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REVISTA ESCRITA Literatura e Cultura revistaescrita.wordpress.com – Número 1 – Março/Abril de 2015

Revista Escrita - Número 1

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Nº1 - Experiências de Escrita. Para baixar acesse o menu [Compartilhar].

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Page 1: Revista Escrita - Número 1

REVISTA ESCRITA Literatura e Cultura

revistaescrita.wordpress.com – Número 1 – Março/Abril de 2015

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EXPEDIENTE

Revista Escrita:

[email protected]

revistaescrita.wordpress.com

issuu.com/revistaescrita

Equipe editorial:

Daniel Costa

Daniela Vitor

Flávia Mendes

João Paulo Moreto

Contribuições:

Betinho Paciullo

Letícia Giraldelli

Marcelo Diniz

Marina Laurentiis

Guilherme Nicésio

Guilherme Parra

Pedro Arreguy

Rafaella Meigger

Sarah Salces

Capa:

Eugène Delacroix – Tasso no manicômio. 1839. Disponível na Web

Gallery of Art: www.wga.hu.

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EDITORIAL

Esta REVISTA se organiza com o intuito de fornecer um espaço

aberto de interlocução às pessoas que escrevem, ou que têm vontade

de escrever, e que frequentemente se encontram fora dos circuitos e

das pretensões formais e mercantis da literatura.

Entendemos que escrever é estabelecer diálogo: seja com outros

autores de referência, com colegas, contemporâneos ou simplesmente

consigo mesmo. Frente a isso, esperamos que a REVISTA se preste a

apoiar o exercício da escrita e do comentário a respeito da arte que

nos debate. E que ela seja livre.

E, se diante de nossas carências e objetivos, não pudermos

imediatamente impor uma perspectiva editorial enquanto crivo, essa

impossibilidade é, também, nosso pretexto: é preciso que haja um

espaço de encontro para que haja o exercício de nossa expressão e o

seu debate.

Esta primeira edição propõe uma exploração de diferentes

experiências da escrita, reunindo expressões de identidade, pautas e

dicções particulares.

Ela será uma publicação bimestral temática.

A cada edição, um próximo tema será informado para que os

autores possam elaborar contribuições de livre interpretação, redação

e formato: contos, crônicas, poemas, quadrinhos, etc. Além disso, ela

contará com entrevistas de personagens das cenas artísticas da região:

atrizes, músicos, escritoras, produtores, etc.

Dentre os trabalhos recebidos, a equipe editorial fará uma

seleção que irá compor a edição impressa a ser disposta em algumas

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bibliotecas públicas e universitárias. Essa versão também ficará

disponível para leitura online no endereço virtual:

www.revistaescrita.wordpress.com.

Lá, também serão publicados, continuamente, trabalhos enviados

de maneira pontual e de tema livre, além de resenhas sobre bandas,

séries, cinema, teatro, animações e o que mais qualquer colaborador

achar pertinente.

O tema da segunda edição da Revista Escrita será:

MUDANÇA: (mu.dan.ça) sf. 1. Ação ou resultado de mudar(-se);

MUDA 2. Os móveis e objetos das pessoas que mudam de casa ou de

empresas. 3. Transformação ou alteração no estado habitual de algo 4.

Substituição de algo ou alguém por outro; TROCA.

Maiores informações sobre a publicação podem ser esclarecidas

pelo e-mail: [email protected].

Boa leitura e boa produção a todXs.

Equipe Editorial

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5

ENVIE SEU TRABALHO

A REVISTA recebe trabalhos (em diferentes gêneros) de qualquer

interessadX em colaborar dentro da proposta temática.

Na seleção, serão priorizadas as contribuições de quem enviar

mais de um trabalho, até o limite de cinco. Com isso, esperamos

conseguir expor consistentemente os estilos dXs autorXs.

Seu trabalho deverá ser enviado em um arquivo de Word (.docx)

para o e-mail: [email protected], descrevendo no assunto:

“Contribuição para Edição”.

A formatação do arquivo deve seguir: fonte Arial 12,

espaçamento 1,5 linhas, padrão de margens Normal, papel A4. A

primeira página deve conter um parágrafo de apresentação do autor,

nome completo, pseudônimo a ser publicado (se desejado) e endereço

do site pessoal ou blog.

A próxima edição irá trazer interpretações livres sobre o tema da

MUDANÇA. A previsão é que a nova publicação seja feita na primeira

semana de Maio. O prazo para envio de trabalhos é até o dia 15/04.

O site da REVISTA está aberto para receber contribuições

continuamente para publicação imediata.

Essas contribuições devem ser enviadas através do formulário (ou

por e-mail, no caso de ilustrações, quadrinhos, músicas, vídeos,

animações ou fotografias), abrangendo crônicas, contos, poemas e

também resenhas de livros, bandas, séries, filmes, shows, etc.

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SUMÁRIO

EXPEDIENTE 2

EDITORIAL 3

ENTREVISTA: MARCELO DINIZ 8

JOÃO PAULO MORETO 19

RAFAELLA MEIGGER 25

MARINA LAURENTIIS 31

SARAH SALCES 37

LETÍCIA GIRALDELLI 44

GUILHERME PARRA 51

DANIELA VITOR 57

GUILHERME NICÉSSIO 67

FLAVIA MENDES 76

BETINHO PACIULLO & PEDRO ARREGUY 83

PÁGINA DO LEITOR 86

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Artigo X: Fica permitido a qualquer pessoa, a qualquer

hora da vida, o uso do traje branco.

(Thiago de Mello – Os Estatutos do Homem)

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ENTREVISTA: MARCELO DINIZ

Músico, compositor, arranjador e poeta, Marcelo Diniz nasceu em

Campinas, cidade metropolitana do interior de São Paulo, em 03 de

agosto de 1979.

Em sua formação musical, teve influências de todas as vertentes do

rock, da música popular brasileira dos tempos da Tropicália e Clube da

Esquina, que o levou para caminhos experimentais, como o progressivo

e o psicodélico.

Iniciou sua carreira musical em 1995, atuando como tecladista em

diversas bandas do cenário pop e rock da região, passando por

praticamente todo o estado de São Paulo e algumas regiões de Minas

Gerais.

Entusiasta da timbragem vintage, seguiu estudando as várias formas de

síntese e modelagem analógica, além de se dedicar ao estudo teórico

de harmonização; participando de diversos trabalhos autorais, trilhas

sonoras e covers, se mantendo ativo e polivalente na cena musical até

hoje.

O ano de 2010 foi marcado por novos caminhos: - logo em janeiro criou

o blog “O Sonho Analógico”, fazendo uma alusão ao nome do primeiro

disco solo, onde começou a se aventurar nas ondas de escritor,

publicando poesias e devaneios mundanos de todo o cotidiano.

Em 2011, a vertente literária salta, o blog ganha vida e, em parceria

com a editora “A Barata”, publica seu primeiro livro de poesias intitulado

“Entre Sonhos e Muros”, uma edição pequena que esgotou em poucos

meses. Cria também, no segundo semestre, um manifesto cultural

chamado “A ReEvolução Poética”, misturando diversas formas de arte,

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com diversos convidados diferentes, criando uma interação que está

em constante movimento até hoje.

Desde então, publicou mais quatro livros: “Entrelinhas” (2012), “Cem

Poemas Cem Poetas” (2012), “Sonho Cotidiano” (2013) e “Parthenon”

(2014).

O trabalho do artista pode ser encontrado em seu site:

http://www.marcelodiniz.net

Paralelas

(Parthenon, 2014)

Passei um bom tempo

Vendo a vida pelo vão da

janela

Retas que abriam o mundo

Em abrigo escudo

Me deixavam ileso

Vento celeste em azul momento

Abriu o horizonte em pontos

difusos

Agora eram vãos de árvores, dos

fios

Retas distantes

E um frio confuso

...retas paradas

Paralelas

Que separam

Minha visão e o mundo

Paralelas

Onde eu paro

Para ela...

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O músico e poeta, gentilmente, nos recebeu em sua casa para

comentar a respeito da cena literária local, os percalços da publicação

e sua visão acerca da produção de poesia.

REVISTA ESCRITA: Prezado Diniz, agradecemos por ser tão solícito em nos

receber. Gostaríamos de começar comentando a sua produção: você

a enquadraria em alguma escola literária?

Lá vou eu poetizar. Eu costumo brincar que eu sou um poeta do

despretencionismo. Nós tivemos o romantismo, o barroco etc. Eu sou do

despretencionismo: não tenho a pretensão de ser nada além daquilo

que está acontecendo no momento.

REVISTA ESCRITA: Se fossemos observar nessa geração, as pessoas que

escrevem com você ou que você lê, seria possível entendermos algum

estilo, alguma denominação?

Não sei se consigo fazer isso, pela minha ótica. Talvez vocês, olhando de

fora, sejam mais capazes de enquadrar de alguma forma.

REVISTA ESCRITA: Você poderia comentar um pouco a respeito do

processo de publicação de um livro? O que fazer uma vez que o

manuscrito esteja pronto?

O primeiro passo é chegar até uma editora. Seja uma das menores,

undergrounds, que chamamos de independentes, sejam as maiores.

Todas elas estão abertas a receber escritores, cada uma com suas

exigências, seus contratos, seus custos.

Uma editora possui uma equipe completa para diagramação, registro,

revisão. No meu caso, como foi poesia, eles usaram a tal licença

poética, que é admitir os erros na normal culta e que não são erros, são

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propositais. Já um romance exigiria uma revisão gramatical. As editoras

possuem um profissional para esse tipo de serviço.

Meu primeiro livro eu publiquei a partir do meu blog, no qual eu escrevia

poesias desde 2010. No fim desse ano, eu já tinha muitas postagens e

pensei que daria um bom material para um livro. Reuni dali cem

páginas e fui atrás de uma editora.

Procurei uma editora independente, eles realizaram a diagramação. Eu

não quis revisão, pelo fato de serem poesias, um amigo, artista gráfico,

fez a capa. E depois de juntar os amigos talentosos e os poemas,

basicamente saiu o livro.

Meus dois primeiros livros foram publicados por essa editora de São

Paulo, chamada “A Barata”, que tem a particularidade de fazer os livros

costurados um a um, de uma maneira tradicional. Um romantismo que

cai bem com a poesia.

REVISTA ESCRITA: Então não são as editoras quem procuram obras para

publicação, os escritores é quem procuram essas empresas?

Em geral sim, mas também existem esses olheiros, caçando possíveis

talentos.

REVISTA ESCRITA: E a função da editora inclui a distribuição ou apenas a

confecção dos livros?

Existem as duas coisas. Existem editoras que atuam quase como uma

gráfica (quantos quilos de poesia você quer?) e existem as editoras que

fazem o papel do agente literário, organizando entrevistas,

participação em bienais, espalhando o trabalho pelas livrarias etc.

