separado
da mãe e a comer comida
com a qual não concorda?
Terá o rapaz sofrido uma
lavagem ao cérebro desde
pequeno ou terá capacida-
de para ter opinião própria
neste assunto? E os pais que
alimentam os fi lhos exclu-
sivamente com junk food,
devem ver-se também pri-
vados do poder paternal?
Não se trata aqui de uma
mãe negligente, segundo mostra o documentário,
mas de uma mulher que se preocupa verdadei-
ramente com o fi lho, e que, muito infl uenciada
pelo guru da alimentação crua, David Wolfe, está
convencida de que outro tipo de alimentação te-
rá efeitos piores nele. É relevante também saber
que o pai de Tom não concorda com a atitude da
ex-mulher e que o outro fi lho do casal optou por
viver com o pai.
A realizadora, citada no El Comidista, diz es-
perar que quem vê o fi lme perceba que “não é
fácil resolver este problema” e que o seu traba-
lho é também sobre “a próxima e asfi xiante, mas
também amorosa, relação entre uma mãe e o seu
fi lho”. As opiniões dividir-se-ão, certamente.
a blogues.publico.pt/olhos-barriga/
ALEXANDRA PRADO COELHOMAIS OLHOS QUE BARRIGA
O ESTADO E A COMIDA QUE DAMOS AOS FILHOS
Devem os pais, por convicção de que estão a fazer o melhor para os filhos, ser autorizados a alimentá-los de uma forma que os poderá prejudicar?
DR
Chocolataria Equador. Rua da Misericórdia, 72, Lisboa (Chiado), equadorlisboa@ chocolatariaequador.com
dois trabalham misturas de sabores, algumas das quais “desafiam o paladar para novas experiências”, como acontece com o chocolate negro com caril, o chocolate branco com maracujá, ou — uma criação feita para a loja de Lisboa — o chocolate negro com ginja. Entre os exóticos, há ainda a pimenta rosa, o chili ou
o goji, e entre os clássicos há o vinho do Porto. Mas há também os mais tradicionais, com sabores de frutas. E os cacos, pedaços de chocolate com alecrim, gengibre, pistácios ou café (resultado de uma parceria com a marca portuguesa Torrié). Fiquem atentos, porque é quase Natal na aldeia do chocolate. Alexandra Prado Coelho
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A CRISE NA HOLANDA CHAMA-SE “PEDRO PRETO” E NÃO TEM NADA QUE VER COM DINHEIRO
A discussão está por todo o lado. Em casa, na rua, no metro, nos cafés e sobretudo nas redes sociais. Zwarte Piet, o ajudante negro de São Nicolau (o Pai Natal dos Países Baixos), é acusado de ser uma caricatura que re-corda a época colonial, quando os negros eram escravos dos brancos. Os holandeses estão furiosos e juram a pés juntos a inocência da tradição. Mas a maior festa do país já está ensombrada e são cada vez mais as ameaças de morte aos que se manifestam publicamente contra Piet
SOFIA DA PALMA RODRIGUES, EM AMESTERDÃO
2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 13
ROBIN VAN LONKHUIJSEN/AFP
14 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
Já ouviram falar da crise na Holan-
da?”, pergunta com um sorriso
maroto, num tom alarmista e ao
mesmo tempo sarcástico. “A bomba
explodiu, ninguém comenta outra
coisa, e não se sabe onde isto vai
parar...” Emma Lesuis tem 25 anos
e nasceu em Leida, uma cidade do
Sul. A mãe é negra, o pai branco.
Ela, orgulhosa do seu cabelo black
power (poder negro), autodefi ne-se como “cas-
tanha”, uma mistura entre o Suriname e os
Países Baixos. Nunca se sentiu discriminada,
também nunca pensou muito nisso. “Todos
os anos, nesta altura, oiço a mesma piada: ‘Tu
não precisas de te pintar, és preta ao natural.’
Já nem ligo, mas será que isto é racismo ou
não? Havia crianças que se mascaravam de
São Nicolau, outras de Zwarte Piet [Pedro Pre-
to]. Eu nunca tive escolha: era sempre o Piet,
claro!”, conta, enquanto se olha ao espelho
para pintar os lábios com um gloss vermelho.
É formada em media e representação, o que
talvez faça com que todos os seus gestos te-
nham algo de teatral.
A “crise” a que se refere não tem nada que
ver com a crise económica que abala os países
do Sul da Europa: chama-se Zwarte Piet, o aju-
dante negro de São Nicolau, e está a incendiar
a Holanda. A maior festa do país celebra-se a
5 de Dezembro, mas este ano ninguém sabe o
que vai acontecer. De um lado, uma minoria
que pede o fi m do escudeiro, acusando-o de
promover o “estereótipo da supremacia dos
brancos sobre os negros”. Do outro, quase
toda a população holandesa, que sente a sua
tradição ameaçada e repete sem se cansar que
o São Nicolau é uma festa para as crianças e
é “absurdo” ensombrá-la com a palavra “ra-
cismo”. A discussão é antiga — foi no fi nal da
década de 1960 que vários jornais e revistas co-
meçaram a criticar a celebração — e nuns anos
torna-se mais, noutros menos, efervescente.
Mas nunca tinha chegado a este nível.
Agora, Emma dá por ela a esgaravatar no
passado, a tentar recuperar memórias, epi-
sódios arquivados. Como quando, na festa do
seu 18.º aniversário, um homem a convidou a
sair do bar onde comemorava com os amigos
e a mandou “para a terra dela”. Na altura não
ligou, disse-lhe que era “tão holandesa como
ele” e continuou a divertir-se. “Mas será que
estar a reavivar estas cenas, de que já nem
tenho bem a certeza se aconteceram assim, é
saudável?”, questiona-se. Sente-se a empolar
histórias às quais não deu qualquer importân-
cia, sente que o facto de ser mulata faz com
que as pessoas lhe exijam uma posição, a em-
purrem para o debate.
Recusa-se a fazer uma análise simplista e
garante não ter uma opinião formada, mas,
conversa aqui, conversa ali, lá vai deixando
escapar que “é óbvio que Zwarte Piet é uma
fi gura racista”, que “os holandeses estão a re-
jeitar refl ectir sobre si próprios porque não
gostam de ver os seus dogmas questionados”,
“que as tradições se mudam ou a História seria
sempre a mesma” e que “por detrás de uma
discussão doida há temas sérios como o racis-
mo, a discriminação e a liberdade de expres-
são que devem ser explorados”. “As pessoas
são tão tolas que é inevitável não rir”, critica
enquanto aponta para uma fotografi a com um
hambúrguer chamuscado que aparece no seu
mural do Facebook. “Queimei o hambúrguer
e chamei-lhe Hamburguer Zwarte Piet, ou será
que isso também é proibido?”, escreveu uma
das suas amigas virtuais. Emma confessa já
ter eliminado pessoas do seu perfi l devido a
comentários que considerou ofensivos.
Desde 1934 que, em Novembro, São Nicolau
e os seus escudeiros negros (nesse ano repre-
sentados por marinheiros do Suriname — uma
ex-colónia holandesa) chegam de barco aos
Países Baixos e têm à sua espera uma multidão
em êxtase. O espectáculo é transmitido em
directo na televisão e, durante quase um mês,
miúdos e graúdos não falam de outra coisa (é
inclusive emitido um telejornal diário, de dez
minutos, com notícias fi ccionadas sobre as
aventuras de São Nicolau para entreter os mais
pequenos). Dita a história que as crianças que
se portaram bem durante o ano têm direito
aos doces e presentes que Zwarte Piet carrega
aos ombros; os meninos malcomportados são
levados para Espanha, dentro do seu saco,
como castigo. A festa é celebrada também na
Bélgica, Luxemburgo e em algumas zonas da
Alemanha e da Suíça.
O São Nicolau é o equivalente à fi gura do
Pai Natal. As suas origens remontam a 1850,
quando foi publicado o livro Sint Nicolaas en
zijn knecht (São Nicolau e o seu escudeiro),
escrito por um professor primário, 13 anos
antes da abolição da escravatura na Holanda
— feita contra vontade, a mando da Coroa bri-
tânica. Os factos estão do lado dos que dizem
ver na fi gura serviçal de Zwarte Piet um refl exo
dos escravos do tempo colonial. Durante mui-
to tempo, as semelhanças foram evidentes:
além do rosto pintado de preto e dos lábios
carnudos carregados de bâton vermelho, o
ajudante de São Nicolau usava argolas de ouro
nas duas orelhas, tinha o cabelo encaracolado
tipo carapinha, vestia roupas semelhantes às
dos escravos negros dos séculos XVII e XVIII
e falava de uma forma pouco articulada, com
sotaque do Caribe. Era um personagem meio
tonto. A história que actualmente se conta às
crianças — que o seu rosto está preto porque
passou pela chaminé antes de entregar os pre-
sentes — nada tem de racista, mas é impossível
negar as suas origens. Em 1937, referindo-se
às vagas migratórias das ex-colónias, o depu-
tado do Parlamento holandês Arie Ijzerman
fez uma declaração pública em que dizia: “No
nosso país, quase não existe trabalho para os
negros, excepto talvez na primeira semana
de Dezembro, quando há uma procura por
negros puros para fazerem de pagens e ser-
virem São Nicolau.”
A primeira fagulha deste debate
saltou em 2011, quando Quinsy
Gario apareceu no desfi le de São
Nicolau com uma T-shirt onde se
lia “Zwarte Piet is racisme [Zwar-
te Piet é racismo]”. Nessa altura,
o artista de 29 anos nascido em
Curaçau — a maior ilha do arqui-
pélago das Antilhas Holandesas
— foi preso porque a polícia con-
siderou que “podia estar em causa a ordem
pública”, conta. Mas o barril de pólvora só
explodiu neste Outubro, com a participação
de Quinsy num dos mais populares programas
de debate holandeses, Pauw en Witteman,
emitido todos os dias às 22 horas. Voltou a
defender que a fi gura do boneco com a cara
pintada de preto é uma herança do colonia-
lismo e as pessoas deveriam ter consciência
disso. Sempre que tentou falar, o artista ca-
ribenho foi ridicularizado, com quase toda
a plateia a rir-se à gargalhada dos seus argu-
mentos. “Também quis provocar a situação.
Mantive a calma porque esse tipo de atitudes
só me dão mais força”, considera.
Depois disso, uma consultora das Nações
Unidas, a jaimaicana Verene Shepherd, abriu
uma investigação para avaliar o possível carác-
ter racista da festa de São Nicolau. Algumas
vozes dissonantes dentro da ONU acusaram-
na de não ter o direito de usar o nome da ins-
tituição dessa forma, mas a acusação nunca
foi provada. “Prefi ro banir as Nações Unidas
a banir o Zwarte Piet”, escreveu na sua pági-
É óbvio que Zwarte Piet é uma figura racista... Os holandeses estão a rejeitar reflectir sobre si próprios porque não gostam de ver os seus dogmas questionados”, diz Emma Lesuis
na do Twitter o líder do Partido para a Liber-
dade, Geert Wilders, que nos últimos anos
encabeçou uma verdadeira cruzada contra a
imigração islâmica.
A extrema-direita ganha cada vez mais ex-
pressão nos países do Norte da Europa. O par-
tido liderado por Wilders, que se assume de
centro-direita mas todos identifi cam como
sendo de extrema-direita, é o quarto maior
dos Países Baixos e nos últimos anos tem en-
cabeçado uma verdadeira cruzada contra a
imigração islâmica.
Na Áustria, o líder do Partido da Liberdade
(FPO), Heinz Christian Strache, foi o rosto de
uma campanha de extrema-direita onde, com
um sorriso Pepsodent, aparecia estampado
em vários outdoors a prometer “oportunida-
des a sério” para os “nossos jovens”. Há al-
guns anos, Strache processou alguns media
austríacos por terem escrito que ele mantinha
“contactos com neonazis”. O tribunal decidiu
contra ele, considerando que havia “uma base
factual adequada para demonstrar uma certa
proximidade com ideias nacional-socialistas”.
O mês passado, na Bélgica, o estilista Christian
Louboutin processou a campanha “Mulheres
Contra a Islamização” do partido de extrema-
direita Vlaams-Belang. Uma fi gura feminina
aparecia calçada com uns sapatos altos de sola
vermelha (imagem de marca do estilista) num
cartaz que pretendia representar os níveis de
nudez aceites pelos muçulmanos: uma saia até
RICARDO VENANCIO LOPES
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aos pés está “de acordo com a sharia” (lei islâ-
mica); a bater no tornozelo é ainda “aceitável”;
acima do joelho refere-se a uma “prostituta”; e
se subir até perto das nádegas tem a indicação
de “lapidação”.
“Esta escalada da extrema-direita só aconte-
ce porque os holandeses não têm capacidade
de auto-refl exão. Vivem presos na imagem que
fazem deles próprios: ‘Somos um país bom,
tolerante, com uma mente aberta e nada do
que fazemos pode estar errado.’ Mas no mo-
mento em que perguntas, mas afi nal porque
és a favor do Zwarte Piet? Ninguém consegue
explicar”, explica Quinsy Gario, que está agora
a fazer um mestrado em Estudos de Género
e Pós-coloniais. Para o artista, a liberdade de
expressão está ameaçada: “Sempre que falas
contra a ordem estabelecida, és silenciado.
Temos um ditado que diz algo como ‘ser nor-
mal já é loucura sufi ciente’ e os holandeses
seguem-no à letra. No estúdio da rádio onde
tem um programa, a Multicultural Amsterdam
Radio and Television, encontrou em cima da
sua secretária um boneco de Zwarte Piet com
uma seta a atravessar o pescoço. “Foi muito
estranho porque não sei como aquilo foi ali
parar, era totalmente anónimo”, conta. Mes-
mo assim, reforça que não tem medo, “isso é
o que querem de mim, que deixe de falar, de
andar na rua”.
Há promessas por parte do executivo de
Amesterdão de que a 16 de Novembro, dia
Emma Lesuis é filha de mãe negra e pai branco. Ao lado, Dret Vyhcivert, de 27 anos: “As pessoas dizem que a tradição tem anos, mas o que se celebra é um tempo em que os negros não tinham direitos”
RICARDO VENANCIO LOPES
RICARDO VENANCIO LOPES
16 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
em que São Nicolau chega aos Países Baixos,
a festa será diferente, mas ninguém sabe co-
mo. Este ano, a cidade que o vai receber é
Groninberg, no Norte do país, e quanto mais
se fala em mudança, mais cresce o ódio. A
página Pietitie, uma petição no Facebook a
favor de Zwarte Piet, conta com 2,1 milhões
de assinantes, o que num país com 17 milhões
de habitantes é bastante signifi cativo.
Grupos conservadores e de extrema-direita
ganham força entre uma população expectan-
te e revoltada, que não percebe bem como
é que, de repente, a discussão atingiu estes
contornos. Um colectivo de artistas do Nor-
te do país que planeava vestir-se de Zwarte
Piet e pintar o rosto com as cores do arco-
íris para celebrar o São Nicolau começou a
receber ameaças de morte e teve de cancelar
a iniciativa.
A cantora Anouk, representante da Holan-
da no Festival Eurovisão deste ano, também
tem sido advertida. É mãe de quatro crianças
mulatas e considera a fi gura de Zwarte Piet um
elemento desnecessário na festa. Por se mani-
festar publicamente contra, recebe diariamente
dezenas de mensagens insultuosas, com nomes
e fotografi as falsas: “Sua prostituta defenso-
ra dos negros, como é que podes ser contra o
Zwarte Piet. És uma desgraça para as nossas
crianças, estás suja de esperma negro.”
Ao jantar, em torno de uma mesa
redonda, entre carne de vaca, ar-
roz de ervilhas e legumes cozidos,
Emma e o pai estão sentados fren-
te a frente e a discussão aquece.
Marcél Lesuis, um médico de 60
anos, sente que estão a “atacar” a
sua identidade, a acusá-lo de uma
coisa que nunca foi: racista. Ad-
mite que o debate seja necessá-
rio, mas não neste “tom estúpido em que as
pessoas parecem fora delas”. Acusa Quinsy de
não apresentar soluções, de não estar cons-
ciente do poder que tem nas mãos, de como
pode estar a gerar um confl ito racial. “Agora
sim corremos o risco de começarem a existir
manifestações discriminatórias: ‘Se não gostas
da minha cultura, então volta para a tua terra e
celebra lá os teus costumes.’ Acham que isto é
certo? Não é... Mas é o que se começa a ouvir”,
argumenta, com uma voz pausada, de quem já
refl ectiu sobre o assunto e diz temer que algo
mais grave esteja para vir. Marcél conta que
também ele já se vestiu de Zwarte Piet, quan-
do os seus três fi lhos eram mais pequenos. De
certa forma, até percebe a escolha pelo rosto
negro: “O preto é a cor que melhor esconde,
que melhor serve a fantasia, para que as pes-
soas fi quem irreconhecíveis.”
“Pai?”, Emma lança um grito incrédulo.
“Não acredito que estejas a usar motivos tão
fracos, isso não faz sentido nenhum”, contra-
põe enquanto se congratula a ela própria por,
pela primeira vez, sentir que tem melhores
argumentos do que o progenitor. “Eu ganhei,
é isso? Não dizes mais nada?”, desafi a. “Admito
que as minhas justifi cações sejam fracas, é que
estão a mexer com a minha tradição, com o
meu sentido de pertença, há muitas emoções
misturadas que acabam por comprometer a
razão”, confessa Marcél. Para ele, o “pior de
tudo” é que a refl exão esteja a ser imposta de
fora, “é um tradição nossa, a crítica tem de par-
tir de dentro”, diz, referindo-se inquérito le-
vantado pela consultora das Nações Unidas.
Foi Marcél quem cozinhou a refeição e
prepara-se para começar a levantar a mesa:
“Estão a ver quem é o escravo aqui nesta ca-
sa?”, brinca, enquanto a mulher o olha com
deleite. Lilian Deimveld Lesuis, 59 anos, não
participa na discussão e tenta de tudo para
que esta termine o mais depressa possível. É
JOHN VAN HASSELT/CORBIS
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marroquinos”, geralmente relacionados com
notícias de assaltos. É interrompido por dois
amigos holandeses, sentados no banco ao la-
do: “Qualquer dia também vão dizer que o
chocolate preto é racismo. É que é uma dis-
cussão absolutamente ridícula.”
“A controvérsia sobre o eventual racismo do
Zwarte Piet é daquelas que dá para ter pena
que pessoas em seu juízo, como a outra senho-
ra das Nações Unidas, arranjem tempo para
a palhaçada. O São Nicolau e os escudeiros
negros nada têm, nem tiveram, de racistas.
Sempre foi uma festa infantil e familiar, uma
espécie de noite de Natal protestante”, criti-
ca Rentes de Carvalho. “Por mais racistas e
hipócritas que sejam — e são —, os holande-
ses gostam de demonstrar carinho pela raça
negra. A festividade tem o seu equivalente no
Santa Claus americano, embora este dispense
ajudantes”, acrescenta.
Um inquérito realizado no ano passado em
Amesterdão revelou que 75% dos habitantes
da capital com origens no Suriname, Antilhas
Holandesas e Gana consideravam o retrato
de Zwarte Piet discriminatório e mais de 30%
achavam mesmo que a personagem nem se-
quer deveria aparecer nas escolas. Entre os
nativos, as opiniões são opostas: 73% não con-
sideravam Piet uma fi gura racista.
Para o sociólogo Sahil Achah, fi lho de pais
marroquinos, “este é um debate muito ne-
cessário”. “Os holandeses não estão habitua-
dos a ser questionados, nem gostam que isso
aconteça. Desde 2001 [ano do ataque às Torres
Gémeas em Nova Iorque] que sinto que sou
acusado, que vejo fecharem-se portas, por
causa de uma coisa que eu não fi z. É óbvio
que as oportunidades não são as mesmas para
brancos e não brancos, não é preciso ser um
especialista para ver isso”, denuncia.
Max Konijn abre a porta do seu apartamento
no centro de Amesterdão, paredes meias com
o Red Light District, uma conhecida zona de
comércio sexual. O jovem de 25 anos é um
conhecido de Emma dos tempos da escola se-
cundária. Recebe-nos na cozinha, onde as gar-
rafas vazias de whisky, vodka e gin denunciam
a festa da noite anterior. Senta-se no banco de
“madeira natural” que faz questão de frisar ter
sido desenhado por “um designer holandês
famoso”. Está rodeado de electrodomésticos
com luzes que piscam e oferece “água fres-
ca” do seu frigorífi co americano. Só depois,
começa a falar sobre Zwarte Piet: “Hoje, os
negros dizem que ele é um insulto, amanhã os
muçulmanos vão dizer que celebrar com um
santo é um insulto, quando é que isto pára?”
A pergunta é retórica, uns segundos de pausa
e prossegue: “Sentimos que nos últimos 20
anos estamos a perder a identidade, que tudo
aquilo que é só nosso nos está a ser rouba-
do. Esta terra ainda é a Holanda e quem aqui
vive deve fazê-lo com respeito pelas nossas
regras e pelas nossas tradições”, diz de forma
inquisitória.
À saída, cruzamo-nos com um dos seu ami-
gos, que chega com a namorada. Cabelo cor
de cenoura, kispo da Porshe, sapatos de vela.
“O Zwarte Piet? Querem mesmo saber a minha
opinião? A classe alta holandesa, e a média
também, é muito racista. Eu também faço
comentários racistas, apesar de a minha na-
morada ser marroquina [na verdade é judia].
Tentamos sempre transparecer que somos
liberais, muito à frente, os primeiros a per-
mitir a legalização das drogas, do casamento
entre homossexuais... Mas as coisas não são
assim e toda a gente sabe disso, só que não
diz alto”, revela. Remata a conversa com um
sorriso irónico, de dedo indicador em riste: “O
meu nome não é para usar, só digo isto porque
estamos aqui, nunca assinaria um documento,
ou falaria na rua, com estas palavras.”
[Destin, de quatro anos] cresça a pensar que
tem de ser criado dos brancos”, argumenta.
Para o surinamês, o que mais o assusta é o
facto de as crianças sorverem tudo “como uma
esponja” e de este ser “um ensinamento que
aprendem desde muito pequeninos”.
