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REVISTA DE JORNALISMO CIENTÍFICO E CULTURAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Nº06 ABRIL A AGOSTO/2014 www.uf.br/secom/A3 ISSN 2317-112X ESPECIAL A ciência entra em campo PARQUE TECNOLÓGICO Zona da Mata na rota da inovação JARDIM BOTÂNICO Pesquisas revelam riqueza de flora e fauna

Revista A3:06

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Page 1: Revista A3:06

1A3 - Abril a Agosto/2014

REVISTA DE JORNALISMO CIENTÍFICO E CULTURAL UNIVERSIDADE FEDERALDE JUIZ DE FORA

Nº06ABRIL A AGOSTO/2014

www.ufjf.br/secom/A3ISSN 2317-112X

ESPECIAL

A ciência entra em campoPARQUE TECNOLÓGICO

Zona da Mata na rota da inovaçãoJARDIM BOTÂNICO

Pesquisas revelam riqueza de flora e fauna

Page 2: Revista A3:06

2 A3 - Abril a Agosto/2014

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3A3 - Abril a Agosto/2014

EDITORIAL

Da pesquisa à patente a UFJF inova na geração de conhecimento

O “país do futebol” se prepara para a Copa do Mundo. Hoje, mais do que

arte, o futebol é conhecimento. Por isso, nos laboratórios da Universidade

Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisadores se esmeram para responder

perguntas que estão mudando o perfil e o treinamento dos atletas, além

das táticas de jogo. De paixão, mostramos como o futebol se transformou

em pauta acadêmica, objeto de estudo das mais diversas áreas, que pesqui-

sam, com rigor científico, o desempenho dos jogadores e o comportamento

dos torcedores. E a matéria de capa desta edição ainda traz surpresas que

podem abalar a versão, até então incontestável, de o futebol ter chegado às

várzeas tupiniquins pelas mãos de Charles Miller, em 1894. Juiz de Fora pode

mudar esta história.

Para um país que almeja o crescimento com autonomia, uma palavra foi

definitivamente incorporada ao repertório das universidades: inovação. Não

se pensa mais apenas em ciência, mas em ciência atrelada à geração de

tecnologia. De assunto tabu, o desenvolvimento de produtos e processos

destinados a gerar recursos e tornar o país mais competitivo, no cenário glo-

bal, é hoje o diferencial capaz de inserir definitivamente uma instituição no

cenário internacional. A UFJF cresce neste setor e inaugura o Parque Cien-

tífico e Tecnológico, integrado com o governo e os setores privados, e que já

nasce com um desafio: ser reconhecido, até 2023, como o melhor ambiente

nacional para o desenvolvimento de negócios inovadores.

A UFJF inova também ao investir na consolidação do Jardim Botânico, um

grande laboratório ao ar livre, no centro da cidade, que já se destaca por

abrigar dezenas de pesquisas sobre espécies animais e vegetais, e propiciar

a educação ambiental da população do entorno. Os investimentos realiza-

dos para obras como o teleférico e o trenó de montanha vão possibilitar à

população em geral usufruir de forma sustentável do espaço, criando um

novo destino turístico na região.

Esta edição não poderia deixar de pautar o assunto que foi tema de cen-

tenas de matérias na mídia nacional: os 50 anos do golpe militar no Brasil.

Neste caso, procuramos privilegiar o olhar regional e interpretar os fatos do

passado, que colocaram Juiz de Fora no centro das atenções do país, pelos

relatos de pesquisadores que ressignificam a memória a partir de um minu-

cioso trabalho investigativo.

A história é dinâmica e sua narrativa compreende disputas de sentido que

refletem as batalhas de poder. Se, em 1964, as ruas de Juiz de Fora foram

tomadas pelas famílias que saudaram e legitimaram o golpe militar, rece-

osas da ameaça comunista, em plena guerra fria, duas décadas depois, as

mesmas ruas foram tomadas pela sociedade civil, que clamava pelo reor-

denamento institucional, nas campanhas das “Diretas Já”. Em belo ensaio

de imagens e texto, contemplamos a realidade captada pela sensibilidade

do olhar e a tecitura das palavras, ferramentas indispensáveis ao trabalho

jornalístico.

Este número ainda traz dados reveladores sobre o crescimento do número

de depósitos de patentes, que reitera a política inovadora da UFJF e mostra

os novos paradigmas que norteiam a pesquisa institucional. Registramos,

também, a criação do Laboratório de Estudos sobre Violência, cuja tarefa

é pesquisar e atuar na compreensão deste fenômeno, quase naturalizado

no cotidiano urbano. E, entre outros muitos assuntos, ainda mostramos o

vigor dos trabalhos produzidos nos nossos Programas de Pós-Graduação.

No Programa de Ambiente Construído, uma dissertação de mestrado conta

como o crescimento da cidade de Juiz de Fora provocou mudanças no traçado

e na relação dos habitantes com o rio Paraibuna, uma referência paisagísti-

ca da cidade. A tese defendida no Programa da Faculdade de Educação de-

monstra como o desempenho dos alunos é influenciado por uma boa gestão

do ambiente escolar, evidenciando a importância da liderança para mobilizar

corações e mentes.

Uma ótima leitura!

Christina Ferraz Musse

(Editora-chefe)

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4 A3 - Abril a Agosto/2014

ÍNDICE

06 www.ufjf.br/secom/A3

REVISTA DE JORNALISMO CIENTÍFICO E CULTURALDA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

REITORHenrique Duque de Miranda Chaves Filho VICE-REITORJosé Luiz Resende Pereira

CONSELHO EDITORIALAlexander Moreira (Faculdade de Medicina)Cristhiane Flôr (Faculdade de Educação)Cristiano José Rodrigues (Faculdade de Comunicação)Edimilson de Almeida Pereira (Faculdade de Letras)Heloísa D’Avila (Instituto de Ciências Biológicas)João Queiroz (Instituto de Artes e Design)Marcelo do Carmo (Instituto de Ciências Humanas)Paulo Monteiro Vieira Braga Barone (Instituto de Ciências Exatas)Paulo Nepomuceno (Faculdade de Engenharia)Paulo Roberto Figueira Leal (Faculdade de Comunicação)Robert Willer Farinazzo Vitral (Faculdade de Odontologia)Suzana Quinet (Faculdade de Economia)

COMISSÃO EDITORIALAnne Marie Autissier (Universidade de Paris VIII)Antônio Fernandes de Carvalho (Universidade Federal de Viçosa)Cícero Inácio da Silva (Software Studies no Brasil)Cláudio Soares (Fapemig)Frederic Guerrero-Solé (Universidade Pompeu Fabra-Espanha)Jorge Mtanios Iskandar Arbach (Professor convidado do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFJF)Luiz C. Wrobel(School of Engineering and Design - Brunel University - Middlesex, UK)Luis Felipe Feres Pereira (University of Wyoming – USA)Márcio Simeone Henriques (Universidade Federal de Minas Gerais) Sofia Gaio (Universidade Fernando Pessoa - Portugal)

EXPEDIENTEEditora-chefe Christina Ferraz MusseEditoraOseir CassolaReportagensBárbara Duque; Carolina Nalon; Fernando Lobo; Flávia Lopes; Fred Belcavello; Raul Mourão; Zilvan MartinsColaboradoresAlessandra Brum; Daniella Aguiar; Glauco Moreira de Moura; Haruf Espíndola; Iacyr Anderson Freitas; João Queiroz; Jorge Arbach; Julia Castro Mendes; Márcio de Paiva Delgado; Ricardo Lopes; Rodrigo Barbosa; Valéria FariaCoordenação de CriaçãoFred BelcavelloFotógrafosBruno Corrêa Barbosa; Márcio Brigatto; Stefênia Sangi; Natália Ferreira IlustraçãoCléber “Kureb” Horta; Raniel Andrade; Zé Zorzan MarketingValéria Borges CostemalleProjeto GráficoCléber “Kureb” HortaRevisãoRafael Costa MarquesProduçãoJuliana Araújo; Taís Marcato

REVISTA A3 Rua José Lourenço Kelmer, s/n – Campus UniversitárioBairro São Pedro – CEP: 36036-900 - Juiz de Fora - MGTelefones: (32) 2102-3967 / 3968 / 3997E-mail: [email protected]ão: Gráfica e Editora BrasilTiragem: 10 mil exemplares

6 - VOZ DO LEITOR O Pórtico Norte da UFJF em dia de chuva, do professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Ricardo Lopes, ilustra o espaço destinado aos leitores

7 – PESQUISA

Para conciliar conservação e preservação de recursos naturais com atividades para alunos e população, a UFJF adquiriu, em 2010, 845 mil metros quadrados de vegetação remanescente da Mata Atlântica. Desde então, o Jardim Botânico reúne pesquisadores cujos trabalhos – de flora, fauna e recursos hídricos – traçam panorama geral da mata e servem de base para novas pesquisas e ações a serem implantadas

15 – INOVAÇÃOA UFJF demonstra com índices o sucesso da diretriz estabelecida de produzir conhecimento de forma conectada com o mercado e com a sociedade. Nos últimos cinco anos, o número de depósitos de patentes saltou de 7 para 74

18 – PESQUISAEstudos desenvolvidos por pesquisadores da Pós-graduação em Ciências Biológicas mapeiam recursos genéticos da erva cidreira. Principalmente, o gênero Lippia alba, que possui grande riqueza química e farmacológica, sendo uma das espécies medicinais mais utilizadas pela população brasileira

21 – PESQUISAA disparada dos índices de violência em Juiz de Fora motivou a criação do Laboratório de Estudos sobre Violência, sediado no Centro de Pesquisas Sociais da UFJF. Os trabalhos terão início por meio de um Observatório sobre a Violência que reunirá e analisará os registros de polícias e as informações sobre políticas e serviços públicos do município

24 – TESES A intensa participação de um diretor no dia a dia da escola é fator crucial para a aprendizagem do aluno. O fato foi comprovado em tese defendida na Pós-graduação em Educação da UFJF por Anderson Córdova Pena. O estudo foi realizado em colégios da rede pública estadual de Minas Gerais

ISSN 2317-112X

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5A3 - Abril a Agosto/2014

28 – MEMÓRIAHá 50 anos um golpe militar calava o país. O doutor em História Márcio de Paiva Delgado analisa os argumentos utilizados pelos golpistas para a quebra da democracia no Brasil. E o também doutor em História Haruf Espíndola aborda os conflitos em Governador Valadares, que registrou a primeira morte antes mesmo de o golpe ser deflagrado em 31 de março

32 – ESPECIAL

No país do futebol e da Copa do Mundo, a ciência também quer dar olé. Professores, alunos e treinadores são escalados para investigar desde o índice de aproveitamento da bola lançada pelo goleiro e o perfil do jovem jogador à influência da maturação biológica na conquista de prêmios. Os estudos integram as mais de 50 produções científicas na UFJF

40 – DESENVOLVIMENTO REGIONALO Parque Científico e Tecnológico da UFJF se tornou realidade em 2014 com o início das obras de infraestrutura. Previsto para começar a operar no primeiro trimestre de 2015, colocará a Zona da Mata Mineira no mapa da inovação

46 – ENCONTROS POSSÍVEISEm passagem recente pelo Brasil, a chefe do Departamento de Cultura, Mídia e Indústrias Criativas da King’s College de Londres, Anna Reading, conversou com a “A3” e expôs conceitos e pesquisas que fundamentam a discussão acerca da memória na atualidade, em face do contexto digital

50 – DISSERTAÇÕESTrabalho defendido no Programa de Pós-Graduação em Ambiente Construído da UFJF resgata as modificações realizadas no trajeto do rio Paraibuna através dos séculos

54 – INICIAÇÃO CIENTÍFICAPara contrariar a máxima de que engenheiros não dominam o português, o Grupo de Educação Tutorial (GET) do curso de Engenharia Sanitária e Ambiental lançou um desafio a seus estudantes: um concurso de Redação. Confira o texto vencedor

55 – ARTEArtigo assinado pelo professor do Instituto de Artes e Design João Queiroz e pela pós-doutoranda em Letras Daniella Aguiar aborda a invenção e a descoberta de novos processos de linguagem

56 – LANÇAMENTOSConfira boas dicas de leitura entre os lançamentos da Editora UFJF

57 – LITERATURANo artigo “O Holocausto Brasileiro: 60 mil mortes em Barbacena”, o advogado Glauco Moreira de Moura, enfoca a obra da jornalista Daniela Arbex que desvendou o sofrimento de milhares de famílias, colocando em xeque o tratamento psiquiátrico no Brasil

58 – CINEMA“Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo”, primeiro longa-metragem de ficção do professor do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF, Luís Rocha Melo, é desvendado pela também docente do IAD, Alessandra Brum

59 – ENSAIO FOTOGRÁFICO

Nas ruas de Juiz de Fora (MG) o povo fez história. E na década de 80 explodiu em inúmeras manifestações. O secretário-adjunto de Comunicação da UFJF, Rodrigo Barbosa, revela como o jornalista e poeta da imagem, Humberto Nicoline, registrou estes momentos

66 – LEIA-MEO poeta, ensaísta e contista Iacyr Anderson Freitas presenteia os leitores com uma de suas obras: “Tamanhos rigores”

ÍNDICE

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6 A3 - Abril a Agosto/2014

Voz do LeitorA aquarela sobre papel retrata o Portão Norte da UFJF, criação do professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da instituição, Ricardo Lopes.A obra tem 25cm x 17cm e foi realizada em dezembro de 2013

Esta seção é reservada para ser o seu espaço. Contribua para que aprimoremos a nossa publicação. Envie sugestões, críticas e temas de pesquisas,

dissertações e teses que gostaria de ver nas nossas páginas. Também abrimos espaço para trabalhos autorais, desenhos e fotos. Aguardamos a sua

contribuição. E-mail: [email protected]

A fotomontagem digital, que ilustra a 4ª Capa, é criação da fotógrafa, artista plástica e docente do Instituto de Artes e Design da UFJF, Valéria Faria. A inspiração é uma janela do Forum da Cultura, importante espaço cultural da instituição

6 A3-Abril a Agosto/2014

EXEMPLO EDITORIAL

“A revista ‘A3’ é um excelente exemplo edi-

torial de como podemos mesclar jornalismo

cultural e científico. Por esta razão, tenho

utilizado a revista como material de estudo

dentro da disciplina Jornalismo Cultural na

UFRJ, mostrando também para os alunos como

um produto em suporte tradicional (impresso)

migra para a internet de forma inovadora a

partir de uma edição que permite as duas vi-

sualidades: no impresso e no on-line. Por esta

razão, ela é sempre mostrada aos alunos como

um bom exemplo de um excelente produto de

jornalismo, cultural ou científico não importa,

mas sobretudo jornalismo.”

Marialva Barbosa

(professora da Universidade Federal

do Rio de Janeiro-UFRJ)

CONTRIBUIÇÃO

“Agradecemos o envio do exemplar nº 5 e

aproveitamos para afirmar que, com certeza,

nossa instituição de ensino beneficiou-se da

contribuição intelectual dessa prestigiada

universidade.”

Toivi Masih Neto

(diretor geral do Instituto Federal de

Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará -

Campus de Acaraú)

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7A3 - Abril a Agosto/2014

Diretrizes do espaço preveem apoio a atividades de ensino e extensão, conservação de espécies ameaçadas de extinção e promoção de ações de educação ambiental

Flávia LopesRepórter

Pesquisas revelam riquezade flora e fauna

PESQUISA

Uma das principais reservas com vegeta-

ção remanescente da Mata Atlântica da

região, o Jardim Botânico tem sido alvo

de relevantes estudos realizados por alunos e

pesquisadores da Universidade Federal de Juiz

de Fora (UFJF) na tentativa de mapear o espaço

e conhecer um pouco mais sobre a diversidade

da área, localizada na região central de Juiz de

Fora, em Minas Gerais.

Com 845 mil metros quadrados e considerado

um dos fragmentos urbanos de maior dimensão,

foi adquirido pela Universidade em 2010, com a

proposta de conciliar conservação e preservação

dos recursos naturais com atividades lúdico-

científicas para alunos e para toda a população.

Desde então, esse laboratório vivo tem reunido

inúmeros pesquisadores cujos trabalhos iniciais -

que contemplam flora, fauna e recursos hídricos

- traçam um panorama geral da mata e servem

de base para novas pesquisas e ações a serem

implantadas. Dezenas de estudos já foram

desenvolvidos por pesquisadores vinculados à

UFJF e alguns deles podem ser conferidos nesta

reportagem.

Segundo a pró-reitora de Pesquisa da UFJF, Mar-

ta D’Agosto, trata-se de uma Área de Especial

Interesse Ambiental que poderá ser ampla-

mente estudada. “A grande diferença entre um

jardim botânico e um parque é que o jardim bo-

tânico é um local de estudo. Todas as unidades

poderão desenvolver atividades importantes lá,

não apenas as ligadas às ciências biológicas.”

Ainda de acordo com a pró-reitora, as diretrizes

do espaço preveem a realização de estudos e

pesquisas sobre flora e fauna, apoio a atividades

de ensino, pesquisa e extensão e conservação

de espécies ameaçadas de extinção, além de

promoção de ações de educação ambiental.

“É um grande laboratório ao ar livre.” Para a

professora do Departamento de Botânica da

UFJF, Fátima Salimena, os estudantes serão

os maiores beneficiados, principalmente os da

graduação ou da pós-graduação envolvidos com

trabalho de campo e atividades reais em meio

à natureza. “Os alunos poderão contar com um

campo real de estudo, ampliando, assim, sua

grade curricular.”

O envolvimento da comunidade do entorno é a

principal aposta do também professor do Depar-

tamento de Botânica da UFJF, Daniel Pimenta,

para a preservação. “Acredito que o melhor

segurança será aquele que foi conscientizado.

Acho, inclusive, que esse é o principal motivo

da implantação do Jardim Botânico: contribuir

com a mudança de cultura de explorativa/con-

sumista para a preservacionista/integrativa.

Temos que mostrar à comunidade universitária

e a toda a população que ali não é um parque, e

sim uma área de aprendizado. Temos que estar

conscientes de como conciliar desenvolvimento

tecnológico com preservação da natureza.”

Com 845 mil metros quadrados e considerado um dos fragmentos urbanos da Mata Atlântica de maior dimensão, o Jardim Botânico foi adquirido pela Universidade em 2010

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8 A3 - Abril a Agosto/2014

O interesse por parte da Universidade em

adquirir a área veio em função do envolvimento

de vários setores da sociedade civil organizada,

juntamente com ambientalistas, que lutavam

contra a instalação de um empreendimento

imobiliário no local. Segundo o reitor Henrique

Duque, com a aquisição do Jardim Botânico, a

UFJF possibilitará o melhor aproveitamento do

espaço por toda a comunidade. ”Nosso papel foi

resgatar esse local que é considerado o pulmão

de nossa cidade. Além das atividades de pesqui-

sa e extensão, esperamos criar uma importante

área de turismo e lazer no município.”

A partir da aquisição, um amplo trabalho para

traçar diretrizes de intervenção e adequação da

infraestrutura do Jardim Botânico começou a

ser executado. Recentemente, recursos de R$

36 milhões foram anunciados pelo reitor para

contemplar obras e transformar o espaço em

uma grande área de estudo e lazer, estimulando

o turismo regional.

Além de obras civis, que incluem criação da casa

autossustentável, laboratórios, restaurante e

todo o paisagismo do local, os investimentos

também preveem a instalação de um teleféri-

co, que conduzirá ao mirante e de um trenó de

montanha, que percorrerá a área preservada,

possibilitando o acesso de visitantes e facili-

tando o trânsito de pesquisadores. Os recursos

foram aplicados na recuperação de uma área de

degradação existente no local (voçoroca), cujos

trabalhos já foram concluídos.

Segundo a pró-reitora de Pesquisa, Marta

D’Agosto, também está prevista a construção

de borboletário, sauvópolis (permitirá a visua-

lização de colônias de formigas), bromeliário,

orquidário, deque na margem do lago, viveiro de

mudas, salas de aula e quiosques. “Com a aqui-

sição, a UFJF garante a utilização do espaço

para toda a comunidade para lazer, cultura e

educação ambiental.”

Um dos arquitetos responsáveis pela

elaboração do projeto, o professor do curso

de Arquitetura e Urbanismo, Klaus Chaves

Alberto, explica que todas as intervenções

buscaram conciliar as demandas da visitação à

necessidade de preservação do meio ambien-

te. “Ao buscarmos um trajeto para o teleférico,

optamos por aquele que causaria o menor im-

pacto ambiental possível. No caso do trenó de

montanha, o baixo impacto ao meio ambiente

se dá pela flexibilidade do meio de transporte,

que acompanha a topografia local e não pede

intervenções no terreno. O trenó também não

utiliza combustíveis fósseis, o que é impor-

tante.” O espaço tem projeto paisagístico do

escritório Burle Marx.

LAZER E EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Há relatos de que os antigos donos do Sítio

Malícia, área onde está situado hoje o Jardim

Botânico, encomendaram da África dezenas de

serpentes conhecidas como mambas negras

para assustar e espantar eventuais indivíduos

que invadiam o espaço para caçar, pescar ou

retirar a vegetação do local. Lenda ou não, o fato

é que os donos do imóvel não precisariam buscar

os animais tão longe.

Segundo estudo desenvolvido pela então bol-

sista de iniciação científica do Departamento de

Zooologia da UFJF e hoje mestranda em Ecologia

pela mesma instituição, Pilar Cozendey, há no

Jardim Botânico pelo menos quatro espécies de

serpente, como jararaca, cobra cipó, falsa coral

e cobra d’água, encontradas durante estudo

realizado entre 2010 e 2011. Orientada pela pro-

fessora do Departamento de Zoologia da UFJF,

Bernadete Maria de Sousa, a estudante buscou,

em sua pesquisa, inventariar a fauna de répteis

presentes no Jardim Botânico a fim de criar um

mapa de distribuição de espécies na área. Mam-

bas negras, no entanto, não foram encontradas.

Durante as coletas, Pilar reuniu 19 exemplares de

répteis. Entre os lagartos foram capturados oito

de camaleão (ou lagarto-verde) e um de lagarto.

As coletas foram realizadas semanalmente e

as capturas foram possíveis por meio de de três

conjuntos de armadilhas instalados em pontos

estratégicos no Jardim Botânico: lago central,

ponto intermediário da mata e ponto mais alto

do sítio. “Curiosamente, o local onde encontra-

mos mais espécies foram nas duas áreas mais

próximas da casa. Como o Jardim Botânico será

aberto à visitação pública, estes dados já podem

configurar como base para elaboração de estra-

tégias educativas e subsidiar novas pesquisas

sobre a área e região e sobre as espécies que se

destacarem no estudo.”

CAMALEÃO, JARARACA E FALSA CORAL

Um estudo que procura investigar a estrutura

e a diversidade da flora do Jardim Botânico

como subsídio para restauração e conservação

MAIS DE OITO MIL ÁRVORES CATALOGADAS

PESQUISA

florestal do espaço já está rendendo frutos.

Mais de oito mil árvores estão catalogadas e

são monitoradas permanentemente por um

grupo de pesquisadores liderado pelo professor

do Departamento de Botânica, Fabrício Alvim

Carvalho.

Segundo ele, os trabalhos na mata começaram

em 2010 e, neste período, foram reconhecidas

mais de 300 espécies. No levantamento, o que

causou maior curiosidade foi o fato de a espécie

com maior predominância ser a do palmito-

juçara, ameaçada de extinção e uma das mais

valorizadas no mercado. Foram contabilizados

quase mil pés.

Além disso, há uma grande área com presença

de pés de café sob a floresta, várias espécies de

madeira de lei e pelo menos seis ameaçadas,

como jequitibá, jacarandá da Bahia, ipê amarelo,

canela, braúna e cedro.

“O que verificamos nessa vegetação foi um

grande potencial de regeneração da Mata Atlân-

tica nos últimos 80 anos. O número de espécies

encontradas é considerável se pensarmos no

fato de este fragmento florestal estar localizado

na área urbana de Juiz de Fora e já ter sido ex-

plorado.” Ainda conforme Carvalho, a tendência

no local é de avanço da floresta. Ele também

estuda a possibilidade de criação de um horto,

para ampliar o plantio de vegetação nativa na

região.

Page 9: Revista A3:06

9A3 - Abril a Agosto/2014

DEZ ESPÉCIES DE MAMÍFEROSMensurar a comunidade de pequenos mamíferos

não voadores presentes no Jardim Botânico foi o

objetivo do estudante Michel Carneiro Delgado,

orientado pelo professor do Departamento

de Ciências Naturais da UFJF, Pedro Henrique

Nobre. Entre junho de 2012 e julho de 2013, o

pesquisador realizou, para o levantamento,

48 dias de coleta. Ao todo, foram capturados

87 pequenos mamíferos distribuídos em dez

espécies, sendo seis delas de roedores de

pequeno porte. Mas também foram encontrados

cachorro-do-mato, lobo-guará, furão-grande,

lontra, quati, gato-mourisco, bugio, mico-

estrela, sauá, porquinho-da-Índia, capivara, paca

e cutia.

Segundo o pesquisador, cinco destas espécies

são sabidamente raras na Mata Atlântica e

também se mostraram raras no Jardim Botânico,

como a cuíca-de-três-listras (Monodelphis) e

o rato-do-mato-ruivo (Rhagomys rufescens).

Além disso, a presença de algumas espécies de

mamíferos de médio e grande porte ameaçadas

destaca a importância da preservação do frag-

mento do Jardim Botânico, como lontra, bugio,

paca e cutia. “O rato-do-mato (Akondon) foi a

espécie mais abundante neste estudo, repre-

sentando 68% do total de animais capturados.”

Ainda de acordo com Delgado, por serem muito

dependentes de micro-habitats específicos, as

espécies de pequenos mamíferos não voadores

são sensíveis a pequenas mudanças no am-

biente natural, sendo assim boas indicadoras da

qualidade dos habitats remanescentes.