No meu caso, eu preferi não recorrer a esse tipo de profissional porque

eu gosto de ter controle sobre a coisa toda. Eu também tenho meus

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contatos, eu também consigo minhas entrevistas, também consegui a

Bienal (de São Paulo, 2014). Tudo isso sem um agente literário, sem

contar os amigos que vão movimentando a arte toda.

REVISTA ESCRITA: Qual a vantagem de se recorrer a uma editora ao

invés de atuar independentemente via Internet?

Mesmo no caso de um e-book, ter o selo de uma editora dá outro peso

para a obra. Ela fornece as soluções burocráticas para se existir como

artista, seja no disco ou no livro, como, por exemplo, o registro do ISBN.

Isso faz com que você exista no mercado. Basicamente é isso: tudo é

um grande negócio.

Um escritor iniciante pode ter alguma dificuldade em usar a Internet

para divulgar seu trabalho. Demora um tempo para se aprender o que

e como usar. Nem eu mesmo posso dizer que eu sei, mas quando penso

em lançar um livro eu já sei como usar as redes sociais e outras

ferramentas para vender metade da edição.

Geralmente o que eu faço é seguir os que me inspiram, observando

como o Lenine trabalha as redes sociais, como o Nando Reis as utiliza,

Humberto Gessinger, Oswaldo Montenegro etc.

É preciso se espelhar nas referências para seguir um caminho, um

caminho honesto, pelo menos.

Eu sei que eu estou misturando música e literatura, mas é que é tudo

uma coisa só, tudo o mesmo Diniz.

REVISTA ESCRITA: Existe uma cena cultural de literatura na Região

Metropolitana de Campinas?

Existe. Em toda região. A cena existe, nem sempre de forma reunida,

mas sempre existem as pessoas interessadas pela leitura.

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Em Campinas existem alguns movimentos literários e encontros de

poetas. Aqui, nós temos o Portal do Poeta Brasileiro, que possui a editora

que publicou meu terceiro livro, “Sonho Cotidiano”, chamada

“Iluminata”. Eles fazem reuniões mensais, geralmente nas segundas-

feiras.

Também existe a Parada Poética, organizada por um pessoal da

Unicamp, que abrange quatro cidades e contempla não só o poema

em si, mas a poesia no reggae, no rap etc. Ela acontece geralmente na

Casa São Jorge, em Barão Geraldo.

A gestão pública também tem promovido muita coisa por meio da

Estação Cultura, Estação Guanabara, mas ainda falta um olhar mais

destacado para os literatos da região.

REVISTA ESCRITA: Nessa cena, quem são os leitores dos poetas além

deles mesmos uns dos outros?

Isso realmente acontece muito, essa formação de um círculo. Eu

particularmente não sou muito enquadrado nessa sociedade dos

poetas, porque eu tenho esse lado musical. Existem as pessoas que

conhecem o Diniz, tanto pelos discos quanto pelos livros.

Mesmo entre os poetas, são muitas pessoas. Há um grupo muito grande

por aqui.

REVISTA ESCRITA: Excluindo-se a agenda das políticas públicas, o que

falta para o fortalecimento da cena literária?

Essa é uma boa pergunta. Não sei exatamente o que falta, mas algo

que não se vê muito são artistas de fato. Existem pessoas que

escreveram um livro de poemas, mas não são poetas. Por exemplo, um

médico que decide publicar. E que, às vezes, é até muito bom, mas

não é alguém que vai jogar a cena pra frente.

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Então o que falta mesmo são artistas, escritores, poetas, esse pessoal sair

de trás do muro e dar a cara ao tapa, ao beijo.

REVISTA ESCRITA: O que significa “levar a cena pra frente”?

O que eu quero dizer é que não basta ser formado em Medicina e

escrever alguns poemas. É necessário o sujeito formado em Filosofia,

Letras, que tem algo a dizer com a poesia. Não são só poemas, são

mais poemas.

Não só na cena literária, mas na cena musical também. Muitas vezes

vemos pessoas que estão montando uma banda porque tem aquela

arte dentro de si e gostam de tocar numa sexta-feira à noite. Aí surge

uma questão delicada, pois essas pessoas estão ocupando aquele

espaço.

REVISTA ESCRITA: Então a apropriação dos espaços culturais para o

hobbie e o entretenimento pode ter banalizado o discurso artístico?

Também, mas não só. Talvez a crítica deva ser levada aos artistas

também. A falta das pessoas prontas a dar a cara ao tapa ou ao beijo,

banaliza mais.

A arte também é entretenimento. Ela contempla isso e outras coisas. Às

vezes a função é chocar, fazer chorar, fazer pensar, mas também para

animar e entreter. Nesses casos, a arte como hobbie também é válida,

mas faltam aparecer os artistas do choque, do choro, do pensar etc.

REVISTA ESCRITA: Por que a arte tem que fazer pensar?

Eu só poderia dar uma resposta muito pessoal. A arte tem dois

caminhos: fazer pensar e fazer chorar, por alegria ou tristeza. Se ela

atingir um desses dois lados, para mim, pessoalmente, ela é de verdade.

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REVISTA ESCRITA: O que você registraria na cena da região, entre

músicos e escritores, que é apreciável nesse sentido que você

descreveu?

Tem muita gente. Na música temos o Fabiano Negri, um produtor que

tem feito muita coisa. O Amyr Cantusio, que não posso deixa de citar

como uma grande influência. Quando eu vi ele sozinho num palco eu

percebi que bastava um cara e um teclado pra fazer tudo o que tem

que ser feito. Ele possui um trabalho gigantesco que já vem desde antes

dos anos 70.

Na parte da literatura há um escritor chamado Lenine Rocha, um desses

que não se dizem poetas. Mas é um cara que já tem 5 livros. E esse

pessoal do Portal do Poeta Brasileiro que reúne poesia beat, poesia

romântica, poesia de protesto, etc.

REVISTA ESCRITA: Olhando para toda essa produção, seria possível

caracterizar um movimento, tal como no passado pudemos nos referir

ao Romantismo, Modernismo, Concretismo etc?

Nessa época em que se estabeleciam tais rótulos, a informação não

possuía a velocidade de circulação que possui hoje. Os que abriam a

boca eram os poucos donos de jornais e estabeleciam a verdade do

momento. Certamente, na época modernista existiam os concretistas

fazendo alguma coisa, apenas sem visibilidade.

Você não precisa se enquadrar no mainstream, você está no mundo. E,

por si só, isso já basta. Mas você me pegou num dia abstrato.

REVISTA ESCRITA: A respeito da produção dos poemas. Existem

exigências técnicas?

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Não me prendo a elas. Devem existir, coisas como o Haikai que deve ter

três frases curtas que parece um pouco aquela coisa de “três pratos de

trigo pra três tigres tristes”. Mas eu não me prendo para fazer os meus.

Não sei se ela é boa ou ruim, mas ela flui. Acho que ela quem me

escreve.

Mas devem existir regras, embora nada do que eu esteja falando seja

uma verdade absoluta. Como diz o Mário Sérgio Cortella, as pessoas

estão em constante mudança.

Os poetas do século passado usavam muito os dicionários de rimas, mas

atualmente – sem querer falar mal dos caras que fazem uso dessas

regras – isso me soa como comprar o jeans já rasgado da loja para ter a

rebeldia. Temos regras pros rasgos também.

É por isso falei que eu sou um poeta do despretencionismo. Talvez eu

esteja lançando um movimento e devamos fazer uma semana de arte

dos despretensiosos.

Eu acho que a poesia não é aquilo que sai no papel. Pra mim, a poesia

é um estilo de vida. Nesse sentido, ela não tem regras, só é necessário

seguir um caminho e ele vai se clareando, seja para trás ou para frente.

REVISTA ESCRITA: A sua proposta, em ser despretensioso, não entra em

contradição com a necessidade colocada por você de que a arte faça

pensar?

Aí que está, isso é uma grande mentira. Eu sou despretensioso só no

discurso, é uma pista falsa para você se perder no caminho. Uma pista

tão falsa quanto todos os outros rótulos.

REVISTA ESCRITA: A poesia exige um pacto de sentimentalidade entre o

texto e o leitor?

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Talvez a sentimentalidade seja necessária para o efeito que eu pretendi,

mas todos os leitores sempre vão estar sentimentais de alguma maneira,

algo irá bater, mesmo que seja o ódio do poeta.

As pessoas são diferentes, as cabeças são diferentes, o mesmo texto

sempre vai provocar reações diferentes.

REVISTA ESCRITA: A sua poesia se refere muito ao cotidiano. A descrição

segue e antes dela realizar suas implicações, você coloca alguma

imagem de fuga e dispersão, como, por exemplo, se perder no vento. O

cotidiano pede por uma fuga? Ele é insuportável?

Às vezes sim. Não sei se sempre. Todos nós vivemos no mesmo cotidiano,

cada um do seu jeito, e às vezes ele é massacrante, um leão engolindo

tudo. Mas, às vezes, você pode passar a mão na juba do leão, limpar

alguma coisa caindo do queixo, e isso é a vida: tem dias em que o leão

está bravo, tem dias em que ele está manso.

Page 18: Revista Escrita - Número 1

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JOÃO PAULO MORETO

27 anos, natural de Campinas (SP), apaixonado por

música com essência (ou pela essência da música), pela

família, amigos e natureza. Não sou escritor, escrevo por

desafogo e pelo ímpeto de arriscar.

[email protected]

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ISAQUE

Isaque é um garoto pobre, gordo, que usa óculos fundo de garrafa e

possui dentes encavalados. Isaque banha-se todos os dias com ódio e

exala o aroma da morte. Hoje é dia de apresentar seu trabalho no

colégio e ele treme frio, expor-se significa ofensas, xingamentos,

apelidos, brincadeiras, essas coisas que Deus não se preocupou em

limitar nas crianças em suas vastas imaginações ingênuas, ou que ao

menos deveriam ser ingênuas, e que por consequência culminam em

uma série de traumas a somar à sua adolescência que logo haveria de

vir. Encontra-se, nesse momento, um biscoito em sua boca e ele não o

mastiga, deixa dissolver lentamente. Em situação comum, Isaque

correria para um canto engolir rapidamente o biscoito na fé de não

levar a surra de seu pai que cedo ou tarde, por esse motivo ou por

outro, o faria, e marcaria seu corpo de criança mais uma vez. Mas hoje

não correu, esse biscoito era especial e sua degustação, assim como

sua consequência, era de seu intento que viessem a acontecer,

gostaria de apreciar cada olhar de ódio do pai e absorver em seu

âmago cada sensação da dor. Para sua frustração, nessa manhã nem

seu pai nem a surra deram as caras.