É neste ponto que James Kennedy encontra
um dos “principais problemas”. “Os holan-
deses não consideram estar a correr esse ris-
co porque não vêem maldade na tradição. O
problema existe a partir do momento em que
os indivíduos de raça negra a viver nos Países
Baixos se sentem caricaturados”, analisa. Yo-
landa Rigters, 31 anos, é educadora de infância
e relata já ter visto crianças brancas a chamar
Zwarte Piet aos meninos negros: “Obrigam-
nos a carregar as suas mochilas”, conta. Veio
do Suriname, está na Holanda há três anos
e diz não ter nada contra a festa, desde que
situações como essa não aconteçam. “Se o
meu fi lho [Didier, de três anos] fosse vítima de
um episódio assim, nem pensava duas vezes,
metia-me logo ao barulho”, imagina.
Emma recorda-se de alguns dos seus profes-
sores se recusarem a cantar as músicas do São
Nicolau na sala de aula. “Alguém está a bater à
porta/ Não te assustes meu menino, eu sou um
bom amigo/ Embora seja preto como a cinza,
só quero fazer o bem”, é um dos versos mais
conhecidos, cantado por toda a gente. Uma
mulher da Papua-Nova Guiné que participou
no fi nal de Outubro numa manifestação a fa-
vor de Zwarte Piet em frente à sede da ONU
ouviu-o vezes sem conta. Enquanto centenas
de pessoas se revoltavam contra a investigação
aberta pela consultora jamaicana, Tilly Kai-
siepo estava ali, com a bandeira do seu país
erguida, para reivindicar uma intervenção das
Nações Unidas na Papua-Nova Guiné, onde já
morreram mais de 400 mil pessoas desde que
o Oeste do país foi anexado à Indonésia em
1969. Os manifestantes pensaram que, por ser
negra, era contra o ajudante de São Nicolau
e começaram a agredi-la. Sempre que tentou
explicar o seus verdadeiros motivos, foi cala-
da por centenas de pessoas que entoavam os
conhecidos cânticos infantis.
Quando se ouve a falar alto, a tentar explicar
em inglês todos os rituais em torno do São
Nicolau, Stan van Doggenaar confessa que o
que diz não lhe soa nada bem. “Mas a verdade
é que não há maldade nenhuma por detrás
disto. Mudar a cor do Zwarte Piet signifi ca
mudar todos os cânticos, uma descaracteri-
zação da nossa maior festa. Concordo que se
há minorias que se sentem feridas, algo tem
de ser feito, no entanto, os holandeses nunca
pensaram nisto como racismo”, garante. Este
holandês de 29 anos diz que a discussão atin-
giu tal nível que de repente olha para pessoas
que sempre fi zeram parte da sua vida, como
pais, tios, amigos e vê-os fora de controlo, não
os reconhece. “Só penso: ‘Mas o que é que tu
estás para aí a dizer?’”
Este comboio vai para Amesterdão?”
“Não, vai para Paris... Claro que
vai para Amesterdão, a minha cida-
de, a cidade mais bonita do mun-
do!”, brinca Mohamed Tangawi, 32
anos. Filho de pais marroquinos, é
um Allochton de 2ª geração e não
se sente nem mais nem menos ho-
landês por isso. “Os holandeses às
vezes têm estas coisas estranhas”,
autojustifi ca-se. Abana a cabeça quando co-
meça a falar de Zwarte Piet: “As pessoas não
podem levar isto a sério, é só uma festa pa-
ra as crianças, para as preparar para serem
boas durante a vida adulta.” Por outro lado,
fi ca contente que “agora seja a vez de os ne-
gros serem falados nos media, para darem
um bocadinho de descanso aos turcos e aos
um exemplo do que os holandeses chamam
um Allochton não Ocidental de 2ª geração. O
Instituto Central de Estatística (CBS) separa a
população imigrante, ou com origem no es-
trangeiro, em quatro categorias: o Allochton
de 1ª geração (que nasceu fora da Holanda) e
2ª geração (que nasceu na Holanda mas tem
pai ou mãe estrangeiros); e o Allochton Oci-
dental (que nasceu na Europa — com excepção
para a Turquia —, na América do Norte, no
Japão, na Oceânia ou na Indonésia) e não Oci-
dental (oriundo de África, da América Latina,
da Ásia — excluindo Indonésia e Japão — ou
da Turquia). O que mais causa estranheza é
que cidadãos nascidos no mesmo país tenham
denominações diferentes, dependendo da ori-
gem dos seus progenitores.
“É um selo, com conotação negativa, para
classifi car as pessoas. A distinção feita desta
forma só existe na Holanda, mas não tenho a
certeza se os holandeses são piores do que os
alemães ou os suíços. Vejo muitos países do
Norte da Europa com difi culdades em reco-
nhecer como iguais pessoas com pais ou avós
oriundos de fora”, diz o professor de História
Moderna da Universidade de Amesterdão, o
americano James Kennedy. “Allocthon” vem
do grego allokhthon que signfi ca “encontra-
do num lugar diferente onde foi formado”.
“Uma denominação usada à falta de melhor.
Embora quando há notícias de crimes, assal-
tos que envolvem Allocthon, as autoridades e
os media cuidadosamente evitam referências
à origem ou cor de pele dos autores”, refere
José Rentes de Carvalho, jornalista e escritor
que trabalhou na embaixada do Brasil em
Amesterdão.
Ao contrário do que acontece no
centro da capital, em Bjilmer não
encontrámos ninguém com es-
pecial simpatia por Zwarte Piet.
O “bairro dos negros”, como é
conhecido, é outra Amesterdão
dentro de Amesterdão. À saída
do metro, os edifícios empresa-
riais, uma rua cheia de lojas, um
cinema e o estádio do AFC Ajax
como pano de fundo, escondem um encla-
ve que mistura africanos e caribenhos num
território bem delimitado, onde habitação,
serviços e restauração têm preços muito mais
baixos. “Nasci neste bairro, por isso, nunca
me senti discriminado. Os holandeses é que
se sentem à parte, têm medo de se chegar
perto dos pretos, mas quando sangramos,
sangramos da mesma maneira; quando mor-
remos, morremos da mesma maneira”, atira
Milles, 20 anos, fi lho de pai brasileiro e mãe
surinamesa.
Boné de pala, casaco com capuz, ténis Nike,
pretos e largueirões, donde saltam à vista uns
atacadores vermelhos, e muito ouro pelo cor-
po: dois anéis na mão direita, três na esquerda;
dois dentes dourados, um em cima, outro em
baixo. Dret Vyhcivert, 27 anos, tem um estilo
dread e ninguém imaginaria que, quando se
enerva, começa a gaguejar como uma criança
assustada. É isso que acontece quando fala de
Zwarte Piet: “As pessoas dizem que a tradição
tem anos, mas o que se celebra é um tempo
em que os negros não tinham direitos, em que
o branco era a autoridade e o preto tinha de
obedecer. Antigamente, sabiam muito bem o
que comemoravam, agora é apenas uma festa
para as crianças, o Piet deixou de ser estúpido,
de falar como um parvo, mas continua a ser
preto”, argumenta. Também não acredita na
total inocência dos holandeses: “Se não vêem
mal nenhum na festa porque não a promovem
em cartazes no aeroporto, por exemplo? Por-
que é que quase ninguém no estrangeiro sabe
que isto se passa? Não quero que o meu fi lho
As pessoas não podem levar isto a sério, é só uma festa para as crianças, para as preparar para serem boas durante a vida adulta... Agora é a vez de os negros serem falados nos media, para darem um bocadinho de descanso aos turcos e aos marroquinos”, diz Mohamed Tangawi
2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 19
DE ONDE VEM ?MARIA
FILOMENA MOLDER
Maria Filomena Molder usa recorrentemente palavras como “espanto”, “choque”, “ódio”. Que palavras se espera ouvir de um fi lósofo? Para que serve a imperfeita Filosofi a (para ir ao encontro do título de um livro seu, A Imperfeição da Filosofi a)? Outro dos seus livros: O Absoluto Que Pertence à Terra. Na adolescência, ela não quis pertencer a lado ne-nhum, quis nascer de si própria. Nasceu em 1950. Não foi bailarina. Fala como quem levita e ao mesmo tempo tem peso. Desencadeia o choque. Demoramos a recompor-nos
ANABELA MOTA RIBEIRO TEXTO ENRIC VIVES-RUBIO FOTOGRAFIA
20 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
Talvez seja boa ideia começar
por dizer que fui três vezes
aluna de Maria Filomena
Molder (duas na licenciatu-
ra, uma no mestrado). E que
precisei de tempo para fazer
esta entrevista. Nem sempre
estamos preparados para
certos encontros, autores,
compreensões. Ela esperou
mais de 20 anos para com-
preender textos do artista
Eduardo Chillida ou para reler Wittgens-
tein, por exemplo. Temia que a admiração
me toldasse.
Esta entrevista é uma surpresa para mim
também. Eu não conhecia esta pessoa que
ultrapassou a sua mudez, que recorda a es-
cola no Portugal de Salazar ou a voz das suas
avós. Reencontrei-a quando fala de Dante,
que nunca conheceu a mãe — o que impres-
siona muito — ou quando cita Santo Agostinho
para dizer que até os corações bons têm em
si um abismo.
Deu-se a coincidência de esta entrevista
acontecer no último dia em que foi profes-
sora da Faculdade de Ciências Sociais e Hu-
manas da Universidade Nova. Maria Filome-
na Molder reformou-se a 31 de Outubro. Foi
uma professora que odiou a escola. É por
vezes uma pessoa agreste que ri como uma
criança.
Em termos formais, esta é provavelmente a
mais estranha das entrevistas que fi z. Os ex-
cursos são longos e todas as portas vão dar a
todo o lado. Na aparência é descosida. Optei
por transcrevê-la tal qual ela fl uiu. Muito pou-
co fi cou de fora. Em todo o caso, as próximas
páginas resumem três horas de gravação. Não
fi quem surpreendidos se chegarem ao fi m
com uma sensação de espanto e alienação.
Pode falar-me dos encontros que foram
decisivos na sua vida? Com autores,
com pessoas. Pergunto pelo que é
defi nidor.
Não vou falar dos íntimos.
Porquê?
Porque, como são íntimos, quando falamos
deles estamos a comunicar um segredo. A
pessoa decisiva, da qual não vou falar, é o
Jorge [Molder, o marido]. As pessoas que apa-
receram na minha vida, e que são as estrelas
da minha vida, são as minhas fi lhas [Catarina
e Adriana]. Os meus netos [Vicente e Benja-
mim] são “a criança eterna”. Foi uma coisa
que o Jorge disse quando nasceu o Vicente,
mas que se aplica aos dois. Percebemos que
os netos estão tão adiante de nós... Com os
fi lhos, não vivemos a criança eterna. É es-
tranho.
Explique melhor isso.
A criança eterna é: a infância retorna. Não
só retorna em cada um de nós como retorna
porque alguém nasce. Mas quando os fi lhos
nascem, para nós — falo por mim —, não é
a criança que retorna. É o mistério daque-
le aparecimento. É uma dádiva. Não temos
maneiras de dar conta do preenchimento,
da plenitude que isso é. Os netos: é como se
estivessem num mundo que já não nos pode
pertencer. Eles são os nossos guias; e ao mes-
mo tempo fazem retornar qualquer coisa que
desde sempre existiu, que estava connosco,
e que é a nossa infância sem preocupação.
Com os fi lhos, há a preocupação.
A preocupação em relação ao seu
destino? Fala da responsabilidade.
Exactamente.
Foi espantosa (no sentido de causar
espanto) essa regressão à infância por
via dos seus netos? Há quanto tempo
não se olhava na sua infância?
Acho que cada vez mais, e desde há alguns
anos, talvez desde sempre — mas não na ju-
ventude... Sempre pensei que morria com 20
anos e que depois disso era quase indecente
estar vivo. Acho que já disse isto, até, numa
entrevista à Maria João Seixas. Era uma coisa
tão consciente, quando tinha 15, 16 anos...
pensava: “Ir viver mais do que até aos 20 é
ir viver como eles.”
“Como eles”?
Eu tinha um desprezo entranhado pelos adul-
tos. Que perdi. Ainda bem. Não me lembro
de esse desprezo ter continuado depois dos
20 anos.
Depois do Jorge.
Conheci o Jorge quando tinha 18 anos. Tal-
vez tenha sido o Jorge a provocar essa alte-
ração.
É o amor que nos dá uma ideia de
futuro.
Sim. Se bem que eu não pensasse em futuro.
Na relação amorosa, não há nenhum futuro.
É sempre agora. Mas certamente que havia,
sem estar a dar por isso, a ideia de continua-
ção e a ideia de dia seguinte, e do dia seguinte
ao dia seguinte.
Isto era a propósito da sua infância.
E juventude. A juventude é uma espécie de
amnésia da infância. Queremos não ter pai
nem mãe. Queremos não ter nascido de nin-
guém. Queremos ter nascido de nós próprios.
Sempre pensei que isto tinha que ver com a
Filosofi a. Na Filosofi a, há uma intuição equi-
valente a poder começar do vazio, do nada;
ou poder começar fazendo um intervalo em
relação a tudo o resto. Tenho a ideia de que
na juventude, ao contrário do que diz o Qo-
hélet (o livro do Eclesiastes), é “tudo de novo
sob o sol”. Mas implica momentos destrutivos
tremendos. A amnésia da infância é um acto
destrutivo. Para poder fi nalmente nascer. Não
tendo dívidas para com ninguém. O exercí-
cio crítico desenvolve-se tremendamente,
em relação a pais, a amigos, ao mundo, e
pode ter, quase sempre tem, elementos au-
todestrutivos – como por exemplo, duvidar
da existência do mundo. Só na juventude
podemos perguntar-nos se a nossa vida não
é um sonho.
Na infância, não fazemos essa
pergunta?
A criança não pode fazer essa pergunta por-
que a distinção entre o sonho e a realidade
na infância não está dada, e quando começa a
fazer-se não se estabiliza senão no momento
em que se dá o eclodir da juventude. Para a
criança, é tudo real.
E é tudo possível.
É. Um bocado de madeira pode ser um ami-
go. Na juventude, também se criam proce-
dimentos desse tipo, quase mágicos, mas
acompanhados de forças que desarticulam
e desmancham tudo aquilo em que acredi-
távamos.
Mas, se a infância não retornar de qualquer
maneira, essas forças vão devorar-nos. É co-
mo um pessimista ou um céptico radical a
engolir-se a si próprio.
Muitas pessoas experimentam esse
recuo à infância na infância dos seus
fi lhos. No seu caso, o hiato foi maior e
fez-se com o nascimento dos seus netos.
Na vida das minhas fi lhas, também vi a in-
fância retornar. Mas acho que compreendi
menos do que no caso dos meus netos. Agora
relembro e estou muito próxima da infância
delas. Enquanto estavam infantes, não estava
tão próxima. Se bem que estivesse sempre a
olhar para elas como essa sensação de mila-
gre que tinha acontecido. Sempre, sempre,
sempre. Claro que um nascimento é sempre
um milagre, mas no caso dos netos..., não
sei se é só a desresponsabilização. É como
lhe disse: eles estavam adiante de nós num
mundo que já não nos pode pertencer. É que
os avós já não estão tão novos, já começa-
ram a cortar vínculos. A entrada na velhice
é cortar esses vínculos. É diferente do corte
da juventude.
É diferente, mas não deixa de ser
cortar vínculos.
Sim. Por isso há pessoas que na velhice fi -
cam jovens e crianças. Talvez esse corte dê
origem a uma nova espécie de liberdade. Por
exemplo, ser mais indiferente às vozes do
mundo.
Isso signifi ca, também, ter menos
medo? Uma das coisas que
caracterizam a infância e a descoberta
sem limites é a ausência de medo.
O jovem é destemido. O jovem não quer ter
medo. A criança é outra coisa.
O adulto está cheio de medos.
O adulto está cheio de medo.
Da rejeição, mais do que tudo?
Não é só isso. Estar vivo implica ter medo. Vi
um fi lme sobre o Fellini, Sono un Gran Bugiar-
do, [O Grande Mentiroso], em que ele diz que
o medo é uma força animal. Dizendo tudo: é
uma força da vida. E que sem medo ele não
teria feito nada. Que o medo é uma espécie
de aguilhão. Posso ler-lhe uma coisa?
Claro.
É uma letra de um fado, que é mesmo muito
importante para mim.
Nunca a ouvi falar de fado ou de
interesse pelo fado.
É surpreendente, sim. Fui uma jovem que re-
cusava tudo o que lhe tinham dado. Incluindo
a língua portuguesa. Era uma época em que
só ouvia cantar rock inglês e americano. É
assim: “Medo da morte, não consigo ter/ mas
outros mais humanos e banais/ medos que a
gente tem mesmo sem querer/ como o medo
que eu tenho de morrer/ só por querer viver
um pouco mais.” É o fado Já não Estar, da Ma-
nuela de Freitas e do José Mário Branco, que
ouvi cantar pelo Camané. Isto é a descrição
da vida humana. De uma vida humana que
já está muito compreendida.
Dissecamos alguns versos?
“Medo da morte não consigo ter”: é estra-
nhíssimo, porque do que toda a gente tem
medo é da morte. Na verdade, eu tenho medo
da morte. Acho que a Agustina [Bessa-Luís]
não tinha medo da morte. Ou talvez tivesse
medo da morte desta maneira que está aqui
descrita. No último romance que escreveu, A
Ronda da Noite, um adolescente acompanha
a avó àquele maravilhoso cemitério de Agra-
monte [no Porto]. Tinha sido uma criança
com aspectos invulgares. A primeira palavra
que aprendeu foi “merda”. Antes da palavra
“mãe”. Acho que a Agustina estava muito irri-
tada com a velhice. A velhice pode tornar-se
uma devastação irrespirável e isso envenena
a vida toda. Aquele é um texto de alguém
que sabe isso. Depois de o ler, pensei que a
Agustina não poderia escrever mais.
A palavra que Agustina usa na primeira
entrevista que lhe fi z, e falando da
velhice, é “repugnante”. E fala de Sara,
a personagem bíblica, que, velha, dá à
luz.
É isso, é repugnante. Claude Lévi-Strauss diz
que a velhice é uma devastação. Ele fala de
uma distinção entre um eu virtual e um eu
real. O eu virtual tem uma ideia do todo, o
eu real só diz: “Não consigo fazer.” Na velhi-
ce, tudo se passa nesta conversa, entre o eu
virtual e o eu real.
Voltando aos versos do fado: eu gostava de ter
medo de morrer por querer viver um pouco
mais. Por amor à vida.
Desde quando tem noção de que tem
medo de morrer?
Desde que as minhas fi lhas nasceram.
Ou seja, desde que tem medo de não
viver um pouco mais.
Talvez seja isso. Comecei com o medo de an-
dar de avião justamente nessa altura. Agora
também tenho pouco, por acaso. Gosto de
estar na terra, com os pés assentes na terra.
Mas sempre sonhei voar. Sempre sonhei ser
pára-quedista. Era cega como uma toupeira,
como é que podia ser pára-quedista? [riso]
Era impossível.
Era o prazer da dança, da levitação, do
movimento?
Talvez. O meu sonho era atirar-me do ar. Eu
dava saltos, quando era criança..., se a minha
mãe soubesse que dava saltos daquela altura,
fi caria doente. Saltava dos pontos mais altos.
Muito pequena, com cinco anos.
Já com a ideia de um dia saltar de um
avião?
Nunca tentei. Agora já é tarde. Duas reacções
possíveis: “Que desastre.” Ou então dizer:
“É assim.” Ou ainda: “Se calhar, eu nunca
quis saltar.”
Se tivesse de facto querido, teria
saltado mesmo.
Não acha? Mas eu via tão mal. Com nove anos,
já via tão mal que não faz ideia.
Medo de cegar, teve?
Agora tenho medo de cegar. Li há poucos
anos uma coisa que não vou esquecer sobre
um homem que cegou quando era pequeni-
no. Estava deitado na cama, acordou e disse:
“Avó, não abriste a janela.” Estava simples-
mente cego. Desde essa criança que tenho
medo de cegar.
Antes disso, não?
Não. Quando ia à igreja com os meus pais,
olhava para as velas e fazia brincadeiras. A luz
crescia, decrescia. Eu achava que tinha um
poder mágico com os olhos, ainda antes de
saber que tinha a miopia. Via muito mal, fi cou
pesado. Pesado, mas fazia parte de mim.
Goethe disse no leito da morte
“mehr Licht, mehr Licht”, “mais luz,
mais luz”. Para já, há a imagem da
luz por oposição à escuridão e ao
apagamento. Por outro, há o desejo
de viver mais um pouco para ver essa
luz. Goethe foi também um encontro
fundamental?
Foi. Não foi directo. (O Jorge comprava os
livros todos ou quase todos. A mim, os livros
vinham-me cair às mãos. Claro que quando
fi z a tese [de doutoramento] sobre Goethe
procurei muita coisa, mas as coisas mais va-
liosas caíram-me todas nas mãos.) Conhecia a
poesia de Goethe, traduzida pelo Paulo Quin-
tela. Tive imensa curiosidade pelo Fausto.
No entanto, só comecei a interessar-me pelo
Goethe através do Lévi-Strauss, que no Fi-
nale de l’Homme Nu traça uma arqueologia
do estruturalismo e aponta textos que foram
importantíssimos para ele. Entre eles, a Me-
tamorfose das Plantas de Goethe.
Que está no coração da sua tese,
intitulada O Pensamento Morfológico de
Goethe.
Decidi estudar melhor Goethe por causa dis-
to, o que é estranho tratando-se de um dou-
toramento em Filosofi a. Tive a sorte de ter
como orientador o Fernando Gil, que com-
preendeu muito bem a minha escolha porque
também tinha interesses profundíssimos nas
questões morfológicas. Escreveu textos ma-
ravilhosos que têm que ver com uma manei-
ra de considerar a realidade a partir de um
princípio de crescimento formal.
Comecemos pelo princípio. Em que
circunstâncias foi aluna de Fernando
Gil?
No primeiro mestrado que houve em Portu-
gal, em Filosofi a, na Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas. Chamava-se pós-gradu-
2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 21
à sorte uma tirinha de papel. “Kierkegaard,
Diário de Um Sedutor. Muito bem. Vamos falar
do Diário de um Sedutor.”
Parece um exercício muito livre.
É a liberdade universitária no seu sentido
mais elevado. Nunca mais voltei a encontrar,
nem acho que seja possível encontrar. A ca-
deira chamava-se História da Cultura Portu-
guesa. E era. Em 1969/70.