A pesquisa, defendida em fevereiro deste ano,

apontou ainda que este padrão de preponderân-

cia de pequenos roedores pode ser consequência

da ação antrópica dentro do fragmento. Como

medidas de preservação, o graduado propõe

ações de educação ambiental com a população

do entorno e o estabelecimento de um corredor

ecológico entre fragmentos vizinhos. “Esses

animais compõem a base da cadeia alimentar

dos vertebrados de maior porte. Há estudos que

mostram que cães são responsáveis pelo exter-

mínio de cerca de 70% da fauna de fragmentos

florestais. Há muitas residências no entorno do

Jardim Botânico, e foi constatada a presença de

cães e gatos invadindo a área do estudo. Ainda

conforme o pesquisador, é preciso uma estra-

tégia imediata de ação junto à comunidade do

entorno do Jardim Botânico. “Temos que minimi-

zar o número de animais domésticos circulando

dentro da floresta e estabelecer uma parceria

com o Centro de Controle de Zoonoses para

conter e capturar cães que sejam encontrados.”

A pesquisa foi financiada pela empresa Hiperroll

Embalagens, por meio de passivo ambiental.

CONHECIMENTO POPULAR E PRESERVAÇÃO

Aliar conhecimento popular e educação ambien-

tal e integrar a população do entorno do Jardim

Botânico para ajudar a preservar a área foi jus-

tamente o objetivo do estudo desenvolvido pelo

atual doutorando em Ecologia pela UFJF, Bruno

Esteves Conde, sob orientação do professor do

Departamento de Botânica da UFJF, Daniel Pi-

menta. A partir dos preceitos da etnofarmacolo-

gia - ciência que estuda o conhecimento popular

sobre as plantas medicinais -, o pesquisador

realizou um trabalho de aproximação com os

moradores dos bairros Santa Terezinha, Nossa

Senhora das Graças, Eldorado, Alto Eldorado e

Vista Alegre, na Zona Leste de Juiz de Fora e que

integram o entorno no Jardim Botânico, a fim de

averiguar se o conhecimento cultural coincidia

com o científico em relação a determinadas

plantas. O trabalho também procurou mensu-

rar o interesse da população em participar de

projetos no espaço.

PESQUISA

Das espécies capturadas pelo pesquisador Michel Carneiro Delgado, cinco são raras na Mata Atlântica

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10 A3 - Abril a Agosto/2014

Trinta e cinco espécies de vespas sociais foram catalogadas pelo pesquisador Bruno Corrêa Barbosa

PESQUISA

O pesquisador visitou 303 casas na região e pro-

curou, com a pessoa mais velha de cada residên-

cia (e capaz de influenciar os demais membros

da família) que as plantas medicinais utilizava

e em quais situações, e se haveria interesse em

participar de um horto medicinal no Jardim Botâ-

nico. “Constatamos que 90% dos entrevistados

utilizam plantas medicinais, mas percebemos

que esse tipo de conhecimento sobre o uso de

plantas terapêuticas muitas vezes vem deixando

de ser repassado.”

A pesquisa levantou 103 plantas do conheci-

mento popular, mas três delas foram citadas

por todos os entrevistados e foram estudadas

mais a fundo: hortelã, assapeixe e algodão. “Ao

compararmos com a literatura científica, algu-

mas pessoas faziam o uso incorreto da hortelã,

por exemplo, ao administrá-la como calmante (a

planta é estimulante).”

O pesquisador também constatou o grande

interesse da população em participar da implan-

tação e da manutenção do horto. “Ele poderá

funcionar como fonte de plantas medicinais e

de resgate cultural, ao mesmo tempo em que

tornará possível a disseminação de educação

ambiental e conservação do espaço.”

VARIEDADEDE INSETOS SURPREENDE

O Jardim Botânico da UFJF abriga pelo menos

35 diferentes espécies de vespas sociais. Isso é

o que apontou um dos estudos desenvolvidos

no âmbito do mestrado em Ciências Biológicas -

Comportamento e Biologia Animal, desenvolvido

pelo pesquisador Bruno Corrêa Barbosa. O núme-

ro foi considerado grande na comparação com

outros parques de Minas Gerais, com a diferença

de que o Jardim Botânico é um fragmento rela-

tivamente pequeno e situado em área urbana,

mais suscetível à ação antrópica. O maior núme-

ro de espécies registrada em estudos em Minas

Gerais foi de 43 no Parque Estadual do Rio Doce,

no Vale do Aço, próximo a Timóteo, e 42 na Mata

do Baú, em Barroso, em área rural.

O trabalho foi realizado entre 2011 e 2013 e

foram identificadas mais de 300 colônias de

vespas. As coletas foram realizadas uma vez por

mês com diferentes metodologias. A partir do

estudo, o aluno está identificando as preferên-

cias de nidificação (construção de ninhos) das

vespas no ambiente, pretendendo saber se há

uma preferência entre as vespas e as plantas.

“Para fragmentos urbanos, o que encontramos

no Jardim Botânico foi o maior registro de espé-

cies”, explica Barbosa. Entre os mais frequentes

no local estão os marimbondos tatu, chapéu,

chumbinho, caboclo e cavalo. “Além de relatar a

riqueza de espécies do local e hábitos de nidifi-

cação, minha dissertação discutirá a diferença

de espécies que habitam alturas diferentes da

floresta, onde comparo o sub-bosque e dossel

(resultado das sobreposição de galhos e folhas

das árvores).”

Outro estudo, que está sendo desenvolvido pela

estudante Tatiane Tagliatti em sua graduação,

mapeou borboletas e mariposas. Em cinco

coletas, recolheu 142 borboletas e mariposas,

totalizando 60 morfotipos diferentes que

serão analisados posteriormente. “Em traba-

lhos similares, em Belo Horizonte (MG), foram

encontradas 50 espécies incluindo borboletas e

mariposas. Espero que o número encontrado no

Jardim Botânico seja bem significativo.” O traba-

foto

: Bru

no C

Barb

osa

Page 11: Revista A3:06

11A3 - Abril a Agosto/2014

lho de Tatiane estava previsto para terminar em

março de 2014 e dará origem ao seu projeto de

mestrado.

Interação entre vespas sociais e bromélias foi

o tema da pesquisa da aluna Marcelle Leandro

Dias que cursa mestrado em Comportamento

Animal na UFJF. A ideia de estudar o tema surgiu

a partir de sua monografia de conclusão do

curso de Ciências Biológicas também na UFJF.

“Encontrei muita nidificação de vespas embaixo

das folhas das bromélias e procurei aprofundar

para ver se essas vespas utilizavam os recursos

florais das bromélias.”

A estudante encontrou três espécies de vespas

e outros três registros fotográficos de diferentes

espécies em três tipos de bromélias diferentes

(portea e uma espécie noturna cuja floração só

ocorre à noite). Segundo a mestranda, a maior

parte foi encontrada nas folhas secas da bromé-

lia, já que pássaros e outras espécies de animais

utilizam a água para se alimentar e acabam pre-

dando as larvas. Mas ela também descobriu uma

espécie mimetizando folhas verdes o que causou

surpresa. “É possível que tenham desenvolvido

esse mimetismo devido à maior resistência das

folhas verdes.”

ABELHA SOLITÁRIAAvaliar as abelhas e seu processo de construção

de ninhos foi o objetivo da mestranda em Com-

portamento Animal Karine Munck, cuja pesquisa

também se encontra em andamento. O plano é

examinar diversidade e abundância das espécies

de abelhas e vespas que nidificam (constroem

seus ninhos) em ninhos armadilha (construídos

pela pesquisadora em bambus e garrafas PET) e

abelhas em ninhos naturais em ambiente mais

e menos influenciados pela atividade humana.

Para isso, foram pesquisados diferentes espaços

“A grande diferença entre um jardim botânico e um parque é que o jardim botânico é um local de estudo. Todas as unidades poderão desenvolver atividades importantes lá”

(Marta D’Agosto, pró-reitora de Pesquisa)

PESQUISA

Tatiane Tagliati recolheu 142 borboletas e mariposas em cinco coletas, totalizando 60 morfotipos diferentes que serão analisados posteriormente

Page 12: Revista A3:06

12 A3 - Abril a Agosto/2014

Marconi Fonseca de Moraes e Renata de Oliveira Pereira em um primeiro momento, analisaram as características físicas do lago para identificar quais seriam os pontos importantes para o estudo qualitativo e quantitativo da água

PESQUISA

12 A3-Abril a Agosto/2014

Page 13: Revista A3:06

13A3 - Abril a Agosto/2014

no Jardim Botânico: a área de visitação, que

conta com construções e atividade de pessoas

e veículos, e a trilha no interior da mata, com

grande variedade de árvores de médio e grande

porte, sem interferência humana relevante.

Até fevereiro de 2014, foram retirados 33 ninhos

armadilha, sendo que, dentre esses, 16 tiveram

insetos emergentes e 17 permanecem fechados,

dentro de garrafas PET. Foi localizado apenas um

ninho de abelha solitária, da tribo Euglossinae

(Hymenoptera, Apidae), que nidificou em tubo

de bambu. Já nos ninhos naturais, a mestranda

encontrou 28 ativos, 19 em ambiente antrópico

(11 em muro de pedra, cinco em cimento, dois

em árvores, um em barranco). Os outros dez

localizados dentro de trilhas mais preservadas,

todos em troncos de árvores.

“O fato de os ninhos de abelhas terem sido

encontrados em maior número, perto da área

mais antrópica fugiu um pouco do esperado,

pois achava que ia encontrar mais nas trilhas

de mata fechada.” Segundo Karine, o fenômeno

é compreensível e ela aponta algumas hipóte-

ses. “Pode estar relacionado à disponibilidade

de substratos adequados à nidificação nesses

ambientes, como parede, muro de pedra. Além

disso, os locais mais preservados são mais fe-

chados, sendo que as abelhas preferem lugares

mais descampados para realizar seus voos.”

Conforme o professor do Departamento de

Zoologia e coordenador das pesquisas acima,

Fábio Prezoto, os estudos começaram há três

anos e foram conduzidos no sentido de conhecer

o cenário na mata a fim de nortear melhor os es-

tudos na área. De acordo com ele, para qualquer

um dos grupos existe grande representação na

área do Jardim Botânico. “Fazemos um trabalho

de monitoramento constante para identificar,

convergir os estudos para o conhecimento da

população e ajudar a divulgar o espaço. O Jardim

Botânico abre possibilidades para muitas outras

áreas e são fundamentais para pesquisas: todos

os trabalhos darão origem a dissertações.”

QUALIDADE DA ÁGUA DOS LAGOSMonitorar qualitativamente e quantitativamen-

te os recursos hídricos disponíveis no Jardim

Botânico e incentivar o planejamento conserva-

cionista do local é o que pretendem os pesquisa-

dores do Departamento de Engenharia Sanitária

e Ambiental da UFJF, Marconi Fonseca de Mo-

raes e Renata de Oliveira Pereira, contribuindo

para a gestão sustentável do espaço.

O lago do Jardim Botânico é um importante

recurso hídrico da região por ser afluente à

margem esquerda do rio Paraibuna, que por sua

vez é afluente, também à margem esquerda,

do rio Paraíba do Sul. Segundo Moraes, em um

primeiro momento, o estudo analisou as carac-

terísticas físicas do lago e do seu entorno para

identificar quais seriam os pontos importantes

para o estudo qualitativo e quantitativo da água.

“Acreditamos que realizar esse monitoramento

é essencial para o controle dos recursos hídricos

do espaço.”

Ainda conforme o pesquisador, quantitativa-

mente foram analisadas as vazões do verte-

douro (estrutura utilizada para medição de

vazão). Qualitativamente foram definidos seis

pontos em locais diferentes no lago para coletas

mensais de água, com as quais foram analisados

parâmetros de temperatura; oxigênio dissolvi-

do; potencial hidrogeniônico (pH); cor; turbidez;

condutividade elétrica; e demanda bioquímica de

oxigênio. Já para mensurar a vazão do lago foram

efetuadas medições diárias, de segunda-feira a

sábado, no mesmo período.

Segundo os resultados do estudo, apesar de não

se ter observado fonte de poluição antrópica du-

rante o período de monitoramento, ao comparar

os resultados com o padrão do grupo das águas

doces (de classe 1) estabelecido pelo Conselho

Nacional do Meio Ambiente (Conama 357/05),

é possível perceber que alguns parâmetros não

atenderam a todas as exigências.

De acordo com Renata, os níveis foram satis-

fatórios em certos períodos do ano e em certos

pontos do lago. Em uma determinada parte do

lago monitorada na pesquisa,os parâmetros

oxigênio dissolvido e a demanda bioquímica de

oxigênio não se encontravam de acordo com os

padrões estabelecidos na referida norma. O oxi-

gênio dissolvido é essencial para a sobrevivência

das espécies aquáticas. Já a demanda bioquímica

de oxigênio é a quantidade de oxigênio necessá-

ria para oxidar a matéria orgânica biodegradável

presente na água.

Contudo, segundo o estudo, com a aeração que

ocorre na saída do lago, o oxigênio dissolvido es-

taria dentro dos padrões em 60% das amostras.

Os elevados valores de demanda bioquímica

de oxigênio encontrados são provenientes de

material orgânico de origem vegetal e não de

origem antrópica. “Muitas alterações ocorreram

em função da condição de estagnação da água.

Vamos continuar os estudos para verificar se

com a ação antrópica no local teremos alguma

mudança”, explica Renata.

Já a vazão média total variou, segundo Moraes,

com o aumento e a diminuição da precipitação

(intensidade de chuva) apenas nos 90 dias ini-

ciais de análise. “Isso não pode ser verificado nos

outros meses, pois foi feita apenas uma medida

a cada dia no período de segunda a sábado, e

nem sempre feitas após a precipitação.”

CONTROLE DE CARRAPATOSOutro estudo, liderado por pesquisadores Erik

Deamon e Marta D’Agosto, do Departamento

de Zoologia, realiza um biomonitoramento

de carrapatos. Segundo Daemon, havia uma

indicação prévia de que tinha uma quantidade

grande desses animais atacando as pessoas que

frequentavam o espaço. Situação que poderia

significar um risco, já que existe uma fauna

muito grande de capivaras, que são reservató-

rio do agente causador da febre maculosa. “O

carrapato pode transmitir a doença ao humano,

se estiver infectado.”

Diante desse cenário, os pesquisadores propõem

ações preventivas para formular a proposta de

controle dessa população. Iniciado em agosto de

2013, o trabalho ainda está em andamento.

O objetivo é realizar dois anos de coletas

mensais no entorno do lago, onde se concentra

a maior população de capivaras. “Conforme

esperado, estamos encontrando uma quantida-

de bem significativa de carrapatos. Uma análise

preliminar indica que há predominância da

espécie que pode transmitir a bactéria causadora

“Os alunos poderão contar com um campo real de estudo, ampliando, assim, sua grade curricular”

(Fátima Salimena, professora do Instituto de Ciências Biológicas)

PESQUISA

“Temos que estar conscientes de como conciliar desenvolvimento tecnológico com preservação da natureza”

(Daniel Pimenta, professor doInstituto de Ciências Biológicas)

Page 14: Revista A3:06

14 A3 - Abril a Agosto/2014

INOVAÇÃO

Regimento do Jardim Botânico bit.ly/A3_RegimentoJB

Vídeos do projeto Etnofarmacologia no Jardim Botânico

Bit.Ly//enotofarmacologiampicb

MAIS

da febre maculosa, o carrapato-estrela. Mas os

estudos ainda são bastante iniciais.”

A partir dos resultados, a intenção é propor

medidas de controle. Atuam no projeto três

alunos de doutorado de Ciências Veterinárias

da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

(UFRRJ), parceria da UFJF neste estudo. Além

de dois alunos de graduação da UFJF. “A febre

maculosa não é uma doença com altas taxas

de mortalidade, mas o diagnóstico impreciso

pode levar a sérias complicações para humanos”,

ressalta Daemon.

REPRODUÇÃO DE BROMÉLIASEstudo liderado pela pesquisadora do Departa-

mento de Botânica, Ana Paula Gelli, pretende

identificar o mecanismo de reprodução de

diferentes espécies de bromélias. Para isso, a

professora buscou a observação de diferentes

ações antrópicas como influenciadores nos

mecanismos reprodutivos das espécies e se as

áreas preservadas tinham um maior sucesso

reprodutivo.

Ao procurar o tipo de sistema reprodutivo de

cada uma das espécies, verificou quais necessi-

tam de animal polinizador e se em áreas menos

conservadas haveria mudança nesse quadro. O

levantamento, que teve início em 2010, apontou

que a maior parte das espécies pesquisadas pre-

cisam de um polinizador, e o beija-flor é o prin-

cipal agente. Essa característica foi verificada

entre dez espécies de bromélias pesquisadas. A

única espécie que se mostrou diferente foi aque-

la cuja floração ocorre à noite, sendo a poliniza-

ção realizada por morcegos. “Esses resultados

apontam um importante quadro, pois caso haja

uma diminuição da população dos polinizado-

res, os beija-flores, as espécies de bromélias

também podem estar ameaçadas.” Além disso,

ela verificou que cada espécie possui uma época

de floração diferente ao longo do ano, o que é

essencial para a manutenção das aves no local.

“É garantia de alimento para esses animais.”

DESCOBERTA DE UM GÊNERO NOVOConhecer as espécies de microorganismos

protistas ciliados que vivem no tanque (na área

que acumula água) das bromélias foi o objetivo

do pesquisador Roberto Júnio Pedroso Dias,

orientado pela professora Marta D’Agosto.

Durante o estudo, iniciado em 2010, o pesquisa-

dor encontrou cerca de 30 espécies diferentes

de protozoário e um gênero novo, que ainda

será publicado em artigo. Posteriormente, ele

pretende comparar a biodiversidade das espé-

cies encontradas nas bromélias com a do lago

do Jardim Botânico. O trabalho foi realizado em

parceria com a Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ).

“Caso haja uma diminuição da população dos polinizadores, os beija-flores, as espécies de bromélias também podem estar ameaçadas”

(Ana Paula Gelli, professora do Departamento de Botânica)

Entre 2011 e 2013, foram identificadas mais de 300 colônias de vespas

Page 15: Revista A3:06

15A3 - Abril a Agosto/2014

Assim como as mais renomadas instituições de pesquisas do mundo, a Universidade demonstra com índices o sucesso da diretriz estabelecida de produzir conhecimento de forma conectada com a sociedade e o mercado

Bárbara DuqueRepórter

Depósito de patentes aumenta mil por cento em cinco anos

Produzir e disseminar conhecimento

estão no cerne do propósito primeiro da

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

desde sua criação, em 1961. Nesses 53 anos de

história, muitos avanços foram conquistados.

Em consonância com as mais renomadas

instituições de pesquisas do mundo, a UFJF

demonstra com índices o sucesso da diretriz

estabelecida de produzir conhecimento de forma

conectada com a sociedade e o mercado.

Um dos demonstrativos dessa aposta foi

o crescimento do número de depósitos de

patentes nos últimos cinco anos, revelando uma

mudança de comportamento dos pesquisadores

que hoje vislumbram de forma objetiva a

possibilidade de contribuir mais efetivamente

com o setor produtivo. Até 2008, a UFJF havia

depositado sete patentes, entre invenção (PI)

e modelo de utilidade (MU), de lá até 2013

esse número saltou para 74. A tríplice base que

alicerça as universidades - ensino, pesquisa e

extensão - ganhou novo vértice: a inovação.

Não é possível hoje pensar o conhecimento sem

que ele esteja atrelado ao desenvolvimento

econômico e social e à solução de problemas.

Mesmo as pesquisas chamadas de base,

sem fins imediatos, fornecem conhecimento

científico que subsidia de forma fundamental a

inovação.

Para uma invenção ganhar o título de patente

é preciso ser uma novidade. Não pode haver

depósito igual em qualquer banco de dados

internacional. E, mesmo que não haja depósito,

não pode o produto ou processo ser de

conhecimento público. Outro ponto fundamental

é ser uma atividade inventiva, criativa, que

fuja do óbvio mesmo para especialistas e,

por fim, que tenha aplicação industrial, com

possibilidades fortes de inserção no mercado,

sendo viável sua produção em escala.

No Brasil, o responsável pela concessão e

garantia dos direitos à propriedade intelectual

é o Instituto Nacional da Propriedade Industrial

(Inpi). Trata-se de uma autarquia federal que

recebe e avalia os pedidos de patentes. Após

18 meses da apresentação das exigências

estabelecidas ao Inpi, o pedido é publicado

na “Revista da Propriedade Industrial” (RPI),

tornando a ideia acessível.

Esse título de propriedade temporário, concedido

pelo Governo aos inventores, é uma maneira

de recompensar o pesquisador pela dedicação

àquela criação, possibilitando-lhe alcançar

ganhos com sua industrialização ou com a

transferência dos direitos a terceiros. Uma

patente tem duração de 20 anos (PI) e 15 anos

(MU) a partir da data de seu depósito. Após esse

período, o conhecimento se torna de domínio

público. A invenção pode ser um produto, um

processo ou um aperfeiçoamento de produtos e

processos de fabricação já desenvolvidos.

DIÁLOGO ABERTOA possibilidade de tirar da bancada do

pesquisador o resultado de seus estudos e

transferi-lo para a indústria, fazendo com que

aquela nova tecnologia gere ganhos para a

empresa, transformando uma pesquisa em

desenvolvimento, é o que vem estimulando os

gestores públicos a incentivarem cada vez mais

a inovação. Vivemos em uma economia na qual

o negócio que não se mantiver na fronteira do

conhecimento, investindo constantemente

em novas tecnologias e mecanismos, perderá

rapidamente a competitividade no mercado.

Criada em 2004, a Lei de Inovação foi um fator

que revolucionou o mercado, deixando- o mais

favorável ao desenvolvimento de propostas

inovadoras em todo o país. A partir da lei

foram criados mecanismos de apoio e estímulo

à constituição de alianças estratégicas e ao

desenvolvimento de projetos cooperativos

entre universidades, institutos tecnológicos

INOVAÇÃO

Page 16: Revista A3:06

16 A3 - Abril a Agosto/2014

INOVAÇÃO

16 A3-Abril a Agosto/2014

Pedro Paulo Oliveira Maia, Kizzi Stigert Orlando, Albertina Souza e Renan Porcaro de Bretas compõem a equipe do Setor de Proteção do Conhecimento do Núcleo de Inovação Tecnológica da UFJF que assessora os pesquisadores em todas as etapas para a obtenção de patente

Page 17: Revista A3:06

17A3 - Abril a Agosto/2014

MASSA CRÍTICA DE ALTO VALOR DE MERCADOO mais importante fruto colhido de todo este

investimento são os chamados habitat de

inovação. Ambientes que concentram massa

crítica de alto valor de mercado. As maiores

riquezas de uma universidade são não só os

professores pesquisadores, que alimentam

com a ciência que produzem as possibilidades

de uma vida melhor para toda a sociedade,

como também os milhares de alunos envolvidos

nesse processo, que respiram ciência. “Nossos

alunos leem papers com tranquilidade, realizam

pesquisas complexas, estão habituados com

termos como propriedade intelectual, sigilo,

ética. Eles têm um olhar transformador, já

pensam na pesquisa visualizando o produto.

Isso gera maior empregabilidade, pois têm uma

mentalidade diferenciada, são mais proativos”,

afirma Nádia.

Vidal acrescenta que todos os trabalhos que

coordena na Universidade envolvem dezenas

de alunos. “Possuo muitas parcerias com a

iniciativa privada, além de ter desenvolvido

e incubado minha empresa no Critt. Em

todos esses projetos, inclusive na empresa,

envolvo meus alunos. O ambiente acadêmico

em que vivemos é esse. Os pesquisadores

também precisam de alunos bem treinados,

bons profissionais. Nos laboratórios que

montamos na UFJF, os quais estão sob minha

responsabilidade, não existe moleza, cobro

muita dedicação e trabalho, e o retorno para

todos é imediato.”

Outra vantagem para os alunos de conviverem

neste ambiente inovador é estimular o espírito

empreendedor. Muitos desenvolvem projetos e

protótipos na área tecnológica, que geram renda

por meio da criação de empresas chamadas

spin-offs - nova empresa que nasceu a partir de

um grupo de pesquisa - universitárias. É essa

riqueza de recursos humanos que alimenta o

setor produtivo e contribui para estimular o

mercado nacional a romper barreiras culturais e

ganhar competitividade entre os países líderes

em inovação e desenvolvimento humano e

econômico.

e empresas nacionais como: estruturação de

redes e projetos internacionais de pesquisa

tecnológica; ações de empreendedorismo

tecnológico; e criação de incubadoras e parques

tecnológicos.

Outro incentivo ao desenvolvimento de

parcerias entre a academia e a indústria foram

os Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs) nas

universidades, também previstos na Lei de

Inovação. “No NIT da UFJF, orientamos e damos

assessoria para o pesquisador que deseja

proteger seu conhecimento. O ideal é que o

ele nos procure no início da pesquisa, para que

façamos uma busca criteriosa para nos certificar

de que aquela ideia é realmente nova e, ao

concluir o invento, verificamos se a proposta é

patenteável, pois pode ser inovadora e não se

enquadrar nas regras de patente. O próximo

passo é fazer uma boa redação para o pedido

de registro e enviá-la ao Inpi. Assessoramos

o pesquisador em todas as fases. Depois de

registrado, o processo é acompanhado pela

nossa equipe semanalmente para que nenhuma

parte do trâmite seja perdida e prejudique o

resultado. Consideramos que esse crescimento

apresentado pela Universidade é fruto de

muito trabalho, investimento do Governo e

mudança de atitude dos pesquisadores”, avalia

a secretária executiva do Setor de Proteção do

Conhecimento do NIT/UFJF, Albertina Souza.