Descer as escadas, acender a lanterna, conferir tudo que deve haver

em sua mochila e ir ao colégio. Isaque detêm-se frente ao espelho e se

admira. Olha além do que os olhos podem ver e agradece a Deus pela

dádiva da vida, agradece por cada minuto que ele recebe

misericordiosamente do seu Senhor, ele que é falho e nem mesmo

merecedor de tal bondade, oh Deus, tudo através de você vem a ser e

sem ti nada seria. Abaixe a cabeça moleque filho da puta, na presença

de Deus deve se portar como gente e não como esse merda que você

é, não criei filho para não ter modos e me fazer vergonha, quando

chegarmos em casa arrancarei lascas de sua pele para que nunca

mais se esqueça das lições que te ensino seu merda, oh pai, perdoe-me

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por esse filho que trouxe ao mundo, antes houvesse morrido quando

criança e seria um a menos para lhe fazer irar-se nos céus, há de ser

obra do demônio, maldita criança. Enquanto que agora, de cabeça

baixa, Isaque rezava em seu coração, Deus, meu querido amigo,

perdoe papai, ele não sabe o que está falando.

Fechar bem a mochila, pentear o cabelo, subir as escadas e despedir-

se de seus brinquedos no quarto antes de sair. Hércules, você não tem

um braço, mas eu te amo mesmo assim, o amo tanto, tanto, hei de

achar seu pequeno bracinho ainda, quem dera eu ter dinheiro para

poder comprar um bracinho para você, ou até mesmo ceder meu

próprio braço, eu tenho dois e pouca falta me faria, exceto hoje, mas

você não viveria com meu braço, de tão pesado e maior que seu

corpo você não poderia mover-se e então acabaria por morrer de

fome ou frio, mas jamais te deixarei morrer meu pequeno, ai como te

amo, porque?, porque Pai você permite que seus filhos fiquem sem

braços, você que tudo pode e que nada há que não possa fazer?, oh

Pai, ou será que não sou capaz de enxergar com clareza suas divinas

provas de amor e cuidado?, deve ser culpa minha, sim, eu não deveria

ter perdido o bracinho de Hércules, eu sou culpado pelo sofrimento

dele e devo pagar por isso, maldito pecador que sou. E você Eva, tão

linda em seus cabelos vermelhos, você está muito linda nesta manhã,

meus parabéns, você notou como Hércules está a olhá-la com um olhar

encantado, você notou? Olá Eva, você carrega um sorriso que traz mais

sentido à minha vida, linda donzela, você me acompanharia para um

café? Ah, imagina!, era só o que me faltava, cale a boca seu sem

braço, seu deformado, você acha que eu andaria por aí com você

assim sem braço, você nem mesmo poderia carregar nossos cafés ao

mesmo tempo porque você tem apenas um braço seu anormal hahaha

você deveria se matar e deixar a terra somente para pessoas perfeitas e

lindas assim como eu, seu horroroso, seu gordo, baleia assassina, quatro

olhos, seu boca deformada, você deveria morrer seu deformado.

Page 21: Revista Escrita - Número 1

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Calma meus queridos brinquedos, não façam isso, no novo mundo de

Deus haverá espaço para todos, para as pessoas bonitas e as

defeituosas, porque aos olhos de Deus somos todos iguais, até mesmo

eu, mas agora preciso ir, hoje irei aprender muito na escola, mas hoje

irei ensinar também, amo todos vocês, amo muito mesmo,

principalmente você Hércules, mesmo assim como você é. Respirou

fundo e sentiu medo.

Entoando cânticos de louvor

abaixo de um céu cinzento

sou pura luz

e dor

âncora, de um pó ao devido pó

Uma aurora, uma noite fria

uma interseção

Vazio

Isaque é um pequeno anjo, metade criança metade destino, ele

caminha sozinho e seu coração transborda amor.

Conferir tudo que há na mochila, não se atrasar, amar, perdoar.

Enquanto caminha, observa os cachorros que brincam livres, os

pássaros a voar, o verde das árvores, sente a brisa fresca do vento em

seu pequenino rosto delicado, faixas, o asfalto, marca do homem em

uma terra perfeita, um registro, parasitas. Ao longe o soar do sino doze

vezes na catedral determina metade do dia e ele volta a sentir medo,

então relembra as consoladoras palavras, “mil cairão à tua direita e dois

Page 22: Revista Escrita - Número 1

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mil à sua esquerda e não serás atingido, vá em paz”, mas conversou

com seu coração, Antes não houvessem três mil mortos ao meu redor e

então ficaria eu tranquilo. Mas que sei eu da vida, mero mortal

pecador, darei a Cezar o que é de Cezar e deleitarei ao colo do meu

amigo Senhor, bondoso Deus. Isaque carrega em sua mão uma

pequena flor e o contato suave e delicado da rosa o protege dos

olhares assustados das pessoas com que cruza, estas espantadas com

sua assombrosa feiura, ele acostumado a sentir-se a escória da

humanidade, e num ímpeto de raiva enfia a flor na boca e a mastiga

violentamente, seu sumo pegajoso, como se estivesse a sentir sangue

escorrer por entre os dentes, não precisava mais da proteção da flor,

queria apegar-se ao ódio de cada olhar cruzado, havia atingido um

estado divino de existência, Seja feita a vossa vontade Pai e também

sua vontade pai.

Papai, cadê a mamãe? Mamãe... sua mãe, aquela vagabunda viciada

deve ter fugido com algum outro viciado e nesse momento devem

estar fodendo como dois cachorros de rua em algum beco por aí. Ah,

não me olhe com essa cara de espanto, pequeno, e nem cite mais o

nome dessa vadia nesta casa ou irei arrancar seus dentes dessa sua

boca torta, seu monstrinho, e toma esta pelo nome que citou, engula

este choro ou te darei reais motivos pra chorar, devia agradecer por eu

te corrigir, pivete, pois se cair nas mãos de deus conhecerá o

verdadeiro fogo do inferno, ajoelhe e reze implorando perdão.

Avistou a fachada do colégio, nuvens, sombra. Mochila, a lição feita, nó

na garganta, a boca seca, gosto amargo de uma vida doentia

gravada em seu corpo, seu coração e sua alma. Saudade da mãe.

Isaque é um ponto inicial, é toda a circunferência, o desfecho e o

conteúdo desse ciclo, depois tudo novamente e então mais uma vez,

ele é nosso vício. Ao dirigir-se ao portão de entrada, reviveu em sua

memória o dia em que seu colega de classe encontrou seu poema em

sua mochila, Ah fofão, deu pra escrever agora, foi?, hahaha pó é o que

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você deveria cheirar para emagrecer seu rolha de poço, toma, engula

essa porra desse papel, coma essa merda que você escreveu agora ou

vou deixar sua cara ainda mais torta e espalhar para todo mundo que

sua mamãezinha fedida anda dando para todos os pais do colégio,

anda, coma seu merda!!! Isaque não mais vê seu amiguinho de escola,

ele era bem mais velho e já se formou, e fica agora a imaginar como

anda a vida do menino, Será que continua assim tão agressivo, tão

sozinho?, espero que esteja bem, já o perdoei, talvez meu poema tenha

mesmo sido um tanto irritante. Mas, ainda sentia o gosto do papel em

seu estômago e transpirava seu conteúdo, abriam-se seus poros um a

um e seu suor sofrido interagia com todo o universo, tocando cada um

dos mortais que habitam a terra, agora ao sentir novamente a dor

dessas palavras e depois em suas consequências que virão, pois todos

juntos somos um, e não há quem não compadeça do sofrimento de um

semelhante como também não há quem não seja culpado por tal dor.

Isaque, eu tremo ao escrever essas linhas, choro contigo e lhe imploro

perdão.

Percorrer todo o primeiro andar, a porta automática, subir a rampa à

direita, três bebedouros, quadros de avisos, Olha o anormal chegando

hahah, fé, esperança, bondade, Ser chamado de anormal é pesado

demais até mesmo para uma criança, pensou, laboratórios, a biblioteca

vazia, a sala da garota que amava, oh nunca foi capaz de olhá-la nos

olhos, imponente cabelo vermelho, outra pequena escada, o refeitório,

enfim sua sala.

Há vida no deserto

como há de ter luz na escuridão.

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Amém

Oh Pai, abençoe mais esse dia de aula e preze por cada alma que aqui

está, perdoe meus amiguinhos que não são capazes de enxergar o

valor que há de ter em mim, perdoe meu papai pelo que estiver

fazendo agora e perdoe meu mau entendimento das coisas, te amo,

amém.

Isaque tem doze anos e a idade de toda a existência, e é belo como

nunca alguma criatura ousou ser, nem os lírios dos campos, nem as

vestes de Salomão, não teve início sua existência e tampouco haverá

fim sobre o que veio a ser, ele caminha pela sala, há um riso imaculado

em sua boca e lágrimas em seus olhos. Ele detém-se frente à sala, toda

a turma já sentada, a professora sem notar, ainda, sua presença. Houve

um segundo de silêncio em toda a terra. Isaque abriu sua mochila,

retirou a 9mm que lá estava, engatilhou-a com perfeição de quem

muito havia treinado e iniciou os disparos. Uma única bala tinha

endereço certo.

Page 25: Revista Escrita - Número 1

25

RAFAELLA MEIGGER

Rafaella Meigger publicou seu primeiro romance aos 17 anos

de idade, desde então, vem escrevendo em projetos

independentes e curtas, publicando contos e crônicas no

blog “Me Apanhe No Centeio” e lançando novos livros. Sua

relação com a escrita é vista de longe como parte de sua

personalidade, desde como leva o estilo de vida beatnik, até

por sua tendência sapiossexual.

Amante da expressão corporal e da imagem nas palavras,

da cannabis artística e de costumes cotidianos inusitados, ela

espera alcançar não só mentes ainda trancadas, mas

também se conectar com todas aquelas já em poeiras pela

explosão da sabedoria avançada em suas elegantes páginas

fortemente metafóricas, dadaísticas e de puro tesão ocular.

meapanhenocenteio.wordpress.com

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CONTATO: RAFAMEIGGER/FACEBOOK

Page 26: Revista Escrita - Número 1

26

VENENO

Me enfiaram em uma dessas cabines de táxi com o teto alto. A

claraboia escura ainda da noite me deixava ver as estrelas no céu,

deitado no estofado cinza. Achei que ia morrer, meu estômago se

contorcia como um quadrado de queijo sendo aquecido.

A TV do hospital rodava um filme policial sobre médicos. Era como fazer

tigres e coelhos assistirem aos documentários de caçada animal. Você

estava sendo avisado ironicamente que morreria como corpo já

descartado na fila de espera.

O desenho da canabis girando no branco do meu olho vermelho

sempre me diz a profunda e inocente verdade, vinda de fora para

dentro e separando os incríveis de completos infelizes insábios.

Vomitei meu coração gelado por volta das sete da manhã, caiu no

chão quente e quase senti cheiro de fritura, até que me fizeram engolir

de volta, e dessa vez, sem pensar no que você havia me feito.

Voltei para casa e rasguei minha carta de despedida. A morte hoje

seria sua, com direito a enterro das suas roupas e fogos na sacada com

seu nome formando palavras de ódio.