Estou ainda a pensar no espanto de
ouvir “não sei”. Uma das vezes em que
fui sua aluna, ouvi-a dizer que ia tratar
um texto de um artista basco, Eduardo
Chillida (Escritos), que tinha lido pela
primeira vez há mais de 20 anos. Ouvi-a
dizer que precisou de mais de 20 anos
para estar preparada para o ensinar.
Foi uma amiga que me passou o texto. Achei-
o maravilhoso e não o compreendi.
Como é que são precisos mais de 20
anos para pegar num texto que nos
impressiona? Ainda mais quando temos
a impressão de que os fi lósofos mais
rapidamente chegam a compreender
as coisas indecifráveis, impenetráveis.
Há textos para os quais não estamos
prontos? Há encontros para os quais
não estamos prontos?
Não estamos prontos, mas esperamos um dia
estar prontos. Sabemos que não podemos
largar aquilo. Eu queria perceber o que ele
estava a dizer e não conseguia – “O espaço é
uma matéria rápida. A matéria é um espaço
lento.” Guardei esse texto. Guardo muitas
coisas para melhores dias.
Houve um instantâneo reconhecimento
de que aquilo a perturbava, de que
aquilo era seminal, mas a terra ainda
não estava pronta. É uma boa imagem?
É, completamente. Precisava de me preparar.
Preparar-me era de vez em quando pensar
naquilo sem saber. Chillida impressiona-me
muito. Só vi as esculturas pequenas. Tenho
esperança de ver as de arte pública. Hou-
ve uma exposição na Gulbenkian há muitos
anos, que o Jorge organizou [ Jorge Molder
foi director do CAM]. Até o conheceu pes-
soalmente. Eu não tive essa oportunidade.
Reli o texto e disse: “Tenho de tentar não
o largar. Como o cão não larga o osso.” Fiz
uma conferência a partir daí. E o seminário
Problemas de Arte Contemporânea foi sobre
Chillida e o vento, por causa dele e do fi lme
do Joris Ivens [Uma História do Vento]. O ven-
to tornou-se muito, muito, muito importante
para mim.
Goethe guardava textos para desenvolver
30, 40, 60 anos mais tarde. É muito impres-
sionante. Sobretudo porque é um poeta.
E os “poetas sabem ver na escuridão”,
diz um verso do Choro Bandido de
Chico Buarque.
É verdade, sabem ver na escuridão. E Goethe
é o poeta da circunstância. Os poemas não
nascem do nada. Nascem de uma coisa que
esteve aqui. Acho que não foi por mimese
[que esperei 20 anos para trabalhar Chilli-
da]. Acho que é um género meu – uma coisa
infantil e que na idade jovem fi cou – gostar da
estranheza, fi car apanhada por uma coisa da
qual não estava à espera. Na juventude li duas
ou três obras de Nietzsche, o Nascimento da
Tragédia, o Zaratustra, muito depressa. Ou-
tra coisa infantil. É como comer avidamente.
Lia sem parar e não compreendia nada. E
não desistia. Só voltei a ler verdadeiramen-
te Nietzsche muito tarde. Foi um autor que
não procurei.
A atitude habitual é a da rejeição da
estranheza, a procura do conforto.
A sua atitude desde a infância era a
oposta.
Sabe porquê? Porque era uma criança mui-
to solitária. Até aos cinco anos, não. Depois
pus-me a fazer perguntas muito irritantes
para a minha mãe, as minhas irmãs mais ve-
lhas. “Porque é que a colher se chama co-
lher?” Não encontrava que entre a palavra
“colher” e a colher houvesse uma relação
evidente. Claro que esta pergunta não tem
resposta imediata, a não ser dizer que é uma
convenção – o que não chega para nada. A vi-
da humana é toda convenção. E fi camos com
a batata quente nas mãos. Sempre tive uma
sensibilidade muito grande, talvez por ver
mal, à voz, ao som. Ouço muito bem. Adorava
a voz da minha mãe. A voz das minhas avós,
em particular a voz de uma delas.
Como é que é as descreveria? Estou a
pedir uma descrição delas a partir da
voz.
A voz da minha avó Luzia era a voz da com-
preensão total. Avó materna. A voz da minha
avó Zé era uma voz muito atenta, preocupa-
da, e que tinha qualquer coisa (estou agora a
ver isso...) de infantil. A voz da minha mãe é
uma voz muito bonita. Podia ter uma doçura
enorme. Também podia ser agreste. A minha
mãe era muito bonita e ainda é. E quando era
pequena achava o meu pai o homem mais
bonito do mundo. A voz do meu pai também
era muito bonita. Era uma voz discreta, silen-
ciosa, que não se queria dar a conhecer.
A voz da sua mãe mudou muito com o
passar dos anos?
Não. A voz da minha mãe soa sempre com
graça, sobretudo se está bem-disposta, e está
quase sempre bem-disposta [riso]... Canta-
va muito bem. Cantava canções muito anti-
gas, que eram da juventude dela, dos fi lmes
portugueses. D’ A Canção de Lisboa, sabia-as
todas. Havia uma que a Beatriz Costa can-
ta, sozinha, que é linda, muito nostálgica.
Percebia que a minha mãe fi cava muito co-
movida quando a cantava. Costurava e can-
tava quando costurava. Tem umas mãos de
ouro. O meu pai também tinha umas mãos
de ouro. Duas pessoas com mãos de ouro, e
eu não as tenho.
Tem um gosto particular no vestir. Um
gosto que me parece estar ligado aos
tecidos, às formas...
É instintivo. Em criança, como sempre acon-
tece nas famílias em que há muitas irmãs,
vestia os vestidos das minhas irmãs. Sou a
terceira. Somos quatro raparigas. A minha
irmã mais velha tem mais nove anos do que
eu, a minha irmã segunda tem mais seis e a
minha irmã mais nova tem quase menos dois.
Os vestidos eram lindos de morrer. A minha
mãe sempre teve muito gosto em se vestir.
Inconscientemente, devo imitá-la. Agora.
Enquanto adolescente, não queria que sou-
bessem que eu existia. Vestia-me de maneira
a que ninguém desse por nada.
A que ninguém desse por si.
Eu não queria que soubessem que eu existia,
que era rapariga, coisa nenhuma. As rapari-
gas vestiam saias, usavam pouco calças. Eu
usava saias um pouco envergonhada. Porque
não queria ser ninguém em particular.
Não queria ser rapaz? Era uma rejeição
da feminilidade?
Eu era uma maria-rapaz. Antes de fi car uma
menina solitária, subia às árvores com os ra-
pazes, brincava com rapazes. Solitária e leito-
ra. Era muito atleta, magrinha, um aranhiço
autêntico. Muito leve. A minha mãe também
se tornou levíssima.
Que idade tem a sua mãe agora?
Vai fazer 93 no dia 23 de Novembro. Quando
anda na rua, de costas, parece uma rapariga.
Anda sempre de calças. Quando vai comigo,
como sou muito protectora, quero que me
dê o braço. Mas vai todos os dias sozinha ao
café, muito ligeira.
A juventude é uma espécie de amnésia da infância. Queremos não ter pai nem mãe. Queremos não ter nascido de ninguém. Queremos ter nascido de nós próprios. Sempre pensei que isto tinha que ver com a Filosofia
ação, aliás. A primeira reacção foi de desilu-
são. Mas essa reacção foi-se transformando
em entusiasmo porque os temas que Fernan-
do Gil tratava e a maneira menos cosida de os
tratar abriram perspectivas surpreendentes
das quais não estava à espera. Se bem que
eu tivesse tido, na licenciatura, um professor,
que não era de Filosofi a, que me ensinou o
que era o sábio livre, o Vitorino Nemésio. E
numa cadeira de opção, no quarto ano, fui
aluna do David Mourão Ferreira (professor
admirável, uma das pessoas mais afáveis que
conheci, sem nunca deixar de ser crítico).
Teve a sorte de ter óptimos mestres.
Uma fortuna.
Não tenha dúvida. Também tive no primeiro
ano o Borges de Macedo, outra fi gura ines-
quecível. Era o professor severo, implacável,
um fi sionomista da História; compreendia
tão bem uma época como se a desenhasse
com traços de pena. Lembrei-me da pena
porque ele tinha um ar de poder ter nascido
no século XVIII.
Agora usa-se a palavra “interactividade”
como uma varinha de condão. É feitiçaria
de quarta qualidade. Um puro logro. O estu-
dante está ávido de ouvir. Ouvir o que ainda
não ouviu. E depois, se puder, se for capaz,
dizer: “Tenho uma dúvida.” Às vezes, esta-
mos a receber um choque que vai mudar a
nossa vida e não temos dúvidas. Estamos só
a tentar não soçobrar.
Ainda não estamos preparados para a
dúvida, é isso? Ainda não conseguimos
organizar os efeitos do choque?
Ainda não temos palavras. Só queremos con-
tinuar a ouvir, absorver o mais possível. Para
digerir aquilo, é preciso tempo. A treta da
interactividade, é preciso destruí-la.
O Borges de Macedo: uma vez chamou uma
colega que eu achava muito inteligente e
perguntou-lhe: “Porque é que veio para es-
ta disciplina?” “Foi para ter uma ideia mais
exacta sobre a medida do homem.” Sabe o
que é que ele respondeu? “Mais lhe valia ter
comprado uma fi ta métrica.”
Resposta gelada.
Foi uma grande lição. Porque aquilo era uma
frase feita. Ficámos petrifi cados. A pessoa em
questão fi cou petrifi cada. Mas também não
lhe aconteceu mais nada. Essas petrifi cações
momentâneas, se não se transformavam em
actos de punição, eram treinos para perder
o medo, para enfrentar o outro.
Eram treinos à paulada.
Não à paulada. Mas eram treinos que nos dei-
xavam sem pinga de sangue. Tínhamos 17
anos. Nessa aula podíamos fazer perguntas.
Um colega fez uma pergunta muito longa so-
bre estruturalismo. O Borges de Macedo não
interrompeu e depois respondeu: “Lamento,
mas nunca estudei o estruturalismo.” Alto lá.
Estava ali a passar-se uma coisa a que nunca
pensei assistir.
O professor dizer “não sei”?
Sim.
Isso passou-se antes do 25 de Abril,
quando o professor sabia tudo. Imagino
o espanto.
Era mais espantoso. Mas ainda hoje um pro-
fessor dizer “eu não sei” pode causar surpre-
sa num aluno. Em geral, o professor fi ca com
medo de não saber e disfarça.
O maravilhoso Vitorino Nemésio, que é um
dos poetas mais extraordinários em língua
portuguesa, e que li pela mão do David Mou-
rão Ferreira, tinha programas na televisão –
imagine como era a televisão. Como é que ele
dava as aulas? “Escrevam num papel um tema
do qual gostavam que falasse.” Nós próprios
púnhamos os papéis dentro dos bolsos, que
eram cambados, como os sapatos, porque pu-
nha muitas coisas dentro deles. Depois tirava
22 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
Esse fechamento em relação ao mundo,
de que fala, na adolescência, tinha
consigo uma zanga?
Não, não era uma zanga. Era descobrir que
eu tinha deixado uma zona, um lugar, onde
as distinções não estavam muito bem esta-
belecidas. Éramos todos miúdos e miúdas.
Também brincava com as meninas, mas ado-
rava brincar com os rapazes. Correr, fazer
coisas perigosas. As crianças fazem imensos
exercícios de limites. Eu andava à roda até
cair para o chão. A partir da segunda classe,
comecei a ser uma criança solitária. Odiei
a escola.
Aprendeu a ler na escola ou já sabia?
Não sabia ler. Aprendi na escola. O meu pai
comprava o Cavaleiro Andante [revista de
BD], que eu devorava. Não sabia ler, mas
percebia tudo o que lá estava. Não imagi-
na como são importantes as imagens que vi
quando era pequena. Imagens poderosas,
que me acompanham e alimentam muitas
coisas que escrevo e que digo. Vêm daí, de
eu não saber ler.
Porque é que odiou a escola?
Porque a escola, na primeira classe, era um
lugar de crueldade. Para saber como viviam
as crianças naquele tempo... Era uma escola
ofi cial. Só não tinha fome porque ia almoçar
a casa e a minha mãe me mandava um lan-
chinho. Chovia na escola. A sala de aulas era
gelada. A professora não deixava as crian-
ças ir à casa de banho quando precisavam.
Crianças de seis anos. Só me lembro de uma
colega, Isabel, a fi lha mais velha de Jorge de
Sena. Foi minha colega nesta escola.
Na segunda classe, fui para um colégio fi no
de freiras irlandesas. É melhor nem falarmos
delas... Mas tive uma professora maravilhosa,
a da quarta classe. O que fez com que acabas-
se a escola primária reconciliada.
Nunca se adaptou completamente à
escola?
Nunca. E as minhas fi lhas também não.
É espantoso que mais tarde tenha sido
professora e que a sua vida tenha sido
na escola.
É verdade. Nunca pensei ser professora. [ri-
so] Odiei grande parte das professoras.
Porquê esse ódio? Palavra forte que
repetiu?
Não leve tanto a sério essa palavra. É uma
maneira de dizer, como adorar. Em criança
não podia dizer “adorar” porque só se podia
adorar Deus. Eu achava que a profi ssão de
professora embatia na rebeldia que era eu.
E na liberdade que almejava?
Sim. Reconciliei-me com esta sensação atra-
vés de algumas professoras. Isabel Leonor.
Sem eu ter sido aluna dela, foi quem me ini-
ciou nos segredos da arte. Georgete, profes-
sora de Português. Tenho uma dívida para
com ela. Clara Nunes, professora de História,
um encontro inesperado.
Rebelde e arisca: contra quê e porquê?
Eu não queria que me domassem. Só queria
aprender aquilo que eu queria. Lembro-me
de estar no fi nal de Setembro em casa da
minha avó materna, na rua de Campo de
Ourique onde passavam os eléctricos. Pen-
sar que ia voltar à escola..., fi quei presa de
angústia.
Ao mesmo tempo, o que é que
representou para si aprender a ler?
Não sei o que é que representou. Sei que ler
é aquilo que gosto mais de fazer. Para além
de dançar! [gargalhada] No liceu, andei no
Rainha Dona Leonor. Mudou de nome e pas-
sou a ser Rainha Dona Amélia quando tinha
12 anos. Não gostava de estar sentada na sa-
la de aula, não gostava de responder, não
gostava de dizer o meu nome. Nunca gostei
muito que me perguntassem: “Como é que
2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 23
se chama?”, e que eu tivesse de responder,
por obrigação. Adorava que nos tratássemos
por “coisa” ou “coisinha”.
“Ó coisinha?”
Sim. “Ó coisinha, empresta-me a caneta.”
Coisinha era muito afectuoso.
Era uma negação da individualidade,
do nome.
Era uma senha secreta de entendimento. Uma
vez uma disse: “Não me chamo coisinha.”
Pensei: “Que pessoa tão estúpida.” [garga-
lhada] Pensando agora nisso: não há essa ne-
gação. Porque as coisas e as coisinhas eram
todas diferentes. “Coisinha” era nosso.
Era um mundo mágico?
Era.
Uma recordação feliz da infância, que é
que lhe ocorre?
Com quatro anos, já ia ao cinema. A minha
mãe também. O meu pai não. Os meus avós
maternos iam todos os dias ao cinema. Para
mim, a isso chamava-se “uma vida de sonho”.
Mas só ia aos sábados. Tínhamos de levar a
cédula para provar que tínhamos seis anos.
Eu queria ir de qualquer maneira; com quatro
anos, tinha de ir com cédula emprestada. E
a minha mãe achava muito bem.
Via que fi lmes?
Eram fi lmes pensados para crianças. Ou
eram fi lmes que as pessoas pensavam que
as crianças podiam ver. Filmes que não es-
queci, como A Família dos Malucos, que o
Jorge já procurou por todo o lado.
Como é que era o fi lme?
O que me lembro: chegava o pai [a casa]. Era
uma casa cheia de coisas modernas. Carre-
gava-se não sei onde e a porta abria. Como
por milagre, os fi lhos saltavam lá de dentro.
A telefonia não funcionava bem. O [pai] dava
um grande salto no sofá e a telefonia come-
çava a funcionar. Só sei que não sonhei por-
que o Jorge também se lembra deste fi lme.
Também vi fi lmes passados e repassados, nos
quais estava sempre a chover. Pensava para
comigo: “Porque é que no cinema está sem-
pre a chover?”
A sua fi lha Adriana disse-me numa
entrevista que o Jorge pegava nela e
na irmã e as levava a ver fi lmes a preto
e branco. Iam ver Sunset Boulevard de
Billy Wilder e outros fi lmes que não
eram para crianças. Ela falava disso
com grande encantamento.
Viam tudo. As minhas fi lhas sempre adora-
ram cinema.
Quis ser alguma vez actriz ou cineasta?
E artista?
Eu quis ser escultora. Para imitar a Isabel Le-
onor, que também tinha o curso de Escultura.
Até fi z uma pequena peça.
Como é que era?
Era um homem que está preso. Que tem as
mãos presas atrás das costas. Moldei-a em
barro e cozi-a e pintei com tinta preta. Tinha
uns dez centímetros. Não fi z mais nada. Ten-
tei partir pedras sem qualquer saber. Tenho
um grande defeito: não quero aprender atra-
vés de alguém que me diga: “Faz-se assim.”
Queria descobrir. Por isso é que posso espe-
rar 20 anos. Não quero que me digam: “Não
percebes, mas é isto.” É uma machadada em
mim... Não tem nada que ver com orgulho.
Nada, nada, nada. Tem que ver com uma au-
todescoberta que acabava de perder.
Porque é que não foi artista? Seria
expectável que fosse artista.
Talvez, talvez. Escolhi Filosofi a, sabe porquê?
Porque não sabia o que era. Não é que eu
soubesse o que era a arte. Tive um grande
choque com a exposição de 1965 100 Anos
de Arte Francesa (que incluía imensos artis-
tas que não eram franceses, mas a França é
que os acolheu), organizada pela Gulbenkian.
Pela primeira vez, vi arte abstracta. Antes
disso, num museu de arte contemporânea,
que se chama agora do Chiado, exibiu Canto
da Maia. Fiquei imensamente impressionada.
Para uma miúda de 15 anos, aquelas escultu-
ras correspondiam a uma compreensão do
fundo da vida. Tinham uma delicadeza que
essa rapariga não encontrava facilmente.
Foi professora de Estética. Nas aulas,
partia frequentemente de artistas e
poetas que punha em relação com
fi lósofos como Walter Benjamin e Kant.
“Observar”, “olhar” parecem verbos
fundamentais.
Tenho um espírito muito observador, mesmo
quando não dou por isso. Observação dis-
traída. Mas a captar imensa coisa. Além das
coisas que leio, é isso que dá lastro às aulas
e ao que escrevo. Falar é muito importante.
Para uma pessoa que começou a juventude
tão fechada, é estranho que agora goste tan-
to de falar.
Há uma longa metamorfose.
Há. Essa metamorfose aconteceu com as
minhas fi lhas. Comecei a falar quando elas
nasceram. (Tendo conhecido o Jorge, houve
uma mudez que desapareceu. Mas também
havia uma mudez no Jorge que se ligava com
a minha mudez.) Fui professora logo a seguir
à Catarina nascer.
As primeiras experiências de ser professora
no liceu não foram felizes. Fui obrigada a
falar. No segundo ano, já foram felizes. Acho
que foi a minha fi lha ter nascido. E depois a
minha segunda fi lha ter nascido.
A Catarina nasceu em que ano? Tinha
quantos anos?
O que posso dizer é que a Catarina é mais
velha dois anos e meio que a Adriana. [gar-
galhada] Digo que as minhas fi lhas são as es-
trelas da minha vida e é a maior das verda-
des. Tenho um lado muito infantil de viver
noutro mundo. Há uns meses, disse assim:
“Naquele momento, parecia-me mesmo que
estava noutro mundo.” A Adriana perguntou:
“Naquele momento?” [riso] Tenho aprendido
tanto com as minhas fi lhas...
Tendemos a confundir admiração e
amor.
Não faz ideia do que elas me ensinam. Em re-
lação ao que faço, em relação à vida. Eu tenho
um lado inadaptado que nunca venci.
Que foi sendo menos agreste.
Menos reactivo. E mais armado. Tenho apren-
dido a armar-me em relação à vida, em rela-
ção aos outros. Este mundo [com elas] não
é fechado. As minhas fi lhas são as pessoas
mais ligadas à vida em tantos sentidos. Isso
é um grande dom que me foi dado. Porque
eu não sou assim. Só talvez tenha sido assim
nesses anos em que era maria-rapaz. Só então
estava à solta.
Voltemos ao que queria ser. E porquê
a Filosofi a e não a arte quando a
arte seria um caminho evidente de
comunicação com o mundo.
Eu queria era dançar. Os meus pais não me
deixavam aprender a dançar. As bailarinas
tinham má fama. A dança não era uma acti-
vidade que eles gostariam que eu tivesse. Mas
desde pequena eu adorava dançar e cantar.
Este desejo tem que ver com uma imagem do
Cavaleiro Andante. De uma mulher rebelde,
irlandesa, que está vestida com um vestido
comprido e que tem sapatinhos com fi tinhas.
Essa imagem está sempre dentro de mim. A
minha irmã mais velha arranjou uns sapatos
desses. E os sapatos não me serviam.
Aos 15 anos foi aprender.
Muito tarde. E com 17 fi quei doente.
Uma doença nos pulmões. Parece uma
passagem de um livro do século XIX.
É verdade. Chamava-se “primo infecção”
Tenho um grande defeito: não quero aprender através de alguém que me diga: “Faz-se assim.” Queria descobrir. Por isso é que posso esperar 20 anos. Não quero que me digam: “Não percebes, mas é isto.” É uma machadada em mim... Não tem nada que ver com orgulho. Nada, nada, nada. Tem que ver com uma autodescoberta que acabava de perder
[tuberculose]. Tive de passar todas as tardes
desse ano deitada na cama, quando vinha da
faculdade, e tinha de tomar uns medicamen-
tos que me fi zeram buracos na língua e na
garganta. Depois fui a um médico, ainda não
tinha casado (casei muito cedo), que me dis-
se: “É um medicamento que está proibido.”
Davam-nos isso nos serviços médico-sociais
da universidade, em grandes saquinhos,
transparentes... Além disso, fi z dezenas de
radiografi as e tomografi as no sanatório D.