O NIT é um dos setores do Centro Regional

de Inovação e Transferência de Tecnologia

(Critt) da UFJF, criado em 1995 e vinculado à

Secretaria de Desenvolvimento Tecnológico

(Sedetec). É de responsabilidade do Critt

gerenciar as diretrizes da política de inovação

da instituição. Um dos pesquisadores da UFJF

com maior número de patentes registradas

pela instituição, o professor do Departamento

de Engenharia Elétrica, Moisés Vidal, ressalta

que um dos fatores determinantes para a

formação desta cultura de diálogo com o setor

produtivo dentro da instituição é a incubadora

de empresas, também mantida pelo Critt.

“Sou ex-aluno da Universidade e na graduação

fui bolsista da primeira geração do Critt. Isso

fez muita diferença no meu comportamento

como pesquisador. Fui formado pensando

em desenvolver trabalhos para atender às

demandas do setor produtivo. Penso o tempo

todo em solucionar lacunas que nem o próprio

empresário vislumbra. A solução pode estar

em incrementar o que já existe na empresa ou

fazer o que chamamos de inovação de ruptura,

implantar algo totalmente novo.”

Para o secretário de Desenvolvimento

Tecnológico da UFJF, Paulo Nepomuceno, a

partir das leis de incentivo à inovação e das

políticas definidas pela UFJF houve uma

“transformação cultural”. Antes disso havia

iniciativas pontuais de interação com a indústria,

mas nada sistêmico. De uns anos para cá foi

criado um ambiente propício à inovação dentro

da Universidade. Iniciativas bem estruturadas

foram fundamentais, como o Programa de

Incentivo à Inovação (PII), criado pela Secretaria

Estadual de Ciência, Tecnologia e Ensino

Superior, que teve duas versões desenvolvidas

pela UFJF com muito sucesso, visto o elevado

número de propostas apresentadas, todas

muito bem fundamentadas. “O objetivo do

PII era basicamente transformar pesquisa em

inovação. Para isso, foi investida uma quantia

significativa nos melhores projetos de P&D. O

programa foi tão bem estruturado que enraizou

na comunidade acadêmica a cultura da inovação,

mostrando um formato arrojado, bem aceito

entre a academia e o setor empresarial. Agora,

estamos preparando a terceira versão do PII.”

Outra pesquisadora que se destaca pela

produtividade e proximidade com o mercado

é a professora da Faculdade de Farmácia,

Nádia Raposo, para quem o PII foi realmente

um divisor de águas dentro da Universidade.

Segundo ela, o programa não beneficiou

somente pela visibilidade que deu aos

projetos. O principal ganho foi despertar nos

pesquisadores a possibilidade de transformar

a pesquisa em negócio. “O próprio pesquisador

hoje consegue inscrever seus projetos em

concursos internacionais de inovação, dialogar

com as empresas para negociar seus produtos

ou detectar demandas. Estamos preparados

para esse ambiente de transformação da

pesquisa em riqueza. O elevado número

de patentes registradas é um indicador

de qualidade de grande relevância para

mostrar o patamar em que se encontra nossa

Universidade. Somente com essas prerrogativas

é que foi possível gerar um Parque Tecnológico.

Hoje podemos oferecer para as empresas

interessadas em se instalar em Juiz de Fora uma

pesquisa sofisticada, inovadora.”

INOVAÇÃO

Page 18: Revista A3:06

18 A3 - Abril a Agosto/2014

Riqueza química e farmacológica do gênero Lippia estimulou pesquisadores a desenvolverem estudos sobre a Lippia alba e subsidiar pesquisas que visem aumentar o teor de princípios ativos de uma das espécies medicinais mais utilizadas pela população

Bárbara DuqueRepórter

Estudos mapeiam recursos genéticos da erva cidreira

PESQUISA

A diversidade biológica constitui um

patrimônio de difícil mensuração e que,

em função da sua importância, é foco de

inúmeras ações que contribuem para sua conser-

vação. Uma das razões para o estudo de nossa

biodiversidade se origina no fato de que ela

representa imenso potencial de uso econômico.

Subsidiar estratégias de uso e conservação deste

essencial grupo de recursos genéticos foi o gran-

de motivador dos trabalhos desenvolvidos desde

2003 por pesquisadores da Universidade Federal

de Juiz de Fora (UFJF). O líder do grupo e também

coordenador do Programa de Pós-graduação em

Ciências Biológicas, Lyderson Viccini, ressalta que

a ocorrência de várias espécies com interesse

medicinal e muitas delas com amplo uso pela

população chamou atenção dos pesquisadores

que decidiram investir tempo e recursos nesta

investigação.

O gênero Lippia possui cerca de 200 espécies dis-

tribuídas, principalmente, nos trópicos, com três

grandes centros de diversidade: Brasil – o maior

deles, com 111 –, México e Argentina. As primei-

ras ações para estudar o gênero resultaram de

coletas realizadas na parte mineira da Serra do

Espinhaço (cadeia montanhosa que estende

também pela Bahia). Outras foram coletadas

desde a região da Serra do Cipó até a região de

Grão Mogol (MG) além das mantidas na Estação

Experimental de Cultivo e Manutenção de

Plantas e no Laboratório de Fisiologia Vegetal

do Departamento de Botânica, ambos da UFJF.

Desde os trabalhos iniciais, uma abordagem

multidisciplinar foi estabelecida e diversos

colaboradores, inclusive de outras instituições,

fazem parte do processo.

Entre as espécies do gênero, uma delas chamou

a atenção, pela existência de variados tipos quí-

micos e morfológicos, uma peculiaridade desta

espécie. “Já trabalhava com o gênero Lippia,

quando uma pesquisadora parceira da Uni-

versidade Federal do Rio de Janeiro me enviou

três indivíduos da espécie L. alba para que eu

analisasse o número de cromossomos.

Foi quando percebi que cada uma apresenta-

va um tamanho de genoma diferente. Estava

diante ou de uma incrível coincidência ou de uma

riqueza genética que poderia ser ainda maior.

Para nossa satisfação, foi a segunda opção.”

A partir de então, o grupo de pesquisa Genética,

Biotecnologia e Biodiversidade Vegetal se de-

bruçou em analisar as particularidades daquela

espécie. A característica que mais chamou

atenção foi a incidência da chamada poliploidia,

variados tamanhos de genoma, contrariando

antigos registros que descreviam um único

tamanho dentro da mesma espécie (diploides).

Até hoje o grupo identificou cinco, constatando

a existência de uma série poliploide. Dentre as

amostras analisadas na UFJF, algumas cedi-

das pela Embrapa ou pela Escola Superior de

Agricultura Luiz Queiroz da Universidade de São

Paulo (Esalq-Usp) e outros coletados pelo grupo,

existem cerca de 60% de indivíduos que são de

fato diploides e no restante há vasta variação.

O grupo foi responsável pelo primeiro relato

Page 19: Revista A3:06

19A3 - Abril a Agosto/2014

PESQUISA

sobre a existência de variação no tamanho de

genoma para esse grupo de plantas.

A descoberta era sinal de dezenas de possibili-

dades que deveriam ser pesquisadas e poderiam

render excelentes frutos para a ciência. Aquela

diversidade biológica constituía patrimônio

potencial de uso, inclusive econômico. Um dos

desafios foi focar os trabalhos no entendimen-

to da poliploidia, considerada como um dos

principais fatores de evolução em plantas. Com

poucos estudos sobre isso nas regiões tropicais,

foi fundamental a inserção em grupos interna-

cionais de pesquisa. “Em função disso, permane-

ci durante aproximadamente um ano e meio nos

Estados Unidos com um grupo de especialistas

no assunto. Eu já possuía informações impor-

tantes sobre aquele grupo de plantas e pude

desenvolver outras abordagens em parceria. O

estudo vem rendendo belos resultados”, ressalta

Viccini.

LIPPIA ALBA

Entre as espécies do gênero Lippia, L. alba se

destaca por apresentar características impor-

tantes do ponto de vista econômico. L. alba

(Mill.) N. E. Br. ex Britton & P. Wilson é uma

espécie amplamente distribuída nas Américas.

Ocorrendo em praticamente todos os tipos de

ambientes, desde florestas, brejos e campos até

em beira de estradas, recebe destaque devido

às inúmeras propriedades medicinais. Conforme

as análises morfológicas realizadas a partir do

material examinado, fica evidente que a L. alba

apresenta grande variação nos caracteres morfo-

O grupo (de pesquisadores) conta com mais de cem acessos a amostras da espécie Lippia alba e é possivelmente um dos maiores depositários da espécie no Brasil. Ao longo dos anos o grupo vem se tornando uma referência para o estudo do gênero Lippia no país”(Nádia Raposo, professora da Faculdade de Farmácia)

19A3-Abril a Agosto/2014

Lyderson Viccini: “Permaneci durante aproxi-madamente um ano e meio nos Estados Uni-dos com um grupo de especialistas no assunto. Eu já possuía informações importantes sobre aquele grupo de plantas e pude desenvolver outras abordagens em parceria. O estudo vem rendendo belos resultados”

Page 20: Revista A3:06

20 A3 - Abril a Agosto/2014

lógicos, o que muitas vezes dificulta a identi-

ficação correta do tipo químico. Tal fato ganha

extrema importância ao considerarmos que L.

alba apresenta extenso uso na medicina popular,

necessitando ser corretamente identificada para

preparação do produto.

A espécie é conhecida por vários nomes popu-

lares, como erva cidreira, falsa melissa, chá de

tabuleiro, erva cidreira do campo, salva do Brasil,

salva-limão e erva cidreira brava. Diferentes

atividades farmacológicas são atribuídas

aos componentes presentes no óleo essen-

cial extraído da espécie tais como atividade

analgésica; antitérmica; bactericida; fungicida;

anticonvulsivante; anti-inflamatória, e também

de efeitos sedativos entre outros. Lippia alba ou

erva cidreira é uma das espécies medicinais mais

utilizadas pela população brasileira. Esse é um

forte motivador da pesquisa por ser um dos prin-

cipais interesses da equipe. Apesar de ser uma

investigação de base, o estudo subsidia outros

trabalhos que utilizam esses princípios ativos.

A enorme plasticidade fenotípica da erva cidreira

se reflete nos inúmeros tipos químicos descritos,

o que dificulta a correta identificação da planta.

O desafio que o grupo assumiu foi tentar enten-

der a origem da variação morfológica descrita

para a espécie e tentar relacionar esta variação

aos seus componentes químicos que em última

análise estão relacionados a diferentes ações

biológicas.

INFLUÊNCIA NA EVOLUÇÃO DE ESPÉCIESA poliploidia é, de modo geral, a variação

natural ou induzida no número de cromosso-

mos. Comumente assume-se que o número de

cromossomos de um grupo de indivíduos de

uma mesma espécie é o mesmo. Essa situação

é a mais esperada, pois as espécies são, via de

regra, razoavelmente constantes nesse aspecto.

Com o passar dos anos, a variação cromossômica

pode levar à formação de novas espécies espe-

cialmente em plantas. Outra questão estudada

é de que os poliploides em geral podem habitar

lugares nos quais os ancestrais diploides não são

bem-sucedidos. É relativamente comum os poli-

ploides apresentarem uma capacidade maior de

adaptação comparada aos ancestrais diploides.

O número de cromossomos de uma espécie é

um dado biológico significativo e normalmente

invariável dentro de uma espécie, mas podem

mudar ao longo do tempo, assim como os genes,

sofrendo perda ou adição. O processo é esporá-

dico, pois as divisões celulares e cromossômicas

são fenômenos regulares. Contudo, ocorrem

variações, que, por vezes, são perpetuadas a fim

de dar origem a novas espécies vegetais.

CONTRIBUIÇÕES CIENTÍFICASUm dos principais resultados do trabalho até

hoje foi constatar que há variação genética em

larga escala dentro de uma única espécie (no

caso a Lippia alba) e que há possível associação

entre essa variação e o “tipo químico”. O produto

químico produzido pela planta pode estar direta-

mente relacionado ao tamanho do seu genoma.

Durante a pesquisa já foram relatados pelo

menos três tipos químicos diferentes em maior

frequência. O desafio deste trabalho é relacionar

essa variação genética com os quimiotipos exis-

tentes, e o estudo se propõe, entre outras ações,

a interação entre pesquisadores tanto de outros

setores da Universidade como interinstitucional.

Outra preocupação do grupo é contribuir para

o uso racional da espécie, por meio de identi-

ficação mais precisa dos quimiotipos, subsi-

diando diversas investigações com o intuito de

aumentar o teor de princípio ativo dos acessos

estudados por meio de ferramentas clássicas e

biotecnológicas.

Para a pesquisadora parceira do grupo, a

farmacêutica e chefe do laboratório Núcleo de

Identificação e Quantificação Analítica (Niqua)

da UFJF, Nádia Raposo, o trabalho liderado por

Viccini é fantástico. “Para quem atua com a

pesquisa aplicada, é fundamental contar com a

colaboração da investigação básica. Desenvol-

vemos parcerias com eles em diversos estu-

dos. Trabalhamos no laboratório com muitos

compostos químicos e o apoio em diferenciar

os cariótipos e as potencialidades biológicas de

cada composto é absolutamente complementar

ao que fazemos aqui, além de nos auxiliarem na

correta utilização do material, ou seja, no conhe-

cimento taxonômico das famílias de plantas. O

grupo conta com mais de cem acessos a amos-

tras da espécie Lippia alba e é possivelmente um

dos maiores depositários da espécie no Brasil.

Ao longo dos anos o grupo vem se tornando re-

ferência para o estudo do gênero Lippia no país”,

completa Nádia.

Já foram desenvolvidas cinco dissertações e duas

teses, produzindo informações inéditas sobre

a espécie além de levantarem a questão mais

importante no que diz respeito à ocorrência de

números cromossômicos diferentes dentro da

espécie, provavelmente oriundos de poliploidia.

O grupo vem dando continuidade a esta investi-

gação, avaliando as amostras por meio da con-

tagem cromossômica, estimativa da quantidade

de DNA, análises morfológicas e também por

meio de marcadores moleculares. Outra frente

de estudo pretende identificar genes relaciona-

dos à produção de princípios ativos de interesse,

possibilitando não somente a compreensão de

como estes compostos são formados, assim

como a manipulação destas vias com vistas

ao aumento destes componentes químicos de

interesse.

“A formação de recursos humanos nas áreas

de genética/citogenética, taxonomia, genética

molecular, propagação de plantas e fitoquímica é

uma das questões mais importantes para o gru-

po. Pretendemos, ainda, criar maior integração

entre departamentos da UFJF e reforçar a parce-

ria que já existe com a Universidade Federal de

Viçosa e a Embrapa” conclui Viccini.

PESQUISA

MAISLyderson Facio VicciniPós-doutor pelo Laboratory of Molecular Systematic and Evolutionary Genetics, Florida Museum of Natural History, University of Florida, EUA; doutor em Genética e

Melhoramento pela Universidade Federal de Viçosa

Atualmente é professor associado IV da UFJF e coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências Biológicas.

[email protected]

http://www.ufjf.br/pgcbio/

http://lattes.cnpq.br/0633665122312619

Page 21: Revista A3:06

21A3 - Abril a Agosto/2014

PESQUISA

A busca por respostas sobre a violência Carolina Nalon

Repórter

Laboratório de Estudos sobre Violência, criado em 2013, visa encontrar alternativas para combater os altos índices de crimes em Juiz de Fora (MG). Somente no ano passado, foram registradas 139 mortes violentas, uma média de 11 assassinatos a cada mês.

21A3-Abril a Agosto/2014

Paulo César Fraga (no Laboratório de Estudos sobre Violência): “É muito importante essa indignação das pessoas com o aumento dos homicídios. Não é possível conviver mais com o crescimento das taxas de violência sem buscar alternativas para diminuí-las”

Page 22: Revista A3:06

22 A3 - Abril a Agosto/2014

No ano de 2013, 139 pessoas foram vítimas

de mortes violentas em Juiz de Fora (MG),

uma média de 11 assassinatos a cada

mês. Número 40% maior do que o registrado

em 2012 e bem superior ao de 2011, quando

ocorreram 52 homicídios. O quadro pode se

agravar, já que outros 45 casos foram noticiados

nos primeiros três meses do ano pelo jornal

“Tribuna de Minas”. Os assaltos também se

tornaram mais frequentes e a nova realidade

da cidade de meio milhão de habitantes tem

mobilizado a sociedade na busca por medidas

imediatas e efetivas junto aos governos

municipal e estadual. O debate envolve, ainda,

pesquisadores da Universidade Federal de

Juiz de Fora (UFJF), e motivou a criação do

Laboratório de Estudos sobre Violência.

A intenção do laboratório é, portanto, atender a

uma expectativa da própria sociedade, ávida por

respostas sobre a disparada dos índices. Para

o diretor do Centro de Pesquisas Sociais (CPS)

da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),

professor Paulo César Pontes Fraga, “é muitoo

importante essa indignação das pessoas com o

aumento dos homicídios. Apesar de não existir

sociedade sem crime, como observou Durkheim,

não é possível conviver mais com o crescimento

das taxas de violência sem buscar alternativas

para diminuí-las”. Segundo ele, grupos de

pesquisa de destaque já tratam do assunto

dentro da Universidade, mas, até então, ainda

não havia se firmado uma proposta de trabalho

em conjunto da academia com instituições

públicas municipais e estaduais voltada

especificamente para os problemas de violência

em Juiz de Fora.

A previsão é iniciar os trabalhos por meio de um

Observatório sobre a Violência, até que as fontes

de recursos para pesquisas em maior profundi-

dade sejam obtidas, possivelmente por editais

de agências de fomento.

O observatório reunirá e analisará os registros

de polícias e as informações sobre políticas e

serviços públicos do município, com o aval das

instituições, que repassarão os dados. “Pes-

quisas apontam caminhos, avaliam situações,

mas não criam políticas públicas, por isso, o

envolvimento desses atores faz toda diferença.”

Fraga ressalta que o observatório funcionará

a curto e médio prazo com equipe reduzida de

profissionais e estudantes. “Queremos saber,

por exemplo, se há relação na incidência de

crimes em determinados bairros ou regiões

da cidade onde há menos serviços voltados ao

cidadão, como educação, lazer e esporte.” Esse

cruzamento de dados será fundamental para

traçar, inclusive, um caminho para as pesquisas

de campo do laboratório. “Questão fundamental,

também, são as violações de direitos humanos.

Uma política democrática de segurança precisa

ter como prioridade o respeito aos direitos

humanos, pois o combate à criminalidade não

pode ser justificativa para desrespeitar direitos

fundamentais.”

A ideia é abordar todos os tipos de crime, não

só os violentos, e tratar o tema de modo a

considerar autores, vítimas e “sobreviventes

dos homicídios”. O termo se aplica às pessoas,

principalmente familiares, que conviviam com

a vítima assassinada. A abordagem ampla é

importante para uma avaliação mais profunda

e verdadeira sobre a violência. Isso porque,

PESQUISA

Page 23: Revista A3:06

23A3 - Abril a Agosto/2014

“Queremos saber, por exemplo, se há uma relação na incidência de crimes em determinados bairros ou regiões da cidade onde há menos serviços voltados ao cidadão, como educação, lazer e esporte”

(Paulo César Fraga, diretor do Centro de Pes-quisas Sociais-UFJF)

É fundamental que as pesquisas tenham relevância e que sejam úteis para a sociedade, e é por meio delas que é possível conhecer as expectativas dos grupos sociais”

(Frederico Couto Marinho, pesquisador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública- UFMG)

Paulo Cesar Pontes FragaDoutor em sociologia pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pela École de Criminologie da Université de Montréal, Canadá.

Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde atua como professor efetivo do

Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais; diretor do Centro de Pesquisas Sociais

http://lattes.cnpq.br/0477617276709551

[email protected]

MAIS

Centro de Pesquisas Sociais (CPS)Atua como uma unidade investigativa com a missão de desenvolver pesquisas aplicadas a partir de aportes teóricos e metodológicos

das Ciências Sociais, tanto de cunho qualitativo quanto quantitativo. Além de atender demandas de pesquisas da UFJF, presta

serviços em parcerias com prefeituras, outros centros de pesquisa, empresas, associações, autarquias e entidades

http://www.cps.ufjf.br/

[email protected]

PESQUISA

de acordo com Fraga, os registros ainda são

superficiais ou consideram apenas um dos lados

dos conflitos. No caso do DataSUS, por exemplo,

– banco de dados do Sistema Único de Saúde

(SUS) no qual é possível acessar registros de

mortes por homicídio –, trabalha-se apenas com

dados da vítima. Outra vertente importante são

as análises sobre os crimes contra os direitos

humanos, grupos vulneráveis e estigmatizados,

muitas vezes negligenciados.

OUTRAS EXPERIÊNCIASDiversas universidades do país têm ido além de

sua contribuição científica quando se trata de

violência, principalmente, nos grandes centros.

São referências na articulação entre pesquisas

e políticas públicas, os núcleos de estudos da

Universidade de São Paulo (USP), da Universida-

de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Centro de

Estudos de Criminalidade e Segurança Pública

(Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais

(UFMG). De acordo com o pesquisador do Crisp,

Frederico Couto Marinho, finalizado o estudo,

há uma segunda etapa de trabalho que exige

bastante esforço da equipe, a de convencimento

das autoridades. “É preciso debater os resul-

tados, apresentar o embasamento teórico e

metodológico e também pesquisas semelhantes

realizadas em outros países, traçando um para-

lelo sobre o que acontece em outros lugares.”

Os dados apresentados podem levar a outras

pesquisas, a realização de treinamentos, ao

desenvolvimento de softwares e, o mais im-

portante, a novas políticas públicas. Em Minas

Gerais, os programas “Fica Vivo”, da Secretaria

do Estado de Defesa Social, e “Escola Viva,

Comunidade Ativa”, da Secretaria Estadual de

Educação, foram implantados após trabalhos

publicados pelo Crisp. No “Fica Vivo”, oficinas

de esporte, arte e cultura, destinadas a jovens

em situação de risco social, conseguiram reduzir

taxas de homicídios em áreas com alto índice

de criminalidade violenta. Já a pesquisa feita na

rede estadual de ensino, ouviu alunos e profes-

sores, apontando as fontes de conflitos.

Os dados fizeram com que o governo investisse

mais na infraestrutura das escolas participan-

tes e incentivasse ações de envolvimento da

comunidade. “Para nós, é fundamental que as

pesquisas tenham relevância e que sejam úteis

para a sociedade, e é por meio delas que é possí-

vel conhecer as expectativas dos grupos sociais”,

avalia Marinho.

Page 24: Revista A3:06

24 A3 - Abril a Agosto/2014

TESES

O diretor e os desafios da liderança escolar transformadora

Raul MourãoRepórter

A cena típica do aluno entregando maçã ao

professor também poderia ocorrer com

outro profissional da escola retratado, de

forma estereotipada, como enérgica, distante e

repressora: o diretor. O papel do dirigente pode

ser crucial para a aprendizagem do estudante.

“Em geral, o efeito do professor sobre o desem-

penho, apesar de ser o fator de mais importância

para a aprendizagem, tende a ficar restrito à tur-

ma, enquanto o efeito da gestão escolar, mesmo

sendo menor que o provocado pelo docente,

tende a se estender a todos os alunos da escola,

o que lhe confere mais possibilidades de redução

das desigualdades educacionais”, argumenta o

educador Anderson Córdova Pena, autor da tese

de doutorado sobre liderança escolar, defendida

no Programa de Pós-graduação em Educação da

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

O pesquisador foi buscar entender afinal quais

eram as habilidades que poderiam descre-

ver uma liderança escolar transformadora

24 A3-Abril a Agosto/2014

Anderson Córdova Pena (autor da tese): “Ele (o diretor) se torna um criador de líderes na escola, é aquele que detém as maiores possibilida-des de maximizar o potencial das lideranças e canalizá-los em direção a objetivos coletivos”

Estudo mostra impacto do trabalho do diretor como líder em escola e o quanto interfere na aprendizagem do aluno

Page 25: Revista A3:06

25A3 - Abril a Agosto/2014

TESES

(conheça nove habilidades na arte abaixo). O

foco foram as escolas da rede pública estadual

de Minas Gerais. Pena revisou estudos sobre a

área, competências esperadas para o cargo e

ouviu 1.486 diretores por meio de questioná-

rio on-line. Para saber se, de fato, a liderança

interfere na aprendizagem do aluno, o educador

comparou as respostas, realizando análises

estatísticas, com os resultados das provas de

Língua Portuguesa e Matemática do Programa

de Avaliação da Rede Pública de Educação Básica

(Proeb), aplicado pela Secretaria de Estado de

Educação de Minas Gerais (ver arte na página

26). Se a maçã entregue ao diretor pode alegrar

o dia do profissional, as ações do líder escolar,

conforme resultados da pesquisa, podem sim

melhorar os indicadores, ou seja, contribuir para

que o aluno saiba ler e interpretar melhor o texto

ou lidar com tarefas de matemática. E mais:

quando o dirigente não cumpre parte das habi-

lidades esperadas, como o controle de presença

de professores, o resultado pode ser pior. “Só o

fato de o diretor pensar que isso não é responsa-

bilidade dele os índices de desempenho podem

ser jogados para baixo.”

E o que mais interfere na concepção de liderança

escolar segundo o estudo? Quatro fatores:

comunicação, foco na aprendizagem, práticas

administrativas e atitudes contrárias à própria

liderança, isto é, aquelas que não são espera-

das de um diretor, como desconhecer índices

de evasão escolar. Assim, Pena chegou a este

conceito: “Liderança escolar é um exercício de

gestão democrática, coordenado pelo diretor e

executado de forma compartilhada na escola.

Seu objetivo é o incremento da qualidade da

educação e a promoção da equidade. Para tanto

são necessários: o permanente foco na apren-

dizagem; a adoção de ações de comunicação

efetiva; de práticas administrativas eficientes; e

de atitudes positivas do diretor em relação à sua

capacidade de liderança.”