Page 27: Revista Escrita - Número 1

27

EU PENSO JACK KEROUAC.

Existe uma armadilha em camisas de botão e algodão estampado, no

cheiro de maçã, no esfaquear de uma colher aquecida em chama de

isqueiro. Espere por mim em um sábado iluminado de fumaça cinza

poluída das nuvens barulhentas lá fora, e torça para que aqui dentro eu

não esteja fardada de silêncio com cinco estrelas militantes. Teremos

veneno no café dos vizinhos homofóbicos para almoçar, placas

iluminadas de motéis caídos para jantar e, amor em cuspes

lubrificantes, bordas de pizza que refletem nossos rostos na gordura

amarelada da fome que três baseados devoram. Não mais carros

fechados mas bicicletas descendo avenidas em direção das praias

lotadas, de garotas de biquíni e cachorrinhos correndo de olhos

vermelhos pelos cigarros engraçados que seus donos assopram em suas

caras, dançando e cantando na areia áspera sem imaginar o quão

breve é estar vivo, e o quão eterno é viver. Vivendo, vejo corpos suados,

colados, vibrantes e nús. Não mais cigarros em caixinhas mas cocaína

alinhada no barrigão de sete meses da garota solteira e grávida,

alucinada ao extremo para dar a luz e despertar do seu novo mundo

fora de si em caminho ao seu mundo novo dentro dela mesma. Hippies,

protestantes, garotas de cabelo raspado, mini saias, garotos de unhas

pintadas, tatuagens no rosto, rebeldes precoces ou adultos infantis

demais se perguntando em livrarias da cidade o que era a Geração

Beat para um Cassady já falecido, enquanto ele respondia no lamentar

da sua espiritual morte e vida como um sonho já acordado: “Todos

vocês são a geração beat. Nós somos e lutamos pela sua base, para

que seja quem se é, e daqui pra frente, tudo se prolonga de nós”, assim

que meu Kerouac ordenou que escrevêssemos com a alma, e Ginsi se

comprometeu a falar de cus, genitais, barbas e heroína com a mesma

delicadeza que se fala da vulgaridade do amor, da fé, do ardor e das

lágrimas.

Page 28: Revista Escrita - Número 1

28

TE VI PASSAR

Minha miséria de você se esconde entre a sola e a meia de meus

sapatos confortáveis sapateando em respirar monótono pela poça

dágua com todo reflexo da chuva sobre mim. O que o fogo estourado

de seus pedais metálicos querem dizer quando escorrem na pinta do

meu rosto lágrimas minhas por você e suas por um enigma, que salta

em liberdade dum lábio inchado até a gola de seu casaco quente?

Quente como o rolo de um filme para te conservar de tanto rancor

armazenado em sangue congelado que se quebra, trinca, imitando

gelos afundados em leite morno pela manhã que nunca se acorda,

para não ter de abrir as cortinas ou os botões do macacão laranja de

prisões acorrentadas no seu pulso sem batimentos, e, sem qualquer sinal

da pulseira que te dei por te sentir mais que a comida que iria para meu

estômago com esses últimos trocados no meu jeans sujo. Da longa

viagem.

Page 29: Revista Escrita - Número 1

29

PRIMEIRO POEMA SEM SER ORLOVSKY

Umedecida boca que sem seus ácidos já me alucina.

Fundos olhos de real visão enigmática.

Mãos sujas e unhas curtas de produção precária da vida.

Como podem 53 horas serem suficientes para se perder num sincero

amor e insuficientes para criar um fantasioso conjunto de versos?

Das colinas de pinheiros, dos cavalos feridos

Do sol florescente em cores de rosa

Que nasce

No seu cochicho sonolento de paixão,

Nada.

Mas a beleza no mistério das suas questões da morte que foram

descobertos na cozinha farta...

Jamais pela sua magia espiritual

Mas a resposta na pinta que mora no nariz

Me marcando o exato momento em que me fez ser de alguém.

Num primeiro poema.

Page 30: Revista Escrita - Número 1

30

AOS CAVALEIROS:

Bunda apoiada e pernas abertas na mesa branca de jantar. Acordei

essa manhã sem me lembrar da demolição que a parede fazia, perdida

na ressaca, enquanto mastigavam com eco seus cafés da manhã em

volta do meu santuário sujo de porra. Mal sabiam.

Me equilibrei na janela do banheiro enquanto a banheira transbordava,

pensei ter ouvido meu nome mas não encontrei sua boca em lugar

algum me chamando. Será que deixamos cair lábio e coração no meio

da bagunça?

A casa esquecida estava enriquecida de arte e isso caberia a mim

também. Chaminés, terraços e escadas encantadoras me esconderam

o túnel da orgia. Lá de baixo éramos como fogo na brasa, fitando a lua

encaixada no final de toda a torre de tijolos.

"Mulheres, meu pau está aqui! Mas meu saco já está bem cheio..." e

todas elas chuparam um canavial de rolas, gozando libidos e frases

roubadas de cavaleiros que soltavam genialidades sem assinatura, de

tão bem confundidos pelo som de melhores vozes da música da morte

salpicada de vida.

Page 31: Revista Escrita - Número 1

31

MARINA LAURENTIIS

Marina Barzaghi De Laurentiis, 26 anos, lua ascendente em

touro, apaixonada por versos, economista de formação,

poeta de coração. Encara a escrita como um exercício de

conhecimento de si e da relação entre seu mirrado corpo e a

imensidão do mundo. Recém-ingressante no curso de Letras,

da Universidade Federal Fluminense, em que pretende

aprofundar seus conhecimentos em literatura e escrita, a fim

de externalizar com maior clareza e precisão o sentir que, de

tanto, faz doer até a alma.

[email protected]

Page 32: Revista Escrita - Número 1

32

MAL INFESTO

Pelo fim das tradições

contradição

co-traduções

e complexo de colônia

que compõe

o corpo cansado

de esconder

as marcas de

facão

de cabra macho

galante

herói

conquistador.

Page 33: Revista Escrita - Número 1

33

ECONOMÊS

Desemprego

palavras

a meu prazer.

Escolha

irracional

de quem sente

a força risível

que escreve e

que -juro-

Jura!

Ex - anteriormente

atual, presente

produção d'linhas.

Montagem.

Semente

que

re-vira em texto

e supre a

estrutura

nenhuma!

Estado

que infla

e câmbio

de ideia

efeito de gente

de entorpecente.

capital do sonho

tomada no espectro

de

expectativa

exposta e

esquecida no

vão

entre o

mundo e a

mente.

Page 34: Revista Escrita - Número 1

34

BABY, FUI PARA O ESTRANGEIRO E NEM

NOTEI!

Você não sabe da última: lembra daquela menina de olhos apertados

em óculos de muitos graus? Aquela que parecia um camaleão, com

roupas que misturavam no ambiente e um jeito de falar que qualquer

um entendia. Lembra? Morreu. Daqui do estrangeiro pude participar do

enterro, transmitido ao vivo pelo novo aplicativo que lançaram com a

promessa de não se deixar passar a morte de um ente querido em

branco, "de qualquer lugar do mundo!". Branco mesmo estava o rosto

da menina! Que nem papel de caderno novo, pedindo para ser

rabiscado. Nem a roupa, notadamente escolhida para a ocasião,

(dizem na rede que ela mesma escolheu. No último suspiro, dizem) nem

a roupa disfarçava a brancura sem vida. A polícia investiga. Suicídio

parece. Era cristã. Foi parar no sétimo ciclo do inferno. Alguns cristãos

ativos protestaram por conta da cerimônia digna de quem é digno do

reino de deus. Suicídio não pode. Outros tantos, igualmente cristãos,

argumentaram que as regras para a subida aos céus deveriam levar em

conta as mudanças sociopoliticoeconoculturais: Diante da cronicidade

da vida, dos avanços da medicina, o suicídio em muitos casos- mas

nem tantos- poderia ser o mais próximo da vontade do Senhor. Foi um

embate geral! Coisa de louco. Até não cristãos tomaram partido,

defendendo fervorosamente suas posições. A irmã, cansada de olhares

acusatórios e também dos complacentes, a irmã parou de ir à igreja. O

padre levou advertência, “queria ver se fosse um padre qualquer, sem

essa rede de influência que ele tem. Seria bem pior”.

A menina foi enterrada em vestido vermelho-terra, sem óculos e com o

pescoço enrolado em echarpe marrom (um luxo!!). Já sabia onde iria

parar.

Page 35: Revista Escrita - Número 1

35

20 DE MAIO

Sinto dificuldade de mover qualquer músculo digno de nota.

Vi o mar.

Ventava, não entrei.

Sal grosso pratiraurucubaca.

Penso que não sei mais o que é digno de pensamento.

Quero dizer,

outra noite eu e B. passamos as horas discutindo o sexo dos elefantes.

Pode imaginar essa cena? Pode?

O que eu sei é que decolei rumo à janela da varanda que tem cidade

ao perder da vista

e ainda não pousei.

Lembro de ti. Esqueço.

Não vale as perninhas da galinha que coloquei no forno a pouco.

Dri vem jantar. Ficou de trazer o vinho.

Faz frio. Trilha sonora e perfume e uma gota de...

Ah... não se faz mais felicidade como antigamente.

Page 36: Revista Escrita - Número 1

36

DOR

Eu sei que não sou

uma louca-de-pedra

doida-varrida

a caminhar

pelas ruas

escuras

alucinada

a rastejar

que nem bicho

no lixo

sem rumo, perdida

a espalhar

minhas verdades

cruas

por puro capricho

e procurar

ensandecida

pela cidade

um punhado de

qualquer coisa

que alivie

a dor.

Page 37: Revista Escrita - Número 1

37

SARAH SALCES

Sarah acredita que o mundo precisa de mais mágica.

Portanto, a cada dia, tenta transformar sua rotina, seja com

um sorriso, uma conversa, uma poesia. É economista, mas

não economiza na hora de investir em amizades, livros e

paixões. Seus amigos dizem que ela é uma bióloga enrustida,

pois ama se jogar na natureza e porque descobre um

bichano diferente em cada folha.

[email protected]

Page 38: Revista Escrita - Número 1

38

COR E MOVIMENTO

Encontro nas árvores minha palheta de cores

E com ela pinto meus poemas

Não só os escritos

como os vividos dentro da alma

Cores que vivificam o preto e branco da existência

Sem elas, como tudo seria?

Tal como alguns animais que não contemplam o existir

Mas apenas o movimento que dele surge

e que no bicho vem a convergir

Mas eu, com a minha imóvel palheta de cores,

já movo o mundo dentro de mim

Dela extirpo o movimento

do qual eu me transformo.

Page 39: Revista Escrita - Número 1

39

FELICIDADE E SONHO

Observações que não pude deixar de compartilhar após a leitura de

"Amar, Verbo Intransitivo" de Mário de Andrade.