Carlos I (actual hospital Pulido Valente). Te-
nho disso uma memória traumática. Depois
os buracos desapareceram, deixei de tomar
os medicamentos.
Nunca pensou escrever um romance?
Ser escritora era um caminho?
Romance, não sei. Posso escrever muito. Mas
a minha escrita pertence a uma zona em que
o rigor do conceito e a musicalidade da língua
conhecem formas várias de fusão.
No fundo, estou sempre a perguntar
porque é que não foi uma artista, como
o Jorge é um artista, a sua fi lha Adriana
é uma artista; a Catarina é cantora
lírica. A Filosofi a não é o mesmo que a
arte ou a poesia.
Não tem nada a ver. A Filosofi a é muito des-
trutiva, mas acho que quase consegui passar
incólume.
A arte é construção?
É, como a escrita. Voltando atrás, só aprendo
o que consigo aprender, o que me deixa ser
livre, o que descubro que me pertence e eu
não sabia. Tudo o que me é adverso, tudo o
que me quer negar não aceito. Só tenho cons-
ciência disto agora que falo consigo. Quer
dizer, às vezes tenho uma grande resistência
que ignoro. Tenho armas que não são as ar-
mas habituais. Não quis estudar certos fi ló-
sofos, ou comecei a estudar e abandonei-os.
Mesmo que os ache excepcionais, não quero
conhecê-los bem.
Uma vez, numa aula, referindo-se a
Heidegger, disse: “Ele não é da minha
família.” Alguns autores e artistas, fala
deles com uma proximidade que se usa
para falar de pessoas da família.
É um bocadinho isso. Da minha família fazem
parte Nietzsche, um mestre tardio. Goethe
é o primeiro. Walter Benjamin vem logo a
seguir, quase ao mesmo tempo. Quando o
comecei a ler, achei que eu era da família
dele, que ele era da minha família. Como a
Hannah Arendt. A Hannah Arendt a fumar no
fi lme [homónimo]... É como eu a imagino. E
pensar é como ela faz.
Como é que é?
Pensar é um acto solitário. Não se está a dizer
nada a ninguém. Está-se deitada na cama ou
sentada a olhar para nada. Isso tem de ser
transmitido de alguma maneira quando se
ensina. Ela é um ser livre. Os medievais di-
ziam uma coisa maravilhosa: diziam que o ar
da cidade torna os homens livres. No campo,
na verdade, eram só corveias [trabalho gra-
tuito que os camponeses deviam prestar ao
senhor feudal]. Claro que na cidade também
havia outras formas de domínio [do senhor
sobre o servo], mas o ar era livre. A univer-
sidade era o lugar da liberdade. Ainda soube
um bocadinho o que era a vida universitária.
Hoje alguns alunos ainda sabem. Alguns pro-
fessores também. Poucos.
E com isto voltamos aos professores
que a marcaram.
Tive um mestre: Oswaldo Market. Provocava
nos alunos uma grande admiração pelo do-
mínio que tinha dos autores que estudava
(quase todos do idealismo alemão e também
gregos). Organizava as aulas com um modelo
policial. Havia um enigma a desvendar, um
crime a resolver. Era assim que eu o via, e o
24 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
Jorge também. Sentava-se como um profes-
sor alemão. Lia as aulas que tinha escrito. Os
alemães em geral fazem assim. Punha sobre
a mesa sete pacotes de cigarros de marcas
diferentes e fumava deles todos durante a
aula. Coisa que sempre adorei.
Também tenho de falar do padre Cerquei-
ra Gonçalves, uma pessoa muito livre. Per-
guntou-nos qual era o fi lósofo de que mais
gostávamos, logo no segundo ano. A minha
resposta foi Heraclito. “Heraclito?” E olhou-
me com muita atenção. Corrigia as provas,
punha um comentário e devolvia-as. Eu, a
partir de certa altura, na faculdade, devolvia
as provas. Depois percebi que havia regras
sobre isso. A vida universitária tornou-se um
espaço de tacanhez. Descobri cedo que o ex-
cesso de regulamentação é um sintoma de
medo ou angústia. Medo do risco.
A primeira vez que fui sua aluna
ensinou Dante em Filosofi a Medieval
frisando que não se tratava de um texto
fi losófi co mas poético. Isto ocorre-me
na sequência do que disse sobre o risco
e a formatação da universidade hoje em
dia. Como é que chegou a esta escolha?
Dante é uma descoberta muito tardia. Há mui-
tos anos que leio [o poeta Osip] Mandelstam
que escreveu um texto sobre Dante. Li-o e
interroguei-me: “Então e eu nunca li Dante?”
Apareceu uma tradução portuguesa que era
bilingue e com a rima seguindo a regra da ter-
cina do Dante. O primeiro verso rima com o
terceiro da primeira estrofe, o segundo verso
da primeira estrofe rima com o primeiro da
segunda estrofe. Sempre! Catorze mil versos.
Que o Vasco Graça Moura tenha conseguido
fazer isso..., só posso fazer uma saudação
de admiração.
Substituí um colega, que é um grande pro-
fessor de Filosofi a Medieval, num semestre
sabático. Comecei por não me sentir capaz
de o substituir.
Já tinha dado aulas de Filosofi a
Medieval.
Sim, nos primeiros anos em que dei aulas. Au-
las práticas. Lia textos de autores que eu admi-
rava e admirarei até ao fi m dos meus tempos.
De Plotino, dado a importância que o pensa-
mento neoplatónico tem na Filosofi a Medie-
val. De Santo Agostinho. De Santo Anselmo.
Leu Plotino e outros autores no original,
em grego, em latim?
Eu tinha umas lambidelas de latim. Também
tinha aprendido grego no liceu. Até tive 20.
[riso] Mas não sei grego para ler Plotino sem
uma edição bilingue. Voltei ao grego e ao la-
tim na faculdade. Mas aquilo exige muita de-
dicação e eu estava a ler também a Hannah
Arendt e Walter Benjamin, e Wittgenstein
vinha a caminho. Decidi-me a aprofundar o
alemão. Sou como o Rainer Maria Rilke que
queria aprender latim, e à segunda ou ter-
ceira lição desistiu e disse: “Sou como um
homem cheio de fome, que tem um prato su-
culento à frente e não tem colher para comer.
Acham que vai começar a fabricar a colher?
Não, vai engolir a sopa como puder.”
Sabe falar bem alemão?
Não. Mas para ler os autores que eu quero
ler, mesmo a poesia, consigo.
Dante escreve em italiano, e não em
latim, o que é novo. E pede a um
poeta que admira muito, Virgílio,
que o acompanhe no Inferno e no
Purgatório. Virgílio não chega a
entrar no Paraíso. De certa maneira,
quando lhe perguntei pelos encontros
decisivos, estava a perguntar-lhe pelas
pessoas que lhe deram a mão, que a
acompanharam na viagem.
Pessoas que foram guias... Que me salvaram,
em certos momentos, dos perigos... O Nietzs-
2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 25
che ensinou-me que há uma coisa que é muito
fácil fazer, que é caluniar as aparências. É um
mestre. Li Wittgenstein quando estava grá-
vida da Catarina, com 22 anos. Li o Caderno
Castanho e o Caderno Azul. Li-os inteirinhos
sem saber nada de Wittgenstein. [em surdina]
E também não percebi nada. Mas não parava
de ler. Queria perceber, por isso é que conti-
nuava. Só recomecei com Wittgenstein nos
anos 90. Pela primeira vez li o Tratactus. Foi
um choque sem igual. O Dante foi uma des-
coberta das mais extraordinárias. É um ser
muito secreto, nem se conhece a letra dele.
Nunca conheceu a mãe. Impressionou-me
também que se interessasse tanto por polí-
tica, chegando a governar Florença. Desde
criança que conhece os exílios, as matanças
entre famílias, o sangue a correr na rua. Ele
próprio foi proscrito, nunca mais regressou
a Florença. Conheceu a cidade humana co-
mo um inferno. Isso aproxima-se tanto da
nossa vida...
E Dante é do século XIII.
Agora parece tudo fi ltrado. [O fi lósofo Gior-
gio] Colli diz que pomos uma máscara na vio-
lência. O artista é aquele que tira a máscara.
Mais vale a violência nua do que a máscara
que converte a violência em muitos progra-
mas. Como diz Santo Agostinho, o abismo
existe em todos os corações. O abismo chama
por muita coisa, mesmo nos corações bons.
Chama pela crueldade, pela vergonha que
estamos a infl igir aos outros e que Nietzsche
diz que é o pior que podemos fazer.
Kafka também diz que a vergonha é o
pior dos sentimentos.
É. Infl igir aos outros esse sentimento é im-
perdoável. Não tenho nada a ideia do perdão
sem limites e acho que há uma distinção en-
tre bem e mal. Temos de procurá-la todos
os dias. Aí sou arendtiana. A faculdade de
julgar à maneira kantiana é a grande força da
nossa existência pensante. Kant foi um autor
decisivo desde sempre. Nas minhas aulas, e
até às últimas, era difícil não o referir. O meu
próximo livro chama-se As Nuvens e o Vaso
Sagrado — Estudos sobre Kant e Goethe.
Surpreendeu-me também a liberdade de
Dante. Que um cristão como ele tenha posto
o Siger de Brabante [fi lósofo medieval] no
Paraíso... deve ter sido uma das razões por
que passagens da Divina Comédia estiveram
no Índex. Era um averroísta, contrário aos
ensinamentos da Igreja católica. Lembra-se
do princípio da Divina Comédia?
Lembro-me de Dante perdido na selva escura, sim.
“No meio do caminho da minha vida, senti-
me perdido numa selva escura.” Dante ama o
sexo. É claro como água. É atacado do pecado
da luxúria. E quando está diante de Beatriz
pela primeira vez é como um menino enver-
gonhado diante da mãe. Não ousa olhar para
ela. E quer voltar à Terra. Isto é tudo tão for-
te, tão poderoso...
Aceitei substituir o meu colega [em Filoso-
fi a Medieval] com a condição de trabalhar a
Divina Comédia. Foi um privilégio para mim.
E foi um privilégio saber que os meus alunos
leram Dante em italiano. As provas só tinham
os versos em italiano (que me perdoe o Vasco
Graça Moura).
Quem foi o seu Virgílio? Já falámos de
imensas pessoas que a tocaram.
Ah, não sei. Não sei escolher. Alguns esta-
rão em primeiro lugar, mas não sei o nome
do primeiro dos primeiros. Também lhe di-
go que sou muito rebelde. [riso] Sou como
uma criança que não quer obedecer — à sua
pergunta.
A sua maior insegurança foi sempre
qual?
Dar-me a conhecer.
26 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
RELATO DE UM JUNKIE
Diz que tem “um Ferrari nas veias”. Consumiu e trafi cou
mesmo quando estava preso. A sua história também é a história das drogas em Portugal — dentro
e fora das cadeias. Fomos fi éis à sua forma de se expressar,
mesmo quando utiliza palavrões
ANA CRISTINA PEREIRA TEXTO JOÃO FAZENDA ILUSTRAÇÃO
2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 27
28 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
A cela era demasiado pequena
para o convívio de tantos chei-
ros. Cheirava a suor, a vómito,
a urina. Tóino contorcia-se no
colchão humedecido pelo que
o seu corpo expulsava. Doía-lhe
tudo e, como tudo lhe doía, ge-
mia. Doía-lhe tudo e, como tudo
lhe doía, gritou:
— Seu fi lho da puta! Hás-de ser
sempre o mesmo morcão!
Ao ouvi-lo, o guarda precipitou-se para o
olho-de-boi da porta:
— Estás a falar para quem?!
— Para mim, caralho!
O guarda virou-lhe as costas. E a voz, den-
tro da cabeça de Tóino, voltou a atacá-lo:
— Esta conversinha já devia ter acontecido
há muito tempo! Agora é tarde! Já desgra-
çaste tudo!
Estava no “manco”, a prisão dentro da
prisão, o lugar pensado para quem comete
grave ofensa dentro da prisão. A vida inteira
passava-lhe à frente, como se naquela divi-
são fedorenta um fi lme fosse projectado. Não
desaparecia nem quando fechava os olhos
com força.
Metera-se cedo naquilo. Procurava anfe-
taminas na farmácia ou na rua. Comprava-
as em forma de comprimidos ou cápsulas, a
500 escudos a caixa, e injectava-as nas veias
dos braços. Pupilas dilatadas, calor. Não se
calava. Quando o efeito se extinguia: apatia,
nervosismo, fadiga.
Era o mais novo de seis fi lhos de uma do-
méstica e de um operário da indústria da con-
serva. Cresceu numa casa de pedra, virada
para uma rua calcetada, que desemboca no
largo da Igreja de Santa Cruz do Bispo, em
Matosinhos. A família mudara-se para ali nos
anos 1950. Ocupava o primeiro andar inteiro
e as traseiras do rés-do-chão — um tio ocu-
pava a frente.
Ia nos 16 anos. Portugal acabara de sair da
ditadura. Embalado pela sensação de liber-
dade, experimentava tudo. A folha de can-
nabis popularizava-se graças aos retornados
do Ultramar. Tóino preferia haxixe, a resina
seca extraída do tricoma, das fl ores e das in-
fl orescências da planta, mas não abandonava
anfetaminas como o Preludim, na rua conhe-
cido por “prelo”.
— Cada vez precisavas de mais drogas! Cada
vez gastavas mais dinheiro em drogas, seu
fi lho da puta!
Fora montador de móveis e candeeiros
numa loja da especialidade. Perdera o lu-
gar. Desde então, saltava de emprego pa-
ra desemprego, de desemprego para em-
prego, de emprego para desemprego. Ora
sentia-se mal e não aparecia. Ora sentia-se
mal e desaparecia. Ora era despedido. Ora
despedia-se.
— Podias ser um senhor e não és!
O Estabelecimento Prisional do
Porto tem a forma de uma espi-
nha. Engloba quatro pavilhões
celulares, paralelos, com re-
creio próprio; a uni-los, um
corredor perpendicular, que
também dá para os serviços si-
tuados do lado esquerdo: uni-
dade de saúde, unidade livre de
drogas, salas de trabalho e estu-
do. As ofi cinas fi cam à direita, lá atrás.
Tóino trabalhava como vidraceiro. Uma
manhã, estava absorto, a cortar vidros trans-
parentes — era só riscar o vidro com um corta-
dor de roda de aço frio e pressionar no verso
—, quando ouviu chamar pelo seu número.
Ele, o recluso 657, tinha de se dirigir à se-
cretaria.
As ofi cinas sucediam-se umas às outras,
numa mistura de barulhos e pós: carpintaria,
serralharia civil, mecânica, artes e ofícios,
electricidade, padaria, tipografi a, encader-
nação. Era forçoso passar por um detector
de metais, não fosse alguém roubar ferra-
mentas e usá-las, por exemplo, para fazer
buracos nas paredes das celas e neles escon-
der produto.
A máquina apitou. O guarda tratou de re-
vistar Tóino, que naquele momento — e só
naquele momento — se apercebeu do seu
erro. Tinha 28 doses de heroína nos bolsos
das calças.
— Ei! Não me tires essa merda!
Não podia ser pior. Desatinava com aquele
guarda. E ele sabia-se olhado de lado por ser
Testemunha de Jeová.
— Podias perdoar essa merda!
— Só se mudares para a minha religião é
que te perdoo.
Não abriu a boca. Nem sabia quem trouxera
aquilo para a cadeia e em que moldes: saber
de mais só traz encrenca. O trafi cante-patrão
passava-lhe produto, prontinho, e ele passa-
va-o a outros reclusos, que o passavam a ou-
tros. Por cada dez pacotes, ganhava dois.
O dono evitava expor-se. Os donos evitam
sempre expor-se. Recorrem a outros reclu-
sos que usam o chão, o televisor, o rádio, a
sanita, o corpo, o que for, para esconder a
droga. Tóino conhecia quem a introduzisse
no ânus e quem a escondesse nos balneários,
nas cozinhas, nos gabinetes dos guardas —
ele servia-se da ofi cina. E agora estava ali, já
sem nada no estômago para vomitar, só um
ácido biliar que lhe deixava um gosto horrí-
vel na boca.
Como se esquecera da droga — da sua pre-
ciosa droga — nos bolsos? Perderia o trabalho
por causa daquilo?
O seu trabalho era uma espécie de passa-
porte para a prisão inteira. Andar pela prisão
inteira tinha sabor a liberdade, embora nunca
conseguisse ver mais do que umas dezenas de
metros, já que a cada instante o espaço prisio-
nal se interrompe com muros ou grades.
Há muitos vidros partidos na prisão. Po-
dem exprimir uma revolta (pela falta de
uma visita, a recusa de uma saída precária,
a discussão com um guarda ou com um co-
lega) ou servir uma estratégia (um homem
tem um credor à perna, parte um vidro à
vista dos guardas e sujeita-se a isolamento
disciplinar, sempre ganha algum tempo para
pagar a dívida).
Uma vez, conta um guarda, um preso par-
tiu as lâmpadas de halogéneo de um corre-
dor inteiro. Pegou no cabo de uma vassoura
e com a escova de fi bra rija despedaçou as
lâmpadas de uma ponta à outra. Traz-traz-
traz. Num abrir e fechar de olhos, parecia
que a noite tinha caído ali dentro.
Sobram agiotas intramuros. As dívidas
saldam-se com alimentos, tabaco, roupa,
calçado, relógios ou outros bens ou servi-
ços, o que inclui sexo, limpeza de celas,
participar no negócio das drogas. Uns as-
sumem o papel de cobradores. Alguém tem
de pagar a droga, nem precisa de ser ali.
Um familiar pode entregar o dinheiro num
sítio qualquer.
Quem não paga arrisca-se a levar uma va-
lente tareia. Alguns devedores pedem para fi -
car fechados. Implorando mudança de ala ou
de estabelecimento prisional, já houve quem
pegasse fogo ao colchão, atestam os trabalhos
de investigação de Nuno Costa Moreira (ver
Suicídios nas Prisões, Legis Editora, 2010).
Tóino deu com os costados na cela disci-
plinar: dez dias.
— Foda-se! Não hei-de ser sempre o mesmo
morcão!
No início da ressaca, a dor não é
dor. É como fazer uma longuís-
sima viagem de moto. Depois de
300 quilómetros, as mãos recla-
mam vida própria. O motociclista
já nem sabe até que ponto pode
confi ar nelas. Sente cãibras. Só
lhe apetece tirar as mãos do vo-
lante. Esticar os músculos é des-
carregar.
Talvez o problema tenha sido não aceitar
a ressaca como parte da experiência de con-
sumo. Só pensava em calar a voz.
Tóino esfregava a cara. Tóino esfregava a
cabeça. A cara já estava vermelha de tanta
esfrega, a cabeça já ardia de tanta esfrega. A
voz não se calava.
— Filho reles!
O pai trabalhara na conserveira Adão Po-
lónia & Companhia Limitada, na Avenida
Menéres, em Matosinhos. Orgulhava-se do
patrão, que estivera emigrado nos Estados
Unidos e comprara a fábrica em 1941. Só que
a empresa não resistiu à crise que se abateu
sobre o sector: fechou nos anos 1960. O pai
passou para a Conservas Alfa, Limitada, na
Rua de Santo Amaro.
A indústria de conserva de peixe com mo-
lhos fi xara-se no concelho no fi nal do século
XIX: a primeira fora a Lopes, Coelho Dias &
Companhia Limitada, em 1899. Das 54 unida-
des fabris, já só um punhado sobrevive, mas
nalguns dos que ali viviam resiste ainda a me-
mória dos silvos agudos que, havendo peixe,
chamavam os operários para as fábricas.
Ao soar o silvo, o pai pedalava, veloz. Ape-
sar de só saber assinar o nome, orgulhava-se
da educação dispensada aos fi lhos. E a mãe
esforçava-se para criá-los, tratar da casa e da
horta. Ali, todos iam à missa, ao fi m da rua,
e ninguém comia enquanto alguém faltasse
em torno da mesa.
Muito pensou Tóino neles na cela disci-
plinar.
— Dei-lhes os piores momentos da vida
deles…
O fumo acinzentara as paredes da cela.
Alguns presos metem os haveres numa saca
antes de pegar fogo ao colchão, saem mal os
guardas destrancam as portas, mas há notí-
cia de morte por asfi xia. O “manco” desata
angústia. Na parede, junto à cama, sangue
seco segurava cabelos fi nos.
Nem queria pensar nos dias que ainda teria
de suportar. Nada tinha para se distrair. E a
voz não se calava. A voz não se cansava.
— Filho insurrecto!
Às vezes, o pai pedia-lhe:
— Não te metas nisso, sabes que isso é um
problema sério.
Às vezes, a mãe implorava-lhe:
— Larga essa porcaria!
Prometia-lhes que sim. Sempre foi assim.
Sempre lhes prometeu que faria o que que-
riam e sempre fez o que quis.
Deixaram de confi ar nele. Roubava o di-
nheiro que encontrava. As ferramentas guar-
dadas nas traseiras desapareciam uma a uma,
como se na arrecadação houvesse um bura-
co invisível. Num dia, evaporou-se o colar
de ouro da mãe. Noutro, o vale de reforma
do pai.
O pai expulsou-o umas vezes de casa sem
deixar de lhe abrir a porta mal reaparecia: se
tardasse, a mãe procurava-o, consumida de
preocupação, até o encontrar. Nem saberia
dizer quantas vezes esgotou a paciência de-
les. Consola-o saber que nunca lhes bateu.
Essa ofensa suprema nunca.
— Tudo menos isso! Tudo…
Os cinco irmãos cedo saíram de casa. Com
os pais, só tinham fi cado Tóino e a sobrinha
mais velha. O quarto dele era em frente ao
quarto dela: incendiaram-se sem se protege-
rem. Ele ia nos 16 anos, ela nos 15 — nunca al-
gum deles ouvira falar em contraceptivos.
Já havia pílula. Entrara em Portugal em
1962 pelas mãos da farmacêutica Schering
Lusitana. Só naquele ano — 1974 — seria apro-
vada como anticoncepcional. Poucos a co-
nheciam. E que médico a receitaria a uma
miúda de 15 anos?
Ele dispôs-se a casar-se com ela pela Igreja
católica. O padre da paróquia anuiu: havia
que salvar a honra da moça. Não o faria sem
autorização especial do bispo do Porto. Ora,
Dom António Ferreira Gomes não era fi gura
estranha. A sua estância de repouso fi cava a
uns minutos de casa. Zé, o irmão mais velho,
ainda se lembra de lhe ir pedir a autorização
e de a trazer.