Identificar e avaliar com precisão quais medidas

das diversas dimensões da gestão escolar, como

a liderança, interferem mesmo na aprendizagem

ainda é um desafio. Para isso, são imprescindí-

veis mais pesquisas e novos modelos. A tese já é

um avanço nessa direção, conforme o orientador

do trabalho e professor do Departamento de

Estatística da UFJF, Tufi Machado Soares. “O

estudo consegue mostrar de forma interessante

a relação entre liderança e proficiência. Isso é

razoavelmente inédito. Antes os estudos na

área não foram tão bem-sucedidos”, afirma o

orientador.

QUEM NÃO COMUNICA, NÃO LIDERA

Um dos fatores que tiveram mais alto grau

de concordância com baixa variação entre as

respostas está relacionado às habilidades

comunicativas. A maioria concorda que é preciso

se comunicar bem. “Em síntese, o diretor precisa

ser um habilidoso comunicador. Como gestor de

uma instituição pública, deve ser capaz de cons-

truir consensos, agir mais pelo convencimento e

pela exposição de ideias do que pela coerção, o

que requer, também, um trabalho de coordena-

ção política. É preciso mostrar confiança, clareza

e firmeza nos projetos que defende com a

comunidade. Estando em instituição pública, ele

possui limitações quanto à gestão de salários,

transferência de profissionais”, atesta o autor do

trabalho.

A liderança, portanto, é para ser compartilhada,

expandindo a responsabilidade e a tomada de

decisões para funcionários, alunos, professores e

pais. De acordo com o pesquisador, seria utopia

pensar que todas as soluções para o ambien-

te escolar cabem ao diretor. “Ele se torna um

criador de líderes na escola, é aquele que detém

as maiores possibilidades de maximizar o po-

tencial das lideranças e canalizá-los em direção

a objetivos coletivos.” Como enfatiza a diretora

da Escola Estadual Professor José Eutrópio, em

Juiz de Fora, Celene Abry, ser diretor é ser um

mediador.

“O diretor precisa ser um habilidoso comunicador. Como gestor de uma instituição pública, ele deve ser capaz de construir consensos, agir mais pelo convencimento e pela exposição de ideias do que pela coerção, o que requer também um trabalho de coordenação política”

(Anderson Córdova Pena, educador e autor da tese)

25A3-Abril a Agosto/2014

Page 26: Revista A3:06

26 A3 - Abril a Agosto/2014

TESES

FORÇA, FÉ EFOCO NA APRENDIZAGEMOs resultados da pesquisa mostram que, quando

o diretor mantém o foco na aprendizagem do

aluno, ele influencia positivamente nos resulta-

dos do desempenho do quinto e do nono anos

do ensino fundamental. O resultado foi aferido

por meio da nota no Proeb. Manter o foco na

aprendizagem inclui cumprir o conteúdo pro-

gramático, ter atividades extraclasses, projetos

multidisciplinares e verificar o desempenho dos

alunos de forma sistemática. “Parece óbvio dizer

que o diretor precisa ter o foco na aprendizagem,

mas muitos deles, quando assumem o cargo,

perdem um pouco esse ponto central porque são

tantas atividades administrativas na secretaria

que vão minando essa competência”, explica

Pena.

Situações corriqueiras contribuem para manter

a atenção no âmbito pedagógico. “Só o simples

fato de o diretor ir à sala de aula, conversar com

o aluno e com o professor para perguntar-lhes

como está o andamento de uma disciplina faz

diferença. A hipótese é que o estudante percebe

que o coordenador geral está se preocupando

com ele; e o professor pode se sentir acolhido”,

certifica. Na Escola Estadual Álvaro Giesta, em

São Geraldo, na Zona da Mata Mineira, cada um

dos mais de 700 alunos são cumprimentados

pelo diretor e pela equipe na entrada ou na

saída dos três turnos de funcionamento. “Você

se sente mais bem recebido”, diz a estudante

Luanna Batalha da Costa, 17 anos. “Não quero

que os meninos e as meninas tenham medo de

mim, mas respeito”, ressalta o diretor do colégio,

Tiago Sartori, que também retirou os móveis

que poderiam ser obstáculos no caminho até a

sala dele.

Outra medida incentivada pelo dirigente foi

realizar anualmente um diagnóstico de apren-

dizagem. Os professores aplicam prova no início

do ano letivo para identificar o desempenho

dos estudantes sobre o conteúdo ofertado no

período anterior. Caso seja constatada difi-

culdade, novos tópicos são ensinados apenas

se as dúvidas forem sanadas. A partir desse

diagnóstico e da prova estadual, o colégio

implantou o Momento de Leitura, em que cada

docente, toda semana, precisa dedicar uma aula

para compreensão de textos, cujos resultados

foram percebidos em exames internos. O diretor

orgulha-se ainda de mostrar muros, paredes e

quadros pintados pelos estudantes, comemora

a redução dos índices de evasão (5,9% em 2013

contra 19,7% em 2011) e de reprovação (3,7% em

2013 ante 6,6% em 2011) no ensino médio, e o

envolvimento da comunidade em projetos como

Alimentação Saudável.

Em Juiz de Fora (MG), a Escola Estadual Pro-

fessor José Eutrópio, no bairro Santa Terezinha,

conquistou o primeiro lugar entre colégios

públicos estaduais e municipais da cidade no

Índice de Desenvolvimento da Educação Básica

(Ideb) 2011, ao lado do Colégio Tiradentes, com

a nota 7 – acima da meta estipulada (6,6) para

a escola no quinto ano do ensino fundamental.

A diretora Celene Abry atribui o título de “escola

de excelência” à gestão baseada em decisões

colegiadas, dedicação de professores, reuniões

para trocas de experiências, planejamento e

intervenção pedagógica (o reforço escolar). “O

que o Estado nos pede agora para fazermos,

como a intervenção pedagógica, já implantamos

há mais tempo.”

ADMINISTRAR PARA EDUCARAinda que a pesquisa revele a necessidade de

manter o foco no projeto pedagógico, o líder

deve encontrar meios de conciliar a função com

as responsabilidades e as atribuições da gestão,

o que envolve as atividades administrativas,

burocráticas. A lista é imensa, haja fôlego: é

preciso planejar; controlar materiais; lidar com

a compra de equipamentos; conhecer regras de

licitação; organizar documentos; responder for-

mulários; prestar contas; coordenar a manuten-

ção e a conservação do espaço físico; monitorar

e avaliar o trabalho escolar; gerenciar pessoal; e

normatizar o cotidiano escolar.

A atuação do diretor na área administrativa,

“O estudo consegue mostrar de forma interessante a relação entre liderança e proficiência. Isso é razoavelmente inédito. Antes os estudos na área não foram tãobem-sucedidos”

(Tufi Machado Soares, professor da UFJFe orientador da tese)

Page 27: Revista A3:06

27A3 - Abril a Agosto/2014

TESES

como gestor, surte mais resultados na aprendi-

zagem no ensino médio, conforme a pesquisa. A

possível explicação, segundo Anderson Córdova

Pena, é que essa fase escolar possui currículo

extenso, mais disciplinas e professores, que atu-

am em diversos estabelecimentos, o que reduz

a possibilidade de criação de vínculo mais forte

com a escola, exigindo mais monitoramento por

parte do dirigente no cumprimento do currículo,

da carga horária e da disciplina dos estudantes.

ESCOLA E EXCLUSÃOReduzir o índice de evasão no ensino médio é

um dos principais desafios da liderança escolar

e das políticas públicas de educação. Dos 17

milhões de jovens brasileiros entre 15 a 19 anos

que deveriam estar na escola, mais de 5 milhões

(32%) não estão nas salas de aula. E a taxa de

abandono é de 34,5%. No Chile, fica em 2,9%.

Entre os que conseguem concluir essa etapa da

vida escolar, apenas 10% aprendem o necessário

de matemática, conforme o Sistema de Avalia-

ção de Educação Básica (Saeb) do Ministério da

Educação (MEC).

A relação entre baixa escolaridade e criminali-

dade não é direta, mas é possível verificar que

o perfil do preso no Brasil é aquele que, em sua

maioria (77%), não possui ou não concluiu o

ensino médio. “São negros, pobres, jovens. É

esse o perfil que a escola brasileira historica-

mente e silenciosamente exclui. A culpa não é

do aluno. O professor em sala de aula consegue

fazer uma ação inclusiva. Mas essa função, em

toda a escola, é de responsabilidade do diretor”,

destaca Pena, que trabalha no Programa ensino

médio Inovador/Jovem de Futuro em parceria

com o MEC, que visa reestruturar o currículo do

ensino médio.

E quando o diretor concorda com nove atitudes

que não condizem com o perfil profissional

de liderança escolar, elas podem contribuir

para a queda do desempenho escolar. Entre as

atitudes, estão considerar que não é prioridade

do gestor monitorar as faltas e os atrasos de

professores e funcionários, que as avaliações de

sala de aula não conseguem medir com eficácia

a aprendizagem e que encontra dificuldade

em saber quantos alunos foram reprovados ou

evadiram no último ano. “Quanto mais atitudes

contrárias por parte do diretor, mais baixa é a

proficiência esperada. A interferência negativa

sobre o desempenho é percebida principalmente

no Ensino Médio”, diz o pesquisador. “A liderança

escolar, medida pelo instrumento proposto pare-

ceu exercer, portanto, impacto moderado sobre

a proficiência das escolas medidas pelo Proeb.

Assumindo o papel de articuladora, a liderança

pode contribuir para a construção e a efetivação

de uma escola pública, de fato, democrática.”

MAIS

Anderson Córdova PenaDoutor em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (UFJF)

bit.ly/lattes_Anderson

Tufi Machado SoaresDoutor em Engenharia Elétrica e coordenador de Pesquisa do Centro de Políticas Públicas e Avaliação

da Educação (CAEd/UFJF); professor do Departamento de Estatística da UFJF

bit.ly/lattes_Tufi

Leia a tese “Um conceito para liderança escolar: estudo realizado com diretores de escolas da rede pública estadual de Minas Gerais”, defendida em novembro de 2013:

bit.ly/teseAnderson

O diretor da Escola Estadual Álvaro Giesta, Tiago Sartori - que cumprimenta cada um dos seus 700 alunos na entrada ou na saída das aulas e retirou móveis para facilitar o acesso dos estudantes à sua sala -, comemora a redução dos índices de evasão e reprovação e o envolvimento da comunidade em projetos como Alimentação Saudável

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Page 28: Revista A3:06

28 A3 - Abril a Agosto/201428 A3-Abril a Agosto/2014

MEMÓRIA

Page 29: Revista A3:06

29A3 - Abril a Agosto/2014

Márcio de Paiva Delgado*

Há 50 anos os militares calavam o país

MEMÓRIA

A primeira dúvida que me ocorreu quando fui convidado a escrever esse

texto, foi qual seria a sua abordagem. Uma descrição cronológica,

didática e resumida sobre os principais acontecimentos entre 1964

e 1985? Um levantamento historiográfico das principais pesquisas feitas

nas últimas décadas? Por entender que este não é um texto voltado para o

público acadêmico, que retrospectivas

factuais são facilmente encontradas

em livros didáticos e pela consciência

de que a Ditadura Militar ainda é

um tema em disputa na memória

brasileira recente, preferi abordar,

brevemente, os argumentos usados

pelos golpistas para a quebra da

democracia em 1964.

Não é de hoje que a Democracia -

que está em constante construção

e aprimoramento - atingiu status

de “valor universal”, a ponto de ser

invocada até mesmo por aqueles que

lutam contra o seu estabelecimento.

Assim como era em 1964, ainda o é

no país que convive no meio político e

midiático com indivíduos sem qualquer

compromisso com a democracia: a vontade da maioria, resguardando os

direitos e proteção às minorias, a liberdade de expressão e associação, o

respeito aos direitos humanos e o compromisso com a justiça social.

Voltemos a 1964. Segundo os golpistas, o presidente João Goulart fora

derrubado em nome da Democracia. Para a maioria dos defensores do golpe,

Jango estava colocando o Brasil rumo ao “comunismo ateu contrário à família

brasileira” por meio de suas autodenominadas Reformas de Base. Também

estaria colocando “brasileiros contra brasileiros” ao estimular a “luta de

classes” e promovendo a “desordem

e a quebra da hierarquia” dentro das

Forças Armadas. Tais argumentos

e acusações, que ainda hoje ecoam

em publicações de colunistas da dita

“grande imprensa”, não resistem

sequer a uma superficial análise dos

fatos históricos.

Goulart, por meio da proposta

das Reformas de Base, buscava

promover mudanças estruturais

na sociedade brasileira dentro

da normalidade Constitucional.

Destacavam-se a Reforma Agrária,

Educacional, Política e Urbana.

Todas teriam que passar pelo

Congresso Nacional, notadamente

conservador, apesar do crescimento

do PTB nas eleições de 1962. Nas ruas, o período era de radicalização. Para

cada cartaz “Reformas na Lei ou na Marra”, havia uma senhora com um

rosário à mão orando contra os “comedores de criancinhas” e “incendiários

Para cada cartaz “Reformas na Lei ou na Marra”, havia uma senhora com um rosário à mão orando contra os “comedores de criancinhas”e “incendiários de Igreja”

Page 30: Revista A3:06

30 A3 - Abril a Agosto/2014

MEMÓRIA

de Igreja”. Verborragia comum entre militantes em momentos de catarse,

mas que nas palavras e ações de lideranças políticas e militares sempre

se mostram explosivas e geradoras de violências. Apesar da defesa das

Reformas, ainda hoje necessárias no Brasil, Jango nunca adotou tal discurso

radical. Os decretos de desapropriação de terras assinados durante o

Comício das Reformas em março de 1964 tinham um caráter mais simbólico

(e espetaculoso) do que efetivo para a realização da Reforma Agrária.

Sobre o “perigo vermelho”, artificialmente fomentado com ajuda de setores

conservadores da Igreja Católica, do empresariado e da mesma grande

imprensa, na realidade não havia absolutamente nada no projeto da

presidência que pudesse ser identificado com a implantação do comunismo,

muito menos a defesa do “fim da religiosidade” e do “fim da família

brasileira”. Falácias absurdas usadas para amedrontar a população a fim de

conquistar a opinião pública para evitar tais Reformas e justificar o golpe em

fase de conspiração que já havia sido tentado em agosto de 1961, ou seja,

antes de qualquer ação “desestabilizadora” de Jango.

O argumento de que Jango estaria colocando “brasileiros contra brasileiros”

é novamente fruto da falta de compromisso com a democracia por parte

de seus detratores. Durante seu governo, o movimento operário, estudantil

e camponês, encontrava-se em franco desenvolvimento e mobilização,

que vinha desde os anos 1950, principalmente sob o Governo de Juscelino

Kubistchek, o qual lhes garantira liberdade. É inegável a influência dos

comunistas nesses movimentos, ainda mais em contexto de Guerra Fria,

mas estes não eram os únicos e suas demandas sequer faziam parte de seu

monopólio ideológico: educação pública e de qualidade, reforma agrária e

fim do latifúndio, soberania nacional e desenvolvimento nacional, salários

justos e diminuição das desigualdades sociais. Eram essas as bandeiras

daqueles que, segundo os golpistas, estavam colocando a nação brasileira

para fora do rumo da “ordem” e do “progresso”. E o desejo “revolucionário”

sempre existiu, mas qualquer forma de luta armada no pré 1964 já havia sido

abandonada pelo PCB desde o final da Segunda Guerra Mundial e reafirmada

em resoluções oficiais para a militância durante a década de 1950. A exceção

de um número ínfimo de pessoas que haviam se dirigido a Cuba para fazer

“treinamento guerrilheiro” (desbaratado pelo próprio Governo Goulart em

1962), não havia qualquer guerrilha no Brasil antes do golpe de 1964.

Sobre a quebra de hierarquia, uma vez mais o argumento não se sustenta,

além de expor seu caráter elitista. Juscelino Kubistchek, presidente, sofreu

duas quarteladas contra o seu governo, além de uma conspiração em 1955

contra a sua posse. Em todos os casos - envolvendo oficiais de alta e média

patente - houve anistia. O mesmo aconteceu com os militares promotores

da tentativa de impedir a posse de Goulart em agosto de 1961. Não se ouviu

palavra sobre quebra de hierarquia quando a presidência, conciliatoriamente,

perdoou os revoltosos. Entretanto, quando Jango anistiou sargentos

e marinheiros revoltosos - que não queriam derrubar governo algum e

sim garantir direitos e melhorias nas condições de trabalho - todo o alto

oficialato bradou contra tal ato de “desordem”.

Com o golpe, rasga-se a Constituição de 1946. Em nome da “operação

limpeza” nos quadros políticos, sindicais, estudantis e militares, o Executivo

passa a governar sem contestação por parte dos outros dois Poderes e a

não admitir qualquer oposição na sociedade civil. Com o pretexto de salvar

a Democracia, fecharam-se partidos políticos e cassaram-se mandatos e

carreiras, interviram no STF, proibiram sindicatos e entidades estudantis,

censuraram a informação, as artes e as ideias, praticaram prisões arbitrárias,

seguidas de torturas e outras formas de intimidação. Isso tudo, é importante

que se diga, antes de qualquer movimento de guerrilha e bem anterior ao

Ato Institucional nº 5 de dezembro 1968, que até hoje é considerado por

muitos, de maneira errada, como o início dos “Anos de Chumbo”.

Com o golpe, rasga-se a Constituição de 1946. Em nome da “operação limpeza” nos quadros políticos, sindicais, estudantis e militares, o Executivo passa a governar sem contestação por parte dos outros dois Poderes e a não admitir qualquer oposição na sociedade civil

* Doutor em História pela UFMG; mestre e graduado pela UFJF; professor do Instituto Federal de Educação (Ifet) Sudeste de Minas Gerais, campi de Juiz de

Fora e Santos Dumont. [email protected]

Page 31: Revista A3:06

31A3 - Abril a Agosto/2014

MEMÓRIA

*Doutor em História Econômica pela USP; mestre em História pela UnB; graduado em História pela UFMG; professor titular da Universidade Vale do Rio Doce

O ano de 1964 “cheirava” a pólvora e chumbo em Governador Valadares

e no Vale do Rio Doce, com pistoleiros atuando a serviço dos

poderosos. O semanário “O Combate”, criado pelo jornalista Carlos

Olavo da Cunha Pereira, tornou-se veiculo de defesa da justiça e da luta

dos posseiros pela terra que ocupavam. A mobilização de fazendeiros e

seus jagunços não intimidaram os camponeses - apoiados pelo PCB - que,

coordenados pelo partido, fundaram o Sindicado dos Trabalhadores Rurais

(STR) como instrumento de luta contra os despejos rurais e pela reforma

agrária. Em 1962, liderado por Francisco Raimundo da Paixão (Chicão), o

sindicato deixou a orientação dos comunistas e aderiu às Ligas Camponesas,

após o Primeiro Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores

Agrícolas, em Belo Horizonte, em novembro de 1961. As lideranças dos

fazendeiros consideravam a situação intolerável e, em resposta, formaram

milícia armada para enfrentar o que denominavam de invasões de fazendas

no Vale do Rio Doce.

Governador Valadares se tornou ponto de condensação dos acontecimentos

de 1964. A cidade estava dividida, com fazendeiros e familiares, Igreja e

poder público local de um lado; de outro, os quase dois mil membros do STR,

constituído não só por meeiros, parceiros e assalariados do campo, mas por

moradores de favelas de Governador Valadares, egressos das áreas rurais.

Em Governador Valadares, em 30 de março de 1964, fazendeiros e jagunços

tentaram invadir o STR, houve resistência, feridos e um morto (Paschoal

de Souza Lima, genro do delegado de polícia da cidade, Cel. Pedro Ferreira).

O Golpe Militar de 31 de março marcou o fim da luta dos posseiros e

consolidou uma estrutura fundiária assentada na grande propriedade.

Nesse mesmo dia, Carlos Olavo e Chicão foram levados em segurança para

Belo Horizonte, por ordem do Governador Magalhães Pinto, de onde foram

para o exílio. No dia seguinte, o clima entre fazendeiros era de mobilização e

vingança. Em 1º de abril, logo pela manhã, houve o atentado a Otávio Soares

Ferreira da Cunha e aos filhos Augusto e Wilson. Augusto morreu no dia

1º de abril, e o pai, três dias depois. Wilson, apesar de gravemente ferido,

sobreviveu.

O atentado foi praticado pelos fazendeiros Maurílio Avelino de Oliveira,

Lindolfo Rodrigues Coelho e Wander Campos. Conforme o processo nº

35.679, do Superior Tribunal Militar (STM), o tenente coronel delegado de

Polícia em Governador Valadares declarou que eles estavam investidos da

condição de polícia para “prestarem serviços localizando e interceptando

elementos comunistas e conduzindo-os à Delegacia, em virtude do ‘Estado

de Guerra’...” A “convocação” dos três fazendeiros para prestar serviços de

natureza policial pelo delegado teria ocorrido às 8h, uma hora antes da

ocorrência criminosa, cabendo deixar em aberto, portanto, a possibilidade

de essa convocação ter sido um expediente formal forjado a posteriori.

Segundo o testemunho, às 9h, Maurílio aproximou-se dos três ocupantes

de um Jeep Land Rover – Otávio e os filhos Augusto e Wilson – fazendo-se

passar por amigo. Após retirarem a chave do jipe, os fazendeiros atiraram.

Augusto teve morte imediata. O pai, Otávio, 70 anos, já alvejado, ainda

conseguiu sair do veículo, engatinhou tentando refugiar-se no interior da

casa, mas foi perseguido por Lindolfo, que o atingiu no rosto. Os assassinos

ainda foram ao hospital procurar o outro filho de Otávio, o médico Milton

Soares, que foi protegido por médicos e enfermeiros.

Otávio foi o segundo farmacêutico a se instalar em Governador Valadares,

na época em que era o distrito de Figueira, pertencente ao município de

Peçanha. Uma das lideranças mais destacadas e queridas da cidade, foi

um dos líderes do partido da emancipação do município, na década de

1930. Os fazendeiros não perdoavam o fato de seu filho Wilson ter levado

pessoalmente os empregados e agregados da sua fazenda para se filiarem

ao sindicato nem o apoio que davam à luta dos camponeses em defesa de

suas terras, principalmente que também eram fazendeiros. Em Governador

Valadares, havia sido oferecida denúncia contra os assassinos em 17 de maio

de 1965. Os réus obtiveram no STF habeas-corpus recolhendo os mandados

de prisão. Após várias tramitações judiciais, o STM, em 11 de janeiro 1967,

condenou os três criminosos a 17 anos e meio de reclusão, por unanimidade.

Entretanto, eles foram indultados. Em 1997, a Comissão Especial Sobre

Mortos e Desaparecidos votou pela motivação política dos crimes. O fato

é que duas pessoas foram mortas - com tiros pelas costas -, e uma ferida.

Todas desarmadas.

Haruf Espíndola*O “CHEIRO” DE PÓLVORA E CHUMBO EM GOVERNADOR VALADARES

31

Page 32: Revista A3:06

32 A3 - Abril a Agosto/2014

ESPECIAL

No país da Copa, o futebol como ciênciaPesquisas desenvolvidas na UFJF contribuem para entender o perfil de jovens jogadores, treinar goleiros e compreender a identidade do futebol brasileiro

Raul MourãoRepórter

Goooool!

A regra é clara: na ciência, um gol não é

apenas um gol. Na tentativa de encontrar

explicações para quase tudo, pesquisadores

investigam desde o aproveitamento da bola

lançada pelo goleiro, o perfil do jovem jogador

à influência da profissionalização na conquista

de prêmios e as relações entre o trimestre de

nascimento do atleta e seu desempenho. Se

você é torcedor, também está sendo observado

por músicos e comunicadores sociais, ainda mais

quando entoa hinos ou adapta canções. Na área

de tecnologia, prepare-se para a Copa do chip na

bola, ou footbyte.

Na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),

mais de 50 livros, artigos, monografias, disserta-

ções e teses já foram elaborados sobre futebol.

É uma amostra de que ciência e esporte querem

jogar no mesmo time, principalmente em ano

de Copa do Mundo, no Brasil, que pode oferecer

novas fontes de interesse para os estudos. Se a

pergunta “Quem vai ganhar o mundial?” perpas-

sa as 32 seleções do campeonato, várias outras

movem os pesquisadores. Conheça-as.

O PAI DO FUTEBOL?Os questionamentos começam pela própria

história do futebol no Brasil que pode ser

reescrita. Juiz de Fora (MG) pode ter sido o

berço desse esporte e de muitos outros no

país, considerando os registros de partidas

realizadas, na cidade, no Instituto Metodista

Granbery. A versão mais aceita atualmente é a

de que o futebol chegou ao solo tupiniquim em

1894 pelo brasileiro Charles Miller. Em abril de

1895, foi registrada a primeira partida oficial,

em São Paulo, entre funcionários da São Paulo

Gás Company e da São Paulo Railway.

No entanto, os registros do Arquivo Histórico

do colégio, em Juiz de Fora (ver foto na página

32 A3-Abril a Agosto/2014

34), mostram que a bola teria rolado primeiro no

campo mineiro em 1893 entre Gregos e Troianos.

Há duas anotações nesse ano no livro “Regis-

tro de Notas e Matrículas do Granbery – 1890

a 1897”. A primeira, de 10 de março, informa

simplesmente: “Inaugurou foot-ball and tennis”.

A segunda, de 24 de junho, traz relato de com-

petições, como salto em distância e em altura.

“Houve também Indian Club; Tennis, Patecca

e Foot-ball entre Gregos e Troianos. Muitos

Page 33: Revista A3:06

33A3 - Abril a Agosto/2014

ESPECIAL

pelos professores da Faculdade de Educação

Física e Desportos (Faefid) da UFJF, Maurício

Bara, Marcelo Matta, José Augusto Pereira, José

Marques Novo Júnior e Renato Miranda.

No caso da paternidade do futebol no Brasil, o

meio de campo embola quando surgem mais

versões sobre a origem desse esporte no país.