Lendo um livro do Mário, vi como é sutil a forma que o amor nasce, bem

como o jeitinho de despertá-lo. Para mim, as sutilezas, os detalhes, as

pequeninas coisas, muito significam e impactam...

Entrementes, os conceitos de felicidade e de sonho também são

abordados pelo autor, com riqueza de sentido.

"Eu não sei se alcançar a felicidade máxima, extasiar-se aí, e sentir que

ela, apesar de superlativa, inda cresce, e reparar que inda pode

crescer mais… isso é viver? A felicidade é tão oposta à vida que,

estando nela, a gente esquece que vive. Depois quando acaba, dure

pouco, dure muito, fica apenas aquela impressão do segundo. Nem

isso, impressão de hiato, de defeito de sintaxe logo corrigido, vertigem

em que ninguém da tento de si."

"impressão de hiato, defeito de sintaxe", sensação que já te acomete

durante o ataque da felicidade, pois a noção de que aquilo poderá

passar já causa um certo pesar dentro de si, pelo passageiro.

"Porém o homem-do-sonho permanece intacto. Nas horas silenciosas da

contemplação, se escuta o suspiro dele, gemido espiritual um pouco

doce por demais, que escapa dentre as molas flexíveis do homem-da-

vida, que nem um queixume de um deus paciente encarcerado.”

Suspiros... Múltiplos... Do sonho, sonhos, que carrego no peito, aonde

quer que eu vá... Jamais petrificados pelos ataques de desesperança

que vem diariamente... Tal qual um deus encarcerado, que apenas

aguarda seu momento para reinar belo, após liberto e pleno.

Page 40: Revista Escrita - Número 1

40

DO NADA

Assim de repente

de maneira fugaz

Sente-se

algo

Então sente-se

e sinta-se

a vontade

Justapostas e

entrecortadas

as palavras tentam

espiar

e assim decifrar

quem sabe um

neologismo criar

para poder

externar

Aquilo que inédito

se formou

Rouba o sono

Tira a rima

é a sina

enruga a testa

coisa besta

Mas tão simples é

O indefinido

definido

nas vielas da

corrida da vida

O novo assusta

mas também

perscruta

o coração

pensador

questionador

voador

Desta vez mistério

não se fará

pois o todo

culpado

de tudo

disto

nada mais é

que indefinido

Do nada

assim se fez

mais um suspirar

transbordar

aliviar

um sussurro da

alma...

apenas.

Page 41: Revista Escrita - Número 1

41

NOVO QUADRO

As pessoas não sabem para onde ir

As pinceladas no quadro nem sempre salvam a tinta despejada

E não há borracha que apague tintas escuras

Os sonhos estão mal entendidos

não se sabe que através deles

uma nova moldura se faz

e nova multiplicidade de cores surge espontaneamente

Mas as pessoas...

continuam procurando no quadro de tintas ressecadas e obscurecidas

Basta um novo piscar de olhos

e tudo se faz novo..

Mas a disposição...

onde está?

Page 42: Revista Escrita - Número 1

42

FUTURO

Futuro

Com você

ele voltou a existir

De repente

o que eu estava congelando dentro de mim

Começou a sublimar

Planos

por uma vida sonhados e abandonados

Reconstruindo-se numa fôrma não fantasiosa

mas realista

Medo

não me afasta de você

Mas, antes, me aproxima com cautela

Cuidado

consigo e comigo

Pois não quero um sofrimento passageiro

Page 43: Revista Escrita - Número 1

43

Daqueles que machucam e que depois deixam o vazio do partir

Quero sofrer diariamente

A tua ausência enquanto te espero no entardecer na sala

Sofrer dolorosamente

ao parar de te abraçar em todas as manhãs

E sentir também as dorzinhas cotidianas

aquelas que acometem qualquer "dois"

E que são logo dissipadas por mil beijinhos

de carinho e carinha de desculpas

Assim...

Duvido.

Que saibas que queres isso para ti.

E nessa dúvida,

meu pensamento presente volta a soprar

para longe o futuro... Cada vez mais ausente.

Page 44: Revista Escrita - Número 1

44

LETÍCIA GIRALDELLI

“Eu sou mais do que essa menina de cabelos castanhos

ondulados. Eu sou mais do que o batom vermelho que não

sai de meus lábios. Eu sou mais do que o blush que deixa

minha face menos pálida. Eu sou também mais do que o

modo como acordo: descabelada e sem maquiagem

alguma. Eu sou mais do que as roupas que eu compro

porque eu gosto. Eu sou mais do que meu corpo totalmente

nu. Eu sou mais do que os poemas que escrevo. Eu sou mais

do que o meu sorriso alcança. Eu sou mais do que meus olhos

dizem e mais ainda do que seus olhos me enxergam. Só não

venha me pedir pra dizer até onde eu vou. Até onde sou. Só

não venha me pedir para explicar esse meu desejo de ser

essência e muito mais. Não há palavras, sinônimos,

comparações para me resumir. Talvez eu não tenha um

resumo, talvez minha biografia ficara cheia de páginas em

brancas por falta de coragem de minha parte, ao tentar

fazer com que alguém me entenda. Eu acho que sou amor.

Só não tenho certeza até quando.”

http://nostalgiaetedio.blogspot.com.br/

Page 45: Revista Escrita - Número 1

45

LIBERDADE

Olhou-me sedento, mas manteve-se à distância. Tentei uma

aproximação maior, dei alguns passos em sua direção... Mas ele

minuciosamente esquivou-se. Tudo o que eu podia pensar naquele

momento ecoava em alto som mesmo que dentro de mim: não se vá.

Não precisa ficar feito um compromisso firmado... Mas agora, fique.

Olhava-me quase sem piscar, eu podia sentir que era recíproca a

vontade de permanecer por perto, mas seus olhos, apesar de sedentos,

sangravam o medo. Eu queria poder te passar algum resquício de

segurança mas eu não podia prometer algo que eu não obtinha

certeza absoluta. A única certeza era: por favor, por hoje fique. Não se

vá, por favor. Não há orgulho. Eu poderia implorar... Mesmo assim, pedi

educadamente, "fique!" Arrastei a gaiola empoeirada, que há anos

estava guardada no porão, desemperrei sua porta e sentei no banco

de madeira enquanto o observava.... O pássaro cantou um hino ao

entrar acanhado entre os ferros enferrujados. Os cadeados nas minhas

mãos uivavam para não serem usados. Arremessei-os ao fundo do mar,

deixei a porta da gaiola entreaberta e cantei um canto desafinado,

berrando amor para mantê-lo por perto. Amar não é posse... Amar é

poder ir e mesmo assim, naturalmente preferir ficar. Cante um doce som

para mim, e então ficarei.

Page 46: Revista Escrita - Número 1

46

GELATINEI

Atrevi-me a vagar pela noite na companhia apenas das estrelas

Acendi um cigarro e lembrei que não sei fumar.

Tossi.

O vento batia forte e eu desejei voar com ele.

Quem voou foi o tempo, olhei no relógio da praça:

Madrugada.

40º compunham a temperatura maluca

Não é Rio de Janeiro,

Não tem mar,

Antes que eu me esqueça

São Paulo,

Não tem água.

Dei um gole da cerveja quente.

Amassei a latinha.

E por alguns segundos pensei em dividir o banco com um mendigo

Pegar emprestadas algumas histórias

a troco de uns trocados pra um lanche.

Voltei pra casa cedo,

O sol derretia as árvores

Que imploravam:

Não

Queremos

Virar

Gelatina.

[....]

Gelatinei.

Page 47: Revista Escrita - Número 1

47

PASSOS REPETIDOS

- Espera mais um minuto?

- Não tem mais o que dizer...

- Não diz. Mas espera.

- Não quero ficar olhando pra você. Dói.

- Fecha os olhos.

- Ainda dói.

O garoto chegou perto da menina que permanecia de olhos fechados,

beijou-lhe a testa, respirou fundo e disse:

- Não precisamos piorar a situação... Correntes quebradas não

machucam, libertam.

- Posso ir agora?

O garoto deu as costas e saiu andando na praça iluminada pelas

estrelas.

A garota ficou.

Como todas as vezes.

Page 48: Revista Escrita - Número 1

48

SUBINDO...

Eu sempre tive a sensação de que algo bom estava pra acontecer. O

vento balançava meus cabelos na rua escura enquanto eu sorria ao

pensar "Algo acontecerá em breve!". Era só mais uma noite boemia... A

mesmice me torrava os miolos crus, mas o pensamento insistia em

sussurrar-me às escondidas: "Algo acontecerá em breve!". Né que

aconteceu?! Enquanto eu esperava o elevador para descansar, após

ter dançado tudo aquilo que não sei dançar, a garota apertou o botão

do mesmo. "Já apertei!" Sorri ao comunicar. O elevador chegou vazio.

Cena óbvia pra uma madrugada fria! Ela também havia bebido um

pouco. Seus olhos não mentiam. Era o sorriso mais bonito que cruzara

meu caminho, eu diria. Fitava-me calada diante do enorme espelho

que refletiam nossos corpos cansados. Era três da manhã. Sua saia era

longa, seus cílios também, a blusa decotada. Cabelos castanhos

meramente ondulados até o quadril. Apertou o oitavo andar. Droga, eu

pararia no sétimo! No terceiro andar a porta abriu e eu quase saí, mas

voltei a tempo de perceber que era uma parada desnecessária.

Alguém que apertou e desistiu... Alguém que apertou os dois elevadores

e o outro chegou mais rápido... Tanto faz... Rimos na minha volta

desengonçada. Que olhar faminto me engolia! Que sede eu sentia

daqueles lábios carnudos! Seriam macios? Minha boca salivava por um

beijo. Sexto andar se aproximava e eu pensava em uma despedida

categórica. Sétimo andar, porta aberta, eu não queria me despedir.

"Saia do elevador comigo..." Pedi educadamente. Os olhos eram

curiosos, o respirar passou a ficar ofegante, mas ela na defensiva

sussurrou ao levantar uma sobrancelha e esticar os lábios: "Eu nem a

conheço..." Eu também não sabia muita coisa sobre ela, minto! Eu não

sabia nada sobre ela... Tampouco o seu nome. Sei que iria descer no

andar seguinte. "Saia comigo..." Repeti. Eu não tinha muita coisa a

oferecer. Eu só queria senti-la perto. Eu queria que ela me acariciasse

Page 49: Revista Escrita - Número 1

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na sacada, aliás a noite estava estrelada e nós estávamos a sós. Eu

queria que ela me contasse algum segredo nunca revelado. Queria

poder deslizar minha língua onde a fizesse gemer meu nome. Que ela

herdasse meu sobrenome. Entrou no apartamento quieta, mas ainda

sorrindo. A abracei forte, respirei alguns segundos com as narinas

grudadas no seu pescoço. Que cheiro agradável. Que moça

formidável! Peguei um cobertor e três travesseiros. Joguei tudo na

sacada, ela arrumou. Deitamos abraçadas. Encaixou. As três marias no

céu olhavam pra nós e refletiam nossos olhos. Sério! Os lábios eram sim,

macios. O tato dava choque. Arrepios. Afagos. Transamos. Dormimos. Já

se passou um dia após o ocorrido e eu fico implorando em

pensamentos para que ela desça um simples andar para que meu

coração suba mil passos.