O casamento durou quatro anos.
Tiveram duas fi lhas. A mais ve-
lha morreu aos 12 anos com he-
patite. Zé foi buscar o corpo ao
Porto, ao Hospital de São João.
Trouxe-o nos braços: o agente
funerário aguardava-o em casa
para tirar as medidas e fazer o
caixão. De Tóino nem sinal.
Nos primeiros tempos, não
existiam os chamados “bairros de uso”. Tói-
no ia comprar droga à Baixa do Porto. Por
causa dela, amontoava-se rapaziada junto
ao Embaixador, grande café de dois andares,
na esquina da Rua de Sampaio Bruno com a
Avenida dos Aliados.
Punha-se à conversa com os amigos jun-
to à Igreja de Santa Cruz do Bispo, na pra-
ça mais religiosa da freguesia: nos séculos
XVI e XVII, com a estância de repouso dos
bispos, edifi caram-se algumas ermidas. De
súbito, aparecia a polícia e dispersava-os à
bastonada.
Consumir drogas era crime. Só em 2001, a
aquisição, a posse e o consumo deixariam de
o ser. Tóino vendia algum haxixe e desatara a
consumir heroína. “Tudo o que ganhava era
para consumir”, diz ele. “Havia dias em que
consumia seis, havia dias em que consumia
dois pacotes.”
Nem imaginava os efeitos. Ninguém, na-
quela época, os imaginava. Eram jovens,
saudáveis, cheios de futuro. Ninguém lhes
serviu de espelho ao arrumar carros nas ruas.
Espelhos haveriam de ser eles. A heroína, a
“castanha”, começara a circular. Tóino qui-
sera experimentá-la.
Recorria a sanitários públicos, casas de
amigos ou ruas escuras e sem gente. Mais
queria injectá-la do que fumá-la. O fl ash era
maior e mais rápido. Sentia-se solto. Fala nis-
so como se isso fosse um orgasmo de corpo
inteiro. Perdia a sensação de dor. Pupilas con-
traídas, só arengava frases feitas:
— Ei, ouve lá, estou com uma moca do ca-
ralho!
Depois, chegou a cocaína, a “branca”. E
a “branca” é um estalo. Tóino sentia-se o
maior na rua que na sua infância era só uma
dúzia de casas de pedra para um lado e uma
dúzia de casas de pedra para outro e que
agora é uma sucessão de casas rebocadas
que acolhem muitos rostos que ele já nem
conhece.
Aumentava, a olhos vistos, o número de
presos por droga. Quase insignifi cante até
1978, tal realidade ganhou expressividade
a partir de 1993, ano em que o país decidiu
colocar o tráfi co ao nível do terrorismo — o
que autorizava quem fazia investigação crimi-
nal a recorrer a meios de obtenção de prova
excepcionais e tornava a prisão preventiva
regra.
Refl exo do medo que então se vivia: em
2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 29
no dia-a-dia. A desproporção era excessiva.
Chegaram a estar três a guardar 300 — dois
à hora do almoço. Só lá iam, em grupo, abrir
e fechar celas. Quando vinha um guarda ins-
truendo, avisavam-no logo para andar sob os
parapeitos. Mesmo assim, não se livraram de
levar com cuspidelas e lixos atirados pelos
presos.
Os presos, esses, andavam à vontade. “Se
entrasse um chibo, era logo atacado”, afi ança
Tóino. “Uma vez, vi um gajo a entrar e a sair
quase morto. Deram-lhe com um ferro na ca-
beça. Em Custóias, havia ferros, facas, tudo:
só não havia pistolas. Então! O gajo chibou!
A cadeia é um martírio para chibos e viola-
dores.”
Vigora o chamado “código dos presos”, um
regulamento não escrito transmitido de uns
para os outros. Regras de ouro: conservar a
boca fechada, não demonstrar fraqueza, não
se meter na vida dos outros presos, não de-
nunciá-los, manter alguma hostilidade para
com os guardas. Se um recluso se põe a falar
com um guarda, há logo alguém que grita:
“Chiboooooooo!”
Na primeira vez que o atiraram
para trás das grades, Tóino não
tinha dinheiro para investir no
tráfi co. Se tivesse, arriscaria.
A mãe trazia-lhe dinheiro e ta-
baco. E ele ia logo comprar hero-
ína. Para a avolumar, os trafi can-
tes usam substâncias de aspecto
idêntico, como talco, glucose,
barbitúricos. Atrás das grades,
pior. Até por isso, alguns reclusos arriscam-se
a comprá-la nas saídas curtas e outros per-
suadem ou coagem familiares a entregar-lha
nas visitas ou nas encomendas.
Tóino pedia dinheiro até à companheira,
Manuela, com quem partilhou mais de dez
anos da sua vida. E, sem ele a trazer algum
dinheiro, ela afl igia-se para alimentar o fi -
lho dela e a fi lha dele. Custava-lhe arranjar
trabalho. Estava convencida de que as pes-
soas não gostavam de olhar para ela. Sofrera
uma violenta queimadura — tinha cicatrizes
impressionáveis no pescoço e nos braços e
faltavam-lhe três dedos na mão direita.
Os irmãos não apareceram na prisão. Es-
tavam zangados. “Está preso, deixa-o estar”,
dizia um. “Não merece que o vá visitar”, dizia
outro. “Tem de aprender, tem de sentir que
tem de mudar.” Isso é, pelo menos, o que re-
corda Zé, o irmão mais velho, das conversas
tidas em família.
O pai também não apareceu. O pai gostava
de pegar na navalha e de desfazer a barba
sem vergonha de se olhar ao espelho. Não
gostava de ter o nome da família nas bocas
do mundo e o fi lho mais novo pusera o nome
da família nas bocas do mundo.
Não conseguia engolir a afronta, o pai. As
suas mãos provavam que sempre fora um
homem de trabalho. Trabalhou até aos 78
anos. Perdera as pontas de três dedos da mão
esquerda na prensa da máquina de moldar
latas de conserva de sardinhas ou de atum.
Tóino estava longe das suas vistas, arruma-
do numa cela malcheirosa. Para não dormir
com o cheiro a excrementos, alguns presos
davam novo uso aos sacos de plástico trazidos
pelas famílias com comida: defecavam den-
tro deles e atiravam-nos pela janela fora. De
manhã, os sacos salpicavam o recreio.
O novo director da prisão estava decidi-
do a acabar com aquilo. Equipas formadas
por reclusos, supervisionadas por guardas,
tinham começado pelo pavilhão A, que fora
dividido a meio com um tabique: num lado,
os reclusos engalfi nhavam-se; no outro, de-
corriam os trabalhos.
1993, o tráfi co de droga dava quatro a 12 anos
de prisão, enquanto o homicídio consumado
dava oito a 16; em 1996, o tráfi co passou a
pesar cinco anos e meio a 16 anos. Era como
se um trafi cante fosse um homicida.
A estatística ofi cial não podia ser mais ex-
plícita. No fi nal da década de 1990, os crimes
relacionados com drogas tornaram-se a prin-
cipal razão de pena de prisão efectiva. Só em
2003 os crimes contra o património voltaram
a assumir a liderança. No fi nal de 2012, ha-
via nas prisões 2252 condenados por crimes
relativos a estupefacientes num universo de
10.953 sentenciados.
Um par de sapatilhas. Sim, a pri-
meira coisa que Tóino furtou
foi um par de sapatilhas numa
loja. Já nem se recorda bem
desse episódio. Um armazém.
Sim, o primeiro furto memorá-
vel foi a um armazém repleto
de material pronto a exportar
— vestuário e calçado. Gastava
100 contos num ápice. E como
havia de juntar tanto dinheiro? “Esvaziava
lojas como quem esvazia um carrinho de su-
permercado”, responde. “Um gajo ia à caixa.
Se tinha dinheiro, tinha. Se não tinha, ‘ia às
compras’. Havia sempre quem fi casse com
as ‘compras’.”
Não era por isso que estava ali. Não era.
Porto, 11 de Junho de 2002: imagine um
Renault Clio estacionado numa rua mal ilu-
minada, junto a um prédio de qualidade du-
vidosa; Tóino a olhar em volta, a tirar um
arame fi ninho do bolso do casaco, a abrir
a porta, a entrar, a sentar-se, a fazer uma
ligação directa.
O carro pertencia a um electricista do
Bairro do Viso, situado rente à Estrada da
Circunvalação. Tóino até esfregou as mãos
ao ver o que estava lá dentro: uma mala de
ferramentas, um compressor, inúmeras telas
e interruptores. Acelerou, contente, até casa
do receptador.
Devia ter suspeitado. A mãe sempre lhe
dissera: “Quando a esmola é muita, o pobre
desconfi a.” Dias depois, o trânsito forçou-o a
parar na Rua das Condominhas — mesmo nas
traseiras do Bairro do Aleixo. Dois polícias
reconheceram a matrícula, aproximaram-se
a pé, mostram a carteira profi ssional:
— Polícia!
Tóino fechou o vidro, carregou no acele-
rador, bateu no carro que o antecedia. Fez
marcha-atrás, bateu no carro que o sucedia.
Tornou a meter primeira. Subiu o passeio. Uns
50 metros adiante, um poste de iluminação
pública impediu-o de continuar. Olhou para o
retrovisor, viu os polícias, ouviu a ordem:
— Parem!
Fez marcha-atrás. Dois polícias deram um
salto. Um terceiro bateu com o bastão no vi-
dro e imobilizou Tóino. No passeio, caminha-
vam sete pessoas — teriam sido atropeladas
se não se tivessem desviado a tempo. Houve
feridos. Dois foram parar às urgências do
Hospital de Santo António: um agente sofreu
escoriações nas pernas; outro, traumatismos
num braço.
A cena foi dessa forma descrita pelos polí-
cias no julgamento que decorreu nas Varas
Criminais do Porto. Está exposto no proces-
so judicial. Longe do banco dos réus, Tóino
não se faz de desentendido a contar aquele
episódio. Amplia-o até, como se se orgulhas-
se dele.
“‘Fiz’ uma residência em Aveiro”, relata.
“O carro era furtado. Eu furtei para aí 50
carros. Ai, Jesus! Para carregar o que furtava
nas casas, tinha de ser assim. Fui à Gafanha
da Nazaré ter com uma miúda que eu tinha
engatado. Uma miúda de 27 anitos, muito
gira! Andava com essa miúda há um ano e
tal. E fomos lá. Ela queria ir lá pôr fl ores na
campa do pai dela. Enquanto ela andava nis-
so, eu dei lá uma volta e decidi ‘fazer’ uma
residência. Tivemos dois dias em Aveiro. No
último dia, ‘fi z’ a residência. Vínhamos de
carro e resolvi ir ao Aleixo comprar um boca-
do de ‘branca’ e um bocado de ‘castanha’. O
carro tinha sido furtado no Porto. Foi através
do carro que me descobriram. Fizeram uma
perseguição policial. Foi à saída do Aleixo.
Sabes, aquela igreja ali? Abalroei para aí 20
carros. Estava muito trânsito e só havia uma
vielazinha para passar com o carro e eu pen-
sei: ‘É para ali que vou.’ Imagina os carros
que não abalroei por ali acima!”
Fechado 23 horas por dia, não se orgulhava
das suas proezas. Remoía-as.
Só tinha uma hora para esticar as pernas,
telefonar. As duas celas disciplinares fi cam
no primeiro andar do Pavilhão D. Descia pe-
las escadas até ao rés-do-chão e seguia, pelo
corredor com gradões amarelos e intenso
cheiro a lixívia, até ao recreio, pequeno, de
20 metros por 20 metros. Tentava aguentar
o máximo de tempo em pé, a respirar pelo
nariz, de rosto virado para o céu.
As horas passavam demasiado devagar no
“manco”. De dia, entrava luz natural. De noi-
te, havia apenas a luz fraca que o olho-de-boi
deixava entrar. Ali dentro, apenas uma cama,
uma sanita à caçador, um lavatório em inox,
um duche, Tóino e a sua memória torcida.
Não, aquela não era a primeira
estadia de Tóino no Estabeleci-
mento Prisional do Porto — as-
sente na freguesia de Custóias,
a meia dúzia de quilómetros de
casa. A 2 de Setembro de 1995,
entrara numa cela que já acolhia
dois toxicodependentes suspei-
tos de furto.
Em 1995, Custóias rebenta-
va pelas costuras. Nessa altura, chegaram
a acomodar-se mais de 1300 reclusos onde
deviam estar 500, a maior parte toxicode-
pendentes. Em cada cela individual, três; em
cada camarata, até 13, em vez de sete ou oito
regulamentares.
Era a mais sobrelotada prisão de um país
que investia no aumento de vagas sem travar
o crescimento da população prisional. Enche-
ra-se de pequenos trafi cantes, consumidores
trafi cantes e autores de crimes relacionados
com a necessidade de arranjar dinheiro para
as drogas.
Hernâni Vieira tornara-se director em
Maio e um mês depois lançara um “plano
de emergência” destinado a dotar as celas
de luz, água corrente e sanitas. E era com
a sobrelotação que então, em entrevista ao
Semanário, justifi cava “epifenómenos como
o aumento de droga dentro das prisões”.
Naqueles primeiros tempos — haveria de
contar ao PÚBLICO em 2007 —, Hernâni Viei-
ra dormia “muito mal”: “Tinha de ir lá dentro
todos os dias acalmar as desavenças.” Tan-
tas vezes saltava da cama de madrugada e ia
a correr para a prisão. Alguém incendiara
o colchão, alguém tentara enforcar-se com
um lençol…
Intramuros circulavam drogas de efeitos
diversos, como nos “bairros de uso”, que en-
tretanto tinham aparecido, sobretudo, nas
áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e em
Setúbal. E, havendo uma rusga, até pela jane-
la fora as atiravam. Os guardas começavam a
vasculhar num lado e a palavra propagava-se
até ao outro, lesta — camarata a camarata,
cela a cela.
Os guardas nem sequer andavam pelas alas
Depois, chegou a cocaína, a “branca”. E a “branca” é um estalo. Tóino sentia--se o maior na rua, que na sua infância era só uma dúzia de casas de pedra para um lado e uma dúzia de casas de pedra para outro e que agora é uma sucessão de casas rebocadas que acolhem muitos rostos que ele já nem conhece
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A imprensa registou a mudança. A 16 de
Setembro de 1996, o Jornal de Notícias mos-
trou o antes e o depois: numa fotografi a, um
beliche e uma cama rasa, paredes descas-
cadas, armários abertos; na outra, além das
camas, sanita, lavatório, espelho, armários-
prateleira, cabides, botão de chamada com
sinal luminoso e sonoro, fi cha eléctrica para
rádio e TV.
Alheio ao decorrer dos trabalhos, Tóino
vivia a intermitência da ressaca. Sentia o cor-
rimento no nariz, a irritação crescente. Sentia
os calafrios, os espirros. Sentia a dor, a náu-
sea. Até que uma ideia ganhou força: prolon-
gar aquela agonia mais uns dias era calá-la,
quem sabe se para sempre, mas calá-la já era
prolongá-la, quem sabe se para sempre.
Decidiu parar. Até dava cabeçadas na pare-
de. Os companheiros chegavam-lhe o balde
higiénico, a ver se não vomitava na cama,
no chão, onde calhasse. Não havia dentro
daquela cela quem não soubesse o que era
aquilo. Tentava respirar fundo, pelo nariz,
para que o estômago parasse de ter espas-
mos, mas vomitava como um rapazinho num
barco embalado pela tempestade.
Não era ainda fácil articular respostas. A
medicação de foro psiquiátrico, contudo, já
circulava na prisão. Era um método de ge-
rir confl itos, de reduzir agressividade num
lugar sobrelotado, infl amado pelas ressacas
dos reclusos, fragilizado pela saturação dos
funcionários, segundo um artigo de Adelino
Vale Ferreira, Margarida Nunes Vicente e Raul
Melo, que integra uma colectânea de textos
publicada pelo Centro das Taipas em 1994.
O pouco que havia em matéria de toxico-
dependência destinava-se, precisamente, a
quem queria libertar-se. Em 1992, nascera
uma comunidade terapêutica no Estabeleci-
mento Prisional de Lisboa e a partir daí alas li-
vres de drogas em diversas prisões do país.
Só em 1997 cadeias e centros de atendi-
mento a toxicodependentes tiveram luz verde
para se organizar e garantir a continuidade
nos tratamentos. Os primeiros programas
de substituição opiácea chegariam aos es-
tabelecimentos prisionais de Lisboa, Porto
e Tires em 1999. A história está contada no
livro O Que a Droga Fez à Prisão, de Luís Fer-
nandes e Maria do Rosário Silva, editado pelo
Instituto da Droga e da Toxicodependência
(IDT) em 2007.
A sobrelotação desequilibrava a relação
entre oferta e procura de trabalho. Tóino
passava horas no recreio. Quando saiu, a 29
de Fevereiro de 1996, com uma pena sus-
pensa, não consumia há um mês e pouco.
Não era excepção. Grande parte dos que en-
tram a consumir deixa de o fazer, pelo que
se pode ler em Drogas e Prisões: Portugal
2001-2007, coordenado por Anália Cardoso
Torres (IDT).
“Tenho a cabeça todo queimada”, lamenta
Tóino. “Quando dou fé, está tudo igual.”
Ficou “tudo igual”. Tanto fi cou “tudo igual”
que regressou a Custóias. Nem um euro trazia
no bolso, quanto mais dinheiro que se visse
para iniciar um negócio de tráfi co. Sobravam-
lhe, todavia, amizades forjadas fora a mo-
rar dentro. E tinha um extenso currículo de
passador-consumidor.
“Trafi quei quase todas as drogas”, diz. “Ga-
nhei muito dinheiro. Três mil contos que re-
cebi por um acidente de moto? Gastei-os num
mês e meio! Tenho um Ferrari nas veias!”
Custóias melhorara durante a sua ausência.
A sobrelotação persistia, porém. Na unidade
de saúde, fi las para consultas. Na enferma-
ria, aperto. Mais de metade ainda entrava ali
por crimes de droga, dois terços eram consu-
midores, mas a metadona trouxera alguma
tranquilidade. “Já não andam à procura de
droga mal saem das celas”, assegurava então
o director.
As drogas continuavam a entrar, embora
menos.
Os trafi cantes não as transportam: tendem
a usar reclusos insuspeitos, que denunciam
quando lhes dá jeito.
Alguns arriscam trazê-la no regresso de
uma saída precária. Alguns recebem-na via vi-
sitas e encomendas. Acontece estar escondi-
da em cabelo comprido e mudar de dono com
um abraço ou dentro de uma boca fechada e
passar no curto momento de um beijo. Houve
quem tivesse sido apanhado com droga dis-
simulada em cadeiras de rodas, televisores,
rádios, isqueiros, sapatos, pensos higiénicos,
fraldas, iogurtes, bolos, pão…
Com base em suspeitas, revistavam-se visi-
tas, reclusos, celas ou encomendas. Mas só a
partir de 2011, além de passar pelo detector
de metais, as visitas passariam a fi car sujeitas
a palpação de vestuário e cabelo, observação
de boca, inspecção de calçado, e as enco-
mendas semanais a ter até um quilo. À barra
dos tribunais chegam também processos que
remetem para o transporte de reclusos até
sessões judiciais ou trabalho em regime aber-
to — uma ocasião, no Funchal, uma rapariga
foi apanhada a passar haxixe ao namorado
que estava a pintar o tribunal. E processos
que desembocam em embrulhos lançados
por cima dos muros ou no envolvimento de
funcionários.
A estatística fi gura nos relatórios anuais so-
bre a situação do país em matéria de drogas.
As apreensões são quase sempre diminutas.
Na maior parte dos casos, uma ou duas doses
de heroína, uma ou duas de haxixe. Juntando
as prisões do país inteiro, naquele ano, 376
gramas de heroína, 536 gramas de cocaína,
4012 gramas de cannabis, três unidades de
ecstasy.
Aqueles 28 “pacotes” não dariam só dez
dias de “manco”, não senhor. Tóino não se
livraria de uma pena, apesar de aquilo ter
pouco mais de dois gramas. O tráfi co intramu-
ros é agravado. Naquele espaço exíguo, com
aquele ar infestado, com aquela luz ténue,
nem queria pensar nisso.
Saiu carrancudo. E não disfarçou.
Dias duros. Noites duríssimas.
O psiquiatra Carlos Magalhães
atendia na unidade de saúde da
prisão.
— Não durmo. Sempre a pensar
nas mesmas merdas. Toda a noite
acordado — queixou-se.
— Tenha calma, vai dormir —
ter-lhe-á retorquido o médico.
— Não é tanto a pensar no que foi mau. É
mais a pensar no que podia ter sido bom e
não foi; no que eu podia ter feito e não fi z;
no que eu podia ser hoje e não sou por causa
desta merda!
O psiquiatra receitou-lhe comprimidos.
Tóino sentou-se na cela. Sentia-se só, com-
pletamente só.
A mãe, que nunca o abandonara, caíra,
partira o fémur, não recuperara. Não era mu-
lher para fi car parada, numa cama ou num
sofá, apesar dos seus 76 anos. Ter gente a
ocupar-se dela, a cuidá-la, atormentava-a.
Era como se fosse contranatura. Retirara-se
deste mundo.
O pai morrera pouco depois. Estivera a
trabalhar no campo, transpirara e fi cara
com a roupa molhada no corpo. No hospi-
tal diagnosticaram-lhe gripe. Tóino encon-
trara-o de manhã, morto, deitado no chão,
ao lado da cama. Um pulmão rebentara já.
Pneumonia.
A antiga companheira, Manuela, saíra há
Ninguém o “chibou”. E ele continuou na
ofi cina. Pouco a pouco, os outros voltaram a
brincar à sua frente, mas paravam a um gesto
seu. Ele percebia-lhes os cuidados e pensava:
“Têm medo de mim, claro! Quem é que não
tem medo de um gajo que é capaz de cortar
o pescoço a alguém?”
Alegrou-o a falta de consequência. O tem-
po de encarceramento já lhe parecia infin-
do sem isso. Até temia atrofiar os ouvidos
por estar tanto tempo sujeito àquele ruído
imutável, retumbante, feito de abrir e fechar
de portas e gradões. Só de noite o silêncio
se apodera da cadeia. Um silêncio denso,
pesado, entrecortado por gritos vindos de
cela incerta.