Há quem reivindique a introdução na cidade do

Rio de Janeiro, no campo do Paissandu, entre

1875 e 1876, ou em Jundiaí, na região metropo-

litana de São Paulo, em 1882, por Mr. Hugh. De

fato, o futebol foi mais bem promovido fora

das escolas e clubes pelo empenho de Charles

Miller, conforme o pesquisador Ronaldo Helal,

da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

(Uerj). Nessa história, John Lander só não pode

ficar esquecido no banco de reserva. Enquanto

isso, a bola rola. Ou melhor, outras pesquisas são

elaboradas. Uma delas é sobre características de

jogadores brasileiros.

PERFIL DE JOVENS ATLETASImagine-se como o responsável por escalar um

time de garotos de 13 e 14 anos (categoria sub-

15) e outro de 15 e 16 anos (sub-17) para um clube

tradicional em busca de novos talentos. Entre

eles há dois tipos de perfis: aqueles com alto

desempenho físico, robustos, altos e outros com

performance física, estatura e massa corporal

medianas. Quais biotipos escolheria para compor

os times? Um detalhe: as habilidades para

conduzir a bola são similares. Lembre-se de que

grandes atletas começaram cedo até serem con-

vocados para times profissionais: Neymar, Ro-

naldo, Messi, Cristiano Ronaldo. A boa escolha é

importante. Questões como essa estimularam

o professor da Faefid da UFJF, Marcelo Matta, a

desenvolver pesquisa de doutorado, defendida

33A3-Abril a Agosto/2014

Alvo de pesquisa: jogadores do Bonsucesso Futebol Clube, no Bairro Industrial, Zona Norte de Juiz de Fora, em mais um dia de treino. O clube reúne cerca de 200 meninos, entre 5 e 17 anos, da cidade e também de Matias Barbosa (MG), há 19 anos

amigos assistiram, o Collegio Mineiro brilhantou

(sic) a ocasião. Teve foguetes, bandeiras etc.

Serviu-se lunch na varanda.”

A mescla de português com erros de grafia

e inglês nas anotações feitas à mão são do

americano John McPhearson Lander, o primeiro

reitor do Instituto. Ou podemos chamá-lo do pai

do futebol no Brasil em vez de Charles Miller? O

coordenador do Arquivo Histórico e do Museu do

Granbery, Ernesto Giudice Filho, prefere não en-

trar na polêmica, mas lista mais uma evidência

do pioneirismo juiz-forano. “Existe uma carta,

datada de 1892, escrita pela filha de Lander, que

diz que o pai havia retornado da Inglaterra nesse

ano com um livro de regras, um par de calçados

e uma bola. Suponho que os calçados tenham

sido parecidos com as chuteiras”, afirma o

documentalista. Apesar de ter o registro, poucas

publicações abordam os jogos em Juiz de Fora.

Uma delas é o Atlas do Esporte no Brasil on-line,

no capítulo sobre o esporte na cidade, escrito

Page 34: Revista A3:06

34 A3 - Abril a Agosto/2014

ESPECIAL

em março de 2014, na Universidade do Porto

(Portugal). O estudo foca o efeito da maturação

biológica no desempenho do atleta. “Jovens que

nasceram no dia 1º de janeiro competem com

outros nascidos em 31 de dezembro do mesmo

ano. São 12 meses de diferença – em adulto isso

não apresenta problema, mas em crianças e

adolescentes sim. Torna-se mais preocupante se

considerarmos que uma faixa etária (sub-15, por

exemplo) é composta por futebolistas de dois

períodos de nascimento, de 13 e 14 anos. Esse

fenômeno, muito observado no futebol, mostra

que a maioria dos futebolistas das equipes de

formação nasceu no primeiro quartil do ano

(janeiro, fevereiro e março), fato explicado pela

influência da maturação.” São aqueles em que

a idade cronológica, marcada na carteira de

identidade, não condiz exatamente com o aporte

físico, parecem garotos mais velhos, desenvolvi-

dos fisicamente.

Nesse chamado efeito da idade relativa, ado-

lescentes com desenvolvimento biológico mais

avançado costumam ter melhor desempenho fí-

sico e serem escolhidos pelos clubes, mas pouco

se sabia a respeito da influência da maturação

nas habilidades técnicas e motoras de jovens

jogadores brasileiros, como o controle e a con-

dução da bola. Para auxiliar nessa descoberta, o

docente avaliou 245 garotos, de 13 a 16 anos, das

categorias infantil e juvenil (sub-15 e sub-17), em

Juiz de Fora (ver arte na página 35). É um estudo

inédito no Brasil – nenhuma pesquisa com

esses objetivos havia sido aceita em publicações

científicas internacionais qualificadas, segundo

Matta.

CRITÉRIOS EM XEQUEO professor analisou os índices obtidos nos tes-

tes de cada categoria separadamente (sub-15 e

sub-17), descrevendo suas características, e, em

seguida, comparou os dados entre as duas. Os

resultados da pesquisa apontam para possível

supervalorização dos efeitos da maturação

biológica dos futebolistas quando ela é utilizada

como um dos principais critérios para selecionar

jogadores. Isso porque, como já era esperado, os

jovens de 15 e 16 anos “são mais altos e pesados,

apresentaram desempenho físico superior nas

provas funcionais que avaliam a força explosiva,

resistência e potência”, afirma o professor. Mas,

em relação à habilidade com a pelota, como

Professor da UFJF, Marcelo Matta, defendeu pesquisa de doutorado na Universidade do Porto (Portugal), sobre o efeito da maturação biológica no desempenho do atleta

Documento do Arquivo Histórico do Granbery (A.F.T.): Juiz de Fora pode ter sido o berço do futebol no Brasil

Foto

: Nat

ália

Fer

reira

Page 35: Revista A3:06

35A3 - Abril a Agosto/2014

ESPECIAL

domínio da bola e precisão do chute, os mais

velhos não mostraram desempenho significati-

vamente superior aos adolescentes mais novos,

da categoria sub-15.

A influência da maturação somente foi mais

evidente quando os adolescentes de 13 e 14 anos

são comparados entre si. Os garotos com sinais

biológicos avançados mostraram mais força e

potência. Novamente, no quesito habilidade

técnica, todos apresentaram índices semelhan-

tes, independentemente de terem nascidos

em janeiro ou em dezembro de um mesmo

ano. “Sendo assim, treinadores de futebol

devem estar atentos às possíveis influências

da maturação no desempenho de seus atletas

na categoria sub-15, pois os mais avançados

maturacionalmente podem evidenciar maiores

dimensões somáticas (altura e peso) e um supe-

rior desempenho funcional (velocidade, agilidade

e capacidade aeróbia) em relação aos seus pares

classificados como normomaturos”, explica

o docente. Considerando esses aspectos, em

princípio, garotos mais amadurecidos fisicamen-

te teriam vantagens em competições somente

dessa faixa etária.

Na comparação restrita aos jovens da categoria

sub-17 (de 15 e 16 anos), o desenvolvimento

biológico avançado não é significativo estatisti-

camente nem mesmo em relação à performance

física. Ou seja, o adolescente pode ter traços

maturacionais, como ser mais alto, forte e

robusto, mas que não garantem boa atividade

em campo. “Nesse caso, portanto, treinadores

precisam considerar estratégias para aqueles

garotos que desenvolvem suas habilidades no

‘tempo normal’, pois a pesquisa, assim como

outros estudos, mostra que pode haver exagero

em valorizar demais o desenvolvimento físico

do garoto. O desempenho esportivo resulta da

interação de diferentes variáveis”, alerta Matta.

O garoto robusto e peça-chave do time sub-15,

nascido geralmente nos primeiros meses do

ano da sua categoria, pode não ser a estrela em

ascensão amanhã, uma vez que os efeitos da

idade relativa podem ser minimizados ao longo

do tempo e as habilidades motoras melhoram

com a idade e a prática, conforme outras pesqui-

sas realizadas pelo professor. O sucesso, nesse

caso, é um processo de longo prazo, adequando

os níveis de exigência competitiva e treinos com

as características de crescimento, maturação

e desenvolvimento dos praticantes, conforme

Matta (ver arte do estudo sobre a influência da

profissionalização na obtenção de prêmios na

página 36) .

Logo, se no início desta seção você, leitor, esco-

lheu jovens com desenvolvimento físico mais

avançado para compor seu time de garotos de 13

e 14 anos, a princípio, acertou, pois poderá preci-

sar de adolescentes fortes e velozes. Mas errou

caso tenha apostado somente nesse biotipo

para formar o time de 15 e 16 anos, uma vez que

o desempenho físico e a habilidade técnica são

semelhantes entre os mais desenvolvidos e os

normomaturos. Em se tratando de grandes clu-

bes, a escolha inadequada do jogador de futebol

pode significar o investimento a mais de recur-

sos nas categorias de base, desgaste do jovem

jogador entre outras consequências. Há o risco

de deixar de fora novos Neymar ou Messi. Nesse

caso, a ciência trabalha para otimizar os critérios

de escolhas. “Nem sempre isso é possível, o ser

humano é uma ‘caixinha de surpresas’, não dá

para precisar com exatidão seu potencial.”

FUTEBOL PARA EXPORTAÇÃOEntre os adolescentes pesquisados pelo pro-

fessor, estão jogadores do Bonsucesso Futebol

Clube, no Bairro Industrial, na Zona Norte de Juiz

de Fora (MG), que reúne cerca de 200 meni-

nos entre 5 e 17 anos de bairros da cidade e de

Page 36: Revista A3:06

36 A3 - Abril a Agosto/2014

ESPECIAL

Matias Barbosa (MG) há 19 anos. O artilheiro de

um campeonato local, em 2013, com seis gols,

Wendell Santos Oliveira, 16, está há mais de dois

anos no projeto e sinaliza desenvolvimento fun-

cional e técnico ao longo do tempo. “Melhorei o

condicionamento físico com a preparação daqui

e sou incentivado a fazer virada de jogo, treinar

com um toque só e fazer finalizações”, lista o

jovem atleta.

Além dos reflexos sociais, o projeto é pelo

terceiro ano consecutivo o que mais conquista

prêmios em Juiz de Fora e em campeonatos

regionais. “Atribuímos as vitórias à experiência

obtida ao longo do tempo. A maioria joga há

quatro ou cinco anos aqui. E somos a única esco-

la da cidade a aceitar garotos de 5 anos”, afirma

um dos treinadores do time, Bruno Garcia Motta

(Piuí), especialista em futebol. Esse aprendizado

desde cedo com a bola, as conquistas da seleção

brasileira, o “jogo bonito” ou mesmo o gingado

brasileiro em campo explicam o interesse de

clubes e escolas americanas em conhecer a

técnica brasileira. Pelo terceiro ano, Piuí irá aos

Estados Unidos com outros treinadores repassar

conhecimentos para técnicos de lá. “Ficarei dez

semanas, uma em cada cidade, trabalhando seis

horas por dia. É preciso elaborar e justificar aos

treinadores entre 120 a 200 exercícios técnicos

que passamos para os garotos de 14 a 17 anos.

É uma série diferente a cada 20 a 30 minutos”,

explica. Na bagagem de volta, ele também traz

informações sobre preparação física, área em

que os americanos possuem mais expertise.

A vivência do profissional é levada aos encontros

semanais do Grupo de Estudos em Futebol da

UFJF, coordenado pelo professor Marcelo Matta,

que conta com a presença de mais treinadores

locais e estudantes. O objetivo é estreitar a

relação entre a academia e os profissionais, ser

referência na pesquisa sobre futebol no país,

criar equipes de treinamento para jovens e de-

senvolver um currículo com o conteúdo teórico,

técnico e tático para ser ofertado na formação

de futebolistas no Brasil.

“Estamos vivendo um momento em que a tecnologia assume, em boa parte das vezes, instância majoritária para a compreensão e tomadas de decisões no jogo”

(Ricardo Bedendo, professor da Faculdade de Comunicação)

Page 37: Revista A3:06

37A3 - Abril a Agosto/2014

ESPECIAL

TIME DO FUNILOs milhares de atletas adolescentes de Juiz de

Fora ou de qualquer cidade ou país com tradição

no futebol precisam lidar com uma situação

frustrante ou, às vezes, positiva: a temida penei-

ra para ingressar nos times profissionais. Não

há pesquisas que indicam qual é o percentual de

aproveitamento dos jovens em clubes tradicio-

nais e raros são aqueles que divulgam seus per-

centuais quando possuem. Saber qual é o índice

de aproveitamento dos jovens esportistas nas

equipes adultas é importante para, entre outros

motivos, “verificar se a metodologia implantada

no processo de formação de seus futebolistas

apresenta resultados significativos”, afirmam os

bacharéis em Educação Física pela UFJF Sebas-

tião Salgueiro Júnior e Leonardo Lima Dias.

Diante da realidade desse funil no futebol e da

falta de estudos e dados sobre o tema, os dois

estudantes conseguiram verificar que apenas

25,4% dos 1.304 jogadores de todas as 46

seleções da Copa do Mundo de 2006 e de 2010

também atuaram em algum dos mundiais das

categorias sub-17 e sub-20 ou somente em um

deles. A dupla vasculhou informações em sites

de confederações e cruzou dados dos mundiais

juvenis desde 1977. Após essa etapa árdua, foi

buscar possíveis razões para os percentuais de

cada continente e de algumas seleções (ver arte

acima)

O índice baixo de aproveitamento dos jovens

– somente um em cada quatro jogadores na mé-

dia mundial – pode indicar que poucos ascende-

ram à mais alta competição por métodos inade-

quados de treinamento, pressão para descobrir

novos talentos, concorrência com jogadores mais

velhos, lesões, interesses externos ao futebol,

entre outros fatores, explica Leonardo Dias.

BASE SÓLIDAAinda conforme o estudo, o resultado obtido

pelas seleções juvenis pode ter influenciado na

escolha da seleção adulta. Uma das campeãs

dos mundiais sub-17 e sub-20, a Argentina

aproveitou 55% das suas equipes iniciantes. Na

Austrália, o percentual chega a 69%, “tal-

vez pela pouca tradição do esporte no país e

concorrência”, supõem os autores. Na lanterna,

aparecem países como Dinamarca, Suécia,

Grécia, Eslovênia e Sérvia com nenhum jogador

aproveitado.

Entre os brasileiros, o índice foi acima da média:

13 jogadores, ou 34% dos 38 selecionados nos

mundiais da Alemanha e da África do Sul atu-

aram em alguma das disputas sub-17 e sub-20,

como os laterais-direito Daniel Alves e Maicon

e o atacante Ronaldinho Gaúcho. Para manter

esses jovens no país, é preciso oferecer melhor

estrutura. Parte deles “vai tentar sucesso na

Europa, mesmo com um processo de formação

ainda incompleto e, em alguns casos, jogam

em times inferiores e países fracos no futebol”,

explica Leonardo Dias.

O profissional chama atenção para o fato de a

Espanha, campeã da Copa de 2010 e coleciona-

dora de outros títulos recentes, ter aproveitado

mais da metade dos seus jovens e ressalva

o caso da Itália, campeã em 2006, mas com

apenas 5% de reingresso. “A Espanha, no final

da década de 1990, criou um plano de desenvol-

vimento de futebol que consistia na formação

de treinadores extremamente qualificados

para implantar metodologias de trabalho com

jogadores jovens desde os 5 anos de idade. E os

clubes alemães de primeira e segunda divisões

foram obrigados a criar academias de futebol

para a formação de jovens jogadores”, afirmam

Sebastião Júnior e Leornado Dias, que foram

orientados pelos professores Marcelo Matta, da

UFJF, e Francisco Zacaron Werneck, da Univer-

sidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Quando

comparadas as seleções de cinco continentes,

a Europa apresenta o percentual mais baixo

(16,4%) de reaproveitamento dos jogadores,

enquanto a Ásia o maior (39,9%).

SOCIEDADEFUTEBOL CLUBEO futebol também é o foco de estudos no Núcleo

de Pesquisa em Comunicação, Esporte e Cultura

da UFJF (Nupescec), coordenado pelo professor

Márcio Guerra, que possui investigações sobre

identidade do futebol brasileiro, narração e

jornalismo esportivos, entre outros temas.

Page 38: Revista A3:06

38 A3 - Abril a Agosto/2014

ESPECIALGOLEIRO, OLHO NO LANCE!

Todos sabem que uma boa defesa para o goleiro é fundamental, mas a bola

lançada por ele também faz diferença em um campeonato. Na série A do Brasileirão de 2011, a influência foi negativa…O bacharel em Educação Física pela UFJF Fernando Corrêa encontrou, em pesquisa inédita, percentual alto de erros nos lançamentos realizados pelos goleiros em centenas de partidas de todas as 38 rodadas do campeonato e de todos os 20 times participantes. Do total de bolas lançadas pelo camisa 1, entre 48% e 75% não chegavam ao jogador-alvo ou ele não a dominava. Os acertos ficaram na faixa entre 25% e 52%. “Em se tratando de atletas profissionais que disputam o principal campeonato nacional,

este fato torna-se preocupante, pois apenas um dos goleiros analisados (Rogério Ceni, do São Paulo), de um total de 24, apresentou valores de acertos (52%) maiores em relação aos erros (48%)”, afirma Corrêa, que é treinador de goleiros. No estudo, entre todos os lances dos 11 jogadores até um terço foi executado pelo defensor do gol.A partir desses dados, a pesquisa utilizou métodos estatísticos para correlacionar a quantidade de acertos e erros do goleiro com a pontuação obtida pelos times. Os lances certeiros ou equivocados não são determinantes para a vitória, pois precisam vir acompanhados do desempenho dos outros dez jogadores. No entanto, a pesquisa mostra que “o lançamento correto tem uma influência negativa menor em

relação ao errado, o que faz refletir sobre a integração do goleiro no modelo de jogo da equipe”, diz Corrêa.“O resultado indica que o goleiro tem uma parcela de participação relevante na fase ofensiva. O tiro de meta assim como os outros meios de reposição de bola feitos pelo goleiro podem se tornar uma importante forma de começar um momento ofensivo quando explorados corretamente.” Ou seja, pode estar havendo algo errado em priorizar demais o trabalho de defesa, minimizando a prática de lançamentos. “A maioria do treinamento existente e aplicado aos goleiros não oferece esse treino de características ofensivas”, afirma o profissional, cuja pesquisa pode ser referência para treinos.

ESPECIAL

Page 39: Revista A3:06

39A3 - Abril a Agosto/2014

ESPECIAL

O professor defende, ao lado de outros pesqui-

sadores e escritores, como Roberto DaMatta

e Nelson Rodrigues (1912-1980), que o futebol,

apesar de ter nascido na Inglaterra, ganhou

identidade brasileira e ainda se mantém como

expressão da cultura nacional. “Percebemos isso

claramente. O cotidiano e o comportamento

do brasileiro são como um jogo para driblar as

adversidades. E a imprevisibilidade do futebol,

em que o fraco pode vencer o forte, é o nosso

jeitinho brasileiro, de contornar aqui e ali. É da

nossa ginga no dia a dia ao gingado em campo”,

afirma. O esporte com sua mistura étnica,

cultural e de classes sociais, seria, conforme o

pesquisador, um retrato com o qual o brasileiro

consegue se identificar. E essas características

são reforçadas pelos meios de comunicação, que

também precisam manter o espetáculo vivo para

obter audiência.

Por isso, não é somente quando a seleção está

em fase ruim, perdendo jogos, que há afasta-

mento do público. O desconforto ainda vem a

partir dos momentos em que a equipe enfatiza

demais a técnica e os resultados, em jogos frios,

como na Copa de 2010, distante do perfil do

brasileiro médio. “O patrocínio de uma multi-

nacional para a seleção levou o time para jogar

no exterior, longe do torcedor, criando também

distanciamento”, acrescenta o professor.

Oportunidades de reaproximação aconteceram

com a Copa das Confederações, em 2013, e novas

devem surgir com o Mundial neste ano no Brasil,

de acordo com Márcio Guerra. O evento ainda

traz a chance de aferir a validade do “comple-

xo de vira-latas” do brasileiro, 64 anos após a

derrota na final da Copa de 1950. A expressão,

criada na época por Nelson Rodrigues, remete ao

hábito da população em se posicionar de modo

inferior diante dos outros povos.

E as mudanças ocorridas na sociedade, ao longo

da última década, foram sendo incorporadas ao

campo de futebol, que também exporta refe-

rências para o público, a exemplo da valorização

da estética e o culto ao corpo pelo brasileiro.

Esses aspectos podem ser detectados no

esporte por meio do fortalecimento do cuidado

com a imagem do atleta, como nos casos de

Kaká e Neymar, transformados em fenômenos

midiáticos. “Sobre Neymar recai mais do que

uma esperança no futebol; o povo brasileiro se

identifica com o seu jeito moleque, seu corte de

cabelo e ‘dancinhas’ para comemorar os gols”,

afirma Guerra. Outro indício do par sociedade-

futebol é o crescimento de 61% na quantidade

de evangélicos no Brasil, na última década,

representando 22,2% dos brasileiros. A mudança

pode ser percebida no gramado. “O futebol

continuou sendo um espaço de conquista de

diversas manifestações religiosas, especialmen-

te dos evangélicos, com jogadores misturando,

nos discursos e gestos, religião e esporte.” Um

dos traços marcantes do brasileiro, dentro e fora

do campo, é sua relação com a música, desde o

grito de torcida e hinos às produções no samba

e pop.

FOOTBYTEQue tal em um domingo ensolarado jogar

footbyte? Não é nova opção em video game ou

mudança no nome do esporte. É a expressão

usada pelo professor da Faculdade de Comuni-

cação, Ricardo Bedendo, para demarcar fortes

mudanças tecnológicas que vêm ocorrendo

dentro e fora dos estádios de football, em

inglês. “Estamos vivendo um momento em que

a tecnologia assume, em boa parte das vezes,

instância majoritária para a compreensão e

tomadas de decisões no jogo, seja por meio

de telões, lentes potentes, recursos gráficos e

mais recentemente a inserção de chip na bola,

ou byte na ball. Na Copa do Mundo, no Brasil, a

inclusão do chip terá seu teste maior”, ressalta

o professor. O novo recurso poderá indicar, por

exemplo, se a bola passou pela linha de gol em

lances duvidosos.

Bedendo discute as mudanças nas formas de

vivenciar o futebol, pautadas pelos avanços

tecnológicos e comunicacionais no que considera

novas “arquiteturas da experiência e do olhar”, a

exemplo de estádios que privilegiam um espetá-

culo para ser visto. Experimente acompanhar um

jogo de times desconhecidos somente pelo rádio

e a reprise da partida na internet ou na TV para

sentir as diferenças de percepção. Como ouvinte,

sua imaginação, capacidade de abstração e o

locutor ajudam. Apesar de, na TV, a narração ser

semelhante à radiofônica, a câmera pode colabo-

rar até quando recupera um lance e mostra de-

talhes do jogo. As tecnologias comunicacionais

e os bytes ampliam a visão do telespectador, em

um “hiper olhar” e “hiper viver” cada segundo de

informação, segundo Bedendo. “A partir desses

avanços, o torcedor tem mais possibilidades de

interferir nas decisões dos clubes, árbitros, jo-

gadores e da própria imprensa, pois tem acesso

a essas tecnologias, pode se manifestar pelas

redes sociais, ter mais subsídios para opinar.”

MAISMarcelo de Oliveira MattaDoutor em Ciências do Desporto pela Universidade do Porto (Portugal); professor da Faculdade de Educação Física da UFJF

bit.ly/marcelomatta

Márcio de Oliveira GuerraDoutor em Comunicação (UFRJ); professor da Faculdade de Comunicação da UFJF

bit.ly/marcioguerra

www.ufjf.br/marcio_guerra

Ricardo BedendoMestre em Ciências Sociais (UFJF); professor da Faculdade de Comunicação da UFJF

bit.ly/ricardobedendo

Núcleo de Pesquisa Comunicação, Esporte e Cultura da UFJFwww.ufjf.br/nupescec

Revista Brasileira de Futebolwww.rbfutebol.com.br

Page 40: Revista A3:06

40 A3 - Abril a Agosto/2014

DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Parque Tecnológico coloca a Zona da Mata no mapa da inovaçãoEmpreendimento facilitará o desenvolvimento de negócios inovadores que dinamizem a economia regional e beneficiem a sociedade por meio da promoção de um ambiente de integração entre instituições de ensino e pesquisa, empresas e governo

Zilvan MartinsRepórter

Com a proposta de consolidar na Zona da

Mata Mineira a formação de uma forte e

competitiva indústria baseada no conhe-

cimento, o Parque Científico e Tecnológico da

Universidade Federal de Juiz de Fora se torna

realidade em 2014 com o início das suas obras de

infraestrutura. Depois que for erguido, sua mis-

são será facilitar o desenvolvimento de negócios

inovadores que dinamizem a economia regional

e beneficiem a sociedade por meio da promoção

de um ambiente de integração entre instituições

de ensino e pesquisa, empresas e governo. E a

meta, segundo o secretário de Desenvolvimento

Tecnológico da Universidade Federal de Juiz de

Fora (UFJF) e um dos responsáveis pelo projeto,

Paulo Garcia Nepomuceno, é ser reconhecido, até

2023, como o melhor ambiente nacional para o

desenvolvimento de negócios inovadores.

O primeiro parque tecnológico do mundo surgiu

nos Estados Unidos, há mais de seis décadas.