PS: Necessito de um marca-passo.

Page 50: Revista Escrita - Número 1

50

SAMBA

No meu sambar do avesso, meio torto e inteiro do meu jeito foi que eu

ganhei a atenção da bela moça.

Gostaria mesmo que por meros segundos entender se sorria tão

contagiante devido achar bizarro ou graça. Mais que isso, gostaria

também, de saber a sua graça. Desejos não me faltavam mas tudo o

que eu conseguia fazer era continuar sambando enquanto a olhava

me olhar. Via-me no reflexo brilhante que me permitiam seus olhos.

Sorria com o teu sorrir enquanto o coração pulava no ritmo do

pandeiro. Os pés continuavam como sempre desajeitados mas não tem

problema ir no samba sem saber sambar. O verdadeiro sambista,

samba com a alma assim que o batuque começa. A gente percebe

quem é feito de samba logo pelo olhar e a bela moça parada no

canto a me fitar.... E eu na roda sem saber dançar... Nós duas sim,

unificamos todos os sambas em um domingo inteiro.

Page 51: Revista Escrita - Número 1

51

GUILHERME PARRA

Guilherme Parra tem 30 anos, é economista, apaixonado por

música em suas diversas vertentes, admirador de cachorros,

lobos e suas variações. Começou a escrever a fim de

contornar sua introspecção e exteriorizar um pouco das

sensações que absorve do mundo.

www.insidewalden.wordpress.com

Page 52: Revista Escrita - Número 1

52

VONTADE

Queria escrever-te os versos mais lindos

Lapidados no íntimo do meu coração.

Com palavras simples, dedicar-te carinhos infindos

Que mostrariam que tu és minha inspiração.

Queria que tais palavras te iluminassem

A ponto de fechares teus olhos para as ouvir.

Que em tua mente diversas cores se formassem

E o que sinto – além do escrito no papel – conseguisses abstrair.

O que eu queria mesmo, em pensamento,

Era segurar sua mão e te abraçar …

E que os versos mais lindos se perdessem com o vento

Para que se propagasse minha vontade de te adorar.

Page 53: Revista Escrita - Número 1

53

QUARTO DE MÁRMORE

“The way your heart sounds makes all the difference…” Dream Theater –

Learning to Live

Junto à janela, olhos sobre a Lua

Ela espera que as lembranças eclipsem

Apaziguando a turbulência interna

Que toma conta de seus sentimentos.

Deitada na cama, esperando o sono

Ela arrosta o teto e tenta entender

As imagens desconexas que surgem

Pela projeção de seus pensamentos.

A chuva que cai do lado de fora

Atravessa o telhado e se amalgama

Às figuras e palavras profundas

Que ali estão dispersas em fragmentos.

Perdida sob um céu de madrepérola

Ela busca razões para ficar

Imune à mensagem em seu silêncio

De longos desolamentos inquietos.

As portas da percepção são abertas

Águas do sono cobrem suas memórias

Cessam as ilusões do coração

E as paredes de mármore se fecham.

Page 54: Revista Escrita - Número 1

54

ENTORPECIMENTO

Da montanha mais alta da cidade

Contemplo o frio silêncio das luzes

Retratando a ausência de afinidade

Com alguém: “estan clavadas dos cruces…”

Sopra alto o vento a Fortuna da Morte

E devora em meu ser toda a Esperança

Relegando minh‟alma à própria sorte

De viver como um fantasma em andança …

O vento nada me diz, estremece

A ideia de que penso muito em tudo

Ou que tudo à minha volta me esquece

Em torpor, com a vida adormecida,

Pergunto-me: _ Por que fiz dos meus sonhos

Razão de ser maior que a própria vida?

Page 55: Revista Escrita - Número 1

55

SINESTESIAS DA CHUVA

it’s just a litte rain

Debaixo de um pálido céu cinzento

Emerge uma fria ausência que acalma

Debussy projeta a todo momento

Uma indelével chuva em minha alma

Verlaine consente que a chuva caia

Coberta de nevoeiros e gelos

Escorrendo por entre pesadelos

Para que a dor no coração se esvaia

Em essência, sem ninguém a clamar

Byron exalta a chuva e seu cantar:

“Tudo aquilo que flui jamais é triste”

E prazer nas chuvas densas existe

Esperança renascer é sentir,

Em meio à tempestade, um farol.

Se um pouco de chuva torna a cair

Bach me traz sua Ària na corda SOL

upon us all, a little rain must fall

Page 56: Revista Escrita - Número 1

56

ENLUARANDO

É noite. Sob um luar desvairado

Mergulho em um mar de desassossego

O vento sopra mistérios – calado –

Entre os quais, indo a medo, eu navego.

Meu devaneio ostenta solidão.

Entre o que o vento traz e a hora

Minh‟alma estremece, perde a razão

E enluara meu ser enquanto chora.

Tudo o que sou „inda é um grande segredo.

Incerto e triste o coração flutua …

Embora seja tarde, já foi cedo?

Reponto desse sonho em um segundo.

Saindo das ideias, fito a Lua

Nos olhos cujo Amor é o fim do mundo.

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DANI VITOR

Daniela Vitor, nasceu em São Paulo, em 1979, mas mora em

Campinas há muitos anos. É escritora desde sempre, mas

nunca achou que tivesse uma escrita realmente relevante.

Conforme foi se descobrindo, também descobriu que

bastava que sua escrita fosse relevante para si mesma. É

também esposa, educadora e vê no bailar do Flamenco sua

paz para a alma. Apaixonada por Literatura, sempre voltada

à busca interna e espiritualidade, viu em Clarice Lispector

uma unidade de pensamento sobre si mesma e sobre o

mundo. Hoje, mestranda, também é pesquisadora

apaixonada de Clarice. Percebe o dom da escrita como

uma missão e sonha em poder viver somente disso um dia.

[email protected]

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MELÔ DA MELANCOLIA

A despeito de tudo o que há de mais belo na vida, hoje acordei azeda.

Daqueles azedumes de nada fazer sentido, de não valer a pena gastar

a saliva, o pensamento, a paciência, a resiliência de ouro. Nada, nada

disso.

Tenho cá meus motivos, mas nenhum deles faz sentido também. Então

apenas aceito o sentimento desprovido de açúcar e emudeço.

Faço disso uma salvação de mim mesma, a fim de aprender o que for

preciso com isso e transmutar logo para uma nova e mais digna

energia.

Este ser sem esperanças nem vontade não sou eu. Só que hoje estou

assim e me deixe assim por ora.

Quem muito busca, corre, aprende, cai, levanta, aprende, desaprende

e aprende de novo, tem dessas coisas: tem dia que acorda exausto das

chatices da vida, como estou hoje.

Uma pitada de revolta de bom ânimo com uma falta de vontade de

entender qualquer coisa. É cansaço só. Se deixar que sinta, isso logo

passa.

Isso porque no fim, já sei também que não passa de uma forma de

enxergar as coisas. E se me faz mal, para que escolher isso como visão

de vida? Não, não quero. É apenas uma brisa cinza, um ar gélido de

desesperança. Talvez até interessante demais para que eu bata o pé

no fundo do poço, assim por puro cansaço do cansaço mesmo, me

agarre às minhas raízes mais positivas de alegria e renasça de novo,

mais forte, mais lúcida, mais consciente, mais serena. E renascerei de

novo e de novo e quantas vezes mais forem necessárias.

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Gosto de pensar que crise é sinônimo de oportunidade. No mínimo, a

gente cresce. Então crise também é Luz. Não no momento, pois ainda

não bati o pé no fundo do poço, ainda estou lá, tentando entender

alguns sentidos que não fazem o menor sentido, conseguindo me

refazer, me exercitando para ser uma pessoa melhor.

Então me deixe lá. Assim que estiver pronta, eu bato o pé no fundo e

subo. Só quando estiver pronta. Eu sei o caminho, fique tranquilo. Já fui

e voltei muitas vezes. Talvez por isso esteja crescendo tanto.

Eu sei que chegará um dia em que não mais precisarei sentar no

fundinho do poço, quieta e azeda para entender as coisas e aprender,

mas que se dane se hoje ainda preciso disso. Eu assumo minha falta de

evolução e ponto final.

Eu sei que um dia vou olhar para o poço e enxergar somente uma água

pura, cristalina, que mostrará meu reflexo límpido, sereno. E sei que este

dia está cada vez mais próximo. Então tudo está bem, tudo está certo.

Essa lucidez insana às vezes me atormenta, mas acabo achando graça.

Afinal, que outra alternativa é mais alegre do achar graça da falta de

graça? E essa sim sou eu, a alegria desmedida e insana de achar a

graça da vida onde a maioria acha que não tem. O otimismo

exacerbado e irritante de sentir a certeza de que tudo sempre vai dar

certo, de um jeito ou de outro. A esperança sem fim de acreditar que

posso ser melhor a cada dia, que as pessoas podem ser melhores a

cada dia e que o mundo está melhorando a cada dia.

Como hoje não estou sendo eu, me deixe encarar meu lado sombrio,

com toda coragem que me é peculiar, até que se transforme em Luz

novamente.

E cuide de sua vida, não me aborreça. Que das minhas vidas cuido eu.

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MEU BICHO, O EGO.

Hoje acordei desanimada do amor.

Antes que as más línguas se exaltem: não, nada errado com meu

casamento. Digo amor no sentido mais amplo da palavra.

Em qualquer tipo de relacionamento, o amor é bom de fato quando só

se ama e nada mais.

Para usufruir de todas as benfeitorias de amar, é preciso estar disposto,

muito disposto a se desfazer das benfeitorias do ego. Sim, porque é esse

bichinho safado, inerente ao ser humano, que, em sua forma mais

exacerbada, cria expectativas irreais, fere, frustra e faz sofrer

dramalhões mexicanos infundados.

O amor por si só tem só Luz. Acontece que para percebê-lo em sua real

potencialidade é muito necessário trabalhar para que o ego, pelo

menos, se equilibre, e fique guardado numa caixa, sem menores

pretensões. Acabar não acaba, mas é preciso saber domá-lo. Sem isso,

tudo cai numa falta de graça de cinco em cinco minutos, num

desespero ensurdecedor de vaidade.

Eu sei, descobrir isso é motivo de alegria, não de desânimo. Afinal, o

amor em sua forma pura e simples nos contenta só por existir. E querer

mais o que?