Estivera preso seis meses em 1995,
já se disse. E um mês e pouco, a
título preventivo, em 2000, no Es-
tabelecimento Regional de Viana
do Castelo — tentara entrar num
pronto-a-vestir, com um amigo, o
alarme soara e a polícia ia mesmo
a passar. E ali estava de novo.
Não fi cou provado que furtou
o Renault Clio com ferramentas
dentro. As Varas Criminais do Porto conde-
naram-no a 16 meses de prisão por um crime
de receptação dolosa e por um crime de con-
dução sem carta. Só que ele já somava umas
quantas condenações.
A 18 de Junho de 2001, o Tribunal de Matosi-
nhos condenara-o a multa por furto na forma
tentada: passava pouco da meia-noite, entrara
numa casa e fora surpreendido pelo casal que
lá morava. A 26 de Fevereiro de 2002, o mes-
mo tribunal condenara-o por conduzir sem
carta: 46 dias de prisão. E a 17 de Dezembro
por furto simples: sete meses de prisão.
A procissão ia no adro. Ainda apanhou
cinco meses por falso testemunho; 34 por
furto qualifi cado; nove por furto simples e
condução ilegal; 36 por furto qualifi cado;
outros nove por furto qualifi cado, oito por
tráfi co de drogas. O tráfi co dentro da cadeia
rendeu-lhe 28.
A avaliar pelo acórdão, o Tribunal de Exe-
cução de Penas considerou a sua “situação de
consumidor”. A 27 de Maio de 2004, fi xou-lhe
uma pena única de cinco anos e seis meses
de prisão efectiva. Terminaria de a cumprir
a 27 de Maio de 2009. Sairia antes, se andas-
se direito.
Andou “direito”. Seguiu a onda, no fundo.
Os consumos estavam a diminuir dentro das
cadeias. Provam-no os já referidos estudos
coordenados por Anália Torres: entre 2001
e 2007, o consumo de cannabis caiu de 30%
para 29%; o de heroína de 27% para 13%.
Quando saiu, a 27 de Julho de 2007, a sua
morada era uma ruína. E a irmã não o queria
por perto. Tóino refugiou-se numa camioneta
inactiva. Apresentando-se como pintor de
construção civil, serralheiro, electricista.
Reaproximou-se da família. Foi fazendo uns
trabalhitos, inclusive para um sobrinho, que
construía casa, até que o irmão mais velho,
Zé, cedeu: podia fi car num anexo da sua casa,
desde que se livrasse das drogas.
As novas drogas galgavam terreno, muito
associadas às smartshops, mas essas não o
atraíam. Não são feitas a pensar num junkie
que já está nos 50. A heroína e a cocaína, es-
sas, continuavam a chamá-lo. “O corpo não
pede, mas a cabeça…” A cabeça parecia viver
em permanente ressaca.
“Isto é difícil”, lamenta. “É uma coisa que
fi ca sempre. Isto é a última coisa a sair do
cérebro. É preciso ter muita força para não
voltar ao mesmo caminho. Não quero voltar.
Se entrasse por esse caminho agora, era a ru-
ína total… Nem é bom pensar!”
muito de casa e a fi lha que tivera com a pri-
meira mulher, com um nome igual ao da se-
gunda, fora acolhida num lar da Associação
Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Defi -
ciente. Manuela deixara-o e a “miúda gira de
27 anitos”, a que estava com ele quando ele
fora preso, nunca mais dera notícias.
A técnica de Reinserção Social procurou
retaguarda familiar. Ficou-se pela irmã, que
se dizia disposta a apoiá-lo: pagava-lhe os
63 cêntimos de renda, mas nunca o visitava
na prisão. Alegava que não lhe dava jeito:
trabalhava por turnos num hipermercado,
na freguesia vizinha. Apenas uma sobrinha
aparecia de tempos a tempos. Ia por pena.
Só por pena.
Não era só solidão. Era toda uma sensação
de desastre. A magreza e a falta de dentes
cavaram-lhe o rosto. Alto, cabelo muito escu-
ro, cresceu a achar-se o mais bonito da famí-
lia. A sua imagem principiara a deformar-se
nos anos 1980. Viciara-se em anfetaminas.
Viciara-se em heroína. Viciara-se em cocaína.
Iria viciar-se em ansiolíticos?
Tornou ao médico.
— Senhor doutor, não quero mais medi-
cação.
— Não pode interromper o tratamento.
— Senhor doutor, estou a tomar 20 com-
primidos por dia e não durmo! Tripo com
tudo!
— Tenha calma.
À hora certa, traziam-lhe os comprimidos
para tomar. Ele engolia-os. Até que tomou
uma decisão.
— Não quero! A partir de hoje, não quero
mais medicação!
O médico mandou-o chamar.
— Você não pode cortar a medicação assim.
— Não quero mais. Já deixei a droga. Hei-de
deixar esta porcaria.
A noite caía e não trazia sono a Tóino. Ador-
mecia tarde, muito tarde. E dormia pouco,
muito pouco. Tinha os olhos vermelhos, pe-
sados. Tudo o irritava — tudo. Às vezes, per-
guntavam-lhe: “Estás a fi car tolo?”
Pediu para continuar a trabalhar.
Sentia que precisava disso.
Uma ocupação é uma fonte de
equilíbrio. A longo prazo, a inac-
tividade acentua o isolamento. E
isso pode trazer perturbações de
vária ordem, confl itos, até suicí-
dio, explica Rui Abrunhosa Gon-
çalves no livro Delinquência, Cri-
me e Adaptação à Prisão (Quarteto
Editora, 2008).
Mesmo a trabalhar, Tóino pensava em con-
sumir. Por vezes, era como se algo se apode-
rasse dele. Perdia o controlo.
Um dia, estava um grupo de reclusos na
ofi cina, cada qual alheado na sua pequena
tarefa. De repente, um atirou um pequeno
papel. Outros repetiram-lhe o gesto. Um fez
pontaria para Tónio.
— Quem foi o caralho?!
Silêncio.
— Se torno a ver mais um papel no ar, pego
num vidro e corpo o pescoço a um!
O grupo riu-se. A reacção dele era tão exa-
gerada que soava a brincadeira. Um recluso
mais atrevido atirou-lhe outro papel. Tóino
pegou num vidro e lançou-o na sua direcção.
O vidro quase lhe tocou no pescoço. “Foi Deus!
Se lhe tocava, cortava logo! Ficava sem cabe-
ça!” Espantou-se consigo, com a força da res-
saca. “Um gajo nem pensa. Fica alucinado,
tão forte que é. Podia ter matado um gajo!”
O outro fi cou branco como a cal. “Então a ver
aquele disco enorme! Aquela merda parecia
um disco voador! Ora aquilo num pescoço!
Uma lâmina autêntica!”
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A AL
DEIA
DO A
RQUIT
ECTO
Prémio Secil 2012 pela requalifi cação e ampliação de uma escola básica em Lisboa, José Neves acredita na luz e no tempo como ingredientes fundamentais na arquitectura. Alimenta-se de música, de cinema e de frases que o inspiram para pensar cidades abertas
JOANA AMARAL CARDOSO TEXTO ENRIC VIVES-RUBIO FOTOGRAFIA
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A conversa é cadenciada por toques
de campainha, grandes silêncios
ou turbas de gritos e risos numa
escola de Lisboa que muitos re-
conheceriam em todo o país. Por
Portugal, existem cerca de cem
com esta tipologia, construídas
durante o Estado Novo. Muitos
reconheceriam aqui o ambiente
e a geometria dos edifícios anti-
gos, o soalho de madeira nas salas, os corre-
dores longos perfurados por salas de ambos
os lados, as escadas de mármore com degraus
a resvalar nas extremidades por tantos anos
de miúdos a correr por eles abaixo. Mas esta
não é uma escola qualquer. Aqui, estuda-se
dentro de um prémio.
O arquitecto José Neves aponta-nos essas
marcas nas escadas no edifício principal da
Escola Básica do 2.º e 3.º ciclo Francisco de
Arruda, em Alcântara, e afaga os corrimões de
madeira que agora têm pequenas peças metá-
licas para evitar o que durante anos acontecia
— serem escorregas para os alunos. Mas este é
apenas um espaço entre vários nesta escola-
jardim, cheia de percursos, transbordante de
possibilidades. Depois de parecer que voltá-
mos à “nossa” escola, é tudo novo — caminhos,
atalhos, equipamentos, rampas, um edifício
branquinho e rectilíneo com brise soleil (pára-
sol) à la Corbusier, uma biblioteca que cheira
a livros e a madeiras novas, laboratórios com
mesas altas e mobiliário tipifi cado pela Parque
Escolar, grandes janelas cinematográfi cas.
José Neves é um adulto que conhece os can-
tos à casa e que caminha pelos corredores com
a autoridade de quem ali passou muito, muito
tempo — mas não é ali professor, como podiam
supor alguns olhares inquisitivos de alunos
em princípio de ano lectivo. É professor, sim,
mas agora como convidado no ISCTE, depois
de ter leccionado mais de duas décadas na
Faculdade de Arquitectura da Universidade
Técnica de Lisboa, entre outras universidades
portuguesas. Abriu o seu atelier de arquitectu-
ra em Lisboa em 1991, é casado com a pintora
Maria Capelo e tem duas fi lhas.
Mas este espaço é um pouco seu porque foi
ele que projectou a requalifi cação e ampliação
da Francisco de Arruda entre 2008 e 2011. Está
curioso, quando chega com a Revista 2 em ple-
no recreio grande da manhã, para “ver como é
que eles ocupam esta parte”, dirigindo-se para
um pátio superior, mais recatado. Meninos e
meninas, dos mais jovens que a escola tem (as
idades dos alunos vão dos dez aos 15 anos),
brincam por ali em pequenos grupos. Lá em
baixo, na Praça, como lhe chama José Neves,
são largas dezenas de alunos que se puxam,
empurram, namoriscam, esparramam, saltam
ou cochicham. Para eles, aquela grande ágora
pontuada por bancos de jardim e árvores no-
vas e mais antigas é só o recreio — o recreio da
Chica, a alcunha da escola no bairro.
Mais perto do almoço, José Neves há con-
fessar-nos como lhe agrada a apropriação
também toponímica que alunos e professo-
res fazem de algumas das partes novas do seu
projecto. Como o salão nobre que a escola
muito queria para poder fazer reuniões ou
concertos, “um pavilhão de jardim” aos seus
olhos, mas que para quem vive a escola todos
os dias é “o cubo mágico”.
Cumprimenta quem vai passando e se lem-
bra dele dos anos em que chefi ou a equipa que
projectou a requalifi cação que lhe deu o Pré-
mio Secil 2012. Também se lembram dele de
visitas como esta, exactamente porque ganhou
o Secil e os jornalistas voltaram a olhar para
esta obra, resultado do programa Parque Es-
colar, mais conhecido pelas suas derrapagens
fi nanceiras do que por êxitos arquitectónicos
e funcionais. Lá iremos.
É recebido efusivamente na biblioteca que
desenhou e onde às vezes a professora-biblio-
tecária ultrapassa as janelas de peitoril muito
baixo para levar os alunos para ler na relva,
com mantas e vista para as hortas da escola
e para a Lisboa que se desenrola pela Tapada
da Ajuda abaixo, rumo ao rio e à Ponte 25 de
Abril. “Esta biblioteca podia ser fechada se
eu acreditasse que a cultura, ou a literatura,
é uma coisa fechada, mas agrada-me imenso
a ideia de uma criança estar aqui a ler e le-
vantar os olhos do livro e ver o mundo lá fora
a acontecer.”
José Neves completa 50 anos nos últimos
dias deste ano em que recebeu 50 mil euros
do mais importante prémio de arquitectura
português, depois de já ter sido nomeado para
o Secil em 1998 e 2004, respectivamente pela
sua Casa do Moinho e pelo Edifício C6 e Alame-
da da Faculdade de Ciências da Universidade
de Lisboa. A Francisco de Arruda não foi a
primeira escola que trabalhou ou projectou e
foi a segunda para a qual foi convidado a traba-
lhar no âmbito da Parque Escolar — a primeira
foi a Básica Marquesa de Alorna, também em
Lisboa. Também não foi o primeiro prémio
que recebeu: a Casa do Moinho foi premiada
pela Câmara de Torres Vedras e orgulha-se de
ter ganho vários projectos como o do C6, a Fa-
culdade de Arquitectura da Universidade do
Minho, a Reitoria da Universidade de Lisboa
ou o Centro de Artes do Carnaval, em Torres
Vedras, em concursos públicos. São marcos de
uma carreira que começou porque José Neves
“gostava de desenhar. É — ou pelo menos era,
nesse tempo — o costume”.
Mas também porque “a maior parte dos
meus amigos foi para Arquitectura. Ao mes-
mo tempo, tinha visto a exposição do Alvar
Aalto na Gulbenkian [no início de 1983] e ti-
nha percebido que se podia brincar a fazer
arquitectura. E também por a arquitectura
não ser um trabalho solitário, por ser um tra-
balho colectivo e poder fazê-lo com colegas-
amigos, como os Beatles”. Ao segundo ano,
estava algo desiludido, mas encontrou dois
professores-chave, Daciano da Costa e Duarte
Cabral de Mello, que lhe mostraram que sim,
a arquitectura podia mesmo ser tal como a
imaginava.
Esta é uma escola-jardim, mas também uma
escola-aldeia. Foi assim que a pensou e depois
projectou, e talvez seja assim que ela se torna
numa espécie de súmula do seu trabalho, ou
da sua visão da arquitectura. Também é assim
que o seu discurso passa do singular para o
plural. Daquilo que o move e inspira para aqui-
lo que, no que antes era a Escola Francisco
de Arruda, ele e a sua equipa de dez pessoas
pensaram sobre o projecto original de António
José Pedroso, de 1956.
A Francisco de Arruda “representa já uma
certa maturidade” no trabalho de José Ne-
ves, que a atingiu “já há algum tempo”, diz à
Revista 2 o presidente do júri do Secil 2012,
Manuel Graça Dias. Lembra que Neves “tem
um pensamento seguro e trabalhou com o ar-
quitecto Vítor Figueiredo , o que o terá leva-
do a encontrar-se neste registo de uma certa
sobriedade e de uma modernidade discreta,
mas também no respeito pelo construído pe-
los outros”.
“Há uma frase do [escritor e psicanalista]
João dos Santos que tenho pendurada no
atelier, é uma coisa que me serve muito: ‘Se
não tens uma aldeia, meu fi lho, tens de ir em
busca dela! Um menino não pode viver sem
ter a sua aldeia.’ Primeiro como cidadão,
depois como arquitecto, serviu-me imenso
para pensar nesta escola porque esta frase
contém muitas coisas fundamentais sobre
a possibilidade da nossa participação como
arquitectos no mundo. A escola é um espaço
que tem de ser protegido, mas não pode ser
um panóptico”, entusiasma-se, referindo-se
à ideia do jurista e fi lósofo Jeremy Bentham
de um edifício circular de cujo centro a popu-
lação prisional ou internada pode ser vigiada
de todos os ângulos, a toda a hora. “As prisões
também têm pátios, não é? Um preso também
tem de se recrear”, exemplifi ca, para explicar
que sim, a noção de amplitude de espaço, mas
também da sua diversifi cação, ao criar novos
percursos através de escadas nos sítios certos,
acabar com cul-de-sacs ou criar recantos con-
templativos junto a campos desportivos, foi
essencial como ponto de partida. “Fizemos
tudo para evitar o lado repressivo que os es-
paços das escolas muitas vezes representam
ou carregam. Até porque se aprende tanto
na rua como em casa, nos recreios como na
sala de aula.”
E do recreio damos um pulo ao edi-
fício novo que plantou na única
lateral da praça que estava vazia,
e olhamos pelas grandes janelas e
vemos um pinheiro, noutra a pra-
ça, e voltamo-nos para o outro la-
do e ali está Alcântara. “Este é um
ambiente protegido porque é uma
escola, mas a relação com a cida-
de está sempre presente. Sempre.
Não é uma coisa ensimesmada, não é criar
uma espécie de oásis, isolado. É uma parte
da cidade.”
Passemos ao plural, porque quando tudo
começou e foram feitas as primeiras de “inú-
meras visitas”, “imaginámos uma história, que
estes edifícios tinham sido feitos um de cada
vez, como se fosse uma cidade e tentámos
continuar esse processo”. Depois, “criámos
um percurso pelo jardim”, diz José Neves so-
bre o trabalho da equipa. Porque “a primeira
impressão que tivemos foi deste jardim que
queria abraçar a escola, que vem na conti-
nuidade da Tapada e que é uma coisa muito
rara numa escola pública. Achámos logo que
iria ser um dos temas, dos estímulos e das
coisas mais importantes” neste projecto para
a Parque Escolar, que não só requalifi cou o
edifi cado existente, mas aumentou uma escola
que já era construída em plataformas, quase
em escadinha, a respeitar o relevo, mas com
edifícios de volumetrias muito diferentes.
Agora, além do novo edifício que alberga
biblioteca, serviços administrativos e labo-
ratórios, há também o “cubo mágico” onde
antigamente fi cava o átrio principal da esco-
la — virado para uma rua que estava prevista
nos anos 1950 mas que nunca chegou a sul-
car aquela parte da freguesia de Alcântara — e
foram criados novos balneários e um campo
desportivo coberto.
Manuel Graça Dias considera que “a obra
interpreta o existente de uma maneira mui-
to positiva, discreta e sem qualquer tipo de
alarme, não recusa o que lá estava. Agora,
chegamos lá e parece que sempre foi, ou que
devia ser, assim”. Complementado também
pelo trabalho no paisagismo de Catarina Assis
Pacheco, “passa a ser um espaço de grande
integridade”. “Sentimo-nos bem” no conjunto
do antigo edifi cado e das novas adições, com-
pleta Graça Dias.
Numa manhã soalheira do fi nal de Outubro,
José Neves congratula-se pelo facto de a escola
não apresentar sinais de descontentamento
— os bancos do jardim têm rabiscos e graffi ti
mínimos, há alguma bricolage improvisada
numa ou outra porta mas o arquitecto sen-
te que os utentes têm por ela “um carinho
grande”. Neves tem um apreço fundamental
pela memória. Recorda uma frase do seu an-
tigo professor e depois colega, o arquitecto e
designer Daciano da Costa: “Quando falava
Este é um ambiente protegido porque é uma escola, mas a relação com a cidade está sempre presente. Sempre. Não é uma coisa ensimesmada, não é criar uma espécie de oásis, isolado. É uma parte da cidade”
Da biblioteca, avistam-se as hortas da escola, a Tapada da Ajuda e a cidade que se desenrola até ao rio. Às vezes, como o peitoril das janelas é baixo, a professora--bibliotecária convida os alunos a “saltar” para estenderem mantas na relva. Como diz José Neves, “esta biblioteca podia ser fechada se eu acreditasse que a cultura, ou a literatura, é uma coisa fechada, mas agrada-me a ideia de uma criança estar aqui a ler e levantar os olhos do livro e ver o mundo lá fora a acontecer”. Em baixo, o pátio a que o arquitecto se refere como a praça e os miúdos como o recreio da Chica, a alcunha da escola no bairro
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do mundo construído, falava ‘da vassoura à
catedral’. Não fazemos só catedrais, também
não fazemos só vassouras.” Os edifícios pre-
existentes, os tais em que várias gerações de
portugueses se reconhecerão a cada passo,
“estão um bocadinho entre isso, têm uma ar-
quitectura muito trivial, muito pragmática”.
Ao requalifi car, não quis amputar, muito me-
nos aculturar.
“São edifícios que nos apeteceu imedia-
tamente salvar. E isso tem que ver com um
princípio que transporto comigo e que é fun-
damental: só se deve destruir ou substituir
aquilo que somos capazes de fazer melhor. E
neste caso não havia circunstâncias que nos
levassem a querer destruir o que encontrá-
mos — e uma delas é sempre, claro, o dinheiro
disponível — até porque havia uma memória
que tinha de se salvar”, diz.
Manuel Graça Dias contextualiza: “Estamos
perante uma obra que corresponde a um gé-
nero, a um tipo que vai começar a ser cada
vez mais frequente: são obras de recupera-
ção e conversão de estruturas já existentes,
são as obras do século XXI nas cidades eu-
ropeias, que já têm a maior parte dos seus
equipamentos resolvida, que têm o problema
da habitação quase resolvido. É interessante
que o prémio Secil expresse essa nova atitude
perante o património construído.”
E, acrescenta Graça Dias, “também coincide
com um tipo de obra feita nos últimos quatro,
cinco anos em Portugal devido ao impulso
dado pela Parque Escolar”, sendo que esta edi-
ção do Secil, prémio atribuído anualmente de
forma alternada à arquitectura e à engenharia,
tinha este ano mais alguns projectos no âmbito
da Parque Escolar a concurso. Uma das polé-
micas que envolvem o programa de moder-
nização de escolas Parque Escolar prende-se
com as suas derrapagens fi nanceiras — até ao
fi nal de 2012, o programa já tinha ultrapassado
em mais de 400% as verbas previstas quando
do seu lançamento, em 2007. O valor de adju-
dicação da obra na Escola Básica Francisco de
Arruda foi de 8,3 milhões de euros e, no fi nal,
as contas saldaram-se em 8,8 milhões.
José Neves frisa que é importante ter con-
texto, saber em que foi gasto o dinheiro — “É
uma parte muito importante do trabalho de
um arquitecto tomar essas circunstâncias,
não como obstáculos, mas como dados para
trabalhar que se transformam em estímulos
para o projecto. Não faz sentido qualquer
queixume sobre isso.” Foram 8,8 milhões para
“8000m2 de construção reabilitada, 5000m2
de construção nova, cerca de 1000m2 de
espaços e recreios cobertos e 18.000m2 de
espaços exteriores”, enumera, acreditando
que os custos das obras públicas devem ser
abordados com “ponderação e conhecimen-
to de facto”. “Por exemplo, no que toca às
chamadas ‘derrapagens’ fi nanceiras, é muito
importante compreender-se claramente a di-
ferença entre estimativa, orçamento, valor de
adjudicação, valor fi nal da obra, adicionais,
erros, omissões, trabalhos a mais, trabalhos
imprevistos, etc. É que diferenças entre os va-
lores adjudicados e os valores fi nais das obras
existem sempre, na realidade, em qualquer
situação e em qualquer parte do mundo, so-
bretudo tratando-se de obras de reabilitação
de edifícios existentes. E é precisamente por
isso que existem limites legais estabelecidos
pelo CCP para essas diferenças justifi cáveis.