O modelo começou a se consolidar no Brasil nos

anos 90. O país abriga hoje, segundo o Minis-

tério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI),

94 parques, sendo 28 em operação, 28 em

implantação e 38 em fase de planejamento, a

maioria nas regiões Sul e Sudeste. A ideia de um

parque tecnológico em Juiz de Fora (MG) surgiu

na última década do século passado. Contudo, o

atual projeto começou em 2006 quando a UFJF

estabeleceu como meta intensificar o relacio-

namento da instituição com os mais diversos

setores da sociedade. A partir daí, começaram

os estudos para identificar mecanismos que

propiciassem à Universidade externalizar suas

competências e, ao mesmo tempo, enxergar as

demandas existentes na sociedade. As pesqui-

40 A3-Abril a Agosto/2014

Page 41: Revista A3:06

41A3 - Abril a Agosto/2014

DESENVOLVIMENTO REGIONAL

sas apontaram que o caminho era a criação de

um parque tecnológico. “Começamos a estudar

as experiências internacionais e brasileiras e

observamos a necessidade de uma série de

condições estabelecidas para que o parque

pudesse ser criado. Encomendamos, então, o

Estudo de Viabilidade Técnica Econômica (EVTE)

do empreendimento que constatou que, além de

viável, atuaria como um dos principais vetores

de desenvolvimento da Zona da Mata Mineira,

provendo a “inteligência”, a infraestrutura e os

serviços necessários ao crescimento e fortaleci-

mento das empresas intensivas em tecnologia”,

explica o secretário.

Além de analisar a dinâmica da economia de Juiz

de Fora e região, suas oportunidades, condições

fiscais oferecidas, logística e Arranjos Produti-

vos Locais (APLs) existentes, o EVTE apontou

um dado importante para a efetivação de um

parque tecnológico: uma fervilhante produção de

conhecimento – não só dentro da UFJF, mas nas

outras seis universidades federais da região –

recurso fundamental para a competitividade das

empresas na economia globalizada.

Para o professor do Departamento de Física

do Instituto de Ciências Exatas (ICE) da UFJF e

assessor do Parque, Paulo Barone, apenas recen-

temente as universidades se qualificaram. “Em

1994, tínhamos menos de 30 doutores na UFJF

e o processo de produção de conhecimento na

instituição era isolado. Hoje temos um terreno

completamente diferente, fértil, com professo-

res mais titulados. Demos um salto significativo

na pós-graduação, passando de três mestrados

para cerca de 50 cursos de pós-graduação. E

com os programas de incentivos à inovação,

41A3-Abril a Agosto/2014

Reprodução do projeto arquitetônico do Parque Científico e Tecnológico da UFJF

Page 42: Revista A3:06

42 A3 - Abril a Agosto/2014

com a incubação de empresas, por meio do Critt

(Centro Regional de Inovação e Transferência

de Tecnologia), que foram capazes de trazer

ao terreno da economia alguns dos aportes de

aplicação do conhecimento gerados na UFJF, a

instituição se mostra capaz de catalisar ainda

mais este impulso inovador, por meio do Parque

Tecnológico, dinamizando a economia da região.”

PLANO DE NEGÓCIOS

Quando o Parque Tecnológico começar a operar –

previsto para o primeiro trimestre de 2015 –, terá

um diferencial qualitativo importante em rela-

ção às outras experiências do Brasil: um Plano

de Negócios bem estruturado. Este documento

norteador das ações estratégicas do empreen-

dimento, elaborado por uma equipe multidisci-

plinar, com supervisão da Fundação Dom Cabral,

foi concluído no segundo semestre de 2013 e já é

considerado um dos melhores do país, segundo

a Finep – empresa pública ligada ao MCTI. O

Plano de Negócios foi parte importante de um

projeto que recebeu R$ 4.257.593,01 em uma

chamada pública do Governo federal. Cerca de

40 parques no Brasil participaram da concorrên-

cia, nove foram selecionados, e o de Juiz de Fora

ficou atrás somente da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Unicamp.

O documento também recebeu R$ 900 mil do

Governo de Minas Gerais.

A presidente da Associação Nacional de Entida-

des Promotoras de Empreendimentos Inova-

dores (Anprotec), Francilene Procópio Garcia,

confirma o potencial do Plano de Negócios do

Parque da UFJF, afirmando que os projetos apre-

sentados na chamada pública foram considera-

dos pelo MCTI como altamente qualificados. “Há

um entendimento, por parte do Governo federal,

que os parques alavancam o desenvolvimento

regional e sustentável e, portanto, devem ser

mais do que apenas espaço para instalação de

empresas. Por isso, os projetos selecionados

para receber estes recursos deveriam apresentar

informações bem consolidadas, o que de fato

acabou ocorrendo.”

Durante a elaboração do Plano de Negócios,

várias ferramentas de interpretação foram

usadas. Dados brutos da economia da região

transformaram-se em um quadro analítico

compreensível que contribuirá para consolidar

uma economia baseada no conhecimento, capaz

de aumentar a produtividade, agregar valor e

dar competitividade ao setor industrial, agrícola,

têxtil, moveleiro e a outros serviços já estabele-

cidos na Zona da Mata Mineira.

Outro diferencial do Plano apontado pelo ex-

secretário de Estado de Ciência, Tecnologia e

Ensino Superior de Minas Gerais, Alberto Duque

Portugal, atual consultor do Parque, é o fato

de que a mesma equipe que elaborou o estudo

será responsável por implantá-lo. “Este grupo de

jovens talentos se debruçou sobre a realidade da

região e buscou conhecer as diferentes facetas

da nossa economia e, hoje, sabem onde e como

o Parque deve operar. O processo de elaboração

deste documento foi diferente. Não contrata-

mos um consultor externo, apenas a orientação

metodológica da Fundação Dom Cabral. O de-

senvolvemos com inteligência local, por isso ele

é tão consistente e adequado à nossa realidade.

Esta dinâmica adotada vai ao encontro dos

valores do Parque que tem como uma de suas

premissas a valorização das pessoas.”

ÁREAS DE ATUAÇÃO

Os serviços que serão oferecidos pelo Parque

foram distribuídos em três áreas de negócio

denominadas como Projetos, Imobiliário e

Processo de Incubação. A área de Projetos será

responsável por receber todas as demandas que

chegarem ao Parque, analisar a possibilidade

de realização e, em seguida, encaminhá-las

para o devido setor de negócio. As demandas

intensivas em conhecimento, que não forem

destinadas ao Processo de Incubação ou Imobi-

liário, serão executadas na forma de projeto por

esta área. O setor Imobiliário será destinado às

empresas de base tecnológica e centros de PD&I

que possuem interesse em se instalarem no

Parque e às fornecedoras de serviços e comércio,

alocados em zonas exclusivas, com o intuito de

fornecer suporte às atividades do local. Já a área

de Incubação de Empresas será dividida em três

processos: Pré-Incubação, Incubação e Associa-

ção de Empresas.

DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Page 43: Revista A3:06

43A3 - Abril a Agosto/2014

A Incubação de Empresas – processo já realizado

pela UFJF desde 1995 por meio do Critt – é

uma grande oportunidade de novos negócios

entrarem no mercado, transfigurando ideias em

empreendimentos inovadores. Estas novas em-

presas são classificadas como Start-ups, compa-

nhias geradas a partir de ideias ou resultados de

pesquisas que derivam em protótipos, tecno-

logia e, finalmente, produtos. De acordo com o

secretário de Tecnologia da UFJF, a Incubadora

de Base Tecnológica do Critt passará a operar

no Parque assim que este estiver em funciona-

mento. “Do ponto de vista do desenvolvimento

regional, a incubação é um processo fundamen-

tal dentro da filosofia do Parque. Empresas que

nascem em uma determinada região são mais

comprometidas com a realidade local devido às

questões históricas. Contudo, queremos colocar

Juiz de Fora e região no mapa da tecnologia

mundial e, além de captar empresas âncoras,

com inserção internacional, vamos também

dar uma visão global para Start-ups e Spinoffs

acadêmicas locais” destaca Nepomuceno.

Uma destas empresas âncoras já confirmadas

é a portuguesa Nanium Participações Ltda.,

fabricante de semicondutores e fornecedo-

ra de serviços de desenvolvimento, testes e

engenharia. No dia 10 de fevereiro de 2014, em

reunião realizada na UFJF, executivos da Nanium

reafirmaram compromisso de se instalarem no

Parque já no início de 2015. O HidroEX – centro

de capacitação e pesquisa em águas, com sede

em Frutal (MG), que integra o programa hidroló-

gico internacional da Unesco,

também já assinou protocolo

de intenção para instalar um

dos seus núcleos no empre-

endimento, assim, como, o

Instituto de Engenharia de

Sistemas e Computadores

(Inesc), centro de pesquisas

da Universidade do Porto

(Portugal).

ESTRUTURA FÍSICAO Parque Científico e Tecno-

lógico da UFJF está sendo

construído em um terreno

adquirido pela Universidade

de 1.022.000 metros quadrados localizado à

margem direita da Rodovia BR-040, Km 790,

em frente ao Expominas. O investimento total é

de cerca de R$ 100 milhões e a maior parte dos

recursos é proveniente da União. O local contará

com áreas de serviços e comércio e de admi-

nistração. Terá, ainda, restaurante, bar, hotel,

academia de ginástica, agências bancárias e de

comércio exterior.

A área Administrativa e de Apoio abrigará

12 laboratórios, dois auditórios, dez salas de

reuniões, setor de incubação de empresas e

um centro de eventos. A área de Pesquisa e

Produção será o espaço destinado à instalação

de empresas. O Parque conta com certificação

ambiental, podendo construir qualquer tipo de

edificação, sejam centros de PD&I ou produção.

O projeto arquitetônico chama a atenção por ser

inovador, dentro da lógica da construção green

building, envolvendo uma série de questões

de sustentabilidade aplicadas às edificações

empresariais. No momento de planejamento

e execução do projeto urbanístico do Parque

levou-se em consideração o ativo ambiental

existente no terreno como, por exemplo, duas

nascentes localizadas no local.

DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Mapa da Logística

Page 44: Revista A3:06

44 A3 - Abril a Agosto/2014

POLÍTICA DE COMUNICAÇÃO E PLANO DE MARKETINGComo o Parque tem o compromisso de alavancar

o desenvolvimento regional, um dos seus maio-

res desafios será a gestão da informação. Ele

terá por obrigação ir ao encontro de empresários

da região no sentido de sondar quais são as

oportunidades, os desafios de caráter de inova-

ção e/ou tecnológico e quais processos e pro-

dutos que poderá impulsionar. Terá o papel de

mostrar novas ideias e tecnologias que surgem e

com isso aguçar o interesse do empresário. Para

direcionar esta comunicação, a UFJF contratou o

jornalista e professor da Universidade Metodis-

ta de São Paulo, Wilson da Costa Bueno, para

elaborar a Política de Comunicação do Parque.

O documento foi concluído em janeiro de 2014

e é o primeiro do Brasil na área de parques

tecnológicos.

Enquanto o Plano de Negócios visa atender

ao conjunto de demandas e expectativas dos

públicos estratégicos do Parque com a oferta de

produtos e serviços adequados, a Política de Co-

municação concentra-se no esforço institucional

O consultor externo Alberto Portugal; o secretário de Ciência e Tecnologia da UFJF, Paulo Nepomuceno; e o professor de Física da UFJF e assessor Paulo Barone

DESENVOLVIMENTO REGIONAL

para dar visibilidade à sua atuação, buscando,

a partir de canais adequados e competentes

de relacionamento, divulgar as atividades do

empreendimento, captar demandas e percep-

ções dos stakeholders e consolidar sua imagem

e reputação. Esta política orientará o desenvol-

vimento de ações e estratégias que favoreçam

não só a prospecção das demandas do mercado,

em particular das principais cadeias produtivas

que caracterizam a região, mas implementará

canais e estratégias para uma interação perma-

nente, criando laços de relacionamento sólidos e

duradouros que potencializam o crescimento do

Parque e o desenvolvimento regional.

Para Alberto Portugal, um empreendimento

inovador que pretende impactar a economia de

toda uma região precisa, necessariamente, de

uma Política de Comunicação bem definida. “O

ciclo de inovação possui três fases importantes:

saber, querer e poder. Primeiro é necessário

saber que existe uma oportunidade para depois

fazer a decisão política de querer utilizá-la e,

por último, ter capital e gente qualificada para

implementá-la. Mas se não acontecer o primeiro,

não acontece o resto. Neste ponto, a Política de

Comunicação é extremamente importante no

papel de informar o empresário e levar a ele o

que há de mais avançado na área que atua.”

Finalizada esta Política de Comunicação, os

gestores do Parque trabalham, agora, no Plano

de Marketing. No momento, cerca de 540

empresas das regiões da Zona da Mata e do

Sul Fluminense respondem a questionário para

detectar as demandas na área de tecnologia e

inovação. O resultado constará no plano de ação

do empreendimento.

COOPERAÇÃO E GERAÇÃO DE RIQUEZAO Produto Interno Bruto (PIB) da Zona da Mata

Mineira – composta por 142 municípios e uma

população de 2.173.374 – é o quarto de Minas

Gerais, representando apenas 7,29% do que o

Estado arrecada. A região possui 8.937 indús-

trias, sendo 2.384 em Juiz de Fora, com vocação

em confecção, têxtil, produtos alimentícios,

móveis, metalurgia, metal-mecânica, celulose

e papel e construção civil, entre outras. Em Ubá

está localizado o segundo maior polo moveleiro

do Brasil, com cerca de 510 indústrias. Temos,

ainda, Arranjos Produtivos Locais fortes no setor

de confecção, localizados nas cidades de São

João Nepomuceno e Muriaé, além de 189 laticí-

nios dos 960 existentes em Minas Gerais.

Para o presidente da Federação das Indústrias

do Estado de Minas Gerais (Fiemg) – Regional

Zona da Mata, Francisco Campolina, apesar de

nosso PIB ter crescido de 5% para 7,29% nos

últimos cinco anos, a região ainda tem partici-

pação pequena na economia mineira. Campolina

caracteriza este baixo desempenho à falta de

investimentos, principalmente em tecnologia e

inovação. “Não se produz riqueza se não for por

meio da inteligência competitiva. Precisamos

incentivar o espírito empreendedor dos nossos

empresários e o Parque terá papel fundamental

nesta missão. Para exemplificar, cito a produção

leiteira da região que chega a dois milhões de

litros dia. Cerca de 70% deste leite é soro e vai

para o lixo. Se o Parque Tecnológico consegue

realizar uma pesquisa que transforme este soro

em proteína pura para suplementos alimenta-

res, como acontece em outros países, teremos

um ganho importante na economia da Zona da

Mata.”

Outra oportunidade de negócios apontada pelo

presidente é o trabalho de pesquisa na área de

energia eólica realizado pela Energiza – segunda

maior companhia de energia de Minas Gerais. “A

empresa, que fica a cem quilômetros de Juiz de

Fora, montou nas suas dependências um núcleo

chamado Energiza Soluções para pesquisar e

desenvolver energia eólica. Este trabalho poderia

estar dentro do Parque, utilizando toda a estru-

tura oferecida, aliada à expertise de professores

das universidades da região. Esta interação

Page 45: Revista A3:06

45A3 - Abril a Agosto/2014

Perspectiva Geral

entre empresas e setor acadêmico é essencial

para criar um ambiente necessário para melhorar

o resultado da nossa economia.”

Dentro desta lógica de transformar conhecimen-

to em produtos, o Parque Científico e Tecnológi-

co da UFJF colocará em prática a interação entre

universidades, empresas e governo, modelo

conhecido como Tríplice Hélice. As universidades

e os centros de pesquisa produzem o conhe-

cimento, as empresas transformam conheci-

mento em produto, ou seja, fazem a inovação,

e o governo motiva a interação entre estes dois

elementos, facilitando e induzindo o diálogo.

Para o reitor da UFJF, Henrique Duque, este é

um dos novos desafios postos às universidades

brasileiras. “A participação no progresso da so-

ciedade, por meio das aplicações tecnológicas do

conhecimento, tornou-se tão relevante quanto

às atividades clássicas associadas às universida-

des. Neste quadro, os desafios para a academia

envolvem a sua participação em atividades

distintas daquelas em que convencionalmente

atua, inserindo o país na economia globalizada

baseada no conhecimento.”

O assessor do Parque, Paulo Barone, afirma que

as universidades brasileiras ainda têm dificulda-

de de compreender a pesquisa de natureza apli-

cada associada a uma agenda de interesse do

país. Segundo Barone, ainda há um preconceito

ideológico em relação à possibilidade de que as

cooperações Universidade-empresa interfiram

nas lógicas internas do trabalho acadêmico e na

autonomia para definir a agenda de pesquisa

institucional. “Esta é uma questão relevante,

que requer a adoção de salvaguardas e deve ser

submetida a restrições de natureza ética. No en-

tanto, é também relevante analisar o que acon-

teceu nos países pioneiros neste processo, onde

a estratégia de indução à colaboração Universi-

dade-empresa não foi adotada em detrimento

das políticas de incentivo à pesquisa básica. E é

desta forma que precisamos começar a trabalhar

aqui. Os pesquisadores das sete universidades

da região não podem enxergar nas lojas do polo

moveleiro de Ubá, por exemplo, apenas possíveis

clientes para uma ideia que surja dentro destas

instituições e que eventualmente poderia ser

aplicada lá. Eles precisam ver as fábricas de

móveis como potenciais criadoras de problemas

que devem ser investigados para gerar aportes

de conhecimento úteis para o polo moveleiro. É

necessário estabelecer uma via de mão dupla. E

este também será um dos papeis do Parque.”

INCENTIVOS FISCAIS

A atuação dos governos também assume caráter

essencial na efetivação do Parque Tecnológico

por meio de mecanismos tributários, regulató-

rios e de proteção às empresas intensivas em

conhecimento. Além dos incentivos fiscais já

concedidos pelo Governo federal, como a Lei da

Inovação, empresas que se instalarem no Parque

da UFJF terão outros incentivos dos governos de

Minas Gerais e Juiz de Fora. O município sancio-

nou, em 2014, a Lei 12.838 que reduz o Imposto

Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN)

de 5% para 2% para as empresas do setor de

Tecnologia da Informação (TI) que se instalarem

na cidade. Segundo o prefeito Bruno Siqueira,

a legislação foi feita pensando principalmente

no Parque Tecnológico, “uma vez que trazendo

empresas de tecnologia para Juiz de Fora vamos

garantir empregos com uma remuneração me-

lhor e, consequentemente, desenvolver o muni-

cípio em uma área em que ainda temos muito

a explorar”. Bruno adianta que a Prefeitura já

está analisando outras legislações que possam

garantir a redução de impostos para empresas

intensivas em conhecimento que se instalarem

na cidade. Esta é a segunda Lei Municipal criada

para beneficiar diretamente ao Parque. A pri-

meira foi sancionada em julho de 2010 (12.099)

que dispõe sobre a inclusão da Área de Especial

Interesse Econômico – AIEIE Parque Tecnológico

– no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano

de Juiz de Fora.

Outra legislação que beneficia diretamente o

empreendimento é a aplicabilidade do Decreto

45.218/09, do Governo de Minas, legislação

utilizada para combater a guerra fiscal com o

Rio de Janeiro. O instrumento legal equipara a

2% o percentual de cobrança do Imposto sobre

Circulação de Mercadorias e Prestação de Ser-

viços (ICMS) a ser arrecadado das indústrias de

Minas ao praticado em cidades próximas à divisa

com o Estado do Rio de Janeiro – por meio da Lei

Estadual 4.533/05, conhecida como Lei Rosinha.

Para o presidente da Fiemg – Regional Zona da

Mata, Francisco Campolina, o decreto, apesar

de não ser abrangente, foi importante para

que mais indústrias não saíssem da cidade. “A

legislação conseguiu estancar as indústrias que

estavam indo embora, trouxe outras empresas,

mas precisamos avançar muito, com legislações

mais modernas”, afirmativa que Paulo Nepomu-

ceno compartilha: “O mundo da inovação e da

tecnologia é muito dinâmico. E para acompa-

nhá-lo precisamos ter uma legislação moderna.

Para isso, estamos estudando junto à Prefeitura

e aos demais parceiros o que existe de legislação

no Brasil com o objetivo de propor algo que seja

realmente inovador e moderno”, garante o secre-

tário de Desenvolvimento Tecnológico da UFJF.

MAIS

DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Plano de Negócios do Parque Científico e Tecnológico da UFJF:

http://www.ufjf.br/critt/parque-tecnologico/plano-de-negocios/

Page 46: Revista A3:06

46 A3 - Abril a Agosto/2014

A memória humana em mídia: da arte em pedra ao chip

ENCONTROS POSSÍVEIS

Há alguns meses tenho ensaiado começar um diário. A sensação de deixar se perderem no vento as delícias de passagens cotidianas tem me

atormentado. Até mesmo para o simples registro de dados me pego vacilando, por exemplo, ao encontrar ex-alunos pela rua: “Oi, Fred!”. “E aí,

moça?!” - é o que devolvo, para não errar. Isso se agrava ao lembrar que quando criança construí no meio familiar uma razoável fama de garoto

com “boa memória”. Sabia de cabeça escalações de times de futebol, países e capitais, datas de aniversário de parentes não muito próximos, números de

telefone. Esse tipo de habilidade, porém, já não parece fazer tanto sentido (faz?). Tudo, uma vez armazenado, pode ser encontrado rapidamente numa

pesquisa na internet, em infinitos bancos de dados ou arquivos pessoais digitais. E o que fazer com a nossa memória?

Em passagem pelo Brasil, para vários eventos, a chefe do Departamento de Cultura, Mídia e Indústrias Criativas da King’s College de Londres, Anna Re-

ading, expôs conceitos e pesquisas que fundamentam a discussão acerca da memória na atualidade, em face do contexto digital. Em Juiz de Fora (MG),

no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), conversou com a revista “A3”, em entrevista conduzida por

mim e pela diretora do Mamm, Nícea Nogueira.

- Fred Belcavello: Como as tecnologias digitais

vêm impactando a noção de memória, as práti-

cas e formas de linguagem?

- Anna Reading: Penso que a memória digital

ou o que chamaria de memória “globital”, a

qual está relacionada com a digitalização, as

práticas digitais e a globalização, está alterando

radicalmente a memória humana de diversas

maneiras. Primeiro, em termos das práticas nas

quais estamos envolvidos, que largamente já se

tornaram inconscientes. Assim, por exemplo, se

você esquece o nome de alguém e precisa enviar

um e-mail, você pode acessar seus arquivos

digitais e localizar o nome e o e-mail por meio

de uma pesquisa. E isso não é muito diferente

do processo utilizado para armazenar aquela in-

formação anteriormente. Também significa, em

termos de processos educacionais, uma vez que

há tecnologias digitais e conectividades, não en-

sinar crianças nas escolas a memorizar grandes

calhamaços de poemas, literatura, ou datas e

acontecimentos históricos. Trata-se muito mais

de “o que fazer com aquela informação” do que

ensinar crianças a decorar, porque a informação

está em todo lugar, e o conhecimento está lá,

em algum lugar da “nuvem”, para ser acessado

por nós. Isso também significa que a linguagem

atual e as metáforas que usamos para descrever

nossas memórias mudaram. Assim, influencia-

dos pelos softwares que usamos, falamos em

“googar” coisas, por exemplo.

- Fred Belcavello: Você se preocupa com os prós

e os contras da memória digital?

- Há grandes benefícios que a memória digital

nos traz. Um deles é a capacidade de mudar as

relações de poder, no sentido de grupos privados

de direitos - minorias - capturarem memórias

que, por algum motivo, tinham se perdido.

Há uma pesquisa que faço, em websites, para

capturar memórias da comunidade romena,

da comunidade cigana na Europa. Trata-se da

maior etnia minoritária, somando 11 milhões de

pessoas, em 21 países europeus. Mas os ciganos

estão em todo lugar, porque foram forçados a

migrar. Assim, há ciganos na Austrália, na Amé-

rica Latina, na América do Norte. E é realmente

interessante perceber como eles podem capturar

em vídeo danças, poemas, elementos de cultura,

histórias... e há passagens horrendas, relaciona-

das com o holocausto. E essas histórias podem

se conectar de maneiras novas e contribuem

para mudar a autopercepção do povo romeno.

Isso muda sua identidade, de maneira muito

positiva.

- Fred Belcavello: E os contras?

- Acho que os contras estão relacionados a

quanto tempo nós gastamos olhando para telas.

E isso me preocupa. Muitas vezes me pego com

a TV ligada, iPhone em uma mão, iPad ao colo.

Com quantas telas podemos nos relacionar de

uma só vez?! E penso que isso se estende para

o fato de que devemos, também, lidar com tec-

nologia analógica. Outro fragmento de pesquisa

que realizo, por exemplo, observa um grupo de

protesto na Malásia que promove campanha

contra uma companhia de mineração. Os mani-

festantes acreditam que a empresa pode causar

poluição e radiação. Ao longo das negociações,

a companhia permitiu a entrada dos manifes-

tantes no local, mas proibiu que tirassem fotos

- digitais - do relatório que a empresa preparou,

detalhando o que faria com o lixo produzido. O

que os manifestantes fizeram? Usaram lápis e

papel! Era um grupo de 30 pessoas, que perma-

neceram no local por uma hora, escreveram o

máximo que puderam e, assim, conseguiram os

documentos que precisavam. Então, acho que

“O ato de performance de certas memórias, a performance de canções, a leitura de um livro ‘material’, o aprendizado de um poema, ainda penso serem cruciais como valores de humanidade”

Fred BelcavelloTradução e texto

Page 47: Revista A3:06

47A3 - Abril a Agosto/2014

ENCONTROS POSSÍVEIS

tecnologias digitais podem atuar como fantásti-

cos facilitadores para memórias, particularmen-

te para culturas marginalizadas, mas o ato de

performance de certas memórias, a performance

de canções, a leitura de um livro “material”, o

aprendizado de um poema, ainda penso serem

cruciais como valores de humanidade.

- Nícea Nogueira: Por que a globalização é

fator primordial nas discussões sobre memória

digital?

- Acadêmicos trataram globalização e digitaliza-

ção como independentes, por um longo período.

E a maneira que considero em minhas pesqui-

sas, particularmente nas relativas a telefones

celulares, concluiu que ambas trabalham juntas.