O que me desanima é pensar em domar o ego, tão enlouquecido por

satisfação de suas próprias necessidades e entendimentos, tão

pequenos, tão irreais, suburbanos mesmo. E isso me dá uma preguiça,

compreende? Não é desânimo de tristeza, é desânimo de preguiça.

E daí? Quem nunca sentiu preguiça de si mesmo, que atire a primeira

pedra de autopiedade.

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Hoje quero chuva. Daquelas de ficar em casa, na varanda, olhando a

terra molhada, sentindo o cheiro e lembrando como a infância era boa.

Lembrando de como eu era feliz na ignorância sábia da falta de

conhecimento do meu próprio ego.

Ah, a ignorância... de uma sabedoria ridiculamente exposta à falta de

bom senso, que atordoa, mas faz dormir tranquilo, com barulho bom de

chuva e cheiro bom de bolo depois da brincadeira na lama. Aquele

barro engraçado, a lama, que só os puros entendem o tamanho de sua

grandeza.

A lama, a chuva, minha tranquilidade e nenhum ego. Acho que estaria

bom por hoje.

Page 62: Revista Escrita - Número 1

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UM DIA

A manhã rompeu o dia, cinzenta, nublada, com um tímido sol que não

deixava definir como realmente seria o tempo. Tempo?

A falta de vontade lhe amargou a boca, seca e sedenta por paz.

O cansaço inundou a casa toda, antes mesmo do primeiro raio daquele

sol, finalmente, definir a que veio.

E então lembrou do transitório, da ilusão da matéria, da injusta justiça

divina. Ainda assim permaneceu azeda.

O cheiro do café lhe trouxe à vida. E sorriu. Cada gota da bebida trazia

um gosto novo ao ânimo que não acordou disposto naquele dia.

Aproveitou os últimos minutos no templo de seu lar, no aconchego do

sofá que abraça, e sentiu o silêncio, perturbador e acolhedor.

Sabia que após o mesmo ritual de todos os dias, teria de encarar o

trânsito impiedoso, os motoristas zumbis, as mesmas tarefas no trabalho

e tudo mais. A sórdida rotina novamente.

Saboreou o último gole do mágico café. Tomou seu banho de lavar a

alma. Vestiu sua melhor fantasia de mulher de negócios. Passou uma

maquiagem suave, que escondeu todos os traços da grande vontade

de estar viajando o mundo todo ao invés de ficar presa o dia todo no

escritório. O perfume, assim como o café, fazia sorrir. Era gostoso sentir o

cheiro de beleza e liberdade.

Olhou pela janela da sala e viu que o sol havia tomado coragem. O dia

antes cinzento e rabugento, havia se tornado bonito, de um azul

incrivelmente parecido com o céu das viagens que conseguia fazer

somente uma vez ao ano. E então sorriu.

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Lembrou que era só mais um dia e que logo estaria na viagem daquele

ano e viveria de fato nesses poucos dias. Tão poucos dias para viver de

verdade. Não entendia porque tinha que ser assim. Que seja enquanto

for assim.

Respirou, orou, sorriu com a alma. A gratidão tomou conta da casa e

dela. Assim como o dia, também ficou ensolarada de uma esperança

inebriante, original e reveladora.

Tudo parecia mais leve, mais certo, mais justo.

E saiu para curtir o céu azul, que decidiu que estaria também dentro do

cinza escritório fechado.

E assim aceitou a rotina mais uma vez. E acatou o tempo, o destino.

E assim foi feliz.

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ADORMECI?

E foi então que adormeci.

Em meio a tantos devaneios e loucuras cavalgando dentro de mim, a

insanidade de minha fé era a única e mais improvável lucidez de minha

alma naquele momento.

Um sonho desses que parecem de verdade. E são.

E nele todas as respostas me surgiam, como flocos de neve caindo

docemente perante meus olhos de menina. Era alegria, êxtase, paz,

talvez os minutos mais preciosos e intensos de minha existência. As

respostas que tanto quis, esperei, ansiei, agora fazem parte de mim,

somos unidade.

E nesse sonho havia um cheiro todo refrescante de flor, era Lótus. E daí

eu tive a certeza: despertei.

Foi tudo tão real, tão bonito, que acordei, cá deste lado, num ar

triunfante de felicidade pura.

O relógio despertou, lembrando da rotina terrena. Tomei um banho, me

troquei, saí para a batalha diária.

E foi então que adormeci novamente.

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RECOMEÇO DE ANO

Olhava a roupa branca e bonita como a última esperança de boas

novas em sua vida.

Talvez não a última, mas mais uma apenas. E já foram tantas.

O fato é que isso não a desanimava, nunca desanimou. Era sempre

motivo de recomeçar. Uma pequena luz no fim do túnel, era somente

disso que precisava para acreditar novamente. E sempre tinha, e

sempre acreditava, e era, enfim, a esperança reencarnada aqui.

Precisava terminar sua parte da ceia para a tão esperada virada do

ano, mas dava uma preguiça de fazer rir um riso desajeitado. Não,

cozinha nunca foi seu ponto forte.

Tinha sim outros predicados e focava neles. Como o tender estava já

coberto por preguiça, resolveu fazer a lista e a limpeza energética final

do ano, dela e da casa. Isso sim era simples e prazeroso para ela.

Começou com uma oração, banhada por incensos, cristais, água

benta. E foi então que entrou em seu mundo particular.

Revivendo as emoções e os acontecimentos daquele ano, percebeu o

quão abençoada foi em absolutamente todas as situações, todas. E

toda a diversidade dos acontecimentos e sentimentos inundou sua

mente e acelerou seu coração. Em alguns momentos, tomada pela

parte humana, chegou a pensar em desistir. Doía o coração. Só que

mesmo nesses momentos, recebia tantos recados de encorajamento,

tantas proteções, tantos sonhos reveladores, que chegava mesmo a

sentir vergonha em pensar na possibilidade de desistir.

Respirava fundo, mudava a forma de ver a mesma coisa e seguia em

frente.

Page 66: Revista Escrita - Número 1

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No começo essa atitude pareceu insana, sem propósito, descabida

mesmo de razão. E era. Como sempre, era guiada pelo coração, terra

de ninguém da emoção racional.

Decidiu que queria mesmo era se encontrar. E foi ao seu encontro

durante o ano todo. Terapias, florais, cursos, palestras, livros, meditações,

orações, o contato direto acontecendo como rotina. Esse era mesmo o

caminho onde sempre quis estar. E já no início do velho ano, fez uma

resolução de vida. Decidiu para sempre cuidar de si mesma e se

conhecer cada vez mais. Isso sim foi uma resolução revolucionária e

avassaladora de boa. E prometeu a si mesma que essa resolução

estaria eternamente tatuada em sua alma.

De todas as coisas maravilhosas que ganhou com esta decisão, paz

interna intensa foi a mais compensadora delas. E continuando nesses

trabalho de si mesma, atiçava a curiosidade em saber o que mais de

tão bom poderia vir por aí. E decidiu crer definitivamente no invisível,

tão absolutamente visível nas outras dimensões onde adorava estar

nessas descobertas.

Feita sua retrospectiva interna, voltou cá para este lado. Abriu

lentamente os olhos, o incenso havia terminado sua missão. A casa

cheirava a amor. Bebeu da água benta, a mesma água que rolou de

seus olhos pela gratidão que a preencheu.

Reverenciou o Alto, a si mesma, a vida, desejando que toda aquela

energia positiva inundasse o próximo ano, a nova consciência e a Nova

Era. E alma sorriu esperança, faminta por evolução, sedenta por paz

branca.

Flutuou pela casa como quem caminha em nuvens brandas. A vida ali

era serenidade pura. Colocou uma música Flamenca quente, cantou,

dançou, deixou que aquela energia tomasse conta do lugar. E foi,

finalmente, terminar o molho de preguiça do necessário tender.

Page 67: Revista Escrita - Número 1

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GUILHERME NICÉSIO

Guilherme Nicésio nasceu em Franca-SP em 1978. É professor

de literatura, redação e língua portuguesa. Mas demorou a

saber disso. De tanto ouvir dos outros que devia publicar o

que tanto escreve não sabe desde quando, recentemente

decidiu levar isso a sério. Então agora é escritor?

Blog: http://asencruzilhadas.blogspot.com

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REPRISE

Poucas pessoas entendem bem essa minha mania de reprise. Assisto a

um filme e, se gosto, vou duas, três vezes, no cinema. Se leio o livro, e se

me deleita, vira livro de cabeceira, vai sendo devorado, até por anos,

em alguns casos. As páginas, amareladas. As pontas da capa, um

pouco gastas. Às vezes, um rabisco aparece no trecho mais

interessante. Uma cena te chama mais a atenção e decoram-se os

diálogos do trecho. Uma música me marca e, como a ouço tanto,

gravo sua letra como se fosse um hino pessoal, muito meu, que vou

cantando sem pensar ao longo do dia. Mesmo que não seja um primor

de cantor, claro. O disco, ouvido até mesmo pela madrugada afora,

fura mesmo. Isso quando havia discos (Agora é "Ouvi tanto que deu PT

no meu mp4, no meu Ipod").

É certo que você quer voltar à bela sensação de completude

proporcionada pela primeira vez com o livro, o filme, a música. Quando

você encontra com alguém que leu esses livros, que viu esses filmes, que

escutou as músicas, como que nos irmanamos na ideia de que

compartilhamos um evento único, um crime impune. Buscamos no olhar

do outro um cúmplice desse raio de felicidade efêmera.

Tantas outras coisas podem ter reprise. Isso acaba sendo até mesmo a

maneira como nos apresentamos ao outro, como uma ponte, um

acesso por meio de algo em comum. Principalmente na falta de

assunto. Primeiro encontro de um casal: se é um bom encontro, sempre

será marcado por essas coincidências nas reprises que, nesse caso,

viram pretexto para outra reprise (Um segundo encontro, talvez?).

Esse gosto pela reprise também é difícil, se contamos para alguém que

não dá o devido peso à mesma experiência. Aí, é como um pai que dá

seu brinquedo favorito de infância, guardado a sete chaves, para o

filho futuro. Quando este o vê, pega e o deixa de lado nos primeiros

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instantes, sem um lampejo de interesse, o ingrato. No fim, nós, os

amantes da reprise, achamos todos loucos ou ingratos os que não

valorizam a obsessão do momento. Também há aqueles que acham

essa coisa de ver de novo, várias vezes, algo estranho, uma loucura ou

pura perda de tempo. Afinal, não é possível gostar de algo tanto assim.

Será?

Censuram-me com frequência por falar empolgado das coisas que me

fascinam. Mas ultimamente tenho ficado mais calado sobre essas

reprises, as quais comento somente com quem me tolera ou curte essa

pegada. Assim, não amolo mais ninguém. Mas, com isso, perde-se

também a oportunidade de se ouvir mais, quando a pessoa fala de

suas própria reprises.

Agora, quando conheço alguém e gosto, também quero repetir a

dose. Aí, falo das minhas reprises. Quero mesmo é aproveitar o tempo.