A obra da Escola Francisco de Arruda fi cou,
felizmente, muito abaixo desses limites.”
A Parque Escolar bateu-lhe à porta duas ve-
zes, convidando o arquitecto directamente
para um projecto. Esse modo de funciona-
mento foi uma das principais críticas à Parque
Escolar e José Neves reitera-se como defensor
dos concursos públicos: “O Alvar Aalto costu-
mava dizer que os concursos, além do mais,
são uma espécie de prática desportiva — ca-
ríssima e extenuante! — para os arquitectos se
manterem em forma.” Acredita que “são uma
das modalidades mais indicadas, de uma for-
ma geral, para seleccionar um projecto”, mas
ressalva: “Quando bem feitos, é claro, já que,
nos últimos anos, a esmagadora maioria dos
poucos concursos públicos que tem havido
tem sido lançada em termos completamente
inaceitáveis — digo mesmo degradantes —, o
que difi cilmente poderá deixar de se refl ectir
nos resultados fi nais”, diz.
Gosta de escolher palavras, subli-
nhando quando lhe agradam ou
corrigindo-se para que só lhe ou-
çamos aquilo que quer mesmo,
mesmo dizer. Também gosta
de assinalar aquelas de que não
gosta mesmo nada ou que foram
estragadas pelo uso corrente —
“agora, usa-se muito a palavra
‘conceito’, serve para tudo; os
meus alunos estão proibidos de a usar nas
aulas”. Ou frases feitas. “Há uns dias vinha a
ouvir um governante nosso na rádio que na
mesma frase repetiu ‘tempo é dinheiro’ cinco
vezes”, exaspera-se, sorridente. “É a maior
mentira que pode existir, porque dizer que
tempo é dinheiro é dizer que a vida é dinheiro,
que é só dinheiro. O tempo em arquitectura é
fundamental para se conseguir fazer um tra-
balho ponderado, intenso, que acerte — para
conseguir identifi car os problemas.”
À nossa volta, os alunos da educação espe-
cial apanham sol e brincam, e outros, man-
dados sair da sala de aula pelos professores,
amuam rumo às ofi cinas. Aparecem de todos
os lados. Há hoje uma continuidade na esco-
la Chica, inspirada numa característica das
cidades que José Neves considera fundamen-
tal: “Ter várias alternativas para se ir de um
sítio para outro ou para se estar num sítio ou
noutro. Fizemos tudo por tudo para enfatizar
algumas dessas sugestões que já existiam nes-
ta escola. E agora há articulações, caminhos,
pequenas escadas, que passam a permitir uma
deambulação por este espaço. ‘Deambulação’.
Gosto muito desta palavra. É que sem possibi-
lidade de deambulação não há cidade.”
E essa continuidade, de memória e de per-
cursos, é um termo caro ao arquitecto. Tanto
que, apesar de também estar desgastado — “se
ligarmos agora a TSF, algum político estará a
dizê-la” —, é o tema da tese de doutoramento
em que está a trabalhar. Nem lhe lembramos
que esses abusos são tais que a “evolução na
continuidade” de Marcello Caetano há muito
se tornou um dichote do futebolês.
A tese “A Arquitectura como trabalho de
continuidade: refl exões a partir de uma prá-
tica do projecto” fá-lo falar do arquitecto Fer-
nando Távora e do seu livro Organização do
Espaço. “Os arquitectos trabalham imenso
com os mortos, como trabalham com e para
os vivos, como para aqueles que vão nascer.
Grande parte do que está aqui, este chão, es-
tes edifícios, a Tapada, foi feito por pessoas
que hoje estão mortas. Esta ideia a que Távo-
ra chama ‘colaboração vertical’ para mim é
uma evidência absoluta”, diz, acrescentando
que a ideia de continuidade no que toca ao
ambiente construído é também perceber que
“os limites de um projecto são muito maiores
do que ele. Porque ele passa a fazer parte de
uma outra coisa”.
O tema que lhe é tão caro na carreira e numa
futura dissertação parece jogar directamen-
te com o projecto da Francisco de Arruda.
Integrar, dar dois passos atrás para ver a big
picture. Uma continuidade que não é só reve-
rência ao já feito e que também pode ser rup-
MARGARIDA DIAS/ CORTESIA JOSÉ NEVES
LAURA CASTRO CALDAS E PAULO CINTRA/ CORTESIA JOSÉ NEVES
LAURA CASTRO CALDAS E PAULO CINTRA/ CORTESIA JOSÉ NEVES
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Prémio Pessoa 2008, opinou há um par de
semanas que “as pessoas estão fartas de espec-
tacularidade na arquitectura”. O star system
dos arquitectos é hoje um dado adquirido, os
grandes nomes são celebridades e as grandes
obras persistem, mas parecem nascer cada
vez mais onde há ainda dinheiro, a oriente,
médio ou extremo, por exemplo. José Neves
percebe a reacção a tal tendência forte e opu-
lenta, mas “há lugar para tudo”. Porque “há
situações em que não há nada mais bonito do
que o espectáculo urbano”. Mas se sublinha
que “a arquitectura não é um espectáculo,
é ela o próprio palco”, por outro lado hoje
“as pessoas estão desejosas de fazer parte de
um espectáculo que seja de facto uma festa
e em que sejam simultaneamente protago-
nistas e espectadoras — as cidades na melhor
das hipóteses são isso, não são coisas tristes
e ensimesmadas”.
É hora de almoço e já há adolescentes à
porta das salas, sentados no chão ou empo-
leirados nos varandins do edifício novo. Esta
escola tem esquilos, ruivos por sinal, que an-
dam a roer pelas copas das árvores do pátio
e que são orgulho de funcionários e alunos.
Nunca os chegamos a ver. Lá em baixo, fi cam
as ofi cinas, que antes tinham baixos-relevos
de cenas “de façanhas colonialistas, de terror
gore”, lembra o arquitecto, que até apoiava
que se mantivessem para poderem ser discu-
tidos de forma crítica, mas a escola decidiu
removê-los. Ao longe, ouvem-se bolas e cor-
ridas. Vêm do pavilhão desportivo coberto,
“a que chamámos pomposamente Templo”,
diz José Neves.
Falamos do lado lúdico e infantil da des-
coberta de caminhos e carreiros, das acessi-
bilidades e labirintos nas cidades. Descemos
um desses caminhos. Os cerca de 700 alunos
da escola fi cam para trás. Fica a suspeita de
um esquilo ruivo e um caminho que desce
para a cidade que se volta a fazer ouvir. “Às
vezes custa voltar às obras, é preciso largá-
las”, sorri.
tura. Uma escola enquanto espaço protegido,
de aprendizagem e segurança, mas também
uma peça do grande e vivo puzzle que é uma
povoação, uma aldeia, uma cidade, um jar-
dim. “Mas isto é muito difícil hoje, porque é
a ordem do dia, na política como em tudo, a
dispersão é uma espécie de convite que nos
é feito todos os dias.” Lamenta a dispersão,
a especialização, a circunscrição das coisas.
“Brecht costumava dizer: ‘Comecem pelas
bad new things, não comecem pelas good old
ones’.” Penso que o trabalho do arquitecto
passa muito por saber, em cada instante, por
qual delas começar.”
E depois levantamo-nos para conhecer o
novo átrio, que baptizou de Stoa (o nome na
arquitectura grega antiga dado às passagens
cobertas ou pórticos) — “chamámo-lo assim
com a máxima pretensão”, sorri. É a nova en-
trada da escola que se oferece à praça (o re-
creio) e “tenta dar suporte ao que uma escola
é, ao que a vida é, ao que a condição humana
é, que é estarmos sozinhos e em colectivo”.
Fica no edifício novo, onde uma funcionária
o cumprimenta e a luz que entra pelos vãos
abertos e fechados vai dando espectáculo ao
longo do dia. “Sem as variações da luz como
passagem do tempo, não há arquitectura. Só
há arquitectura em caves por relação com essa
luz ausente.”
Lá de cima, de uma das pontes de estadia
que marcam o primeiro piso do edifício, feitas
para convívio dos alunos, espreitam cabeças.
São demasiado grandes, coloridas e fazem
caretas. São cabeçudos, representações de
bonecos algures entre as fi guras populares e
a cultura pop, sentados nas pontes que ter-
minam em enormes janelas onde, “à medida
que vamos andando — talvez isto tenha que
ver com o cinema — vamos tendo uma série
de quadros: um pinheiro, a praça” e, do outro
lado, “a ponte sobre o Tejo, os carros, o rio”.
Um travelling.
Aí está a continuidade outra vez, porque
esta escola cuja “transfi guração é total” man-
teve memória e virtudes que já pertenciam
ao espaço. “Acho que é sempre isso que os
arquitectos estão a tentar fazer. As coisas têm
raízes, estão agarradas a sítios. Há muitos ca-
sos em que a própria situação fi ca no nome
da obra, como a Casa da Cascata do Frank
Lloyd Wright. Mesmo uma obra supostamente
menos ligada ao sítio, como a Casa da Música,
no Porto — a sua infl uência na Rotunda da
Boavista e na cidade é muito maior do que o
objecto que aparece nas revistas.”
Em caso de dúvida, José Neves faz-nos um
desenho. Num caderno preto onde há notas e
muitos outros esboços, delineia o que é agora
esta escola. Tornou-se arquitecto por isto e
ainda hoje é um arquitecto disto — “continuo a
desenhar imenso e não só para a arquitectura.
Não trabalho em computador. A equipa sim,
mas eu não sei sequer desenhar em compu-
tador. É uma questão de tempo e de necessi-
dade, não vou pensar para o computador. O
desenho dá-nos esse tempo”.
Da equipa que trabalhou no seu projecto pa-
ra a Francisco de Arruda, muitos emigraram.
“Receber um prémio nesta altura [do país]…
sinto-me a receber um prémio no meio de um
monte de escombros e isso cria sentimentos
diferentes.” O reconhecimento, ainda que
no meio de ruínas e de rádios que parecem
dar sempre Beatles a menos e políticos com
bengalas de linguagem a mais, “faz-me querer
trabalhar mais e melhor… apesar do absurdo
de muitos dos regulamentos e da legislação
que hoje existem e que fazem com que só com
uma grande dose de inconsciência é que um
arquitecto possa querer continuar a arriscar
trabalhar, se tiver trabalho, é claro... ”
Ainda assim, é claro que o Secil foi um
Actualmente, José Neves, um apai-
xonado pelo cinema de Buñuel,
está também a construir uma co-
lecção de textos saídos de confe-
rências que reuniram arquitectos
e cineastas portugueses na Cine-
mateca em 2007, do seu amigo
Pedro Costa a Manoel de Olivei-
ra, passando por Paulo Rocha
ou Souto Moura. O tema eram os
ricos e os pobres no cinema e na arquitectu-
ra portuguesa e esse ponto de união, o fazer
omeletes com poucos ovos, fá-lo concluir que
o que une o que há de português nestas duas
actividades tem que ver com “uma espécie de
relação com o real que permite que se trans-
formem abóboras em carruagens de princesa,
para usar uma imagem que o arquitecto Vítor
Figueiredo gostava de usar”.
A forma como consome cinema, arquitec-
tura, livros ou música não lhe permite fazer
escolhas de grandes infl uências ou gostos. Só
a memória mais imediata e o fl uxo da con-
versa. “Há pouco tempo, revisitei a obra do
Borromini em Roma, que não tem nada a ver
com o que eu faço, mas depois talvez tenha
tudo a ver. Uma igreja pequenininha numa
esquina, San Carlo alle Quattro Fontane. É
feita com coisas simples — os elementos clás-
sicos —, colunas, arcos, frontões, mas tem uma
complexidade incrível, e estava a lembrar-me
que o John Ford, de que gosto imenso, faz a
mesma coisa no cinema. Pega em coisas muito
simples, a paisagem, o cavalo, as palavras, as
personagens… e depois há uma complexidade
muito grande.”
A par dos Beatles, os Kinks “fi zeram canções
que ouço muitas vezes logo de manhã para ter
o tal optimismo na vontade — os Kinks são isso,
o pessimismo na inteligência e o optimismo
na vontade”, diz.
Na era em que o espectáculo é invasivo e
omnipresente, feito de realidade mais ou me-
nos televisiva e contaminando quase todos os
sectores, o arquitecto João Carrilho da Graça,
O arquitecto a desenhar. Na página ao lado, de cima para baixo, concurso público para o Conservatório de Música de Coimbra, 2004 (c/ arq. João Pernão); Centro de Artes do Carnaval em Torres Vedras em maqueta com vista da praça e vista geral; desenho de viagem feito por José Neves em 2000: a Piazza dell’Anfiteatro em Lucca, construída sobre as ruínas de um anfiteatro romano, serviu como referência para o projecto, em curso, do Centro de Artes do Carnaval, em Torres Vedras
momento “maravilhoso”, lembrando-lhe os
grandes nomes que o antecedem, como o seu
mestre Vítor Figueiredo, e outros grandes ar-
quitectos como o vencedor de 2010, Eduardo
Souto Moura, com o projecto para a Casa das
Histórias, em Cascais. Este é o país do surpreen-
dente rácio Pritzker: dois Nobel da arquitectura
para menos de dez milhões de habitantes. É a
conta do costume, que valida que se diga que
a arquitectura é uma área de excelência em
Portugal. Mas não embandeiremos em arco —
“Há muito boa arquitectura em Portugal, mas
todos sabemos que nas últimas dezenas de anos
é uma excepção — uma excepção magnífi ca
mas muito pontual. A maior parte do que se
constrói é pavoroso.” E hoje há desemprego, e
muito, na arquitectura, há paralisia nas obras
públicas e consequente contracção nos ateliers
e os jovens arquitectos são os que mais sofrem.
Manuel Graça Dias disse mesmo, quando da
entrega do Secil 2012 em Julho, “que na pró-
xima edição se notará um menor número de
candidatos” porque se “não há trabalho, não
se constrói e isso vai começar-se a notar”. José
Neves, preocupado, inspira-se citando o fi ló-
sofo e fundador do Partido Comunista italiano
Antonio Gramsci: “Temos de ser pessimistas na
inteligência mas optimistas na vontade.”
38 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
ALEXANDRA LUCAS COELHOATLÂNTICO-SUL
MODERNISMO MÁGICO 1
A minha última manhã na Califórnia foi um
vislumbre do que o século XX sonhou algures:
a Casa Eames, esta que se vê na fotografi a, com
os seus dois habitantes dentro, Charles e Ray
Eames. Ele morreu em 1978, ela exactamente
dez anos depois, dia por dia.
2Mais de um mês passado sobre essa visita,
leio um livro extraordinário que aparente-
mente não tem que ver com os Eames mas
tem tudo a ver com a experiência do que
nos rodeia, natural ou construído: O Verão
de 2012, de Paulo Varela Gomes. Há uma
passagem em que o narrador aponta a possível
“existência de três estádios” na evolução da ma-
nufactura: “um estádio ainda camponês”, em que
“as pessoas não conhecem o valor da exactidão
excepto no fabrico de objectos de tipo tradicional”
(como o protagonista do livro observa na Jamai-
ca); “um estádio semi-industrial ou semi-urbano
caracterizado pela mediocridade conceptual mas
também pelo requinte de execução” (como nos
balaústres do Jardim Botânico da Ajuda observa-
dos pelo viajante inglês William Beckford em fi ns
do século XVIII); “e um estádio fi nal, plenamente
manufactureiro, em que a concepção e a execu-
JIM SUGAR/CORBIS
O extraor-dinário acontecia através do que está inteiramente livre da servidão do útil. Se Charles vinha do modernismo, Ray trouxe a magia
com o alemão Hans Hofmann, mestre do expres-
sionismo abstracto. Charles era um ambicioso re-
solvedor de problemas que ainda não conseguira
descolar como arquitecto, autor (e co-autor, ao
lado do fi nlandês Eero Saarinen) de ousados mas
inconcretizáveis projectos de cadeiras e casas. Ray
era uma artista com um domínio notável da cor
e da forma, e uma ligação natural aos universos
arcaicos. A fusão dos dois num quotidiano em que
trabalho foi prazer e prazer foi trabalho alterou a
percepção das formas que nos rodeiam até hoje.
Levar o prazer a sério era um lema dos Eames, e
isso vê-se na colina de Pacifi c Palisades, em Los
Angeles, para onde os Eames se mudaram na noite
de Natal de 1949.
6Vindos ao longo da praia de Santa Mónica,
subimos por uma estradinha sinuosa cheia
de árvores. Era uma manhã azul, na vira-
gem do Verão para o Outono. Tínhamos
marcado a visita por mail, como o site da
Casa Eames aconselha. Não é uma casa-mu-
seu, os visitantes não podem percorrer o interior,
essa possibilidade está reservada à angariação de
fundos, é excepcional e muito cara. Mas não deixa
de estar acessível: a maior parte das fachadas é de
vidro, o que permite ver quase tudo para dentro,
incluindo a forma como as árvores e o céu alastram
pelo interior, numa composição mista de natural e
construído. Os únicos espaços invisíveis são quarto
e casa de banho, na mezanine de onde foi tirada a
fotografi a que aqui vemos. De resto, a grande sala
comunica com a cozinha e a copa, e ao longo deste
espaço aberto cabem várias atmosferas, individu-
ais e colectivas, recolhidas e expostas. Olhando de
fora, a Casa Eames é possível imaginar tudo nela:
leituras a sós, conversas a dois, mesas de amigos,
grandes festas. E nada nela parece uma montra ou
uma demonstração, é uma casa totalmente habi-
tada, em que a herança modernista (austeridade
da estrutura, clareza dos materiais, respiração da
escala) é compatível com milhares de objectos, por
vezes quase pequenos altares, totens, presenças
indígenas, pré-coloniais ou pré-adultas, que abrem
o tempo em várias direcções e o espaço em várias
geografi as (não apenas nos padrões orientais, mas
na própria lógica oriental de sala de estar, com
sofás baixos, almofadas, panos, tapeçarias). Os
Eames, que também fi zeram fi lmes, tanto fi zeram
os fi lminhos que a América optimista da IBM pe-
dia, refl exos da curiosidade científi ca inesgotável
de Charles, como fi zeram fi lminhos com a festa
mexicana dos mortos ou a chegada do circo à cida-
de. Juntos, tudo lhes podia interessar. Nada podia
acontecer sem trabalho, trabalho, trabalho. Mas o
extraordinário acontecia através do que está intei-
ramente livre da servidão do útil. Se Charles vinha
do modernismo, Ray trouxe a magia.
7A casa encosta à colina e o jardim em frente
nem é bem jardim: árvores crescendo num
declive, tempo alterando luz e sombra, den-
sidade e leveza. Em 1949, o Pacífi co estava
todo à vista, hoje é um relance. Na manhã
em que lá estivemos, havia um baloiço pen-
durado num tronco de onde era possível contem-
plar a fachada, toda feita de partes pré-fabricadas
industriais, com um rectângulo laranja e outro
azul, espécie de tela de Mondrian. E fi cámos o
tempo que nos apeteceu.
http://blogues.publico.pt/atlantico-sul/
ção qualifi cadas se banalizam, ao ponto de a es-
magadora maioria dos objectos deixarem de ter
qualquer interesse, fi cando confi nados ao mundo,
tristíssimo, do design”.
3Esta passagem fez com que me viesse parar
às mãos uma colectânea de Hal Foster, De-
sign e Crime, título devedor do arquitecto
austríaco Adolf Loos, que em 1908 escre-
veu Ornamento e Crime. Loos era “para a
arquitectura o que Schönberg era para a
música, Wittgenstein para a fi losofi a e Karl Kraus
para o jornalismo, a purga do impuro e do supér-
fl uo na sua própria disciplina”, resume Foster. O
ornamento, a infl ação do design, segundo Loos,
era uma espécie de degeneração, de crime, que a
evolução da cultura devia remover. E este manda-
mento modernista projectou-se sobre o século XX
até o festim pós-moderno vingar a austeridade.
4Então, pensando na Casa Eames, vejo nela
a superação da tese modernista e da antíte-
se pós-moderna, ou seja, uma síntese que
antecipava o próprio confronto. Quando
o projecto acabou de ser construído, os
pós-modernos ainda nem tinham levan-
tado a cabeça mas Charles
e Ray Eames já estavam
numa espécie de pós-pós-
modernismo. Um nome
possível para esse estádio
é modernismo mágico.
5O documentário
Eames: The Archi-
tect and the Pain-
ter (que vi por um
envio providencial
do crítico de design
Frederico Duarte e passou
recentemente na televisão
portuguesa) reúne imagens
deslumbrantes do universo
Eames mas talvez nenhuma
me tenha impressionado
como a carta em que Char-
les pede a sua ex-aluna Ray
Kaiser em casamento, nu-
ma letra infantil e trunca-
da: “Dear miss Kaiser, I am
34 (almost) years old, singel
[sic] (again) and broke. I lo-
ve you very much and would
like to marry you very very
soon.” Nesse ponto há um
asterisco para o desenho
ao lado, de uma mão com
uma aliança e as frases:
“Soon means very soon” e
“What is the size of this fi n-
ger?”, com uma seta para
o anelar. O conjunto é tão
pueril como um ímpeto de
primeiro amor, mas Char-
les já estava casado há mais
de uma década e tinha uma
fi lha pré-adolescente quan-
do em 1940 conheceu Ray,
na Cranbrook Academy of
Art, perto de Detroit. E ela,
sendo sua aluna, tinha ape-
nas menos cinco anos que
ele, já estudara pintura
88,90€,90€
Todas as5.ª por maisTodas as5.ª por mais
ss
BRAINIAC
AS QUINTAS-FEIRAS VÃO PASSAR A SER UM DIA MUITO TRISTEPARA TODOS OS VILÕES. EXCEPTO ESTA.
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19.º LIVRO “SUPER-HOMEM: Legião dos super-heróis”, quinta, 14 de novembro, POR MAIS 8,90€ com o Público.