Assim, tem-se digitalização e globalização como

dinâmicas sinergéticas que estão mudando a

memória humana. “Globital” é a palavra que criei

para descrever isso, juntando “global” e “bit”, a

menor sequência contígua de dados em compu-

tação. “Globital” sugere que o processo de aces-

so às tecnologias digitais, múltiplos telefones,

múltiplos tablets, não é o mesmo para todos no

planeta; “Globital” é para sugerir que se trata de

um processo desigual, experimentado diferen-

temente por diferentes populações nos estados

nacionais, em termos de classe. Classes sociais

significam acessos sociais, e, possivelmente,

isso vale também para gêneros e etnias.

- Fred Belcavello: Por que você diz que a me-

mória é fluida, polilógica e performativa?

- Por muito tempo, particularmente no que

tange às explanações sociológicas sobre

memórias coletivas, os estudos eram feitos,

frequentemente, dentro do contexto dos esta-

dos nacionais e do senso de memória nacional.

E esse senso de memória era amarrado e fixo e,

geralmente, direcionado a um objeto de análise

para o qual poder-se-ia “olhar para” - analisar

um museu particular, por exemplo, em termos

dos seus artefatos e exposições; ou a captura de

histórias de um povo específico. Mas, novamen-

te, esse tipo de pesquisa fixa os objetos. O meu

ponto de vista é o de que a memória não é algo

fixo; ela está sempre mudando. Esta entrevista

[gravada em vídeo], assim que for publicada na

internet, será - espero - “tuitada”, segmenta-

da, reutilizada. E isso, na minha visão, é bom.

Permite-nos escapar dentro da “rede”, de uma

maneira que, anteriormente, seria muito mais

lenta para mudar as “memórias em mídia”.

- Nícea Nogueira: Como você explicaria o con-

ceito de “memória em mídia”?

- Acho que “memória em mídia” é um conceito

muito importante. Trata-se de pensá-lo em

três diferentes formas: uma, em termos do que

“Muitas vezes me pego com a TV ligada, iPhone em uma mão, iPad no colo. Com quantas telas podemos nos relacionar de uma só vez?! E penso que isso se estende para o fato de que devemos, também, lidar com tecnologia analógica”

Page 48: Revista A3:06

48 A3 - Abril a Agosto/2014

ENCONTROS POSSÍVEIS

chamaria de orgânico, é o corpo, o corpo humano

em várias formas. E, em seguida, temos o dado,

o dado digital que pode ser dividido em dois: há

o vegetal - papel, livros etc. - e há a memória mi-

neral. A memória mineral, é claro, está presente

nos computares, em forma de silício, ouro, nos

conectores e nas conexões. Esses três diferentes

tipos de memória têm longa história. Eu vivi por

quase dois anos na Austrália, e foi importante

para mim em termos de me encontrar com a

longevidade da “memória em mídia” aborígene.

Há exemplar de arte em pedra na Austrália de

50 mil anos e foi constantemente escoriado

por todo esse tempo. Aquilo é “memória em

mídia”, é o senso de primeira “memória em

mídia”. Existem seres humanos fazendo arte em

pedra, canções, danças. E, atualmente, temos

diferentes formas de “memória em mídia”, que

são imagens em iPads, websites, bem como na

grande mídia tradicional, como jornais, livros,

televisão etc. Eu incluiria, ainda, em termos

de elementos da “memória em mídia”, como

elementos materiais, espaços e edifícios. Uma

das coisas que me marcaram no meu curtís-

simo tempo aqui no Brasil é o significado da

arquitetura. Existem edifícios realmente belos,

alguns estupendos arquitetos brasileiros com

esse senso de um edifício como um espaço de

memória por um longo tempo que está por vir.

São os espaços pelos quais nos movemos que

realmente importam. Eles também são “memó-

ria em mídia”.

-

Fred Belcavello: O que é “memobilia” e quão

importantes são os telefones celulares para a

memória digital?

- Os celulares são realmente importantes para

a memória digital, para a memória humana,

atualmente. A grande diferença é que pode-

mos colocá-los no bolso, na bolsa, eles vivem

conosco. E, sejamos francos, quando não os

temos conosco nos sentimos ansiosos! Eu fiz

um estudo com alunos da London Southbank

University - instituto no qual trabalhava na

época - que disseram que quando não tinham

os celulares consigo sentiam-se nus, solitários,

ansiosos, e poucos deles, curiosamente, apon-

taram se sentirem livres. Portanto, esse é o tipo

de sentimento misto que temos com nossos

celulares. Entretanto, eles são uma “prótese de

memória vestível” e carregam memórias tão

mundanas quanto “lembre-se de trazer pão”,

que pedimos aos nossos companheiros no ca-

minho de casa por meio de mensagem de texto,

e isso permanece lá por muito tempo, assim

como “eu te amo” e muitas outras mensagens,

misturadas, todas juntas. E há as imagens que

temos nos celulares. É interessante perceber

como as pessoas compartilham imagens de

suas famílias nos locais de trabalho, porque as

imagens estão nos seus celulares. Não faríamos

isso há 20 anos. Não levaríamos nosso álbum de

família para o trabalho, mas, rapidamente, com-

partilhamos imagens nos nossos celulares. Essa

tecnologia provê um tipo de espaço protegido

que faz com que não haja problema em mostrar

“Onde estão aqueles espaços de memória autorreflexivas que acreditávamos serem privados? Onde poderemos externar os pensamentos privados que não diríamos a ninguém mais?”

Em passagem pelo Mamm, Anna Reading se encantou com a exposição “Um olhar livre”, do lituano Antanas Sutkus, um dos maiores fotógrafos da antiga União Soviética

Page 49: Revista A3:06

49A3 - Abril a Agosto/2014

o celular. Portanto, ele é muito importante. E o

que também mudou é a conectividade. O fato de

que mais espaços, atualmente, sejam pontos de

conexão, cobertos por rede wi-fi, significa que,

rapidamente, podemos publicar em redes sociais

as imagens que capturamos, acessar arquivos

de informação etc. Assim o que se tem são as

“memobilias” - representadas, por exemplo, por

jovens fotografando “selfies” (imagens de si

mesmo), trocando-as ao longo do dia infinita-

mente, publicando-as, preocupando-se com

essas imagens. E há, ainda, o que eu chamaria

de “wemobilia”, aquelas memórias que podemos

ter em situações coletivas.

No Brasil, poderia ser o carnaval: você tira fotos

do carnaval e compartilha; poderia ser o futebol.

Mas temos, ainda, “wemobilia” no caso de

imagens que testemunham atrocidades. Quando

ocorreram os atentados a bomba em Londres

em 2005, a primeira coisa que muitas pessoas

fizeram foi pegar o celular e tirar fotos, porque

os jornalistas não estavam nos locais atingidos,

ainda. Vemos mais e mais na dinâmica das gran-

des empresas de notícias o uso de imagens de

telefones celulares que, por sua vez, tem prazo

de validade muito curto. A pesquisa que fiz

sobre esse evento mostra que as imagens dos

atentados a bomba em Londres desapareceram

cinco anos depois. Portanto, elas não permane-

cem, e o que se tem no lugar são memoriais físi-

cos para as atrocidades e mortes, túmulos, que

continuam importantes. Todavia, os celulares

são, ainda, os reis em termos de serem capazes

de, instantaneamente, capturar memórias de

eventos e compartilhá-las.

- Fred Belcavello: Nesse contexto, o que acon-

tece com os limites entre a memória pública e

a memória individual?

- Essa é uma área mais problemática em face da

conectividade. Acho interessante, por exemplo,

que muitos pais optem por colocar imagens de

seus filhos no Facebook. Eu tenho dois filhos e a

política na nossa família é de que não publica-

mos fotos deles, porque eles não podem consen-

tir. Quando eles completarem 18 anos, poderão

consentir. Fora isso é caso a caso.

Uma biografia on-line, sobre à qual crianças não

têm controle algum, é muito diferente de ter

um álbum de família, no qual há imagens das

nossas crianças compartilhadas por familiares.

Outra mudança interessante se dá pelos blogs

e o deslocamento de um diário privado para a

escrita para terceiros, o que significa sempre

estar em diálogo com outro. Isso pode ser bom,

e também mau. Onde estão aqueles espaços

de memória autorreflexivas que acreditávamos

serem privados? Onde poderemos externar

os pensamentos privados que não diríamos a

ninguém mais? Assim, penso que há grandes

deslocamentos em termos do privado e do públi-

co que ainda estão por chegar a uma definição.

Não sabemos ainda o impacto para nós, como

seres humanos.

- Fred Belcavello: Quais as implicações da

adoção do sistema de nuvem como o princi-

pal modelo de arquivamento de informação

digital?

- O sistema de nuvem é interessante, em certa

maneira, até mesmo a metáfora por si só: é va-

poroso! Sugere que não está em lugar nenhum,

que a memória não está alojada em lugar ne-

nhum, e que não precisamos nos preocupar com

isso. Entretanto, nós nos preocupamos, porque

não sabemos onde estão. E o fato que importa

é que a nuvem não é uma nuvem. A nuvem é

uma fábrica. A nuvem é feita de vastas fábricas,

habitualmente em zonas rurais, porque são ne-

cessárias grandes extensões de terra para arma-

zenar essa informação. Alguns sites, Google, por

exemplo, são tão grandes em termos de área,

que dão aos empregados bicicletas para que eles

possam circular. E a nuvem também consome

muita energia elétrica e outros recursos mate-

riais. Frequentemente, as empresas estão em

tensão com comunidades locais, já que muitas

se instalam em cidades pequenas, porque os

terrenos são mais baratos, e, então, isso muda o

ambiente. Dessa forma, há condições materiais

inerentes à nuvem para as quais o usuário do

sistema também precisa ser alertado.

- Nícea Nogueira: Qual seria seu conselho para

um museu como esse, o Mamm, para preservar

em mídia digital sua coleção de literatura e

arte?

- Durante meu curto período na Austrália,

fiquei impressionada com o que o Governo fez

em termos do desenvolvimento do sistema

chamado “Trove”. Ele digitaliza objetos de uma

maneira particular que permite acessá-los a

partir de diferentes arquivos locais, permite que

as plataformas estejam conectadas. O grande

problema para a informação digital é, primeiro,

a longevidade. Frequentemente, digitalizamos

materiais sem o senso de como vamos reali-

mentá-los no futuro, porque eles vão requerer

realimentação no futuro. O outro problema são

as conexões entre os recursos. Assim, a melhor

maneira é fazer parte de um sistema que não

tenha apenas as coleções do seu museu, mas de

todos os museus pelo Brasil afora.

“Há condições materiais inerentes à nuvem para as quais o usuário do sistema também precisa ser alertado”

Anna Readinghttp://www.kcl.ac.uk/artshums/depts/cmci/people/academic/reading/index.aspx

http://annareadingarchive.com/

Confira a entrevista na íntegra: www.youtube.com/tvufjf

Confira a exposição “Um olhar livre”, do fotógrafo lituano Antanas Sutkus: http://www.museudeartemurilomendes.com.br/exposicoes/antanas/antanas.html

MAIS

ENCONTROS POSSÍVEIS

“A linguagem atual e as metáforas que usamos para descrever nossas memórias mudaram. Assim, influenciados pelos softwares que usamos, falamos em ‘googar’ coisas, por exemplo”

Page 50: Revista A3:06

50 A3 - Abril a Agosto/2014

Carolina NalonRepórter

DISSERTAÇÕES

As modificações no trajeto do Paraibunaao longo dos séculosLevantamento historiográfico feito pela mestre Camila Brasil relaciona o crescimento de Juiz de Fora às interferências no traçado do rio e abre debate sobre sua revitalização

Estabelecida ainda na antiguidade, a relação

entre rios e cidades vem sofrendo com

a urbanização um grande desgaste - de

essenciais para o desenvolvimento do tecido

urbano, os rios tornaram-se elementos de

ruptura, fontes de conflitos e deterioração

ambiental. Em Juiz de Fora (MG) não foi

diferente. O rio de águas escuras que corta a

cidade, o Paraibuna, mudou muito. Seus níveis

de poluição são preocupantes, não há mais

peixes e seu traçado foi alterado de forma

bastante significativa, tornando suas curvas

suaves e ajustadas ao concreto. O plano da

natureza, contudo, era outro e pode ser visto

na ilustração abaixo, elaborada com base em

estudo feito pela pesquisadora Camila Brasil.

Interessada no resgate desse patrimônio, a

mestre pelo Programa de Pós-Graduação em

Ambiente Construído da Universidade Federal

de Juiz de Fora (UFJF) realizou um levantamento

histórico sobre o traçado do rio por meio de

mapas antigos, planos diretores municipais,

jornais, revistas e livros. Como em um quebra-

cabeça, transformou cada parte no todo,

desenhando como seria o natural curso d’água

no século XIX e suas posteriores alterações pelo

homem. Na dissertação, também evidenciou as

implicações, tanto positivas quanto negativas,

dessas intervenções, chamando atenção para a

importância de um planejamento que minimize

os impactos no meio ambiente. Segundo a

autora, o trabalho é inédito. “Há obras que

tratam sobre as inundações em Juiz de Fora

e muitas outras sobre a poluição das águas,

mas nenhuma delas reúne as modificações do

traçado.”

50

Page 51: Revista A3:06

51A3 - Abril a Agosto/2014

DISSERTAÇÕES

Para seu orientador, o professor da Faculdade

de Engenharia da UFJF, José Alberto Barroso

Castañon, a dissertação tem enorme valor no

que diz respeito à recuperação de informações

esquecidas ou perdidas da história de Juiz de

Fora e, principalmente, à grande influência do

rio Paraibuna no desenvolvimento da cidade. “O

trabalho de Camila foi extremamente minucioso,

retomando períodos e informações nebulosas,

clareadas por ela.”

As intervenções no Paraibuna foram sempre

pautadas pela tentativa de se evitar as

enchentes e, apesar de promoverem grandes

benefícios para a população, hoje iriam de

encontro aos modelos urbanos e paisagísticos

ideais para as cidades. A preservação da

paisagem natural, além de contribuir com a

qualidade de vida, constrói uma identidade

própria do lugar. “Sabemos que não é mais

aceitável pensar em retificar um rio, revestir seu

leito vivo com calhas de concreto, e substituir

suas margens vegetadas por vias asfaltadas,

como uma alternativa de projeto para sua

inserção na paisagem urbana”, explica a autora

no trabalho.

Ainda de acordo com Camila, Juiz de Fora

adaptou o rio às suas necessidades, crescendo

sem integrá-lo como elemento dinâmico da

paisagem. Ela acredita que estudos de memória,

como o dela, podem ser capazes de despertar

o olhar da população e do poder público para o

protagonismo do Paraibuna. “Grande parte das

pessoas que passa pelas margens não percebe

seu significado histórico, econômico e social para

a formação da cidade.”

O PASSADO NA CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM DE HOJEO texto da dissertação atravessa os três séculos

relacionando as transformações do Paraibuna

ao crescimento da cidade. Mapas de ocupação

da região, desde os primeiros assentamentos

após a abertura do Caminho Novo (1707) até

os dias atuais, foram elaborados por Camila

com o sentido de evidenciar como a mancha

urbana se estabeleceu ao longo do vale. Com as

construções da Estrada União Indústria (1861) e

da Estrada de Ferro D. Pedro II (1875), a mancha

passa a se adensar, caminhando em direção às

montanhas que cercam Juiz de Fora e também

em direção à Zona Norte, cuja população deu um

grande salto nas décadas de 1960 e 1970.

O estudo não poderia deixar de contextualizar

os momentos econômicos e sociais de cada

época para justificar as alterações do curso

d’água. As primeiras delas foram observadas

ainda em 1884, quando se inicia o período

de industrialização da cidade. Intervenções

corretivas foram promovidas com o intuito de

solucionar os problemas urbanos de saneamento

e os grandes pontos de alagamentos, já que

Juiz de Fora sempre foi uma região bastante

pantanosa. Aos poucos, essas áreas alagadiças

foram aterradas, dando lugar às novas fábricas e

às residências de trabalhadores recém-chegados

à “Manchester Mineira”. Um dos exemplos é

o local onde hoje se encontra a Praça Antônio

Carlos e a Praça do Canhão (1). Bem próxima

a um grande meandro do rio, a área sofria

regularmente com suas cheias, sendo aterrada

e vendida aos comerciantes da época por baixo

custo.

A primeira tentativa de um plano diretor do

município aconteceu em 1893, quando a Câmara

Municipal encomenda ao engenheiro francês

Gregório Howyan o Plano de Saneamento e

Expansão da Cidade de Juiz de Fora. Na época,

o transbordamento das águas dos rios, em

conjunto com as chuvas, causavam alagamentos

nas áreas centrais da cidade. Como era costume

jogar o esgoto nos cursos d’água, os dejetos

se misturavam com as águas transbordadas

gerando graves quadros de doenças. A proposta

não pôde ser colocada em prática de imediato

e os alagamentos continuaram frequentes até

que uma grande inundação em 1940 motivou a

elaboração de um novo plano - o de Defesa de

Juiz de Fora contra as Inundações do Paraibuna.

As medidas planejadas para modificar o

51

Page 52: Revista A3:06

52 A3 - Abril a Agosto/2014

DISSERTAÇÕES

rio dentro do perímetro urbano incluíram

dragagem, desmonte de rochas, escavações,

aterros, proteção das margens, reconstrução

e alargamento de pontes, desvio da Rodovia

União Indústria e desapropriações. Também

em 1940 tem início o projeto de construção da

Avenida Brasil (2), localizada às margens do

rio e chamada na época de Avenida Paraibuna.

Para a retificação do rio e construção da via,

diversas propriedades foram desapropriadas,

fazendo com que as margens tivessem uma área

de respiro. As mudanças, segundo a pesquisa

de Camila, faziam parte do idealismo de um

novo centro urbano, com avenidas e praças

ajardinadas. Na década seguinte, em 1950, as

intervenções tiveram prosseguimento com a

conclusão da Variante Howyan (3), prevista

pelo engenheiro francês ainda no século XIX. O

amplo canal, que altera uma das curvas do rio,

é reforçado com paredes laterais calcadas de

pedra e percorre os bairros Costa Carvalho e Poço

Rico.

Já entre os anos de 1960 e 1970, as modificações

ficam mais restritas à Zona Norte, com o

estabelecimento de novas fábricas no local.

Diversos pontos foram desviados e aterrados,

principalmente ao longo dos bairros Jóquei Clube

(4) e Distrito Industrial (5). Neste último, as

correções atingem cerca de 30 quilômetros e

visavam regular a vazão de água da barragem

Chapéu D’Uvas. Até hoje acontecem inundações

do Paraibuna na Zona Norte.

A autora cita ainda inúmeras obras, do

passado e contemporâneas, que contribuíram

para a configuração urbana da atual Juiz de

Fora. Outros personagens também têm sua

Camila Brasil: “Há obras que tratam sobre as inundações em Juiz de Fora e muitas outras sobre a poluição das águas, mas nenhuma delas reúne as modificações do traçado do rio Paraibuna”

Em seu trabalho, a pesquisadora também evidenciou as implicações, tanto positivas quanto negativas, dessas intervenções, chamando atenção para a importância de um planejamento que minimize os impactos no meio ambiente

Page 53: Revista A3:06

53A3 - Abril a Agosto/2014

DISSERTAÇÕES

Camila Campos Grossi BrasilMestre em Ambiente Construído pela UFJF; especialista em Gestão do Patrimônio Cultural pela Faculdade Metodista Granbery;

arquiteta e urbanista pela UFJF; atualmente é analista de projetos da Secretaria de Atividades Urbanas da Prefeitura de Juiz de Fora

Leia a dissertação em http://migre.me/hwqPR

http://lattes.cnpq.br/3583202035257735

[email protected]

MAIS

importância registrada, como os engenheiros

Francisco Saturnino Rodrigues de Britto e

Lourenço Baeta Neves, que propuseram em

1915 o Plano de Saneamento de Juiz de Fora;

Francisco de Paula Bicalho, responsável por

dar prosseguimento ao plano de Gregório

Howyan; e Itamar Franco, que promoveu a

canalização do córrego central, transformado-o

em via: a Avenida Independência, atual Avenida

Presidente Itamar Franco (6).

Para a pesquisadora não há dúvidas de que

Juiz de Fora e o Paraibuna seriam bastante

diferentes sem as intervenções. “O processo

de crescimento da cidade altera diretamente

a hidrologia, a morfologia e a qualidade da

água, afetando toda uma estrutura das

funções do rio. E, por outro lado, sem as

modificações, a distribuição dos efluentes ficaria

comprometida e a disposição dos logradouros,

da mancha urbana, teria outro formato. É a

proximidade com o curso d’água que direcionou

a configuração espacial da cidade ao longo da

história.”

PERSPECTIVASO estado do rio Paraibuna hoje é crítico,

justamente no trecho em que ele passa por Juiz

de Fora. Seu Índice de Qualidade da Água (IQA),

que leva em conta fatores como oxigenação,

temperatura, presença de coliformes e resíduos,

é considerado ruim e está na faixa entre 26

e 50. Para ser classificado como bom, o IQA

deveria ser superior a 70. A mesma realidade

atinge grande parte dos rios do país. O rio das

Velhas, que cruza Belo Horizonte, possui 800

quilômetros de área degradada, contando com

esgoto de 2,3 milhões de pessoas, lixões nas

suas margens, areais clandestinos e ocupação

irregular. Além do esgoto, o rio das Velhas possui

um alto índice de substâncias tóxicas, segundo o

Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam).

O Tietê, em São Paulo, apesar de ainda em

condição bastante ruim, começa a colher

resultados do plano de revitalização iniciado em

1992. Duas das quatro fases do projeto já foram

executadas, permitindo a redução de cerca de

160 quilômetros na mancha de poluição e o

reaparecimento de peixes em trechos afastados

do centro. A intenção é que o índice de coleta e

tratamento do esgoto chegue a 100% em 2024.

Exemplo mundial, a revitalização do

Cheonggyecheon, que corta a cidade de Seul

(Coreia do Sul), demorou bem menos que isso

para ser concluída. Em apenas quatro anos, foi

possível promover a despoluição do rio, retirar

uma autoestrada construída para cobrir seu

curso, criar parques e recuperar grande parte

da vegetação. As obras, além de devolverem

a região aos moradores, contribuíram para

modificar até mesmo a temperatura de Seul

que, na área revitalizada no canal, caiu em média

3,6°C em relação a outros locais da cidade. Para

o professor José Alberto Castañon, já existe uma

consciência global de que não há sobrevivência

das metrópolis sem a participação de seus rios.

Resguardadas as devidas proporções, Juiz de

Fora pode caminhar neste sentido, se houver

um esforço contínuo das gestões municipais,

tornando o Paraibuna uma prioridade da agenda

política. Criado em 2006 e com orçamento atual

de R$ 130 milhões, o Programa de Revitalização

Urbana e Recuperação Ambiental do rio

Paraibuna passou por várias interrupções, mas

pode este ano tomar corpo com a instalação de

redes interceptadoras e a construção de uma

nova Estação de Tratamento de Esgoto (ETE),

na região Sudeste. A previsão é de que, em dois

anos, seja possível aumentar de 10% para 65%

o índice de esgoto tratado na cidade e, em cinco

anos, chegar à totalidade do tratamento.

Em uma segunda etapa, ainda sem data

definida, o projeto prevê a revitalização

paisagística e o reflorestamento das margens

do rio em 20 quilômetros lineares - um grande

ganho em qualidade de vida para a população

que já adota as calçadas estreitas e irregulares

de suas margens para a prática de corrida e

caminhada. “É chegada a hora de começarmos

a ver o Paraibuna, não só como partícipe do

esgotamento dos efluentes, mas, também,

como um ‘ser vivo’ e componente da cidade, tão

importante que, sem ele, a cidade não existiria”,

avalia o professor Castañon.

É esta também a percepção da pesquisadora

Camila Brasil. Para ela, é importante que

a população esteja envolvida no projeto

de revitalização, entendendo seu papel na

preservação do meio ambiente. “A ação

integrada do poder público, de técnicos,

ambientalistas e da população faz-se não só

urgente, como imperativa. Sem a articulação

dos muitos atores que têm interesses e

preocupações diversas sobre o espaço urbano,

deixaremos que muitos rios urbanos percam sua

função primordial de alento à vida comunitária

para serem vistos como vilões numa história em

que são mais vítimas do que algozes.”

As intervenções no Paraibuna foram sempre pautadas pela tentativa de se evitar as enchentes e, apesar de promoverem grandes benefícios para a população, hoje iriam de encontro aos modelos urbanos e paisagísticos ideais para as cidades

Page 54: Revista A3:06

54 A3 - Abril a Agosto/2014

Quando viveremosem ecocasas?

serviços durante toda a vida útil, e pelo valor agregado devido à iniciativa

sustentável. Infelizmente, ainda falta a percepção do governo, empresários

e consumidores quanto à recuperação do investimento em uma residência

desse tipo.

Na vanguarda das construções sustentáveis, países como Alemanha, Reino

Unido e Estados Unidos já perceberam esse retorno há anos. Segundo

dados do governo, até junho de 2013, o Reino Unido havia lançado cerca de

200 mil casas sustentáveis. O governo britânico é o principal investidor em

tecnologias ecológicas, buscando diminuir sua dependência em combustíveis

fósseis, além de garantir a disponibilidade futura de recursos naturais.

Nosso país começa hoje a ver as sementes de mudança. Podem-se citar

os novos Planos Diretores Sustentáveis das cidades de Curitiba (PR) e

Florianópolis (SC), a instalação de painéis solares em alguns conjuntos

habitacionais do programa Minha Casa Minha Vida, e a certificação

ecológica de edifícios nas grandes cidades desde 2004, como evidência que

engatinhamos na direção certa. Em Juiz de Fora (MG), foi lançado o Projeto

Vila, pela ONG Onda Solidária, que busca desenvolver um modelo de vila

ecológica focada no desenvolvimento ambiental e social da comunidade.