Estender esse encontro, ao máximo. Com isso, me redescubro um

pouco também no outro, na leitura inusitada das reprises, e das não

reprises. No fim, se isso dá certo, quero um repeteco. Afinal, o segredo

de uma boa conversa é ser generoso.

Mas fazer uma pessoa virar reprise é algo que vai ficando raro hoje em

dia. Nem sempre dá certo, porque ninguém vê e sente exatamente o

mesmo que você. Dizem que isso se deve à falta de tempo. Ou ainda

às redes sociais. Ou ambas, responsáveis pelo individualismo

exacerbado e por uma autopromoção ferrenha. Também já ouvi dizer

que ter tempo para alguém é artigo cada vez mais raro. Mas como

acho que a mesquinhez e a ingratidão sempre grassou por aí no

mundo, não me surpreendo com essas afirmações. Recentemente,

conheci uma pessoa que me surpreendeu dizendo empolgada muitas

coisas sobre uma viagem sua a um evento político em Brasília. Puro

deslumbramento. Diante disso, minhas reprises talvez não fossem tão

interessantes como os discursos vazios, os acordos e reuniões à surdina,

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o aperto de mão de adversários históricos, o lobby (esse novo nome

para o conchavo). Tentei, mas não deu liga nem reprise. Fiquei triste. No

entanto, há de se ter ainda esperança no coração, sabe?

Lembro de meu primo, Zé Carlos. Quando a gente era moleque, no

Estreito, ele não aguentava minhas sessões de leituras torturantes, meus

comentários sobre livros de que ele não gostava nem um pouco.

Obrigado, Zeca, pela paciência e pelo ouvido amigo. Mas, até hoje,

tratamo-nos com aquela ternura que somente os meninos de boa

infância têm ("- Ô, seu caprino!"; "- Fala, cabeçudo!"). Agora moramos

um pouco longe. Chega a notícia de que ele quer rever a mim e à

família, agora um pouco maior. E meu filho adora aquele carrinho velho

e gasto, ao invés dos outros, novos.

Reencontros são boas reprises.

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HOJE À TARDE

Um dia qualquer, desenvolvemos uma relação tortuosa com uma

pessoa. Bom, então há um passado. Isso cria uma situação incômoda.

A pessoa sinaliza distanciamento, e isso acontece. Contudo, somos

obrigados a conviver. Pode ser o trabalho, a escola, a família, o que for.

De toda a forma, é a vida.

Uma coisa trivial ocorre com essa pessoa: cadarço desamarrado;

carteira caída; botão aberto; chave ou moeda perdida; sujeira no

dente; pasta de dente na lapela; lanterna do carro ligada... Que seja.

Isso pode ser dor de cabeça para a pessoa em questão; pode ser

embaraço, constrangedor; pode ser que nada. Mas para nós, não.

O banal vira impasse ético: responder com indiferença, e não dizer

nada, provavelmente se omitir seria uma punição pelo passado mal

resolvido; ou se pronunciar, bancar o bom samaritano, e resistir a usar a

situação para tentar mobilizá-la por meio de altruísmo falso,

aparentemente desinteressado. Sinuca do bardo do cotidiano.

Há outra saída. Pediremos que alguém fale por nós, e exigir de pé junto

que não sejamos identificados. Tentar praticar o verdadeiro altruísmo: o

bem sem cara, sem panfletagem, sem interesse. Serve sem selfie?

Pois bem. Uma das soluções é escolhida.

Esperamos a pessoa. Dadas as circunstâncias, parece tocaia. Nos olhos

dela, parece-nos entrever isso. O desconforto. Como há um acordo

tácito - nunca dito, mas estabelecido, acordado, assinado e com firma

reconhecida - em não se conversar ou encontrar além do limite

tolerável, isso seria evidente. Mas não nos importamos. Seguimos em

frente.

- Ó, queria te avisar... Cuidado...

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Mas, na verdade:

"Olha pra mim

Não faz assim

Não vai lá, não..."

A pessoa, assustada, agradece já andando, tomada pela pressa. Frase

cortada, quase soletrando, aturdida:

- Ah, bri-ga-du...

Não sabemos se esse telégrafo entra na conta do susto tomado por tal

aproximação repentina, sorrateira - Que afronta! - ou se é a urgência

que causou nosso alerta. Será que abalou? Gagueira também se

chama sopro no coração. Se de raiva contida, de susto-suspiro, nunca

saberemos.

Queríamos o quê? Palmas e louvores em uníssono? Que a distância,

essa linha reta, se tornasse um único ponto? Que haja um encontro

nesse desencontro? Para quê? Por quê? Ouça: Non amo, quia amo.

Non amo, ut amem. Sossega o peito. Respira. Sossega. Respira... Respira,

vai. Respira... Isso.

Arrependimento? Não, né? Já o sagrado coração nosso ia aguentar

fazer tortura nos outros? Dormiríamos abraçados ao rancor? O João,

sim. Eu, não, nem.

Recolhemo-nos à insignificância. Descansemos em paz. Afinal, o aviso

deve ter servido para alguma coisa.

Page 73: Revista Escrita - Número 1

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ALEGRIA (VERSÃO 2)

Saiba você,

que me visita aqui

na calada da noite.

Saiba você

que me curte

classifica

considera

qualifica

ama

ou não.

Saiba, mas saiba mesmo:

Esse sorriso, essa alegria,

são punhos cerrados

para o mundo.

Page 74: Revista Escrita - Número 1

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CASCO

Você sabe do que falo:

se facilita, é peça;

se impede, é peso.

Feito o uso,

deixa de lado

ou reserva.

Para mexer, então...

Suja com o tempo.

Ocupa espaço.

Mas quer ter à mão.

Vai saber quando precisa.

Nunca se sabe, não?

Às vezes quebra,

é só usar outro.

Nem pensa na perda.

E os cacos, que fazer?

Varre para o canto?

Deixa como está?

No fim, é isso:

fica atrás da porta

ou cuida e se corta.

Page 75: Revista Escrita - Número 1

75

FAIR PLAY

Saber onde se anda

trançar as pernas

drible e folha-seca

é a regra do jogo.

Nesse impasse

a linha da vida

me impede.

Achei que daria conta

no vamo-que-vamo.

A bola?

Carrego.

Arreguei.

Perdi.

Você, eu,

do contra?

Se liga!

Não sabe jogar?

Não desce pro play.

Page 76: Revista Escrita - Número 1

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FLAVIA MENDES

“Flavia Mendes, 25 anos, sonhadora, cursando tecnologia em

logística, trabalhando na área. Sonhos são possíveis quando

botamos fé e essa fé que me mantém na luta. Ariana, com

um coração grande, procuro ajudar a todos na medida do

possível e de minhas possibilidades. Somos a geração do

futuro, mais amor hoje para um mundo melhor amanhã.

Encontrando na escrita uma forma de elevar a alma e os

pensamentos, libertando-se de alguns fantasmas.”

[email protected]

Page 77: Revista Escrita - Número 1

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VOCÊ

Como o perfume das flores se misturam aos mais diversos sentidos...

Me embriagar de seu doce cálice não me traz insanidade...

Sua visão embaçada ao fundo sempre distante, não me traz a

vertigem...

Prazer e medo, amor e ódio, paz e perdição...

Como crianças sem maldade, a pureza de um beijo abraça a alma que

se acalma...

Em meio à escuridão da incerteza eu escolho

O que me afasta de você, que me torna menos e cada vez menor, que

me faz escolher o depois, entre uma linha tênue do sim e não..

Com as mãos livres e o coração atado

Com o horizonte adiante e os olhos vendados

Com o caminho livre e os pés amarrados, mais uma vez sentirei seu

perfume e irei me embriagar em você.

Page 78: Revista Escrita - Número 1

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PASSAGEIRO

Não havia cor,

Nem sabor,

Nem calor.

Não existia som,

Nem tom,

Nem dom.

Estava ali,

Apenas olhando;

Observando com cautela

Com o pensamento vazio;

E tudo era tão frio.

E já não sentia,

Queria, ou sorria.

E na multidão,

Chegando na estação

Seus passos se perdiam,

e apenas seguiam

onde levara o coração.

Page 79: Revista Escrita - Número 1

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VIVER

Muitas vezes sufocados pelo tempo, relógio, pressões,

Muitas vezes sufocados pelos sentimentos, incertezas, emoções,

Gritar, chorar, sorrir, sentir,

Solução em nossa frente? Solução, decisão, libertação?

Ficar, mudar, partir, desistir, insistir?

O medo e a insegurança nos rodeiam,

Faz-nos refém de nós mesmos,

Empoeirando a visão para um horizonte brilhante,

Mesmo que por pouco tempo, porém com sentimento.

Escolher entre o bem e o mal,

O bom e o ruim,

O certo e o errado,

O exato e o duvidoso,

Correr e se lançar no nada,

Deixar acontecer,

Ansiedades .....

Amanhã está longe demais, e ontem temos que esquecer.

Viver, é o que temos a fazer.

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CÉU AZUL

Céu azul, vejo toda sua imensidão,

respiro fundo, sinto toda leveza na alma,

na retina a lembrança,

um leve sorriso, como de uma criança.

Encontro em cada momento,

os mais remotos turbilhões de sentimentos,

o brilho do sol remete a mais profunda alegria,

ao sentir na pele a emoção de estar viva.

A leve brisa do vento, sentindo na face cócegas,

uma notícia boa, um suspiro sincero,

um sonho em vida, que ainda espero.

Após a jornada, tão bela e encantada, o pôr do sol.

Enfim, após um belo jasmim, deitar para descansar, e em um novo céu

azul acordar.

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SILÊNCIO

O silêncio calou a alma

A dor calou a voz

A voz se calou pela dor

Por que a dor se tornara real.

Vendaram–lhe os olhos

Sonho ou ilusão

Mente ou coração

A utopia já não existia.

Em seu mundo

Seus olhos se abriam.

E cada novo dia, sol nascente

Amanhecer, viver e morrer

E o silêncio voltara a prevalecer.

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BETINHO PACIULLO & PEDRO ARREGUY

Betinho Paciullo, mineiro estabilizado em São Paulo à alguns

anos, recém formado em Design, vê na ilustração um escape

desde os tempos de menino. Transita por várias vertentes

desse universo, desde ser aprendiz de tatuador, desenhar

estampas até fazer curta metragens animados.

Pedro Arreguy é um jovem de 20 anos, do sul de Minas.

Admirador suspeito da música popular brasileira, e toca

violão por puro prazer. Há pouco tempo começou a escrever

afim de questionar as Inversões de valores de uma sociedade

consumista e violenta.

Iniciaram juntos um projeto, para divulgar a arte de forma

simples e cotidiana: poesias ilustradas espalhadas pela

cidade.

https://instagram.com/betinhopaciullo/

poesiavirtualmg.blogspot.com

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PÁGINA DO LEITOR

FIM