Esta edição leva-o ao futuro. E ao Super-Homem também. Os maiores heróis do século XXX estão ameaçados por um movimento xenófobo,o que os leva a chamar o Homem de Aço. Será que os consegue ajudar, ou sofrerá o mesmo destino que a Legião dos Super-Heróis? Geoff Johns e Gary Frankconstroem esta ponte entre o presente e o futuro, onde a Legião enfrenta a crise da sua super-identidade. Uma edição em capa dura, por um preço bem acessível.A pedido dos leitores, eis a colecção que todos esperavam. Ou melhor, quase todos.
as quintas-feiras vão passar a ser um dia muito tristepara todos os vilões. excepto esta.
wLL,J79�(!�,J<
40 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
criança de seis(!) anos, em
Amarante, fez fechar a es-
cola por agressividade des-
controlada, sem que hou-
vesse um adulto capaz de
a conter. Noutras escolas,
as lutas entre os alunos são
frequentes e acabam com a
intervenção da PSP.
A professora tem razão
em lembrar as “equipas
multidisciplinares”, pre-
vistas no Estatuto do Alu-
no, anunciado com pom-
pa pelo actual Governo.
Prometiam “acompanhar
em permanência” os alu-
nos com difi culdades, mas
todos sabemos que quase
não existem!
É cada vez mais urgente
criar “corredores verdes”
de acesso rápido a estru-
turas da Saúde ou da Se-
gurança Social, de modo a
que comportamentos de indisciplina, de risco ou
de violência encontrem resposta adequada. Sem
isso, o desespero vai continuar a aumentar nas
nossas escolas.
DANIEL SAMPAIOPORQUE SIM
DESESPERO NAS ESCOLAS T
ranscrevo email enviado por professora do
3º ciclo: “Medidas disciplinares? Não são
a solução... A minha preocupação é real,
vivida no dia-a-dia. Sou uma professora que
não pode continuar calada. Até quando va-
mos continuar a ver alunos em sofrimento,
resultado de causas diversas… famílias desestru-
turadas, abandono, alcoolismo, violência domés-
tica, pobreza, fome…, agravadas pela situação de
austeridade que afecta cada vez mais famílias,
sem se encontrarem as respostas mais adequadas
ou esperar por elas, tempo de mais?
“Muitos destes alunos devido aos seus com-
portamentos e atitudes acabam por ser alvo de
medidas disciplinares... mas são crianças e jo-
vens que precisam urgentemente de respostas
adequadas, de uma forma continuada, até que
os seus problemas sejam resolvidos… a solução
para os seus problemas não são as medidas dis-
ciplinares, previstas no actual Estatuto do aluno
e ética escolar!
“As equipas multidisciplinares previstas nesse
Estatuto precisam de recursos humanos especia-
lizados, que pertençam à escola ou que trabalhem
em entidades/instituições e façam com estas um
verdadeiro trabalho de articulação, que dêem res-
postas adequadas para cada caso, contextualizadas
e em tempo útil.
É urgente a prevenção, o acompanhamento
Sem “corredores verdes” de acesso rápido a estruturas da Saúde ou da Segurança Social, o desespero vai continuar a aumentar nas nossas escolas
e tratamento dos problemas que afectam mui-
tos dos nossos alunos, para que às suas difíceis
histórias de vida não se somem mais casos de
insucesso escolar (…)”
Esta professora não está sozinha no seu protes-
to. Todas as semanas me chegam cartas semelhan-
tes, pedindo que não esqueça a questão da escola.
Procuro não desiludir, mas sobretudo não cesso
de incentivar a que também escrevam e tomem
posição sobre o que se passa em todo o país.
A realidade é preocupante. A indisciplina tor-
nou-se (infelizmente) um signo desta geração: estar
desatento na sala de aula é a regra e quem pres-
ta atenção é muitas vezes apelidado de “cromo”.
Os professores, sem apoio e sem formação para
lidar com alunos problemáticos, desdobram-se
em gritos, faltas e participações disciplinares, sem
que a escola promova medidas adequadas para
melhorar a situação. Alguns docentes fogem das
metodologias activas (trabalho de grupo, pesquisa
na Net, exposição oral de trabalhos efectuados por
alunos, leitura partilhada de textos) e falam sem
parar durante a aula inteira, provocando bocejos
e mais turbulência por parte dos estudantes. Os
directores da escola aparecem de vez em quando
e oscilam entre recomendações paternalistas e
ameaças de suspensão. Os alunos submissos so-
frem em silêncio e não sabem a quem pedir ajuda.
Depois dos graves incidentes em Massamá, uma
NUNO PACHECOEM PÚBLICO
A MÚSICA NO TÚNEL DO TEMPO A
gora que chegámos a Novembro, sabem
quem tem discos novos para lançar? Os Be-
atles. Jimi Hendrix. Os Doors. Janis Joplin
está no Lyceum Theatre, na Broadway, e
Joni Mitchell no CCB. Não, não voltámos
aos anos 60, estamos em 2013, a música é
que entrou no túnel do tempo, por obra e graça das
editoras que não param de revolver os baús.
É possível um disco novo dos Beatles? É. Vai ser
lançado amanhã, 11 de Novembro, e contém num
CD duplo seis dezenas de canções registadas nos
estúdios da BBC e até agora inéditas. Quem ouviu
o primeiro CD da série sabe do que se trata: re-
gistos ao vivo, nos estúdios londrinos, de canções
próprias ou alheias (há versões de Budy Holly, The
Marvelettes ou das Shirelles, como no volume ante-
rior havia de Carl Perkins, Chuck Berry ou Smokey
Robinson) com conversas pelo meio, uma festa. Live
at the BBC-2 traz-nos os Beatles como se tivessem
tocado ontem e alguém viesse, a correr, trazer-nos a
gravação. Não são restos, é uma escolha. Até porque
o baú ainda está cheio: o primeiro volume (agora
também remasterizado) tinha 69 faixas, o segundo
tem 63 mas, ao todo, os Beatles gravaram 275 actu-
ações para a BBC entre 1962 e 1965. Um fi lão.
No que toca a Jimi Hendrix, o disco que se anun-
cia é também integralmente novo (embora já andas-
se por aí, esmaecido em registos piratas) e acaba
de chegar ao mercado mundial com o título Miami
Pop Festival. Tem o registo sonoro da actuação do
genial guitarrista em Miami, a 18 de Maio de 1968,
mas não vem só. A par do CD é editado um DVD
com (mais) um documentário (o título, Hear My
Train a Comin’, foram buscá-lo a uma das canções
tocadas no festival) que traz, nos extras, 13 temas
em vídeos inéditos: do Miami Pop Festival, mas
também do New York Pop Festival (1970), do Love &
Peace Festival (este gravado em 1970 na Alemanha,
12 dias antes de ele morrer) e um registo de Purple
Haze no Top of The Pops britânico, em 1967.
Dos Doors de Jim Morrison, cujo baú tem vindo a
ser metodicamente remexido nas últimas décadas,
foi descoberto mais um punhado de vídeos inéditos
que vão ser lançados a 25 de Novembro em DVD e
Bluray intitulados R-Evolution. Promete 17 temas,
em parte gravados para televisão. E, dizem os edi-
tores, terá um livrinho de 40 páginas a explicar tu-
do. Para os fãs dos Doors,
agora que Manzarek tam-
bém morreu, já terá lugar
marcado na estante.
O caso de Janis Joplin é
mais surpreendente. Não
há nenhum disco novo (o
fi lão da cantora texana já
foi muito gasto) mas sim
um espectáculo na Bro-
adway, no Lyceum The-
atre, intitulado A Night
With Janis Joplin. E é, na
verdade, uma noite com
ela. Por inexplicável passe
de mágica, Mary Bridget Davies (34 anos, nascida
em Cleveland), cantora de blues de voz límpida nos
seus próprios discos, transfi gura-se quando sobe
ao palco para dar corpo à personagem de Janis.
Como se pode ver pelos vídeos no YouTube ou no
site da Broadway (onde o espectáculo, estreado em
Outubro, continua), a transfi guração de Davies é
espantosa. Leva a arte de representar do corpo e à
voz (que ali soa enrouquecida) e cria a ilusão de que
Janis Joplin renasceu. Confi ram, vale a pena.
Joni Mitchell é outro caso. A genial cantora e
compositora canadiana, agora com 70 anos, vai ser
cantada a várias vozes no CCB, no âmbito do Misty
Fest, na noite de 14 de Novembro. Joining Mitchell,
assim se chama o espectáculo (excelente, a ideia
do título), partiu de uma ideia de Carmo Cruz, da
Uguru, e junta as cantoras Amélia Muge (direcção
artística, a direcção musical é de Filipe Raposo),
Aline Frazão, Mafalda Veiga, Ana Bacalhau, Luísa
Sobral, Cati Freitas, Fábia Rebordão, Sara Tavares,
Márcia e Manuela Azevedo. António Jorge Gonçal-
ves fará desenhos digitais, ao vivo.
E já que passámos do universo musical anglo-
saxónico ao português, outra boa notícia: vai sair
este mês uma caixa com os sete álbuns da Banda do
Casaco, remasterizados por José Fortes, com faixas
inéditas, um CD extra (com gravações dos Musica
Novarum, Daphne e Family Fair, nas raízes do gru-
po) e um DVD com gravações ao vivo entre 1975 e
1984. Como se vê, a memória musical está viva e
recomenda-se. Assim estivesse tudo o resto.
Novidades? Beatles, Hendrix, Janis Joplin, Doors. Há ainda Joni Mitchell. E a Banda do Casaco
2 | Domingo 10 Novembro 2013 | 41
UM MILAGRE SEXYGuião do pacote da reforma do Estado do néctar de fruta, por Pires de Lima: “Seja o que for que não vai comer, este é o acompanhamento ideal. Um governo líquido e sem açúcar adicionado que combina bem com qualquer austeridade. Teor de sumo de troika de 99%. Um vez aberto, guarde no frigorífi co”
António Pires de Lima (no meio, é
Magalhães como o computador do
Sócrates, do Hugo Chávez, e também do
presidente Maduro da Venezuela que an-
tecipou o Natal para Novembro, mas es-
queçam, vamos tratar de milagres e de fe-
licidade a sério) é um linguista português que já
cá fazia falta, sem dúvida.
O principal contributo de António Magalhães
Pires de Lima para a língua portuguesa foi o rigo-
roso “programa de ajustamento” e o “choque de
expectativas” que aplicou nalgumas palavras. Por
exemplo, a fenómenos só explicáveis por interven-
ção sobrenatural, chamados “milagres”, tornou-os
acessíveis a qualquer desempregado com curso su-
perior que durma debaixo da ponte. Ou a alguém
(um dos 100 mil portugueses que emigraram num
ano) que vá atravessar os Pirenéus até encontrar
um café onde se coma uma sandes de afi ambrado
sem pagar 23% de IVA.
Pires de Lima (Lisboa, 7 de Abril de 1962) foi
sucessivamente administrador de empresas, po-
lítico, vendedor de cafés, de sumos, de cervejas e
de promessas de ministro. Tomou posse da pasta
da Economia a 24 de Julho de 2013. Precisamente
180 anos depois de Lisboa ter sido tomada pelas
tropas liberais do Duque da Terceira, um ultrali-
beral que se diz “bom soldado” tomava em mãos
uma economia de terceira ordem. Pouco depois,
decretava que já estava tudo conquistado.
Portugal vive um “milagre económico”. E o ver-
bo se fez carne (ou osso) e a divina prova é um
ministro da Economia que aceita como bom tudo
aquilo que mais atacou — brutal subida de impos-
tos, corte cego de salários e pensões, austeridade
sem investimento, etc. — antes de lhe darem o lugar
e a honra de “servir a pátria”.
Assim será até recuperarmos a “soberania fi -
nanceira”. Um milagre económico que é fruto do
“esforço dos empresários”. Sem dúvida, está na
cara, reconhecemos este tipo de milagres à pri-
meira vista, lembram-se da Alemanha e do Japão
todos escaqueirados pela II Guerra? E de repen-
te… tcharan! Este milagre é português, mas tem o
mesmo nariz, a tal expressão próspera nos olhos,
sem tirar nem pôr. Passou por aqui a correr, conti-
nuou, continuou… estão a ver aquela esquina?, foi
ali a última vez que o vimos. Esperemos que passe
outro igual, que não nos deixa mentir.
Para a biografi a ser justa, 2013/2014 é o corolário
de quem muito cedo se iniciou na carreira miracu-
losa. Pires de Lima, quando andava na 4.ª classe
e estava de calções, teve a primeira experiência
no recreio da escola. Assim reza o evangelho do
seu caderno escolar: “Hoje estive quase, quase a
perder na partida dos berlindes, mas quando o
Tonan Mello ia partir-me o bilas vermelho com
o abafador, o vidro dele rachou-se e eu, sem nin-
guém estar à espera, fi quei-lhe com tudo! Foi o
milagre do berlindes, quando for grande, vou es-
tudar Economia.”
No liceu, registou-se outro fenómeno espanto-
so: “Hoje, quando cheguei à sala de aula, o meu
colega de carteira, o Paulo Portas, já lá estava. Não
chegou atrasado! É um milagre horário (não sei
se se vai repetir, mas…). Quando for grande e o
Paulo mandar num partido giro de direita, serei o
presidente do Conselho Nacional. E se algum dia
o Paulo se afastar para ir para lá outro, tipo um
Ribeiro e Castro sem graça nenhuma, vou dizer
alto e bom som que o nosso partido precisa de
ser sedutor e sexy.”
A profecia cumpriu-se até hoje e usa fatos in-
gleses às riscas. Os anos seguintes, aliás, vieram
confi rmar os poderes de António Magalhães Pires
de Lima y sus muchachos empresários. Uma vez,
num teste da Faculdade de Economia da Universi-
dade Católica, o professor enganou-se a contar os
pontos das respostas do seu aluno. Só no fi m reviu
a soma e Pires de Lima afi nal tinha uma décima
a mais, provando-se que era possível um grande
milagre quando os cínicos colegas cheios de cris-
pação não o admitiam.
O mesmo se deu quando Pires de Lima trabalhou
numa empresa do sector dos cafés. Uma interven-
ção molecular e mecânica foi introduzida na fase
de fabrico, permitindo, doravante, que possamos
tomar café à meia-noite e dormir na mesma, é o
famoso milagre do descafeinado.
São tantos os exemplos, tantos, para quê tanta
descrença, a crispação é que é a maior inimiga de
Portugal. Pois não sabeis que hoje em dia, se nos
debruçarmos sobre a área dos néctares de fruta,
outro negócio em que o ministro da Economia
se destacou, há agora sumos com um mínimo de
55% de pêra rocha e maçã nacionais, obtendo-se o
mesmo sabor (e até uma consistência mais líquida)
sem adição de açúcares, ideal para toda a família,
ainda dizem que não há milagres!
Por último, as cervejas (mais um sector em que
a competência do ministro é, por assim dizer, de
líquida solidez). Cerveja, essa coisa que é quase só
água e está cada vez mais apetitosa mesmo com
0% de álcool. Hoje, um homem (por que não uma
senhora?) pode ir à marisqueira e beber e comer
sem perder sabor (desde que ganhe para o cama-
rão), podendo guiar a seguir para casa sem per-
der a carta. Um milagre devido ao malte e lúpu-
los seleccionados, a quem devemos agradecer.
Uma intervenção divina que compensa o facto de
a baixa do IVA da restauração ter sido mais uma
aldrabice.
Tenhamos pois confi ança em nós, no país, no
Governo. Paremos a crispação que faz subir os ju-
ros dos mercados, tenhamos atitudes construtivas.
O ministro da Economia tem em mãos a comple-
ta reabilitação da imagem externa de Portugal.
Trata-se de fazer o vice-primeiro-ministro Paulo
Portas chegar a horas a encontros com autoridades
e empresários chineses. Eles são dados a minho-
quices com atrasos e ainda não somos um Estado
soberano, só em Julho.
Este milagre horário de Portas será celebrado
com a construção de um santuário em Macau. O
parceiro comercial de Pires de Lima neste negócio
é Nossa Senhora.
PERSONAGENS DE FICÇÃO ANTÓNIO PIRES DE SUMO DE LIMARUI CARDOSO MARTINS
42 | Domingo 10 Novembro 2013 | 2
Amanhã é dia de S. Martinho e os vendedo-
res de castanhas devem andar a torcer as
mãos, pedindo a todos os santos em que
acreditam e àqueles em que talvez não
acreditem para que não chova e esteja
um daqueles dourados dias de Outono,
levemente gelados. Para que apeteça ainda mais
comprar um pacote de castanhas assadas. Leve
lá uma dúzia, se faz favor.
Os carrinhos dos vendedores de castanhas es-
tão diferentes. Já é difícil encontrar carros velhos
e negros, seja em Santa Catarina, junto à Estação
de S. Bento, na Boavista ou ao pé do Hospital de
S. João. Agora, as máquinas fumegantes de onde
saem as mesmas castanhas de sempre, de pele
enegrecida, com uma cinza que se agarra aos de-
dos, mas não faz mal, reluzem no seu inox de ar
moderno. A modernidade chegou às castanhas,
mas felizmente não lhes roubou o sabor.
No Verão, bem podem vir carros para a rua ven-
der gelados. Não é a mesma coisa. Para já, porque
os gelados não têm cheiro. Não nos acontece come-
çar a sentir ao longe um leve perfume adocicado,
que nos é trazido por uma nuvem fumegante e nos
faz salivar ainda antes de termos decidido que va-
mos comprar castanhas escondidas em cartuchos
de papel. Era uma dúzia, se faz favor. E veja lá se
não vêm podres. “Vou pôr mais uma para o caso
de estar alguma estragada”, responde a vendedora.
CRÓNICA URBANAVÁRIOS LOCAIS DO PORTO
Os carrinhos dos vendedores de castanhas estão diferentes. Já é difícil encontrar carros velhos e negros. Agora, as máquinas fumegantes reluzem no seu inox de ar moderno
Dizem nos jornais e na televisão que os vendedores de castanhas do Porto andam ilegais, por causa de uma mudança das regras municipais. Mas, este ano, parece que Santa Catarina tem ainda mais vendedores do que de costume. Texto de Patrícia Carvalho e Ilustração de Mário Bismarck
AI, AS CASTANHAS, AS CASTANHAS
na televisão que os vendedores de castanhas do
Porto andam ilegais, por causa de uma mudança
das regras municipais. Que até podem ser multa-
dos. Mas, este ano, parece-me que Santa Catarina
tem ainda mais vendedores do que de costume.
Quase todos com os seus reluzentes carros novos.
Eles queixam-se, claro, da crise. Dizem que se não
fossem os turistas, não faziam negócio que se vis-
se. Mas continuam a assar as castanhas quentes
e boas. E eu, se passar por eles, não vou resistir
a comprá-las.
Um destes dias, num sábado, andava por ali a
passear e passei por um, dois, três vendedores de
castanhas. Estava calor, apesar de o Outono já ir a
meio e eu acredito que as castanhas precisam de
um bocadinho de frio para saberem melhor. Por
isso, não estava a pensar seriamente comprá-las,
apesar do cheiro quase irresistível que invadia a
rua, mas então o tempo mudou. Pelas 17h, sem
aviso, o ar esfriou, como se o Outono tivesse de-
sembarcado ali mesmo, talvez numa das compo-
sições de metro que param na estação do Bolhão.
Arrepiei-me e pensei que estava na hora de ir para
casa. Parei num carrinho, no primeiro com que me
cruzei. A rapariga nova estendeu-me o cartucho de
papel, já não feito das Páginas Amarelas, com a tal
castanha a mais. Foi na medida certa, só encontrei
uma podre. Estavam quentes. E boas. Não sei se já
tinha dito, mas gosto muito de castanhas.
E isto também não acontece com os gelados… Se
eles forem do ano anterior e estiverem já cober-
tos por cristais de gelo, pelo tempo excessivo que
passaram na arca frigorífi ca, o vendedor não vos
diz: “Leve lá mais um geladinho, para o caso de
este já estar mole e ser uma desilusão.” Depois,
porque se pode entrar na maior parte dos cafés ou
até mercearias e comprar os mesmíssimos gelados
que nos vendem nas ruas. Mas, onde, digam lá,
onde, é que se sentam à mesa de um restaurante
e as castanhas que vos servem à sobremesa (e é
preciso que elas constem do menu, o que não é
fácil) têm aquele sabor único das que saem dos
carrinhos dos vendedores de rua?
Na Rua de Santa Catarina, havia uma senhora a
quem eu gostava de comprar castanhas, pelo sim-
ples motivo que me fazia lembrar a minha mãe.
Era uma mulher larga, com o cabelo cinzento e
liso apanhado num puxo, envolto numa rede, e
que tinha um certo tom de melancolia em toda a
sua postura. Como se estivesse ali e não estivesse.
Às vezes, andava para cima e para baixo na rua
comercial, fi ngindo que ia resistir à tentação de
comprar um pacote de castanhas assadas, quando
na verdade estava apenas à espera de chegar ao pé
dela, para que a dúzia, a um euro e meio ou dois
euros, saísse do seu carrinho. E ainda era um dos
velhos carros, o dela.
Este ano não a encontrei. Dizem nos jornais e
o mundo está louco! desde 50 a.c.
“astérix
entre os
bretões”, SEXTA, 15DE NOVEMBRO
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ninguém bate nos romanos
como os bretões.
mas nunca depois das 5.
ASTÉRIX ATRAVESSA O MARE BRITANNICUM COM OBÉLIX E UM BARRIL CHEIO DE “MÁGICA POÇÃO” PARA AJUDAR O SEU PRIMO BRETÃO NA SUA LUTA CONTRA AS LEGIÕES ROMANAS. COMEÇA ENTÃO PARA OS DOIS AMIGOS UM PÉRIPLO PELO
PAÍS ONDE FALAM AO CONTRÁRIO, BEBEM CERVEJA QUENTE, SERVEM JAVALI COZIDOE JOGAM RÂGUEBI (PARA SATISFAÇÃO DE OBÉLIX)!
É MAIS UM TÍTULO DESTA COLECÇÃO DE 16 INESQUECÍVEIS AVENTURAS, INCLUINDO A NOVÍSSIMA HISTÓRIA LANÇADAEM 2013, QUE O VÃO FAZER VIAJAR PELO MUNDO TODAS AS SEXTAS. DIVIRTA-SE COM A DESCRIÇÃO DOS USOSE COSTUMES DOS DIVERSOS POVOS REPRESENTADOS NOS VÁRIOS ÁLBUNS E DESCUBRA QUE, AFINAL, O MUNDO
EM 2013 D.C. NÃO DIFERE ASSIM TANTO DO MUNDO EM 50 A.C. COMO DIRIAM ASTÉRIX E OBÉLIX, “ESTÁ TUDO LOUCO!”.
ninguém bate nos romanos
como os bretões.
mas nunca depois dassssssssss