O Brasil possui enorme potencial sustentável, ainda dormente. Liderança e

subsídios por parte do governo brasileiro estão em falta, e são fundamentais

nessa etapa do desenvolvimento sustentável. É ainda, necessário que a

indústria da construção civil abrace a causa, deixando para trás sua atual

filosofia de lucro-máximo-a-qualquer-custo. Principalmente, é necessária

uma mudança na mentalidade do brasileiro: nossos recursos naturais são

finitos e insubstituíveis. Assim, com educação e incentivo certos, poderemos

construir nossa casa sustentável muito em breve.

As habitações sustentáveis ou ecocasas utilizam recursos naturais

mais responsáveis e eficientes, em comparação com as construções

convencionais. A incorporação de práticas sustentáveis é feita em

todas as fases: concepção, construção, operação e demolição. Em um alto

nível de aperfeiçoamento, a residência pode até mesmo ser construída

autossuficiente. Alguns benefícios da implantação de tecnologias

sustentáveis são: redução no consumo de energia elétrica, água e insumos;

diminuição do custo de operação da casa; e preservação dos recursos

naturais para as gerações futuras.

Por definição, as habitações sustentáveis se comprometem a consumir o

mínimo possível de recursos energéticos e hídricos; utilizar materiais de

construção de proveniência certificada; garantir reciclagem e descarte

adequados do lixo; não poluir o meio-ambiente; e zelar pela biodiversidade

local. O conforto e o bem-estar dos moradores, bem como a acessibilidade,

são aspectos fundamentais na concepção de uma residência sustentável.

Em conjunto, as habitações sustentáveis dão origem às vilas sustentáveis.

Além do benefício individual de cada unidade, as vilas compartilham serviços

prestados e rateiam custos como usinas de compostagem, drenagem

sustentável, aquecedores solares e centrais de água. Mas com todas essas

vantagens, por que não moramos todos em ecovilas hoje?

No Brasil, as iniciativas sustentáveis são individuais e esparsas.

Atualmente, a maior desvantagem do processo de construção de uma

residência ecologicamente responsável é o preço. As soluções sustentáveis

não estão disponíveis em larga escala no mercado doméstico: muitas são

patenteadas e/ou importadas e requerem mão de obra especializada. O

alto custo inicial é, entretanto, compensado com a redução nas contas de

Julia Castro Mendes*

* Estudante do 10º período de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFJF, venceu o concurso de redação do Grupo de Educação Tutorial (GET) do curso, realizado em 8 de

novembro de 2013

INICIAÇÃO CIENTÍFIC A

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55A3 - Abril a Agosto/2014

Intermidialidade: invenção e descoberta de novos processos de linguagem

fenômenos representam “laboratórios de experimentação” de linguagem

envolvendo novos tratamentos de “velhos processos”, em novos meios. A

ideia de que tais fenômenos podem representar a invenção ou a descoberta

de novos processos deve estar relacionada à “desautomatização de hábitos”

de leitura e de padrões interpretativos. Mas tal ideia merece ainda uma

exploração mais cuidadosa, e temos trabalhado nisso.

Recentemente iniciamos, no Instituto de Artes e Design (IAD) da

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em colaboração com o Programa

de Pós-graduação de Estudos Literários, por meio de Daniella Aguiar, um

núcleo de produção dedicado à intermidialidade e tradução intersemiótica

(http://www.ufjf.br/traducaointersemiotica/). Este grupo é constituído

por alunos de graduação, pós-graduação, professores da UFJF e de outras

instituições brasileiras e estrangeiras. Como informamos no website, o

“grupo dedica-se à exploração de teorias sobre tradução intersemiótica e

fenômenos de intermidialidade e à produção criativa de traduções, em

diversos domínios.” Trata-se de um grupo em fase inicial de produção, mas

já se encontram em fase intermediária de tradução, autores como Borges,

Chao Yuen Ren (Imagem 2), Edgar Poe, Gertrude Stein e outros.

Pintura, dança, música, literatura ... tais “formas artísticas”, que

reconhecemos como independentes, são estudadas por domínios

também mais ou menos independentes. Historicamente separados,

identificamos esses domínios como “departamentos” e seus objetos como

“expressões artísticas”. Não nos confundimos ao atribuir o termo “cinema”

a um filme de Tarantino, e “dança” a uma peça de balé clássico. Nem

hesitamos ao chamar de “música” um quarteto de Cage, de pintura uma

tela de Klee.

Mas muitos exemplos podem criar problemas. Como classificar uma

exposição-dança-instalação da coreógrafa Sasha Waltz? Ou um poema-

visual de Augusto de Campos (Imagem 1)? Casos típicos de objetos

inclassificáveis, no limite entre diversos processos de linguagem, eles

encontram-se entre a dança, a cenografia e as artes visuais, no primeiro

exemplo, e entre a poesia, as artes visuais e o design gráfico, no segundo.

Seus estudos também apresentam dificuldades interessantes, porque

são exigidos métodos combinados. Testemunhamos, nos últimos anos, o

surgimento de um fértil ambiente, recém-revigorado pelo aparecimento de

muitos centros de pesquisa, e nutrido pelo cruzamento de diversos domínios

artísticos. Eles são conhecidos como fenômenos de Intermidialidade.

Qual sua importância? Temos afirmado, em diversos trabalhos, que tais

João Queiroz*Daniella Aguiar**

* Professor da graduação e do Programa de Mestrado do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF

** Pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em Letras - Estudos Literários da UFJF.

ARTE

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56 A3 - Abril a Agosto/2014

Boas dicas de leitura entre as novidades da Editora UFJF

L ANÇAMENTOS

Paulo Freire, no livro “A importância do ato de ler” diz que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não

possa prescindir da continuidade da leitura daquele”. E, para podermos mais uma vez abrir estradas rumo à compreensão deste mundo, por meio das

palavras, nada melhor do que dar uma olhada nos lançamentos da Editora UFJF. E as opções são boas, começando pela pesquisa que revela os caminhos

das universidades de Coimbra (a mais antiga de Portugal) e UFJF. Outra leitura interessante mostra retratos diversos - migrante, catador de papel, morador

de favela - revelados na profundidade de seus sentidos culturais. E, ainda, o resgate do trabalho deCharles Sanders Peirce, fundador do pragmatismo e um

lógico que contribui em várias áreas.

QUE UNIVERSIDADE? INTERROGAÇÕES SOBRE OS CAMINHOS DA UNIVERSIDADE EM PORTUGAL E NO BRASIL

(Luís Reis Torgal e Angelo Brigato Esther – R$ 46)

Duas experiências universitárias distintas e uma

interrogação pertinente sobre o papel de uma

das instituições mais duradouras conhecida

atualmente. Este é o enredo escolhido pelos

autores para lançar luz sobre as histórias

das universidades brasileira e lusitana. A

onipresente pergunta “Que Universidade?” abre

o debate sobre o sentido das universidades e dos

ensinos superiores em geral, levando a pensar

criticamente sua fundação, suas reformas e

suas realidades e perspectivas atuais. Esta

parceria entre a Universidade de Coimbra e a

UFJF presenteia os leitores, portanto, com ricos

aportes de reflexão sobre a universidade nos

dois países e sobre os desafios mais amplos da

educação superior.

A Editora UFJF está situada na Rua Benjamin Constant 790, no prédio do Museu de Arte

Murilo Mendes (Mamm) - Juiz de Fora/MG. Tel: (32) 3229-7646

[email protected]

www.editoraufjf.com.br

MAIS

A LÓGICA DE DIAGRAMAS DE CHARLES SANDERS PEIRCE: IMPLICAÇÕES EM CIÊNCIA COGNITIVA, LÓGICA E SEMIÓTICA

(Lafayette de Moraes e João Queiroz – R$ 36)

Peirce foi o fundador do pragmatismo e

um lógico que contribuiu em diversas áreas

como meteorologia, psicologia experimental,

fotometria estelar, economia matemática,

filosofia, linguística, história, dentre outras.

Porém, por mais admirável que seja seu

trabalho, este permaneceu na obscuridade

por muito tempo, principalmente sua teoria

sobre os Grafos Existenciais (GE). E, por mais

difícil que possa ser a tarefa de analisar e

avaliar os impactos dos GEs, o livro conta com

vários pensadores e estudiosos na área que, de

diferentes formas e perspectivas, lançam luz em

diversos campos de estudos.

ESPAÇOS RESIDUAIS: ANÁLISE DOS DEJETOSCOMO ELEMENTOS CULTURAIS

(Raquel Rennó – R$ 29)

Resíduos: tudo aquilo que foi descartado ou

subjugado pela sociedade, mas para Raquel

Rennó são os elementos escolhidos para

trabalhar. Ela nos expõe os resíduos da cultura

como uma poética do intersticial e do excluído.

Numa rigorosa pesquisa acadêmica, a autora

confere voz e sentido ao que é usualmente

relegado ao lugar de excluído, sujo, sobra,

sucata. Cenas brasileiras e internacionais são

percorridas, onde espaços e práticas residuais

são recolhidos, recuperados e ressignificados.

Numa epistemologia em que o marginal ganha o

centro, retratos diversos, como os de migrantes,

catadores e moradores de favela, são revelados

na profundidade de seus sentidos culturais.

Fernando Lobo

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57A3 - Abril a Agosto/2014

O Holocausto Brasileiro:60 mil mortes em Barbacena Glauco Moreira de Moura*

doses elevadas (muitas vezes incompatíveis

entre si), provocando reações adversas terríveis,

mas também quando são submetidos a

quantidades excessivas de eletrochoques em

casos que sabidamente são eles inúteis, mas

não deixam de expor o paciente aos riscos da

anestesia e ao estado de torpor pós-choque.

Isso, sem mencionar os demais aspectos

circunstanciais da tragédia vivida por essas

pessoas e, claro, os aspectos éticos bioéticos.

Nessa ordem de ideias, parece que a jornalista

Daniela Arbex chamou para si uma enorme

responsabilidade: continuar relatando o

holocausto brasileiro, para o que necessitaria

ainda, no mínimo, de uns 80 volumes

subsequentes, só para ficar no âmbito do

tratamento psiquiátrico. Assim, fica a sugestão

e a esperança de que esta obra não seja uma

última palavra, mas o início de uma conversa.

Mesmo bem antes de o Brasil

compreender o verdadeiro significado

do livro, a jornalista Daniela Arbex

sintetiza suas pesquisas em torno do

tratamento psiquiátrico no então hospital

Colônia, na cidade de Barbacena (MG) e publica,

em 2013, a obra “Holocausto Brasileiro”, pela

Editora Geração. Trata-se de tarefa árdua, pois

revela a verdade e, como entre nós soemos

acontecer, a afirmação da verdade quase

sempre coloca seu autor em situação bastante

melindrosa diante da sociedade; de seus pares.

O certo é que a obra relata fatos ocorridos

e comprovados no tempo e no espaço que

menciona, resultando na morte de um número

em torno de 60 mil pessoas e colocando em

xeque o tratamento psiquiátrico no Brasil...

realmente é preciso muita coragem!

De se observar que o título é bastante

contundente: “Holocausto brasileiro”.

O sacrifício, o sofrimento, a dor, a desesperança,

* Advogado e professor

a solidão, o vazio... o nada de pessoas que

sofrem de alguma enfermidade mental e

procuram ou são levadas a se tratarem.

Todavia, fora utilizado para rotular uma fração

muito pequena do sofrimento dos pacientes

psiquiátricos no Brasil, sem retirar a importância

dos eventos relatados em Barbacena. É que

o holocausto brasileiro, infelizmente, é muito

maior do que isso e, pois, não faz parte somente

do passado, mas está bem presente tanto em

hospitais, quanto em consultórios médicos,

tendo como protagonistas não só os pobres,

abandonados, incapacitados e miseráveis, mas

também os ricos, abastados e poderosos. É o

momento em que o princípio da igualdade se faz

presente de forma mais efetiva e convincente:

na barbárie e no empirismo do tratamento

psiquiátrico no Brasil. São inúmeros os casos

de pacientes alvos da ignorância médica,

não apenas quando são levados a ingerir

quantidades enormes de medicamentos e em

LITER ATUR A

57A3-Abril a Agosto/2014

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58 A3 - Abril a Agosto/2014

“Contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”

Alessandra Brum*

CINEMA

* Professora do Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens e do Bacharelado em Cinema e Audiovisual do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF

A atriz Anna Karinne Ballalai e o cineasta, produtor e roteirista Roman Stulbach em uma das cenas mais hilárias e líricas do filme

“Contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”, essa é uma das

frases contidas no “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, de Oswald

de Andrade, publicada no “Correio da Manhã”, em 18 de março de

1924. Essa frase poderia perfeitamente nos servir para definir “Nenhuma

fórmula para a contemporânea visão do mundo” (82min), primeiro longa-

metragem de ficção de Luís Rocha Melo, cineasta, pesquisador e professor

do Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens e do curso

de Bacharelado em Cinema e Audiovisual do Instituto de Artes e Design

(IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A inspiração para o

título de seu filme veio justamente deste Manifesto de Oswald de Andrade.

O processo de produção, por si só, mereceria um olhar diferenciado para

o filme. Realizado de forma totalmente independente, no sentido pleno

da palavra, com poucos recursos financeiros, sem incentivo fiscal, com

equipamento digital não profissional, uma equipe pequena contando com

a participação de amigos, “Nenhuma fórmula…” se insere no conjunto

de filmes do cinema brasileiro atual que buscam quebrar as regras

estabelecidas por um mercado cinematográfico padronizado e opressor que

se fecha para a diversidade, a criatividade e a invenção.

“Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo” narra as

desventuras do processo criativo da jovem escritora Carola Brecker que em

crise após ter se separado do marido Mickey, se muda do Rio de Janeiro

para São Paulo a convite do gangster cultural Al Gazarra para escrever 42

peças de teatro sobre o deus Pan, que será encenada pelo diretor polonês

Tadeusz Karkovski. De forma cômica, a excentricidade do diretor polonês

levará Carola Brecker a um passo da loucura.

Destacamos a atuação de Anna Karinne Ballalai, também roteirista do

filme, no papel de Carola Brecker, e do cineasta, produtor e roteirista Roman

Stulbach, recentemente falecido, atuando pela primeira vez em filmes, no

papel do diretor polonês. Os dois protagonizam juntos uma das cenas mais

hilárias e líricas do filme. Luís Rocha Melo investe numa direção de atores

que privilegia uma atuação livre, e algumas vezes improvisada, em perfeita

harmonia com a cidade. Aliás, ponto alto é exatamente a forma como Luis

Rocha Melo nos introduz organicamente no ambiente urbano das cidades

de São Paulo e Rio de Janeiro, entre ruas e avenidas, restaurantes, e até

mesmo num grande passeio por uma exposição em homenagem ao cineasta

Rogério Sganzerla.

Sem nenhum medo de experimentar, Luís Rocha Melo e Anna Karinne

fazem uma grande homenagem ao próprio cinema, com referências a vários

gêneros do cinema clássico, como os filmes de gangster e os musicais,

passando pela chanchada, o cinema marginal e a Nouvelle Vague, tudo

em perfeito diálogo com sua própria concepção de criação, sem fórmulas

preconcebidas, e que não se acomoda esteticamente.

Luís Rocha Melo nos mostra que é possível realizar um cinema de qualidade

com pouco recurso financeiro, bastando para isso uma boa ideia, bons

amigos e uma enorme vontade de fazer cinema, encorajando aqueles que

querem se lançar na realização de filmes.

“Nenhuma fórmula para a contemporânea visão do mundo” é a expressão

criativa de quem tem o que dizer e sabe como contar uma história, deixando

para nós a lição de que o essencial está em ver e ouvir com olhos livres!

Foto

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ulga

ção

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59A3 - Abril a Agosto/2014

ENSAIO FOTOGR ÁFICO

O fotógrafo vê a históriaO povo nas ruas de Juiz de Fora e sua luta por liberdade e democracia pelo olhar de Humberto Nicoline

Rodrigo Barbosa *

59A3-Abril a Agosto/2014

Em frente ao Cine-Theatro Central (em 1984, antes da restauração) a luta pelas eleições diretas estava nas ruas (e na cara)

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60 A3 - Abril a Agosto/2014

O fotógrafo nunca está na rua impune-

mente. Há muito ele renunciou ao direito

de andar sem olhar, àquele flanar que

nós, demais mortais, praticamos usualmente.

Lá vamos nós – eu e você – pelas ruas, olhando

para os nossos pensamentos, para os problemas

que vamos enfrentar no nosso destino, para as

palavras que teremos que usar quando chegar-

mos, para as imagens que deixamos para trás

(ou que nos deixaram), para aquela notícia lida

no jornal, para aquela canção que tocou no rádio.

Caminhamos com nossas ideias, nossos planos,

nossas raivas, nossas pequenas e grandes emo-

ções. Às vezes, sorrimos e até falamos sozinhos.

O fotógrafo não.

O fotógrafo anda com seus olhos de ver a

cidade. De ver as coisas, de ver as pessoas, de

ver os prédios, de ver as árvores. De enxergar

o grande e o pequeno. A história se apresenta

por imagens, despudorada, ao olhar arregalado

do fotógrafo. E ele a vê. Torna-se prisioneiro

da história que desfila diante dele e dá o troco:

aprisiona, captura, faz da história refém eterna

de sua lente, extensão dos seus olhos.

A história está nas ruas porque a história está

nas pessoas – e as pessoas estão nas ruas. É

claro, as pessoas (e a história) também estão

nas alcovas, nos palácios, nos templos, nos

escritórios, nas casas (e o fotógrafo, aliás, tam-

bém está lá, com seu olho espião). Mas, desde

nossos tataravôs gregos, os fatos, os destinos,

as decisões estão explodindo nas ágoras, nas

praças, nas avenidas, nos boulevards, nos largos

e parques. São nestes espaços que a história se

faz mais viva ou, talvez, mais visível para o olhar

inquieto do fotógrafo.

ENSAIO FOTOGR ÁFICO

Na despedida de mais um ano, 1982, a tradicional chuva de papel picado salpicava de renovada esperança a face (e o coração) da juizforana

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61A3 - Abril a Agosto/2014

ENSAIO FOTOGR ÁFICO

O fotógrafo nos convida: vem pra rua! Vem comigo ver a his-

tória! A palavra rua vem do latim ruga, que significa isto mes-

mo que você está lendo e pensando: ruga, sulco, dobra. Lá no

comecinho de Roma, as ruas eram marcadas pelas rodas das

carroças, que deixavam a terra com aquele aspecto de sulca-

da, “enrugada”. Assim como a roda da nossa história pessoal

deixa suas marcas no nosso rosto, no nosso corpo, enrugados.

A ruga/rua é a tatuagem da história; do homem e da cidade.

Nas ruas/rugas de Juiz de Fora, o povo fez história. E o fotó-

grafo foi atrás. Estas mesmas ruas que foram pisadas pelas

tropas que marcharam há 50 anos, em março de 1964, rumo

ao Rio de Janeiro e ao Golpe Militar, foram ocupadas nas dé-

cadas seguintes pelos sonhos e lutas do povo. Estivemos lá,

juiz-foranos, estudantes, professores, trabalhadores, artistas,

homens, mulheres de todas as idades e de todos os cantos da

cidade (e o fotógrafo, é claro!).

Do Campus da UFJF, nos anos 80, um rio de indignação e de luta nascia para depois inundar a cidade

ENSAIO FOTOGR ÁFICO

61A3-Abril a Agosto/2014

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62 A3 - Abril a Agosto/2014

O povo marcou as ruas de Juiz de Fora com os sulcos da

indignação, da esperança, da coragem que transforma.

Grudou no rosto e no corpo sua mensagem por liberdade e

democracia. Formou o imenso cordão de gente, que desceu

feito um rio do Campus da Universidade para o centro. Fez

vigília no Parque do fundador da cidade para vibrar feito

um gol por cada voto lá em Brasília em defesa do direito de

escolher o Presidente. Furou a barreira de coturnos (mistérios

da língua: será coincidência que esta palavra tanto se pareça

com “soturno”?). Espiou pela fresta da parede de soldados e

apanhou no chão o catavento-bandeira como quem colhe no

asfalto a rosa do povo de Drummond.

A ordem militar quebrada por gestos e olhares inocentes, em desfile na Avenida Getúlio Vargas, Centro de Juiz de Fora, em 1982

ENSAIO FOTOGR ÁFICO

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Desde cedo, aprendendo a protestar, em manifestação contra fechamento de uma escola no bairro São Pedro, em Juiz de Fora, em 1984

Os punks também registravam a sua vontade em manifestação em janeiro de 1984

O POVO AO PODER

Castro Alves

Quando nas praças s’eleva

Do Povo a sublime voz...

Um raio ilumina a treva

O Cristo assombra o algoz...

(...)

A Praça ! A praça é do povo

Como o céu é do condor

É antro onde a liberdade

Cria águias em seu calor

ENSAIO FOTOGR ÁFICO

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64 A3 - Abril a Agosto/2014

No coração da cidade, esquina de Avenida Rio Branco e rua Halfeld, a representação política ganha as ruas e novos partidos, como o PT (novembro de 1982)

De olho no placar e ouvidos atentos aos alto-falantes, a “torcida” da Diretas se reuniu no Parque Halfeld, em abril de 1984

ENSAIO FOTOGR ÁFICO

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O olhar do fotógrafo nos convida a ver a história

na rua. O povo na praça. E “Quando nas praças

s’eleva / Do Povo a sublime voz... / Um raio

ilumina a treva / O Cristo assombra o algoz...”,

cantou o poeta. O raio que ilumina a treva cria a

imagem que fica. E a imagem que fica não é a

do General Mourão Filho e sua tropa saindo do

quartel no Mariano Procópio para inaugurar a

A fé superando o desconforto durante visita da imagem de Nossa Senhora de Aparecida, em Juiz de Fora, em 1986

Humberto Nicoline, jornalista e poeta da imagem, que vive nas ruas a

decifrar Juiz de Fora, com seu jeito doce, sua sensibilidade e seu suor,

com suas câmeras antes analógicas e hoje digitais e, principalmente,

com seu olhar de ver a história.

*Secretário-adjunto de Comunicação e professor da Faculdade de Comunicação da UFJF

ditadura. A imagem que não se apaga é a imagem

da praça: a praça! A praça que é do povo como o

céu é do condor. O povo na rua, neste “antro onde

a liberdade cria águias em seu calor!”, é o retrato da

Juiz de Fora que vale a pena.

A Juiz de Fora que o fotógrafo – antes de nós e mais

do que nós – vê.

ENSAIO FOTOGR ÁFICO

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66 A3 - Abril a Agosto/2014

Tamanhos rigores

médicos, num dos acampamentos encontrados pelo caminho. A despeito

dos esforços, não resistiu a uma pneumonia dupla, tendo sido sepultada

num cemitério clandestino qualquer, encravado no meio inóspito do

chapadão. Essa notícia veio agora, 40 dias depois. Do pequeno grupo inicial,

restara apenas ele. Seu melhor amigo não logrou atravessar um campo

minado, quase às margens da fronteira ocidental. Os outros foram caindo

pouco a pouco nas garras inimigas. Todas essas baixas eram enumeradas ali,

sem muitos floreios, colocando em primeiro plano o seu mérito. O solitário

mérito de estar vivo, que vibrava como festa para os demais companheiros.

A felicidade dos que o escoltavam reluzia a todo instante. Era-lhe difícil

imaginar, após tamanhos rigores, o vinho e a boa comida.

O rio permanece calmo. Somente o seu coração não se acostuma. Desviando

de leve os olhos do madeirame encardido, ele tira do bolso a foto que o

acompanha desde o princípio da jornada. Lá estavam, à beira de um domingo

sem nuvens, no velho papel amassado e úmido, seus pais e irmãos, sua

esposa e sua filha, além do velho cão de guarda. Todos mortos. O barco adeja

sem pressa. Rompe uma chuva miúda, de doer nos ossos. Duas aves cruzam

o céu de chumbo. Ele está vivo, eis o que importa. Sonda com as mãos o

próprio e castigado corpo. Ele está vivo, ele está vivo, segundo lhe disseram.

Conseguira. Poderia respirar sem sobressalto. A fronteira sumira no

horizonte e o rio estava calmo. Tão calmo naquele trecho, assim tão

detido e compassado, que o barco parecia flutuar, um palmo acima

da linha d’água. Há pouco recebera, dos companheiros destacados para

acompanhá-lo, as notícias dos últimos três meses em que estivera fugindo.

Na mais absoluta clandestinidade. Três meses de uma viagem alucinada,

sem esperança de sucesso. E só então, naquele momento, as terríveis

notícias. Seria outra prova, talvez ainda mais dura, talvez insuportável,

estar vivo para sabê-las. Um comboio de crimes contra seu corpo. Mas

ele conseguira. Esse misto de prêmio e de castigo era seu, custasse o que

custasse. Três longos meses sob fome e frio, vagando a esmo, sendo caçado

como um animal qualquer, desde que os inimigos tomaram sua cidade. Nela

deixara seus pais e irmãos, abatidos no auge dos combates, segundo lhe

disseram os companheiros de embarcação.

Por sorte fugira, com um pequeno grupo de amigos, levando consigo a esposa

e a filha de 5 anos. Fazia já um bom tempo que sua cabeça estava a prêmio.

Queriam-no vivo ou morto. Era imperativo alcançar a fronteira. Grávida de

3 meses, sua esposa caiu, entretanto, nas garras do inimigo, cerca de uma

semana após a conquista da cidade. Foi assassinada naquela mesma noite,

disseram-lhe agora. Sua filha adoeceu e teve de ser deixada, sob cuidados

LEIA-ME

Iacyr Anderson Freitas*

* Poeta, ensaísta e contista, com vários livros publicados. Sua obra é divulgada na Argentina, no Chile, na Colômbia, na Espanha, nos Estados Unidos, na França, na Itália, em

Malta, no Peru, na Suíça e em Portugal. Publicou, entre outros, os livros “Viavária” (2010) e “Ar de Arestas” (2013)

Ilust

raçã

o: R

anie

l And

rade

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Fotomontagem digital de janela do Forum da Cultura, realizada pela fotógrafa, artista plástica e professora do Instituto de Artes e Design da UFJF, Valéria Faria